O Amor do Palhaço
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O Amor do Palhaço
O Amor do Palhaço Uma Paródia Encarnada Roteiro cinematográfico Ficção – 15` Armando Praça Fiz de mim o que não soube, E o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, Estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido. Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiário Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo E vou escrever esta história pra provar que sou sublime." Fernando Pessoa SINOPSE Do fim ao começo do fim. Gretchen, personalidade da praia de Canoa Quebrada, é encontrado morto atropelado numa estrada. Sua vida, marcada pela inadequação e pelos efeitos de uma escolha mal sucedida, retrocede no tempo formando um mosaico que desvenda sua trajetória até o momento da fatídica decisão.O decadente percurso trilhado por Gretchen passa pela forma como maculava seu corpo e seus sentimentos, pelo alcoolismo, pelas tentativas frustradas de desenvolver uma carreira artística, pelo trabalho doméstico como única alternativa, pela promessa de felicidade que uma vida nova possibilita, pela vida como saltimbanco de circo e chega até o dia em que, movido pela decepção de uma trágica apresentação e pela percepção da oposição de interesses de vida e trabalho entre ele e seu companheiro, decide abandonar a trupe do Circo Máximo e aventurar-se sozinho pelas ruas de Canoa Quebrada. JUSTIFICATIVA As características do circo moderno tal qual o conhecemos hoje foram marcadas, fortemente, pela participação dos artistas populares e saltimbancos que, durante a revolução industrial e com o declínio comercial das feiras populares, perderam seus espaços de trabalho. Foi no circo que esses artistas à margem desse processo civilizatório, encontraram espaço para manterem vivas suas habilidades e sua arte vinda das ruas, sem erudição e livre de qualquer intelectualismo. Apropriando-se salutarmente de suas próprias desgraças criaram, nada mais nada menos, que o Palhaço, como representação da inaptidão àquela nova realidade produtivista, ainda que tenha sido no circo que as artes populares não folclóricas começaram a se profissionalizar e a se comercializar. Ao longo dos tempos o circo se difundiu pelo mundo, se modificou, ganhou ares sofisticados de grande espetáculo em alguns casos, mas em sua maioria, no Brasil inclusive, continua cumprindo seu papel de abrigar esses artistas mambembes e preservar suas existências. Assim se deu com Gretchen, personagem real resgatado em O Amor do Palhaço – Uma Paródia Encarnada. A história da sua vida e morte personifica a necessidade da sobrevivência tão cara aos artistas populares de todas as áreas de atuação, assim como a dificuldade de concretização do sonho de seus projetos artísticos. Através desse personagem e dos erros das suas escolhas, temos a dimensão da grandeza e da tragédia dos homens e mulheres que não resistiram aos seus impulsos primitivos e se entregaram a aventura de fazer arte, na vida ou no palco, e não vingaram. Gretchen é não só produto de um meio hostil a sua sensibilidade, como vítima da sua convicção. Era ele mesmo, em sua majestade, o bobo do povo. Condenado a ser palhaço no circo, na vida, no sexo, na etnia, no bolso, na morte. Sua existência desimportante e despercebida confunde-se com a trajetória do Circo, dos artistas e se repete no tempo. Teve o talento e não soube vender, mas honrou seu destino até o fim, fez rir sem parar, esqueceu o racionalismo e elaborou seu momento na mística, no sonho e na liberdade. Um palhaço às avessas que, agonizando, desviava o olhar do espectador, tirava do prumo, desequilibrava, instaurava o sublime no grotesco. ABORDAGEM DO TEMA Tradicionalmente os circos alternam em suas apresentações números em que enaltecem o sublime e o grotesco da natureza e principalmente do corpo humano. Utilizam-se para isso das acrobacias, do ilusionismo, dos números de trapézio e outros, trazendo ao seu público, elementos que causam profunda exaltação à capacidade física dos homens voadores, das mulheres elásticas, e dos domadores de feras, para citar alguns. É também no circo que o risível encontra no corpo e comportamento humanos seu lugar mais apropriado. Através do palhaço, com seu andar desengonçado, sua inabilidade completa, sua cara colorida e sua ignorância, as platéias contemplam e divertem-se com o grotesco em sua forma mais pura. Á ser filmado em Canoa Quebrada, praia de Aracati-Ce, O Amor do Palhaço – Uma Paródia Encarnada, utiliza a linguagem e a natureza dos espetáculos circenses, para contar a história e as desventuras do personagem Gretchen, o palhaço dançarino do Circo Máximo. Essa dualidade sublime X grotesco está presente em todo o percurso do personagem Gretchen, que ao largar o circo e se dedicar a uma “carreira solo”, percorre um tortuoso e decadente caminho até a morte. Sua história, contada do fim para o começo, reforça a importância das escolhas que fazemos na vida a todo instante. O roteiro é construído a partir da mistura de seqüências que narram momentos aleatórios da vida do personagem a momentos de circo, em que são executados números autênticos do repertório dos palhaços brasileiros. Números esses que também contam metaforicamente os percalços vividos por Gretchen. (Dando uma utilização dramática a reprises e entradas clássicas dos nossos palhaços, além de refrescar e iluminar as linguagens circenses e cinematográficas ao misturá-las). Para que se elabore uma colagem desses momentos da vida do personagem foge-se dos modelos narrativos convencionais, porém mantendo a continuidade dramática e principalmente utilizando-se fortemente dos símbolos do imaginário dos palhaços brasileiros. ROTEIRO 1-ESTRADA - Ext./Entardecer Sobre o asfalto áspero de uma estrada secundária, o entardecer avermelha a paisagem. Invadindo a imagem, à esquerda, as unhas sujas, os dedos negros e a mão largada ao chão antecipam o rosto sereno do homem, Gretchen. Os cabelos ralos e esbranquiçados, os olhos semiabertos, a face grudada ao sangue que suja o caminho. O corpo caído desastradamente, aparecendo aos poucos. O peito nu, um calção pequeno, pernas com pêlos rentes, descoloridos, a pele ressecada, acinzentada e os pés descalços e maltratados deixam a imagem, à direita, restabelecendo a paisagem por inteiro. CRÉDITOS INICIAIS 2- BECO – Ext. / Noite Céu escuro, sem estrelas. Riscando a escuridão a lâmpada pendurada precariamente a um poste move-se como um pêndulo, balançando ao ritmo do vento que se ouve, ora calmo, ora violento, misturado ao barulho das palhas dos coqueiros, das ondas do mar e do burburinho distante de uma festa. Parte do poste que sustenta a lâmpada e a parede deteriorada do beco aparecem e desaparecem de acordo com o movimento da luz. Um vulto pressionado contra a parede forma um relevo que se revela e se oculta entre as sombras e luzes geradas pelo balançar da lâmpada. Gretchen, em pé, prazerosamente balança o corpo em movimentos frenéticos arrastando a cara contra o reboco áspero da parede, seu ombro mexe-se denunciando a masturbação. Um solavanco mais brusco, um gemido alto, leva Gretchen a olhar para trás e de cima para baixo ver o Homem colado as suas costas, que trinca os dentes que lhe restam e aperta os olhos, com mãos rudes puxa com força os quadris de Gretchen ao seu encontro. A luz resvalante varre os corpos suados e seminus, o Homem investe num movimento mais brusco e goza com os calcanhares levantados do chão. Gretchen, apoiada à parede recompondo-se, retira do decote da camiseta algumas notas de valor irrisório, velhas e amassadas, e as entrega ao Homem. 3- RUA PRINCIPAL DE CANOA QUEBRADA - Ext./Noite Gretchen caminha indiferente às pessoas entre bares, barracas, ambulantes e turistas, desviando enojado dos tipos humanos que compõem o ambiente promíscuo. O alto volume das músicas se confunde com a algazarra das pessoas. Ele observa as pessoas a sua volta como quem mira uma presa. Recebe de uma mão anônima notas de valor irrisório (as mesmas vistas na seq. anterior). Retirando-se afobado enfia o dinheiro no decote da camiseta e continua seu caminho entre as pessoas. Dança de forma sensual e vulgar tocando alternadamente partes de seu corpo: orelha, olhos e boca, e dedicando-os ao seu “público” num oferecimento provocativo. Os lábios denunciam que ele canta, mas sua voz se perde na profusão sonora do ambiente. Interrompe o show, diante do desinteresse das pessoas e retira-se com olhar desafiador. Já diante de um outro “público” que aplaude e ri, corta a coreografia servindo-se de um copo de cachaça num só gole. Caminha altivo arrastando seu corpo decrépito e tentado chamar as atenções para si. ANÔNIMO (gritando em off) Maravilhosa!!! Gretchen olha em volta aborrecido, à procura do seu “admirador”, fixa o olhar na direção dele(câmera) e avança sorrindo sensual e agradecido. Bêbado, caminha repetindo cambaleante sua coreografia baixa entre as pessoas. Dançando e balbuciando uma música inaudível, ele toca em seu peito, barriga e bunda, oferecendo-se àquele “público”. Terminada a dança, sorri reverenciando a audiência, que retribui oferecendo-lhe dinheiro. Ele recebe deixando transparecer a humilhação e a amargura. Recompõe-se em seguida, saindo sedutor e vulgar. 4- BOTECO - Int./Amanhecer Gretchen, deitado no chão interrompe, pelo lado de fora, a porta de saída do bar já fechado. O Dono do bar, um homem jovem, tenta abrir a porta, mas a cabeça de Gretchen o impede. Ao forçar a passagem, ele obriga Gretchen, ainda dormindo, a afastar-se um pouco, permitindo que a porta seja aberta parcialmente. O Dono do bar se abaixa e balança o corpo de Gretchen tentando acordá-lo. DONO DO BAR Ei cara, acorda (pausa) acorda. Gretchen remexe-se. DONO DO BAR Todo dia é a mesma coisa. Ele abre os olhos lentamente, ergue o corpo e se apóia nos cotovelos, fica pensativo, com o olhar perdido. DONO DO BAR Vai pra casa. Gretchen permanece com o olhar perdido, atordoado. GRETCHEN ( bêbado) Sou uma estrela internacional. 5- CIRCO - Int. e ext./Noite. O palhaço, Mestre de Pista está no centro do picadeiro do circo, coberto com uma lona colorida muito velha. Ao fundo do palco, lê-se, em letras grandes e chamativas, Circo Máximo. Dirige-se à platéia, acomodada em arquibancadas de madeira. MESTRE DE PISTA (Gritando para a platéia) Quem ? Sentados entre as pessoas do público encontram-se os palhaços Augustola e Branquinho. AUGUSTOLA e BRANQUINHO (gritando, irritados ) Somos estrelas internacionais. MESTRE DE PISTA E como vocês se chamam? AUGUSTOLA Eu sou o Roberto Carlos e ele é a Roberta Close. BRANQUINHO Não, não, não, Eu sou o Chacrinha e ele é a Chacrete? AUGUSTOLA Não é nada disso, eu sou... O Mestre de Pista interrompe a discussão MESTRE DE PISTA E de onde vocês vieram? AUGUSTOLA Ah! De longe. MESTRE DE PISTA Do Rio de Janeiro? BRANQUINHO Muito mais longe. MESTRE DE PISTA Já sei. Vocês vieram de Hollywood? AUGUSTOLA E BRANQUINHO De muito mais longe ainda. MESTRE DE PISTA De onde vocês vieram então? BRANQUINHO Nós viemos do Aracati. MESTRE DE PISTA E por acaso o Aracati é longe? AUGUSTOLA Isso é porque o senhor não veio a pé. 6- RUA PRINCIPAL DE CANOA QUEBRADA - Ext./Dia OBS: Toda seqüência abaixo deverá ser feita usando um travelling circular. Ao barulho das ondas agitadas do mar, Gretchen caminha pelo centro da rua, cambaleante, ainda bêbado, como se boiasse numa extrema luminosidade, que deixa tudo a sua volta esbranquiçado, indefinível. Os olhos apertados, incomodados pela forte claridade, são eventualmente protegidos pelo antebraço. A língua umedece os lábios ressecados. Ele engole seco, faz careta, como quem sente um gosto amargo na boca. Os pés trôpegos arrastam-se pela terra levantando poeira. Os quadris rebolam sutilmente, descompassados. Gretchen, de costas, interrompe a caminhada, espreguiçando-se desajeitado, dá um próximo passo no instante em que se ouve uma onda quebrar na praia. 7- CIRCO - Int. e ext./Noite. O palhaço Mestre de Pista chega ao picadeiro irritado com a dupla Augustola e Branquinho. MESTRE DE PISTA Vocês estão despedidos. BRANQUINHO Então, nós estamos indo embora. Traga nossa bagagem! MESTRE DE PISTA O que você tem? AUGUSTOLA Eu tenho duas televisões, três vídeos cassetes, um aparelho de som, uma moto... O Mestre de Pista sai de cena e volta com uma lata de lixo cheia dos cacarecos e revirando as coisas, larga a lata aos pés dos palhaços. MESTRE DE PISTA Tá aqui sua bagagem. Vocês têm um minuto pra saírem daqui. O Mestre de Pista volta ao bastidor. A dupla de palhaços dá voltas no picadeiro apoiados um no ombro do outro. AUGUSTOLA E agora! Como é que vamos arrumar dinheiro? BRANQUINHO Já sei. Vamos morrer para ganhar dinheiro! AUGUSTOLA Como assim? Como pode? BRANQUINHO Você finge que tá morto, a pessoa passa, a gente fala: “Oh, ele morreu e a gente precisa de dinheiro pra enterrar ele!” A pessoa dá o dinheiro e a gente sai fora! AUGUSTOLA Ah, então vamos lá! Os palhaços param no centro do picadeiro. Branquinho distancia-se e aponta o dedo indicador para Augustola. BRANQUINHO Atenção heim! Pum! AUGUSTOLA Hum, começou a baixaria! O Mestre de Pista entra novamente no picadeiro assustando os palhaços. MESTRE DE PISTA O que vocês ainda estão fazendo aqui? Saiam agora. Branquinho corre em direção à platéia (câmera), Augustola apanha a lata de lixo, corre seguindo Branquinho e atira todo o conteúdo da lata na direção do público(câmera), porém ao invés de lixo, voam pedaços de papel colorido. 8- QUINTAL E FUNDOS DO BAR - Int. e ext./Dia Gretchen mais jovem, olhos brilhando, asssusta-se e em seguida ri-se sozinho, distraído da música e das vozes das pessoas no bar lá ao fundo, dos sons da cozinha e do quintal. DONA DO BAR (off) Hum, Desce daí nega. Acorda! Gretchen, abrindo um largo sorriso acompanha com o olhar o percurso de Jacinta que se aproxima trazendo um prato bem cheio de comida. Gretchen olha para o prato. GRETCHEN Calculado, hein! Jacinta afasta com as mãos as cascas de verdura, vísceras de peixe, cascas de ovo e vasilhas sujas, abrindo um espaço na mesa para pôr o prato na frente de Gretchen. JACINTA Prato de trabalhador. Gretchen, sentado num tamborete, desmancha o sorriso com um muxoxo. GRETCHEN Uma porra! Jacinta ri e volta ao bar. Gretchen cruza delicadamente as pernas e apanha uma colher esquecida ali. Sacode-a e concentra-se na refeição; desolado come uma galinha jogando no chão os restos e os pedaços menos nobres: pescoço, asa, pés. Algumas galinhas bicam o que é jogado por ele. Jacinta volta trazendo uma pilha de pratos sujos e descarrega-os sobre a pia do quintal, já cheia. JACINTA Nêga, quando acabar aí, limpa essa mesa e essa pia... Gretchen larga no prato o osso que roia, levanta-se recolhendo o lixo da mesa e jogando-o dentro de seu prato. GRETCHEN Essa louça, esse pano, esse chão, essa imundície... JACINTA Vixe! Que sujeita atrevida, passa a noite enchendo o rabo de cachaça,... GRETCHEN Bebo porque meu número exige. Faz parte da função. JACINTA Que função o quê criatura? Deixa dessa tua besteira. Teu tempo já passou. Esquece essa carreira. GRETCHEN Esqueça você mãezinha. Pare! Você só faz me confundir...eu queria minha vida assim. Gretchen retira-se irritada. 9- QUINTAL - Ext./Dia Por trás do lençol pendurado no varal, vê-se crescendo a sombra de Gretchen, mais jovem ainda, que se aproxima e abre o pano como uma cortina e altivo passa pelo varal cantarolando. Ele atravessa o quintal de chão de terra arrodeado por uma cerca velha, onde cordas de varal se entrecruzam no ar em todas as direções, aproxima-se de uma das cordas laterais movendo-se entre os panos e iniciando uma dança. Atravessa novamente o quintal girando e brincando com uma peixeira nas mãos, faz evoluções no ar, simula golpes em si mesmo e atira a arma como um atirador de facas. No meio do quintal rodopia dando voltas em torno de si, sacudindo ao vento as peças de roupa e descobrindo na brincadeira a possibilidade de reproduzir ali um velho número de seu repertório. Violento, exibe a boca escancarada com uma gilete sobre a língua. Altera as peças de roupa aleatoriamente no varal, sempre cantarolando uma música indefinida e tocando alternadamente as partes de seu corpo: boca, nariz, orelha, peito, bunda, etc. montando o picadeiro possível, com os panos e as roupas de cores e estampas variadas. Rodopia com uma lata velha nas mãos, como se recolhesse gratificações pela sua apresentação e admira-se da quantidade de moedas que fora depositada ali. Põe a lata na cabeça como se fosse um chapéu e banhase com o cobre. Gretchen tem sua dança ora revelada, ora ocultada pelos panos e pelo percurso que faz entre eles. Vemos seu corpo ou sua sombra por trás dos panos sempre dançando e cantarolando. À medida que passa nas brechas formadas pelas peças de roupa, ele sorri cumprimentando e reverenciando um público imaginário. 10- QUARTINHO - Int./Dia Glória, uma moça jovem, escorada a soleira de uma porta que dá para um quintal, observa Gretchen. Gretchen, no quartinho que começa a ocupar, vai tirando de dentro de uma maleta de circo vários objetos: perfumes, maquiagem, e roupas de picadeiro, guardando-as nas gavetas abertas da pequena cômoda; único móvel além do espelho de camarim onde se lê Hollywood and me, escrito com letras recortadas. Depara-se com o sapato velho do palhaço Augustola, guardado sob suas roupas, no fundo da mala. Ele toma-o nas mãos e admira-o, pensativo. GLÓRIA Você é... artista? Gretchen segura o sapato contra o peito. (A palavra artista é dita ao mesmo tempo pelos dois personagens) GRETCHEN Artista?...Sou. GLÓRIA Por aqui todo mundo é artista. Um bando de veado, maconheiro. GRETCHEN Eu sou artista de verdade. GLÓRIA De...circo? Gretchen observa por um instante a simplicidade do quartinho, caminhando em direção a cômoda, guarda o sapato numa das gavetas e mira-se no espelho. GRETCHEN É. Eu era artista de circo, também. Ele fecha as gavetas da cômoda e vira-se, ficando emoldurado pela janela e cobrindo parcialmente uma deslumbrante paisagem de dunas e coqueiros. GLÓRIA E o que é que tu faz? GRETCHEN (parte em off) Faço de tudo: canto, represento drama, comédia, imito o povo, declamo verso, rima... OBS: O final da última fala é dita simultaneamente à fala do palhaço Augustola na seqüência seguinte. 11- CIRCO - Int. e ext./Noite O palhaço Augustola de microfone em punho, com enorme satisfação, narra o espetáculo próximo a cortina que separa o bastidor e o palco, onde há a enorme inscrição Circo Máximo. AUGUSTOLA E o espetáculo tem prosseguimento. Agora para vocês, ela que canta; dança; representa comédia e drama; imita o povo; declama verso e rima; assobia e chupa cana; a palhaça dançarina Gretchen. Ao som dos aplausos e gargalhadas da platéia, Gretchen, bem jovem, entra usando uma mistura de roupas de palhaço e bailarina, com uma enorme peruca pixaim e no rosto a pintura de um coração vermelho cobrindo quase toda a cara e em volta dos olhos duas grandes estrelas pintadas em tons de azul e branco. A palhaça bailarina dança sensualmente ao som de uma música brega, oferecendo alternadamente cada parte do seu corpo apontando para alguém da platéia de acordo com a letra da canção. CANÇÃO ...a minha boquinha é sua, e a minha orelhinha é sua, o meu peitinho é seu, e o meu umbiguinho, é seu também... A coberta do circo rasga inesperadamente provocando uma histeria coletiva no público, que ao mesmo tempo aplaude, ri e vaia descontroladamente. Gretchen estática e apavorada com a reação das pessoas, fixa o olhar no rasgo da lona. O céu muito estrelado daquela noite é revelado através do buraco na coberta que balança fortemente com o vento. Augustola e Branquinho surgem cada um de um canto do circo portando instrumentos musicais bizarros feitos de lata e papelão e se dirigem ao picadeiro. O som da música brega é substituído por uma melodia tipicamente circense, porém composta por sons absurdos(sonoplastia) que os palhaços retiram de seus instrumentos. Eles improvisam um número para garantir a atenção do público, simulando admiração com o som produzido pelo instrumento um do outro. Os palhaços fazem um rodízio com os instrumentos e desenvolvem assim uma coreografia, onde eles, além de fingirem que tocam, assobiam e dançam. Com gestos e aproximações tentam tirar Gretchen da perplexidade passiva e incorporá-lo ao espetáculo. O público continua descontrolado em gritos, risadas, e vaias. Augustola e Branquinho não conseguem conter o riso enquanto tentam controlar a situação e entram no jogo da platéia. AUGUSTOLA Não é pra rir não pessoal. BRANQUINHO Tava tudo combinado! A gente ensaiou foi muito essa parte, não foi não dançarina? Difíiiiicil! Augustola em meio ao espetáculo demonstra preocupação e cuidado ao perceber o desconforto de Gretchen. AUGUSTOLA E ela já merece o aplauso de vocês. Os dois palhaços, empolgados, esquecem de tocar, contudo a música continua, e confraternizam entre eles e a platéia, fazendo malabares com os instrumentos, retirando objetos que revelam truques de circo de dentro deles, dançando, apontando a lona rasgada ironicamente e zombando da bailarina palhaça infeliz imóvel no centro do picadeiro. 12- CAMARIM - Int./Noite No camarim improvisado dentro de um apertado trailer de circo, Augustola, sem camisa, retira a maquiagem de palhaço sentado de frente para o espelho enfeitado com recortes de revistas, fotos de artistas, e a frase Hollywood and me escrita com letras de papel recortadas. O ruído da porta anuncia a chegada de Gretchen, visto através do espelho, ainda maquiado, mas sem peruca, sem camisa, vestido apenas com parte do figurino do espetáculo. GRETCHEN Pensou que eu não vinha mais?... Já passou. Augustola, com parte da maquiagem desfeita, olha para Gretchen pelo espelho e continua a retirar a maquiagem firmemente com chumaços de algodão. AUGUSTOLA Não pensei nada. Gretchen gira o corpo de Augustola e senta-se escanchado no colo dele. GRETCHEN Deixa. Isso é comigo. Ele toma o algodão sujo das mãos de Augustola e começa a retirar cuidadosamente a maquiagem do rosto do palhaço. Augustola relaxa, sorri e põe as mãos sobre as coxas de Gretchen. AUGUSTOLA Hoje foi o melhor apurado da temporada. Estou pensando que a gente dá a entrada numa lona nova para o circo e se prepara pra arredar o pé de novo antes de vencer a segunda prestação. Quero te levar na Bahia. Antes de você chegar, eu fui lá. Gretchen continua tirando a maquiagem do palhaço reclinado na cadeira de olhos fechados. GRETCHEN Com essa ilusão você me mantém, né? Isso é truque seu. A gente vive de déu em déu sem sair desse camarim. Gretchen olha em volta. GRETCHEN (sorrindo) Bahia, é? Eu não pensei em chegar nem no tal Recife. Augustola ergue-se um pouco na cadeira, segura Gretchen pelos braços, sacudindo-o e ironizando com os trejeitos do palhaço que interpreta. AUGUSTOLA (com voz de palhaço) Você está assim, mas é do cansaço, da depressão, do fracasso, né não? GRETCHEN (sorrindo) Eu não sirvo mais. Gretchen empurra Augustola de encontro ao encosto da cadeira fecha os olhos dele e volta a retirar a maquiagem restante. GRETCHEN Aqui vive cheio de turista pela beira da praia, cheio de dólar, se eles se agradassem de nós, podia ser uma chance da gente ir ficando. Vamos esperar um pouco mais por aqui. Augustola reabre os olhos movendo a cabeça para facilitar a remoção da pintura em seu rosto. AUGUSTOLA Outro dia veio um aí todo empolgado querendo fazer uma entrevista, apavorado perguntando onde estavam as feras. Surpreso, Gretchen para de limpar o rosto de Augustola. GRETCHEN E onde é que eu tava? AUGUSTOLA Você tava pendurado no orelhão. Resignado, Gretchen volta a deslizar o algodão sobre o rosto de Augustola mais bruscamente, tentando omitir sua decepção. GRETCHEN Nem que seja uma vez eu vou viver a vida que eu pedi a Deus. Gretchen retira as últimas manchas de tinta da cara de Augustola que permanece imóvel e joga o algodão imundo no balcão do espelho. Augustola percebe que ele terminou, abre os olhos e encara Gretchen fixamente por um tempo. (longa pausa) Gretchen avança e beija a boca de Augustola delicadamente, manchando o contorno da boca dele de batom vermelho. Levanta-se e sai. Augustola apanha o mesmo algodão e limpa suavemente em volta de sua boca, observando através do espelho, Gretchen sair do trailer sem olhar pra trás. 13- CIRCO - Ext./Noite Gretchen desce os degraus do trailer e passa por Branquinho, que absorto ouve a canção Bolero, cantada pela voz máscula de um homem velho, através do auto falante do circo. Branquinho está sentado numa cadeira de balanço ainda com a roupa do espetáculo brincando com um cachorro vira-lata. À medida que Gretchen vai caminhando, a sua imagem vai perdendo o foco, e aos poucos tudo mais vai se desfocando também. Bolero (Batatinha – Roque Ferreira) Por muitos anos vivi / Do palco ao camarim / Pra você / Me aplaudir / E se orgulhar de mim / Fui bailarina da festa / Dancei para lhe contentar / Sorria / A rodar a rodar / Gastei a ilusão e a pintura / Nesta ribalta de sonhos azuis / Num papel que destrói / Mas seduz / Aí um dia sem eu perceber / Veio um bolero, me arrebatou / Remocei / Vivo em paz / Terminou.