JC Relations - Jewish

Transcrição

JC Relations - Jewish
Jewish-Christian Relations
Insights and Issues in the ongoing Jewish-Christian Dialogue
Gaston, Lloyd
Legicídio e o Antigo Testamento Cristão
Para uma Nova Hermenêutica dos Escritos Apostólicos
Por Lloyd Gaston
O Antigo Testamento da Igreja Cristã tem sido diferente das Sagradas Escrituras do Judaísmo desde
quase o início. A teologia da Igreja Cristã tem estado hostil ao Judaísmo quase desde o início. Creio
que essas duas observações são intimamente relacionadas. Não pretendo repassar aqui a longa
história de antijudaísmo cristão. É a percepção desse fenômeno e o desejo de fazer algo a respeito
deste, o que nos aproximou em primeiro lugar. Estamos olhando para causas fundamentais, e creio
que uma delas é o problema do Antigo Testamento Cristão. A Igreja não só foi bloqueada, por seu
Antigo Testamento, das reais riquezas da Sagrada Escritura, mas ainda permitiu que aquele Antigo
Testamento deformasse seu entendimento dos seus próprios Escritos Apostólicos.
Que de fato o texto e o cânon do Antigo Testamento não correspondem com a Bíblia Hebraica senão
para uma parte das Igrejas Cristãs, não tem importância para a presente discussão. Certamente, é
que faz diferença se o texto básico é antes a Setenta ou a Vulgata que o texto massorético. Faz
também diferença, se o cânon incluir outros escritos, os assim chamados apócrifos e outros, além
de Toráh, Profetas e Escritos. Para nosso assunto, porém, é o próprio nome de "Antigo Testamento"
que é problemático, junto com a necessidade de ter de relacionar a autoridade e significância desse
Antigo Testamento a alguma outra coisa, chamada de Novo Testamento.
Antijudaísmo na nossa discussão pode talvez ser definido como tentativa de negar ao Judaísmo
caraterísticas centrais do seu próprio auto-entendimento. Isso incluirá pelo menos:
1. A unicidade de Deus,
2. a eleição de Israel no Sinai e
3. Toráh como princípio de relacionamento entre Deus e Israel, embora isto possa ser definido
halaquicamente.
Fui tentado a juntar um quarto, o relacionamento entre Deus, Israel e o país, mas isso pode ser
incluído sob o segundo e, além disso teria feito a minha impossível tarefa ainda mais complexa.1
Especialmente à luz do modo pelo que antijudaísmo cristão tende a expressar-se no tempo
presente, isso seria um tópico muito importante.
Alguma coisa do primeiro pode ser refletido no Quarto Evangelho, mas não creio que isso é
realmente o assunto central.2
Os dois do segundo, eleição e Toráh, referem-se à questão de Paulo: "Deus rejeitou seu povo?"
(Romanos 11,1) e "Vamos, então, demolir a lei pela fé?" (Romanos 3,31). Entenderia uma resposta
positiva a uma ou outra dessas perguntas como representando Cristandade-Judaísmo
fundamentalista. Paulo responde a ambas com um indignado "Não", mas os Evangelhos Sinópticos e
Atos, pelo menos na sua forma final, dizem Sim, Deus rejeitou Israel, assim começando a teoria do
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deslocamento fatal, que afirma que a Igreja deslocou Israel nas intenções de Deus. Antijudaísmo
cristão é o produto da primitiva Cristandade Gentílica e da necessidade desta de estabelecer seu
próprio relacionamento a Deus à parte da lei. Tudo disso chegou a ser solidificado e exacerbado na
posterior contenda sobre Escritura, quando o auto-entendimento da Igreja à parte da lei a levou a
negar a Toráh, a negar Israel também e a expropriar as Escrituras de Israel para si só, sob o nome
de "Antigo Testamento". Se quiser pôr uma tese, seria esta: a partir dum período muito cedo, a
Igreja era culpada de legicídio, que fez o compartilhar numa Escritura comum impossível e
antijudaísmo inevitável.3
Seja, então, notado que, embora eu esteja de simpatia com quase tudo que ela diz, não
posso concordar com R. Ruether que "cristologia" é que está "no coração de cada cristão
dualizando a dialética de existência humana para dentro das antíteses cristã e antijudaica"... Acho que, antes, é a "lei".
Gostaria de apresentar, não só um delineamento muito esboçado do problema, mas também, à luz
da urgência da situação atual, fazer no fim sugestões do que possa ser feito a respeito.
I
A primitiva Igreja Gentílica enfrentava um problema, que teve de ser explicitamente tratado nos
meados do segundo século.4
Assim, o velho problema da ‘Lei’, aparentemente tratado muito antes, chegou a ser mais
uma vez o centro de atenção e objeto de dolorosa e tópica urgência.
Trifo, no começo do seu diálogo com Justino, põe-no deste modo: "Mas isto é que mais nos deixa
perplexo: que vós, declarando ser piedosos e supondo ser melhores que outros ... esperais obter
algumas coisas de Deus, enquanto não obedecestes seus mandamentos. ... Vós, desprezando esta
aliança (circuncisão) rapidamente, rejeitais as conseqüentes obrigações e tentais persuadir a vós
mesmos que conheceis Deus quando, porém, nada cumpris daquelas coisas que fazem aqueles que
temem Deus."5
Um pouco mais tarde ouvimos semelhante questão na boca do filósofo Celso: "Quando o Pai enviou
Jesus, esqueceu quais foram os mandamentos que deu a Moisés? Ou condenou as suas próprias leis
e mudou sua mente e enviou seu mensageiro para um fim completamente oposto?"6
É provável que também o Diálogo de Justino se dirija a um filósofo pagão, Marcos Pompeio, e não a
judeus mesmos.7
A pergunta pode ser uma pergunta real judaica, mas a resposta se dirige ao mundo gentílico a à
Igreja. Quer dizer, apesar do formato, Justino não está procurando refutar reais objeções judaicas,
mas o seu Diálogo provavelmente reflete os seus perdidos argumentos contra Márcion e pretende
sustentar a respeitabilidade da Cristandade, não contra o Judaísmo como tal, mas nos olhos dum
terceiro grupo possivelmente interessado. No mundo greco-romano, o Judaísmo estava florescendo,
bem conhecido e respeitado, e era contra o mundo pagão que os apologistas cristãos tinham de
fazer seu caso para um relacionamento com Israel e sua respeitável antigüidade. Internamente, a
Igreja tinha de lutar com o amplamente estendido fenômeno do judaizar dos gentios-cristãos,
enquanto tentava manter a Setenta como sua Escritura sem seguir a maioria dos seus
mandamentos. Em ambos os casos, tanto nos seus próprios olhos como na luz da sua audiência
potencial, a Igreja procurava asseverar a sua própria legitimidade como um movimento com um
Evangelho sem uma Toráh, mas, todavia, com a reivindicação do cumprimento da divina intenção
original. Ao contrário da impressão que se podia receber do Diálogo de Justino, o antijudaísmo
cristão não nasceu dum debate com judeus sobre a interpretação cristológica do Antigo
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Testamento. Também não surgiu porque cristãos olhassem o Judaísmo atual e encontrassem algo
faltando.
O antijudaísmo cristão recebeu sua primeira expressão dogmática de fundação numa tentativa de
solucionar um problema cristão interno referente ao relacionamento do Evangelho cristão e das
Escrituras cristãs.8
D. Efroymson tem feito a muito importante descoberta de que Tertuliano é muito mais antijudaico
nos seus pesados escritos posteriores contra Márcion do que nos seus anteriores Adversus Judeus
(= Contra os Judeus). Esse é um fator que clama por explicação. Márcion começou, para dizer
assim, da observação bastante simples de que os cristãos não guardavam a Toráh e que as
Escrituras de Israel, obviamente, são realmente não sobre Jesus. Portanto, concluiu que havia dois
deuses, um criador reto que entrou em aliança com Israel, e um previamente desconhecido deus
bom, revelado pela primeira vez em Jesus. Espero que isso não é anacrônico demais para sugerir
que isso possa ser traduzido em termos modernos como reconhecimento de duas religiões
separadas, cada uma com a sua legitimidade própria. Certo que Márcion pensava que a religião
cristã era muito superior àquela dos judeus, mas, mesmo assim, o Judaísmo foi deixado com o seu
deus, sua lei, sua Escritura, seu Messíah e seu nome antigo.9
Talvez é possível dizer que, se a posição de Márcion tivesse prevalecido, não teria chegado a ser tão
arraigado na tradição cristã aquele ensino de desprezo, cujas últimas conseqüências acabaram por
apresentar-se no Holocausto. Mas é preciso acrescentar também que a Igreja cristã não teria
sobrevivido em qualquer forma remotamente reconhecível. Pois Márcion, que produziu a primeira
versão daquilo que iria chegar a ser o cânon do Novo Testamento Cristão, era capaz de excluir a
Setenta somente à custa da mutilação dos Escritos Apostólicos. Seu evangelho era Lucas, e seu
apóstolo eram dez cartas de Paulo, mas com o texto em ambos os casos "corrigido", como o poria,
pela remoção de todas as positivas referências às Escrituras. Márcion também escreveu um livro, do
qual só fragmentos sobreviveram, as Antíteses,10
... A freqüentemente citada Tese de Harnack ...: "Rejeitar o Antigo Testamento no século
segundo era um erro que a Igreja principal com justiça rejeitou; retê-lo no século 16 era um
destino que a Reforma ainda não era capaz de evitar; mas preservá-lo como documento
canônico no Protestantismo depois do século 19, é a conseqüência de paralisia religiosa e
eclesial."
nas quais decisões do velho deus criador são contrastadas com tais do novo deus redentor; embora
suas propostas referentes à Escritura cristã fossem ultimamente rejeitadas, seu conceito de antítese
tem remanescido como um princípio chave hermenêutico para interpretar os Escritos Apostólicos.
Motivos antijudaicos no serviço da tentativa da Igreja para auto-entendimento certamente existiam
antes do tempo de Márcion, mas foram institucionalizados como parte da doutrina cristã, para
assim dizer, na tentativa de salvar as Escrituras judaicas para a Igreja cristã. Assim, não é tanto a
Trifo quanto a Márcion que Justino diz que certas palavras "são contidas em vossas Escrituras, ou
antes não vossas mas nossas",11 e que diz: "Os verdadeiros descendentes de Judah, Jacó, Isaac e
Abraão ... somos nós."12
Note que isso está no contexto dum argumento antimarcionito de que Deus é um único e
que este Deus dos Cristãos é também o Deus de Abraão, Isaac e Jacó (11:1).
Se alguns aspetos dos mandamentos não forem do gosto da Igreja, a culpa não está com Deus, mas
com aquele povo excepcionalmente perverso e de pescoço duro, cuja inclinação para idolatria
carnal tinha de ser mantido em cheque, como disse Tertuliano. O Deus de Israel foi preservado para
a Igreja à custa de fazê-lo antijudaico. Justino e Irenêu fazem uso intensivo do conceito de promessa
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e cumprimento, não no sentido de entender cumprimento à luz da Escritura, mas a fim de manter a
Escritura na Igreja, porque prenuncia realidades cristãs.
Os profetas, entendidos como proto-cristãos, predisseram de um lado eventos na vida de Jesus e da
Igreja, e de outro lado teimosia e rejeição judaicas.
O princípio hermenêutico parece ter sido que oráculos de promessa aplicavam-se aos cristãos e
oráculos de julgamento aos judeus. Jesus deve ser mostrado para concordar com o Deus de Israel
contra Márcion, e cumprimento dos oráculos de julgamento é o mais enfatizado na cansativa leitura
do Lucas de Tertuliano no Livro IV do seu Adversus Marcionem (= Contra Márcio). Aí também Jesus,
tão bem como Deus, tem de chegar a ser ainda mais antijudaico, a fim de que a unidade dos
testamentos possa ser preservada. Com respeito a Paulo, Tertuliano concorda com Márcion, quando
este diz: "nós também afirmamos que a primeira epístola contra o Judaísmo está endereçada aos
Gálatas";13 só discorda dizendo que isso é de acordo com a intenção do Deus da Bíblia desde o
começo. Assim, o Antigo Testamento cristão era preservado para a Igreja à custa de surripiar de
Israel suas Escrituras, seu Deus, seu nome e eleição; e o princípio de antítese foi escrito para dentro
de afirmações centrais cristãos. Voltamos outra vez à questão da lei:
Um antigo documento cristão interessante, a carta de Ptolemeu à Flora,14 trata por extenso o
entendimento da lei cristã sem o mínimo sinal de que possa haver judeus também interessados
nela. Usando distinções que ele afirma encontrar no ensino de Jesus,15
Mt 19,8; 15,1ss. Compare o conceito de deuterosis, as más leis secundárias da Toráh, nas
Pseudo-Clementinas e Constituições Apostólicas.
o autor distingue no texto 1) as leis dadas por Deus, 2) aquelas dadas por Moisés por causa da
dureza de coração de Israel e 3) aquelas acrescentadas por "os anciãos". "As leis dadas por Deus"
são ainda divididas em três partes: 1) aquelas aceitas ("cumpridas") por Jesus, 2) aquelas abolidas
por Jesus e 3) aquelas cujo significado alegórico ("espiritual") foi revelado por Jesus e cujo
significado literal é obsoleto.16
Muito mais ominoso é um uso especial da lei definido por Justino: ele diz que a circuncisão
era mandada por servir como uma espécie de estrela amarela, para identificar judeus e
escolhê-los para punição.
Embora Ptolemeu fosse um gnóstico no que ele distingue entre o criador-legislador e o deus
perfeito, seus distinções foram repetidas vezes ouvidas na história da Igreja. Um elemento final
precisa ser acrescentado para completar a imagem do desenvolvimento do método alegórico e de
interpretação começado por Ptolemeu e os Valentinianos, expandido por Clemente de Alexandria e
aperfeiçoado por Orígenes.17
Um precursor nesse e noutros aspetos é a carta de Barnabé.
Depois das obras de Justino, Tertuliano, Ireneu e Orígenes, o Antigo Testamento Cristão, com sua
configuração em componentes antijudaicos, está completo, e as palavras "Antigo Testamento" e
"Novo Testamento" chegam a ser designações comuns no início do terceiro século.18
O uso mais antigo dos termos para designar "livros" é encontrado em Clemente de
Alexandria.
O período do estabelecimento do Antigo Testamento Cristão era uma época que gostava de pensar
dualisticamente em termos de corpo versus alma, letra versus espírito, sombra versus realidade,
antigo/velho versus novo. Quando lido com uso ingênuo de alegoria, muito da letra do Antigo
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Testamento pôde ser transformado em um documento completamente cristão. Por uma leitura
seletiva dos textos da Toráh, o problema da lei podia ser neutralizado. Quando a Bíblia foi lida mais
historicamente, como com Ireneu, em termos duma espécie de progressiva revelação ou dum
esquema de promessa e cumprimento, ficou claro que o velho foi completamente absorvido, abrogado e transformado, já que o novo já tinha chegado. Todas essas posições podem ser
encontradas também no período moderno, inclusive uma rejeição completa como aquela de
Márcion, a qual era a catalisadora para o desenvolvimento das outras posições. Comum de todas,
porém, com exceção de Márcion, era a completa separação de qualquer conexão do Antigo
Testamento com o Judaísmo contemporâneo. Também comum a todas era o uso do princípio de
antítese de Márcion. Esse também permanece na Igreja de hoje.
II
O período moderno, pelo menos o da ciência bíblica, protestante,19
Estou cônscio de que há importantes excepções do que aqui está apresentado tão
brevemente como sendo quase uma caricatura. Todavia, a continuidade que pode ser vista
entre o segundo e vigésimo séculos é bastante impressionante para ser posta em relevo.
pode num certo sentido ser caraterizado como a gradual e inconsciente emancipação do Antigo
Testamento Cristão. Certo que os velhos métodos de ler estão ainda muitissimamente conosco. No
uso litúrgico, particularmente nos Salmos, o método alegórico floresce perto da superfície. Em
termos de hermenêutica cônscia, costuma-se advogar esse método como melhoramento sobre a
alegoria, porque permite às pessoas e eventos do Antigo Testamento a sua própria realidade. Mas
como essa realidade está sempre rigorosamente confinada ao passado, e o significado do protótipo
sempre absorvido no supostamente correspondente evento no Novo Testamento, tipologia, não
mais que alegoria, não deixa espaço algum para o Judaísmo contemporâneo ler sua própria
Escritura.20
G. von Rad ... evita a maioria desses fojos, e isso pode ser um exemplo dum bom
exegetizar acima do método questionável.
Como esse método está sendo comumente usado, não está em ordem entender um evento e
significado cristão à luz de Escritura para lhe dar legitimidade por isso, mas antes encontrar uma
prefiguração dum evento já crido, afim de legitimar o problemático Antigo Testamento.21
Com respeito a Justino: "o intuito não é tanto demonstrar a validade de fé em Cristo a
partir da Escritura como inversamente restabelecer a ameaçada autoridade da Escritura à
luz de Cristo" (von Campenhausen). ... . Para o período moderno, "supõe-se geralmente,
parece, que Cristo é uma certa e conhecida quantidade, e o problema é que o inteiro lugar
do Antigo Testamento chegou a ser duvidado na Igreja" (J. Barr).
O comum conceito de promessa e cumprimento é semelhante, mas um pouco mais prometedor, por
assim dizer, especialmente quando as mecânicas correspondências do passado forem largadas. O
problema é que para a maioria dos cristãos que falam deste modo, cumprimento toma precedência
sobre promessa. O conceito de Aufhebung (alemão: pode significar o ato tanto de "guardar" como
de "abolir". Trad.) pode significar algo para heguelianos, mas quando a maioria dos cristãos usar a
palavra cumprimento (fullfillment), confesso que sou não-sofísticado o suficiente para não entender
como isso difere de simples ab-rogação. Há alguns sinais de consciência de que uma promessa
possa ter muitos cumprimentos parciais, em diferentes tempos e em comunidades diferentes, e de
que a promessa transcende qualquer cumprimento.22
"Tudo está em movimento. As coisas nunca são esgotadas, mas o seu próprio cumprimento
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dá surgimento, todo inesperado, à promessa de coisas ainda maiores" (G. von Rad).
Mas essa consciência não pode continuar desenvolvendo, uma vez que está bloqueada pelo
conceito dum Novo Testamento.
Um análogo na ciência moderna do uso seletivo do Antigo Testamento advogado por Ptolemeu
encontra-se na distinção de de Wette entre o bom Hebraísmo pré-exílio e o mau Judaísmo pós-exílio,
e nas teorias de fonte temporal de Wellhausen, que proveram uma base quase-científica para a
eliminação de Toráh da Bíblia Cristã. Logo que muito da Toráh, chamado por Wellhausen de fonte P,
pôde ser mostrado ser de origem pós-exílio, chegou a perder qualquer interesse para eruditos
cristãos, e o remanescente não mais caía sob a necessidade de ser parte duma antítese teológica
cristã. Com a remoção da lei, grandes partes da Bíblia Hebraica foram liberadas do ter de ser um
Antigo Testamento Cristão. Aqui cientistas judaicos e cristãos podiam engajar-se, e se engajaram,
numa tarefa comum mutuamente frutífera, pois aquilo que está sendo estudado não é Antigo
Testamento, mas sim a literatura e a história do antigo Israel. O avanço de um século de tal estudo
é grande, e tem um importante impacto na Igreja Cristã. Essa literatura do antigo Israel veio a ser
viva para muitos cristãos, e por vezes chegou a ser o veículo para proclamação sem qualquer
referência a um Novo Testamento no culto da Igreja. Quando as Sagradas Escrituras do Judaísmo
não forem pensadas como o Antigo Testamento Cristão, e quando a questão da lei tiver sido posta
ao lado, então, e só então, podem falar vigorosamente a cristãos. Inconsciência de canonização faz
da Escritura: Escritura para a Igreja.
Isso poderia, mas não deve, ser entendido como renascimento da posição de Márcion. Quando
houve um cônscio renascimento, como com Schleiermacher e Harnack, foi porque a Bíblia Hebraica
era vista como tendo conexão com Judaísmo, e Judaísmo era para eles uma religião claramente
inferior, e a Bíblia era para ser rejeitada junto com os judeus. Mas o espírito de Márcion pode
também fazer que coisas estranhas aconteçam a cientistas cristãos da literatura de Israel antigo.
Quase cada livro desses cientistas, até os melhores, termina por uma ritual referência ao Novo
Testamento, num apêndice que efetivamente nega tudo que foi dito no corpo do livro. Como, por
exemplo, meu professor G. von Rad poderá despir-se da sua excelente Teologia do Antigo
Testamento dizendo no fim "O Novo Testamento tomou como ponto de partida o contraste entre
este novo evento (a vinda de Cristo) e o total da experiência prévia de Israel, e isso deve ser
sempre o ponto de partida para interpretação cristã do Antigo Testamento."?23 Felizmente, von Rad
não usa de fato essa antítese hermenêutica no corpo da sua obra. As Escrituras do Judaísmo só
podem ser Escrituras para a Igreja se não se pensar deles como Antigo Testamento, quer dizer
como Escritura mesma, Como podemos chegar ao além deste impasse?
Dois teólogos holandeses, A. van Ruler e K. Miscotte,24 argumentaram na última geração para a
prioridade daquilo, que ainda chamavam de Antigo Testamento, como Escritura para a Igreja. Não
eram, porém, cientistas bíblicos profissionais, eram mais retóricos que persuasivos e deixaram
questões demais sem responder. O problema do cânon da Sagrada Escritura e da literatura do Israel
antigo deve ser aproximado diretamente, e de dentro da disciplina. Creio que isso tem agora
começado no conceito, muito importante, denominado de crítica canônica (canonical criticism), com
sua necessária outonada, chamada de midrash comparativo.25
Começando com cânon, este método transforma a autoridade da literatura do antigo Israel numa
autoridade explícita, e a Bíblia Hebraica é um ponto de partida antes do Antigo Testamento Cristão,
este que se desenvolve como solução dum problema causado por um Novo Testamento. Midrash
comparativo não só deixa espaço para variantes interpretações dum cânon comum em
comunidades diferentes, mas também permite ver o midrash cristão em continuidade com a
tradição, antes de que em oposição a esta. Tenho razão para crer que James Sanders concorde que
o próprio conceito dum Novo Testamento possa pôr uma barreira no caminho duma aproximação
cristã desses importantes conceitos. Em todo o caso, deixo o ulterior desenvolvimento destes para
ele e seus colegas, e volto com alívio a terreno mais familiar. Como não sei chamá-los de outro
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nome, vou seguir a sugestão de Paul van Buren e falar de Escritos Apostólicos.
III
O problema real do Antigo Testamento Cristão está para ver nas automáticas e profundamente
arraigadas suposições hermenêuticas que cristãos trazem para sua interpretação dos Escritos
Apostólicos. É quase como se a Igreja tivesse rejeitado a rejeição de Márcion das Escrituras de Israel
(e por esse meio criado um Antigo Testamento) somente por concordar com usar o conceito de
antítese de Márcion como seu básico guia hermenêutico. Antes de voltar os olhos a um texto
específico, o intérprete cristão supõe que Jesus deve ser entendido em oposição aos fariseus, e que
lei jaz no coração do conflito. Antes de voltar os olhos a um texto específico, o intérprete cristão
supõe que Paulo diz o que diz em oposição a oponentes judeus, seja cristão como Tiago ou o
Judaísmo do seu próprio passado escuro, e que a lei é o ponto central. Isto é que começamos com a
suposição de que os judeus do primeiro século, chamados em alemão Spätjudentum (= Judaísmo
tardio), são a antítese do evangelho, e nessa base rejeitamos seus antecessores e seus sucessores
no Judaísmo contemporâneo. É este o ponto de partida que conduziu não só ao problemático Antigo
Testamento Cristão, mas também ao desenvolvimento do antijudaísmo cristão para o antisemitismo. Não posso dar senão poucos exemplos:
Um dos mais importantes Neutestamentler (= neotestamentólogos) que escreveu sobre o Antigo
Testamento Cristão é Rudolf Bultmann. À antiga tradição Cristã, acrescenta a radicalização da lei
luterana – dualismo de evangelho e um entendimento não-histórico existencial do evangelho, o que
o conduziu a dizer em 1933: "Para a fé cristã, o Antigo Testamento não é mais revelação como era e
ainda é para os judeus. ... Os eventos que significaram algo para Israel, que eram palavra de Deus,
não significam mais nada para nós."26
... Cf. von Campenhausen ... : "Para a Cristandade, o Velho Testamento não é mais um livro
canônico, no mesmo sentido em que o era para os judeus."
No entanto, não conclui que o Antigo Testamento deva ser abandonado, pois precisa dele como
fundo escuro que ilumina o evangelho. Mesmo se pode-se dizer que o Antigo Testamento em si
contém evangelho bem como lei, como Antigo Testamento Cristão tinha de ser só lei, porque
"existência sob graça" não podia ser entendido senão em termos a sua necessária pressuposição e
"existência sob a lei".27
Como Bultmann explicou em 1949, como se nada tivesse acontecido nos anos intermediários: "Se
interpretarmos a história do Antigo Testamento nesse sentido, seguiremos a interpretação de Paulo
da lei. ... Aquilo que significa fé como caminho de salvação não é completamente entendido senão
por aqueles que conhecem o falso caminho de salvação que encontramos na lei. ... Do mesmo
modo, requer o relance para trás para dentro da história do Antigo Testamento como uma história
de falha, e assim de promessa, para saber que a situação do homem justificado não surge senão na
base desse malogro (miscarrige)".28
Em comparação com muitos dos seus contemporâneos, Bultmann certamente não era um antisemita, mas era tão obsidiado com aquilo que chamava de Spätjudentum (= Judaísmo tardio), que
não era capaz de ver mesmo judeus reais. O Holocausto não podia ter efeito no seu pensar
teológico, porque para ele o Judaísmo já morrera muito tempo antes. Central para ele era seu
entendimento de Romanos 10,4: "Cristo é o fim da lei", o que expandia para significar "história
(judaica) chegou a seu fim, desde que Cristo é o fim da lei".29
Cf. M. Noth ...: "Israel por isto (na destruição o Segundo Templo) cessou de existir, e a
história de Israel veio a seu fim."
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Entendimento cristão dos Escritos Apostólicos em termos de antítese, pode ter conseqüências muito
mais graves que somente a racha entre as Escrituras Hebraicas e o Antigo Testamento Cristão.
Para meu segundo exemplo, gostaria me referir a um pensador cristão contemporâneo, que diz que
escreve auto-conscientemente (self-consciously) teologia numa situação pós-holocausto, Jürgen
Moltmann. O que diz quando é não-auto-cônscio (unself-conscious) é então bem mais significante:
"Visto que Jesus foi condenado e executado na cruz", escreve, "(sua morte foi) provocada pelas
ações da sua própria vida. ... O conflito que o levou finalmente a sua morte era inerente desde o
começo da sua vida por causa da oposição (a ele). Portanto, sua morte na cruz não pode ser
entendido sem o conflito entre sua vida em um lado e a lei e seus representantes no outro lado. Se
isso for verdade, então, através da sua morte, a lei predominante o chamou à questão, como quem
que por sua liberdade na vida e pregação tinha chamado em questão esse entendimento da lei...
Sua execução deve ser vista como necessária conseqüência do seu conflito com a lei."30 O "deve"
na última proposição é muito interessante. Claramente não é um "deve" lógico ou histórico; é antes
um a priori teológico de importância tão fundamental que deve ser mantido contra toda a evidência.
Os evangelhos sinópticos como os temos são anti-Israel e anti-Toráh quando comparados com as
tradições sinópticas que jazem atrás deles, mas, mesmo assim, não há nada neles que suporte as
declarações de Moltmann. Já Marcos tem dificuldade no conectar as duas metades do seu
evangelho, a história da morte de Jesus com tradições do ensinar de Jesus. Embora anteriormente
ouçamos de argumentação com fariseus, não há fariseus na Narrativa de Paixão. Notamos como
Moltmann mascara isso com circunlocuções como "representantes da lei" e "guardiões" da lei". A
historicidade perante o Beit Din é muitíssimo improvável,31 mas mesmo como os evangelhos
apresentam um tal processo, é em termos dum assassínio judicial ilegal e dum escárnio da lei,
certamente não seu triunfo. Cientistas que seguem o a priori de Moltmann, têm um tempo
notoriamente difícil para encontrar um único exemplo onde Jesus quebrou um mandamento de Deus
ou encorajou outros a fazê-lo. com exceção de alguns poucos comentários obviamente editoriais.32
Note como a evidência é retorcida para fornecer conclusões desproporcionadas em R.
Banks, ...
Se os ditos de Jesus forem entendidos como halaháh, e se eventualmente não estiverem de acordo
com a Mishnáh, representam, sem embargo, em cada caso uma opção reconhecida do primeiro
século. Mesmo se Jesus é apresentado como às vezes concordando e às vezes argumentando com
fariseus, certamente vai longe demais caraterizar estes como "oponentes", para não dizer nada da
própria Toráh. Outro cientista33 pensa que tem dito algo profundo com o aforismo "Jesus ensinou em
parábolas e Jesus foi morto", deixando o leitor tirar a conclusão óbvia. Se requerer facécia para
quebrar a pega da espécie de lógica, deixem-me tentar uma: Jesus nunca escreveu um livro; Jesus
morreu jovem sem título de posse, portanto era um primitivo exemplo de publicar ou perecer.
Duvido seriamente se alguém possa encontrar algum elo que conecte o ensinar de Jesus e a sua
morte, mas se existir, certamente não é a lei.
Provavelmente não é necessário para mim documentar o fato de que a teologia de Paulo costuma
ser apresentado em termos de antítese. Já Márcion usava a identificação de oponentes de Paulo
como a chave à teologia deste, e sob o ímpeto de F. C. Baur, ciência moderna seguiu o mesmo
procedimento.34 Qualquer coisa que Paulo disser, oponentes cristãos judaicos ou o Judaísmo de seus
contemporâneos ou o seu próprio passado devem ter dito o contrário, e a própria declaração de
Paulo deve ser a antítese disso. Como representante dessa aproximação deixem-me só citar o
aforismo de Käsemann: "O oponente real do Apóstolo Paulo é o pio judeu."35
É esse entendimento de Paulo que jaz atrás da discussão de Moltmann referente à morte de Jesus.
Deixem-me continuar citá-lo: "Jesus morreu pela lei... porque foi condenado como um ‘blasfemador’
pelos guardiões da lei e da fé. Como estes o entenderam, sua morte era o cumprimento da
maldição da lei... Porque a lei levou Jesus à sua morte na cruz, o Jesus ressuscitado e exaltado
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chega a ser ‘o fim da lei, para que cada um que tiver fé, pode ser justificado’ (Romanos 10,4)."36
A referência à maldição da lei refere a uma passagem em Gálatas 3,10-14, que creio que foi
consistentemente mal compreendida,37 e este mal-entendido revelou-se fatal. Mais uma vez, num
contexto que explicitamente afirma solidariedade com o povo judaico, Hans Küng pode escrever: "a
morte de Jesus significou que a lei conquistara. Posta em questão radicalmente por Jesus, ela
retaliou e o matou. A retidão dela tem sido provada outra vez. A força dela prevalecera. Sua
maldição batera. ‘Qualquer um pendurado numa árvore está amaldiçoado por Deus’... A lei,
portanto, o matou e os Cristãos depois tiraram a conclusão óbvia."38
A lógica degradada por trás de tudo isso está clara. A lei matou Jesus, portanto Paulo foi justificado
matando a lei. Ou para pô-lo ainda mais forte: quando Käsemann diz que o oponente real do
Apóstolo Paulo é o pio judeu, o que realmente pensa é que o oponente real do Jesus histórico é o
Deus de Sinai. Para que isso não soe extremo demais, deixem-me citar Moltmann uma última vez:
"A história de Jesus que conduziu à sua crucificação... era dominada pelo conflito entre Deus e os
deuses; quer dizer entre o Deus que Jesus pregava como sendo seu Pai, e o Deus da lei como este
era entendido pelos guardiões da lei."39
Temos agora completado o ciclo de volta a Márcion, justamente com os seus dois deuses, com a
trança adicional de que uma interpretação do Novo Testamento, que tem assim incorporado
antítese à Toráh para dentro das suas mais básicas pressuposições, necessita dum Antigo
Testamento para ela, afim de ser antitético a este.
IV
Finalmente, gostaria sugerir, da maneira mais esboçada, certas alternativas hermenêuticas ou, pelo
menos normas práticas, que possam ajudar a resolver o problema central cristão.40
Talvez deve ser explicitamente declarado que nenhum destes princípios pretende diminuir
de modo algum o significado de Jesus para Cristãos, nem a autoridade da Igreja referente ao
Midrash cristão nos Escritos Apostólicos. A pedida revisão tem a ver com uma imprópria
teologia de Judaísmo cristã, e não com uma apropriada teologia de Cristandade. A intenção
não é atacar, mas sim esforçar-se por um entendimento mais verdadeiro, e portanto mais
fiel, dos Escritos Apostólicos.
Primeiro, à medida que o método significa a crítica radical das suposições do intérprete, e à medida
que inconscientes suposições nesta área têm tido más conseqüências, o intérprete deve suspeitar
de toda recebida sabedoria referente a modos de ver Judaísmo.
Segundo, na medida em que o intérprete cristão precisa falar de antigo Judaísmo, o que for dito
deve ser baseado exclusivamente em fontes judaicas, entendido das perspectivas de tais fontes.
Qualquer interpretação dos Escritos Apostólicos que for baseada em entendimento distorcido do
antigo Judaísmo, é para ser rejeitada imediatamente.
Terceiro, sempre que possível, os Escritos Apostólicos devem ser entendidos em continuidade com
as Escrituras canônicas do Judaísmo e da historia de tradição do seu desenvolvimento pós-bíblico. À
medida em isso não puder ser feito, será a declaração cristã que chega a ser problemática e não a
declaração bíblica.
Quarto, o princípio hermenêutico de antítese deve ser descartado imediatamente. A própria palavra
costumam usar para designar certos ditos em Mateus 5, e o conceito está muito difundido em
pressuposições como velho versus novo, lei contra evangelho, Jesus versus fariseus, Paulo versus
Judaísmo.41
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A ingênua tentativa de Cristãos para identificar o seu próprio caso com Paulo ou Jesus, e
destarte usando-os como armas contra oponentes atuais desse caso, quase sempre resulta
num Paulo ou Jesus anti-semítico.
Isso não significa que alguém não possa encontrar coisas muito diferentes nos Escritos Apostólicos
e, digamos, Mekilta, mas isso deve ser entendido como matéria de midrash comparativo, e não
como contraste.
Quinto. Deixem-me agora sugerir alguns princípios hermenêuticos a respeito da interpretação,
primeiro de Paulo, e depois de Jesus.
1. É o melhor supor que Paulo não era culpado duma "fundamental má compreensão"42 no seu
ensinar sobre a lei, também não compartilhava com a moderna cristã "visão da religião
rabínica como uma de legalista retidão de obras" ("legalistic works-rightiousness").43
Na medida em que as declarações de Paulo, freqüentemente, são completamente diferentes
daquelas dos Rábis, isso é para ser explicado, não na base de antítese, mas sim porque
totalmente diferentes situações estão sendo tratadas.
É o melhor aceitar como séria a designação de si mesmo de Paulo como Apóstolo para os
gentios, seu compromisso solene de restringir sua atividade missionária a gentios e de não
pregar a judeus, e o fato de que todas as suas cartas estão explicitamente endereçadas a
comunidades de cristãos gentílicos. Isso quer dizer que se espera que suas cartas tratem de
assuntos e problemas dos cristãos gentílicos.
2. c) É o melhor ficar muito cauteloso no reconstruir a posição de oponentes de Paulo, a fim de
que não fazê-los sempre afirmarem o que Paulo nega e negarem o que Paulo afirma, e que
nem todo o procedimento chegue a ficar circular. Devemos não dizer sobre eles mais que
aquilo que o texto mesmo disser explicitamente sobre eles, e devemos não combinar
referências em cartas diferentes para pressupor uma uniforme oposição antitética a Paulo. O
fato de que no único lugar onde os oponentes podem ser identificados com a maior certeza
como judeus cristãos, 2 Coríntios, a lei nunca está mencionada e não é o Judaísmo que está
no ponto de debate, deve-nos fazer parar com isso.44
Isso, neste caso, compreende-se sem dizer que 2Cor 3 não devia ser usado como
um princípio para leitura cristã de Escritura, também não como negação da
legitimidade da leitura judaica da Escritura. Mas isso é assunto de outro ensaio.
Em todo o caso, devemo-nos lembrar de que Paulo não argumenta com oponentes, mas sim
com os entendimentos da congregação à que se dirige.
Sexto. Com respeito de Jesus, a situação está mais complexa, porque os evangelhos sinópticos,
como os temos, estão endereçados a Cristãos gentios como o último estágio duma longa história de
transmissão, cujos começos têm Judaísmo do primeiro século como seu contexto. Não obstante,
algumas coisas podem ser ditas sobre o Jesus histórico, e essas serão o objeto de alguns princípios
hermenêuticos.
1. O melhor é não seguir o critério de dessemelhança de Käsemann, que usa para dizer de fato
que somente aqueles ditos de Jesus são os mais seguramente autênticos que não têm nada
em comum com o Judaísmo dos seus dias.45
Não posso imaginar um caminho mais eficiente para criar um artificial Jesus ariano.
Devemos dizer, ao contrário, que qualquer dito de Jesus que o deixar falar como um típico
judeu do primeiro século, é capaz de ser mais autêntico que qualquer um que o fizer soar
como um cristão.
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2. O melhor é não seguir Jeremias na sua aproximação a muitas das parábolas a serem
entendidas, não como proclamações do evangelho da graça de Deus, mas sim como armas
para defender esse evangelho contra os Fariseus.46
"Agora chegamos a um segundo grupo de parábolas. São aquelas que contêm a
Boa Nova mesma... (Elas são) aparentemente sem exceção endereçadas, não aos
pobres, mas aos oponentes... O seu principal objetivo não é a apresentação do
evangelho; são armas controversas contra os críticos e inimigos do evangelho que
são indignados porque Jesus devia declarar que Deus preocupa-se pelos pecadores"
(J. Jeremias ...).
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Isso não só introduz antítese onde nenhuma está indicada, mas grosseiramente distorce os
Fariseus apresentando as suas visões como sendo opostas a Jesus.
É o melhor entender Jesus como simpatizante com Israel como um todo e com os Fariseus
em particular, e estes como simpatizantes com ele. Quanto mais se retroceder na tradição
sinóptica, tanto mais fácil a fazer isso será.
É o melhor entender a relação de Jesus à Toráh, tanto à escrita quanto à oral, num sentido
positivo. Para acertar nisso, estudo simpático da tradição judaica posterior é apto para
ajudar muito melhor que a tradição da interpretação na Igreja. Se for verdade, pelo menos
para o modo com que a Mishnáh trata de leis referentes a sacrifícios, que mapa não é
território,47 não há razão porque a gentílica Igreja não possa ler Toráh, inclusive Mishnáh,
como um mapa muito importante.
Na medida em que Jesus falou como profeta sobre a situação nacional dum povo sujeito à
ocupação romana e, semelhante a muitos outros teve de proferir uma ameaça profética, é o
melhor lembrar que um profeta que não chora e ora como todo o seu ser que tais ameaças
não se realizem, é um profeta falso. A Igreja faz mau uso de tais declarações, quando são
entendidos como predições cumpridas e quando julgamento e promessa são separados,
julgamento para judeus e promessas para a Igreja.
Na medida em que teólogos cristãos sentirem necessidade de teologizar sobre as
circunstâncias da morte de Jesus, é o melhor fazer isso na base duma criticamente
reconstruída história daqueles eventos, e não da teologia que opõe lei e evangelho.
Poderão, então, falar, para variar, de Jesus morrendo em solidariedade com as esperanças
nacionais de Israel, ou, mais geralmente, do seu morrer em solidariedade com todos os
mártires de regimes repressivos de todos os tempos.
Finalmente, à luz do cânon da Sagrada Escritura e do midrash comparativo de Jesus e Paulo,
alguns aspetos dos Escritos Apostólicos chegam a ser problemáticos e relativizados. Isso é o
preço a pagar, se a Igreja quiser abandonar sua hermenêutica anti-judaica, mas a
recompensa será de fato uma Escritura que poderá ser afirmada por cristãos e judeus como
igualmente sagrada para ambos, como ouvida nas suas diferentes situações. Além do
acesso a um cânon de Escritura não sobrecarregado, os cristãos são, por meio disso,
capacitados a lerem os Escritos Apostólicos mais em acordo com a intenção original dos
mesmos, livres dum impróprio esquema antitético que lhes foi imposto de fora. Atualmente
porém, isso não pode ser chamado senão uma afirmação de esperança, e não duma
descrição duma realidade. Princípios hermenêuticos tais como aqueles brevemente
sugeridos, não podem ser testados senão em detalhada exegese, e cientistas cristãos dos
Escritos Apostólicos convencidos da sua importância não serão realmente qualificados para
participar em diálogo com judeus sobre nossa Escritura comum, até que vamos para casa e
sentar para esta monumental tarefa.
Notas:
1. Especialmente à luz do modo pelo que antijudaísmo cristão tende a expressar-se no tempo
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20.
presente, isso seria um tópico muito importante. Cf. o mais recente de W. D. Davis, The
Territorial Dimension of Judaism (A Dimensão Territorial de Judaísmo) (Berkeley: University o
California Press, 1982).
Cf. Alan F. Segal, Two Powers in Heaven (Dois Poderes no Céu) (Leiden; Brill, 1977) e "Ruler
of This World" (‘Regente de Este Mundo’), em Sanders, Baumgarten, Mendelson, eds., Jewish
and Christian Self-Definition (Auto-Definição Judaica e Cristã), Volume II, Aspects of Judaísm
in the Graeco-Roman Period (Aspetos de Judaísmo no Período Greco-Romano) (Philadelphia:
Fortress, 1981), 245-268.
Seja, então, notado que, embora eu esteja de simpatia com quase tudo que ela diz, não
posso concordar com R. Ruether que "cristologia" é que está "no coração de cada cristão
dualizando a dialética de existência humana para dentro das antíteses cristã e anti-judaica",
Faith and Fratricide (Fé e Fratricídio) New York: Seabury, 1974, 246. Acho que, antes, é a
"lei".
"Assim, o velho problema da ‘Lei’, aparentemente tratado muito antes, chegou a ser mais
uma vez o centro de atenção e objeto de dolorosa e tópica urgência", Hans von
Campenhausen, The Formation of the Christian Bible (A Formação da Bíblia Cristã) London:
Black, 1972), 74.
Diálogo com Trifo 10.
Celso em Orígenes, Contra Celsum VII, 18.
Cf. E. R. Goodenough, The Theology of Justin Martyr (Amsterdam: Philo, 1968; reimpresso da
edição de 1923); N. Hyldahl, Philosophie und Christentum (Filosofia e Cristandade)
(Copenhagen: Munksgaard, 1966); e von Campenhausen (nota 3), 94. Notamos que muitos
dos argumentos deste Diálogo aparecem também na Primeira Apologia, 30-53.
David P. Efroymsen, Tertullian’s Anti-Judaism and its Role in his Theology (O Antisemitismo
de Tertuliano e o Papel daquele na Teologia deste) (University Microfilmes, Temple
University PhD, 1976) e "The Patristic Connection" em A, T. Davis, ed., Antisemitism and the
Foundations of Christianity (New York: Paulist, 1979), 98-117.
Esse fator, muitas vezes não notado, é enfatizado por S. G. Wilson, "Marcion and the Jews",
Early Christian Roots of Antijudaism, Vol. 2.
O que é possível reconstruir destas, é encontrado em A. von Harnack, Marcion: Das
Evangelium vom fremden Gott (Márcion: O Evangelho do deus estranho) (Leipzig: Heinrichs,
1924), 256*-313*. A freqüentemente citada Tese de Harnack encontra-se na p. 217:
"Rejeitar o Antigo Testamento no século segundo era um erro que a Igreja principal com
justiça rejeitou; retê-lo no século 16 era um destino que a Reforma ainda não era capaz de
evitar; mas preservá-lo como documento canônico no Protestantismo depois do século 19, é
a conseqüência de paralisia religiosa e eclesial."
Diálogo 29:2.
Diálogo 11:5. Note que isso está no contexto dum argumento antimarcionito de que Deus é
um único e que este Deus dos Cristãos é também o Deus de Abraão, Isaac e Jacó (11:1).
Adv. Marcionem V,2.
Ptoléméé, lettre à Flora (Paris: Cerf, 1966), conveniente tradução inglesa em R. M. Grant,
Gnosticism; An Anthology (London: Collins, 1961) 184-190.
Mt 19,8; 15,1ss. Compare o conceito de deuterosis, as más leis secundárias da Toráh, nas
Pseudo-Clementinas e Constituições Apostólicas.
Muito mais ominoso é um uso especial da lei definido por Justino: ele diz que a circuncisão
era mandada por servir como uma espécie de estrela amarela, para identificar judeus e
escolhê-los para punição, Diálogo 16:2s., 92:3.
Um precursor nesse e noutros aspetos é a carta de Barnabé.
O uso mais antigo dos termos para designar "livros" é encontrado em Clemente de
Alexandria; cf. von Campenhausen (nota 3), 266.
Estou cônscio de que há importantes excepções do que aqui está apresentado tão
brevemente como sendo quase uma caricatura. Todavia, a continuidade que pode ser vista
entre o segundo e vigésimo séculos é bastante impressionante para ser posta em relevo.
G. von Rad, "Typological Interpretation of the Old Testament" (‘Interpretação Tipológica do
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Antigo Testamento’), em J. L. Mays, ed. Essays on Old Testament Hermeneutics (Richmond:
John Knox, 1973),17-39, evita a maioria desses fojos, e isso pode ser um exemplo dum bom
exegetizar acima do método questionável.
Com respeito a Justino: "o intuito não é tanto demonstrar a validade de fé em Cristo a partir
da Escritura como inversamente restabelecer a ameaçada autoridade da Escritura à luz de
Cristo", von Campenhausen (nota 3), 91. Para o período moderno, "supõe-se geralmente,
parece, que Cristo é uma certa e conhecida quantidade, e o problema é que o inteiro lugar
do Antigo Testamento chegou a ser duvidado na Igreja", J. Barr, Old and New Interpretation
(Interpretações Velha e Nova) (London: SCM, 1966), 139. O inteiro capítulo sobre "Typology
and Allegory", pp. 103-148, é uma importante crítica.
"Tudo está em movimento. As coisas nunca são esgotadas, mas o seu próprio cumprimento
dá surgimento, todo inesperado, à promessa de coisas ainda maiores", G. von Rad (nota 19),
34.
Old Testament Theology, Volume 2 (New York: Harper, 1965), 329.
A. A. van Ruler, The Christian Church and the Old Testament (A Igreja Cristã e o Velho
Testamento) (Grand Rapids. Eerdmans, 1971); R. H. Miskotte, When the Gods are Silent
(Quando os Deuses Ficam Calados) (New York: Harper, 1967).
Literatura: Veja nota 25 do original inglês. Trad.
"The significance of the Old Testament for the Christian Faith", em B. W. Anderson, ed., The
Old Testament and Christian Faith (New York: Harper, 1963), 8-35. Cf. von Campenhausen
(nota 3), 1: "Para a Cristandade, o Velho Testamento não é mais um livro canônico, no
mesmo sentido em que o era para os judeus."
R. Bultmann (nota 25), 14.
R. Bultmann, "Prophecy and Fullfillment", Essays Philosophical and Theological (London:
SCM, 1955), 182-208, 207s.
R. Bultmann, History and Eschatology (New York: Harper, 1957), 43. Cf. M. Noth, The History
of Israel (London: Black, 19602[sic!. Trad.]), 448, "Israel por isto (na destruição o Segundo
Templo) cessou de existir, e a história de Israel veio a seu fim."
J. Moltmann, The Crucified God (O Deus Crucificado) (London: SCM, 1974), 127, 131, 132.
Veja o importante artigo de E. Rivkin, "Beth Din, Boule, Sanhedrin: A Tragedy of Errors",
HUCA 46 (1975), 181-199.
Note como a evidência é retorcida para fornecer conclusões desproporcionadas em R.
Banks, Jesus and the Law in Synoptic Tradition (Jesus e a Lei na Tradição Sinóptica)
(Cambridge: University Press, 1975).
C. W. F. Smith, The Jesus of the Parables (Philadelphia: Westminster, 1948), 17.
Note o levantamento de K. Berger, "Die impliziten Gegner" (‘Os implícitos adversários’),
Kirche; Festschrift für Günther Bornkamm zum 75. Geburtstag, ed. D.Lührmann e G. Strecker
(Tübingen: Mohr, 1980), 373-400.
E. Käsemann, "Paul and Israel", New Testament Questions of Today (Philadelphia, Fortress,
1969), 183-187,184.
Moltmann (nota 29), 133.
Cf. neu "Paul and the Galatians Two and Three", Early Christian Roots of Anti-Judaism,
Volume 1 (nota 8).
H. Küng, On Being a Christian (London: Collins, 1977), 339.
Moltmann (nota 29), 127.
Talvez deve ser explicitamente declarado que nenhum destes princípios pretende diminuir
de modo algum o significado de Jesus para Cristãos, nem a autoridade da Igreja referente ao
Midrash cristão nos Escritos Apostólicos. A pedida revisão tem a ver com uma imprópria
teologia de Judaísmo cristã, e não com uma apropriada teologia de Cristandade. A intenção
não é atacar, mas sim esforçar-se por um entendimento mais verdadeiro, e portanto mais
fiel, dos Escritos Apostólicos.
A ingênua tentativa de Cristãos para identificar o seu próprio caso com Paulo ou Jesus, e
destarte usando-os como armas contra oponentes atuais desse caso, quase sempre resulta
num Paulo ou Jesus anti-semítico.
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42. H. J. Schoeps, Paul; The Theology of the Apostle in the Light of Jewish Religious History
(Philadelphia: Westminster, 1961), 213-2l8.
43. E. P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism (Philadelphia: Fortress, 1977), 33-59.
44. Isso, neste caso, compreende-se sem dizer que 2Cor 3 não devia ser usado como um
princípio para leitura cristã de Escritura, também não como negação da legitimidade da
leitura judaica da Escritura. Mas isso é assunto de outro ensaio.
45. "The Problem of the Historical Jesus", Essays on New Testament Themes (London; SCM,
1964), 15-47. Cf. anteriormente R. Bultmann, The History of the Synoptic Tradition (Oxford
Blackwell, 1968, 205). O verso desse critério, de outro lado, que somente aqueles ditos que
são dessemelhantes das ênfases da primitiva Igreja são para ser considerados autênticos,
faz muito sentido.
46. "Agora chegamos a um segundo grupo de parábolas. São aquelas que contêm a Boa Nova
mesma... (Elas são) aparentemente sem exceção endereçadas, não aos pobres, mas aos
oponentes... O seu principal objetivo não é a apresentação do evangelho; são armas
controversas contra os críticos e inimigos do evangelho que são indignados porque Jesus
devia declarar que Deus preocupa-se pelos pecadores", J. Jeremias, The Parables of Jesus
(New York: Scribners, 1972), 103-127.
47. Cf. J. Neusner, "Map without Territory: Mishnah’s System of Sacrifice and Sanctuary", History
of Religions 19 (1979), 103-127.
© 1996 Lloyd Gaston
Tradução: Pedro von Werden SJ. Texto inglês
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