19602010

Transcrição

19602010
A MARgem
evista
Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes · ISSN 2175-2516
CAPITALISMO EM PERSPECTIVA:
UM BREVE ESTUDO SOBRE CRISES
Introdução
Rodrigo Janoni Carvalho (UFU)[1]
N
este trabalho buscamos discutir algumas características sobre
importantes crises do capitalismo nos últimos séculos, com
ênfase na Grande Depressão que assolou o mundo em 1929 e
a recente crise imobiliária norte-americana de 2008.
Além destes momentos de tensão econômica,
podemos apontar também outras crises de destaque, como a do
petróleo nos anos 1970 ou, mais distantes ainda, as primeiras
crises capitalistas relacionadas com as grandes navegações
durante os séculos XVII e XVIII.
Consideramos este breve estudo como um breve
artigo, uma vez que para uma abordagem maior de um tema
tão expressivo seriam necessárias pesquisas profundas
demandando muito mais fôlego do que o realizado. Contudo,
Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 89-103, jul./dez. 2009
esta análise pode-se consolidar como insuflador de um tema
fortemente presente nos meios de comunicação recentes. O diálogo
com diversas fontes, como se observa ao longo do texto, nos permite
pensar alguns efeitos sociais que as crises econômicas provocam e as medidas adotadas
no meio político em nível mundial, sob diferenciados pontos de vista.
1960 2010
ILEEL 50 ANOS
Breve histórico do sistema capitalista
As primeiras características do capitalismo apareceram desde os fins do medievo
num processo de transferência do centro da vida econômica, social e política com
89
ênfase no crescimento das cidades. Num primeiro momento, considerado précapitalista, podemos perceber alguns fatores que contribuíram na formação do sistema.
Neste período, basicamente compreendido entre os séculos XVI ao XVIII, encontrou-se
um forte acúmulo de riquezas gerado principalmente pelo comércio de especiarias e
matérias-primas para além do solo europeu.
Um outro momento bastante característico da formação deste sistema
econômico é o capitalismo fabril pautado na revolução industrial por volta da segunda
metade do século XVIII inicialmente na Inglaterra. O acúmulo de riquezas originárias
do comércio de produtos industrializados e a enorme capacidade de transformação do
ambiente são algumas características deste industrialismo, onde houveram consideráveis
avanços tecnológicos e uma multiplicação de lucros ainda maior.
Nos fins do século XIX consolida-se uma nova fase capitalista: a monopolista
financeira. Ocorre um crescimento acelerado da economia capitalista sob um
forte processo de centralização de capitais em indústrias, bancos, casas
comerciais e principalmente, na acirrada concorrência. Como aponta John
Hobson, “é nessa estrutura do capitalismo moderno que a figura do
financista se torna uma autoridade no sistema, onde em muitas
situações pequenos grupos financeiros controlam os destinos
industriais e políticos de países inteiros” (HOBSON, 1983).
É nesse momento que as corporações ganham espaço
e influência cada vez maiores. Situação esta que se torna
mais complexa até os dias atuais e pode ser perceptível na
força de grandes empresas e financistas. O filme
documentário The Corporation ilustra bem este cenário ao
descrever o surgimento das corporações como pessoas jurídicas
Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 89-103, jul./dez. 2009
e que tipo de pessoas seriam do ponto de vista psicológico, além
de evidenciar alguns aspectos como exploração de mão-de-obra ou a
devastação do meio ambiente.
Seria simples recortar fases do capitalismo para explicar a constituição deste
sistema econômico-social. Devemos considerar que sua história representa uma longa
duração onde encontramos diversas experiências políticas, sociais e econômicas. Para
além de pontuar alguns momentos característicos do capitalismo, precisamos olhar para
os momentos de crise que fizeram parte do seu próprio crescimento. Compreender as
crises que o sistema vivenciou é fundamental para análise de alguns marcos e
caracterizações.
1960 2010
ILEEL 50 ANOS
90
O século XX foi marcado por períodos fundamentais para a história do sistema
capitalista. Primeiramente, dos anos 1910 aos 1940 alastrou-se a era da guerra total,
como denomina Eric Hobsbawm. No período entre-guerras, a crise de 1929 marcou
uma forte depressão, a maior então do capitalismo. Houvera um forte abalo na lógica
capitalista pela superprodução resultando numa depressão ao longo dos anos 1930. A
Segunda Guerra Mundial viria “solucionar” os problemas daqueles anos, isto é, a guerra
fortaleceria o sistema com base na vitória das principais potências ocidentais.
O pós-guerra (1945-1970) é marcado pelo maior e melhor período de
crescimento capitalista caracterizado como uma fase fordista-keynesiana ou era de ouro
nas palavras de Hobsbawm. Este foi o segundo momento de destaque no século
passado, representando bons ares ao sistema. Em seguida, na conflagração da conhecida
crise do petróleo, temos a reformulação capitalista com base na fase de “acumulação
flexível” perante uma era de crises e incertezas. O próprio petróleo, grande
símbolo daquela crise, foi envolvido em diversas guerras político-ideológicas. Os
anos 1970 e 1980, politicamente, foram marcados pela consolidação do
neoliberalismo na Inglaterra (Margareth Thatcher), nos Estados
Unidos (Ronald Reagan) e Chile (Augusto Pinochet). O Brasil
experimentaria este modelo de gestão estatal nos anos 1990.
À respeito das crises capitalistas Alexandre Versignassi
aponta que estas acabam e voltam, pois a economia vive de
ciclos, como as estações do ano, de acordo com o mesmo.
Logo, o que acontece hoje em função do mercado
imobiliário norte-americano é comum na história. O século
passado foi marcado por diversas crises, onde se firmaram
problemas para a lógica capitalista. Contudo, se renovando o
Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 89-103, jul./dez. 2009
capitalismo apresenta novas formas de rearticulação de políticas
econômicas perante o louvado progresso tecnológico suportando
novas fronteiras.
Para alguns talvez seja possível um outro mundo fora do capitalismo; para outros
um dia o sistema cairá por terra. Todavia, é complicado pensar em cenários futuros,
principalmente diante de uma crise tão breve como a atual. Somente lançando mão do
tempo e de suas transformações que podemos pensar em novas formas de
desenvolvimento, dado que o capitalismo se faz presente em nossas vidas se
reconfigurando numa velocidade ainda mais surpreendente a cada abalo que sofre.
1960 2010
ILEEL 50 ANOS
91
Transformações capitalistas no século XX
Como apontamos, a Grande Depressão de 1929 caracterizou um maior colapso
capitalista até aquele momento então. Foi um período considerado o de maior recessão
econômica causando altas taxas de desemprego, queda de produtos internos, quedas de
produção industrial e de ações. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, os países
europeus se encontravam devastados e economicamente enfraquecidos mediante uma
retração de consumo gritante. Os Estados Unidos, em contrapartida, foi beneficiado
com os resultados de guerra, aproveitou o momento com lucros exorbitantes face às
suas exportações, tornando-se assim o maior credor mundial e superando a posição
ocupada pela Inglaterra durante tantos anos.
[...] as guerras foram visivelmente boas para os EUA. Sua taxa de
crescimento nas duas guerras foi bastante extraordinária, quando
aumentou mais ou menos 10% ao ano. Em ambas os EUA se
beneficiaram do fato de estarem distantes da luta e serem o
principal arsenal de seus aliados, e da capacidade de
sua economia de organizar a expansão da
produção de modo mais eficiente que qualquer
outro.[4] (HOBSBAWM, 1995, p. 55)
A produção norte-americana atingiu taxas de
prosperidade nunca antes experimentadas caracterizando,
num primeiro momento, o chamado “American Way of
Life”, durante os anos 1918 e 1928, onde era perceptível
níveis de qualidade de vida excelentes, geração de empregos,
queda de preços, aumento da produtividade da agricultura,
Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 89-103, jul./dez. 2009
consumo intensivo, expansão de crédito e parcelamento de
pagamentos.
Entretanto, com o passar dos anos as economias européias se reergueram e
passaram a importar cada vez menos dos norte-americanos, caracterizando uma retração
de consumo. Haviam mais mercadorias do que consumidores. Isto ocasionou uma forte
queda da produção e o aumento do desemprego. Tal retração geral provocou a queda
das ações no mercado em função da crise de superprodução deflagrada. Este cenário
perdurou até 1933 sendo revertido após os primeiros efeitos provocados pelo New
Deal, encabeçado por Keynes, com base em diversos programas de ajuda social. A
Segunda Grande Guerra viria por solucionar economicamente os países vencedores,
1960 2010
ILEEL 50 ANOS
92
liderados pela potência americana.
O pós-guerra representou uma era de ouro e prosperidade único para o
capitalismo, pelo menos aos países liberais ocidentais. As décadas de 1950 e 1960 foram
marcadas pela organização fordista-keynesiana, pela estética modernista e a
funcionalidade e eficiência do trabalho. A elevação do padrão de vida e de tecnologia
modificou os hábitos das pessoas. Percebemos uma forte intervenção estatal pela
tomada de frente por parte deste organismo no controle das políticas fiscais e
monetárias. É este mesmo que determina as prioridades de investimentos em
transportes, indústrias de base, políticas de seguridade social, educação, habitação,
saúde, etc.
Com base naquela prosperidade, a produção e o consumo são ampliados pelos
fluxos de comércio internacional e de investimentos, em que os Estados Unidos
assumiram uma posição hegemônica como grande banqueiro mundial
chegando às partes mais extremas pelos braços das corporações.
Se por um lado os benefícios foram grandes, nem todos foram
atingidos de forma homogênea. A exclusão permaneceu e os serviços
públicos de má qualidade também. Percebe-se uma extensão das
periferias das cidades e freqüentes fluxos migratórios. Há ainda
destruições de culturas locais pela massificação e
globalização, ressaltando as contradições do capitalismo. O
crescimento anteriormente apontado encontrou seus limites
em torno da crise do petróleo nos anos 1970.
Para alguns autores como David Harvey, “aquele
momento histórico de crise é caracterizado como uma fase de
acumulação flexível face à uma era de incertezas e crises”
Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 89-103, jul./dez. 2009
(HARVEY, 2009, p. 6-7). O embargo dos países membros da
Organização dos Países Exportadores de Petróleo – OPEP foi fatal
aos países europeus e os Estados Unidos, de modo que houve um déficit de
oferta, nacionalizações de petrolíferas e uma série de conflitos envolvendo os grandes
produtores árabes. Os preços do barril atingiram valores expressivos aumentando em
torno de 400% e desestabilizando a economia mundial.
Em 1956, o presidente do Egito nacionalizou o canal do Suez – de antiga
propriedade de capitais ingleses e franceses – provocando uma crise devido a
importância do canal como passagem de exportações na região. Em seguida, a então
crise do petróleo de 1973 foi marcada pelo aumento considerável do preço do barril de
1960 2010
ILEEL 50 ANOS
93
petróleo como forma de protesto antiamericano e antiisraelita. É nesta década ainda
que ocorre uma crise política no Irã e guerra deste país com o Iraque, provocando uma
desorganização do setor petrolífero. Posteriormente, em 1991, a Guerra do Golfo
protagonizou episódios de incêndio de poços petroleiros por parte dos iraquianos,
ocasionando impactos ambientais e econômicos enormes.
A quadruplicação dos preços exigiu ajustes macroeconômicos em todos países
industrializados, de modo que a acumulação flexíveis de capitais se tornou um marco
decisivo nas gestões político-econômicas sejam pelas mudanças tecnológicas seja pela
automação e constituição de novas linhas de produção. Como conseqüência houve uma
flexibilidade dos processos de trabalho e dos padrões de consumo. O acesso à
informação é vital na atualidade provocando mudanças nas noções de tempo e espaço,
assim como uma maior pressão sobre a força de trabalho.
Estes anos neoliberais apresentaram níveis altos de desemprego, ganhos
modestos de salários e um sucateamento dos recursos materiais e humanos,
principalmente pelo mercado terciarizado. A acumulação flexível é marcada
pela sua rapidez de giro da produção e do consumo. Em função
disto, ocorreu uma reorganização do sistema econômico em
evidência do poder do Fundo Monetário Internacional – FMI
e do Banco Mundial. Percebemos mudanças na estrutura de
poder, em que os Estados Unidos se tornaram mais
dependentes que nos anos de Guerra Fria do comércio
exterior com o crescimento do poder financeiro e a
capacidade de produção européia, japonesa e chinesa.
A crise de 2008
1960 2010
ILEEL 50 ANOS
Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 89-103, jul./dez. 2009
A atual crise financeira em função do mercado imobiliário
norte-americano não tem nada de nova nem significa o começo do fim do
capitalismo. A sua abrangência, em mesma medida que as crises anteriormente
apontadas, é global pelo fato de hoje não existirem mais fronteiras econômicas. As crises
são inerentes ao sistema capitalista e renovam este cada vez mais que se evidenciam.
Apesar das interferências governamentais, a crise atual se alastrou pela queda de valores
de imóveis.
Os financiadores que contavam com uma valorização dos imóveis aumentaram
as taxas de crédito; este acréscimo levou a um aumento da inadimplência em virtude de
94
mais imóveis terem sido retomados para saldar dívidas e ao serem colocados no
mercado contribuíram para a baixa de preços. Quando era tarde e o mercado
“percebeu” a bolha existente, o ciclo passou a operar em outra direção, desvalorizando
os imóveis e aumentando taxas e devedores inadimplentes. No princípio, esta crise era
encarada como apenas um pequeno problema de não-pagamento naquele setor
específico estadunidense, caracterizada como “crise do subprime”.
Na segunda metade de 2008, inúmeras notícias negativas derrubaram as
principais bolsas de valores mundiais. O tesouro norte-americano assumiu o controle
de companhias do setor hipotecário – como as irmãs Fannie Mãe e Freddie Mac – e o
quarto maior banco americano, Lehman Brothers, que pediu concordata. Para se ter
noção dos impactos, a American International Group – AIG solicitou ajuda monetária
na cifra de US$ 40 bilhões de dólares.
A denominada crise do subprime ganhou destaques e se transformou
numa recessão financeira internacional. Assim, derrubaram-se os arranjos sobre
os quais as modernas políticas desenvolvimentistas se sustentavam. A crise
necessitou de uma intervenção mais incisiva dos aparelhos estatais
sobre a dinâmica econômica, pela busca de soberania dos
Estados no zelo de suas políticas de seguridade de emprego,
renda, consumo e investimento. Uma crise iniciada no
mercado imobiliário se infiltrou no sistema financeiro e se
espalho por vários setores econômicos.
O enorme risco de falência mobilizou o governo
norte-americano a propor pacotes bilionários de ajuda aos
bancos com balanços comprometidos. O mercado de
trabalho sofreu uma forte contração no aumento de taxas de
Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 89-103, jul./dez. 2009
desemprego, chegando a 2,6 milhões de pessoas nesta situação,
uma taxa maior desde o fim da II Guerra (FOLHA, 2009). Neste
cenário de crise surgiram os conflitos urbanos, que segundo Harvey, “são
decorrências da acumulação de capital. O mercado deveria ser regulado por algum
órgão internacional e não ser deixado se auto-regular. Para além disso, os Estados
Unidos deveriam ser monitorados de modo que agem livremente de qualquer controle
sobre as leis de mercado” (HARVEY, 2009, p. 6-7).
Assim, a crise deve ser encarada com um fenômeno urbano do ponto de vista de
Harvey. Esta recessão deveria ser discutida com base no super-aquecimento do mercado
imobiliário americano desde os anos 2000. O consumidor americano teve seu
1960 2010
ILEEL 50 ANOS
95
orçamento arrochado e o fornecimento de crédito aumentou, logo as pessoas não
saldavam suas dívidas e continuavam gastando. O capital financeiro poderia assim atuar
no cenário urbano fornecendo moradias e estimulando demanda pelas mesmas.
Para o Brasil, os efeitos não foram imediatos devido à regulação bancária mais
rígida que dos países desenvolvidos. O país não contaminado pelos títulos podres do
sistema hipotecário americano e manteve patamares de crédito e liquidez aceitáveis.
Todavia, ao ser atingido na esfera real da economia, grandes partes dos setores do aparto
produtivo nacional demonstraram vulnerabilidade frente à crise deflagrada. As grandes
evidências disto foram os níveis recordes de demissões registrados no início de 2009
como resultado da expressiva queda da atividade industrial.
O ônus social do capitalismo
Diante das massivas notícias sobre a crise atual nos mais variados meios
de comunicação percebemos diversas variáveis relativas à queda da bolsa, ao
risco país, às perdas de setores econômicos e incríveis taxas de
desemprego. Contudo, perante tantas informações pouco se
considera os impactos reais às vidas das pessoas frente essa
avalanche de informações predominantemente marcadas por
números e mais números.
Dessa forma, precisamos pensar também a situação
das pessoas que se envolvem com os efeitos diretos das crises
econômicas e têm suas vidas transformadas, assim como seus
sonhos e anseios pela quebra de uma montadora ou um
grande banco, por exemplo. No estado de Minas Gerais,
Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 89-103, jul./dez. 2009
cidade que se dedicam exclusivamente às atividades mineradoras
sofreram grande impacto com a perda de arrecadação proveniente
em última análise da crise mundial. Pense no impacto que uma paralisação
de uma grande siderúrgica ou mineradora provoca numa cidade que vive basicamente
desta atividade. Socialmente os impactos são profundos.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, a taxa de
desemprego no Brasil saltou de 8,5 para 9,0 no mês de março de 2009 (BRASIL,
2009). Nos Estados Unidos 651 mil postos de trabalho foram fechados em fevereiro do
mesmo ano e a Espanha possuía uma das maiores taxas de desemprego do mundo e a
maior do continente europeu (UNITED STATES, 2009). São pessoas reais, nossos
1960 2010
ILEEL 50 ANOS
96
vizinhos ou nós mesmos e não somente as perdas financeiras estimadas em 4 trilhões de
dólares[2] que são afetadas. Estas são algumas razões para também pensarmos o lado
social mediante os efeitos das recessões econômicas.
Um olhar sobre as crises
Para Alexandre Versignassi, a crise que estamos vivenciando vai acabar. E voltar.
O autor cita como exemplo uma situação semelhante vivenciada a mais de 300 anos na
Inglaterra. De uma hora para outra a crise surgiu, a bolsa de valores despencou e o
dinheiro ficou raro. Os empréstimos sumiram e todos começaram a gastar menos. Não
haviam créditos nem clientes e várias companhias fecharam, principalmente as de
navegação.
Naquele tempo, o governo precisou agir para evitar o colapso completo
delimitando os grandes culpados pela crise: a ganância dos homens. Pode
parecer incrível, mas tudo isto ocorreu em 1697. O estado inglês precisou
intervir colocando rédeas no mercado financeiro após o estouro da
bolha que deu lugar a maior crise dos primórdios do capitalismo.
Aquele cenário nos traz semelhanças com o mundo de agora.
A atual crise não tem nada de nova nem significa o começo
do fim do capitalismo; somente é maior na medida em que
hoje não existem mais barreiras econômicas. São
basicamente quatro passos que as crises capitalistas
enfrentaram:
1960 2010
ILEEL 50 ANOS
1) Novas oportunidades de investimento
(Internet, imóveis, etc.) criam chances de lucros
Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 89-103, jul./dez. 2009
cada vez maiores no mercado financeiro;
2) Quanto mais lucro se espera, mais as ações sobem.
Investidores novatos entram no negócio;
3) Companhias novas lançam ações para aproveitar a euforia. Pessoas e
empresas fazem fortunas da noite para o dia. O crédito fica facinho;
4) As expectativas de lucro não viram realidade. Investidores fogem. Bancos
tomam calote. O crédito some, a economia trava. E vem a crise.
(VERSIGNASSI, 2009, p. 25-6)
97
Mesmo diante da crise citada, do século XVII, a mesma serviu de base para
construção do mundo e fortalecimento do sistema econômico graças ao “cassino” de
ações e a invenção do comércio global. Depois disso vieram dezenas de crises e
transformações para o capitalismo, de modo que este se revitaliza a cada abalo
modificando-se às novas realidades que enfrenta.
Frederico Mazzucchelli apresenta uma interessante análise em entre alguns
aspectos da crise de 1929 e a de 2008. Num contexto de intensas incertezas que
vivemos é inevitável este tipo de comparação na medida em que observamos o
profundo impacto da recessão que assola parte significante do sistema financeiro global.
Mais ainda, a produção, os empregos, os investimentos, de modo geral, a situação
econômico-social foram fortemente afetadas.
O peso das riquezas das operações financeiras e a interligação de vários
segmentos de mercado em escala mundial são hoje infinitamente maiores do que no
final da década de 1920. Estamos atualmente diante de um processo monumental de
desvalorização de ativos superior àquele momento registrado. Por outro lado, a
intervenção de governos no andamento da crise atual foi está sendo muito
maior e imediata, principalmente no que diz respeito à concessão de
capitais ou estatização de empresas quebradas.
“O fato é que tudo isto ocorre depois desta fase tão larga,
sem paralelo na história do capitalismo, de 50 anos de
acumulação ininterrupta (salvo uma pequeníssima ruptura
em 1974/75) assim como também tudo o que os círculos
capitalistas dirigentes, e em particular os bancos centrais,
aprenderam da crise de 29, tudo isso faz com que a crise
avance de maneira bastante lenta” (CHESNAIS, 2009).
Mazzucchelli considera a ação dos governos como
tipicamente keynesiana pela busca do fortalecimento do
Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 89-103, jul./dez. 2009
circuito de crédito-gasto-renda, em que os líderes dos países
buscam intervir na economia mediante absoluta preferência pela
liquidez. Este cenário era impensável em 1929. Em contrapartida, há uma
semelhança interessante naquelas duas situações de recessão: a fragilidade da regulação e
o relaxamento da percepção de riscos.
Durante a Grande Depressão, as respostas para a crise foram primeiramente
desastradas e geraram problemas como a propagação de quebras, contração da
produção e explosão do desemprego. Naquele caos econômico-social, os governos
norte-americano e alemão, firmados em projetos disciplinadores, conseguiram reverter
a situação de colapso com a regulação rígida do sistema financeiro. Roosevelt promoveu
1960 2010
ILEEL 50 ANOS
98
o saneamento do setor bancário estadunidense e estabeleceu regulamentações
financeiras abandonando o padrão-ouro e colocando o dólar em progressiva trajetória
de queda. Assim, os juros estavam libertos do câmbio fixo e a expansão de crédito
bancário pôde irrigar a economia e estimular a alta dos preços. Hitler converteu o
sistema financeiro como um braço do Reichbank impondo controle absoluto nas
transações de moedas estrangeiras oferecendo oxigênio para a economia alemã.
Em ambos casos, a disciplina sobre as finanças privadas foi fundamental para a
saída dos escombros da profunda depressão. Para hoje seria necessário uma imperiosa
reintrodução de padrões mais rígidos para redimensionar o funcionamento do sistema
financeiro mundial visando à estabilidade mínima das economias capitalistas.
Mazzucchelli aponta uma diferença significativa entre os dois momentos históricos que
não pode ser desconsiderada.
No inicio dos anos 1930, a proporção da população
economicamente ativa empregada nas atividades agrícolas e
extrativas era próxima a um quarto nos Estados Unidos,
e a um terço na Alemanha. Com a Depressão, dada
a maior sensibilidade dos preços agrícolas às
variações da demanda, a renda real da
população empregada no campo despencou.
[...] parcela relevante dos recursos públicos
administrados pelo New Deal e pelos
nazistas foi direcionada exatamente para a
reversão do quadro devastador que se abateu
sobre a agricultura. Hoje, esta questão nem
se quer é colocada: nem a proporção da
população empregada no campo é relevante,
nem a participação da agricultura na criação de
Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 89-103, jul./dez. 2009
renda tem uma expressão econômica digna de
maiores preocupações. É provável, entretanto, que o
mercado imobiliário de hoje seja a agricultura de ontem: a dimensão da crise
dos ativos relacionados às hipotecas de alto risco (subprime) ainda não é
mensurável. (MAZZUCCHELLI, 2008, p. 65)
1960 2010
ILEEL 50 ANOS
Dessa forma, é possível que na atual crise financeira a intervenção estatal seja tão
intensa quanto foi para retirar a agricultura da depressão nos anos 1930. Não é
previsível para a crise atual um desdobramento parecido com a Grande Depressão. Até
porquê o mundo de hoje é diferente do mundo à 80 anos atrás. A intervenção tem
99
evitado maiores desastres em virtude da derrota fragorosa do liberalismo iludido pela
regulação dos mercados e pela euforia das finanças desregulamentadas.
Considerações finais
Para pensarmos as recessões econômicas do sistema capitalista é importante
direcionarmos nossos olhares para as diversas contribuições do conhecimento humano
como a história, a economia, a ciência política, a geografia, as ciências sociais, etc. O
acesso à inúmeras formas de pensar e conceber o mundo nos abrem portas para
entendermos o que se passa em sociedade. As crises capitalistas são cíclicas, funcionais e
agem no sentido de reestruturar e reformular o sistema, ainda que sejam necessários
elementos considerados obsoletos e de tempos passados.
Isto é, em determinados momentos, a recorrência ao Estado e sua
intervenção se tornam necessárias. Muito criticada tal atuação estatal, o apoio
estatal se tornou evidente quanto as ordens do livre-mercado dão sinais de
limites. No atual momento de crise se fala na volta de práticas
intervencionistas, como a estatização de bancos e a injeção de
capital. Em linhas gerais, procuramos pontuar alguns aspectos
notáveis entorno das crises capitalistas e a vida cotidiana das
pessoas, na medida em que é preciso olhares atentos nos
discursos interpretativos das crises e até onde uma recessão
poderá afetar nossas vidas em sociedade.
REFERÊNCIAS:
1960 2010
ILEEL 50 ANOS
Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 89-103, jul./dez. 2009
A LUTA PELA ESPERANÇA. Direção: Ron Howard. Produção: Brian Grazer, Ron
Howard e Penny Marshall. Intérpretes: Russell Crowe, Renée Zellweger, Paul Giamatti, Craig Bierko,
Paddy Considine e outros. Los Angeles: Universal Pictures, 2005. Legendas em Espanhol, Francês e
Português. 1DVD video (144 min).
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Trad. Vera
Ribeiro. São Paulo: Contraponto/UNESP, 1996.
BEAUD, Michel. História do capitalismo de 1500 até os nossos dias. Tradu. Maria Ermantina Pereira.
4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
100
BEINSTEIN, Jorge. A crise na era senil do capitalismo: esperando, inutilmente, o quinto Kondratieff.
Carta Maior, São Paulo, 18 fev. 2009. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/
materiaMostrar.cfm?materia_id=15700>. Acesso em: 4 mai. 2009.
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Taxa de desemprego. Disponível em:
<www.ibge.gov.br>. Acesso em: 4 mai. 2009.
CHESNAIS, François. O capitalismo tentou romper seus limites históricos e criou um novo 1929, ou
pior.
Carta
maior,
São
Paulo,
09
out.
2009.
Disponível
em:
<http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15284& alterarHomeAtual
=1>. Acesso em: 5 mai. 2009.
DUPAS, Gilberto. O futuro do trabalho. Jornal Estado de São Paulo, São Paulo, 17 nov. 2007.
FOLHA Online. Entenda a evolução da crise que atinge a economia dos EUA. Folha online, São
Paulo,
3
fev.
2009.
Disponível
em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u498060.shtml>. Acesso em: 3 mai. 2009.
FOLHA Online. Veja os principais fatos ocorridos na economia em 2008. Folha online, São
Paulo,
29
dez.
2008.
Disponível
em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u481671.shtml>. Acesso em: 3
mai. 2009.
HARVEY, David. O neoliberalismo não acabou. Carta maior, São Paulo,
31
mar.
2009.
Disponível
em:
<http://www.cartamaior.com.br/templates/materia
Mostrar.cfm?
materia_id=15895>. Acesso em: 3 mai. 2009.
HARVEY, David. Wall Street e o direito a cidade. Le monde
diplomatique, São Paulo, n. 20, p. 6-7, mar. 2009.
HOBSBAWM, Eric. Além de injusto, o mercado absoluto é inviável.
Trad. Katarina Peixoto. Carta maior, São Paulo, mar. 2009.
1960 2010
ILEEL 50 ANOS
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). 2.
ed. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 89-103, jul./dez. 2009
HOBSON, John. A evolução do capitalismo moderno: um estudo da produção
mecanizada. 2. ed. Trad. Benedicto de Carvalho. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
JUDT, Tony. Crise econômica abala crença no modelo ocidental. Folha online, São Paulo, 2 mar. 2009.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u511214.shtml>. Acesso em: 3
mai. 2009.
LAPAVITSAS, Costas. Crise econômica: um novo 1929 ou o novo Japão? Disponível em:
<http://blog.controversia.com.br/2008/10/09/crise-economica-um-novo-1929-ou-o-novo-japao>.
Acesso em: 3 mai. 2009.
101
LIMA, Marcos Costa. Os condicionantes internacionais na crise brasileira. In: ARAÚJO, Rita de
Cássia; BARRETO, Túlio Velho (Orgs.). 1964: o golpe passado a limpo. Recife: Massangana, 2007.
MAZZUCCHELLI, Frederico. A crise em perspectiva: 1929 e 2008. Novos Estudos, São Paulo, n. 82,
p. 57-66, 2008. Disponível em: <http://novosestudos.uol.com.br/acervo/acervo_artigo.asp?
idMateria=1301>. Acesso em: 3 mai. 2009.
NAKANO, Kassuo; ROLNIK, Raquel. As armadilhas do pacote habitacional. Le monde
diplomatique, São Paulo, p. 4-5, mar. 2009.
OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado: transformações contemporâneas do trabalho e da política.
Trad. Wanda Caldeira Brant. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
OLIVEIRA, Carlos Alonso Barbosa de. Processos de industrialização: do capitalismo originário ao
atrasado. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
PEREIRA, Ricardo. Crash de 1929, o New Deal e a crise de crédito de 2008. Disponível em:
<http://dinheirama.com/blog/2008/10/17/ crash-de-1929-o-new-deal-e-a-crise-de-credito-de2008/>. Acesso em: 3 mai. 2009.
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Trad. Fanny
Wrobel. Rio de Janeiro: Campus, 1980.
RIZVI, Haider. Bancos recebem ajuda de US$ 4 trilhões. E o resto do
planeta? Carta maior, São Paulo, 24 nov. 2008. Disponível em:
<http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?
materia_id=15401>. Acesso em: 3 mai. 2009.
ROBOTS. Direção: Chris Wedge. Produção: Jerry Davis, William
Joyce e John C. Donkin. Intérpretes: Ewan McGregor, Halle Berry,
Greg Kinnear, Mel Brooks, Drew Carey e outros. Los Angeles: 20th
Century Fox Film Corp., 2005. 1DVD video (90 min).
1960 2010
ILEEL 50 ANOS
SADER, Emir. Onde estamos? In: SADER, Emir. A vingança da história.
São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 89-103, jul./dez. 2009
THE CORPORATION. Direção: Mark Achbar e Jennifer Abbott. Produção: Mark
Achbar e Bart Simpson. Intérpretes: Mikela J. Mikael, Jane Akre, Ray Anderson, Maude Barlow, Chris
Barrett e outros. Ontario: Zeitgeist Films; Imagem Filmes, 2004. 1DVD video (145 min).
UNITED STATES, DOL (Department of Labor). Unemployement rate. Disponível em:
<www.dol.gov>. Acesso em: 7 abr. 2009.
VERSIGNASSI, Alexandre. A crise vai acabar. E voltar. Revista superinteressante, São Paulo, n. 264,
p. 25-26, abr. 2009.
102
[1] E-mail: [email protected]
[2] Cálculo estimado da crise mundial, publicado em noticia pela BBC em 21/09/2009. Disponível em:
<www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2009/04/ 090421_fmirelatorio2_bg_ac.shtml>. Acesso em: 06/04/2009.
1960 2010
ILEEL 50 ANOS
Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 89-103, jul./dez. 2009
103

Documentos relacionados