GARANTIA FUNDAMENTAL: O CONTRADITÓRIO E A AMPLA
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GARANTIA FUNDAMENTAL: O CONTRADITÓRIO E A AMPLA
INGRITH GOMES ABRAHÃO A FAMÍLIA MONOPARENTAL FORMADA POR MÃES SOZINHAS POR OPÇÃO ATRAVÉS DA UTILIZAÇÃO DE TÉCNICAS DE INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO 2 BELO HORIZONTE 2003 3 INGRITH GOMES ABRAHÃO A FAMÍLIA MONOPARENTAL FORMADA POR MÃES SOZINHAS POR OPÇÃO ATRAVÉS DA UTILIZAÇÃO DE TÉCNICAS DE INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Monografia apresentada ao Curso de Graduação da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito para a conclusão da disciplina Monografia II. ORIENTADORA : DRA . MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ Data da Aprovação da Monografia: Assinatura do Profa. Orientadora: AVALIAÇÃO FINAL DA APRESENTAÇÃO ORAL : MÉDIA FINAL : CONCEITO: ____/_____/_____ 4 BELO HORIZONTE 2003 3 SUMÁRIO Avaliação Final............................................................................................................3 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................................................3 2. DESENVOLVIMENTO....................................................................................................................................6 2.1 Evolução do conceito de Família: da família romana à família plural contemporânea.....................................................................................................6 2.2 Família Monoparental.........................................................................................28 2.2.1 Terminologia ...................................................................................................................................2 8 2.2.2 Causas da Monoparent alidade ...................................................................................................3 3 2.3 A família monoparental formada por mães sozinhas por opção utilizando técnicas de inseminação artificial....................................................................39 3. CONCLUSÃO.................................................................................................................................................6 0 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................................................6 3 3 1. INTRODUÇÃO O Direito de Família constitui uma das áreas do Direito que mais sofreu modificações ao longo da evolução das relações políticas, econômicas e sociais ocorridas em todo o mundo ocidental, inclusive no Brasil. Isso porque, apesar de constituir uma das instituições mais antigas da humanidade, a família tem seu conceito reformulado de acordo com as mudanças de costumes, valores e ideais da sociedade, de forma que seu conceito atual é totalmente diverso do conceito de família a luz do Direito Romano, por exemplo. Em decorrência destas modificações ocorridas na realidade sociológica, construiu- se um conceito plural de família que foi consagrado, no Brasil, pela Constituição Federal de 1988. A Lei Fundamental de 1988, em seu artigo 226, reconheceu expressamente novos modelos de família, os quais foram denominados de entidades familiares. Dentre essas, encontra-se a família constituída pela comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes, o que recebeu, doutrinariamente, a nomenclatura de família monoparental. Da mesma forma que reconheceu expressamente outros modelos de família, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu como princípio a reger as relações do Estado com os indivíduos o princípio da liberdade do planejamento familiar, o que significa a impossibilidade de qualquer interferência do Poder Público na formação da família. Assegurou, em contrapartida, a prioridade na proteção dos interesses da criança e do adolescente, de tal sorte que há que se questionar acerca da possível limitação àquela liberdade de planejamento e formação da família face às 4 conseqüências negativas ou positivas em relação à formação e bem-estar da criança elemento desta comunidade familiar. Nesse contexto, é que nos vemos diante do questionamento que será objeto desta monografia, que é a polêmica que gira em torno da possibilidade ou não, no ordenamento jurídico brasileiro, de formação de família monoparental por opção por mulheres sozinhas utilizando- se da técnica de inseminação artificial. A análise e definição acerca da possibilidade ou não de inseminação artificial em mulheres sozinhas (mulheres solteiras, separadas, divorciadas e viúvas que não vivam em união estável) tem se destacado diante do desenvolvimento científico e da maior facilidade de acesso aos recursos de reprodução humana medicamente assistida no Brasil e no mundo. Apesar disso, constata-se que a legislação brasileira, até então, não disciplinou a matéria, havendo, portanto, uma lacuna em relação a esse tema, o que faz com que a polêmica se mantenha. Para, porém, analisar a questão e poder se chegar a uma conclusão é necessário que façamos, em um primeiro capítulo, uma evolução do conceito de família, partindo do Direito Romano à família contemporânea, em que se vê o reconhecimento jurídico das famílias monoparentais. Isso porque é a luz dos princípios e valores vigentes na sociedade contemporânea que se deve definir o questionamento, o que só é possível após uma evolução histórica do conceito de família. Feito isso, se destaca a importância de estudarmos, em um segundo capítulo, a terminologia “família monoparental ”, seu significado e 5 delimitações, bem como os fatores ou causas determinantes para sua formação e aumento constatado nos últimos 30 anos. Em um terceiro e último capítulo, serão expostas as polêmicas existentes acerca da utilização da técnica de inseminação artificial em mulheres sozinhas e a formação da monoparentalidade por opção através desta prática. Serão analisadas, portanto, as correntes doutrinárias existentes sobre o tema, disposições normativas que indiretamente regulamentam a questão e o projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional que pretende disciplinar a reprodução humana assistida no país. Destaca-se, contudo, que não se pretende com essa monografia esgotar o tema, nem pôr fim à polêmica que o envolve, definindo a melhor solução para os conflitos existentes, mas sim apresentá-los juntamente com as posições doutrinárias que tentam solucioná-los. Diante do exposto, passamos agora ao estudo do tema. 6 2. DESENVOLVIMENTO 2.1 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA: DA FAMÍLIA ROMANA À FAMÍLIA PLURAL CONTEMPORÂNEA A origem da família ou formação dos primeiros grupos familiais primitivos é tema que não encontra consenso nas teorias sociológicas desenvolvidas com esse objeto, podendo- se, em contrapartida, afirmar que a ausência de sua determinação pouca importância tem para o jurista ao analisar a evolução da família no Direito. Por essa razão, a evolução do conceito de família a ser aqui desenvolvida tem como ponto de partida o direito romano, que estruturou de forma inconfundível a família, conferindo- lhe “unidade jurídica, econômica e religiosa fundada na autoridade soberana de um chefe” (GOMES, 1999: 39), e que vai exercer influências determinantes nas legislações dos países ocidentais, dentre eles o Brasil. ... é mesmo nos romanos que está a referência de organização familiar, e é nele que o ordenamento jurídico brasileiro se pauta. Mesmo com todas as modificações e evoluções no sistema jurídico brasileiro, o referencial básico é, e será sempre, ao que tudo indica, o da família romana, ainda que neste momento aponte para uma outra direção com questionamento do modelo patriarcal. (PEREIRA, 1997: 15). Dito isso, temos que a civilização romana conceituava a família independentemente da consangüinidade, considerando como tal o conjunto de pessoas submetidas ao poder do pater famílias, englobando nesse grupo não apenas descendentes e esposa, mas também escravos. O estado de família, ou status familiae, servia de base para promover uma divisão entre as pessoas, as quais eram classificadas em sui juris e alieni juris , de tal modo que os seres que formavam a família jamais eram considerados iguais, seja do ponto de vista formal ou material, como se 7 demonstrará mais adiante. O pater familias pertencia à categoria de sui juris , sendo que as demais pessoas subjugadas ao poder daquele eram chamadas de alieni juris . A família romana tinha um chefe, que recebia o nome de pater familias e detinha toda a autoridade em que estava centrado o grupo familiar. Ele reunia em si a condição de sacerdote, administrador e juiz, ao mesmo tempo em que era pai e esposo. O pater reunia em si a condição de juiz porque a “justiça ” era por ele administrada dentro dos limites de sua família, detendo poderes de dispor livremente de pessoas e bens, aplicar penas corporais, vender e até matar, pois era ele quem “ julgava os membros de sua domus, como presidente do tribunal doméstico, que se reunia perante o lar”. (FIUZA, 2000: 30). Era também o sacerdote, porque era o responsável por comandar e promover o culto aos deuses domésticos e, por fim, o administrador ou chefe político, por ser ele quem administrava o patrimônio e os negócios, além de comandar todos os integrantes da família no exercício de suas funções, devendo esses lhe obedecer de forma incontestável. Em relação aos filhos, temos que os mesmos sujeitavam-se aos poderes ilimitados do pater, que detinha o jus vitae necisque, o que se traduz no direito de vida e de morte sobre a prole. Além disso, o pater tinha a faculdade de abandonar o descendente recém-nascido ou vendê-lo a outro da categoria dos sui juris (outro pater familias ). Eram, portanto, considerados meros objetos nas mãos do pater familias, não havendo qualquer tipo de limitação a esse pater potestas, a esse poder sobre a prole, a que permaneciam submetidos 8 por tempo indeterminado, pois não havia idade limite em que ocorria a sua emancipação nos moldes que vai existir no direito moderno e contemporâneo. A mulher, por sua vez, era totalmente subordinada ao poder marital do pater, permanecendo sem qualquer tipo de autonomia ou modificação em sua capacidade, pois da condição de filha passava à condição de esposa, não tendo direitos próprios e podendo ser repudiada pelo marido unilateralmente. ... a civilização romana colocava a mulher em plano secundário. Não lhe reconhecia equiparação de direitos ao homem (...). Como filha, era sempre incapaz, sem pecúlio próprio, sem independência, alieni iuris . Casada, saía sob a potestas do pai, e ingressava in domo mariti ali se prolongando a sua condição subalterna, pois que entrava in loco filiae e desta sorte perpetuava-se a sua inferioridade, prolongando- se por toda a vida a capitis deminutio que a marcava, e de que não se podia livrar numa sociedade individualista ao extremo, (...). Naquela sociedade, não havia para a mulher outras virtudes que as reconhecia às suas matronae: ‘ ser casta e fiar lã. (PEREIRA, 2002: 5) Em decorrência disso, os bens só pertenciam ao pater e eram por ele administrados, mesmo que fossem adquiridos por outros membros da família, já que esses não detinham capacidade para administrá-los. Os escravos eram considerados patrimônios do pater e também se submetiam a domenica potestas . O monopólio do pater sobre o patrimônio, no entanto, com o tempo, foi sendo enfraquecido seja pelo surgimento do casamento sem manus (fato a que iremos nos referir adiante), seja pela possibilidade dos filhos adquirirem determinadas modalidades de pecúlios. O primeiro deles era o peculium profecticium , isto é, peculium a patre profectum , consistente em uma pequena quantidade de bens (pursilla pecunia), concedida pelo pai ao filho para atender às suas necessidades ou para o desempenho de uma atividade comercial ou industrial. O segundo era o peculium castrense, constituído essencialmente dos bens adquiridos pelo filius familias durante o serviço militar. O peculium quase castrense abrangia tudo que o filho tivesse podido adquirir não só durante a militia civilis , mas em função dela, até mesmo um emprego. Esses elementos se unificaram para configuração do peculium adventicium(bona adventicia). (LIRA, 1999:83). O parentesco se subdividia em modalidades em Roma. O parentesco poderia ser por agnação (agnatio ), que seria como o parentesco civil e existia 9 entre todos aqueles que se submetiam ao poder do pater familias. O parentesco por cognação (cognatio ), diferentemente, exigia o laço da consangüinidade. Espelhado no parentesco natural, o direito romano passou a admitir também o parentesco por afinidade (affinitas ), que existia entre o cônjuge e os parentes do outro 1. A filiação era classificada em legítima e ilegítima, sendo essa decorrente de relações extramatrimoniais. A filiação ilegítima se subdividia em natural, quando resultante do adultério, e espúria, quando o pai era desconhecido, conforme disposto por Gomes (1999: 40). A família romana, ao evoluir, substituiu o parentesco por agnação pelo parentesco por cognação, restringindo progressivamente os poderes do pater familias. Com o advento do Império, a autoridade do pater familias passa a ser limitada pelo Estado. As pessoas alieni juris antes submetidas apenas à justiça do pater familias , passam a ter direito de recorrer ao magistrado em casos de abusos cometidos pelo pater. A mulher passa a ter direito a substituí-lo e ficar com a guarda dos filhos, de acordo com disposições de direito pretoriano, sendo que o pater familias tem limitado seu poder de castigar os filhos, podendo aplicar-lhes apenas penas moderadas. Além disso, o casamento que antes obrigatoriamente sujeitava a mulher à autoridade do marido, passa a se subdividir em duas modalidades, quais sejam, o casamento com manus , em que a mulher colocava-se sob o poder marital, e o casamento sem manus , em que a mulher permanecia sob a autoridade paterna. Isso, ao mesmo tempo em que restringe os poderes 1 O parentesco por agnação existia em relação aos descende n t e s masculinos do pater , a mulher casada in manu , os filhos adotados. O parentesco por cognação seguia o parentesco de sangue na linha descende n t e, ascenden te e colateral. O parentesco por afinidade existia em relação ao genro, nora, sogro e sogra e na linha colateral se limitava ao segundo grau. 10 absolutos do chefe da família, passa a conceder maior autonomia à mulher, que aos poucos vai adquirindo, inclusive, participação na vida social e política. Sobre o casamento no direito romano, tem-se que a sua dissolução era plenamente aceita e se realizava por ato de vontade das partes. A idéia romana de casamento é diferente da dominante em nossos dias. Para os romanos a affectio era um elemento necessário para o casamento que não devia existir apenas no momento da celebração do casamento, mas enquanto este perdurasse. O consentimento das partes devia ser inicial, mas continuado. Assim, a ausência de convivência e desaparecimento da afeição eram, por si só, causas necessárias para a dissolução do casamento. (WALD, 1999: 33). Além da dissolução voluntária do casamento pelo divórcio, que se realizava por acordo entre as partes e, portanto, podia ser entendido como um ato privado, o casamento acabava também por ato unilateral do marido – repudium , pela perda de liberdade de um dos cônjuges – capitis deminutio máxima, pela perda de cidadania – capitis deminutio medi - e, é claro, pela morte de um dos cônjuges. (GOMES, 1999: 40). Com base nessas informações, conclui- se, portanto, que a concepção de família no direito romano foi de uma organização fundada sobre base patriarcal e aristocrática, em que o princípio da autoridade era o que regia todas as relações familiares. (PEREIRA, 2002: 18 a 19) Com a queda do Império Romano no Ocidente e com o advento do catolicismo, a concepção romana de família se altera e passa a ser entendida a luz dos ensinamentos da doutrina cristã. Nas palavras de Fiuza (2000: 34), “a moral católica, aliada a outros fatores, afasta a Idade Média dos paradigmas da Antiguidade”, introduzindo- se o modelo de casamento indissolúvel com a consagração da família monogâmica2. 2 Nesse ponto, interes s a nt e transcrever m os a análise feita por César Fiuza sobre a consagração da indissolubilidade do casame n t o: “havia um grande obstáculo à 11 Sob a influência do direito canônico, a família foi reduzida ao grupo familiar de pais e filhos, deixando de ser ilimitada aos descendentes como era na família romana, consagrando- se como essencialmente conjugal, uma vez que só era reconhecida como tal a advinda do matrimônio. Por essa razão, reconhece-se que a concepção de família assume, com o direito canônico, cunho sacramental e se consolida como monogâmica, sendo que, na Idade Média do Século X ao XV, apenas o casamento religioso tem validade. Por ser um sacramento, a Igreja Católica se opõe à dissolução do matrimônio, o que fora admitido no direito romano, uma vez que se entende que o divórcio seria contrário à própria família, aí incluindo o interesse da prole, bem como a incapacidade do homem interferir e alterar uma união que “Deus realizou ” 3. Além de estabelecer a indissolubilidade do matrimônio, o direito canônico foi responsável pela construção da doutrina dos impedimentos matrimoniais e a distinção entre impedimentos dirimentes absolutos e impedimentos dirimentes relativos. Criou, portanto, os princípios e noções essenciais da teoria das nulidades do casamento, a qual foi adotada, com alterações, pela legislação civil de países ocidentais ainda vigentes. 3 indissolubilidade do casamen t o e à própria monoga mia, qual seja, a arraigada prática poligâmica entre os germanos e contínuo concubinat o entre os galo - romano s. A partir de Clóvis, quase todos os reis da dinastia merovíngia tiveram várias mulheres.(...) Na verdade, a monoga mia e a indissolubilidade do casame n t o só se tornara m prática geral no século X, primeiro entre o povo, depois no seio da nobreza, primeiro entre os galo - romano s, mais próximos do catolicismo, depois entre os francos”.(FIUZA, 2000: 34). Nesse ponto, interes s a nt e saber que, confor m e afirma Arnold Wald, no seio da própria Igreja Católica, houve divergências quanto à aceitabilidade da indissolubilidad e do casame n t o. Isso porque o Evangelho de São Mateus (19, 7- 9 e 5, 31- 32) conté m passage m em que admite o divórcio na hipótese de ter a esposa praticado o adultério. Em contrap ar ti da, em São Marcos (10, 11 - 12) e São Lucas (16- 18), a dissolução do vínculo matrimo nial é considera d o impos sível de ser realizado pelo ser human o, seja por qual motivo for. Em face da aparent e contra dição dos textos bíblicos, a doutrina canônica unificou a interpre t ação de que o texto de São Mateus estaria, na verdade, a admitir apenas a separação de corpos sem o direito de casar - se novament e, sendo que a indissolubilidade do matrim ô nio só tornou - se plena m en t e aceita por todos integrant es da Igreja no século XI. .(WALD, 1999: 33 a 34). 12 As normas de direito romano, porém, mantiveram sua influência sobre o pátrio poder, concebido ainda como um poder do pai sobre os filhos, as relações patrimoniais entre cônjuges e a manutenção do dote e da distinção entre filiação legítima e ilegítima. No entanto, o direito canônico inovou ao reconhecer como requisito de validade para o casamento o consenso dos noivos e relações sexuais voluntárias, desprestigiando a exigência do consentimento paterno, que ainda permanecia, no direito civil leigo, como requisito essencial para realização e validade do casamento, uma forma, é claro, de garantir o atendimento a interesses econômicos e políticos de determinadas famílias. E é nesse ponto que convém exaltar que a concepção católica de família deve ser diferenciada da concepção medieval de família. Isso porque, durante o sistema feudal, preponderou o elemento político e econômico em relação ao matrimônio e à própria família, a qual era vista como um organismo em que se agregavam pessoas, ainda na dependência da vontade do chefe de família, que tinham despesas comuns e atendiam aos interesses diversos que determinaram a união conjugal. Constata-se, porém, que tanto a família sob a concepção medieval, como a família do direito canônico, mantiveram uma característica da família romana, qual seja, a estruturação desse organismo sob a autoridade de um chefe, ou melhor, do marido- pai. É certo que a autoridade do chefe de família nessas duas concepções não equivale a todo poderio que detinha o pater familias romano, mas a importância e superioridade do chefe de família se mantiveram para estruturação e organização do grupo familiar, permanecendo, então, o modelo patriarcal. 13 Como dito alhures, o direito canônico não aceitava o divórcio. Porém, foi com sua evolução que se tendeu a regulamentar a separação de corpos e de patrimônio, que promovia a extinção da sociedade conjugal sem a dissolução do vínculo matrimonial. Essa separação de corpos constituiu- se em um “ato judiciário da autoridade religiosa ” , em que era necessária autorização do bispo e só era admitido em casos excepcionais como, por exemplo, a heresia e o adultério. Essa característica da separação de corpos, admitida no direito canônico, a diferencia do divórcio consagrado no direito romano, pois este tinha caráter essencialmente privado, uma vez que as partes só recorriam à autoridade caso se sentissem prejudicadas e não para realização do próprio ato em condições de normalidade. (WALD, 1999: 35). Sobre os efeitos dessa separação admitida pelo direito canônico, tem-se que, com ela, ocorria a extinção do dever de coabitação, mantendo- se o dever de fidelidade e de fornecimento de alimentos entre os separados. Com a Reforma Protestante, o caráter sagrado do casamento e a indissolubilidade do mesmo passam a ser questionados, sendo que se começa a defender o casamento apenas como um contrato natural, um ato da vida que deve decorrer e terminar de acordo com a vontade das partes, ou melhor, dos cônjuges. Em resposta a essa reação de protestantes, a Igreja Católica realiza o Concílio de Trento que reafirma a competência da mesma instituição para celebração e nulificação do casamento, consagrando mais uma vez o seu cunho sacramental, estabelecendo- se, ainda, o caráter solene da sua realização e a necessidade de ser o ato precedido de publicidade e 14 presenciado por testemunhas, características essas que se mantiveram até os dias atuais e foram incorporadas como exigência da legislação civil para validade do casamento. A partir desse ponto, dando um salto de anos e passando a enfocar o direito brasileiro, começa-se a analisar o que foi denominado de família moderna e que está retratada nos Códigos Civis e, no caso brasileiro, no Código Civil Brasileiro de 1916 15 e nas leis que o sucederam até a promulgação da Constituição Federal de 19884. Sobre essa família brasileira dita moderna, tem-se que o Código Civil de 1916, apesar de não estabelecer o poder marital aos moldes do direito romano, consagrou a chefia da família ao cônjuge varão. A mulher permaneceu sem qualquer participação na condução do grupo familiar, sem qualquer poder para decidir, inclusive, sobre questões relacionadas à prole comum, tendo sido incluída no rol de pessoas relativamente incapazes, dependendo, portanto, do marido, para agir e até para poder exercer qualquer atividade profissional. Tal dependência da mulher em relação à autorização do cônjuge varão se estendia, por exemplo, à sua capacidade de aceitar ou repudiar herança ou legado; ajuizar uma ação judicial, com algumas exceções; aceitar mandato; aceitar qualquer múnus público e etc. Além disso, não havia qualquer possibilidade da mulher optar por colocar ou não o patronímico do marido quando da realização do casamento, sendo obrigatória tal adoção. O próprio pátrio poder sobre os filhos poderia ser perdido, caso a mulher ficasse viúva e contraísse novo matrimônio. Por essa razão é que Pereira (2002), diz que: Não obstante o espiritualismo que ao Direito Romano trouxe o Cristianismo, a condição jurídica da mulher permaneceu, por toda a Idade Média e boa parte da Idade Moderna, inteiramente estática. Estática, quer dizer, inferiorizada. (...) mesmo os Códigos modernos não tiveram a coragem de romper barreiras dos 4 O Código Civil Brasileiro datado de 1916 refletiu uma concepção de família ultrapa s s a d a para a época, mas que equivale à concepção moderna de família conte m pla da pelo Código de Napoleão. Tal fato é justificado por alguns autores, como Ricardo César Pereira Lira (1999) e Arnold Wald (1999), por ter sido elabora do em 1899 e por ser o país, à época, essencial ment e rural, sem ter vivenciado o process o de indust rialização que foi marcante para o histórico da família no mundo e que será iniciado por volta das décadas de 40 e 50. Por essas razões, é que se afirma que tal código “manteve, num Estado leigo, uma técnica canônica e, numa sociedade do século XX, o privatis m o domés tico e o patriarcalis mo conservador do direito das Ordenações”.(WALD, 1999: 41). 16 preconceitos, e consagraram idéias que pouca diferença faziam dos pré-juízos quiritários. Se a mulher era[ começava a ser ] socialmente prestigiada, juridicamente lhe faltava a equiparação que a libertasse das malhas de um patriarcalismo deslocado no tempo e no espaço. Mas que persistia e durava. (PEREIRA, 2002: 5). A família moderna, então, se manteve patriarcal, monogâmica e matrimonial, uma vez que só era reconhecida como família e, portanto, só tinha a proteção e regulamentação do Estado, a advinda do casamento. Marginalizados se mantinham todos os agrupamentos de pessoas que, apesar de ligados por vínculos afetivos e objetivarem uma vida em comum, fugissem a essa regra. Quanto ao casamento, tem-se que o Código Civil de 1916 adotou os processos referentes à habilitação preliminar, os impedimentos e sua classificação, e, por conseqüência, as causa de nulidades e anulabilidades, bem como o caráter da indissolubilidade do vínculo matrimonial. Tudo que foi, como visto alhures, elaborado e consagrado pelo direito canônico. Sobre a filiação, o Código Civil de 1916 mantém a divisão advinda do direito romano em legítima e ilegítima, protegendo e defendo interesses apenas da primeira categoria, que é a advinda de relações sexuais matrimoniais, não se permitindo, inclusive o reconhecimento dos filhos ditos ilegítimos. Com isso, criaram-se categorias de filhos nascidos das relações extramatrimoniais, aos quais os efeitos decorrentes da paternidade, tal como o nome, os direitos a alimentos e direitos sucessórios, não eram resguardados5. 5 Os filhos ilegítimos eram classificados em filhos naturais, aqueles cujos pais, ao tempo de sua concepção, não eram casados, mas també m não tinha m qualquer impedim e n t o para que contraísse m o matrim ônio; os adulterinos, aqueles nascidos de pais que, na época da concepção, eram impedidos de se casare m, por serem, um ou ambos, já casados; filhos incestuos o s, aqueles cujos pais têm parentesco em grau que os torne impedi dos de se casare m. Os filhos naturais, diferente m e n t e dos demais da categoria de filhos ilegítimos, poderia m vir a ser legitimados, caso os pais viessem a contrair matrim ônio, ainda que depois de seu nasciment o. 17 Além disso, o mesmo Código consagra a presunção, advinda do direito romano, de que a criança concebida na constância de um matrimônio seja filho dos pais casados (pater is est quem iustae nuptiae demonstrant). Embora, sabendo- se que muitos autores sempre proclamaram a relatividade desta presunção, certo é que a dificuldade de fazer prova em contrário e a limitação de situações para fazê-lo, consagrava a esta presunção praticamente o caráter de absoluta. Diante disso, constata-se que a família retratada no Código Civil de 1916, além de matrimonializada, hierárquica e discriminatória, privilegiava o que é chamado hodiernamente de paternidade jurídica6. A concepção moderna de família vai se transformando de acordo com a evolução da própria sociedade e, em decorrência disso, leis posteriores ao Código Civil de 1916 vão alterando os direitos de família, o que tem início a partir da década de 30. A Constituição brasileira de 1934 se destaca por ser a primeira Constituição que se refere à família, assegurando proteção estatal à denominada família legítima, o que foi mantido nas Constituições brasileiras posteriores. Além disso, a Carta de 1934 trouxe novidades em relação à filiação, pois estabeleceu a isenção de quaisquer selos ou emolumentos no caso do reconhecimento dos filhos naturais e sujeitou à mesma tributação que se aplicava à herança recebida pelos filhos legítimos à herança recebida pelos filhos naturais. 6 Paternida de jurídica porque significa aquela que o direito diz ser, ou melhor, “pai é aquele que o sistema jurídico define como tal” (FACHIN, 1992:21) . 18 A Constituição de 1937, por sua vez, avançou também no tocante à filiação, pois igualou filhos naturais e legítimos em relação a direitos e deveres incumbidos aos pais. É também a Constituição brasileira de 1937 que, pela primeira vez, promove o reconhecimento de efeitos civis ao casamento religioso, dispositivo que irá se repetir nas Constituições posteriores. A regulamentação de tal dispositivo só vem em 1950, com a Lei nº 1110. Apesar de terem surgido diversas leis após a década de 30 que promoveram alterações no direito de família, talvez a lei que maior importância tenha para o estudo da evolução da família moderna seja a Lei nº 4121/62, também denominada de Estatuto Civil da Mulher Casada, que emancipou a mulher casada, lhe concedendo direitos equivalentes aos do marido perante a família e situação jurídica análoga. Foi esta Lei que deu início a um processo de democratização da sociedade conjugal, afastando algumas das discriminações que existiam contra a mulher no âmbito do casamento. Além dessa matéria, o Estatuto Civil da Mulher Casada disciplinou assuntos como guarda de filhos e regime de bens. Através de Emenda Constitucional n. 9 de 1977, o ordenamento jurídico pátrio passa a admitir a dissolução do vínculo matrimonial através do divórcio. Em decorrência disso, é promulgada a Lei nº 6515/77, que também é considerada muito importante para a evolução da família brasileira, uma vez que regulou a dissolução da sociedade conjugal, abolindo o desquite judicial e criando a separação judicial. Além de disciplinar sobre a dissolução da sociedade conjugal, tratou de regime de bens e sobre a proteção dos filhos, os quais, mesmo que advindos de casamentos nulos, passaram a ser 19 considerados legítimos, tendo ficado consagrada a igualdade de direitos de herança entre filhos legítimos e ilegítimos. Analisada a questão da legislação, não se pode deixar de destacar que, apesar do ordenamento jurídico reconhecer como família apenas a família matrimonial, sempre existiram outras famílias ditas ilegítimas, marginais ao direito, que eram consideradas apenas realidades fáticas. Nessa categoria, está o que será mais tarde denominado de união estável e família monoparental. Como é próprio do Direito, a realidade fática, apesar de por meio de um processo demorado, acaba por transformar a realidade jurídica, conquistando, aos poucos, o reconhecimento de alguns direitos. Foi isso, então, que começou a ocorrer com essas uniões entre homens e mulheres, não casados, que tinham caráter duradouro e objetivo de constituição de uma família. Com o passar do tempo, tais relações passam a ser entendidas como sociedades de fato entre o homem e a mulher e, a luz desse instituto, terão patrimônios adquiridos durante a convivência repartidos, em um primeiro momento se exigindo a comprovação de que ambos materialmente para sua aquisição e, em um segundo contribuíram momento, será presumida a participação da mulher. Como não havia direito a alimentos, para tentar de certa forma amenizar a difícil situação em que se encontravam as mulheres após a dissolução dessas uniões, os Tribunais passaram a conceder indenizações por serviços domésticos prestados durante a convivência em comum. 20 A prática jurisprudencial também amplia e facilita o reconhecimento de filhos e a investigação de paternidade, sempre que não forem excluídos por texto imperativo e explícito de lei. (WALD, 1999: 43). Nesse contexto, relevante se faz a referência aos fatos históricos e sociais que ocorreram e que promoveram a alteração da concepção de família tradicional até a então vigente. Nos referimos aqui a fatos sociais que foram extremamente marcantes para a modificação da sociedade como um todo. Destaca-se, nesse ponto, a influência determinante da industrialização, mais intensamente vivenciada no Brasil a partir dos anos 50, que gerou fenômenos importantes, como a urbanização e o êxodo rural, que promoveram a modificação das condições econômicas e sociais da época. A importância disso para a evolução da família, no caso especialmente a brasileira, se encontra diretamente relacionada à própria condição da mulher nessa sociedade, uma vez que de dona-de-casa dependente do marido, passase à condição de integrante da força de trabalho, de trabalhadora e responsável pela ajuda no sustento da prole, ao lado do marido. Os paradigmas familiares se vêm forçados a mudar. O espaço doméstico se reduz; o casal mediano é obrigado a compartilhar o mesmo leito, o mesmo cubículo conjugal. (...) A mulher se vê na contingência de trabalhar para o sustento do lar, assumindo essa nova postura com orgulho e obstinação. Começa a libertação feminina, fazendo ruir o patriarcalismo. .(FIUZA, 2000: 35). Outro fato de implicações nessa evolução social consiste na revolução sexual vivenciada, no país, nas décadas de 60 e 70, em que são postos em questionamento os paradigmas clássicos da monogamia, do patriarcalismo, do machismo e outros. Em decorrência de tudo isso, as pressões sociais aumentam no sentido de se reconhecer a igualdade dos sexos, a igualdade entre os filhos, a 21 democratização da sociedade conjugal e da própria concepção de família, no sentido de se reconhecer e proteger o que até então permanecia à margem do direito e era objeto de discriminação. Em resposta a esses e outros anseios sociais, é elaborada e promulgada a Constituição Federal de 1988, que vai representar o marco legislativo da família contemporânea. Consagrando o regime democrático, a Constituição Federal de 1988 traz, para o seio da família, a garantia da igualdade, da liberdade e da dignidade humana. Com isso, consagra a igualdade formal e material entre os sexos, afastando qualquer tipo de discriminação que decorra da condição de ser homem ou mulher, bem como de raças, religião, etc., reforçando, em dispositivo específico, a igualdade entre os cônjuges, o que vai representar o rompimento com o modelo patriarcal antes evidenciado pela chefia da família atribuída exclusivamente ao cônjuge varão. Da mesma forma, a Lei Fundamental acaba com qualquer tipo de diferenciação entre os filhos, sejam eles advindos de relações sexuais matrimoniais ou extramatrimoniais, dissociando, assim, o casamento da legitimidade da filiação. A igualdade entre filhos é assegurada de forma plena, tanto social, como juridicamente, de tal sorte que se proíbe qualquer forma de discriminação, aí incluindo a adoção. Em matéria de filiação na Carta Magna de 1988, tem-se a lição de Tepedino (2001): ... exsurgem, no ápice do ordenamento, três traços característicos em matéria de filiação: 1. A funcionalização das entidades familiares à realização da personalidade de seus membros, em particular os filhos; 2. A despatrimonialização das relações entre pais e filhos; 3. A desvinculação entre 22 proteção conferida aos filhos e a espécie de relação dos genitores. (TEPEDINO, 2001: 395 a 396) Nessa perspectiva de democratização, como bem disse Fachin (1999:125), a Constituição Federal de 1988 “recolheu ao direito o mundo dos fatos ”, ao alargar o conceito de família e reconhecer, ao lado da família matrimonial, a união estável e a família monoparental (comunidade formada por quaisquer dos pais e seus descendentes) como entidades familiares. A união estável, como dito, já vinha sendo, aos poucos, reconhecida pelos Tribunais, apesar de não o ser com a nomenclatura utilizada na Constituição de 1988 e sem ser reconhecida como família e gerar efeitos e direitos vários para os companheiros, o que surgirá com a legislação infraconstitucional. Sobre as entidades familiares denominadas de famílias monoparentais, temos a explicação de Viana (2000): Pese embora o inconformismo, o fato incontestável ao qual se rendeu nossa Constituição, é que ao lado do casamento constituíram-se outras entidades familiares, avultando das estatísticas o número de mulheres e homens sem par, criando isoladamente seus filhos.(...) A monoparentalidade é, em verdade, antítese real da família natural, mas que clamava respaldo jurídico justamente para proteção dos filhos expostos a toda série de discriminações nas relações públicas e privadas, ditadas pelo moralismo cristão casamentário.(VIANA, 2000: 31 a 32) Esse reconhecimento de outras formas de família feito pela Lei Fundamental representou a repersonalização da família e a consagração do pluralismo dos modelos familiares. E é esse pluralismo que marca a concepção contemporânea de família, de cunho existencialista e que se baseia na realização afetiva de seus integrantes. 23 Essa família plural foi reconhecida constitucionalmente, no art. 226, como instituição social imprescindível, de tal sorte que o próprio Estado tornou- se obrigado a conferir- lhe proteção especial. Com essa finalidade, o legislador constituinte fez constar, no texto constitucional, o dever estatal de assegurar a assistência à família em relação a cada um de seus membros, incluindo, nesse dever, a criação de mecanismos que inibam a violência doméstica. A importância da família para a sociedade e, por fim, para o próprio Estado 7, decorre, dentre vários fatores, do fato de que é nela que se encontra o meio mais apropriado de se efetivar o fundamento da República Federativa do Brasil, qual seja, a dignidade da pessoa humana. E é nessa perspectiva que: Propõe-se, por intermédio da repersonalização das entidades familiares, preservar e desenvolver o que é mais relevante entre os familiares: o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe, com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas. (GAMA, 2000: 520) Ao mesmo tempo em que é conferido ao Estado o dever de proteger a família, a Constituição Federal afasta a intervenção estatal no que toca ao planejamento familiar, concedendo ao homem e à mulher a liberdade para decidir sobre o assunto. Essa liberdade do planejamento familiar, no entanto, está, de certa forma, restrita, uma vez que condicionada aos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável8. 7 8 As finalidades básicas da família no mundo fático pode m ser resumidas em: a. garantir a perpet uação da espécie; b. contribuir para manut e nção e desenvolviment o do Estado, inserindo, em seu seio, pessoas prepara da s para vida social. (VIANA, 1998:26) Interessa nt e fazer m o s referência, nesse moment o, ao que é entendido por princípio da pater nida de respons ável, transcrevendo - se a lição de Sérgio Ferraz de que tal princípio deve levar em consideração que “a constituição da prole só é desejável quando os pais, naturais ou artificiais, têm condições de todo o gênero (inclusive econômicas) para garantir a vida, a criação, a manutenção, a saúde e educação dos filhos”.(FERRAZ citado por GAMA, 2000: 522) 24 Sobre a proteção da criança, tem-se que a Constituição Federal vigente consagra os princípios do melhor interesse da criança e do adolescente (art. 226, § 7º), princípio da prioridade da proteção absoluta e integral da criança e do adolescente (art.227, caput ), princípio e dever de convivência familiar, (art. 227, caput ), incluindo a colocação em família substituta em casos excepcionais, bem como o já citado princípio da isonomia entre os filhos, (art. 227, § 6º). Além disso, prevê normas especiais para sua proteção. A dissolubilidade do casamento é prevista em dispositivo próprio, consagrando- se o divórcio por conversão da separação judicial e o divórcio direto, com estabelecimento da exigência de lapso temporal de dois anos da separação de fato. Como não podia deixar de ser, após 1988, surgiram várias normas a fim de regulamentar e efetivar os princípios consagrados constitucionalmente em matéria de direito de família, além de se destacar que, com a nova Constituição, muitos artigos do Código Civil Brasileiro de 1916 não foram recepcionados, o que incentivou a produção legislativa nessa área. Dentre as várias leis posteriores a 1988 que trataram de assuntos relacionados à família, há algumas que se destacam como a Lei nº 8069/90, denominado Estatuto da Criança e do Adolescente, que regulamentou os direitos da criança e do adolescente em consonância com os princípios constitucionais, disciplinado matérias como adoção, em que há o estabelecimento da maternidade e paternidade socioafetiva; atuação das instituições na defesa dos interesses da criança e do adolescente; processo 25 de apuração de atos infracionais e aplicação de medidas sócio- educativas e etc. De importância também a ser destacada foi a Lei nº 8009/90 que definiu a proteção ao bem de família e a Lei nº 8560/92 que regulou a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento e conferiu legitimidade ao Ministério Público para promovê-la em situações definidas legalmente. Outras duas leis que se destacam são as que regularam os direitos dos companheiros, quais sejam, as leis nº 8971/94 e nº 9278/96, que estabeleceram diferentes requisitos para sua configuração, destacando- se que a primeira foi responsável por conferir direitos sucessórios e direitos a alimentos aos companheiros e a segunda regulou a divisão do patrimônio adquirido onerosamente durante a união, bem como conferiu o direito real de habitação ao companheiro sobrevivente. Mais recentemente foi promulgada a Lei nº 10406/02, que consiste no novo Código Civil Brasileiro, que trouxe alterações em matéria de direito de família e reuniu em si o tratamento de assuntos que antes eram objeto de leis esparsas, como, por exemplo, a união estável, bem de família, separação judicial e divórcio. É certo que o novo Código inovou em tratar de alguns assuntos como a paternidade de filhos nascidos por inseminação artificial realizada após a morte do marido, alterou alguns aspectos do direito a alimentos, substituiu a expressão pátrio poder por poder familiar, a fim de afastar qualquer distinção entre os cônjuges e consagrar que os filhos não são mais meros objetos dos pais, dentre outros assuntos, tudo, porém, no sentido de adaptar a legislação civil ao previsto no texto constitucional. 26 No entanto, deixou de tratar de uma das grandes inovações constitucionais que foi o reconhecimento de uma terceira forma de família que é a formada por quaisquer dos pais e seus descendentes. A família monoparental, então, permaneceu sem qualquer regulamentação, talvez em decorrência mesmo da própria história de marginalização desta entidade. O que importa, porém, é destacar que a legislação posterior à Constituição Federal de 1988 apenas veio regulamentar os dispositivos constitucionais que delinearam o perfil do conceito atual de família, o qual é marcado pelo pluralismo e reconhecido como meio de efetivar a dignidade humana. Essa concepção contemporânea de família, no entanto, ainda encontrase permeada de questões polêmicas que, como não poderia deixar de ser, vão surgindo com o desenvolvimento econômico, tecnológico e as modificações sociais e instigando a sociedade e, por fim, o Direito, a refletir e delinear novas formas de se entender a família. Exemplo disso é o que ocorre com a paternidade. Como dito alhures, por muito tempo a paternidade jurídica advinda do casamento permaneceu quase absoluta. Porém, com o advento da Magna Carta vigente, com a igualdade dos filhos, o pluralismo dos modelos familiares, essa paternidade presumida perde sua força, abrindo espaço para a busca da verdadeira paternidade.(BORGES, 2002:15). Surge o exame de DNA e a possibilidade de identificar geneticamente pai e filho, o que faz surgir a paternidade biológica como uma segunda modalidade. Essa paternidade biológica, então, com o tempo, passa a imperar na sociedade, que a consagra como verdadeira. No entanto, com o repensar 27 do direito e da família a luz da psicologia e do Direito comparado, a paternidade passa a ser entendida muito mais como uma função, em que se prepondera o afeto, do que algo biológico. Com isso, apresenta-se a paternidade afetiva 9. A discussão, porém, sobre qual seria a verdadeira paternidade, atualmente, é tema polêmico entre juristas, apesar de haver uma tendência a se exaltar o critério socioafetivo como o verdadeiro. E é nesse contexto de questões polêmicas envolvendo a família que surge, no seio da sociedade, da Medicina e do Direito, os questionamentos sobre a utilização de técnicas de inseminação artificial em mulheres sozinhas, tema central desta monografia. Diante da análise da evolução da família a luz do Direito, conclui- se, por fim, que a sociedade acabou por construir uma concepção de família muito mais ligada a questões afetivas e de companheirismo entre seus integrantes, em que se reconhece o direito à diferença e à liberdade de seu planejamento, consagrando- se diversos valores e princípios que coadunam com o paradigma do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido: A evolução do conhecimento científico - somado ao fenômeno da globalização, ao declínio do patriarcalismo e à redivisão sexual do trabalho – fez uma grande transformação da família, especialmente a partir da segunda metade do século passado. Como será a família desse novo século(...)? Não é necessário mais sexo para reprodução, e o casamento legítimo não é mais a única maneira de se legitimar as relações sexuais.(...) Afora a nostalgia de que a família na qual cada um de nós foi criado é a melhor, sua travessia para o novo milênio se faz em um barco que está transportando valores totalmente diferentes, como é natural dos fenômenos de virada de século. A travessia nos deixa atônitos, mas traz consigo um valor que é uma conquista, ou seja, a família não é mais essencialmente um núcleo econômico e de reprodução em que sempre esteve instalada a suposta superioridade masculina. Nessa travessia, carregamos a “boa nova” de que ela passou a ser muito mais o espaço para o desenvolvimento do companheirismo, do amor e, acima de tudo, embora sempre tenha sido assim, e será, o núcleo formador da pessoa e fundante do sujeito. (PEREIRA, 2003: 235 a 236) 9 A paterni da de socioafetiva equivale ao entendi m e n t o de que “a paternida de, em si mes ma, não é um fato natural, mas um fato cultural. (...)... ser pai ou mãe não está tanto no fato de gerar quanto na circuns t ância de amar e servir”.(VILLELA, 1979: 406 a 409). 28 2.2 FAMÍLIA MONOPARENTAL 2.2.1 TERMINOLOGIA Como se pode constatar no capítulo I, a denominada família monoparental, ou melhor, a entidade familiar formada por qualquer dos pais e seus descendentes, só veio a ser reconhecida como uma forma de família, pelo Direito brasileiro, em 1988 com a promulgação da Constituição Federal. Apesar de seu reconhecimento jurídico só ter ocorrido em 1988, essa entidade familiar sempre existiu como realidade fática, e talvez sua existência como tal seja muito mais longínqua do que se possa imaginar. Foi, porém, nas três últimas décadas que a família monoparental firmouse como um fenômeno social, passando a ser, então, objeto de estudos e preocupações por parte de sociólogos e juristas, que passaram a ser referir a ela como uma categoria específica de família. Sempre existiram viúvos e viúvas, mães solteiras e mulheres separadas ou abandonadas por seus maridos que assumem, por inteiro, o encargo de sua progenitura. Mas o crescimento dos anos 60 nos países industrializados produziu um impacto sobre a configuração das famílias. Como a maioria dos casais desunidos tem filhos, os lares dirigidos por um só genitor sofreram um aumento considerável e uma intensa visibilidade. Os analistas sociais lhes atribuem, então, uma denominação inédita: famílias monoparentais. O neologismo é amplo e procura designar, ao mesmo tempo, novas formas de monoparentalidade oriundas de rupturas voluntárias de uniões, bem como formas antigas (e desaparecidas) decorrentes de falecimentos e deserções de cônjuges, como também os nascimentos extramatrimoniais. (DANDURAND citado por LEITE; 1997: 724 a 725) Destacando- se como fenômeno social, a Inglaterra, por volta de 1960, é o primeiro país a fazer levantamento estatístico em que se refere à família monoparental, utilizando, entretanto, para designá-la, as expressões “oneparents families” ou “lone- parents families”. 29 A terminologia “família monoparental” só surge na França, em um estudo desenvolvido em 1981 pelo Instituto Nacional de Estatística e de Estudos Econômicos (INSEE), que utilizou o termo a fim de distinguir a comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos das uniões constituídas por um casal, tendo sido tal termo consagrado e mantido por toda Europa e outros países ocidentais. (LEITE, 1997: 21 a 22) Antes, porém, de se consagrar a terminologia, muito se discutiu se a melhor nomenclatura não seria “situações de ordem familiar de risco ”, “família unilinear” ou “lar monoparental”, chegando a se afirmar que seria melhor “falar de lar monoparental, ao invés de ‘ família monoparental ’, sobretudo quando o genitor que não mais mora ali se manifesta freqüentemente e preenche seu papel de genitor ” (SULLEROT citado por LEITE,1997: 24). Superadas essas discussões, predominou o termo “família monoparental” para designar lares compostos por genitor solteiro, viúvo, separado ou divorciado e seus filhos. Apesar de consagrada a terminologia, a monoparentalidade envolve uma série de questões a serem definidas a fim de que se possa efetivamente conceituar ou delimitar essas entidades familiares de forma unívoca, pois se trata de uma expressão que acaba por englobar várias situações diferentes e variáveis nas legislações de países ocidentais. São questões como idade limite do filho, sua dependência ou não de seus pais, a abrangência ou não de comunidades formadas por ascendentes e descendentes que não sejam pais e filhos, etc. 30 Nesse ponto, encontramos em direito comparado, diferentes soluções legislativas. A primeira que se deve fazer referência diz respeito à idade limite do filho que reside junto do pai ou da mãe, considerando a necessidade ou não de ser o descendente criança, para que se configure a monoparentalidade, bem como a caracterização de sua dependência em relação a seus ascendentes. Sobre isso, tem-se que, na França, por exemplo, a idade limite encontrase aos 25 anos, pois antes disso pode-se considerar o filho dependente. Na Alemanha e Estados Unidos, o filho é considerado dependente até 18 anos, enquanto que, na Inglaterra, a criança é dependente até os 16 anos ou, se estuda em período integral, até os 19 anos de idade. Outros países, porém, não delimitam pela idade a dependência do filho e nem condicionam a configuração da monoparentalidade a tal fato, como é o caso da Bélgica. (LEITE, 1997: 22 a 23). Outra questão que se destaca é a referente ao fato da comunidade formada por um dos pais e seus filhos viverem independentemente ou estarem integrados em lares com outras pessoas, ou seja, o fato de residirem sozinhos ou viverem com parentes, como, por exemplo, os avós. Aqui, da mesma forma, verifica-se que as legislações sobre o assunto variam 10, mas predomina a compreensão de que famílias monoparentais são aquelas que vivem isoladamente e também as que vivem em lares com outros parentes. 10 A Suécia é um exemplo de país que exige que a comunida de forma da por um dos pais e seus filhos tenha indepen dê ncia a fim de configurar a monopare n t alidade, enquanto que, como dito, a maioria dos países considera família monopa re n t al indepen de n t e m e n t e do fato de viverem ou não com outras pessoas (Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, Suíça, Bélgica, Irlanda, e outros). 31 No Brasil, como não existe legislação infraconstitucional que tenha por objeto o tratamento da família monoparental, não há delimitação acerca da configuração da monoparentalidade em relação a determinada idade do filho ou do fato da comunidade formada por pai ou mãe e seus descendentes viverem isolada e independentemente ou com outros parentes, uma vez que a Constituição Federal, no § 4º de seu art. 226, apenas previu: “Entende-se, também, por entidade familiar a comunidade formada por quaisquer dos pais e seus descendentes”. A Constituição Federal limita-se a dizer que reconhece como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Não faz qualquer distinção, o que inibe o intérprete. Nesse conceito está inserida qualquer situação em que um adulto seja responsável por um ou vários menores. Isso permite concluir que ela pode ser estabelecida desde sua origem, ou decorre do fim de uma família constituída pelo casamento. Nesse diapasão é possível que ela se estabeleça porque a mãe teve um filho, mas a paternidade não foi apurada, ou porque houve adoção, ou pode resultar da separação judicial ou do divórcio. Nessa linha temos a família monoparental formada pelo pai e o filho, ou pela mãe e o filho, sendo que nos exemplos há o vínculo biológico, ou decorre de adoção por mulher ou homem solteiro. Nada impede que o vínculo biológico que une os membros dessa família, não decorra de congresso sexual, mas resulte de procriação artificial. A mãe solteira submetese à inseminação artificial, não sabendo quem seja o doador. (VIANA, 1998: 32). Da mesma forma, não há que se falar, no direito pátrio, apenas em crianças como membros dessa entidade familiar, o que limitaria, para fins de reconhecimento e proteção do Estado Brasileiro, as famílias monoparentais às comunidades formadas por mãe ou pai e filhos que possuíssem até 12 anos de idade, pois a partir de então deixaria de existir a monoparentalidade, em razão de que esse filho deixaria de ser criança e passaria a ser considerado adolescente, conforme definido no Estatuto da Criança e do Adolescente11. 11 Art.2º da Lei nº 8069 / 9 0 assim dispõe: “considera - se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até 12 (doze) anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12(doze) e 18 (dezoito) anos de idade”. 32 Sobre a necessidade de comprovação ou não de dependência dos filhos em relação aos pais com os quais residem, também há que se exaltar que não existe nenhuma norma no ordenamento jurídico brasileiro que restrinja a configuração da família monoparental à comunidade formada por um dos pais e seus filhos em que exista qualquer relação de dependência entre seus membros. Há que se fazer referência à opinião de Leite (1997): Enquanto na França determinou- se a idade-limite desta criança – menos de 25 (vinte e cinco) anos-, no Brasil, a Constituição limitou- se a falar em descendentes, tudo levando a crer que o vínculo pais x filhos dissolve-se naturalmente com a maioridade 21 (vinte e um) anos, conforme disposição constante art. 9º do CC brasileiro [de 1916, e com 18 anos, conforme art. 5º do CC brasileiro de 2003]. (LEITE, 1997: 22). Diante disso, tem-se, então, esclarecido que apesar do termo ‘ família monoparental ’ ser consagrado na maioria dos países para designar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, não se pode estabelecer com clareza os limites e requisitos para sua configuração de forma única, principalmente em se tratando do direito pátrio que nada prevê sobre essa entidade familiar, seja para defini- la melhor, seja para estabelecer formas de proteção pelo Estado como foi determinado pela Lei Fundamental. Por fim, há que se destacar que a necessidade de regulamentação desta entidade familiar advém principalmente da necessidade de se efetivar o que foi garantido na Constituição Federal, ou seja, a proteção especial do Estado, e se efetivar a própria garantia de igualdade e não discriminação entre as diversas formas de famílias,uma vez que, a ausência de políticas públicas especificamente destinadas à proteção da família monoparental fazem com que esta seja tratada como se fosse algo parecido ou próximo às uniões estáveis e uniões matrimoniais, desrespeitando- se, assim, as suas 33 especificidades e diferenças em relação às outras formas de família. Nesse sentido: O que cria problema nas famílias monoparentais e constitui sua especificidade está vinculado à possibilidade de sua existência própria, um ambiente social, concebido e organizado em torno da família ‘ b iparental ’. Não é no interior destas famílias que se deve procurar sua ‘ h omogeneidade ’ ou sua ‘identidade ’ mas na sua relação com o exterior – ao lado da organização social – que as obriga a conviver com um ambiente onde sua situação não foi prevista. (GUILLOT citado por LEITE; 1997:28) 2.2.2 CAUSAS DA MONOPARENTALIDADE Como dito alhures, a família monoparental sempre existiu, mas teve um considerável aumento nos últimos anos. Tanto o surgimento, quanto o significativo aumento dessas famílias verificado em levantamentos estatísticos, decorrem de fatores e causas que estão além do Direito, que se encontram em questões sociais, econômicas e políticas. Isso pode ser facilmente constatado através da evolução da própria civilização, mais especificamente das modificações sociais que ocorreram nessas últimas décadas e que foram responsáveis pelo quadro que se apresenta hoje. A análise da família monoparental, mesmo que sob o enfoque do jurista, deve percorrer também a análise das causas que desencadeiam a monoparentalidade, até porque é conhecendo as origens e necessidades sociais que o Direito pode regulamentar e definir soluções para possíveis problemas surgidos nesse âmbito. Dito isso, tem-se que relevante se faz destacar que a definição dessa causas sociais, políticas e econômicas não pode ser vista com rigidez, uma vez que, como é natural de todo e qualquer fenômeno social, o tema é fluido e transitório. Isso porque a manutenção da própria família monoparental 34 consiste em uma situação que se tem constatado ser transitória, ou melhor, as famílias monoparentais, em sua maioria, são constituídas e mantidas transitoriamente, caminhando para uma nova união desse pai ou dessa mãe que vive com os filhos, apesar de vivenciarmos uma época em que o número de adeptos da vida solitária tem aumentado. Pode-se, porém, apontar alguns fatores que se destacam como determinantes para o surgimento da família monoparental na sociedade, bem como para sua propagação. A primeira e mais antiga dessas causas da formação de famílias monoparentais encontra-se na viuvez, seja do homem ou da mulher, em que há descendentes que se mantêm sob os cuidados ou apenas residindo com o cônjuge sobrevivente. Isso porque, como ficou constatado na evolução histórica feita no capítulo I, o casamento sempre foi consagrado como formador da família, não se podendo, em alguns momentos da história, separar a idéia de matrimônio do conceito de família. Apesar de ser a causa mais remota da monoparentalidade, a proporção de famílias monoparentais decorrentes da viuvez tem sido menor em relação a outros fatores a partir da década de 1980, seja porque a expectativa de vida dos homens aumenta ou mesmo pelo aumento de separações e divórcios. (LEITE, 1997: 60). A mais vetusta monoparentalidade se esboçava nas figuras das viúvas e das mães solteiras, vitimadas por uma concepção não querida, que engrossavam as fileiras da monoparentalidade, porém, modernamente, as famílias monoparentais se recrutam, mais e mais, entre as ex-famílias biparentais regulares, tornadas monoparentais em decorrência de separação ou divórcio dos cônjuges, ou ainda, pela opção de ter um filho mantendo- se sozinho, o que é referendado pela Lei 8.069/90 – o Estatuto da Criança e do Adolescente – que no seu art. 42 estabelece permissivo para a adoção de menores por pessoas solteiras. (TALAVERA, 2000:176) 35 Independentemente disso, a viuvez é apontada como uma causa da monoparentalidade. Outro fator que determina a formação de famílias monoparentais é a separação judicial e o divórcio, sendo considerado um dos principais fatores. A tendência separatista, no Brasil, se consolidou notadamente a partir da década de 70, apesar de não se poder afirmar que tal fenômeno coincida com a promulgação da Lei nº 6515/77, pois, como se sabe, essa lei só veio atender aos anseios sociais pela abolição do desquite e criação de uma forma de permitir a dissolução do próprio vínculo conjugal, permitindo- se novas uniões a partir de então. Essa tendência que, nos dias atuais, se mostra cada dia mais reforçada, tem como justificativa o entendimento da sociedade contemporânea de que a dissolução do casamento é acontecimento completamente normal e até previsível para alguns, assim como a idéia de que não é necessário o casamento para que o homem ou a mulher se realize afetivamente e seja feliz. Essa mudança de mentalidade desencadeia, então, o aumento de famílias monoparentais consecutivas aos divórcios e separações judiciais. As famílias monoparentais advindas do divórcio e separação judicial, como quaisquer outras, podem ser formadas por homens ou mulheres separados ou divorciados cuidando de seus filhos. Entretanto, apesar de saber que alguns homens tendem a buscar efetivar sua função paterna, ainda predomina, na sociedade, a idéia de que a criança ou o adolescente permanece melhor com a mãe, o que significa dizer que a maioria das famílias monoparentais consecutivas ao divórcio ou separação judicial são formadas por “mulheres chefes de família” (LEITE, 1997: 40 a 41). 36 Embora aqui se destaque essa causa de formação da família monoparental, é necessário lembrar o que foi dito alhures quanto à transitoriedade que marca a monoparentalidade, o que significa que essas famílias monoparentais formadas depois da separação e do divórcio podem não se manter assim por muito tempo, uma vez que essa mãe ou esse pai pode vir a contrair novo matrimônio ou mesmo constituir uma união estável. Outro fator que desencadeia a monoparentalidade é a dissolução das uniões estáveis, reconhecidas como entidades familiares. As uniões estáveis também sempre existiram, apesar de não serem tratadas com esse nome ou mesmo não merecerem o reconhecimento do ordenamento jurídico pátrio até a Constituição Federal de 1988. Em decorrência disso, famílias monoparentais consecutivas à ruptura de uniões, que hoje seriam reconhecidas como uniões estáveis, também sempre existiram, mesmo antes de 1988. É certo, porém, que a situação de marginalidade dessas uniões causava sérios prejuízos e problemas socioeconômicos para essas famílias, seja enquanto monoparentais, seja enquanto resultado de uniões extramatrimoniais. Isso porque o Estado não destinava qualquer tipo de proteção ou de auxílio para esses grupos, enquanto a sociedade discriminava e nem mesmo os filhos escapavam da discriminação e da posição de inferioridade perante os filhos matrimoniais de seus pais. Ultrapassada, porém, essa questão, tem-se que a ruptura de uniões estáveis constitui um importante fator determinante da monoparentalidade, principalmente nas classes de baixa renda, se destacando que a grande 37 maioria das famílias monoparentais assim formadas encontra-se entre as mulheres e seus filhos. Um outro fator determinante para a monoparentalidade é a “mãe solteira”, que só será reconhecida plenamente no fim do século XX, apesar de sempre ter existido. Essa categoria sempre se viu marginalizada à legislação familiar e foi discriminada por muitos anos, principalmente com a diferenciação entre filhos legítimos e ilegítimos abolida pela Constituição Federal de 1988. Inicialmente, a idéia de “mãe solteira” estava estritamente ligada à idéia de adolescentes ingênuas e imaturas que engravidavam e, assim, passavam a ser vítimas de uma situação social desfavorável, ou à idéia de mulheres que, contrariando costumes sociais da época, mantinham relações sexuais antes do casamento e engravidavam involuntariamente e eram eternamente discriminadas no meio social em que viviam. No entanto, essas características de “mães solteiras”, apesar de não terem deixado de existir, não são mais as únicas na atualidade. Isso porque, aos poucos, com a revolução sexual e independência da mulher, foi surgindo, na sociedade, mães sozinhas que se encontram nessa situação porque assim desejaram, isto é, surgem as “mães solteiras” por opção ou voluntárias em contraposição às mães solteiras involuntárias, para as quais a maternidade foi “imposta ”. Nessa categoria de mães sozinhas voluntárias, Leite (1997: 54) faz uma distinção entre aquelas que advêm de uma relação familiar tradicional como o casamento ou mesmo a união estável, a qual colocaram fim, e que, mesmo após isso, desejam e têm um filho para ser criado apenas por elas, admitindo 38 a idéia de assumirem novas relações de casal; e aquelas que, sem qualquer pretensão de constituir uma relação de casal duradoura, decidem ter um filho, conscientes de que o criarão sozinhas. Em ambas situações tem-se a maternidade desejada e a opção por um modelo de vida independente de qualquer companheiro ou marido e que será compartilhado apenas com o filho. Uma das possíveis justificativas, além das já expostas, para o aumento de mães sozinhas voluntárias encontra-se no fato de que o modelo de vida denominado “celibatário ” 12 tem sido enfocado socialmente como o melhor a ser adotado e se caracteriza por estar vinculado sempre à idéia de um adulto só e bem sucedido. “ O celibato é o modelo de vida escolhido pelas novas gerações. A escolha por esse novo modelo de vida sentimental tem sido observado nas camadas econômicas mais favorecidas tanto entre homens quanto entre mulheres” .(PALMA, 2001: 71) Por isso, não raro encontrarmos mulheres bem sucedidas nas suas profissões que desejam realizar seu desejo de ser mãe, sem desejarem se vincular ao pai desse almejado filho. Em razão de se tratar de uma questão que é encarada sobre duas perspectivas, por alguns apontadas como conflitantes, quais sejam, os interesses da criança e os da mãe, a maternidade voluntária é objeto de polêmica, principalmente após a diferenciação ocorrida nos últimos tempos entre maternidade e sexualidade, o que está intrinsecamente relacionada com a utilização de técnicas de reprodução medicamente assistida. 12 Essa express ão é utilizada por autores como Leite (1997), Talavera (2000) e Palma (2001). 39 Assim, as “mães solteiras”, ou melhor, mães sozinhas, constituem uma das causas da monoparentalidade que mais tem se destacado na atualidade e que monoparentalidade tem como provocado uma uma situação revolução indesejável, na idéia imposta da por circunstâncias alheias à vontade dos adultos que as constitui, uma vez que começam a surgir famílias monoparentais por opção. Com base no exposto, se conclui que a monoparentalidade advém de várias causas e essa diversidade permite, inclusive, estabelecer categorias de famílias monoparentais, havendo necessidade, porém, de se destacar que, além dos fatores aqui citados, há outros tantos de natureza socioeconômica que interferiram significativamente para o aumento de famílias monoparentais. 2.3 A FAMÍLIA MONOPARENTAL FORMADA POR MÃES SOZINHAS POR OPÇÃO UTILIZANDO TÉCNICAS DE INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL O número de famílias monoparentais, nas últimas décadas, aumentou significativamente por diversos fatores, os quais foram explicitados no capítulo anterior. Dentre eles, há um fator determinante da monoparentalidade ao qual a maioria das pesquisas envolvendo esta forma de família tem focado suas atenções, qual seja, a maternidade celibatária voluntária, ou melhor, as mães sozinhas por opção. O destaque a esse fator ou categoria de famílias monoparentais tem ocorrido não só porque representa uma das mais significativas causas de propagação da monoparentalidade, mas, sobretudo, porque inova ao retirar o estigma de que a família monoparental decorre de circunstâncias impostas na vida de seus elementos, sendo considerado como uma situação que pretende ser transitória, uma vez que indesejada. Isso porque, nessa categoria de mães 40 sozinhas voluntárias, encontramos a formação da família monoparental por opção dessas mulheres, como algo desejado e que, a princípio, não é visto como uma forma de família transitória, pois não se almeja a formação de uma relação de casal posteriormente. No seio desta categoria de famílias monoparentais, encontram-se mães sozinhas voluntárias que realizam o desejo de ser mãe através da adoção, ou de um relacionamento sexual descompromissado do qual resulta gravidez, ou de um romance em que o parceiro não se dispôs a assumir e exercer a paternidade, ou mesmo através da utilização de técnicas de inseminação artificial. A “mãe solteira”, ou melhor, sozinha (porque pode se tratar de uma mulher solteira, separada, divorciada ou viúva que, após o término desta relação de casal, deseja ter um filho independentemente do pai biológico deste), que deseja utilizar-se da adoção para concretização de seu sonho, encontra, na legislação brasileira, a possibilidade e os caminhos para fazê-lo. Isso porque, a Lei nº 8069/90, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente, permite a adoção por pessoas maiores e capazes, independentemente do estado civil, bem como do fato de manterem ou não uma relação de casal. É nesse instituto consagrado na referida lei que vemos o reconhecimento, pelo Direito brasileiro, da paternidade e maternidade socioafetiva, a qual já nos referimos e em que se vê mais claramente que a paternidade e a maternidade não são fatos biológicos ou jurídicos, mas fatos culturais. É na adoção que se consagra que os vínculos biológicos nada interferem para efeito do vínculo de filiação, o qual se estabelece através da opção e do exercício das funções de pai e/ou mãe com o filho, o qual é 41 desligado, salvo para efeitos de impedimento matrimonial, dos laços com a família natural. A maternidade, portanto, pode ser constituída por meio da adoção, enquadrando- se na denominada maternidade socioafetiva, podendo realizar-se por mulheres solteiras, separadas, divorciadas ou viúvas, independentemente de uma relação de casal, fato que em nenhum momento interferirá para o reconhecimento desta comunidade formada por mãe e filho como uma família digna de proteção. As mães sozinhas por opção também podem realizar seu desejo de maternidade sem se vincularem a um marido ou companheiro, através do simples fato de manterem relacionamento sexual com um homem determinado, que tem ou não um vínculo afetivo com as mesmas, mas que não pretende exercer a paternidade. Nessa categoria, Leite (1997), diz em “mulheres planejadoras”, que optam por ter um filho e planejam tudo mesmo antes do nascimento deste, podendo, inclusive, escolher o “parceiro ideal”; e as “mulheres idealistas”, que têm a maternidade como uma opção, mas ela é algo que decorre de um relacionamento amoroso vivenciado pela mulher com determinado homem, sendo que este jamais será um pai para o filho e, mesmo assim, ela assume esse filho como algo desejado, Leite (1997: 76)13. Nessas situações, a única previsão do Direito brasileiro refere-se à preservação do direito do filho de buscar a sua paternidade biológica por meio da Investigação de Paternidade, e, posteriormente, os efeitos e direitos inerentes a esse reconhecimento. 13 Nas palavras do citado autor: “... há aquelas que se decidiram ser mães solteiras e planejara m este desejo partindo à procura de um genitor para seu filho (são as ‘ planejadoras’), e aquelas que não planejara m a maternidade solteira, mas encontrara m um genitor do qual elas quere m um filho”.(LEITE, 1997: 75). 42 Há, por fim, uma outra possibilidade de mulheres sozinhas formarem famílias monoparentais por opção que consiste na utilização de técnica de inseminação artificial, sendo essa questão polêmica quanto a sua admissibilidade no ordenamento jurídico brasileiro. Como não podia deixar de ser, esse questionamento advém do desenvolvimento da Medicina que, a cada dia, afasta qualquer impossibilidade ou dificuldade física do ser humano em efetivar seus desejos de se reproduzir, de ter prole. O desenvolvimento dessas técnicas de reprodução medicamente assistidas promove, então, uma ebulição de questionamentos jurídicos, éticos e religiosos envolvendo questões cada vez mais complexas, bem como promovem uma revisão de conceitos e princípios até então consagrados quanto à maternidade e paternidade, incentivando, ainda mais, a concretização da idéia de que ambos decorrem de fatos sociais e culturais, atos precisos de vontade e não apenas biológicos ou jurídicos. E é nesse contexto que a realização da técnica de inseminação artificial em mulheres sozinhas tem merecido destaque entre esses temas que instigam as discussões e reflexões de médicos, psicólogos e, principalmente, juristas a fim de se buscar solução moralmente aceita, útil e efetiva para a polêmica envolvendo os interesses da mulher e da futura criança. Cabe aqui fazermos referência ao fato de que a inseminação artificial pode ser classificada em homóloga ou heteróloga: “diz- se homóloga a inseminação quando o sêmem e o óvulo pertencem ao marido e à esposa; e heteróloga será se um destes elementos é doado por estranho” (RIZZARDO, 1994: 246). 43 Tem-se que, quanto à possibilidade de realização dessas modalidades de inseminação artificial em mulheres casadas ou que vivem em união estável, não há, no Brasil, maiores embaraços ou opositores, mesmo em se tratando de inseminação heteróloga em que se preserva o anonimato do doador de sêmen. Tanto no Projeto de Lei em tramitação no Congresso Nacional que pretende tratar de reprodução assistida, como na Resolução nº 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, não há oposição à inseminação artificial em mulheres casadas ou que vivem em união estável. A Lei nº 10.406/02, Código Civil Brasileiro vigente, por sua vez, tratou superficialmente da inseminação artificial. O único dispositivo, no capítulo do Direito de Família, que fez referência à utilização destas técnicas, encontra-se no art.159714, que estabelece a presunção de paternidade do marido em relação aos filhos concebidos por sua esposa que sejam advindos de fecundação artificial, seja homóloga ou heteróloga, desde que autorizada pelo marido, ainda que o mesmo já tenha falecido. Assim, com base na autorização do marido, o Código Civil Brasileiro, mediante a previsão da determinação da paternidade jurídica em hipóteses de utilização de inseminação artificial em mulheres casadas e viúvas, demonstrou a tendência no esvaziamento do conteúdo biológico da paternidade, valorizando muito mais o critério do consenso, da manifestação de vontade do marido em ser pai (MEIRELLES, 2002: 398). 14 Assim dispõe o Código Civil Brasileiro vigente, em seu artigo 1597: “Presume m - se concebidos na constância do casame nto os filhos: (...) III – havidos por fecundação artificial homóloga, mes mo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”. 44 No entanto, o Código Civil Brasileiro apenas permitiu a inseminação artificial em relação a uma espécie de mulher sozinha, qual seja, a viúva, não definindo, contudo, a situação das demais mulheres sós (separadas, divorciadas, solteiras) que pretendam utilizar-se deste recurso científico. Para suprir a ausência de regulamentação, em 1999, foi apresentado ao Congresso Nacional um Projeto de Lei, de autoria do Senador Lúcio Alcântara, que pretende regular a reprodução medicamente assistida no país. Esse Projeto de Lei, que será analisado posteriormente, permitiu, em sua versão original, o acesso de mulheres sozinhas às técnicas de reprodução assistida, sendo, porém, modificado durante a tramitação no Senado Federal para estabelecer que somente as mulheres casadas ou em união estável podem utilizar-se desses recursos científicos. Constata-se, assim, que não há, ainda, consenso sobre a possibilidade ou não da mulher sozinha ter acesso à inseminação artificial. Doutrinariamente, a questão mostra-se igualmente divergente, havendo divisão entre os que estudam a matéria, cujos argumentos, em resumo, aqui serão expostos. Primeiramente, deve-se fazer referência aos argumentos contrários à possibilidade de se realizar técnicas de inseminação artificial em mulheres sozinhas, sendo eles sustentados, entre outros, por Leite (1995) e Soares (2000). O primeiro dos argumentos utilizados por aqueles que defendem a sua proibição encontra-se no fato de que, com a inseminação artificial em mulher 45 sozinha, estar-se-ia impondo a ausência da posição paterna à criança desde o início de sua vida, o que não seria nada benéfico ao seu desenvolvimento. A paternidade ignorada representaria um grande prejuízo psicológico, ético e social para a criança fruto da inseminação artificial no que tange à sua formação e desenvolvimento, afirmando- se que nenhuma mulher seria capaz de suprir a ausência do pai para o filho, por mais bem intencionada que esteja ao decidir ser mãe. Para reforçar esse argumento, os seus defensores buscam demonstrar, através de dados estatísticos, que a monoparentalidade representa um risco para formação de uma criança, vinculando este fator aos índices de incidência de criminalidade, uso de substâncias entorpecentes, ocorrência de gravidez na adolescência e outros, aos filhos criados apenas por um dos pais. (...) atualmente se tem irrefutável evidência empírica de que a estrutura ou forma da família é de grande importância para a felicidade individual e para a estabilidade social.(...) A família baseada no casamento é singularmente benéfica para o bem estar dos indivíduos e das sociedades.(...) a evidência é esmagadora de que essas ‘ f ormas familiares ’ alternativas são arautos de grande sofrimento para os indivíduos e causas de substancial desastre social e econômico para as nações. (WARDLE, 2002: 26 a 27). Ademais, sustenta-se que ao se admitir a possibilidade de inseminação artificial em mulheres sozinhas se estaria conferindo poder desenfreado à mulher, a qual poderia determinar a posição da criança como uma posse materna e não como uma pessoa, pois a mãe estaria amputando a ascendência de seu filho pela metade, privando- o do direito de investigar seu pai, em face do anonimato que é garantido aos doadores de sêmen. Toda criança tem, normalmente, um pai e uma mãe. Ou melhor, em toda criança existe um direito fundamental ao biparentesco, como vocação natural e legítima de ter um pai e uma mãe, e de ser educada por ambos. (...) está definitivamente comprovado o prejuízo que representa para uma criança ser criada e educada só por uma pessoa, sem a identificação paterna e materna. E, acrescenta RibellinDevichi, ao admitir- se a inseminação artificial de conveniência [a realizada por mulheres solteiras, por exemplo] estar-se-ia aceitando o surgimento de uma 46 criança órfã de pai, amputando sua ascendência pela metade, contrariamente ao que ocorre no divórcio, ou no caso de morte. (LEITE, 1995: 336 a 357) Com base nisso, é que dizem que “deverá esta última prática [inseminação artificial de mulher solteira] ser coibida por propiciar o aparecimento de mais crianças com a paternidade ignorada” .(SOARES, 2000: 560 a 561). Por essa razão, para os que defendem a proibição da inseminação em “mulheres solteiras”, há o entendimento de que o princípio da dignidade da pessoa humana em relação à futura criança estaria sendo ofendido, pois as repercussões negativas sobre o seu equilíbrio, notadamente o psíquico, diante do fato de não ter um pai reconhecido, devem ser analisados de forma a se dar prioridade absoluta aos interesses do menor quando em confronto com os interesses e anseios da mulher sozinha que almeja ser mãe pela inseminação artificial. Não haveria, então, que se cogitar do direito da mulher em efetivar os seus “direitos reprodutivos ” ou mesmo exercer a liberdade do planejamento familiar assegurado constitucionalmente e regulamentado por lei infraconstitucional, em face do prejuízo ao desenvolvimento psicológico da criança. E é nesse contexto que Leite (1995) posiciona-se contrariamente à tese de que haveria um direito reprodutivo a todos constitucionalmente assegurado, pois, para ele, nem haveria realmente um direito a ter filhos, sendo este apenas uma faculdade, uma liberdade e que, por isso, tal argumento levantado pelos defensores da possibilidade de inseminação artificial em “mulheres solteiras” não teria nenhuma sustentabilidade. 47 O direito a ter filhos, tantas vezes invocado, existe realmente? Este ´direito ´invocado é apenas uma faculdade, ou melhor, uma liberdade. (...)... procriar não é um direito. Até poderia ser se a liberdade em jugo constituísse um direito pessoal ou um direito real. Caso se tratasse de um direito pessoal, seria necessário um doador, sendo credor o reivindicante. O devedor poderia ser compelido a fornecer seus gametas (que, no caso em tela, é impossível). Se o considerássemos um direito real, assimilar-se-ia a criança a um produto, encomendado e programado. A criança passaria a ser objeto de propriedade, proposta igualmente refutável a partir da consideração que uma criança não pode ser objeto de propriedade. (LEITE, 1995: 355-356) Diante disso e do suposto prejuízo à identidade pessoal da criança, sabendo-se que as únicas limitações à liberdade no planejamento familiar são a dignidade da pessoa humana e a paternidade responsável, sustenta-se que a inseminação artificial em “mulheres solteiras” não poderia ser admitida no Estado Brasileiro por contrariar uma dessas limitações, qual seja, a dignidade da criança. Outro argumento utilizado diz respeito ao fato de que a realização de inseminação artificial em “mulher solteira” contraria a própria finalidade e razão do desenvolvimento das técnicas de reprodução assistidas. Essas teriam sido criadas não para satisfazer desejos individuais de homens ou de mulheres sozinhos, mas sim para atender aos anseios de casais com a natural intenção de ter filhos, mas que, diante de uma impossibilidade ou dificuldade física, não conseguiriam conceber uma criança sem a utilização desses recursos científicos. Alega-se que: a inseminação artificial não foi desenvolvida para atender interesses egoísticos de particulares, muito menos de grupos ou segmentos de conduta excepcional na sociedade; a legitimidade deste recurso repousa na natural intenção de ter prole, própria de casais, como decorrência natural da relação matrimonial, ou, da entidade familiar.(...) A inseminação deve atender a um projeto parental e nunca a um projeto impessoal. (LEITE, 1995: 336) Além disso, Leite (1995) sustenta que o reconhecimento pela Constituição Federal das famílias monoparentais, através do seu art. 226, § 4º, 48 não importa dizer que esse dispositivo permite a inseminação artificial em “mulheres solteiras” em face da igualdade imposta às várias formas de família. Entender dessa forma, diz o autor, seria entender que a Constituição Federal reconheceu tal entidade com vistas à sua proliferação, o que não condiz com a realidade.(LEITE, 1995: 354). Ademais, afirma que “ as famílias monoparentais ali citadas [art. 226, § 4º da CF], transformaram-se em monoparentais por força das circunstâncias (separação, divórcio, abandono, etc), mas eram, inicialmente, famílias normais, constituídas de pai, mãe e filhos” e que, por isso, também não se pode aceitar a inseminação em “mulheres solteiras”, pois “estar- se-ia programando a existência de uma criança a uma família monoparental” (LEITE, 1995: 354 a 356). Seria, então, a institucionalização deliberada da monoparentalidade. Por outro lado, há doutrinadores, como Gama (2000), Viana (2000) e Sá (2003), que defendem a possibilidade da realização de inseminação artificial em “mulheres solteiras”, utilizando- se de outros argumentos que pretendem responder aos contrários à sua posição. Defende-se a possibilidade de realização de inseminação artificial em mulheres sós, fundamentando, primeiramente, que é a própria Constituição Federal que o permite. Isso porque, no art. 226, § 7º, da Magna Carta, foi estabelecido o princípio do livre planejamento familiar, que consagra o direito de todo indivíduo de vivenciar sua vida sexual e reprodutiva de forma livre e sem intromissão do Estado nesta, podendo, inclusive, recorrer científicos disponíveis para consecução de seus objetivos. aos meios 49 Para regulamentar tal dispositivo, foi promulgada a Lei nº 9.263/96, que estabelece regras sobre o planejamento familiar. Essa Lei, ao tratar de seu objeto, não promove qualquer diferenciação entre mulheres casadas ou não, mulheres que vivem uma relação de casal ou não, o que, segundo os defensores da inseminação artificial em mulheres sozinhas (solteiras, separadas, divorciadas ou viúvas), consistiria um forte indicativo de que, no ordenamento jurídico brasileiro, não há óbice à tese por eles defendida. Tais regras estão previstas no §7º, do artigo 226, do texto constitucional, sendo que em 1996 sobreveio a Lei nº 9.263, que passou a regular, a nível infraconstitucional, normas a respeito do planejamento familiar, não mais restritas ao casal, mas também ao homem e à mulher, individualmente, considerados. De acordo com o tratamento normativo fornecido por esta Lei, pode-se depreender o reconhecimento da existência do direito de qualquer pessoa (homem ou mulher) ao planejamento familiar, incluindo a adoção de técnicas de fertilização para que haja a reprodução humana, o que conduz à constatação de que a lei autoriza a monoparentalidade obtida por via procriação assistida. (GAMA, 2000: 526) Nessa seara, para os defensores, ao não se permitir o acesso às técnicas de inseminação artificial às “mulheres solteiras”, e, em contrapartida, não haver nenhuma oposição ao acesso a essas técnicas por mulheres casadas, está se promovendo uma discriminação entre pessoas do mesmo sexo apenas com base no seu estado civil, pelo que fica evidente a ofensa à isonomia. Não se vê, portanto, qualquer justificativa plausível para que se promova tal diferenciação, sem que esta tenha o cunho discriminatório, principalmente quando se analisa a questão à luz do artigo 226, §7º da Constituição Federal. Ademais, a própria dignidade humana estaria ofendida em relação a essa “mulher solteira” que almeja ter um filho, uma vez que o direito de ter prole estaria intrinsecamente relacionado com o princípio basilar da República 50 Federativa do Brasil, já que o desejo de reprodução é considerado instinto natural do ser humano. Sobre o potencial conflito entre os interesses da mulher em utilizar a inseminação artificial para gerar um filho e os interesses e possíveis prejuízos que isso geraria à futura criança, há autores15 que sustentam que o interesse da criança, que deve ser preponderante, não estaria, a priori, sendo desrespeitado pela monoparentalidade formada através da inseminação artificial em “mulheres solteiras”. O interesse da criança deve ser preponderante, mais isso não implica concluir que seu interesse se contrapõe, de forma reiterada, ao recurso às técnicas de procriação artificial e que ela possa vir a integrar uma família monoparental, desde que o genitor isolado forneça todas as condições necessárias para que o filho se desenvolva com dignidade e afeto. .(BRAUNER citado por MEIRELLES, 2002: 395) Se é indiscutível que a família tradicional constitui o campo fértil e sadio para a gestação e desenvolvimento da personalidade do filho, não pode ser olvidado o fato de milhares de crianças e adolescentes criados em lar monoparental, devido ao decesso de um dos pais, separação do casal, nulidade do casamento, enfim, fatalidades da vida que lhe retiram o desejado amparo conjunto dos pais. Nem por isso, essa falta acarreta ao filho distúrbios psicológicos ou desadaptação social que não possam ser contornadas por adequada assistência, esmerada educação e redobrado amor. Logo, a preocupação dos doutrinadores, médicos e biologistas, com a inseminação artificial da mulher sem parceiro, não deve levar à emissão de regras simplesmente coibidoras da prática...(VIANA, 2000: 33). Ademais, não há provas concretas, mas mera especulação, no fato de que uma criança que tenha como mãe mulher só, possa ser socialmente mais desajustada que outra rejeitada pelo pai biológico. Aliás, procriação, paternalismo e paternidade são coisas diversas e exatamente por isto é que hoje está tão claro para o Direito que pai e mãe se reconhece pelo ambiente de amor, pela circunstância de servir, não importando tanto mais os laços de sangue. Se é fato que, da técnica de reprodução assistida nascerá uma criança sem pai, é fato também que ela pode ter todo o amor daquela mãe que, conscientemente, escolheu trazê-la ao mundo.(SÁ, 2003: 6). Reforça esse argumento o fato de que o ordenamento jurídico brasileiro, como já fora explicitado alhures, permite a adoção de crianças e adolescentes 15 Entre eles podem o s citar Rui Geraldo Camargo Viana, Maria Cláudia Crespo Brauner e Maria de Fátima Freire de Sá. 51 por mulheres ou homens solteiros, mesmo que não mantenham uma relação de casal. Tal previsão legal reforça a posição que defende a possibilidade de inseminação artificial em “mulheres solteiras”, uma vez que demonstra que se entende que não é prejudicial à criança ou adolescente ser criado e educado por apenas um dos pais, ou melhor, em uma família monoparental. Isso porque, se o argumento utilizado pelos contrários a essa tese fosse verdadeiro, ou seja, se efetivamente a criança fosse seriamente prejudicada com o fato de viver em uma família monoparental formada após a inseminação artificial em uma mulher sozinha, jamais teria sido permitido a adoção por pessoas solteiras, já que a finalidade desse instituto é assegurar o melhor interesse da criança e a sua proteção integral. “ ... diante da viabilidade da realização de adoção por apenas uma pessoa, não há razoabilidade em se negar a adoção de técnica de reprodução humana assistida, inexistindo elemento discriminador razoável a justificar tal proibição.” (GAMA, 2000: 538). É certo que os que se opõem a essa tese alegam que a adoção por pessoas solteiras não poderia ser parâmetro para se permitir a inseminação artificial em mulheres sozinhas, por tratar de crianças nascidas que se encontram em situação de risco. Porém, tal argumento não é considerado suficiente pelos defensores da tese para afastar a defesa da analogia nesse caso à adoção por pessoas solteiras. Outro argumento que se utiliza é que, apesar de não ser lei em sentido formal, a Resolução nº 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, que disciplina a utilização de técnicas de reprodução assistida, não estabelece a 52 obrigatoriedade da mulher ser casada para que se utilize a inseminação artificial, exigindo- se apenas a sua capacidade. Isso é entendido como uma prova de que é possível, no Brasil, a inseminação artificial em “mulheres solteiras”, bem como um indicativo da legitimidade desta prática. Quanto a uma suposta ofensa ao direito da criança em saber sua origem biológica e à dificuldade quanto à definição de um pai para a criança, tem-se que Gama (2000) apresenta uma solução para a questão, utilizando- se das regras estabelecidas para a adoção, exaltando como verdadeira paternidade a socioafetiva. (...) Diversamente do modelo tradicional, o vínculo familiar moderno é formado por laços socioafetivos, restando superado o dogma da unicidade da paternidade e maternidade. (...) A natureza jurídica da paternidade, maternidade e filiação resultantes da adoção de técnicas de reprodução assistida, sob a modalidade heteróloga, ou mesmo sem vínculo genético entre os envolvidos, deve ter em conta sentimentos nobres, como o amor, o desejo de construir uma relação afetuosa, carinhosa, reunindo as pessoas num grupo de companheirismo, lugar de afetividade. (...) O instituto da adoção, como atualmente é concebido pela Lei nº 8.069/90, pode ter perfeita aplicação aos casos envolvendo as técnicas de reprodução humana medicamente assistida sob a modalidade heteróloga ou mesmo em relação às pessoas desimpedidas... Há, na legislação brasileira, a previsão a respeito da possibilidade de uma criança ter dois pais, o biológico e o socioafetivo, o que vem a excepcionar o princípio da unicidade do vínculo paterno e, conseqüentemente, do vínculo materno. (...) Evidentemente, no caso de reprodução humana medicamente assistida, há diversas peculiaridades, sem que, no entanto, haja prejuízo na aplicação dos princípios gerais e norteadores da adoção, tal como o instituto é concebido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, sob inspiração dos preceitos e normas da Constituição Federal de 1988. (GAMA, 2000:539) Um questionamento mais recente que se faz aos que são contrários a possibilidade de inseminação artificial em mulheres sós diz respeito à inovação trazida pelo artigo 1597 do Código Civil Brasileiro vigente, que permite a inseminação artificial homóloga ou heteróloga, atendidas algumas condições, em viúvas, atribuindo a paternidade da criança ao falecido marido. O problema levantado por Sá (2003), refere-se ao fato de que, se proibida a prática de inseminação artificial em “mulheres solteiras” no país, estaria a 53 se verificar uma discriminação entre as mulheres sozinhas. Isso, além de contrariar o princípio diferenciação não da isonomia, uma vez que se entende que a teria justificativa plausível, vai contra os próprios argumentos daqueles que se opõem ao acesso dessas mulheres às técnicas de inseminação artificial, pois a criança fruto da inseminação em viúva também será privada da convivência e da figura paterna desde o início de sua vida, da mesma forma que ocorre nos casos de inseminação em mulheres solteiras, separadas ou divorciadas, enfim, em mulheres sozinhas. Será que a disposição do Código Civil, especificamente a de letra ‘a ’ , infringe a dignidade da criança pelo fato de a mesma nascer sem a presença do pai? Ou esta mesma dignidade estaria garantida apenas em razão do reconhecimento da paternidade no registro de nascimento? Ora, a viúva é mulher só. A diferença da sua situação em relação às mulheres sozinhas férteis e inférteis reside, unicamente, na presunção da paternidade, ainda que post mortem. Claro que o reconhecimento da paternidade no assento de nascimento da criança já se configura um ‘ b om começo ’, no sentido de fazer nascer algumas obrigações jurídicas, como a pensão alimentícia e direitos sucessórios, mas não faz de ninguém pai ou mãe. (SÁ, 2003: 10). Há que se fazer referência, por fim, ao posicionamento de Meirelles (2002) que, apesar de entender ser possível a utilização de técnicas de inseminação artificial em mulheres solteiras, restringe o direito ao acesso à reprodução assistida apenas às mulheres sós inférteis. Para a autora: ... o recurso à procriação medicamente assistida, consistindo em intervenção onerosa, invasiva da intimidade do casal ou da mulher, a acarretar repercussões psicológicas e familiares, deve representar a última alternativa para a pessoa que pretende procriar, e não simplesmente um modo alternativo de reproduzir. Por isso, há que se entendê-lo sob a finalidade terapêutica, que lhe é elemento fundante. Excluída deve ser, por isso, sua utilização para fins diversos, como buscar a geração de um filho por intermédio de outra pessoa única e simplesmente para não interromper, em razão da gestação, determinadas atividades profissionais. E justamente em razão de sua finalidade terapêutica, o uso de métodos de reprodução assistida deve ser incluído no conceito de saúde, previsto na Constituição da República, no artigo 196, como direito de todos e dever do Estado. Nesse sentido, não há como negar o acesso às técnicas de reprodução assistida somente pelo fato de ela ser solteira. (MEIRELLES, 2002: 395). 54 Entendendo, portanto, ser o acesso a técnicas de reprodução assistida um direito à saúde da mulher solteira infértil, Meirelles (2002), sustenta que cabe ao Estado assumir a responsabilidade pelos tratamentos necessários para que a mulher, independentemente do seu estado civil, realize o desejo de ser mãe, desde que, porém, haja a infertilidade. Admite-se, desta forma, que os distúrbios da função reprodutora constituem um problema de saúde, devendo o Estado assumir a responsabilidade quanto ao acesso das pessoas aos tratamentos para esterilidade e o recurso à reprodução assistida (R.A.). (MEIRELLES, 2002: 394) Doutrinariamente, a polêmica está travada nesses termos. Quanto ao tratamento da questão nos diversos ordenamentos jurídicos no mundo, tem-se que a maioria dos países proíbe ou ao menos limita o acesso de mulheres sozinhas às técnicas de inseminação artificial, podendose citar França, Itália, Alemanha, Suécia e Portugal, sendo que se destaca como país que permite essa prática a Espanha, conforme legislação datada de 1988.(SOARES, 2000: 572). Como já ressaltado, a fim de garantir a prioridade aos interesses da criança e sua proteção, foi apresentado no Congresso Nacional, em 09 de março de 1999, pelo Senador Lúcio Alcântara, Projeto de Lei do Senado de nº 90, que pretende regulamentar a reprodução assistida no Brasil. Referido Projeto de Lei encontra-se, atualmente, em trâmite na Câmara de Deputados desde junho de 2003, após ter tramitado por quatro anos no Senado Federal, quando foram feitas modificações, tendo sido, inclusive, apresentado substitutivo que foi ao final aprovado por essa Casa Legislativa. 55 A redação original desse Projeto de Lei, no que concerne à questão da possibilidade de utilização de técnicas de inseminação artificial em “mulheres solteiras”, apesar de estabelecer dispositivos concernentes à realização dessas técnicas em mulheres casadas ou que vivem em união estável, não vedava o acesso às referidas técnicas para mulheres sozinhas inférteis. 56 Isso fica claro ao se examinar o artigo 2º16 do Projeto de Lei em sua redação original, que, ao dispor sobre os requisitos para a utilização de Reprodução Assistida, exigia, quanto à mulher receptora da técnica, além da comprovação da infertilidade e da necessidade da utilização das técnicas de reprodução assistida, apenas a capacidade jurídica e a sua autorização livre e consciente. Não se estabelecia, portanto, a necessidade da mulher receptora ser casada ou viver em união estável, assim como ocorre na Lei Espanhola nº 35 de 1988. No entanto, durante a tramitação legislativa no Senado Federal, foi apresentado um substitutivo a esse Projeto de Lei, que modificou o citado artigo. Este substitutivo, cujo relator foi o Senador Roberto Requião, alterou a orientação do referido Projeto de Lei sobre a possibilidade de utilização de inseminação artificial por mulheres sozinhas, fazendo constar, no mesmo artigo 2º, no parágrafo 1º, que “ somente os cônjuges ou o homem e a mulher em união estável poderão ser beneficiários das técnicas de Procriação Medicamente Assistida”. 16 A redação original do referido Projeto de Lei previa: “Art. 2º. A utilização da RA só será per mitida, na forma autorizada pelo Poder Público e confor me o disposto nesta Lei, para auxiliar a resolução dos casos de infertilidade e para a prevenção e trata m e nto de doenças genéticas ou hereditárias, e desde que: I – tenha sido devida m e nte constatada a existência de infertilidade irreversível ou, caso de trate de infertilidade inexplicada, tenha sido obedecido o prazo mínimo de espera, na forma estabelecida em regula m e nto; II – os demais trata m e ntos possíveis tenha m sido ineficazes ou ineficientes para solucionar a situação de infertilidade; III – a infertilidade não decorra da passage m da idade reprodutiva; IV – a receptora da técnica seja mulher capaz, nos termos da lei, que tenha solicitado ou autorizado o trata me nto de maneira livre e consciente, em docume nto de consentime nto infor m ado a ser elaborado confor me o disposto no art.3º; V – exista probabilidade efetiva de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para a mulher receptora ou a criança; VI – no caso de prevenção e trata me nto de doenças genéticas ou hereditárias, haja indicação precisa com suficientes garantias de diagnóstico e terapêutica”. 57 Deste modo, venceu, no Senado Federal, a corrente doutrinária que defendia a proibição de realização de técnicas de inseminação artificial em mulheres sozinhas. Como dito, o Projeto de Lei do Senado nº 90 de 1999 ainda tramitará na Câmara de Deputados, o que significa que tal dispositivo (que proíbe o acesso às técnicas de reprodução assistida às mulheres sozinhas) poderá ser alterado. Entretanto, não se pode olvidar que a proibição absoluta do acesso de mulheres sozinhas às técnicas de inseminação artificial pode trazer problemas futuros, não só porque não atende ao princípio da isonomia, visto que não se compatibiliza com o previsto no Código Civil Brasileiro, que o permite unicamente em relação às mulheres viúvas, mas também porque a eficácia de tal norma, como se sabe, é, desde já, duvidosa, o que poderá gerar riscos à saúde da mulher, da futura criança e até mesmo a saúde de todos pelo fato de mulheres sozinhas submeterem-se a essas técnicas de forma clandestina, sem qualquer controle do Poder Público. Nesse sentido: Não temos a menor intenção de incentivar situações que poderiam ser taxadas de levianas, mas, proibir resolveria o impasse criado pela Medicina? Como fazer valer uma legislação que permita apenas o uso das técnicas por casais ou pelo homem e mulher em união estável? Sabemos que a Medicina Reprodutiva é muito mais desenvolvida por clínicas particulares do que por hospitais públicos. Aliás, o alto custo do tratamento impede pessoas de baixa renda de valerem-se das técnicas. Assim, saber se os médicos cumprem ou não a legislação, mormente quando imaginamos que toda essa discussão tem como enfoque seres microscópicos é o grande desafio do Direito. .(SÁ, 2003: 11). Sobre a ineficácia de uma restrição absoluta neste assunto, ainda podemos citar Jordan (1999), que, apesar de ser contrária à formação de famílias monoparentais por mães sozinhas através da inseminação artificial, não entende que normas proibidoras da prática sejam a melhor solução para a polêmica. 58 No vamos a entrar en la debatida cuestión acerca Del derecho o la legitimidad de la mujer sola a engendrar voluntariamente un hijo com auxilio de la ciencia medica, entre otras cuestiones, porque compartimos la inoperatividad de establecer normativas nacionales denegatorias, cuando cabe la possibilidad de utilizar la técnica necesaria permitida por la legislación de otro país, por el sencillo procedimiento de desplazarse a aquél. Además, la experiencia nos muestra que, salvo situaciones excepcionales, cuando una persona desea realmente hacer algo lo hace.Y, en ese sentido, cuando una mujer decide tener un hijo, si su fisiologia se lo permite, puede tenerlo independientemente de su estado civil, de que viva sola o en pareja y de que decida tenerlo mediante acto humano por intevención de varón, reproducción asistida, etc. (JÓRDAN, 1999) Além disso, há que se destacar, nesse contexto em que se afirma ser desaconselhável a proibição de formação de famílias monoparentais através da inseminação artificial em mulheres sós, os ensinamentos de Villela (1982) acerca da coerção e responsabilidade jurídica: Todo direito não-patrimonial de família é prenhe de situações para as quais a coerção não oferece qualquer resposta satisfatória. (...)... necessário reconhecer que uma ordem jurídica baseada na coerção é indigna da transcendental grandeza do homem. Se se quer para o futuro expressões convivenciais inspiradas no amor e na justiça, na dignidade e na confiança, tem-se que restituir ao homem a superior liberdade de responder, ele próprio, aos deveres que decorrem da vida em sociedade. (VILLELA, 1982: 17, 31 a 32) É claro, porém, que o acesso irrestrito a essas técnicas às mulheres sozinhas não pode ser considerado a melhor solução. No entanto, poderia se pensar em uma forma de se conciliar as duas correntes, permitindo- se que a possibilidade ou não de se realizar a inseminação artificial em mulher sozinha e o seu potencial conflito com os interesses da criança seja decidida em cada caso concreto, submetendo- se a mulher a um procedimento, como ocorre na adoção, em que se verificarão as suas condições, bem como seus reais propósitos e interesses, para se chegar à conclusão se é ou não recomendável a formação de uma família monoparental através dos recursos da reprodução medicamente assistida no caso em apreço17. Isso se justifica 17 Nesse ponto, tem - se que Maria de Fátima Freire de Sá apresent a questão : “As sanções de que trata a seção VII do Projeto de Lei sem um trabalho de conscientização. Justificável, contudo, exame pretende o uso da técnica, para que abusos não aconteça m, solução semelhant e para a nº 90 / 9 9 de nada valerão psicossocial na pessoa que e para a preservação da 59 porque a idéia de uma única resposta correta vai exigir um senso de adequabilidade, de forma que só é possível resolver o impasse diante do caso concreto. Por fim, deve-se ressaltar uma vez mais que a polêmica envolvendo a questão permanece em aberto. Não se podendo, entretanto, esquecer que qualquer tentativa de se solucioná-la deve partir necessariamente de uma aplicação ampla e irrestrita tanto das regras, quanto dos princípios constitucionais, pois só assim se garantirá a legitimidade da resolução da controvérsia. integridade da criança que irá nascer”.(SÁ, 2003: 14). 60 3. CONCLUSÃO Conforme explicitado, o conceito de família sofreu várias transformações ao longo da evolução das sociedades ocidentais, o que, conseqüentemente, repercutiu no tratamento jurídico sobre o assunto. A família, inicialmente reconhecida social e juridicamente apenas como a comunidade formada por meio do casamento, com as modificações sociais, políticas e econômicas, passou de um conceito único e restrito para um conceito plural, em que se reconhece como tal também as uniões estáveis e as comunidades formadas por qualquer dos pais seus descendentes. E é nesse contexto que surge, pela primeira vez no Direito brasileiro, o reconhecimento das comunidades formadas por um dos pais e seus filhos como uma família digna de proteção, a qual recebe doutrinariamente a nomenclatura de família monoparental. Embora constitucionalmente reconhecida, a família monoparental permaneceu, de 1988 até os dias atuais, sem qualquer regulamentação, de tal sorte que não se pode definir, no Direito brasileiro, qualquer tipo de delimitação acerca de sua configuração. Constatou- se, ademais, que tal omissão representa, em verdade, o descumprimento da garantia de proteção e tratamento igualitário destinado às várias formas de família reconhecidas no ordenamento jurídico pátrio, o que talvez ainda seja um resquício da história de exclusão e marginalidade desta entidade familiar. Apesar de só ter sido reconhecida juridicamente em 1988, a família monoparental sempre existiu no meio social, tendo sido constatado um aumento significativo no número de entidades familiares desta espécie nas últimas décadas. Por essa razão, o estudo desta forma de família foi se 61 tornando cada dia mais importante, buscando- se definir as causas determinantes de sua formação, bem como as necessidades específicas desta forma de família. Dentre os diversos fatores determinantes da formação das famílias monoparentais, destaca-se a categoria de “mães solteiras”, ou melhor, de mães sozinhas por opção, seja porque promove uma modificação na idéia de que as famílias monoparentais decorrem de circunstâncias que impõem a sua formação a seus elementos, seja porque, diante do desenvolvimento de técnicas de reprodução assistida, a possibilidade de mulher sozinha realizar seu desejo de ser mãe através de inseminação artificial gera questionamentos sociais, religiosos e jurídicos. Como visto, no tocante ao questionamento envolvendo a possibilidade de realização de inseminação artificial em mulheres sozinhas, não há consenso na doutrina e muito menos legislação que disponha especificamente sobre o problema. A corrente doutrinária que se posiciona contrariamente à possibilidade de inseminação artificial em mulheres sozinhas tem, em síntese, como argumentos o prejuízo à futura criança, a ofensa ao princípio do melhor interesse dessa e seu direito a ser criado em uma família biparental. Por outro lado, a que entende ser possível a formação de família monoparental por mulheres sozinhas através da utilização de técnica de inseminação artificial defende que é a própria Constituição Federal que lhes garante tal direito, por garantir tanto a liberdade do planejamento familiar, quanto, através do direito à saúde e dignidade humana, os direitos reprodutivos. Além disso, alegam que a garantia de isonomia veda a restrição 62 ao acesso às técnicas de reprodução assistida apenas com base no estado civil. Outro argumento consiste no fato de ser possível a adoção por pessoa solteira no Brasil, independentemente desta manter uma relação de casal contínua e duradoura. Por fim, questiona-se que não seria de se admitir que, enquanto o artigo 1597 do Código Civil Brasileiro permite a realização de inseminação artificial em viúva, que é também um tipo de mulher sozinha, a mesma faculdade fosse negada às demais mulheres sós (solteiras, separadas e divorciadas). Ressalte-se que tramita hoje no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado Federal nº 90/99, de autoria do Senador Lúcio Alcântara, que pretende regulamentar essa matéria. A atual redação desse Projeto abriga a tese dos que são contrários à formação de família monoparental por mulheres sozinhas por inseminação artificial. Não obstante a polêmica, por fim, cumpre destacar que adotar qualquer um desses posicionamentos sem maiores reflexões poderia conduzir a conclusões precipitadas. O questionamento, portanto, continua sem resposta, mas a reflexão persiste. É importante que em todas as análises que envolvam o presente tema não se perca de vista a Constituição Federal e os seus princípios informadores, pois só assim estaremos caminhando com passos seguros para encontrar a solução legítima para a questão, vez que fundamentada no Texto Maior de nossa sociedade. 63 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORGES, Lisieux Nidimar Dias. Da paternidade plural no direito brasileiro. (Monografia), Belo Horizonte, PUC-Minas, dez. 2002. 60p. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de out. de 1988. Código Civil, Código de Processo Civil, Constituição Federal, 5.ed, CAHALI, Yussef Said (org), São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003 BRASIL. Lei nº 8069, de 13 jul. de 1990, dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, e dá outras providências. Código Civil, Código de Processo Civil, Constituição Federal, 5.ed, CAHALI, Yussef Said (org.), São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. BRASIL. 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