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semeiosis
semiótica e transdisciplinaridade em revista
transdisciplinary journal of semiotics
Ícones, índices e símbolos em
um trecho de O nome da rosa
Sousa, Richard Perassi Luiz de; Professor do PósDesign - Programa de
Pós Graduação em Design e Expressão Gráfica pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) | [email protected]
Ghizzi, Eluiza Bortolotto; Professora do Departamento
de Comunicação e Artes da Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul (UFMS) | [email protected]
Machado, Amanda Pires; Mestranda do PósDesign - Programa
de Pós Graduação em Design e Expressão Gráfica pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) | [email protected]
resumo
A teoria semiótica fundada por C. S. Peirce e desenvolvida por Umberto Eco
indica que as representações linguísticas são símbolos. No trecho em estudo,
os símbolos linguísticos foram articulados para narrar a chegada de frei
Guilherme de Baskerville em frente à abadia, que é o principal cenário da trama
literária. Para tanto, há descrições de cenas, de acontecimentos e de diálogos
compositores da narrativa. Em decorrência da leitura do texto, os interpretantes
são produzidos na mente dos leitores, configurando imagens ou ícones que,
no contexto narrativo, são apresentados como índices, signos indicativos ou
símbolos, decorrentes de informações convencionais. Na parte final do trecho
em estudo, o autor descreve, por meio de um enunciador, as relações icônicas,
indiciais e simbólicas, que permitiram ao protagonista o entendimento cognitivo
da situação vivenciada.
palavras-chave:
literatura; narração; cognição
abstract
According to the semiotic theory founded by C. S. Peirce and developed by Umberto
Eco, linguistic representations are symbols. In the analyzed passage, linguistic
symbols were articulated to recount the arrival of brother William of Baskerville
in front of the abbey, the novel’s main set. Thus, descriptions of scenes, events
and dialogues allow the production, after the text, of interpreters in the readers’
minds, configuring images or icons that are presented, in the narrative context,
as indexes and indicative signs, as well as symbols originated from conventional
information. In the end of the studied passage, the iconic, indicial and symbolic
relations used by the protagonist to achieve the fully cognitive understanding of
the lived situation are described by the author.
keywords:
literature; narration; cognition
dezembro
/ 2010
O trecho da obra de Umberto Eco referido no título deste trabalho consta
entre as páginas 36 e 39 do livro O nome da rosa, publicado no Brasil em 1986.
O texto dessa edição foi traduzido do original em italiano (1980), por Aurora
Fornoni Bernadini e Homero Freitas de Andrade.
No livro o autor apresenta como narrador dos acontecimentos o noviço
Adso, personagem caracterizado como discípulo do protagonista. No trecho em
estudo, é narrada a chegada do personagem protagonista, frei Guilherme de
Baskerville, e de seu discípulo à frente da abadia que compõe o cenário de
desenvolvimento da narrativa. Especificamente, há o interesse pela passagem a
seguir, que trata da descoberta da fuga de um cavalo:
A semiótica filosófica de
Peirce é subdividida em três
partes: Gramática Especulativa,
Lógica Crítica e Metodêutica.
Informações mais aprofundadas a respeito podem ser encontradas em Peirce (2005).
1
O signo tal como concebido
por Peirce possui três correlatos: o signo ele mesmo, o objeto
e o interpretante. Tais correlatos
são considerados em diferentes
tipos de relações lógicas, as
quais resultam em divisões dos
signos e em classes de signos
(PEIRCE, 2005: 45-61).
2
Esta questão é estudada em
Peirce (2005: 63-76).
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2
Eu sou Remigio de Varagine, o despenseiro do mosteiro. E se vós sois, como
creio eu, frei Guilherme de Baskerville, o Abade precisaria ser avisado.
“Tu”, ordenou voltando-se para alguém do séquito, “sobe para avisar que
nosso visitante está para adentrar os muros!”. “Agradeço-vos, senhor
despenseiro”, respondeu cordialmente meu mestre, “e tanto mais aprecio
a vossa cortesia quanto para saudar-me interrompestes a perseguição. Mas
não receeis, o cavalo passou por aqui e dirigiu-se para o atalho da direita.
Não poderá ter ido muito longe, porque chegado ao depósito de estrume
precisará deter-se. É inteligente demais para lançar-se escarpa abaixo”.
“Quando o vistes?”, perguntou o despenseiro. “Na realidade não o vimos,
não é, Adso?”, disse Guilherme voltando-se para mim com ar divertido.
“Mas se estais à procura de Brunello, o animal não pode estar senão onde
eu disse”. O despenseiro hesitou. Olhou Guilherme, em seguida o atalho, e
por fim perguntou: “Brunello? Como sabeis?”. “Vamos”, disse Guilherme,
“é evidente que andais à procura de Brunello, o cavalo favorito do Abade,
o melhor galopador de vossa escuderia, de pelo preto, cinco pés de altura,
de cauda suntuosa, de casco pequeno e redondo mas de galope bastante
regular; cabeça diminuta, orelhas finas e olhos grandes. Foi para a direita,
estou vos dizendo, e apressai-vos, em todo caso”.
A teoria semiótica que embasa este estudo é de raiz filosófica e foi
fundada por Charles Sanders Peirce (1839-1914), filósofo, lógico e matemático
norte-americano. Dessa adotam-se especialmente conceitos desenvolvidos na
parte denominada Gramática Especulativa1; aqueles que tratam da tricotomia da
relação dos signos2 com seus objetos dinâmicos3, classificando-os conforme o
tipo de ligação que estabelecem – similaridade, contiguidade, convencionalidade
– em: ícone, índice e símbolo respectivamente. Os conceitos e as relações
teóricas propostas neste artigo tomam escritos de Peirce (2005), Eco (1997),
Nöth (1995 e 1996) e Santaella (1995) como referência.
O texto em estudo, como todas as representações linguísticas, é composto
como um conjunto de símbolos, denominação dada aos signos convencionais,
entre esses as palavras escritas ou faladas. A semiótica peirceana, todavia,
tende a mostrar a ação dos símbolos – signos genuinamente triádicos, ou seja,
aqueles nos quais todos os constituintes estão envolvidos em relações da ordem
da terceiridade – dentro de um conjunto significante no qual estão envolvidos
ícones e índices – signos degenerados ou quase-signos, assim chamados porque
um (ou mais) de seus constituintes envolve relações da ordem da secundidade
ou da primeiridade simplesmente (PEIRCE, 2005: 63). Um entrelaçamento
entre esses tipos de signos e os símbolos ocorre nas situações de comunicação
em geral, o que é importante tanto para estabelecer a conexão dos símbolos com
a realidade quanto para o uso dos símbolos na elaboração de hipóteses abstratas
sobre essa mesma realidade.
Os símbolos linguísticos são articulados no texto em questão para
representar as cenas e seus elementos, os acontecimentos, os diálogos e,
ainda, parte dos pensamentos dos personagens no momento da chegada de frei
Guilherme e seu discípulo Adso em frente à Abadia, em um dia no fim do mês
de novembro do ano de 1327.
Em decorrência da leitura do texto, são produzidos interpretantes ou
novos signos na mente do leitor, que segue construindo uma narrativa na
imaginação. Dentro da narrativa, desenrola-se todo o “teatro” de relações
icônicas, indiciais e simbólicas. E é nele que atua o intérprete que interessa
a este artigo – o protagonista da história –, cujo pensamento o autor permite
acompanhar. Na narrativa, frei Guilherme acompanha os signos da cena descrita
– especialmente os visuais – desencadeando uma semiose na qual atualiza para
a situação em que se encontra um símbolo da época, ilustrando o processo pelo
qual a interpretação de símbolos precisa fazer-se acompanhar de ícones e de
índices. No caso dos ícones destacados aqui, é importante ressaltar sua atuação
no campo das ideias gerais (ou ícones de significação4) que compõem o símbolo,
além de sua atuação nas associações por similaridade feitas pelo protagonista;
já os índices atuam na medida em que permitem conectar o discurso com o
mundo existencial em questão.
As descrições de cenas, acontecimentos, diálogos e pensamentos informam
o leitor sobre as condições ambientais do local de chegada e, principalmente,
sobre a maneira como o discípulo-narrador percebe a atuação lógica do frei
protagonista na interpretação dos sinais do ambiente, relacionando-os à cultura
literária de seu tempo.
Logo no início do texto há uma primeira indicação do processo de semiose,
que se caracteriza pela ação continuada do signo, criando diversos interpretantes
em sequência lógica. Ao ter a percepção imagética do caminho que levava à
Abadia, com árvores do tipo pinheiro em posições simétricas e distanciamentos
regulares, surgiram na mente do frei as ideias de ordenação e beleza que, por
sua vez, desencadearam as de esmero e vontade de bem impressionar o público
externo à Abadia. As primeiras ideias, de beleza, decorrem de relações icônicas
Para significar, o símbolo
precisa do ícone. Trata-se, no
entanto, de um tipo de ícone
muito especial. Não é um ícone
qualquer, mas aquele que está
atado a um ingrediente simbólico. Esse ingrediente, ou
parte símbolo, Peirce chamou
de conceito, a parte ícone, ele
chamou de ideia geral. Ransdell (1996: 184) também lida
com essa distinção com muita
clareza. Chama, por sua vez,
o conceito de sentido e a ideia
geral ou ícone de significação.
O conceito ou sentido é o habito não atualizado e a ideia geral
ou ícone é aquilo que atualiza o
hábito, produzindo a significação. É por isso que Peirce repetiu, muitas vezes, que o símbolo
significa por meio de um hábito
e de uma associação de ideias
(SANTAELLA, 1995: 174).
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entre as qualidades do que é visto (regularidade, simetria) e as de coisas em
geral que respeitam um padrão clássico de beleza. Para as segundas ideias,
contudo, foram considerados os dispêndios necessários para a obtenção desse
efeito visual, bem como as razões que poderiam justificar os recursos e esforços
despendidos, tais como: recursos humanos e materiais, ações administrativas e
disposição para aparecer bem diante do público. Aqui o protagonista se mostra
conhecedor de certos padrões de comportamento social da sua época. Assim,
foi possível concluir, por meio de relações simbólicas entre o que foi visto e
os padrões conhecidos: “Abadia rica (...) ao Abade agrada aparecer bem nas
ocasiões públicas”.
Além dessa interpretação, que considera os significados abstratos naquilo
que poderia servir apenas à apreciação (a paisagem), os signos linguísticos da
comunicação interpessoal também são apresentados no texto como recurso de
representação e leitura de eventos envolvendo os personagens. Um exemplo
disso é a recepção feita aos visitantes por um dos monges, entre os que se
encontravam do lado de fora da Abadia: “bem vindo, senhor (...) e não vos
admireis se adivinho quem sois, porque fomos advertidos de vossa visita”.
A questão central do trecho estudado, entretanto, é a interpretação de frei
Guilherme a respeito da fuga, perseguição e paradeiro de Brunello, nome dado
ao “cavalo favorito do Abade”. A surpresa manifesta pelo personagem Adso,
que é expressa na sua narração do episódio, deve-se ao fato de que, sem ter visto
o animal, frei Guilherme soube de sua existência, de sua procedência, de sua
aparência, de seu nome e de sua localização.
É por meio das palavras do frei protagonista, esclarecendo ao discípulo
sobre o processo de reconhecimento da existência, do porte e do paradeiro do
animal, que o autor informa ao leitor sobre a possibilidade de interpretação dos
signos deixados por um animal em fuga.
“No trevo, sobre a neve ainda fresca, estavam desenhadas com muita
clareza as marcas dos cascos de um cavalo, que apontavam para o atalho
à nossa esquerda. A uma distância perfeita e igual um do outro, os sinais
indicavam que o casco era pequeno e redondo, e o galope bastante
regular — disso então deduzi a natureza do cavalo, e o fato de que ele não
corria desordenadamente como faz um animal desembestado. Lá onde
os pinheiros formavam como que um teto natural, alguns ramos tinham
sido recém-partidos bem na altura de cinco pés. Uma das touceiras de
amoras, onde o animal deve ter virado para tomar o caminho à sua direita,
enquanto sacudia altivamente a bela cauda, trazia presas ainda entre os
espinhos longas crinas negras. Não vais me dizer afinal que não sabes
que aquela senda conduz ao depósito do estrume, porque subindo pela
curva inferior vimos a baba dos detritos escorrer pelas escarpas aos pés
do torreão meridional, enfeando a neve; e do modo como o trevo estava
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disposto, o caminho não podia senão levar àquela direção”. “Sim”, disse,
“mas a cabeça pequena, as orelhas pontudas, os olhos grandes...” “Não sei
se os tem, mas com certeza os monges acreditam piamente nisso. Dizia
Isidoro de Sevilha que a beleza de um cavalo exige ut sít exiguum caput
et siccum prope pelle ossibus adhaerente, aures breves et argutae, oculi
magni, nares patulae, erecta cervix, coma densa et cauda, ungularum
soliditate fixa rotunditas. Se o cavalo de que inferi a passagem não fosse
realmente o melhor da escuderia, não se explicaria por que não foram
apenas os cavalariços a persegui-lo, mas até o despenseiro deu-se ao
incômodo. E um monge que considera um cavalo excelente, além de suas
formas naturais, só pode vê-lo assim como as autorictates o descreveram,
especialmente se”, e aqui endereçou-me um sorriso de malícia, “é um
douto beneditino...” “Está bem”, disse, “mas por que Brunello?” “Que o
Espírito Santo te dê mais esperteza que a que tens, meu filho!”, exclamou
o mestre. “Que outro nome lhe darias se até mesmo o grande Buridan, que
está para tornar-se reitor em Paris, precisando falar de um belo cavalo,
não encontrou nome mais natural?”
Os indícios, vestígios ou marcas de algo em particular são denominados na
teoria peirceana como signos indiciais ou índices; e sua principal característica
é a relação de contiguidade que estabelecem com seus objetos; em outras
palavras, tais signos são tomados como marcas de contato, “partes” de algo,
capazes de remeter ao todo (relação metonímica). Assim, esse tipo de signo é
geralmente composto por marcas diretamente decorrentes da presença ou da
ação física do objeto com o qual esteve conectado (contíguo) e ao qual se refere
ou o qual representa.
De acordo com o texto, os índices que denunciaram a existência do cavalo
para o frei foram as “marcas dos cascos de um cavalo”, os “ramos quebrados”,
e “entre os espinhos longas crinas negras”. Outros índices também informaram
sobre a direção e os obstáculos da fuga do animal, como as marcas dos cascos
que apontavam para o atalho à esquerda ou, ainda, “a baba dos detritos” que
escorria sobre a neve e indicava a posição do depósito de estrume, que impediria
o percurso do animal naquela direção.
A aparência privilegiada do cavalo foi composta de acordo com signos
que tanto continham os indícios de sua existência e passagem pelo local quanto
configuravam referências icônicas, como o casco “pequeno e redondo” ou as
“longas crinas negras”. Sua natureza, contudo, foi caracterizada para além
da existência e da aparência; como quando a equivalência das distâncias
entre suas marcas informava sobre “o galope bastante regular” e que “ele não
corria desordenadamente como faz um animal desembestado”. Esse nível de
interpretação da regularidade do galope, como sinal de ordenação, requer uma
ilação ou relação simbólica decorrente de o protagonista demonstrar reconhecer
ali certo tipo de comportamento como vinculado a certo tipo de animal.
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O desenho das marcas regulares das patas do cavalo na neve é, portanto,
um ícone, uma imagem que permite caracterizar qualitativamente o animal.
Mas também é um índice, porque é um registro direto da passagem do animal.
Além disso, é símbolo, porque permite significação arbitrária e convencional,
associando-o às ideias de regularidade, ordenação e inteligência. Isso diferenciou
o cavalo em questão de um “animal desembestado”.
O traço simbólico desenvolvido na relação com ícones e índices pode
ser lido, ainda, na mensuração visual dos ramos partidos pela passagem do
cavalo “na altura de cinco pés”. A percepção e a quantificação da distância, com
base em um padrão de medida, levam o frei a considerar um cavalo de grande
estatura. Os galhos quebrados indicando a passagem (índice) e a própria estatura
que ajuda a compor as qualidades do animal (ícone) são avaliados, juntamente
com outros signos icônicos e indiciais citados acima, em um processo lógico
de significação, de natureza simbólica, que desencadeia na coerência entre os
elementos da aparência do animal e certo tipo conhecido de animal.
Os símbolos da cultura literária, que o autor propõe para compor a
ideologia da época dos personagens, interagem no processo de configuração
do cavalo na mente do frei protagonista. Esse, criativamente, complementa os
indícios da passagem do animal, as relações de similaridade e a presença dos
monges do lado de fora da Abadia. Assim, avança para uma leitura simbólica
e mais profunda da situação diante da qual se encontra, configurando-a em
diferentes formas de um raciocínio. Entre tais formas, encontramos formulações
hipotético-dedutivas, como a que fica explícita na seguinte relação entre a
pergunta de Adso e a resposta do Frei: “Sim”, disse, “mas a cabeça pequena,
as orelhas pontudas, os olhos grandes...” “Não sei se os tem (...), mas com
certeza os monges acreditam piamente nisso”. O frei, ao agir de acordo com
suas formulações, mostra que seu raciocínio elabora a rede de signos de modo
a passar de interpretações possíveis a ilações prováveis.
Associando o que foi descrito como produto da percepção do protagonista
ao que foi proposto como conhecimento decorrente de informações literárias, o
autor evidencia para os leitores o processo de interpretação e conhecimento que
foi estabelecido na mente do frei. A semiose proposta é decorrente da associação
entre o que foi imediatamente percebido e o que foi anteriormente aprendido e
memorizado, utilizando diferentes tipos de relações entre os signos e seus objetos.
Na concepção do autor, o cavalo em questão aparece como expressão
simbólica de alto valor cultural. Pois para o próprio frei Guilherme, e
supostamente também para o Abade, o cavalo representa a encarnação de um
cavalo ideal, tal como fora previamente determinado por uma autoridade da
época, Isidoro de Sevilha, que descrevera as características físicas determinantes
da beleza de um cavalo. Além disso, ambos parecem concordar com outra
autoridade, Buridan, que é citado por ter indicado Brunello como o nome que
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se adequaria naturalmente a um animal com tais características.
Do modo como é representado no texto, o cavalo material expressa e
representa o cavalo ideal que, anteriormente, teria sido descrito e nomeado
por autoridades como Isidoro e Buridan. Para tanto, os ícones do cavalo no
texto expressam as características físicas; os índices conectam essas mesmas
características a um existente; e a relação simbólica conecta tudo à forma equina
idealizada e a um nome. Sua presença deve, portanto, inspirar nos personagens,
que foram compostos de acordo com a cultura representada no texto, a crença
de que estão diante de um animal superior. Assim sendo, de acordo com a
codificação cultural proposta para a época, que também integra a interpretação
do frei, era muito provável que Brunello fosse o cavalo preferido do Abade.
Portanto, isso foi assumido como certo e o frei pensou e agiu com base nessa
certeza.
Por fim, em uma das conclusões expressas pelo discípulo narrador Adso,
o autor informa que o frei protagonista “sabia ler não apenas no grande livro da
natureza, mas também no modo como os monges liam os livros da escritura, e
pensavam através deles”. Entretanto, não satisfeito apenas com o conhecimento,
o frei também buscava o reconhecimento de suas habilidades. Assim, o discípulo
conclui que o mestre, “em tudo por tudo homem de altíssima virtude, tolerava o
vício da vaidade quando se tratava de dar provas de sua argúcia”.
O que se configurou como símbolo de vaidade foi a narrativa de Adso
assinalando que frei Guilherme diminuíra o passo de sua cavalgadura para
permitir que os membros da abadia chegassem primeiro e contassem o que
acontecera. Em síntese, de acordo com o autor, o protagonista simboliza, por
meio de suas atitudes, um homem sábio e vaidoso de sua sabedoria.
É constantemente explicitada no texto a imbricada trama de signos
que envolve os personagens. Além disso, são explicitados os vínculos entre o
conhecimento adquirido nos livros e na cultura e aquele que advém da leitura
direta do mundo, implicando em processos de complementaridade entre os
diferentes níveis de leitura. O texto ainda mostra como o raciocínio capaz de
lidar com essa trama é também capaz de preparar a mente para agir diante de
situações que, de outro modo, seriam completamente desconhecidas. Assim,
a dinâmica cognitiva do frei demonstra como o raciocínio possibilitou a
compreensão do que se passou longe dos seus olhos e, ainda, permitiu-lhe prever
as razões anteriores, nem sempre explícitas, que justificariam o raciocínio e os
acontecimentos. Isso ilustra que para todos os níveis de elaboração do raciocínio
– das hipóteses às ações – os símbolos são importantes, mas não mais do que
os ícones e índices.
Na sua narrativa, o trecho em estudo ilustra aspectos gerais do processo
cognitivo de construção do conhecimento, relacionando dados percebidos e
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memorizados, enquanto expõe as estratégias de interpretação e comunicação
estabelecidas nas relações entre o ambiente, a cultura e os interlocutores.
Os processos de interpretação, significação e comunicação são
plenamente mediados por signos, compondo o campo de estudos em Semiótica.
No caso específico do autor, Umberto Eco, que se dedica igualmente aos
estudos de Semiótica, Literatura e Cultura Medieval, é justo pressupor que
há um consciente enfoque semiótico em sua produção literária. Em outras
palavras, por meio da argúcia do protagonista, Eco evidencia as suas próprias
qualidades como semioticista, medievalista e escritor. Assim, demonstra mais
do que argúcia para ler o mundo, pois também sabe falar muito bem sobre
como o mundo pode ser lido.
Infere-se aqui que o texto extrapola, intencionalmente, os limites da
literatura ambientada na cultura medieval, dotando a narrativa de diálogos que,
entre seus objetos de representação, incluem aspectos gerais dos processos de
significação e comunicação, que regem a linguagem na própria construção
literária. Assim, o estudo apresentado é um pequeno exemplo do potencial e da
riqueza da escritura literária de Eco como pretexto para os estudos semióticos.
bibliografia
ECO, Umberto. Tratado Geral de Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1997.
NÖTH, Winfried. Handbook of Semiotics. Indiana: Indiana University Press,
1995.
_________. A Semiótica do Século XX. São Paulo: Annablume, 1996.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2005.
SANTAELLA, Maria Lucia. A Teoria Geral dos Signos: semiose e autogeração.
São Paulo: Ática, 1995.
como citar este artigo
GHIzzi, Eluiza Bortolotto; Machado, Amanda Pires; Sousa, Richard Perassi
Luiz de. Ícones, índices e símbolos em um trecho de O nome da rosa. Semeiosis:
semiótica e transdisciplinaridade em revista. [suporte eletrônico] Disponível
em: <http://www.semeiosis.com.br/o-nome-da-rosa/>. Acesso em dia/mês/ano.
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