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ENTREATOS Crônicas típicas do mundo psiquiátrico ENTREATOS Crônicas típicas do mundo psiquiátrico Entreatos: crônicas típicas do mundo psiquiátrico Copyright© 2007, Stella Galvão. Proibida a reprodução total ou parcial desta obra. Todos os direitos desta edição estão reservados à Segmento Farma Editores Ltda. DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) G182 GALVÃO, Stella Entreatos: crônicas típicas do mundo psiquiátrico / Stella Galvão. – São Paulo : Segmento Farma, 2007. 24 p. 14 x 21 cm ISBN 978-85-98353-72-2 1. Psiquiatria – contos e crônicas. I. Título. CDD 616.89 Índices para catálogo sistemático 1. 2. Psiquiatria Contos e crônicas 616.89 808.88 IMPRESSO NO BRASIL 2007 Avenida Vereador José Diniz, 3.300, 15o andar, Campo Belo – 04604-006 – São Paulo, SP. Fone: 11 3093-3300 www.segmentofarma.com.br • [email protected] Diretor geral: Idelcio D. Patricio Diretor executivo: Jorge Rangel Controller: Antonio Carlos Alves Dias Gerente de negócios: Rosana Moreira Assistente comercial: Karina Cardoso Coordenador Geral: Alexandre Costa Coordenadora editorial: Caline Devèze Editor de arte: Maurício Domingues Jornalista responsável: Daniela Barros (Mtb 39.311) Direção de arte: Renata Variso Ilustrações: Eduardo Magno Diagramação: Carlos Eduardo Müller Revisão: Renata Del Nero Produção gráfica: Fabio Rangel Cód. da publicação: 5610.09.07 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO um projeto INSPIRADOR Stella Galvão TÍPICO 1 o dia em que MITIKO ESBRAVEJOU Colaborou: Dr. Geraldo Massaro TÍPICO 2 a arte de FAZER RIR Colaborou: Dr. Arthur Kaufman TÍPICO 3 em nome DE DEUS Colaborou: Dra. Jane Aparecida Lima TÍPICO 4 meu nome É FELICIDADE Colaborou: Dr. Wimer Bottura TÍPICO 5 o morcego INVASOR Colaborou: Dra. Ana Hounie 7 9 12 16 20 24 APRESENTAÇÃO um projeto INSPIRADOR Uma relação muito delicada, tecida pelas tramas diárias que se sucedem e determinam novos rumos e novas possibilidades. É quando a porta do consultório se fecha que o médico recebe uma espécie de salvo-conduto que lhe permitirá adentrar no território que é do outro e que passa a lhe ser confiado, em um acordo tácito. O vínculo que se estabelece entre o médico psiquiatra e seu paciente é único, forte, intenso, mas também sujeito a trovoadas, porque é no campo mental que ambos estão ingressando. Nesse processo, não há ação unilateral. Impossível pedir ao psiquiatra que apenas veja um paciente, em uma anamnese trivial e rápida. Inviável imaginar que aquele paciente será despachado com uma pilha de solicitações de exames. O sofrimento psíquico é parte da vida humana desde que caminhamos por um solo que se altera todo o tempo, mimetizando nossas emoções. É a elas que estamos sujeitos em razão de nossa humanidade, especialmente quanto mais esta se manifesta, aflora, desponta. Foi com essa inspiração original que se concebeu este pequeno e delicado volume. Nele, o doutor de algum modo se enxergará porque foi na prática clínica que fomos prospectar histórias ricas em lirismo, cenas inusitadas, engraçadas, atos falhos. Todos eles tendo médico e paciente como protagonistas. Em respeito à ética e ao sigilo profissional, esclarecemos que as identidades dos pacientes foram integralmente preservadas. Em algum ponto dos relatos, há o ocorrido em meio a construções ficcionais que estão presentes no dia-a-dia de um consultório psiquiátrico. Os nomes que os identificam também são produtos de ficção. O projeto deste volume de crônicas do mundo psiquiátrico, concebido pela Segmento Farma Editores e acolhido pelo Laboratório Farmacêutico Valeant é uma forma de homenagear o médico que se desdobra, estuda, investiga, trata, orienta e acolhe seus pacientes. É um meio de reconhecer o papel absolutamente imprescindível dos profissionais que optaram pela psiquiatria como razão de vida, além de opção profissional. Queremos deixar nosso especial agradecimento aos profissionais que gentilmente cederam parte de seu precioso tempo para nos contar algum aspecto das histórias disponíveis neste volume. Nosso reconhecimento e parabéns a todos os psiquiatras que fortalecem, a cada dia um pouco mais, os pilares de sustentação da história mental de seus pacientes. Stella Galvão Jornalista e cronista, mestre em História da Ciência pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) 8 TÍPICO 1 o dia em que MITIKO ESBRAVEJOU Mitiko sofria de esquizofrenia e podia ser qualificada de uma psicótica típica. Não interagia com outras pessoas, mesmo medicada, e permanecia em um mutismo do qual raramente saía. Vez ou outra, no ambiente doméstico, ela soltava uma frase quando via algo surpreendente na TV ou assistia a alguém da família em estado de descontrole momentâneo. O diagnóstico veio aos 15 anos. Até então, uma adolescente comum e meio quieta, Mitiko começou a manifestar delírios persecutórios. Imaginava que um professor a perseguia, queria prejudicá-la a todo custo, só tinha olhos para seus erros e confusões durante a aula de matemática e de desenho geométrico. Relatava à mãe estar sob forte influência de forças incontroláveis que a faziam sentir-se poderosa. Em seguida vieram as alucinações. Mitiko ouvia vozes claras e conversava com elas, em resposta. Passou a fazer isso em todos os lugares, constrangendo quem estivesse a seu lado. Vozes que a mandavam fazer coisas às quais ela resistia. O conflito era inevitável e ampliado pelas alucinações visuais. Freqüentemente se corporificavam e a perseguiam. A adolescente, que já era reservada e apresentava problemas de relacionamento, foi ficando cada vez mais isolada e envolvida em suas fantasias. Ficou inviável freqüentar a escola sem ser alvo de toda sorte de piadinhas. A progressão da doença fez surgir os sintomas mais característicos da psicose. Havia também a nítida percepção de estímulos elétricos atravessando a pele, como se uma fila de insetos rastejasse sobre a pele. Tal sensação de estranheza traduzia-se em esvaziamento na relação com o mundo. A diminuição da resposta emocional era um sinal evidente e expressivo da doença em Mitiko, traduzindo-se em indiferença e apatia, e ausência de gestual expressiva. Vazia, sem emoção, era assim que ela se descrevia, mas viva, e objeto da preocupação dos familiares que sofriam pela impossibilidade de resposta. “Cala a boca porque você é um bobalhão e se encher meu saco eu vou te bater muito” Os pais resolveram procurar um psiquiatra. Diagnosticada a doença e iniciado o tratamento, o quadro de Mitiko sofreu melhora, com diminuição dos sintomas persecutórios e alucinatórios, mas preservação do embotamento emocional. Ainda incurável, o tratamento do esquizofrênico permite hábitos de vida relativamente normais para a maioria, que podem voltar a trabalhar, estudar, namorar, ter novamente vida social. Ela, então, foi matriculada em uma escola com um programa de acolhimento para psicóticos, com professores treinados para melhor lidar no dia-a-dia com as manifestações da doença. Passou também a freqüentar a terapia de grupo do hospital universitário. Lá, manteve o mutismo por mais de seis sessões, cada uma delas com uma hora e meia de duração. O grupo podia tagarelar à vontade, o psiquiatra que coordenava podia provocar, em vão. Mitiko só ouvia e olhava sobre as cabeças, distante. 10 o dia em que MITIKO ESBRAVEJOU Pequenina e graciosa, Mitiko virou uma espécie de talismã da psiquiatria, sempre presente e à vista de todos os médicos, residentes, pessoal da enfermagem. Encerrada a consulta ou a sessão grupal, ela ficava por ali, nos corredores do hospital, na lanchonete da frente, ao largo do quarteirão. Ela se sentia, por assim dizer, em casa. Só ia embora por insistência dos parentes que a resgatavam após muita recusa, expressa sob a forma de imobilidade. Nessas horas, Mitiko, já uma adulta, parecia brincar de estátua. Vivenciava um tipo do chamado estupor catatônico, uma situação de imobilidade por longo período. Um dia, sem anúncio prévio, chegou ao grupo terapêutico um psicótico, Gregório, de comportamento bastante agressivo e um gosto excepcional por brigas, negligente com os cuidados pessoais, era a imagem do desleixo, ao que somava a maneira rude de se expressar. Na terceira sessão, subitamente, o rapaz sacou um canivete. Ameaçava furar, bater e outras intervenções do gênero. O coordenador do grupo a tudo assistia, quieto, esperando as reações. Interviria se o paciente passasse das palavras à ação, claro. Não foi preciso. Mitiko, cuja presença até então era mais inexpressiva que a da pomba que arrulhava no telhado do hospital, levantou-se de um salto. Foi até Gregório sem titubear. E falou alto, sem pausas, dedo na cara do encrenqueiro: “Cala a boca porque você é um bobalhão e se encher meu saco eu vou te bater muito”. O homem do canivete voltou cabisbaixo para seu canto, sentou e não abriu mais a boca nem chamou ninguém para briga. Mitiko igualmente emudeceu e não voltou a abrir a boca pelos três meses seguintes. Colaborou: Dr. Geraldo Massaro Psiquiatra e psicodramatista, autor de “Doença Mental e Sociedade: uma Discussão Interdisciplinar”, “Loucura, uma proposta de ação”, entre outros livros 11 TÍPICO 2 a arte de FAZER RIR Era uma atriz dedicada ao gênero da comédia, mas o caso é que ela dispensava esforços para fazer rir, construir personagens, decorar piadas rasas ou ganhar uma platéia com meia dúzia de frases de efeito. Ela fazia psicoterapia para “segurar a torrente dos dias, às vezes a enxurrada”. Era uma alegria só para o psiquiatra que a atendia, para a recepcionista, um ou outro paciente que estivesse na companhia dela na sala de espera. Todos riam por obra daquele talento nato para a palhaçada, clown em tempo integral. Existindo, ela fazia graça. Era uma coisa espontânea, mas que flertava às vezes com a cena teatral. A vida da atriz era feita de incorporar no dia-a-dia papéis que desafiavam o lado comum e regrado. O psiquiatra, uma alma pouco dada a freios, deliciava-se com a audição daquele templo do risível. Ela tinha um hábito inesquecível durante as consultas. Cada vez que lançava no ar uma frase mais absurda, ouvia-se um uóóóól longo e estridente, imitação da sirene de uma ambulância. Suzy passara a infância ao lado de um pronto-socorro. Da janela do prédio, assistia o vai-e-vem dos carros nervosamente transportando gente com pressa de viver e se livrar da dor. Ela desejou ser atriz no dia em que viu um ferido sair cambaleante da ambulância e declamar um verso do poeta francês Baudelaire. Muito engraçado, pensou, e assim foi. Na escola ganhou popularidade graças às tiradas e aos apelidos que dava às professoras. Uma vez por semana era chamada à coordenadoria pedagógica para explicar aquela vocação irresistível para rótulos jocosos. Os pais, também apelidados, Dona Monstra e Seu Pato, resignavam-se, pediam mil desculpas à ofendida e diziam que aquilo era assim em casa também, que “Suzy de lua” não dava sossego a parente algum. Quem mais sofria era a vovozinha trôpega e surda. No final todos riam muito, apesar da maldadezinha que habitava a alma do primeiro palhaço, sempre a ridicularizar o outro. Então Suzy foi ter aulas para atuar. Roubava a cena, transformando Desdêmona, a sofrida consorte do mercador Otelo, de Shakespeare, em uma quase versão de a arte de FAZER RIR Quasímodo, O corcunda de Notre Dame, sempre esgueirando-se e fazendo caras e bocas. Dizia que fazer comédia não a tornava menos atriz porque nessa condição se embutia o grande drama humano. Aliás, ria muito das meninas novas candidatas a heroínas moderninhas, quando estavam mais para Jane Austen e suas mocinhas sofridas. Mas era atriz ou comediante? Sabia representar, mas só encarnava personagens com os dois pés enfiados na jaca, fazendo gargalhar a platéia. Era inevitável que os primeiros papéis fossem de pasteladas na cara dos outros. No teatro infantil aprendeu com o público mais severo, os pequenos, que não se deixam enganar. Ou os atores eram engraçados ou viravam motivo de riso, mas não daquele riso frouxo, aberto e solto, mas o da chacota mesmo. Esse trauma ela não tinha. De tanto fazer rir, Suzy enfrentava uma enorme dificuldade para encarar as más notícias cotidianas. Claro, a vida não era purpurina e o cenário podia ser dantesco, às vezes. Ela saía do teatro onde era a estrela de um espetáculo de humor encenado sempre com a casa cheia, e corria para acudir a mãe, às voltas com um câncer terminal e que havia optado por permanecer em casa após esgotadas as possibilidades terapêuticas. Lia para aquela monstrinha querida histórias da Mafalda, menina esperta do mundo dos quadrinhos que a mãe adorava, e do Calvin e seu fiel escudeiro Haroldo, o tigre confidente. Era esse tipo de humor, às vezes ácido, que tinha povoado a infância e a adolescência da atriz. Naquele dia, o psiquiatra finalizava um atendimento quando ouviu Suzy na sala de espera, aos berros: ”Minha mãe morreu, meu pai também!”. Ele a fez entrar rapidamente, e ela se pôs pela primeira vez aos prantos diante do psiquiatra. A mãe não resistira mais ao câncer na manhã daquele dia. O pai não agüentou a partida da mulher e sofreu um infarto fulminante à tarde. Era início da noite daquele mesmo dia e Suzy estava só. Ela e sua dor. Nem mesmo um esgar se viu desenhar em seus lábios contritos. Os pais foram cremados na mesma semana e a vida seguiu seu curso. Vivendo em São Paulo, ela também estava à mercê da violência urbana. E foi assim que, algum tempo depois da perda dos pais, ela caminhava da padaria para casa, em um bairro de classe média com muitas lâmpadas de rua queimadas, quando um adolescente a abordou. No lugar do canivete ou do revólver de brinquedo, ele ameaçava com um caco de vidro: “Vou te cortar, vou te matar, dona!” Suzy, atriz e comediante, não deixou por menos. Começou a chorar instantaneamente e a pedir 13 Chorando agarrada à pá de lixo, Suzy só conseguia pensar, e aos poucos rir até rolar no chão, na famosa frase bíblica: “Do pó viestes, ao pó voltarás!” que ele a matasse de uma vez porque a vida dela não valia mesmo a pena ser vivida. Terminou consolada pelo garoto, que a enlaçou e largou o vidro no meio-fio. Foi duro se desvencilhar daquele súbito e imprevisto apoio. O consultório psiquiátrico também era palco de intervenções inusitadas. Havia dias em que Suzy descia as escadas em formato de caracol naquela posição de quem procura algo perdido, de quatro, mãos e joelhos apoiados no chão. Dizia que era um santo remédio para poupar a coluna. Também era vista no jardim em frente observando atentamente as evoluções de uma joaninha ou o movimento interminável das formigas e sua rainha, com a qual, aliás, tinha imensa identidade por seu papel de condutora, de fiel da balança. Longe dos indícios de psicopatia, a atriz encarnava um perfil criativo, aquele tipo de pessoa que desafia o senso comum e se permite tresloucar vez ou outra. Algo de uma sanidade exemplar. 14 a arte de FAZER RIR Um dia, a comediante apresentou-se ao psiquiatra com uma dúvida que a consumia: “O que faço com o meu pai e a minha mãe?” Os dois habitavam um canto do armário da sala, cada qual na sua caixinha. Ela já havia cogitado várias possibilidades. Viajar para Ilhabela e entregá-los às ondas, mantê-los em algum recanto discreto de um móvel ou jogá-los no microjardim que mantinha no terraço do apartamento? Quem sabe não nasceriam agora sob a forma vegetal? Impossível não rir da história, gargalhou o médico. Era assim que a dor se interpunha entre Suzy e seu talento para alegrar o mundo. Como algo meio deslocado do contexto, como uma louça fora do armário por um momento apenas, até que alguém a reconduzisse de volta ao lugar original. Os pais terminaram misturados ao pó da casa por obra de uma faxineira nova que desconhecia o tesouro contido naqueles microbaús que repousavam na cristaleira. Quando a filha chegou, o desfecho já era irreversível. Impossível saber quem eram os pais em meio aquele amontoado de poeira no canto da sala. Chorando agarrada à pá de lixo, Suzy só conseguia pensar, e aos poucos rir até rolar no chão, na famosa frase bíblica: “Do pó viestes, ao pó voltarás!”. Colaborou: Dr. Arthur Kaufman Psiquiatra e coordenador do Projeto de Atendimento ao Obeso (Prato) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) 15 em nome DE DEUS TÍPICO 3 Mal amanheceu, a psiquiatra abriu as janelas do consultório e esperou a paciente. Com viagem marcada para a Europa no final daquela manhã, por determinação da congregação religiosa a qual pertencia, a freira chegou pontualmente às 7h para o atendimento. Aos 35 anos, era uma mulher bonita e vistosa, graduada em teologia, que havia abraçado a vocação cristã por imposição íntima, por sentir que naquela opção residia o sentido para a vida que desejava ter. Mas dúvidas, quem não as tem? Era uma alma atribulada por questionamentos de natureza muito pessoal. Ela desejava ter filhos e não havia conseguido calar as ondas de desejo que se espraiavam vez ou outra por todo o corpo. Era uma aflição, um desmazelo. E havia ainda a culpa introjetada por ousar sentir algo que lhe havia sido interditado. Na intimidade de sua cama, porém, ela conhecia as reações, estava íntima daquela fisiologia própria das mulheres que sentem, ou deveriam sentir, prazer em amar. Como lidar com isso? Havia uma voz que acatava as determinações religiosas pelo celibato mais absoluto e o sepultamento, em vida, de sua porção viva, pulsante, e outra, quase audível, que desejava trazer essas pulsões à tona. Naquela manhã, o tema era exatamente a visão de homens e as sensações que músculos, barba, dorso e pernas reunidos lhe despertavam. Ela segredou à terapeuta que tudo isso se dava no plano social, quer dizer, com eles vestidos, circulando em ambientes diversos. Sim, ela jamais havia visto um homem nu ao vivo e fantasiava com isso, claro. Como reagiria? Conseguiria conter os desejos que teimavam em lhe assomar à mente, que movimentavam estruturas forçosamente em desuso? Uma incógnita alimentada pela restrição que a roupa, o hábito quente e pudico de freira, lhe impunha. Enquanto essas elucubrações eram participadas à psiquiatra, na sala ao lado processava-se um movimento inusitado. A clínica era dividida com um urologista, que naquele dia acordou decidido a mudar a cor das paredes da sala em que atendia os pacientes. E quis ele mesmo fazer isso, apesar de reunir experiência zero em rolos, 16 em nome DE DEUS pincéis e tintas. No lugar de comprar tinta lilás pronta, queria ele mesmo processar a alquimia, misturando manualmente as cores do arco-íris. Ocorreu-lhe, então, algo razoável. Que seria impossível lidar com aquilo todo vestido de branco, uniforme do atendimento que passaria a fazer à tarde. Despiu-se, mas manteve a cueca cor da pele, minúscula e bem justa. O doutor gostava de propalar certo caráter sedutor em suas aventuras íntimas e não economizava nas roupas de baixo. No lugar de comprar tinta lilás pronta, queria ele mesmo processar a alquimia, misturando manualmente as cores do arco-íris (...) Despiu-se, mas manteve a cueca cor da pele, minúscula e bem justa. O doutor gostava de propalar certo caráter sedutor em suas aventuras íntimas e não economizava nas roupas de baixo 17 A primeira tentativa de misturas foi um fracasso, prevalecendo o rosa. Impaciente, imaginou que mais espaço seria determinante para o sucesso da empreitada. Reuniu os livros dispostos na prateleira já retirada da parede e se dirigiu à porta de comunicação com o consultório de psiquiatria. E foi assim que ele surgiu, um homem quase nu, parcialmente coberto, todo respingado de tinta, do cabelo à unha do dedo mindinho. Numa das mãos, uma penca de livros, noutra, o rolo de tinta ainda fresca e pingando, espalhando o rosa no trajeto. A freira pulou da poltrona e pôs-se a gritar alto, em evidente crise histérica, hipnotizada pela visão do masculino ali, a poucos metros dela, e quase sem roupa. A cor da cueca causava mesmo uma ilusão de ótica. Estaria ele nu? A psiquiatra, enquanto isso, teve uma crise incontrolável de riso. E o urologista ali pasmo, sem entender nada. Depois de um minuto, mais ou menos, ele finalmente conseguiu se explicar, contar do projeto, das tintas, estranhando a presença precoce de paciente e terapeuta. Dito isso, e após as desculpas de praxe, correu de volta para sua sala. A perplexidade não foi produto unicamente da vestimenta minúscula, mas também da inversão de papéis. Não entrava na cabeça da freira a figura do médico pintor. Teria sido produto de sua imaginação fértil, justamente curiosa pela visão do corpo de homem? Ela só repetia: “Meu Deus, que susto, que susto, meu Deus!” A terapeuta não perdeu a deixa, nem o humor: “Pena que ele não estava nu, porque finalmente você veria um homem assim, totalmente exposto”. A religiosa achou graça, afinal, descontraiu e deu boas gargalhadas. A entrada em cena do urologista de cueca foi um achado terapêutico. O tema da sexualidade reprimida da freira voltou ao lugar central do processo. Depois de contemplar um homem, ela repensaria a necessidade de vida sexual? Ou melhor, repensaria sua opção religiosa? Com questões assim no ar, ela embarcou para o Velho Continente, onde permaneceu por vários meses. De volta, retornou à psicoterapia para retomar o tema, dessa vez com uma abertura surpreendente. Falava agora, às claras, do que lhe provocava a visão de homens que a atraíam. Chegou mesmo a cogitar assumir sua sexualidade, dissimulando essa opção para as superioras e colegas de claustro. Mas não, sabia-se incapaz de pecar dessa maneira. E por uma razão vinculada à crença no Deus onipresente, que tudo vê, do qual nada escapa. Nada feito. 18 em nome DE DEUS Ela ainda seria diretamente testada, e assim foi. A tentação apresentou-se de modo quase inescapável durante uma singela ida ao dentista. Tipo alto, másculo, dentes fortes e alvos, era um solteiro desses convictos. Mas a visão do hábito, do olhar que evitava o seu, do corpo que parecia convidar ao encontro... Ele capitulou e passou a cortejar abertamente a paciente, indiferente ao terço, ao crucifixo. Herege, ela pensava, enquanto ele a despia com os olhos. Em uma ocasião em que as mãos se tocaram e ele roçou o braço em seu seio esquerdo, aparentemente de forma acidental, ela perdeu o sono por três noites. Retornou à psicoterapia, onde relatou sua angústia agora multiplicada pela presença do dentista, pela disponibilidade, pelas intenções que ele declarava. Que queria tê-la como mulher, gerar filhos, ir junto à missa. Desejava amá-la até quase o desfalecimento. Ele tremia de desejo incontido por aquela mulher, ela não menos. Apaixonada, não viu outra alternativa senão entregar seus dentes, canais e gengivas a outro, um senhor com ar grave e circunspecto, uma enorme aliança na mão esquerda e a foto da esposa querida junto aos anestésicos bucais. Assim castrada, como ela própria passou a se definir, a freira confirmou seus votos, mas não conseguiu sufocar suas intenções mais viscerais. Aos 39 anos, hoje à frente de um colégio religioso, ela ainda retorna à terapia para contar sua via-crúcis. Esteve à beira do sepulcro, peregrina periodicamente a lugares sagrados para fortalecer sua fé e chega até a se autoflagelar quando o corpo pede algo que ela não pode dar. Mas ainda não tem certeza de que fez a coisa certa. Colaborou: Dra. Jane Aparecida Lima Neuropsiquiatra, médica do Setor de Pesquisas do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) 19 TÍPICO 4 meu nome É FELICIDADE Não que a vida fosse fácil. Na verdade, quando aquela menina nasceu, a terceira numa prole de cinco, os pais passaram dias pensando no nome com que a batizariam. Então lembraram da vida atribulada, dos percalços diários, da dificuldade em fechar as contas do mês, da falta de saneamento básico no bairro onde moravam. A mãe sugeriu e o pai acatou. No cartório, houve estranhamento, um risinho do escrivão, mas ficou mesmo Felicidade das Dores Santos. Das dores porque era comum no sertão onde nasceram os avós paternos, mas bem que causava estranhamento. Felicidade rima com dores? Isso ela ainda teria de descobrir. Órfã dos pais aos dois anos, Felicidade foi cuidada pela avó materna durante a infância. Muito curiosa e atenta, abria portas de armários e vasculhava tudo que houvesse à mão. Se não estivesse, ela subia, se arrastava, se empenhava. Naturalmente colecionava tombos homéricos, queimaduras e até mesmo a ingestão acidental de água sanitária. Levada às pressas ao pronto-socorro, por uma dessas felicidades inexplicáveis, a menina expeliu quase tudo à primeira passagem da sonda gástrica. Logo se recobrou, pronta para nova arte no muro do vizinho que lhe deixou de molho por dias, com o braço engessado. Assim a menina foi crescendo espalhando alegria. Sim, porque sempre que alguém anunciava seu nome, ainda que alguns achassem ridículo, muitos sorriam, porque era bom ouvir e conviver com a idéia ou a personificação da felicidade. A menina cresceu achando que algo lhe era destinado, só não atinava o quê. Quando eram apresentadas, as pessoas reagiam com um sorriso simpático ou com uma expressão de perda, de quem deixou qualquer percepção feliz pelo caminho. “Felicidade, é você?”, gostava de perguntar a avó. Só para que ela respondesse, candidamente: “Sou eu, sim, a felicidade”. A força convincente da palavra, a poética de um nome operando alegrias íntimas em pessoas geralmente desassistidas em todos os planos. E assim ela foi crescendo, entre gente que a estranhava e outros que a acolhiam por obra e mérito da intuição dos pais naquele dia do batismo. Ela encarnava, afinal, o que todos almejavam. 20 meu nome É FELICIDADE No bairro pobre onde vivia, houve uma época em que a menina chegou a ser alvo de fanáticos religiosos que viam nela alguma espécie de liderança de rebanho por obra de desígnio divino. Mas Felicidade não mostrava sinais de uma graça excepcional, nem operava milagres além de causar sorrisos simpáticos a seu redor, à menção de seu nome. A menina cultivava, sim, sua forma muito particular de infelicidade. Ansiosa e atônita com a expectativa que depositaram nela, já adolescente passava horas enrolando o cabelo com a ponta dos dedos de um modo que beirava a obsessão. Da mania de enrolar os fios para puxar e arrancá-los foi um intervalo menor que um ano. Quando o cabelo começou a escassear na fronte e uma franja foi improvisada pela cabeleireira do bairro para tentar esconder o estrago, a avó entendeu que a menina sofria com aquilo e a levou ao posto de saúde mais próximo. O clínico que a atendeu ligou para um psiquiatra amigo e veio o diagnóstico, a partir do relato do outro. Felicidade das Dores sofria de tricotilomania, um distúrbio caracterizado quando o paciente se livra dos fios de cabelo por razões não-estéticas Era um sofrimento aquilo. Em certos dias, a cama, o sofá, a cadeira da mesa de refeições eram pontos de deposição dos fios, prova visível da aflição da moça. Soube também que tricotilomaníacos costumavam descrever a cabeça como um grande ímã que, a todo o tempo, atrai a mão em direção a ela. Um ato que era sinônimo de sofrimento e prazer, esse contraste feito de dor e felicidade, ainda que instantânea. Por força do descontrole capilar, adiava interminavelmente o início da vida afetiva e buscava trabalhos leves e precariamente remunerados. Ela desejava estar com seus botões, e sentia-se, à sua maneira, feliz. Não era a completa anti-social, mas entendia vagamente que os limites entre o normal e o insano eram muito tênues. Pensava mais em termos do “não normal” como alguém não adaptado às regras, ao comportamento que se esperava de todos e de qualquer um. Ouviu certa vez de um personagem de novela que ser normal consistia em estar livre de doenças e ser capaz de viver um estado de felicidade inexplicável. Ainda que a vida doesse, que os dias por vezes se arrastassem como numa câmera lenta. Ela preferia a definição que achou em um livrinho de auto-ajuda e que dizia mais ou menos o seguinte: normalidade é viver sem medo ou culpas demais, e poder assumir a responsabilidade pelo que se faz, por suas ações. Então ela achou o psiquiatra. Era um homem magro e de sorriso franco que atendia em um posto de saúde do INSS. Isso porque a tricotilomania da paciente terminou 21 Então escancarou para o médico a mania de levar a mão à cabeça para extrair cabelos, sua angústia por ver-se atrelada a algo que ainda não havia descoberto por inteiro (se era feliz?), o cotidiano sem horizontes, mas suficiente para que ela se sentisse viva enquadrada em distúrbio ocupacional. Ocupada com o couro cabeludo, ela deixava papéis acumularem-se, não retornava para os clientes interessados na locação de casinhas de vila que era a especialidade da imobiliária em que trabalhava. Foi ele articular as primeiras palavras, e ela, em súbita empatia, enquadrou-se na descrição de normalidade na qual importante era também assumir-se, quem era e do que precisava. Então escancarou para o médico a mania de levar a mão à cabeça para extrair cabelos, sua angústia por ver-se atrelada a algo que ainda não havia descoberto por inteiro (se era feliz?), o cotidiano sem horizontes, mas suficiente para que ela se sentisse viva. O médico achava graça das histórias contadas pela mocinha magra que alternava períodos de grande vivacidade e outros tantos de alheamento, às voltas 22 meu nome É FELICIDADE com os caracóis dos próprios cabelos. Em vez de apenas prescrever ansiolíticos, ele reagendava a paciente para, dentro do possível, em um ambulatório daqueles, realizar um acompanhamento dos afetos da moça, como em uma psicoterapia. Percebia nela certa alegria desmesurada por estar viva, nem sempre exposta às claras. Isso fazia um bem enorme a ele. Era atendê-la e imaginar que a vida sempre se refazia. Ele atravessava uma fase pessoal conturbada e repetia o nome dela, durante o atendimento, como um mantra. Quem sabe não operaria mudanças drásticas. Um dia, ela sumiu do ambulatório. Foi uma tristeza só. Para ele, as atendentes, o segurança, a moça da cantina. Era tão tocante a presença daquela criatura, tocada nominalmente por algo ansiosamente desejado por todos, que chegavam a suspirar: “Enfim, se um dia a Felicidade voltar”. E ela reapareceu, sem marcar, em dia de chuviscos finos, de garoa persistente. Avisado, o médico esperou a paciente que atendia sair para chamar, em alto e bom som: Felicidade!! A mulher que saía olhou para ele, olhos marejados, e agradeceu. Uma palavra tão simples, mas dita assim, a plenos pulmões, que vigor continha, ele pensou, abrindo a porta para deixá-la entrar. Colaborou: Dr. Wimer Bottura Psiquiatra, psicoterapeuta, autor de “Agressões Silenciosas”, “A Paternidade faz a diferença”, entre outros livros 23 o morcego INVASOR TÍPICO 5 Alfredo sofria de meia dúzia de fobias. Era tratado em sessões semanais pela psiquiatra especialista na abordagem desse tipo de distúrbio. No histórico clínico, havia registros pormenorizados do medo excessivo e persistente relacionado a diversas situações. As fobias específicas relatadas pelo paciente incluíam ataque de batráquios (sapos, rãs e aparentados), aglomeração de pessoas, escuridão, vários insetos, altura e ruídos intensos. Uma particularidade dele era a fobia de fogo. Antítese de Nero, o imperador que assistiu com alegria ao incêndio que devastou a capital do Império Romano, ele tinha verdadeiro horror a fogueiras, fogões e mesmo a isqueiros. A terapêutica cognitivo-comportamental adotada pela psiquiatra buscava a modificação daquele gênero de pensamento fixo alimentado pelo medo persistente, que leva a atitudes de isolamento social e causava sérios transtornos e sofrimento psíquico ao paciente. Imerso nos pensamentos fóbicos, Alfredo enfrentava sérias dificuldades para conduzir-se na vida. Julgava estar sempre exposto à avaliação dos outros e imaginavase alvo de toda sorte de humilhações. A ansiedade era expressa por fuga de situações sociais nas quais houvesse pessoas que não lhe eram familiares. Os sintomas físicos incluíam palpitações, tremores, falta de ar, sudorese e náusea. Na escola, havia sido classificado de louco e esquisito. Os colegas o evitavam, riam dele e dos medos que o cercavam. A hora do lanche era uma autêntica tortura, porque ele temia passar mal quando levasse qualquer coisa à boca. Refugiava-se no banheiro, e mesmo lá era alvo de toda sorte de maus tratos e chacotas. Desistiu da escola no dia em que o professor de biologia pediu um trabalho de campo que consistia em coletar espécimes de insetos, os mais variados possíveis. Além de não trazer o trabalho, Alfredo sofreu uma crise de pânico durante a apresentação dos colegas, correndo da sala aos gritos e sob o coro das gargalhadas alheias. Tentou trabalhar em empresas que ofereciam vagas intermediadas pelo setor de psiquiatria de um grande hospital. Em vão. Encarregado do xerox, tinha receio exacerbado 24 o morcego INVASOR de prender os dedos na hora de liberar papéis enroscados no interior da máquina. Também se sentia vigiado pelos colegas e alvo de todos os olhares. A família, resignada, decidiu que era hora do enfrentamento daquele sofrimento todo. Alfredo não faltava a uma única sessão. Tinha desenvolvido um vínculo tão forte com a psiquiatra que tinha dificuldade de entender que seu tempo acabara. Ficava por ali até que um parente viesse buscá-lo. Sentia-se como um refugiado que finalmente fora abrigado em um porto seguro. O tratamento comportamental, baseado na exposição gradual à situação temida, fazia ele se sentir capaz de lidar com aquela síndrome que o paralisava. Alfredo pegou uma cadeira, subiu e, com ajuda de um pano velho, capturou o morcego na segunda tentativa 25 Foi numa quinta-feira que o inesperado aconteceu. Alfredo estava sentado diante da psiquiatra no consultório amplo e ensolarado, com uma grande janela que permanecia aberta nos dias mais quentes. De repente, irrompeu na sala um morcego de não mais que 20 cm de tamanho – ele fez uma longa circunvolução pelo ambiente, reconhecendo o terreno, e encarapitou-se no lustre. À primeira visão do animal de memória assombrosa apesar do tamanho minúsculo, a psiquiatra deu um pulo, um grito agudo e ficou colada à parede, olhando de longe o morcego que a espreitava. Alfredo, surpreso com o pânico de sua médica, reagiu prontamente: “Mas, doutora, é só um morcego!”. Naquele momento os temores do paciente foram para baixo do tapete que decorava a sala. Ele estava no controle! A visão do descontrole daquela que cuidava dele e a possibilidade (graças ao morcego!) de retomar o comando da própria vida havia operado algo dentro dele. Sentiu quase que um esmigalhar, como se uma estrutura dura e calcificada dentro dele estivesse agora estilhaçada. A médica oscilava entre a ojeriza que a presença do microanimal lhe causava e a perplexidade de perceber que havia se mostrado frágil e de algum modo também fóbica diante do paciente. Alfredo pegou uma cadeira, subiu e, com ajuda de um pano velho, capturou o morcego na segunda tentativa. Na primeira, tudo que conseguiu foi espantar o animal, que ensaiou novo sobrevôo pela sala, para horror da médica, a essa altura acuada no sofá. Instalou-se novamente no lustre, de onde Alfredo o capturou com a perícia de um quase bombeiro, lançando-o para fora da sala e fechando a janela. Restabelecida a paz, médica e paciente retomaram seus lugares e riram muito. Ela da própria fragilidade e do inusitado da situação, e ele por descobrir que a normalidade é mesmo muito relativa. Colaborou: Dra. Ana Hounie Psiquiatra, vice-coordenadora do Projeto Transtornos do Espectro Obsessivo Compulsivo (Protoc) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) 26 5000003095 - Livro Entreatos