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UNIVERSIDADE DE MARÍLIA – UNIMAR
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
MARIA CLÁUDIA LOPES JULIETE
O SENHOR DOS ANÉIS: TRANSCODIFICAÇÃO DA OBRA
LITERÁRIA À CINEMATOGRÁFICA
Marília
2010
UNIVERSIDADE DE MARÍLIA – UNIMAR
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
MARIA CLÁUDIA LOPES JULIETE
O SENHOR DOS ANÉIS: TRANSCODIFICAÇÃO DA OBRA
LITERÁRIA À CINEMATOGRÁFICA
Dissertação apresentada ao curso de PósGraduação da Universidade de Marília (Unimar)
para obtenção do Título de Mestre em
Comunicação.
Área de Concentração em Mídia e Cultura:
Linha de Pesquisa – Ficção na Mídia.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosângela Marçolla.
Marília
2010
Universidade de Marília – UNIMAR
Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Reitor: Dr. Márcio Mesquita Serva
Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação
Pró-reitora: Profª. Drª. Suely Fadul Villibor Flory
Coordenadora: Prof.ª Dr.ª Rosângela Marçolla
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosângela Marçolla
NOTAS DA BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO
Maria Cláudia Lopes Juliete
“O SENHOR DOS ANÉIS: TRANSCODIFICAÇÃO DA OBRA LITERÁRIA À
CINEMATOGRÁFICA”
Data da Defesa:
Banca Examinadora
Prof. Dr.
Avaliação: _______________________ Assinatura: ______________
Prof. Dr.
Avaliação: _______________________ Assinatura: ______________
Prof. Dr.
Avaliação: _______________________ Assinatura: ______________
Dedicatória
Primeiramente a Deus e aos espíritos amigos, que iluminam e sustentam
nossa alma constantemente.
Dedico a meu pai, que sem o auxílio dele nada poderia ser feito.
À minha mãe, que de maneira inconsciente me apresentou o mundo que
tanto pleiteei, e pela interminável confiança em meu ser.
Ao Rafael, fonte de sustentabilidade para o desenvolvimento de todo
trabalho. Sem você, isso nada seria.
Aos familiares e amigos que juntos acompanharam e vibraram por minha
vitória.
Agradecimentos
Todos, certamente, tiveram um papel fundamental para a concretização
deste trabalho.
De início, presto homenagem ao Professor Dr. Antônio Manoel dos Santos
Silva, pelo grande auxílio na elaboração desta dissertação, contribuindo para a elaboração das
idéias iniciais, do referencial teórico, do desenvolvimento da dissertação, pelo que apresento,
desde já, meus votos de gratidão.
À Professora orientadora Dra. Rosangela Marçolla, coordenadora do
programa de pós-graduação em Comunicação da Universidade de Marília - UNIMAR, com
quem tive o prazer de conviver durante o curso e participar de suas aulas que tanto
contribuíram no desenvolvimento acadêmico e para a conclusão do presente trabalho.
Aos Professores Doutores que permitiram dar-nos o conhecimento e a
capacidade de hoje se realizar um sonho: Maria Cecília Guirado, Andréia Cristina
Labegallini, Lúcia Correia Marques de Miranda e Roberto Reis.
A todos o meu muito obrigado.
“Elen síla lúmenn´ omentielvo” (uma estrela brilha sobre a hora de nosso encontro).
Tolkien
Resumo
A proposta deste estudo é analisar a transcodificação midiática derivada da obra literária O
Senhor dos Anéis para o cinema, mantendo como foco do estudo os elementos que recaíram
sobre o autor no ato da criação da mesma, a elaboração da obra e a importância que a inserção
mitológica obteve no contexto da criação ficcional, assim como, ao tentar alterar uma mídia
para outra, da literária para fílmica, averiguar quais os elementos presentes que envolvem uma
produção cinematográfica e os recursos que dela dispõem, apontando também as agravantes
que recaem no processo adaptativo. Desta forma, foi traçado um parâmetro sobre a mitologia
presente na vida do escritor John Tolkien que acabou resultando na criação da obra, assim
como o importante significado da existência do mito na vida das pessoas. Houve também um
presságio sobre como a obra veio a ser elaborada e os fatores que levaram o autor a compor
sua criação. Analisando-se os principais aspectos da obra literária, tais como o ambiente
imaginário, personagens simbólicos, o enredo da obra, entre outros, verifica-se que o poder do
mito é grandioso, pois eleva e incita o homem a viver e rememorar a própria história,
recheada de feitos heróicos e fantásticos. Peter Jackson, para realizar a adaptação do romance
épico para o cinema, manteve a essência original da obra para não descaracterizá-la. Para isso,
utilizou-se de recursos cinematográficos, efeitos audiovisuais, em busca de obter maior
impacto junto ao público consumidor. Desta forma, obteve como resultado uma adaptação
cinematográfica fidedigna à obra literária, sendo aclamado pela crítica e pelo público.
Palavras-chave: Comunicação. Cinema. Transcodificação. Adaptação fílmica. O Senhor dos
Anéis. John Ronald Reuel Tolkien. Peter Jackson.
Abstract
The proposal of this study is to analyze the media´s transcoding of the literary composition
The Lord of the Rings for the cinema, keeping the focus on the study of the elements above
the author in the act of the creation of the same one, the elaboration of the workmanship and
the importance that the mithologic insertion got in the context of the ficcional creation, as
well as, trying to modify a media for another one, of the literary one for the movie, to inquire
which the elements gifts that involve a cinematographic production and the resources that of it
makes use, also pointing the aggravations that they fall again into the adaptation process. In
such a way, a parameter on present mythology in the life of the writer was traced John
Tolkien who finished resulting in the creation of the workmanship, as well as important the
meaning of the existence it myth in the life them people. It also had an omen on as the
workmanship came to be elaborated and the factors that had taken the author to compose its
creation. Analyzing the main aspects of the literary composition, such as the imaginary
environment, symbolic personages, the plot of the workmanship, among others, are verified
that the power of the myth is huge, therefore raise and stir up the man to live and to recollect
the proper history, stuffed of heroic and fantastic facts. Peter Jackson, to carry through the
adaptation of the epic romance for the cinema, kept the original essence of the workmanship
not to deprive of characteristics it. For this, it was used of cinematographic resources,
audiovisuals effect, in search to get greater impact next to the consuming public. In such a
way, it got as resulted a trustworth cinematographic adaptation to the literary composition,
being acclaimed for the critical one and the public.
Keywords: Comunication. Cinema. Transcoding. Movie´s adaptation. The Lord of the rings.
John Ronald Reuel Tolkien. Peter Jackson.
Juliete, Maria Claudia Lopes
O Senhor dos anéis: Transcodificação da obra literária á
cinematográfica/ Maria Claudia Lopes Juliete; - Marília: UNIMAR; 2010.
140 f.
Dissertação(Mestrado em Comunicação)- Faculdade de Comunicação
Educação e Turismo, Universidade de Marília, Marília, 2010.
1. Comunicação 2. Cinema 3. Transcodificação 4. O Senhor dos
Anéis I. – Juliete, Maria Claudia Lopes.
CDD -- 791.43
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 11
CAPÍTULO 1 – UNIVERSO DE TOLKIEN ......................................................................... 14
1.1. Vida Tolkeniana.................................................................................................... 16
1.2. Breve relato fantasioso ......................................................................................... 20
1.3. Propedêutica da obra mitológica .......................................................................... 22
1.3.1. Compreendendo a ficção de Tolkien ........................................................ 24
1.3.1.1. Primeiro gênero – Fantasia ................................................................. 24
1.3.1.2. Segundo gênero – Conto .................................................................... 25
1.3.1.3. Terceiro gênero – Saga ....................................................................... 27
1.3.1.4. Quarto gênero – Mito ......................................................................... 28
1.3.2. A fantasia segundo Tolkien ...................................................................... 32
1.4. Pseudotradução ..................................................................................................... 37
CAPÍTULO 2 – OBRA LITERÁRIA: O SENHOR DOS ANÉIS ......................................... 45
2.1. O surgimento da obra............................................................................................ 45
2.2. O imaginário presente na vida .............................................................................. 50
2.3. Fatos históricos, não alegóricos ............................................................................ 53
2.4. Inserção mitológica das personagens: Frodo, Gandalf e Sauron .......................... 55
2.4.1. A vida de um hobbit, seu habitat. .............................................................. 58
2.4.2. Os magos, uma perspectiva de Gandalf e Sauron...................................... 67
2.4.3. O necromante ............................................................................................. 72
2.4.4. Mithrandir, o Cinzento Peregrino .............................................................. 75
2.5. Terra-média, um espaço imaginário ..................................................................... 79
2.5.1. Fauna e flora da Terra-média ...................................................................... 83
2.5.2. O povoado da Terra-média ......................................................................... 84
CAPÍTULO 3 – TRANSCODIFICAÇÃO FÍLMICA DA OBRA O SENHOR DOS ANÉIS .... 87
3.1. A origem do espetáculo ........................................................................................ 89
3.2. O impasse entre o falado e o escrito ..................................................................... 90
3.2.1. O produtor de histórias-em-imagens......................................................... 93
3.3. Cinema: a indústria do sonho ............................................................................... 97
3.4. Obra literária e adaptação fílmica ...................................................................... 100
3.4.1. A montagem do elenco ........................................................................... 102
3.5. A adaptação como arte........................................................................................ 105
3.5.1. Problemas enfrentados na adaptação ........................................................ 107
3.5.2. A obra adaptada ...................................................................................... 110
3.6. O texto adaptado ................................................................................................. 115
3.6.1. Aspectos preservados do romance ............................................................ 116
3.6.2. Elementos ausentes na conversão fílmica................................................. 119
3.6.3. Elementos adicionados na obra adaptada ................................................. 125
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 134
REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 138
11
INTRODUÇÃO
No meio cinematográfico há muito se encontra a utilização da adaptação de
obras literárias consagradas. O estudo busca averiguar as variadas etapas da transcodificação
midiática que decorrem do processo adaptativo de uma obra literária à cinematográfica.
O foco principal para o presente estudo parte da obra originada por John
Ronald Reuel Tolkien (1892-1973), O Senhor dos Anéis e, para poder realizar tal projeto,
busca-se identificar os elementos desconexos entre a narrativa literária e a fílmica, detectar
elementos novos que o meio cinematográfico permite adquirir, tais como efeitos especiais,
recursos sonoros e visuais e observar como eles interferem no processo de montagem fílmica.
No entanto, para elaborar uma análise de conteúdo, também será necessário analisar, em um
contexto histórico, cultural e midiático, as diferenças marcantes existentes entre a obra
literária e a obra fílmica, contendo as semelhanças mantidas, elementos adicionados e os que
foram retirados, assim como as dificuldades enfrentadas na transcodificação literário-fílmica,
resultando por fim na obra adaptada.
[...] ler um livro e assistir a um filme são experiências bem diferentes. E é
exatamente esta diferença que causa dificuldades para a transformação do livro em
filme. Ao lermos um livro, o tempo está a nosso favor. Não se trata de uma
experiência puramente cronológica, em que a outra pessoa determina o nosso ritmo,
mas sim de uma experiência reflexiva. [...] ler um trecho, colocar o livro de lado,
refletir a respeito do que foi lido, reler uma página, tudo isso faz parte do prazer da
leitura. A linguagem em si nos dá tanto prazer quanto a própria história. (STAM,
2008, p. 32).
Nesse contexto, a hipótese do estudo parte da premissa que uma mídia
resulta de maneira diferente ao original, pois ao transpassar uma obra literária para fílmica, a
tradução da linguagem de uma mídia é dispare de outra. Há outras hipóteses a serem
analisadas, como averiguar a escolha e utilização de recursos especiais, visuais e sonoros a
fim de tentar proporcionar maior caracterização do original.
Adaptar implica recompor uma narrativa a partir da sua trama principal, manter as
tramas secundárias mais importantes, manter tema e premissa, bem como a essência
dos perfis dos personagens centrais. Transpor uma estória para outro lugar ou tempo,
mudar o estilo, as estratégias ou o formato da narrativa original não descaracteriza o
trabalho como sendo adaptação. (CAMPOS, 2007, p. 299).
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Também buscará averiguar os diferentes resultados obtidos pelas variadas
tentativas de adaptação da trilogia O Senhor dos Anéis, porém a obra demonstra resultar de
um trabalho extremamente complexo. Por fim, no ano de 2001 o cineasta neozelandês Peter
Jackson lança ao desafio de adaptar a trilogia e, de maneira única fazer a montagem dos
filmes, mantendo como principal foco a fidelidade da mesma.
Muito mais ambicioso – na verdade algo único, em sua magnitude, na história do
cinema – foi o projeto do neozelandês Peter Jackson, que filmou de uma só vez e
lançou em três etapas – em 2001, 2002 e 2003 – seu próprio Senhor dos Anéis. Não
apenas pela imensa publicidade dos filmes, mas também pelo merchandising de
todos os produtos correlatos, esse projeto atraiu a atenção do mundo e transformou
em fãs de Tolkien muitas pessoas que até então nunca tinham ouvido falar dele. No
mínimo este mérito tem a produção de Jackson: implantou Tolkien no imaginário
público e fez muita gente interessar-se por suas obras também no papel. (KYRMSE,
2003, p. 140).
Possuindo o objeto de estudo como resultado de um processo de
transcodificação de uma obra literária para uma obra fílmica, pode-se justificar que o estudo
contribui em análises semelhantes que sejam realizadas sobre outras transposições midiáticas,
auxiliando na compreensão da utilização da alteração de mídias para um sistema há muito
utilizado, a adaptação.
Por fim, o estudo visa apresentar a adaptação de O Senhor dos Anéis, a
influência que a mesma causou e continua causando nas pessoas, passando sobre as
problemáticas existentes em sua produção, porém ser possível manter a fidelidade do romance
com os recursos obtidos pela atualidade.
No primeiro capítulo do estudo a abordagem baseará na vida do escritor
John Tolkien, observando os motivos que impulsionaram o autor a desenvolver a obra, assim
como o poder que a mitologia exercia em sua vida e na vida das pessoas para que se faça
compreensível a sua criação ficcional.
Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através
dos tempos. Todos nós precisamos contar nossa história, compreender nossa
história. Todos nós precisamos compreender a morte e enfrentar a morte, e todos nós
precisamos de ajuda em nossa passagem do nascimento à vida e depois à morte.
Precisamos que a vida tenha significação, precisamos tocar o eterno, compreender o
misterioso, descobrir o que somos. (CAMPBELL, 1990, p. 16).
E ainda,
13
A mitologia lhes ensina o que está por trás da literatura e das artes, ensina sobre a
sua própria vida. É um assunto vasto, excitante, um alimento vital. A mitologia tem
muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de iniciação, quando você passa
da infância para as responsabilidades do adulto, da condição de solteiro para a de
casado. Todos esses rituais são ritos mitológicos. Todos têm a ver com o novo papel
que você passa a desempenhar, com o processo de atirar fora o que é velho para
voltar com o novo, assumindo uma função responsável. (CAMPBELL, 1990, p. 25).
Já no segundo capítulo, a abordagem será sobre os principais aspectos da
obra literária e da mitologia que a ladeia. Para tanto, tem-se três aspectos que são distintos,
mas que, para a obra, analisá-los separadamente torna-se ininteligível. Respondem a essa
abordagem a fantasia, o mito e a linguagem.
A fantasia adentra no imaginário do ser, permitindo-se observar fatos do
cotidiano por outro prisma, transformando fantasia em verossimilhança. Isto porque a fantasia
é derivada da realidade. Sem a apresentação desses elementos corriqueiros do cotidiano na
narrativa, a obra não despertaria tanto interesse ao leitor. A fantasia capacita a pessoa a
adentrar em um mundo imaginário, em um mundo onde tudo é possível enquanto ali estiver,
coerente com a realidade existencial enraizada na obra.
O mito seria a história de nossa história. São as respostas para a essência das
coisas, possibilitando a compreensão da existência humana, permitindo-se passar ao leitor
valores sociais e morais. Toda a história presente na narrativa deriva da obtenção dos dados
por meio de registros, onde nada é criado e inventado e sim, registrado. Os dados
apresentados permitem plausibilidade na narrativa.
Devido ao autor ser movido constantemente pela busca da origem da
palavra por entre as línguas, ele deleita na criação lingüística ficcional, mantendo o padrão da
língua na eufonia e na beleza da escrita. Há ainda a abordagem da inserção da mitologia em
seus personagens e o enredo da obra.
No terceiro capítulo, o estudo terá como ponto crucial a apreensão dos
principais fatores que interferem em uma adaptação, principalmente de uma obra de grande
aspecto como O Senhor dos Anéis. Para que a essência do original não se perdesse, o cineasta
Peter Jackson utilizou em demasia de recursos cinematográficos, efeitos sonoros e visuais,
visando impactar e aflorar o imaginário dos espectadores.
Com isso o estudo se inicia. Segue o primeiro capítulo sobre Universo de
Tolkien.
14
CAPÍTULO 1- UNIVERSO LITERÁRIO DE TOLKIEN
O romance mundialmente conhecido O Senhor dos Anéis foi escrito por
John Ronald Reuel Tolkien. A obra, iniciada em 1936, somente veio a ser publicada em 1954.
Ela causou um grande impacto na sociedade devido à sua qualidade literária e por se tratar de
um gênero cativante, o fantástico.
John Ronald Reuel Tolkien1 era membro de vários grupos de pesquisa
literária, tais como: o The Inklings (os membros eram do sexo masculino e a maioria que o
compunha eram acadêmicos de Oxford, havia a presença de seu amigo Lewis, e também de
seu filho mais velho, Christopher Tolkien. O foco principal era estudar a narrativa na ficção e
a fantasia, que era voltado à literatura); o The Coalbiters, que fora fundado por Tolkien, que
tinha como objetivo o estudo da literatura nórdica2; foi também membro de uma equipe
formada para o preparo do New English Dictionary, que é o equivalente ao nosso dicionário
Aurélio.
Foi um renomado professor universitário de Oxford, considerado um dos
maiores especialistas em anglo saxão, tanto que foi eleito à Cátedra de Anglo-Saxão (inglês
arcaico e que tinha como intuito pesquisas no campo de estudos lingüísticos e literários),
filósofo, filólogo, considerado como “autor do século” (KYRMSE, 2003, p. 23).
Seu conhecimento vasto em lingüística abrangia uma média de dezessete
idiomas que permitiu ao autor a criação e desenvolvimento de suas línguas élficas, o quenya e
o sindarin, movidas pela eufonia e pela estética, como o “Repicar dos sinos”. Para o autor,
primeiro vinha a palavra, depois a história.
Criou, também, várias outras línguas, mas nenhuma tão bem elaborada
quanto as duas linguagens élficas. De igual forma, criou sistemas de escrita, como as
Angerthas (ou runas) e as Tengwar. Para Tolkien uma língua bonita necessita também de um
alfabeto elegante.
Foi com base nestas línguas criadas por si próprio, que Tolkien inicia a
criação do “seu mundo secundário”, Arda.
Antes da criação de O Senhor dos Anéis, Tolkien escreve O Hobbit.
Observa-se em seguida como tudo se originou.
1
2
Tolkien nasceu em 1892 na África do Sul. Viveu na Inglaterra até seus 81 anos, falecendo em 1973.
O grupo de pesquisa The Coalbiters utilizava para análise as obras Beowulf e os Kalavaras.
15
Tudo que me lembro sobre o início de O Hobbit é de sentar para corrigir provas para
o Certificado Escolar no cansaço interminável daquela tarefa anual imposta sobre
acadêmicos sem dinheiro e com filhos. Em uma folha em branco rabisquei: “Numa
toca no chão vivia um hobbit.” não sabia e não sei por quê. Não fiz nada a respeito
por um longo tempo, e por alguns anos não fui além da produção do Mapa de Thror.
Porém, tornou-se O Hobbit [....]. (CARPENTER, 2006, p. 207).
Em vida, Tolkien conseguira apenas presenciar a publicação de poucas
obras, tais como: O Hobbit, publicado em 1937; Mestre Gil de Ham, publicado em 1949; O
Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel e As Duas Torres, ambas as obras publicadas em
1954; e O Retorno do Rei em 1955, sua última obra publicada em vida.
Outras importantes obras desenvolvidas pelo autor vieram a ser publicadas
postumamente por seu filho Christopher Tolkien: O Silmarillion, publicado em 1977; Contos
Inacabados da Terra Média, publicado em 1980; Roverandom, publicado em 1998; entre
muitas outras.
Tolkien, com o fantástico presente em suas obras, que cativam e se mantêm
populares até hoje, influenciou autores das mais variadas áreas, como arte, música, televisão e
cinema. Como exemplo temos A Caverna do Dragão (desenho animado), o filme Dungeons
& Dragons, A História Sem Fim, Coração de Dragão.
Aos olhos dos críticos, a obra literária sempre obteve comentários
controversos. Alguns a julgavam ser “um lixo juvenil”. Outros a consideravam cativante,
envolvente. Segue alguns exemplos dos mesmos: “O Sr. Tolkien foi mais completamente
bem-sucedido do que qualquer outro escritor anterior nesse gênero ao usar as propriedades
tradicionais da Busca” (AUDEN apud CARPENTER, 2006, p. 229).
No mesmo sentido, a crítica de Auden ressalta que:
“J. R. R. Tolkien continua a história imaginativa do mundo imaginário ao qual nos
apresentou no seu livro anterior, mas de um modo adequado aos adultos”, Auden
comenta a criatividade de Tolkien, a consistência do mundo subcriado, e a
relevância que este pode ter para o nosso. (KYRMSE, 2003, p. 130).
Noutro sentido, a crítica negativa feita por Erich Auerbach diz: “O mundo
de provações cavalheirescas é um mundo de aventura..... [as] proezas [do cavaleiro]....são
façanhas realizadas aleatoriamente que não se encaixam em qualquer padrão politicamente
vantajoso” (AUERBACH apud CARPENTER, 2006, p. 229).
Contudo, o autor em meio a tantas críticas, acentua que até mesmo ele é um
grande crítico de sua obra, analisando-a e observando-a rigorosamente, como segue:
16
Algumas pessoas que leram o livro, ou que de qualquer forma fizeram uma crítica
dele, acharam-no enfadonho, absurdo ou desprezível; e eu não tenho razões para
reclamar, uma vez que tenho opiniões similares a respeito do trabalho dessas
pessoas, ou dos tipos de obras que elas evidentemente preferem. [...] O leitor mais
crítico de todos, eu mesmo, agora encontra muitos defeitos, menores e maiores, mas,
felizmente, não tenho a obrigação de criticar o livro. (TOLKIEN 2000a, p. XII).
Como a opinião pública referente à crítica é deveras grande, o foco do
trabalho será mantido na literatura mitológica tolkeniana, observando a relação de Tolkien
com o mito e como o mito impera no ímpeto da pessoa que busca por essa semântica divagar.
[...] os mitos, em suma, recordam continuamente que eventos grandiosos tiveram
lugar sobre a Terra, e que esse “passado glorioso” é em parte recuperável. A
imitação dos gestos paradigmáticos tem igualmente um aspecto positivo: o rito força
o homem a transcender os seus limites, obriga-o a situar-se ao lado dos Deuses e dos
Heróis míticos, a fim de poder realizar os atos deles. Direta ou indiretamente, o mito
“eleva” o homem. (ELIADE, 2007, p. 128).
O escritor fornece através do gênero mítico, histórias de feitos grandiosos de
outrora, despertando nos leitores o desejo em descobrir ou rememorar ocorrências heróicas e
instigantes em um passado atemporal.
1.1. Vida tolkeniana
À medida que sua obra começava a se desenvolver, o objetivo de Tolkien
partia da premissa de poder contribuir com seu país de maneira historicamente relevante.
Sentia-se frustrado ao se deparar com obras clássicas gregas, celtas e românicas, germânicas,
escandinavas e finlandesas (que muito o influenciam), mas não inglesas, salvo materiais de
livros de contos populares e empobrecidos.
Nas palavras do próprio autor, “[...] desde cedo eu era afligido pela pobreza
de meu próprio amado país: ele não possuía histórias próprias (relacionadas à sua língua e
solo), não da qualidade que eu buscava e encontrei (como um ingrediente) nas lendas de
outras terras” (CARPENTER, 2006, p. 141).
Sendo seu país de origem carente de histórias próprias consagradas, ele
busca consolidar uma obra clássica e o fez de maneira inigualável com a Guerra do Anel.
Criou seu tempo, sua fantasia e o envolvimento que todo leitor necessita para apreciar a obra.
17
Ao passo que ia de um lado conquistando uma legião de fãs, ia em
contrapartida despertando (a outro grupo) repulsa. Foi incansável alvo de crítica tanto de
literatos quanto de leitores em torno da verossimilhança contida na obra. Ao longo do
trabalho, apresentaremos algumas críticas, tanto de cunho positivo quanto negativo.
O ponto de partida para o desenvolvimento de O Senhor dos Anéis se deu
devido ao grande sucesso obtido com O Hobbit, livro de sua autoria, destinado ao público
infanto-juvenil.
Nessa obra tem-se como personagem principal (em meio a tantas raças
mágicas envolventes) a inclusão de uma desconhecida e muito amistosa espécie, os hobbits.
O desejo de Tolkien, quando apresentando as suas obras fantásticas para
publicação era de que fossem lançadas pela correta ordem: O Silmarillion (a verdadeira
“bíblia” da Terra-média, abrange a cosmogonia, criação do mundo, das raças e das histórias)
“é um relato dos Dias antigos, a Primeira Era do Mundo” (TOLKIEN, 2009, p. VII), seguindo
com as instigantes estórias de Tom Bombadil, as aventuras de Bilbo Bolseiro em O Hobbit e
por fim O Senhor dos Anéis. Todas essas, antes da saga do Anel, já eram obras criadas e que
foram apenas publicadas posteriormente. Tolkien alegava que teve que explicar muito da
história e da criação de Arda (terra) para que aqueles que não possuíam o conhecimento
oferecido nas primeiras obras pudessem compreender um pouco de seu mundo, mas a editora
(Allen & Unwin) não se sentiu instigada a publicar as obras pela sugestão do autor, por achar
enfadonho uma explicação mitológica sem que primeiro fosse apresentada uma obra
envolvente ao público leitor acerca de um certo hobbit.
Tolkien inicia o deleite de sua criação por muitos anos corridos, sempre em
busca do aperfeiçoamento e aprimoramento de sua história. “Ele foi iniciado em 1936, e cada
parte foi escrita muitas vezes. Dificilmente uma palavra em suas 600.000 ou mais deixou de
ser considerada” (CARPENTER, 2006, p. 156) e se estende até 1951 para chegar ao fim de
sua criação.
Tolkien planejou o lançamento de sua obra como sendo em um único
volume.
O livro obviamente não é uma “trilogia”. Isso e os títulos dos volumes foram um
embuste visto como necessário para a publicação, devido ao tamanho e custo. Não
há uma dimensão real em 3, nem uma parte é inteligível sozinha. A história foi
concebida e escrita como um todo e as únicas divisões naturais são os “livros” I-VI
(que originalmente possuíam títulos). (CARPENTER, 2006, p. 212).
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Devido à crise econômica da época e o custo elevadíssimo da publicação da
obra, a editora então pede a divisão da obra em três volumes, sendo publicado o primeiro
volume A Sociedade do Anel em 29 de julho de 1954, As Duas Torres publicado em 11 de
novembro de 1954 e O Retorno do Rei em 20 de outubro de 1955.
Como o lançamento da obra foi um sucesso arrebatador, seguiu-se a
publicação de suas outras obras, uma delas, a origem de tudo, O Silmarillion.
Essa história, que inicia em 1917, é até hoje objeto de pesquisa e intensas
análises devido a seu cunho literário, filológico, mitológico, fantástico, assim como a inclusão
de temas abordados sobre religião e industrialização.
Observa-se que tal impacto da fantasia moderna foi tão grande que palavras
como “Tolkienian” foram agregadas ao Oxford English Dictionary.
Não tendo a pretensão de escrever uma seqüência para o O Hobbit, Tolkien
se dedicava a contos e histórias como Roverandom e Mestre Gil de Ham. Buscava passar ao
leitor um pouco do conhecimento da Arda (terra), o significado das Silmarilli “radiância de
pura luz” (CARPENTER, 2006, p. 144) e de todas as raças habitantes da Terra.
Seu filho Christopher teve uma participação muito grande em todo contexto
da criação da saga do Anel.
[...] meu Christopher era meu público primário, que leu, avaliou e datilografou tudo
do novo Hobbit, ou O Anel, que foi completado. Ele foi arrastado daqui no meio da
confecção dos mapas. Tenho gasto quase que o único tempo que tenho disponível
escrevendo para continuar nossas conversas interrompidas por epístolas: ele ocupava
a posição múltipla de público, crítico, filho, aluno no meu departamento e meu
pupilo tutorial! (CARPENTER, 2006, p. 112).
Os mapas inseridos foram de sua autoria e todo o conteúdo foi encaminhado
a ele enquanto estava servindo na guerra, na Força Aérea, para que ele lesse e opinasse. “Esse
livro veio a ser cada vez mais direcionado a você, de modo que sua opinião importa mais do
que a de qualquer outro.” (CARPENTER, 2006, p. 92).
Outra pessoa de fundamental importância para a confecção da obra foi seu
amigo de longas jornadas, C. S. Lewis.
“Ele teve a aprovação do público original do Hobbit (meus filhos e o Sr. C.
S. Lewis), que o leu ou o ouviu muitas vezes.” (CARPENTER, 2006, p. 61).
Pode-se observar que Tolkien se atém à narrativa por fatos ocorridos em sua
infância. Vemos a inserção de características de um vilarejo onde viveu quando criança,
Sarehole, localizado em Birmingham, do qual veio a se tornar a região do Condado, famoso
19
vilarejo no qual moram os hobbits. “O Condado”, que por essência e latitude pode ser
comparado à “terra verde e agradável” da Inglaterra” (DAY, 2004, p. 18). A redondeza imita
os campos e planícies exaltantes recordadas de sua infância. O “Bolsão”, a casa dos hobbits,
de cujo protagonista da saga (Frodo e Bilbo Bolseiro) origina-se o “nome para referir à
fazenda de sua tia Jane em Worcestershire” (DAY, 2004, p. 18).
Seu mundo (a Terra-média) é riquíssimo em detalhes e historicidade. “[...]
eu queria primeiro completar e colocar em ordem a mitologia e as lendas dos Dias Antigos, já
que já vinham tomando forma havia alguns anos.” (TOLKIEN, 2000a, p. XI). Há vários
mapas, para que o leitor se localize sobre a posição geográfica de aldeias, rios e matas. Há
também o alfabeto contendo regras gramaticais e a pronúncia que se deve ter do mesmo. Para
tanto, povoou a terra com uma mistura de raças e poderes mágicos, dando as árvores
genealógicas para que possamos acompanhar as descendências dessas espécies e criou um
calendário, tudo para dar ao leitor um norteamento baseado num passado histórico.
“Terra-média”, a propósito, não é um nome de uma terra imaginária sem relação
com o mundo no qual vivemos (como o Mercúrio de Eddison). É apenas um uso da
palavra Middel-erde(ou erthe) do inglês médio, alterada a partir da palavra
Middangeard do inglês antigo: o nome para as terras habitadas dos Homens “entre
os mares”. E embora eu não tenha tentado relacionar o formato das montanhas e das
massas de terra com o que os geólogos podem dizer ou conjeturar sobre o passado
mais próximo, imaginativamente presume-se que essa “história” ocorra em um
período do verdadeiro Velho Mundo deste planeta. (CARPENTER, 2006, p. 212).
A maior paixão revelada de Tolkien é a língua. Desde cedo, em sua infância,
quando sua mãe apresentou a ele o latim e francês; em meio a brincadeiras de criança,
juntamente com suas primas Mary e Marjorie, costumava brincar de criar línguas novas e até
mesmo a ousadia de desenvolver regras gramaticais. Para Tolkien sua tendência recaía sempre
na fonética e a forma das palavras, como apresentado a seguir:
Esse negócio começou há tanto tempo que poderia dizer ter começado no
nascimento. Em algum momento por volta dos seis anos de idade tentei escrever
alguns versos sobre um dragão sobre os quais agora nada lembro, exceto que
continham a expressão um verde dragão grande e que fiquei perplexo por um longo
tempo por terem me contado que ela deveria ser grande dragão verde.
(CARPENTER, 2006, p. 212).
O encantamento, a busca constante da origem da palavra, o interesse
irrefutável pela estética lingüística e a variedade de línguas de que era adepto e de que possuía
amplo domínio, fez com que ele originasse sua própria criação lingüística, baseada na eufonia
e na escrita “comecei com os idiomas, encontrei-me envolvido na invenção de “lendas” do
20
mesmo “gosto” (CARPENTER, 2006, p. 222). Temos como base as belíssimas línguas élficas
criadas pelo autor, o Quenya (possuía como base o finlandês) e o Sindarin (tem como base o
galês) possuindo estrutura gramatical e vasto vocabulário que contém milhares de palavras.
Além destas duas citadas, que são as principais línguas, há muitas outras
línguas desenvolvidas pelo autor. Nenhuma tão bem formulada quanto às citadas, mas de
grande importância e relevância. Os Valarin (língua dos Valar), o Rohirrim (língua de
Rohan), o Khuzdul (língua secreta dos anões) dentre várias outras3.
“O motivo principal da história foi o desejo de um contador de histórias de
tentar fazer uma história realmente longa, que prendesse a atenção dos leitores, que os
divertisse, que os deliciasse e às vezes, quem sabe, os excitasse ou emocionasse
profundamente.” (TOLKIEN, 2000a, p. XII), pois o trabalho é “fruto de uma inspiração
primordialmente lingüística” (TOLKIEN 2000a, p. XI).
Para o autor, a invenção de idiomas é a base. “Para mim, um nome vem
primeiro e a história depois” (CARPENTER, 2006, p. 211). Visto que ele iniciou toda a saga
para que fosse dado “corpo” às suas línguas, ele cria então a história, criando assim uma
mitologia.
1.2. Breve relato fantasioso
Tolkien, com a necessidade irrefutável de dar vida a suas línguas, inicia um
denso trabalho comprometido a constituir uma historicidade própria.
Para palco das cenas, Tolkien desenvolve um mundo secundário,
constituindo espaço e vida. A origem das histórias discorre em um tempo mítico, mas é
enraizada na nossa própria terra. Uma Era distante, presa entre lendas antigas, fantasias e fatos
supostamente ocorridos.
Ele cria planícies, cria povos, variedades de raças habitantes nas terras, dota
os personagens de culturas, personalidades, modos e costumes variados. Todo o seu
desenvolvimento ocorre para que haja uma proximidade com o nosso presente mundo.
A palavra então surge como o presságio revelador do mundo secundário. As
passagens de eras distantes são reveladas pelas cantigas presentes em todo o corpo do texto e
3
Para a busca de outras informações acerca das línguas criadas pelo autor, vide informações em As Cartas de
J.R.R. TOLKIEN, 2006, nº 144 elaborado por Carpenter.
21
a narração das histórias das eras antigas. Tem-se como exemplo a passagem em que Gandalf
revela a Frodo que o anel deixado como herança de Bilbo se tratava do “Um Anel” e ele recita
os seguintes versos:
Três Anéis para os Reis-Elfos sob este céu,
Sete para os Senhores-Anões em seus rochosos corredores,
Nove para Homens Mortais fadados ao eterno sono,
Um para o Senhor do Escuro em seu escuro trono
Na terra de Mordor onde as Sombras se deitam.
Um Anel para a todos governar, Um Anel para encontrá-los,
Um Anel para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam (TOLKIEN, 2000a, p. 52).
Há a explicação então da criação dos anéis do poder e relatando toda a
criação deste, do poder que este exerce sobre os outros, posteriormente de como este foi parar
nas mãos de Bilbo, de Sméagol, fazendo uma ponte na sua história com O Hobbit.
Quando a editora Allen & Unwin pede por uma continuação para a história
infantil O Hobbit, Tolkien o faz, mas a história para de ter como foco principal o público
infantil, tornando-se uma obra mais complexa e O Senhor dos Anéis transforma-se numa obra
para adultos.
[...] a história está seguindo seu curso e esquecendo-se das “crianças”, tornando-se
mais assustadora do que o Hobbit. Ela pode mostrar-se bastante inadequada. É mais
“adulta” [...] A escuridão dos dias atuais teve algum efeito sobre ela, embora não
seja uma alegoria. (CARPENTER, 2006, p. 45).
Utilizando-se dos escritos de Tolkien, suas cartas, depoimentos, biografias,
os estudiosos perceberam claramente seu objetivo em torno da criação fantástica e mítica em
meio a esse mundo estupendo. Seu desejo consistia em narrar uma historia já ocorrida, em
uma época atemporal, pertencente à nossa terra.
A terra-média não é um mundo imaginário. O nome é a forma moderna (que
apareceu no século XIII e ainda está em uso) de midden-erd > middel-erd, um
antigo nome para o oikoumenç, o local de moradia dos Homens, o mundo
objetivamente real, no uso especificamente oposto a mundos imaginários (como a
Terra das Fadas) ou mundos não-vistos (como o Céu ou o Inferno). O teatro de
minha história é este mundo, aquele no qual vivemos, mas o período histórico é
imaginário. (CARPENTER, 2006, p. 229).
Essa disposição ao basear os mitos não recai em adaptações, colagens e
interpretações de mitos contidos nas antigas lendas e tradições. E sim se dá devido à sua
formação acadêmica, seu desejo irrefutável em dar vida, um mundo às palavras, na filologia.
22
Essas historias são “novas”, não são derivadas diretamente de outros mitos e lendas,
mas devem possuir inevitavelmente uma ampla medida de motivos ou elementos
antigos e difundidos; afinal, acredito que as lendas e mitos são compostos mormente
da “verdade”, e sem duvida aspectos presentes nela só podem ser recebidos nesse
modo; e há muito tempo certas verdades e modos dessa espécie foram descobertos e
devem reaparecer sempre. (CARPENTER, 2006, p. 144).
Compreende-se a necessidade da criação do mundo elaborado por Tolkien
pelas palavras que se seguem do grande estudioso mitológico, Joseph Campbell.4
“O começo de um mundo mítico ou de uma tradição mítica é um
arrebatamento – algo que arranca o indivíduo de si mesmo, leva-o além de si, além dos
padrões racionais.” (CAMPBELL, 2008, p. 115).
Correlacionando ao raciocínio, o autor ainda explica a essência da mitologia
como apresenta a seguir:
A mitologia lhes ensina o que está por trás da literatura e das artes, ensina sobre a
sua própria vida. É um assunto vasto, excitante, um alimento vital. A mitologia tem
muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de iniciação, quando você passa
da infância para as responsabilidades do adulto, da condição de solteiro para a de
casado. Todos esses rituais são ritos mitológicos. Todos têm a ver com o novo papel
que você passa a desempenhar, com o processo de atirar fora o que é velho para
voltar com o novo, assumindo uma função responsável. (CAMPBELL, 1990, p. 25).
Assim como acentuado acima, Campbell em O poder do mito, a mitologia
torna-se uma reflexão pessoal onde “A mitologia é uma ferramenta para promover e entender
o crescimento psicológico do indivíduo” (CAMPBELL, 2008, p. 13).
1.3. Propedêutica da obra mitológica
Mas afinal, o que é mito e qual a relevância que ele possui para nossas
vidas?
Podemos obter uma breve elucidação da referida questão nas palavras de
Eliade que, diferentemente da nomenclatura “fábula”, “ficção”, ou ainda “invenção”, nos
4
Joseph Campbell, nascido em 1904, foi um grande escritor norte-americano e foi “considerado uma das
maiores autoridade em mitologia comparada.” (CAMPBELL, 1997, p. 198).
23
apresenta que: “o mito designa, ao contrário, uma “história verdadeira” e, ademais,
extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo” (ELIADE, 2007,
p.07).
O mito então nos fornece o alicerce, uma diretriz à condição humana,
possibilitando-nos um significado, um valor à nossa existência terrestre, podendo nos permitir
compreender nossa origem, enfim, o mundo desde seu início até os tempos atuais.
Para referida resposta, além da elucidação de Eliade, Campbell brevemente
esclarece sobre o que é o mito.
Agora, o que é um mito? A definição de dicionário seria: História sobre deuses. Isso
obriga a fazer a pergunta seguinte: Que é um deus? Um deus é a personificação de
um poder motivador ou de um sistema de valores que funciona para a vida humana e
para o universo – os poderes do seu próprio corpo e da natureza. Os mitos são
metáforas da potencialidade espiritual do ser humano, e os mesmos poderes que
animam nossa vida animam a vida do mundo. Mas há também mitos e deuses que
têm a ver com sociedades específicas ou com as deidades tutelares da sociedade. Em
outras palavras, há duas espécies totalmente diferentes de mitologia. Há a mitologia
que relaciona você com sua própria natureza e com o mundo natural, de que você é
parte. (CAMPBELL, 1990, p. 37).
Outra bela explicação pode ser observada pelo livro O poder do mito,
realizado em 1986 em que o jornalista Bill Moyers indaga o pesquisador Joseph Campbell:
Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através
dos tempos. Todos nós precisamos contar nossa história, compreender nossa
história. Todos nós precisamos compreender a morte e enfrentar a morte, e todos nós
precisamos de ajuda em nossa passagem do nascimento à vida e depois à morte.
Precisamos que a vida tenha significação, precisamos tocar o eterno, compreender o
misterioso, descobrir o que somos. (CAMPBELL, 1990, p. 16).
E ainda, Campbell conclui o raciocínio:
Mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana. [...] Lendo
mitos, eles ensinam que você pode se voltar para dentro, e você começa a captar a
mensagem dos símbolos. Leia mitos de outros povos, não os da sua própria religião,
porque você tenderá a interpretar sua própria religião em termos de fatos – mas
lendo os mitos alheios você começa a captar a mensagem. O mito o ajuda a colocar
sua mente em contato com essa experiência de estar vivo. (CAMPBELL, 1990, p.
17).
Tolkien buscou agregar em sua criação mitológica uma explicação inicial e
final de um período terrestre, partiu desde a cosmogonia, a criação de povos e raças, de fatos
heróicos ocorridos em tempos primordiais para que posteriormente pudesse seguir e dar início
às leis vigentes em nosso mundo atual, pois conhecer os mitos é aprender o segredo da origem
24
das coisas, conhecer o que foi feito ab origine, mostrando que tudo que existe, até mesmo o
próprio mundo em que vivemos é constituído de uma história sobrenatural.
O mito, portanto, é um ingrediente vital da civilização humana; longe de ser uma
fabulação vã, ele é ao contrario uma realidade viva, à qual se recorre
incessantemente; não é absolutamente uma teoria abstrata ou uma fantasia artística,
mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática.
(ELIADE, 2000, p.23).
Tolkien como escritor, permitiu que os leitores pudessem adentrar e
conhecer o nosso mundo in illo tempore, repleto de feitos heróicos e gloriosos, uma realidade
primeva e remota que acaba por conduzir o destino da humanidade.
1.3.1 Compreendendo a ficção de Tolkien
A ficção desenvolvida por Tolkien se encontra contígua a mitos e fantasias,
tendo como alicerce a língua e a manipulação da linguagem.
Abordar-se-á brevemente os conceitos gerais que circundam a mitologia e a
fantasia para que se faça compreensível a escolha do autor para as suas criações literárias.
Apresentam-se a seguir algumas características referentes aos seguintes
gêneros: fantástico, conto, saga, mito, para que assim compreendamos um pouco do mundo
que adentramos com essa obra.
1.3.1.1 Primeiro gênero – Fantasia
A característica apresentada na fantasia é de um herói em movimento,
protagonista de uma sucessão de eventos fantásticos ou maravilhosos, onde se faz presente o
fator sobrenatural, havendo uma intervenção divina sobre questões morais, que ocorre dentro
de uma progressão no tempo e no espaço e nas aventuras em que ocorriam feitos de perdas,
dilemas e tragédias humanas.
Temos como exemplo dessas produções o épico grego A Odisséia, de
Homero, datada em VIII a.C., e outro poema épico europeu que serviu de estudo ao grupo
25
lingüístico de que Tolkien fazia parte (The Inklings), a obra Beowulf de VII d.C. que é
considerada a primeira obra da literatura britânica.
A fantasia explora as condições humanas, colocando fatos do cotidiano em
um mundo regido por leis contrapostas às nossas. O fantástico então é decorrente do fruto do
real / imaginário: “o imaginário é um reservatório de imagens, sentidos, experiências, visões
do real e lembranças que sedimentam um modo de pensar, de agir e de estar no mundo”
(FLORY, 2005, p. 19). São elementos do cotidiano que, reorganizados, são trazidos para um
novo universo que dá vazão ao imaginário. Sem essa inserção direta no cotidiano, com fatos
atuais, a obra não apresentaria interesse nenhum, algo meramente fantasioso. As bases devem
conter fatores reais, verossímeis, desejos humanos, a imortalidade, encantos e belezas sobrehumanas.
Em outro nível, a psicanálise, que tanto se ocupou com a gênese do imaginário, tem
dado respostas maduras ao problema das suas motivações. A vontade de prazer, o
medo à dor, as redes de afeto que se tecem com os fios do desejo vão saturando a
imaginação de um pesado lastro que garante a consistência e a persistência do seu
produto, a imagem.
Que o imaginário decorra da co-extensidade de corpo e natureza; que ele mergulhe
raízes no subsolo do Inconsciente [...]. (BOSI, 1993, p. 18).
A fantasia nos retira brevemente do mundo real deixando-nos direto com o
imaginário em um mundo onde tudo é viável, plausível, nos possibilitando uma visão
diferente do real, sempre mantendo a coerência enraizada com a verdadeira realidade.
1.3.1.2 Segundo gênero – Conto
Para compreender o significado deste gênero, Erich Fromm “[...] interpretou
o conto como um enigma referente ao inconsciente coletivo na sociedade primitiva e decifrouo “sem dificuldade”, decodificando sua “linguagem simbólica” (FROMM apud DARNTON,
1986, p. 23).
Como os historiadores entendem os contos?
Com exceção de alguns estruturalistas, eles relacionam os contos com a arte de
narrar historias e com o contexto no qual isso ocorre. Examinam a maneira como o
narrador adapta o tema herdado a sua audiência, de modo que a especificidade do
tempo e do lugar apareça, através da universalidade do motivo. Não esperam
26
encontrar comentários sociais diretos, ou alegorias metafísicas, porem mais um tom
de discurso – ou um estilo cultural – capaz de comunicar um ethos e uma visão de
mundos particulares (DARNTON, 1986, p. 29).
Uma característica presente nesse gênero se deve às ações ocorrentes, que se
localizam sempre em uma era histórica em passados remotos. Percebemos então que tudo se
passa à medida para que sejamos transportados de uma realidade para outra preexistente.
[...] num país distante, longe, muito longe daqui”, passa-se “há muito, muito tempo”,
ou então o lugar é em toda e nenhuma parte, a época sempre e nunca. Quando o
Conto adquire os traços da História – o que acontece ás vezes, quando se encontra
com a Novela -, perde uma parte de sua força. A localização histórica e o tempo
histórico avizinham-no da realidade imoral e quebram o fascínio do maravilhoso
natural e imprescindível.
O mesmo ocorre com as personagens, que também devem ter essa segurança
indeterminada contra a qual se desfaz a realidade imoral. (JOLLES, 1930, p. 202).
Observa-se, contudo que a narração de um conto deve permitir
inteligibilidade entre todas as massas e culturas, “As grandes coletâneas de contos populares,
organizadas no fim do século XIX e início do XX, oferecem, portanto, uma rara oportunidade
de se tomar contato com as massas analfabetas que desapareceram no passado, sem deixar
vestígios” (DARNTON, 1986, p. 32).
Jolles (1930) pondera que o maravilhoso não é maravilhoso, é natural, é
próximo à realidade consciente, se fazendo presente ao espectador de maneira coerente e
sucinta.
Quando a realidade, numa disposição mental, é contrária à moralidade ingênua,
nenhuma aventura poderá assemelhar-se à realidade, o que dá lugar a um paradoxo
que constitui a verdadeira base do Conto: nesta forma, o maravilhoso não é
maravilhoso, mas natural. O Conto e a Legenda podem ser comparados nesse
aspecto. Na Legenda, o prodígio do milagre era a única confirmação possível de
uma virtude que se tornou atuante e objetiva; no Conto, o prodígio do maravilhoso é
a única possibilidade que se tem de estarmos seguros de que deixou de existir a
imoralidade da realidade. Assim como a Legenda só é compreensível como tal no
milagre e este é-lhe elemento necessário e natural, assim também o Conto é
incompreensível sem o maravilhoso. (JOLLES, 1930, p. 202).
Os contos germânicos se caracterizam por possuírem incutido um tom de
terror e fantasia, enquanto os franceses enfatizam veementemente o humor e a domesticidade.
Podemos detectar nos contos franceses a presença de “Elfos, demônios, espíritos da floresta,
toda a panóplia indo-européia de seres mágicos reduz-se na França; as duas espécies, os ogres
e as fadas” (DARNTON, 1986, p. 38).
27
As características apresentadas dos contos franceses possuem uma relação
grande com o estilo dos ingleses, onde é apresentada uma mescla de raças que varia desde
fadas a espíritos da floresta, sendo assim fortemente acentuada nas obras de autoria de
Tolkien.
De modo geral, portanto, os versos da Inglaterra têm alguma afinidade com os
contos da França. Não são realmente comparáveis, no entanto, porque pertencem a
gêneros diferentes. Embora os franceses cantassem alguns contines (versos
ritmados) e canções de ninar para seus filhos, jamais criaram nada parecido com os
versos infantis ingleses [...] Os contos populares ingleses têm muito da fantasia, do
humor e dos detalhes elaborados que aparecem nas histórias infantis em versos.
(DARNTON, 1986, p. 63).
Utilizando como base de elucidação as palavras de Darnton, pode-se
detectar as diferenças existentes nos contos e observar que mesmo agregados em meio a
fantasias, “os contos permanecem enraizados no mundo real” (DARNTON, 1986, p. 54),
sendo assim parte conjunta e única de uma realidade que foi, que é e ainda que virá a se tornar
real.
1.3.1.3 Terceiro gênero – Saga
Para compreender o que seria saga, utilizar-se-á como referência o
dicionário de um dos grandes lingüistas e escritores, os irmãos Grimm, que buscaram em
meio à tradição oral, a busca de narrativas antigas, lendas ou sagas germânicas, tudo o que
estivesse mantido e passado pela tradição oral:
A saga está freqüentemente ligada à idéia de incerteza, de incredibilidade, até
mesmo de calúnia, embora possa ser empregada sem este matriz [...] A saga pode
referir-se a um acontecimento passado e, neste caso, significa: relato, narrativa
referente ao passado e, mais particularmente, ao passado remoto, tal como se
transmitiu de geração em geração. (JOLLES, 1930, p. 61).
A saga, um velho gênero nórdico5, apresenta a relação existente entre pais e
filhos, avôs e netos, entre irmãos, enfim, a família ou laços de sangue; seguidamente pode ser
5
Nórdico corresponde aos povos do norte da Europa, especificamente a Noruega, Suécia, Finlândia, Dinamarca
e Islândia. O gênero Nórdico, de onde deriva a mitologia nórdica ou mitologia germânica, ou mitologia viking,
ou ainda mitologia escandinava, reúne uma variedade de crenças e histórias compartilhadas por vias da
oralidade, tendo como base de seus textos os Eddas. A cosmogonia desta mitologia era dividida por Asgard
28
apresentada também na ausência dos laços sanguíneos, por meio da afetividade transformada
entre estranhos, que por sua vez se transformam em uma “família”.
Quando somos deparados com história desse gênero, passa-se a impressão
de verossimilhança sobre os fatos ocorridos, pois: “é uma história que as pessoas acreditam
ser verídica, que evolui e se ampliou pouco a pouco no decorrer dos séculos, e que assenta
numa tradição oral; é uma “lenda” histórica ou heróica” (JOLLES, 1930, p. 63).
1.3.1.4 Quarto gênero – Mito
“O mito é o princípio de toda Saga” (JOLLES, 1930, p. 85).
Pode-se observar ao longo desta breve leitura que os estilos e gêneros se
cruzam, havendo a inserção de um dentro de outro, principalmente na obra O Senhor dos
Anéis, onde vários elementos são presentes.
O mito busca desvendar a concepção da vida como um todo, da natureza à
raça humana, é a interpretação de sua origem e de sua passagem, assim como a transformação
que a mesma sofre.
Eis o princípio básico de toda mitologia: o início no fim. Os mitos da criação são
permeados por um sentido de predestinação que reivindica ao imperecível todas as
formas criadas, cujo primeiro aparecimento teve esse mesmo imperecível como
fonte. As formas avançam poderosamente, mas é inevitável que encontrem seu
apogeu, decadência e retorno. A mitologia, nesse sentido, tem uma visão trágica.
Mas, tomada no sentido de algo que situa nosso ser, não nas formas destrutíveis,
mas no imperecível a partir do qual elas imediatamente promanam, a mitologia se
reveste de um caráter eminentemente não-trágico. De fato, sempre que prevalece a
disposição mitológica, a tragédia é impossível. Prevalece antes uma qualidade da
ordem do sonho. Ademais, o verdadeiro ser não está nas formas, mas no sonhador.
(CAMPBELL, 1997, p. 145).
A história narrada pelo mito é firme e, relacionada ao plano real, segue
continuamente a cronologia da terra. A saga, ao passo da evolução, participa-nos de maneira
depreendida da forma linear. A cada povo, cultura, se apresenta de maneira particularmente
diferente mantendo toda a historicidade de tempos remotos.
(morada dos deuses) onde os deuses podiam manter contato com o resto da terra e o restante dos habitantes. Para
se chegar até Asgard, necessitava atravessar um arco-íris. Havia Jotunheim (a morada dos gigantes), havia
também as profundezas gélidas e escuras, Niflheim (a morada dos mortos) governada pela deusa Hel. Consta
também a morada dos elfos, Alfheim, Nidavellir, a região das minas dos anões e por fim Midgard, ou Terramédia, onde se encontrava a morada dos homens. Fonte extraída do livro O mundo de TOLKIEN, 2004.
29
“No Mito, o homem interroga o universo e seus fenômenos acerca da
natureza profunda deles” (JOLLES, 1930, p. 111). Tornamo-nos assim indagadores dos casos
e fatos acerca da existência terrestre e dos seres que a habitam, seguindo uma cronologia
variante entre povos e culturas, porém com a finalidade de resgatar uma era histórica,
preservando na mente das pessoas a historicidade que lhes é própria. Faz-nos participar de
realidades e mundos plausíveis, permitindo ao ser humano fundi-las, produzindo, a partir
destas, novas realidades. Erroneamente dizemos que o mito é derivado de uma imitação; o
mito é criador, é invenção e desenvolvimento. O mito possibilita e incita o homem a criar
novas formas pensantes, criam-se novas perspectivas, dando asas a seu espírito inventivo e
libertário.
[...] a imitação não é uma criação ab nihilo, isto é, tirada do nada, mas do jáexistente, ou seja, depende da maneira como se combinam as diferentes imitações, o
que antecede, por seu lado, à teoria da metáfora, pois há combinações que
aproximam realidades mais próximas e outras que aproximam realidades mais
distantes. (HOHLFELDT; MARTINO; FRANÇA, 2001, p.75).
Foi-se abordados os respectivos temas acima na justificativa de apresentar a
seguir os motivos que levaram o autor a preferir determinados gêneros para que fossem
tecidas suas criações literárias. Tolkien possuía um particular gosto pela mitologia e pelos
contos de fada. Seu objetivo sempre foi o de “criar um mito” para a Inglaterra, criação esta
que muitos críticos consideram impossível de ser realizada, já que se alega que os mitos se
originam no inconsciente coletivo.
[...] consideramos como cultura tanto o erudito como o cotidiano, admitindo
continuidade entre os dois. Segundo Finkielkraut (1983, p. 143), o pensado (erudito)
nasce do impensado (a vida cotidiana), de onde o primeiro retira sua essência. O
pensado seria a alta cultura, na qual se desenvolve a atividade espiritual e criadora
do homem. O saber comum (a vida cotidiana) seria o espírito do povo a que esse
homem, e que impregna a sua maneira de pensar e os gestos mais simples do dia-adia. Tal cultura acolhe uma identidade coletiva que põe em relevo o inconsciente
coletivo. (CARVALHO, 2000, p. 97).
A grande relevância contida no mito é que ele nos apresenta a nossa própria
história, explicando o “porque” de nossas condições atuais, nos dando valores morais,
espirituais, culturais. São maneiras explicativas de compreender nossa existência, assim como
a nossa cultura, e ele se transforma em cultura quando seus fatos são relatados e passados da
tradição oral para a escrita, para que se propague e perpetue entre os povos.
30
Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida,
o livro. Os demais são extensões de seu corpo. [...] O livro, porém, é outra coisa: o
livro é a extensão da memória e da imaginação. (BORGES apud REIMÃO, 2004, p.
112).
Como profundo conhecedor de línguas, Tolkien foi de contrapartida aos
críticos e lançou-se no desafio em criar e desenvolver “um mundo”. E como cristão que era,
acabou imprimindo no mundo que criou valores baseados na amizade, na perseverança, na
coragem, na sabedoria, na esperança e, o que é mais importante, no amor. É válido notar, no
entanto, que Tolkien jamais admitiu que as suas obras tivessem um caráter alegórico. O
problema para entender Tolkien é perceber que a Terra-Média tem uma relação analógica com
a nossa Terra.
“Enquanto um mito aponta para algo indescritível que está além de si
mesmo, uma alegoria é apenas uma história ou imagem que ensina uma lição prática.”
(CAMPBELL, 2008, p. 19).
Para Tolkien, a literatura imaginativa dá-se basicamente por três funções6:
recuperação, escape e consolação.
Recuperação -
A recuperação, que pode ser mais bem reconhecida na
extensa parte final de O Senhor dos Anéis, é uma nova opção de ver o mundo e as coisas que
o cercam, mundo este e coisas que já estão desvendados, portando assim como uma
renovação da visão da realidade.
Reflete também a convicção de que as coisas como estão e são hoje em dia
não estão muito bem. Há vários problemas agravantes que acercam nossas existências,
problemas existenciais, pessoais, problemas que fazem com que busquemos por um tempo de
reflexão íntima e pessoal. Os contos não nos apresentam meramente fatos supérfluos, e sim
atos incrustados de realidades, porém os faz passando ao espectador atitudes esperançosas que
ocorrem no final. Portanto, a recuperação surge para que sejam renovadas nossas forças para
que possamos enfrentar as vicissitudes do cotidiano e que possamos continuar a “lutar” por
um mundo melhor.
Escape – É a fuga de que tanto necessitamos, é a saída da realidade para que
possamos realizar desejos que não poderiam ser sanados na realidade empírica. Fugimos de
uma realidade para outra, deixando nossas fadigas e transtornos para podermos mergulhar nos
contos. Como a história narrada não se trata de um escape surreal, e sim fatos conhecidamente
humanos, faz-nos assim despertar para uma consciência adormecida.
6
Fontes extraídas do livro O mundo de Tolkien de David Day.
31
Consolação – É o sabor do final feliz, é um final feliz que existe sem deixar
de estar ligado à dor, Tolkien o denomina de eucatástrofe7, tudo pode ocorrer, as vezes a
felicidade vem derivada de muita dor, pode ser uma dor sofrida por transformação, interna,
perdas, mas que no fim conforta-nos, pois fomos capazes de sobreviver: mesmo a luta tendo
sido perdida, sabemos que a batalha ainda não acabou. É um lampejo de verdade carregado de
emoção.
Para Campbell, o mito se ramifica em quatro funções básicas: função mítica;
dimensão cosmogônica; função socialógica; função pedagógica:
Os mitos têm basicamente quatro funções. A primeira é a função mística – e é disso
que ve nho falando, dando conta da maravilha que é o universo, da maravilha que é
você, e vivenciando o espanto diante do mistério. Os mitos abrem o mundo para a
dimensão do mistério, para a consciência do mistério que subjaz a todas as formas.
Se isso lhe escapar, você não terá uma mitologia. Se o mistério se manifestar através
de todas as coisas, o universo se tornará, por assim dizer, uma pintura sagrada. Você
está sempre se dirigindo ao mistério transcendente, através das circunstâncias da sua
vida verdadeira.
A segunda é a dimensão cosmológica, a dimensão da qual a ciência se ocupa –
mostrando qual é a forma do universo, mas fazendo o de uma tal maneira que o
mistério, outra vez, se manifesta. Hoje, tendemos a pensar que os cientistas detêm
todas as respostas. Mas os maiores entre eles dizem-nos: “Não, não temos todas as
respostas. Podemos dizer lhe como a coisa funciona, mas não o que é”. Você risca
um fósforo – o que é o fogo? Você pode falar de oxidação, mas isso não me dirá
nada. A terceira função é a sociológica – suporte e validação de determinada ordem
social. E aqui os mitos variam tremendamente, de lugar para lugar. Você tem toda
uma mitologia da poligamia, toda uma mitologia da monogamia. Ambas são
satisfatórias. Depende de onde você estiver. Foi essa função sociológica do mito que
assumiu a direção do nosso mundo – e está desatualizada. [...]Mas existe uma quarta
função do mito, aquela, segundo penso, com que todas as pessoas deviam tentar se
relacionar – a função pedagógica, como viver uma vida humana sob qualquer
circunstância. Os mitos podem ensinar lhe isso. (CAMPBELL, 1990, p. 45).
Compreende-se que estes tipos de histórias estão associados à possibilidade
de ligação de um mundo primário (referente a nossas realidades cotidianas) junto a um mundo
secundário (um mundo de sub-criação); a partir destes, trafegar livremente em ambos os
mundos, ambas as realidades. Partindo da premissa estipulada por Tolkien, isso é possível e se
torna necessário, pois o ser humano possui a necessidade de um contato direto com um
mundo plausível, recheado de fantasias, com a urgência de ser adentrado e descoberto e
rememorado, pois todos possuem dentro de si essa bagagem (fantasiosa), basta apenas
7
“Eucatástrofe” se denomina pela “repentina mudança feliz em uma história que o atinge com uma alegria que o
leva às lágrimas (que eu argumento ser o que os contos de fadas devem produzir como maior função).
(CARPENTER, 2006, p. 101).
32
permitir que a desvendemos novamente podendo assim o encantamento possuir-nos
novamente.
1.3.2. A fantasia segundo Tolkien
O que seria então o alicerce do imaginário? Sabemos que o imaginário é um
reservatório, onde a todo o momento a informação entra e sai. O mundo “aparece” para nós e
depois de ser assimilado, o mundo nos “parece” o que achamos.
A imagem, mental ou inscrita, entretém com o visível uma dupla relação que os
verbos aparecer e parecer ilustram cabalmente. O objeto dá-se, aparece, abre-se
(lat.: apparet) à visão, entrega-se a nós enquanto aparência: esta é a imago
primordial que temos dele. Em seguida, com a reprodução da aparência, esta se
parece com o que nos apareceu. Da aparência à parecença: momentos contíguos que
a linguagem mantém próximos. (BOSI, 1993, p. 14).
Os fatos do cotidiano se tornam então o alicerce do imaginário, fatos esses
que são preservados para poderem ser reconstruídos posteriormente, reestruturados e
recolocados por narradores que são conscientes ou não dentro da história. A imaginação é o
sonhar acordado, é uma junção de construção do que vemos, do que assimilamos e digerimos
para poder resultar em sua construção imagética.
Porque o imaginário é, a um só tempo, dado e construído. Dado enquanto matéria.
Mas construído, enquanto forma para o sujeito. Dado: não depende da nossa vontade
receber as sensações de luz e cor que o mundo provoca. Mas construído: a imagem
resulta de um complicado processo de organização perceptiva que se desenvolve
desde a primeira infância. (BOSI, 1993, p.15).
Observa-se, contudo que o imaginário, o fantástico, o lúdico se dão a partir
do momento que um acontecimento ocorre sem este poder ser explicado e entendido pelas leis
vigentes de nosso mundo. O fantástico se constitui entre o fio tênue vigente entre o real e o
imaginário; na leitura, é o momento máximo onde o leitor se depara com fatos a serem
distinguidos como sendo derivados da semântica imagética ou sendo plausíveis às leis
vigentes humanas. Conforme Tolkien relata:
[...] um mito da criação do mundo; e descrevia que o universo nascera de uma
música divina. A sensação de profundidade é imensa “Parecia-me um relato de
33
alguma antiguidade remotíssima, mas perfeitamente preservado, legível,
transportado para a linguagem dos homens de hoje. Pouco a pouco, também, foi-se
juntando à profundidade o senso de densidade, de que, se o deixassem, o autor (que
àquela altura eu já não sabia mais se era originalmente o próprio Tolkien, ou se este
estava apenas transmitindo algo que outros lhe haviam legado) nos diria mais e mais
sobre o assunto, que só não o esgotava – conhecer, sim, conhecia-o! - para não se
tornar enfadonho. (KYRMSE, 2003, p. 122).
Ao se deparar com histórias de fadas, associa-se em primeiro momento que
se trata de contos voltados às crianças, que de útil nada encontraremos. Para Tolkien esse tipo
de afirmação se mostra retoricamente errada. Para Tolkien as histórias de fadas derivam do
folclore e da tradição, nem sempre sendo destinada ao público infantil, sendo assim para ele a
fantasia um processo essencialmente lingüístico.
O real, denominado por Tolkien como mundo primário, se funde com o
fantasioso no mundo secundário, possibilitando uma mudança de foco e oferecendo uma nova
perspectiva sobre os mesmos fatos ocorridos. Neste mundo, o homem se encontra sem
barreiras, é um mundo onde não nos vemos enclausurados nem submetidos às regras e
aflições presentes no real.
“Para compreender o universo, é necessário que o homem nele mergulhe,
que o sonde, que reduza – de um modo ou de outro – a infinita quantidade de seus fenômenos,
que intervenha nele para realizar uma seleção” (JOLLES, 1930, p. 28).
Analisando a afirmação de Jolles, vê-se que para que haja a construção de
um universo, o homem deve estar “mergulhado nele”, deve compreendê-lo, interagindo com o
meio que o cerca. Para esta compreensão e interação, tem-se o autor em questão nos
presenteando com suas criações literárias, das línguas, em especial a Quenya (Élfico) e o
Sindarin (Élfico-cinzento), para que traçassem um pano de fundo às histórias, para a subcriação literária e a mitologia poder vir a ter “vida”.
A mitologia é a música. É a música da imaginação, inspirada nas energias do corpo.
Uma vez um mestre zen parou diante de seus discípulos, prestes a proferir um
sermão. No instante em que ele ia abrir a boca, um pássaro cantou. E ele disse: “O
sermão já foi proferido”. (CAMPBELL, 1990, p. 36).
Partindo do pressuposto de que o mito é um arquétipo à conduta humana,
para a qual confere significância e valores, é uma revelação primordial, uma invenção ou
história verdadeira, uma fábula ou ainda uma ficção, temos este como palco das façanhas
apresentadas nas obras para que seja dada a base para suas línguas e mitos.
34
[...] o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no
tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”[...] os mitos descrevem as
diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”)
no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o
converte no que é hoje. (ELIADE, 2007, p. 11).
Como a pesquisa filológica busca a reconstrução através das línguas, a
proposta de Tolkien era da busca em reconstruir a história por detrás das línguas.
Assim como a cosmogonia estuda o surgimento do Universo sob o prisma
mítico, “compreender o “princípio absoluto” desvendando o mistério da Criação do Mundo, o
mistério do aparecimento do Ser” (ELIADE, 2007, p. 101), a filologia tem como base
apresentar uma realidade de que um dia pode vir a ter existido. Assim como Jolles (1930)
classifica, vemos que a filologia tenta sempre fazer uma aproximação entre o plausível,
verossímil e a linguagem. “A linguagem não seria o que é, as formas da língua não seriam o
que são, se não fossem o lugar onde se efetua, de modo autônomo, aquilo que se produz
igualmente na existência real” (JOLLES, 1930, p. 43).
Devido ao interesse em compreender as lacunas existentes na história,
Tolkien procurou nos fornecer com a filologia prováveis causas dos inícios existenciais e
todos eles são apresentados em suas histórias.
Tolkien, ao desenvolver sua criação, não se preocupou em apenas
desenvolver um mundo imaginário, e sim recriar o mundo que poderia ter existido ao menos
no imaginário coletivo das pessoas.
[...] os mitos oferecem modelos de vida. Mas os modelos têm de ser adaptados ao
tempo que você está vivendo; acontece que o nosso tempo mudou tão depressa que o
que era aceitável há cinqüenta anos não o é mais, hoje. As virtudes do passado são
os vícios de hoje. E muito do que se julgava serem os vícios do passado são as
necessidades de hoje. (CAMPBELL, 1990, p. 26).
Adorador do gênero heróico, da literatura antiga, da poesia que remetia aos
mitos cheios de simbologias, é a partir desse prisma que Tolkien inicia sua obra, sua
“magnum opus” (CARPENTER, 2006, p. 118) como o autor a denomina, simples e
puramente com a finalidade lhe proporcionar prazer.
Quis fazer isso para minha própria satisfação, e tinha alguma esperança de que
outras pessoas ficassem interessadas nesse trabalho, especialmente por ser ele fruto
de uma inspiração primordialmente lingüística, e por ter sido iniciado a fim de
fornecer o pano de fundo “histórico” necessário para as línguas élficas. (TOLKIEN,
2000a, p. XI).
35
Ele apresenta uma realidade através de um passado fornecido pelas línguas,
a partir da base filológica, ele desmembra o mundo a partir do princípio do período histórico,
in illo tempore, apresentando-nos peculiaridades incutidas até mesmo nas características
pessoais dos personagens presentes na trama.
Percebe-se, contudo que os princípios que obtemos, seja filológico, ou
mitológico, sempre com a busca à volta ao “eu” interior, às explicações de atitudes ou
tendências sociais aplicadas na atualidade, já tiveram passado, um passado primordial, in illo
tempore.
Pode-se detectar tal inserção envolta pela necessidade irrefutável referente à
busca constante desse início pelas palavras de Platão em sua teoria das Idéias e a anamnesis,
onde elucida;
[...] os mitos lhe asseguram que tudo o que ele faz ou pretende fazer, já foi feito no
princípio dos Tempos, in illo tempore. Os mitos constituem, portanto, a súmula do
conhecimento útil. Uma existência individual se torna, e se conserva, uma existência
plenamente humana, responsável e significativa, na medida em que ela se inspira
nesse reservatório de atos já realizados e pensamentos já formulados. Ignorar ou
esquecer o conteúdo dessa “memória coletiva” constituída pela tradição equivale a
uma regressão ao estado “natural” (a condição acultural da criança), a um “pecado”
ou a um desastre. (ELIADE, 2007, p. 111).
O mito então se torna a explicação do inexplicável, atribuindo sentido à
vida, sanando questionamentos, tornando uma representação simbólica. A partir dele podemos
alcançar um nível de consciência elevada e acabar por descobrir quem somos.
“A função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os
símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas
constantes que tendem a levá-lo para trás.” (CAMPBELL, 1997, p. 9).
Todos esses mitos que você ouviu e ressoam em você constituem os elementos com
os quais você dá forma à sua vida. O que vale a pena considerar é como eles se
relacionam entre si no seu contexto, não como eles se relacionam a algo fora de você
[...] como elas são relevantes agora, a menos que, ao contemplar o significado
original, você consiga ampliar seu próprio entendimento do papel que eles
desempenham na sua vida. (CAMPBELL, 2008, p. 155).
O homem possui a necessidade desse escape, dessa fuga em muitos
momentos de nossas vidas, e na ficção, em especial apresentada aqui, quando há a permissão
do nosso imaginário transbordar, servindo de alimento para a alma; ao deparar com os
personagens, ou melhor, as pessoas imaginárias de uma lenda, passam-se a outra realidade,
realidade essa onde se acompanha a jornada do herói, podendo vivenciar seus sacrifícios e
36
agonias, assim como nós em nossas jornadas. “É um princípio mitológico básico, diria eu, que
aquilo que na mitologia se chama “o outro mundo” é na verdade (em termos psicológicos) “o
mundo interior”. (CAMPBELL, 2008, p. 45). E ainda: “Os mitos provêm de visões de pessoas
que buscaram o seu mundo interno mais recôndito. Dos mitos surgem formas culturais.” [...]
“Isso porque os mitos, como os sonhos, vêm da imaginação.” (CAMPBELL, 2008, p. 52).
Como a imaginação se trata de atividade racional e o imaginário é
responsável pela produção de sentido, que influencia e se deixa influenciar, adentrando nessa
grande aventura, a aventura do mítico e acabando por encontrar fatos singelos, relacionados
ao nosso dia-a-dia, coisas que passam despercebidas aos olhos corriqueiros e voltamos a
questões primordiais como o destino da terra, da humanidade e da integridade. Acabam-se por
fazer um paralelo com a história e nossa atual realidade e Tolkien nos mostra que somos
capazes de ir muito além de nossa limitada imaginação, e que, independente de colocação
social, raça, poderes sobrenaturais, somos capazes de operar de forma magnífica e que
acabamos sempre por superar nossas próprias expectativas.
O mito ocorre pela comunicação entre o seu consciente e o seu inconsciente. “As
imagens mitológicas são aquelas que colocam o consciente em contato com o
inconsciente. É isso que elas são. Quando não temos imagens mitológicas, ou
quando o consciente as rejeita por uma ou outra razão, perdemos o contato com a
nossa parte mais profunda. Acho que esse é o propósito de uma mitologia pela qual
se possa viver. Temos de descobrir por qual mitologia estamos de fato vivendo e
conhecê-la, para podermos tocar a nossa ocupação com a competência.
(CAMPBELL, 2008, p. 111).
Para Tolkien não bastava escrever uma história, ela deveria existir. Por esse
motivo e pelo seu grande apreço pela natureza, pela vida e tudo que a cerca, inicia-se uma
trama completa, onde consta a origem do todo, criação e explicação dos idiomas, a geografia,
fauna e flora completa, costumes, enfim, tudo que envolve uma existência viva.
Por ter a obra literária O Senhor dos Anéis, como uma literatura épica,
relacionada e fundamentada com a mitologia e os comportamentos míticos, servindo
principalmente para contar uma história significativa, relatando uma série de eventos
dramáticos ocorridos em uma era distante sobre a terra, acaba-se sendo seduzido e envolvido
por esse mundo plausível e até despertar o desejo de que este exista para que se possa fazer
parte do mesmo, pois: “Na verdade, o indivíduo precisa aprender a viver pelo seu próprio
mito.” (CAMPBELL, 2008, p. 108).
Encontramos nessas ininteligibilidades literárias das obras tanto clássicas como as
modernas, a possibilidade de uma gnose iniciatória de um “novo mundo” ou “velho
37
mundo”, que é reconstruído de fragmentos passados, de relatos, mundo esse que
ainda gostaríamos de manter e até de viver nele. Para tanto o “público”, por sua vez,
é rapidamente conquistado e proclama sua total adesão às descobertas (ELIADE,
2007, p. 163).
Além de Tolkien ser o criador e responsável único pela obra, possui a
capacidade de captar a beleza e de acentuá-la, transpassando pela literatura essa verdadeira
arte, essa relíquia histórica do homem.
Dos vários instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida, o
livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio são
extensões de sua visão; o telefone é a extensão de sua voz; em seguida temos o
arado e a espada, extensões de seu braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é uma
extensão da memória e da imaginação. (BORGES apud REIMÃO, 2004, p. 95).
Tem-se que lembrar também que toda a obra que se consiste nesse modelo
literário histórico, deve ser preservada e compartilhada com toda a sociedade, sem distinção
de grau intelectual ou cultural, como apresentado a seguir.
Herder nos ensinou a pensar na poesia como o patrimônio comum de toda a
humanidade, não como propriedade particular de alguns indivíduos refinados e
cultos [...] o autor do poema era desconhecido, como é usual em todos os poemas
nacionais e assim deve ser, porque eles pertencem a todo o povo (BURKE, 1989, p.
32).
O escritor consegue transmitir em seus contos e histórias, a necessidade de
se descobrir a origem do mundo, de passar ao próximo essa capacidade de apreciação de suas
criações, despertando interesse e cativando ao máximo o público leitor.
1.4. Pseudotradução
Analisando a pseudotradução, técnica esta de retirar um texto original vindo
a ser apresentado como sendo uma tradução, uma ficção interpolada em outra ficção, ou ainda
uma tradução fictícia, serão relacionadas, no presente trabalho, as criações elaboradas por
Tolkien em sua obra literária O Senhor dos Anéis.
Possuindo como objetivo de criar uma literatura genuinamente inglesa “de
restaurar aos ingleses uma tradição épica e de apresentar-lhes uma mitologia deles próprios”
38
(CARPENTER, 2006, p. 221), Tolkien se porta como tradutor para desenvolver uma narrativa
no limiar da realidade e fantasia.
Assim, apesar de ser um filólogo por natureza e negócio (ainda assim um filólogo
sempre interessado primeiramente na estética do que nos aspectos funcionais dos
idiomas), comecei com os idiomas, encontrei-me envolvido na invenção de “lendas”
do mesmo “gosto”. (CARPENTER, 2006, p.222).
Ele inicia a obra O Senhor dos Anéis como alguém que recolhe documentos,
arquivos antigos altamente reveladores de uma época longínqua, um pesquisador que
rememora na mente da população e sua origem no passado.
À medida que vai dando forma à sua criação fictícia, ele o faz aproximandoo sempre da realidade, fazendo sempre uma relação entre o mito e o tempo histórico da
humanidade.
É difícil conceber um ser humano que não se sinta fascinado pela “recitação”, isto é,
pela narração dos eventos significativos, pelo que aconteceu a homens dotados da
“dupla realidade” dos personagens literários (que refletem a realidade histórica e
psicológica dos membros de uma sociedade moderna, dispondo, ao mesmo tempo,
do poder mágico de uma criação imaginária). (ELIADE, 2007, p. 164).
A narrativa é desenvolvida a tal ponto que sempre que o leitor se depara
com um fato, o escritor tenta aproximá-lo, prová-lo que realmente tenha ocorrido. Ele é um
criador e tradutor de sua obra, pois ele de um lado cria e dentro de sua criação então faz o
papel do tradutor, interpretador.
Ao dizer que ele é o tradutor, conclui-se, à medida que se observa que os
fatores geográficos, sociais e culturais, são dispostos de tal maneira que possuem uma ordem
lógica e cronológica na narrativa. Tudo o que acontece possui uma explicação um “por que
ser e estar contido na história”; há lógica em todos os atos dos personagens e explicação para
os mesmos.
Todas essas diferentes mitologias apresentam o mesmo esforço essencial. Você
deixa o mundo onde está e se encaminha na direção de algo mais profundo, mais
distante ou mais alto. Então atinge aquilo que faltava à sua consciência, no mundo
anteriormente habitado. Aí surge o problema: permanecer ali, deixando o mundo
ruir, ou retornar com a dádiva, tentando manter-se fiel a ela, ao mesmo tempo em
que reingressa no seu mundo social. Não é uma tarefa das mais fáceis.
(CAMPBELL, 1990, p. 142).
Os fatos são apresentados de maneira que permitem ao leitor se questionar
da verossimilhança da história. Sabe-se que se trata de uma ficção, que o autor não possuiu a
39
audácia de nos criar tal dilema, mas devido ao fato do autor nos apresentar tantos dados e
questões verossímeis, acabamos por nos deparar com essas questões.
[...] ler o texto de uma balada, de um conto popular ou até de uma melodia numa
coletânea da época é quase como olhar uma igreja gótica “restaurada” no mesmo
período. A pessoa não sabe se está vendo o que existia originalmente, o que o
restaurador achou que existia originalmente, o que ele achou que devia ter existido,
ou o que ele achou que devia existir agora. (BURKE, 1989, p. 47).
Na obra, o tradutor é uma personagem que não participa da trama, mas que
tudo sabe, de todos e tudo o que lhes acontece, não ocorrendo nunca na história uma narração
em primeira pessoa; como um “organizador” de fatos, documentos antigos, ele conta a
história de outro, retirando assim o “eu” da narrativa, sendo assim o foco narrativo em terceira
pessoa.
Para melhor análise deste fato, o texto “Da tradução”, correspondente ao
terceiro volume da obra, O Retorno do Rei de O Senhor dos Anéis,8 o autor incorpora o papel
de tradutor e descreve a metodologia aplicada em sua tradução, dizendo os motivos que
levaram o autor em fazer suas escolhas em todo o desenvolvimento da obra literária. Mesmo
ele incorporando o papel de tradutor, vemos que o mesmo não existe, mas tudo funciona de
maneira como se de fato ele existisse, executando um trabalho minucioso que revela para os
dias atuais parte de uma história existencial perdida numa época atemporal de um tempo
remoto.
Na obra literária O Senhor dos Anéis, pode-se observar que o conteúdo
apresentado não corresponde a fatos inverossímeis como a “pseudo”, e sim a uma criação
fictícia, pois o tradutor não se passa por farsante, ele é personagem atuante dentro de sua
criação.
Ao observar os fatos narrados vê-se que tipo de narrativa o autor
desenvolve; adentrando a antecâmara da tradução, detectamos a existência de uma ficção
dando acesso a outra ficção, constituindo sua narrativa ficcional.
Independente de deparar-se com uma pseudo ou uma ficção, de histórias,
fatos, de antemão estamos nos deparando com uma narração, na qual “Histórias são narradas
desde sempre” (LEITE, 1994, p. 5); seu contexto se aplica tanto a fatos verossímeis quanto a
fatos que supostamente poderiam vir a ser reais.
8
O texto DA TRADUÇÃO está inserido no apêndice F, página 425, TOLKIEN, 2000b, onde há a explicação de
sua postura de tradutor adotada para a obra.
40
“Quem narra, narra o que viu, o que viveu, o que testemunhou, mas também
o que imaginou, o que sonhou, o que desejou. Por isso NARRAÇÃO e FICÇÃO praticamente
nascem juntas.” (LEITE, 1994, p. 6).
A pseudotradução necessita de um trabalho lingüístico e cultural abrangente
desenvolvido pelo autor que a faz, para que ela seja aceita como tradução. Um exemplo de
pseudotradução é a obra do século XVI / XVII, de Dom Quixote de Cervantes, que faz a
revelação dentro da própria estória em um estado avançado da narrativa; outro exemplo é A
crônica de Malemort de Reinaldo Santos Neves, onde o autor traduziu seu original de um
manuscrito que estava perdido e foi encontrado mutilado e ele o adaptou. Há também O Nome
da Rosa de Umberto Eco, outro exemplo de pseudotradução9.
Tolkien utiliza em demasia em suas histórias a pseudotradução. Pode-se
observar a inserção desse estilo na obra Mestre Gil de Han (Farmer Giles of Ham). Uma
narrativa que se denomina como suposta tradução, sendo que o original seria de derivação
latina, e que tinha como base lendas e canções populares da época pré-arturiana da Inglaterra.
Passa a sensação de haver uma possibilidade histórica, deixando o leitor indagado em se tratar
de uma realidade ou ficção o conteúdo da leitura.
[...] a totalidade do ambiente lingüístico foi traduzida, até onde isso era possível, em
termos de nossos tempos. Apenas os idiomas alheios à Língua Geral foram mantidos
em suas formas originais, mas essas parecem principalmente em antropônimos e
topônimos. (TOLKIEN, 2000b, p. 425).
A pseudotradução nesse caso tem serventia como uma “moldura” à
narrativa.
Com a construção do imaginário, a tradução fictícia faz com que se tenha
acesso a um passado devido à utilização da linguagem temporal, que é: “qualquer parte ou
característica da linguagem que contenha informação sobre o tempo e a localização temporal
de coisas e eventos” (LACEY, 1972, p. 14), assim como da utilização da linguagem espacial.
O espaço possui três dimensões, contraposta com o tempo, que possui um só, “a linguagem
espacial é resultante da tridimensionalidade do espaço, com as imediatas implicações de que a
localização espacial requer três números para ser especificada” (LACEY, 1972, p. 21).
9
Possuímos uma gama de obras que utilizam o recurso da pseudotradução. Para fins de outras informações de
um dos materiais citados acima, apresenta-se o livro A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da
adaptação, escrito por Robert Stam em 2008, que possui um denso material acerca de Dom Quixote.
41
Esse passado remoto, formado por um tempo e espaço imagético10 acaba por
aproximar o leitor à realidade toda a vez que o autor comprova com fatos, fazendo a história
se tornar viável. Para Tolkien isso não era problema algum, pois seus textos iniciam
primeiramente com o ambiente físico para que depois tome corpo e sejam incluídas as
personagens e a trama.
A Terra-média (Arda) e as línguas antigas em élfico são o que Tolkien tenta
deixar como legado histórico, um passado que veio a existir. Tanto se faz acreditar que
mesmo depois das obras serem publicadas e aceitas pelo público, vários relatos deixados pelo
autor o demonstra afirmando da realidade destes fatos, lembrando sempre que a
rememoração, ou a tradução desses fatos nada mais são do que uma criação.
Minha dificuldade é de que, uma vez que tentei apresentar uma espécie de
legendário e história de uma “época esquecida”, todos os termos específicos estavam
em uma língua estrangeira, e não existem equivalentes precisos em inglês.
(CARPENTER, 2006, p.179).
Tolkien como tradutor de uma obra comporta-se como a de um pesquisador
que reúne documentos antigos para que seja feita uma tradução, a narração de um relato
ocorrido em tempos antigos. E nesse ato de re-narrar, ele se apresenta muito mais que um
mero pesquisador, e sim como o filólogo, arqueológico, historiador que tem como objetivo
reavivar a população uma história nossa, há muito tempo esquecida. À medida que ele
desenvolve a sua mitologia fictícia, ele o faz, sempre aproximando ao máximo da nossa
realidade, respeitando o nosso tempo histórico.
A era narrada na saga corresponde à terceira era da Terra-média, e que logo
ao término da destruição do Anel inicia-se a quarta era, nossa era atual, do domínio dos
homens, da ascensão humana dando fim aos povos que possuíam poderes sobrenaturais.
A narrativa, desse modo, é sempre constituída a ponto de autenticar a
veracidade de fatos, criando no leitor a sensação de que realmente estão diante de fatos e
relatos ocorridos a um passado plausível da humanidade.
Quando deparado com os fatos de ficção e realidade, o que mais se torna
relevante de fato é a possibilidade de o mundo criado ter existido como tal. A realidade
apresentada tem que ser muito bem constituída, para que o jogo da fantasia faça sentido, para
que tenha uma boa coerência e que faça sentido a sua tradução; neste ponto, o pseudotradutor
10
A distinção de tempo e espaço, suas peculiaridades e fatores que as aproximam podem ser analisados pelas
palavras de Hugh M. lacey em A Linguagem do Espaço e do Tempo, 1972.
42
une a realidade e ficção na inserção do tradutor, ponderando os limiares da fantasia à
realidade.
A pseudotradução da obra de Tolkien não se revela uma farsa, visto que ela
faz parte da história; o desvendamento dela ocorre explicitamente e de maneira natural, dando
o tom necessário da realidade exigida da obra. É por meio desta que a narrativa funciona
como um resgate cultural fictício, colocando a mitologia elaborada por ele no mesmo patamar
das que são reconhecidas. A necessidade de se ter uma tradução da obra é visto pelo fato de
que se não houver um tradutor para a sua obra, não poderíamos enxergá-la como sendo algo
plausível dado os fatos de que a obra possui um histórico perfeito e abrangente e que Tolkien
sempre afirmou que era uma história já existente. (só podemos dar conhecimento destes fatos
por este “tradutor” imaginário que nos relata os eventos ocorridos).
Na obra em questão, o autor, ao desejar narrar à história, cria para si um
personagem. Personagem esse que não pertence à história narrada, mas que participa sendo
um condutor da mesma para os leitores. Vemos então que o tradutor fictício de Tolkien fica
no limiar na realidade / fantasia. É o tradutor quem acolhe o leitor e vai apresentando e
desenvolvendo a trama.
Sobre o tradutor de Tolkien pode-se observar que ele não existe, só que tudo
na narrativa ocorre como se ele existisse e fizesse parte de um trabalho cauteloso e riquíssimo
de dados e fontes, pronto a desvendar ao homem parte de seu relato histórico. Com isso
podemos afirmar que o tradutor não se trata de um farsante e sim de um personagem. Tratase, portanto da ficção, onde temos a “criação” e o “criador”, um principio criativo que faz
com que a história se torne possível.
Há então uma ambigüidade entre criação e criador e o tradutor neste ponto
tem que caminhar livremente nestes dois pontos (real/imaginário) para que características de
um mundo fundam-se ao outro mundo, que realidades se deparem com congruência entre
ambas, permitindo que a história passe assim a existir entre um grupo coletivo.
Na obra, o autor se apresenta como um personagem, personagem este que é
oculto, que não participa da trama, mas sabe de todos os detalhes relevantes dos personagens
e do mundo. Sendo que em nenhum momento há o tipo de narração em primeira pessoa
fazendo assim mais uma afirmação do fato de que o tradutor é um pesquisador, reorganizador
de documentos e fatos, narrando assim fatos ocorridos de outros, retirando da estória o “eu”
da narrativa, mantendo assim o foco em terceira pessoa, mas que em nenhum momento
encontramos o tradutor incorporado como um deus onisciente, conhecendo todo o passado,
43
presente e futuro, todos os sentimentos e pensamento dos personagens. O que ele apresenta
são dados obtidos por meio de registros. Nada criado, tudo registrado.
Uma tradução dessa espécie é naturalmente costumeira, pois é inevitável em
qualquer narrativa que trata do passado. Raras vezes passa desse ponto. Mas fui
ainda além. Também traduzi todos os nomes em westron de acordo com seus
significados. Quando, neste livro, aparecem nomes ou títulos em nossa língua, tratase de uma indicação de que nomes na Língua Geral estavam em uso na época, além
ou em vez daqueles em outras línguas (normalmente élficas). (TOLKIEN, 2000b, p.
426).
Utiliza também pelo decorrer da narrativa, relatos, livros de registros
apresentados principalmente em Gondor, no Condado e em Moria. Esses dados fornecidos
permitem ao leitor encontrar uma plausibilidade da narrativa.
- Assim falou Denethor. E, mesmo assim, em sua posse há muitos registros que
agora apenas alguns conseguem ler, até mesmo entre os mestres nas tradições, pois
suas escritas e línguas se tornaram obscuras para os homens que vieram depois. E,
Boromir, acho que ainda existe em Minas Tirith um manuscrito que não foi lido por
ninguém, a não ser por Saruman e por mim, feito pelo próprio Isildur. (TOLKIEN,
2000a, p. 267).
Dados como os de Isildur, que vem a explicar a origem e descendência da
raça humana, têm o papel crucial em trazer a verossimilhança para a estória. Sem este, no
relato apresentado do passado de Gondor, não poderíamos ter a constatação da existência do
Anel e de seu poder destrutivo na narrativa.
Gandalf relata o que há muito foi esquecido sobre o passado de Gondor.
Utilizando de manuscritos, ele revela a história do Anel e narra como ocorreu quando Isildur
o tomou em posse. É a primeira incidência maléfica que o Anel revela; a ânsia pelo poder
absoluto.
O grande Anel deve agora se transformar em parte da herança do
Reino do Norte; mas registros dele serão deixados em Gondor, onde também
moram os herdeiros de Elendil, para evitar que venha um tempo em que a memória
dessas questões importantes seja obscurecida.
E depois dessas palavras Isildur descreveu o Anel, tal como o
encontrou:
Estava quente no primeiro momento em que o peguei, quente como
brasa, e minha mão se queimou, de tal modo que duvidei que algum dia pudesse me
ver livre da dor causada pela queimadura. Apesar disso, no momento em que
escrevo, está frio, e parece que encolheu, embora sem ter perdido a beleza ou a
forma. A escrita que há nele, que no inicio estava visível como uma chama
vermelha, já desapareceu, e mal pode ser lida. As letras são de uma caligrafia élfica
de Eregion, pois não há em Mordor letras para um trabalho tão sutil; mas a língua
44
me é desconhecida. Suponho que seja uma língua da Terra Negra, uma vez que é
desagradável e rústica. Que maldade está aqui eu não sei dizer; traço uma cópia,
para evitar que desapareça e nunca mais seja recuperada. Talvez o Anel sinta falta
do calor da mão de Sauro, que era negra e mesmo assim queimava como fogo, e
assim Gil-galad foi destruído; e talvez, se o ouro for reaquecido, a inscrição fique
visível outra vez. Mas, de minha parte, não arriscarei danificar uma coisa dessas:
de todos os trabalhos de Sauron, o único belo. É precioso para mim, embora o
tenha adquirido à custa de muito sofrimento. (TOLKIEN, 2000a, p. 268).
Quando o anel ressurge novamente e é apresentado sendo Frodo, do
Condado seu portador, já sabemos de seu passado e o poder que este possui. Esta
apresentação do relato “histórico” é o que permitiu constituir sua autenticidade no fato e de
deixar os leitores cientes do que causou e do que o Anel pode causar.
Devido ao fato de Tolkien se preocupar de antemão sempre com a palavra,
com a escrita, observa-se que a palavra não é apenas um condutor da narrativa, e sim parte
integrante do mundo mítico sub-criado.
“As imagens do mito são reflexos das potencialidades espirituais de cada
um de nós. Ao contemplá-las, evocamos os seus poderes em nossas próprias vidas.”
(CAMPBELL, 1990, p. 224).
Até o presente momento foi traçado um parâmetro sobre a mitologia
presente na vida do escritor John Tolkien que acabou resultando na criação da obra O Senhor
dos Anéis, assim como o importante significado da existência do mito na vida das pessoas.
Houve também um presságio sobre como a obra veio a ser elaborada e os fatores que levaram
o autor a compor sua criação.
Para completar tal raciocínio, as criações dos nomes, a origem dos povos, a
geografia dos lugares, todas as pertinências da Terra-média, da sua criação será analisado a
fundo a seguir. Saber o porquê de Tolkien ter a necessidade de, através da palavra escrita,
fazer com que o leitor ouve, sente e, acima de tudo, veja seu mundo disposto a nós.
Pela visão de Tolkien, será traçado seu ideal para o nosso mundo, partindo
desde o inicio dos tempos (cosmogonia) até a atualidade.
“A idéia da “criação” do mundo como passagem do caos à ordem é
arquetípica. [...] a criação consiste na passagem de um mundo caótico para um mundo que
exibe ordem” (DUARTE; BARROS, 2006, p. 16).
45
CAPÍTULO 2 – OBRA LITERÁRIA: O SENHOR DOS ANÉIS
Como apresentado capítulo anterior, O Senhor dos Anéis mantém como base
a mitologia nórdica, é riquíssima em historicidade, possui sua narrativa sempre nos limiares
da realidade, com problemáticas atuais cunhada filosoficamente no tocante a temas que
envolvem e faz o leitor refletir, temas subjacentes do cotidiano, tanto atingindo o eu interior
como refletindo a sociedade e a cultura.
É preciso considerar que a leitura de livros é um ato que, de alguma forma, sempre
sofre uma certa preconfiguração e preorientação. Em nossa sociedade midiática, as
representações dos livros nos demais meios de comunicação de massa são espaços
privilegiados dessa precodificação implícita ao ato de leitura. (REIMÃO, 2004, p.
92).
Será destinado em especial a esse capítulo características de alguns
personagens, tais como Frodo, Gandalf e Sauron e também um estudo voltado sobre a
geografia da Terra-média. Enfim, o estudo será dedicado a partir de agora a entender o mundo
tal qual o autor o criou, a Midgard, conhecer a raça hobbit que tanto encantava o autor, seus
costumes e cultura, compreender o por quê de Tolkien afirmar que suas histórias não se
tratavam de alegorias, e compreender a obra em sua amplitude, utilizando como referencia os
três volumes da saga do anel, já que a história para ser inteligível não pode ser analisada
separadamente, pois a divisão do conteúdo só se deu para fins de custo referentes à
publicação.
2.1. O surgimento da obra
Entre tantas criações literárias elaboradas por Tolkien, o autor buscava
sempre acoplar relações com contos de fadas, histórias envoltas em fantasia, em mito, em
palavra, tanto que se tornou (dentre tantas outras denominações e intitulações) um renomado
filólogo, que buscava constantemente desvendar a história entre as línguas, sempre com a
preocupação com a estética e a eufonia das palavras.
Seus trabalhos, o grupo de estudo que freqüentava, possuía como intuito a
busca constante em sempre compreender muito além do que se apresentavam
46
superficialmente na obra; tal exemplo é Sobre Histórias de Fadas, obra essa que serviu de
base para muitos estudos e tinha como objetivo mostrar a visão de Tolkien sobre os contos, as
características que deveriam estar presentes, assim como apresentar também às pessoas que
histórias de fadas, contos, não devem ser dirigidos apenas a crianças, e sim devem fazer parte
de um repertório elaborado para os adultos. É a necessidade do maravilhoso em nossas vidas
que, como explicado no capítulo anterior, possuímos a necessidade dessa aproximação que
nos é dada por meios de histórias.
Os dois mundos, divino e humano, só podem ser descritos como distintos entre si —
diferentes como a vida e a morte, o dia e a noite. As aventuras do herói se passam
fora da terra nossa conhecida, na região das trevas; ali ele completa sua jornada, ou
apenas se perde para nós, aprisionado ou em perigo; e seu retorno é descrito como
uma volta do além. Não obstante — e temos diante de nós uma grande chave da
compreensão do mito e do símbolo —, os dois reinos são, na realidade, um só e
único reino. O reino dos deuses é uma dimensão esquecida do mundo que
conhecemos. E a exploração dessa dimensão, voluntária ou relutante, resume todo o
sentido da façanha do herói. Os valores e distinções que parecem importantes na
vida normal desaparecem com a terrificante assimilação do eu naquilo que antes não
passava de alteridade. Tal como nas histórias das ogresas canibais, o temor dessa
perda da individuação pessoal pode configurar-se, para as almas não qualificadas,
como todo o ônus da experiência transcendental. Mas a alma do herói avança com
ousadia — e descobre as bruxas convertidas em deusas e os dragões em guardiães
dos deuses. (CAMPBELL, 1997, p. 124).
Houve uma crítica acirrada sobre o estilo literário-juvenil de Tolkien, que
buscava por desmoralizar a imagem do escritor e da obra literária, de contrapartida, foi
abrandado como um ser com competência imaginativa inigualável que permitia ao leitor ser
transportado de um mundo (primário) para outro (secundário); histórias que mantinham temas
subjacentes do cotidiano humano que proporciona ao leitor grande satisfação na leitura.
Relacionado ao estilo literário, pertencente ao público infantil, temos
Tolkien afirmando ao escrever sua história que vários fatores externos influenciaram em sua
escrita, assim como a necessidade dos adultos de voltarem, rememorarem e adentrarem em
histórias desse estilo.
[...] a história está seguindo seu curso e esquecendo-se das “crianças”, tornando-se
mais assustadora do que o Hobbit. [...] A escuridão dos dias atuais teve algum efeito
sobre ela, embora não seja uma “alegoria” [...] Acho que O Senhor dos Anéis por si
só é em boa parte melhor do que O Hobbit, mas ele pode acabar não se mostrando
uma continuação muito apropriada. Ele está mais adulto – mas o público para o qual
O Hobbit foi escrito também está. Os leitores jovens e velhos que pediram por “mais
sobre o Necromante”7 são os culpados, pois o N. não é brincadeira de criança.
(CARPENTER, 2006, p. 45).
7
Necromante é um ser que aparece subliminarmente na obra O Hobbit, quando houve a batalha da última aliança
e Sauron perdeu, ele que pertencia ao Conselho Branco foi expulso e fugiu para Dol Goldur, a floresta das
47
De inicio, a obra O Senhor dos Anéis era para ser direcionada às crianças,
porém percebemos que de histórias infantis nada tem. A história possui um caráter moral
surpreendente que é passado por meio ao devaneio, acabando sendo direcionados
indiretamente ao público adulto, adultos sedentos de instigantes e interessantes fatos que
cingem o lúdico por meio de uma moral transpassada pela história.
As suas criações, suas histórias referentes ao mito, têm como ponto de
partida quando Tolkien, em meio à guerra (1914-18), enquanto estava se recuperando no
hospital, depois de sobreviver à Batalha do Somme em 1916, inicia ali o nascimento do
mundo Arda8; o ponto central de toda sua mitologia se dá por meio a histórias sobre os
personagens Lúthien Tinúviel e Beren, fato que se dá sobre uma narração que o autor faz
espelhando o seu afeto por sua esposa Edith, e esse sinônimo de amor perdura até hoje em
suas lápides. A história dos personagens (um homem que se apaixona por uma elfa) é
encontrada no livro O Silmarillion.
Após ter dado inicio a este estilo literário e a criação dessa mitologia, a
história (para o autor) é como se já existisse e ele apenas tinha que passá-la ao papel. A coisa
fruía de tal maneira que ganhou a dimensão tal qual será apresentada no decorrer deste
trabalho.
Provavelmente isso se desenvolverá de modo muito diferente desse plano quando
realmente for escrito, visto que a coisa parece escrever a si própria assim que
começo, como se então a verdade surgisse, apenas imperfeitamente vislumbrada no
esboço preliminar (CARPENTER, 2006, p. 104).
Foi requerido ao autor que escrevesse um livro juvenil (devido ao estilo ser
infantil, contos de fadas), então ele inicia a história de grande sucesso, O Hobbit. Ele escreve
realmente direcionado ao público infantil, história sobre dragão, ouro, e em meio a tantos
objetos de desejo, um anel, que aparentemente apenas possuía o poder de deixar o portador
invisível e nada mais. Não imaginava o que seria o objeto que tomou lentamente o poder
sobre a mente do protagonista Bilbo Bolseiro, um pequeno hobbit que adentra nessa imensa
aventura.
trevas, assumindo a forma denominada Necromante. Sauron até então não passava de um bruxo de vasto poder,
só que não teve nenhuma relevância direta sobre O Hobbit sendo que em O Senhor dos Anéis é dele um dos
principais papeis.
8
Fontes extraídas de David Day, O Mundo de Tolkien (2004) e do livro de Ronald Kyrmse, Explicando Tolkien
(2003).
48
O livro em questão foi um verdadeiro sucesso e Tolkien mais uma vez foi
solicitado para dar continuação e iniciar uma nova obra. Em 1938, O Hobbit recebeu uma
premiação do New York Herald Tribune, quando foi eleito como sendo “a melhor história
juvenil da estação” (CARPENTER, 2006, p. 40).
Tolkien apresenta então para publicação O Silmarillion (livro dos contos
perdidos), por se tratar de uma verdadeira “bíblia” da Terra-média, sendo altamente
explicativo no que compete sobre o mundo apresentado em sua obra. A editora não se
interessou em publicar; julgaram tratar de histórias fora de contexto para a ocasião, não a
acharam envolvente, possuindo pouco impacto ao público leitor. Tolkien então teve de iniciar
uma nova história, uma saga: como tema é escolhido um objeto que liberta e ao mesmo tempo
aprisiona quem o cobiça, o Um. Só então após o estrondoso sucesso do Anel, é que vem a ser
publicado O Silmarillion, que serviu como um guia explicativo sobre as eras e o reino (Arda).
A criação da saga do Anel teve um dispêndio de tempo e dedicação muito
grande do autor, foi um trabalho árduo, mas que de longe se passava como sendo exaustivo,
pois ele o fazia com prazer. Havia uma certa diversão ao escrever, ao dar asas à sua
imaginação, adentrado, conhecendo e rememorando um mundo esquecido por muitos sobre a
origem da população. “Mito não é o mesmo que história. Os mitos não são histórias
inspiradoras sobre pessoas que viveram uma vida notável. Não, o mito é o transcendente na
relação com o presente.” (CAMPBELL, 2008, p. 18).
Tolkien esclarece em poucas palavras a criação e desenvolvimento de sua
obra, agregando a ela um mundo mítico ao leitor sedento por aventuras heróicas:
Esta história cresceu conforme foi sendo contada, até se tornar uma história da
Grande Guerra do Anel, incluindo muitas passagens da história ainda mais antiga
que a precedeu. O conto foi iniciado logo depois que O Hobbit foi escrito e antes de
sua publicação, em 1937; mas não continuou nessa seqüência, pois eu queria
primeiro completar e colocar em ordem a mitologia e as lendas dos Dias Antigos,
que já vinham tomando forma havia alguns anos. Quis fazer isso para minha própria
satisfação, e tinha alguma esperança de que outras pessoas ficassem interessadas
nesse trabalho, especialmente por ser ele fruto de uma inspiração primordialmente
lingüística, e por ter sido iniciado a fim de fornecer o pano de fundo “histórico”
necessário para as línguas élficas. (TOLKIEN, 2000a, p. XI).
A grande diferença apresentada pelo que veio a ser denominado como
“continuação” para O Hobbit foi que o livro O Senhor dos Anéis é de amplo aspecto, há um
aprofundamento muito maior sobre várias raças e estilos de vida, possui muito mais de
hobbits (cultura, estilo de vida, árvores genealógicas), na saga do Anel do que do próprio O
Hobbit. Gollum reaparece de maneira fundamental para a destruição do Um e Gandalf se
49
apresenta em primeiro plano com fantásticos poderes de sabedoria; há a inserção dos anões,
sendo que tudo que aparece é bem explicado, suas origens, costumes e por fim, não menos
importante, há o surgimento dos Espectros do Anel, que incorporam um destaque para a obra.
Assim como Tolkien afirma, alguns elementos tinham que ser racionalmente colocados na
nova obra para que mantivesse o público original e conseguisse catalisar novos adeptos para a
atual leitura. Ele ainda possuía a pretensão de poder dar à Inglaterra uma lendária
historicidade, sendo que o país era carente neste aspecto; para isso, ele procura aproximar a
raça hobbit ao estilo inglês e o faz de maneira veemente impecável.
Uma das características presentes em sua escrita é o perfeccionismo. Toda a
desenvoltura de seu trabalho se deu de maneira lenta, ponderada, e todas as ocorrências
contidas na história foram agregadas cautelosamente. O perfeccionismo do autor fez com que
ele lesse, relesse e editasse inúmeras vezes o mesmo conteúdo, sempre em busca da
veemência na obra.
A única coisa que deixava o autor desgostoso nesse fazer era que aos olhos
dos outros, esse trabalho era pouco aclamado; as pessoas mostravam mais interesse em
pequenos contos, em histórias corriqueiras que possuíssem apenas uma trama, do que um
trabalho que se valia com inúmeras preocupações com detalhes que viessem carregados de
explicações relacionados no material literário. Para tanto, aos realmente interessados em uma
densa obra literária mítica, o autor buscou agregar no último volume da obra9, referências
para os interessados para poderem compreender e se interarem no mundo fictício Arda.
Muitos de seus amigos liam, assim como Lewis e os integrantes dos grupos
de pesquisa com os quais Tolkien gostava de compartilhar sua obra para entretê-los e ouvir
opiniões variadas, mas o papel principal em todo o corpo da narrativa era seu filho,
Christopher. Tolkien sentia a necessidade fervorosa de ter a aprovação dele em todo o
contexto da narrativa, assim como os desenhos ilustrativos contidos em toda a extensão da
mesma ficava a cargo de Christopher para que fosse desenvolvida. Percebemos, contudo, que
a obra nada mais foi que um presente para seu filho, um agrado de um pai fazendo o que
melhor sabe fazer, criar, inventar e por fim escrever.
Lewis quase foi levado às lagrimas pelo último capítulo. Mesmo assim, desejo
mormente saber o que você acha, já que por muito tempo tenho escrito
principalmente com você em mente. [...] Aguardo ansiosamente seu veredicto. É
muito exasperante ter seu principal público a Dez Mil Milhas de distância
(CARPENTER, 2006, p. 104).
9
TOLKIEN em O senhor dos anéis: terceira parte: o retorno do rei (2000).
50
Devido ao autor possuir o desejo de criar um mundo fictício, ele o faz (com
o auxílio indireto de seus amigos e de seu filho), principalmente com a necessidade de
compartilhar um legado histórico cativante que o envolvia e despertou o interesse em tantos
adeptos de sua literatura.
2.2. O imaginário presente na vida
Histórias que possuem o lúdico em demasia desperta o interesse tanto do
público infantil como do adulto. Pode ser que haja a necessidade de um grupo aderir ao estilo
em busca de uma fuga para seus problemas rotineiros, pode também ocorrer por necessidade
de distração, uma vez que se encontram em situações que julgam estarem enfadonhos,
podendo também ser por mera diversão.
O homem se encontra sempre em constante busca desde tempos remotos em
se envolver em peripécias que o retirem de sua rotina diária, elevando-o, incitando-o,
descobrindo ou rememorando algo que há muito foi esquecido por tantos da sociedade. É a
necessidade inventiva e desbravadora que, pertencente à característica humana faz com que o
homem, quando deparado nessa categoria literária faça com que dela desfrute.
Embora o conto maravilhoso se tenha convertido há muito tempo em literatura de
diversão (para as crianças e os camponeses) ou de evasão (para os habitantes das
cidades), ele ainda apresenta a estrutura de uma aventura infinitamente séria e
responsável, pois se reduz, em suma, a um enredo iniciatório: nele reencontramos
sempre as provas iniciatórias (lutas contra o monstro, obstáculos aparentemente
insuperáveis, enigmas a serem solucionados, tarefas impossíveis, etc.), a descida ao
Inferno ou a ascensão ao Céu (ou – o que vem a dar no mesmo – a morte e a
ressurreição) (ELIADE, 2007, p. 173).
Permanecendo no raciocínio da necessidade das pessoas estarem em contato
com o lúdico, Joseph Campbell (1997) elucida:
A agonia da ultrapassagem das limitações pessoais é a agonia do crescimento
espiritual. A arte, a literatura, o mito, o culto, a filosofia e as disciplinas ascéticas
são instrumentos destinados a auxiliar o indivíduo a ultrapassar os horizontes que o
limitam e a alcançar esferas de percepção em permanente crescimento. Enquanto ele
cruza limiar após limiar, e conquista dragão após dragão, aumenta a estatura da
divindade que ele convoca, em seu desejo mais exaltado, até subsumir todo o cosmo.
Por fim, a mente quebra a esfera limitadora do cosmo e alcança uma percepção que
transcende todas as experiências da forma — todos os simbolismos, todas as
divindades: a percepção do vazio inelutável. (CAMPBELL, 1997, p. 99).
51
O leitor possui a necessidade do contato direto com aventuras e causas que
remetam diretamente à consciência humana e Tolkien permite que àqueles instigados em
adentrar num mundo secundário (que está ligado incisivamente ao mundo primário) possam
se deparar com todas as questões iniciatórias, que vão desde a existência terrena, sua
ascensão, até a uma apuração que ocorre de forma natural e que se torna necessária que ocorra
para que o mundo se transforme no que é encontrado nos tempos atuais.
Sobre o tocante à ascensão, é muito bem explicada essa premissa na
primeira parte: A sociedade do Anel e na segunda parte: As duas Torres, quando o mago
Gandalf, guiando a demanda em meio aos grandes salões de Moria, (a morada dos anões)
confronta um balrog10. Em meio a uma batalha cheia de poderes sobrenaturais, Gandalf
sucumbe e cai nas profundezas junto com seu oponente. A dimensão dessa luta é
surpreendente, e ali mago e demônio lutam até que Gandalf supera seu oponente; porém, para
que o mago retorne à terra é necessário que haja uma burilação em seu corpo e espírito. E
assim Gandalf volta, revestido de branco, a forma máxima de poder e sabedoria,
resplandecendo como o sol da manhã e possuindo a sabedoria que lhe cabia.
Joguei o inimigo para baixo, e ele caiu e quebrou a encosta da montanha no ponto
em que a atingiu ao ser destruído. Depois a escuridão me dominou, e eu me perdi do
pensamento e do tempo, e vaguei muito por estradas que não vou contar.
-Estava nu quando fui enviado de volta – por um tempo curto, até que minha tarefa
estivesse cumprida. E nu jazi sobre o topo da montanha. [...] Eu estava sozinho,
esquecido, sem possibilidades de escapar, sobre o duro chifre do mundo. Fiquei ali
deitado, olhando como para cima, enquanto as estrelas rodavam, e cada dia era
longo como uma era na vida da terra. Chegavam a meus ouvidos os rumores
longínquos de todas as terras: o nascimento e a morte, o canto e o choro, e o gemido
lento e eterno da rocha sobrecarregada. (TOLKIEN, 2002, p. 100).
Por maior que possa aparecer aos olhos dos leitores tratar de uma obra
literária infantil, quando lida, logo já de início se detecta que a saga é de conteúdo profundo e
real. Claro que contém como todas as histórias o dito “e viveram felizes para sempre”, mas as
passagens dadas à história são tratadas com conteúdo sério, respectivo ao estilo de vida
humana, pertencendo e respeitando o ciclo e cronograma de vida terrestre.
[...] o conto sempre se conclui com um happy end. Mas seu conteúdo propriamente
dito refere-se a uma realidade terrivelmente séria: a inclinação, ou seja, a passagem,
através de uma morte e ressurreição simbólicas, da ignorância e da imaturidade para
a idade espiritual do adulto. (ELIADE, 2007, p. 174).
10
Balrog era um demônio de outra era, ficou adormecido nas profundezas de Moria e ressurgiu para confrontar
Gandalf.
52
Por meio do veículo literário mítico, o homem possui a capacidade de
adentrar e poder rememorar fatos históricos; reviver os eventos primordiais expressos que
ocorreram num tempo primordial. É a capacidade dum voltar atrás coletivo.
Toda reflexão sobre o livro é incompleta se se limita ao simples estudo do livro
impresso tal como este ficou conhecido a partir da invenção de Gutenberg. É
conveniente, para compreender o papel desempenhado por este objeto, colocá-lo
entre os instrumentos de comunicação [...]. Pode-se pensar que a história do livro
deva se inserir [...] em uma história dos sistemas de comunicação social. (MARTIN
apud REIMÃO, 2004, p. 133).
Mesmo que seja dada de maneira inconsciente na leitura, o leitor acaba por
se tornar parte integrante da história e se torna peça fundamental no mecanismo lúdico
presente na obra, que deve ser expressa na vida humana.
Literalmente expressão é o contrário de impressão. A impressão é um movimento do
exterior para o interior: é a realidade (objeto) que se imprime na consciência
(sujeito). A expressão é um movimento inverso, do interior para o exterior: é o
sujeito que por si imprime o objeto. (ARGAN, 1992, p. 227).
O imaginário age como um mecanismo, uma válvula que quando necessário
é aberta, possibilitando que o imaginário adentre em nossas vidas, nos transportando a um
mundo que corresponde à nossa origem histórica.
Como sabemos que “O homem é o que é hoje porque uma série de eventos
teve lugar ab origine” (ELIADE, 2007, p. 85), e que só acessamos esses ocorridos por meio
do mito que narra uma história passada, vemos presente até mesmo na própria ontologia, de
que fatos ocorridos em tempos remotos nos implicam nossa real existência, possuindo
influência no desenvolver da história humana, social e cultural.
Tolkien, consciente desse veículo condutor pertencente à narrativa (que
transporta o homem do tempo presente ao passado), utiliza-o nos compartilhando esse tempo
com seus eventos primordiais, partindo da premissa de que há a possibilidade de se ter uma
regeneração, de renovar atos e a própria existência, pois os mitos circulam livremente em
nosso consciente, despertando e mantendo dentro da mente humana a consciência da
existência de um outro mundo, que pode ter sido divino ou então a morada de nossos
ancestrais. “Esse “outro mundo” representa um plano sobre-humano, “transcendente”, o plano
das realidades absolutas” (ELIADE, 2007, p. 123).
53
2.3. Fatos históricos, não alegóricos
Partindo da premissa que história não corresponde à alegoria, e que a obra
de análise O Senhor dos Anéis pode ser considerada como uma mera alegoria, o escritor
acentua que sua história é apenas uma criação ficcional literária.
Outros arranjos poderiam ser criados de acordo com os gostos ou as visões daqueles
que gostam de alegorias ou referencias tópicas. Mas eu cordialmente desgosto de
alegorias em todas as suas manifestações, e sempre foi assim desde que me tornei
adulto e perspicaz o suficiente para detectar sua presença. Gosto muito mais de
histórias, verdadeiras ou inventadas, com sua aplicabilidade variada ao pensamento
e à experiência dos leitores. Acho que muitos confundem “aplicabilidade” com
“alegoria”, mas a primeira reside na liberdade do leitor, e a segunda na denominação
proposital do autor (TOLKIEN, 2000a, p. XIII).
Tolkien sempre se preocupou para que as pessoas não compreendessem
erroneamente seus relatos, que não confundissem suas criações fictícias em fatos alegóricos.
Com isso, o autor movido pela preocupação em não deixar dúvida aos leitores, busca sempre
explicar em demasia suas elaborações ficcionais, rompendo assim qualquer paralelo que possa
existir referente à alegoria e sua obra.
Desagrada-me a Alegoria – a alegoria consciente e intencional; todavia, qualquer
tentativa de explicar o propósito dos mitos ou dos contos de fadas deve empregar
uma linguagem alegórica. (E, é claro, quanto mais “vida” uma história tiver, mais
facilmente ela será suscetível a interpretações alegóricas, ao passo que quanto
melhor uma alegoria deliberada for feita, mais prontamente ela será aceitável apenas
como uma história.) seja como for, todo esse material diz respeito principalmente à
Queda, à Mortalidade e à Máquina. (CARPENTER, 2006, p. 142).
Em vários relatos deixados pelo autor pode ser detectada a necessidade
incisiva em afirmar que suas lendas se tratavam de histórias e não alegorias (como muitos
afirmavam) e que tinham como base dados deixados ab initio, onde o autor apenas teve o
trabalho de resgatar um mito antigo e o redigir.
A grande diferença competida de história e alegoria é que as histórias do
autor possuem um caráter moral, são “verdades” ocorridas em um período histórico, é uma
história digna de ser relatada, que contém fatos relevantes inerentes à vida humana, e não
alegorias. O objeto em questão o é, não é nenhuma alusão ou algo referente a outrem.
54
Tolkien possuía como objetivo primário, o de entreter adultos, instigar e
agradar por meio da leitura, conferindo um mundo imaginário como palco das peripécias
ocorridas, cativando assim uma legião de fãs. Em segundo passo como objetivo secundário, o
autor começa a agregar mais historicidade em seus relatos, incorporando-o, saindo do limiar
de simples histórias, para adentrar assuntos mais relevantes, inerentes às pessoas. Ele começa
então a aproximar os conflitos narrados a problemas que nós enfrentaríamos, denominando
como atos “sacrificiais”, que são atos que abrangem desde a vitória até a derrota humana. Tais
referências podem ser detectadas na seguinte alusão:
Além disso, nem sequer teremos que correr os riscos da aventura sozinhos; pois os
heróis de todos os tempos nos precederam; o labirinto é totalmente conhecido.
Temos apenas que seguir o fio da trilha do herói. E ali onde pensávamos encontrar
uma abominação, encontraremos uma divindade; onde pensávamos matar alguém,
mataremos a nós mesmos; onde pensávamos viajar para o exterior, atingiremos o
centro da nossa própria existência; e onde pensávamos estar sozinhos, estaremos
com o mundo inteiro. (CAMPBELL, 1997, p. 15).
Na narrativa, além de haver os elementos citados acima, que é a
aproximação dos fatos fictícios com base em fatos reais, há também um fascínio na
elaboração da trama em ser narrada detalhadamente a Era mítica imaginária, construindo seus
limiares na realidade humana, sempre tendo em mente a preocupação em explicar suas
origens e os “por quês”, mas em contrapartida também cria um mistério, deixa lacunas
pensantes aos espectadores, porém, sem que seja incutida nessas lacunas uma alegoria sobre a
história.
Naturalmente, Alegoria e História convergem, encontrando-se em algum lugar na
Verdade, de modo que a única alegoria perfeitamente consistente é a vida real; e a
única história completamente inteligível é uma alegoria. E descobre-se, mesmo na
“literatura” humana imperfeita, que quanto melhor e mais consistente for uma
alegoria, mais facilmente ela pode ser lida “apenas como uma história”; e quanto
melhor e mais intimamente tecida for uma história, mais facilmente aqueles com
essa mentalidade podem encontrar alegorias nela. Mas as duas partem de
extremidades opostas. É possível fazer do Anel uma alegoria de nossa própria época
caso se queira: uma alegoria do destino inevitável que espera por todas as tentativas
de derrotar o poder do mal com poder. Mas isso ocorre unicamente porque todo
poder mágico ou mecânico sempre trabalha desse modo. Não se poder escrever uma
história sobre um anel mágico aparentemente simples sem que isso acabe surgindo,
caso realmente se leve esse anel a serio e faça acontecer coisas que aconteceriam se
tal objeto existisse (CARPENTER, 2006, p. 120).
O autor ainda buscou explicar no prólogo do primeiro volume que a obra em
questão não se refere a alegoria, como apresentado.
55
Quanto a qualquer significado oculto ou “mensagem”, na intenção do autor estes não
existem. O livro não é nem alegórico nem se refere a fatos contemporâneos.
Conforme a história se desenvolvia, foi criando raízes (no passado) e lançou ramos
inesperados. [...] Foi escrito muito antes que o prenúncio de 1939 se tornasse uma
ameaça de desastre inevitável, e desse ponto a história teria sido desenvolvida
essencialmente na mesma linha, mesmo que o desastre tivesse sido evitado. Suas
fontes são coisas que já estavam presentes na mente muito antes, ou em alguns casos
já escritas, e pouco ou nada foi modificado pela guerra que começou em 1939 ou por
suas seqüelas. (TOLKIEN, 2000a, p. XIII).
Ao fato da história do Anel ser tão completa, instigante e que trata de temas
atuais, muitos tentaram caracterizá-la (ou descaracterizar) como simples alegoria, fazendo
parâmetros sobre tragédias e ocorridos da época como sendo reflexo em sua obra, contudo o
autor sempre buscou explicar que a história se trata de algo mítico histórico e não alegórico.
2.4. Inserção mitológica das personagens: Frodo, Gandalf e Sauron
Em meio a tantos personagens existentes na saga, tantos de poderes e
capacidades inigualáveis, quantas histórias envoltas a eles cheias de heroísmo e de beleza
inigualável, o estilo de vida levado por eles contendo seus arredores e características da raça,
tais como os anões que possuem a capacidade suprema em cavar túneis profundos e de
inigualável beleza por apreciarem o metal e pedras preciosas que fazem parte do adorno de
suas moradas, assim como os elfos, aspirantes de encanto, a magia que é transpassada pelas
florestas, seu habitat é surpreendentemente calmo, organizado, de uma língua cristalina e
envolvente e possuem uma beleza física estonteamente bela, dentre tantos outros que também
possuem suas peculiaridades, foi-se escolhido então três personagens nas respectivas cenas,
sendo um hobbit, Frodo (de grande semelhança à raça humana, a cena em especial foi o
Conselho de Elrond,pois é o momento crucial na vida do Pequeno herói) e dois magos:
Gandalf e Sauron (que um é o poder máximo do bem e a cena a ser analisada é quando ele cai
em Moria e retorna em Fangorn e de contrapartida outro que é o poder máximo existente do
mal que é retratado na passagem de Frodo por Lothórien juntamente com o Espelho de
Galadriel).11
11
A parte em questão envolvendo Frodo é o conselho de Elrond, conselho esse que destina aos personagens o
que fazer com o anel, a ponte de Khazad-dûm em Moria onde Gandalf o cinzento sucumbe e em Lothóriem que,
por meio do Espelho de Galadriel, Sauron atual fortemente.
56
Para que seja analisada a inserção mitológica tolkeniana pelos parâmetros
que o grande estudioso de mitos, Joseph Campbell achava fundamental para a composição de
uma mitologia; tais como a tragédia, comédia, morte e ressurreição, unida ao ato heróico onde
ocorre a elevação moral dos personagens. Conforme observado, segue algumas cenas
envolvendo os personagens que se encontram em momentos fatídicos remetendo a mitologia.
O final feliz do conto de fadas, do mito e da divina comédia do espírito deve ser
lido, não como uma contradição, mas como transcendência da tragédia universal do
homem. O mundo objetivo permanece o que era; mas, graças a uma mudança de
ênfase que se processa no interior do sujeito, é encarado como se tivesse sofrido uma
transformação. Onde antes lutavam a vida e a morte, agora se manifesta o ser
duradouro — tão indiferente aos acasos do tempo como a água fervente num pote o
é para com o destino de uma bolha, ou como o cosmos com relação ao aparecimento
e desaparecimento de uma galáxia. A tragédia é a destruição das formas e do nosso
apego às formas; a comédia, a alegria inexaurível, selvagem e descuidada, da vida
invencível. Em conseqüência, tragédia e comédia são termos de um único tema e de
uma única experiência mitológicos, que as incluem e que são por elas limitados: a
queda e a ascensão (kathodos eano dos), que juntas constituem a totalidade da
revelação que é a vida, e que o indivíduo deve conhecer e amar se deseja ser
purgado (katharsis = purgatório) do contágio do pecado (desobediência à vontade
divina) e da morte (identificação com a forma mortal). (CAMPBELL, 1997, p. 16).
Como o poder do mal é presente em todo o corpo do texto, as cenas foram
escolhidas onde ocorrem momentos fatídicos com os personagens, permitindo aflorar a
mitologia que Tolkien desenvolveu.
Para seguir com a inserção mitológica das personagens na narrativa, são
necessárias quatro fases principais: manipulação; qualificação; ação; e sansão. Anna Maria
Balogh define essas fases principais para inserção das personagens na narrativa do texto.
“Não é imprescindível que todas essas fases apareçam de forma concreta [...] algumas podem
ser subentendidas, outras podem ser manifestadas.” (BALOGH, 2002, p. 64).
Manipulação: Antes que fosse iniciada a saga do Anel e a Terra-média fosse
desbravada, algum tipo de impulso foi gerado na personagem Frodo, fazendo com que ele
aceitasse carregar o Anel para que pudesse salvar os povos livres do poder do mal. Tal
impulso foi gerado, tanto pelo desejo de manter o Condado a salvo, como pela imposição do
mago Gandalf.
Manipulação: para que o personagem inicie uma trajetória, seja levado à ação, é
necessário que ele tenha um desejo (querer) ou o dever de fazer ou obter alguma
coisa. Esse desejo ou dever pode nascer dele mesmo (automanipulação) ou pode ser
levado a ele por outro personagem (destinador da manipulação). (BALOGH, 2002,
p. 63).
57
Qualificação: Neste quesito, o portador necessita ser capaz de suportar as
provações e sair ileso do mal que o rodeia. Assim como Frodo é testado no Espelho de
Galadriel, o mal o ladeia, porém ele não sucumbe.
Qualificação: não basta, no entanto, que o S12 tenha um querer ou um dever de
executar, uma ação para levar a cabo, um objetivo, um programa narrativo, é
necessário também que ele tenha as aptidões, a competência para levar adiante o que
quer. (BALOGH, 2002, p. 63).
Frodo aceita no conselho de Elrond a imposição da tarefa, deixando para
traz sua vida e rumando para a destruição do Anel e salvação da Terra.
“A ação: de posse da competência, o personagem parte para o fazer, a ação,
o momento principal da narrativa e responsável pelas eventuais transformações.” (BALOGH,
2002, p. 64).
Como em todo o final heróico, as provações são sanadas e o fim prosperado.
A ordem volta a dominar e o caos é banido. O retorno às terras Ermas é alcançado e a paz
restabelecida.
Sanção: aqui o destinador exerce um fazer interpretativo (um julgamento) sobre o
contrato estipulado na manipulação e eventualmente sobre as fases subseqüentes [...]
ao atingir seus objetivos, recebe uma sanção positiva geralmente coroada pela frase
“e foram felizes para sempre”. (BALOGH, 2002, p. 64).
Ou ainda como Campbell afirma:
Uma coisa que se revela nos mitos é que, no fundo do abismo, desponta a voz da
salvação. O momento crucial é aquele em que a verdadeira mensagem de
transformação está prestes a surgir. No momento mais sombrio surge a luz.
(CAMPBELL, 1990, p. 49).
Cruzando os três eleitos personagens juntos, mas em cenas diferentes, a
retratação então se volta à principal máxima: os Pequenos possuem poder? Os sábios são
capazes de utilizar adequadamente o poder que lhes é confiado? É o que será observado.
12
Balogh (2002) denomina S como sendo o sujeito.
58
2.4.1 A vida de um hobbit, seu habitat
Nasci em 1892 e vivi meus primeiros anos no “Condado” em uma época prémecânica. [...] Sou de fato um Hobbit (em tudo, exceto no tamanho). Gosto de
jardins, de árvores e de terras aráveis não-mecanizadas; fumo um cachimbo e gosto
de uma boa comida simples (não refrigerada), mas detesto a culinária francesa; gosto
de, e ainda ouso vestir nestes dias sem brilho, coletes ornamentais. Gosto muito de
cogumelos (tirados de um campo); possuo um senso de humor muito simples (que
até meus críticos apreciativos acham cansativo); durmo tarde e acordo tarde (quando
possível). Não viajo muito. (CARPENTER, 2006, p. 275).
Esse relato acima citado por Tolkien faz transparecer a semelhança contida
entre a raça humana e a raça hobbit, salvo exceção do tamanho. Os Hobbits são criaturas
simples, adoram cuidar de seus jardins, possuem um apetite insaciável, muito cortês e
extremamente leal.
É fato que, apesar de um estranhamento posterior, os hobbits são nossos parentes:
muito mais próximos que os elfos, ou mesmo que os anões. Antigamente, falavam a
língua dos homens, à sua própria maneira, e em grande parte gostavam e
desgostavam das mesmas coisas que os homens. Mas qual é exatamente nosso
parentesco não se pode mais descobrir. A origem dos hobbits se situa nos Dias
Antigos, agora perdidos e esquecidos (TOLKIEN, 2000a, p. 2).
A origem da raça é desconhecida nos registros da Terra-média, pois não
chamavam muita a atenção dos povos civilizados da época, o povoado é formado apenas
pelos de sua raça e o estilo de vida possuído por eles é organizado e muito civilizado, a base
de vida é a agricultura e nunca viajam, não correm riscos desnecessários.
Os hobbits são um povo discreto mas muito antigo, mais numeroso outrora do que é
hoje em dia. Amam a paz e a tranqüilidade e uma boa terra lavrada: uma região
campestre bem organizada e bem cultivada era seu refúgio favorito. Hoje, como no
passado, não conseguem entender ou gostar de máquinas mais complicadas que um
fole de forja, um moinho de água ou um tear manual, embora sejam habilidosos com
ferramentas. Mesmo nos tempos antigos, eles geralmente se sentiam intimidados
pelas “Pessoas Grandes”, que é como nos chamam, e atualmente nos evitam com
pavor e estão se tornando difíceis de encontrar. Têm ouvidos agudo e olhos
perspicazes, e, embora tenham tendência a acumular gordura na barriga e a não se
apressar desnecessariamente, são ligeiros e ágeis em seus movimentos. (TOLKIEN,
2000a, p. 1).
A estatura dessa raça é menor que dos anões, varia indo de 60 centímetros a
1 metro e 20 centímetros, são mirrados, de porte nada atlético e de uma felicidade
59
estonteante13. As festas eram costumeiras no Condado, procuravam se vestir de cores vivas e
alegres e nunca usavam sapatos devido a seus pés serem grandes, peludos e de sola espessa.
Tanto os pêlos quanto os cabelos, eram encaracoladinhos de cor acastanhada. Seus rostos em
primeira instância se apresentam “simpáticos”, seus olhos possuem um brilho, as bochechas,
redondas pareciam a maçãs cintilantes.
As refeições são totalizando seis, adoram beber um quartilho da melhor
cerveja encontrada na região que é da Quarta Leste, e apreciam pegar seus cachimbos e
desfrutarem da inalação da erva denominada erva-de-fumo ou simplesmente folha, que os
hobbits chamavam deste habito ser uma verdadeira “arte”. As ervas mais apreciadas eram
Folha do Vale Comprido, Velho Toby e Estrela do Sul. No caso do Condado, a preferência se
vinha da erva Velho Toby.
Existe uma outra coisa a respeito dos hobbits que deve ser mencionada, um hábito
surpreendente: eles inspiravam ou inalavam, através de tubos de barro ou madeira, a
fumaça derivada da queima de folhas de uma erva, que chamavam de erva-de-fumo
ou folha, provavelmente uma variedade de Nicotina. Um mistério enorme envolve a
origem desse hábito peculiar, ou “arte”, como os hobbits preferiam chamá-lo.
(TOLKIEN, 2000a, p. 8).
Sua raça é dividia em três: Pés-peludos, Grados e Cascalvas. Os Pés-peludos
se diferenciam por terem uma pele mais escura, eram menores e mais baixos, sua pele era lisa
sem possuírem barba e se assemelhavam muito aos anões de épocas antigas, vivendo por
muito tempo nos encalços das montanhas, era também a variedade mais comum e
representativa dos hobbits. Acomodavam-se em tocas contidas de smials (túneis cavos e
ramificados entre as tocas), hábitos herdado de seus ancestrais; os Grados eram um pouco
mais encorpados e pesados, já os Cascalvas possuíam a pele e cabelos com tonalidades mais
claros, mais esguios e altos que os demais e eram amantes de árvores e florestas, eram menos
numerosos e possuíam entre os hobbits maiores habilidades com a língua e música do que
trabalhos manuais.
A escrita utilizada por eles era Dúnedain, falavam a língua geral, o Westron
(língua denominada entre as terras dos reis Arnor até Gondor). A moradia utilizada pelos
hobbits do Condado eram tocas, muito amplas e sempre habitadas por famílias grandes e
sempre faziam (com muito orgulho) referência à árvore genealógica de suas descendências.
13
No primeiro volume da obra O Senhor dos Anéis: a sociedade do anel, Tolkien redigiu um prólogo sobre a
raça, traçando perfil físico e psicológico da espécie, assim como o estilo de vida que os Pequenos levavam,
servindo para o trabalho como fonte de informação aos dados que se seguem sobre a espécie.
60
A apreciação pelo cultivo próprio de seus alimentos, feitos de maneira
manual, era a máxima característica e sempre o que faziam era na medida em que tivesse o
respeito pela natureza e seus jardins eram de inigualável simpatia e beleza.
O grande destaque dado a essa raça (que até então era enfadonha, sem
nenhum feito de grande relevância) parte de início no ano 1341 do Condado (correspondente
a 2941 da Terceira Era) quando um determinado hobbit alça vôo, movido por uma inquietação
desconhecida desse povo, um desejo irrefutável em descobertas, Bilbo Bolseiro surge e parte
para o mundo afora, desbravando o desconhecido, coisa nunca feita por outro hobbit na
história. Esses relatos são narrados no livro O Hobbit, um presságio do que virá a ser narrado
em O Senhor dos Anéis.
O ponto de partida da saga do Anel ocorre quando Bilbo necessita
abandonar o condado e deixar o Anel a Frodo, seu sobrinho. Diferente de todos da região, o
Bolsão era habitado apenas por Bilbo e Frodo.
Enquanto Bilbo (a mando de Gandalf) se preparava para a viagem até
Valfenda, a morada dos Altos-Elfos e residência de Elrond, quando ele abandona o Condado
deixando toda sua herança, juntamente com o Bolsão e o Anel para seu sobrinho Frodo,
despede-se do mago Gandalf, o cinzento, e narra:
Meus pés estão sendo impulsionados de novo, finalmente – acrescentou; e então,
numa voz baixinha, como se fosse para si mesmo, cantou suavemente no escuro:
A estrada em frente vai seguindo
Deixando a porta onde começa.
Agora longe vai indo,
Devo seguir, nada me impeça;
Em seu encalço vão meus pés,
Até a junção com a grande estrada,
De muitas sendas através.
Que vem depois? Não sei mais nada.
(TOLKIEN, 2000a, p. 36).
Bilbo se torna então, em Valfenda, além de poeta, escritor de registros
daquela época, e é por meio desses registros deixados por ele que tivemos acesso à grande
saga do Anel, que foi desbravada por Frodo. Os registros que são apresentados fazerem parte
do Livro Vermelho do Marco Ocidental, e que é denominado por ele como de Lá-e-de-VoltaOutra-Vez, devidamente intitulado por constar a viagem feita por Bilbo ao Leste e o seu
retorno, retorno esse com o surgimento do Anel. Para o desfecho ocasionado em O Hobbit,
que era a Busca do Ouro do Dragão, por obséquio acaba por encontrar acidentalmente um
61
“Anel mágico”, que apresentava como relevância de poder apenas o de ficar incógnito aos
olhos das pessoas.
A grande diferença entre as “Pessoas Grandes” (homens) e as “Pessoas
Pequenas” (hobbits) se dá pelos hobbits terem uma maior interação com a natureza (seja ela
com o próprio solo, seja com as plantas e animais); são desprovidos também diferentemente
dos homens da ambição e cobiça de acúmulo de riquezas. “Podem ser moles como manteiga,
porém, às vezes duros como velhas raízes de árvores” (TOLKIEN, 2000a, p. 50). Essas
características peculiares da raça são encontradas em demasia no amistoso hobbit Frodo.
Frodo é o herdeiro de Bilbo Bolseiro, onde fica de sua incumbência o
Bolsão e o anel. Frodo, quando inicia o desfecho da virada de sua vida estava na fase da
vintolescência14, porém, só quando atinge a idade mais sóbria, aos cinqüenta anos, que
começa a ser inquietado por pensamentos sobre uma futura jornada, em busca de novos
desafios. No povoado, os hobbits possuíam uma estranheza a ele, pois ao longo dos anos
passados Frodo não apresentava traços defasados, mantinha a aparência da saída da
juventude, mantendo o ar e a robustez de pequenos anos vindouros. Mal sabiam os Pequenos
que tal fato se tratava do poder do Anel já vigente (mesmo de maneira oculta) sobre Frodo.
Essa inquietação que surgiu como um sobressalto em sua vida fez com que
diferentemente de todos (a raça não possuía a característica investigativa, se limitavam a seu
espaço ocupacional), em transpor a barreira limitada do Condado, em rumar a jornadas
interessantes e surpreendentes.
Na obra literária, passam-se nove anos até que chega o dia fatídico do
encontro do Mago e o Hobbit. A história, depois desse encontro volta a ser linear e é onde
pela primeira vez que Frodo se depara com a amplitude do Anel, quando Gandalf o lança ao
fogo e resgata, a escrita élfica de Mordor no anel se faz reluzente, seu conteúdo, em Língua
Comum quer dizer:
Um Anel para a todos governar, Um Anel para encontrá-los,
Um anel para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los
- São apenas duas linhas de versos conhecidos há muito tempo na tradição élfica:
Três Anés para os Reis-Elfos sob este céu,
Sete para os Senhores-Anões em seus rochosos corredores,
Nove para Homens Mortais fadados ao eterno sono,
Um para o Senhor do Escuro em seu escuro trono
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam.
14
Vintolescência é denominado na cultura Hobbit como sendo os anos irresponsáveis referentes à infância até a
maioridade, que se dá aos trinta e três anos. (TOLKIEN, 2000a).
62
Um Anel para a todos governar, Um Anel para encontrálos,
Um Anel para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam (TOLKIEN, 2000a, p. 52).
Gandalf explica a Frodo que o Anel que está em seu poder se trata do Anel
Mestre, o Um Anel a todos governar e que este mesmo estava à procura de seu dono.
O anel começa a tornar denso, um fardo que desperta tremor, mas que ao
mesmo tempo fascinava. O Um Anel invade o espírito de Frodo, tornando a partir desse
momento um fardo que o acompanhará por longa labuta.
Frodo ouve o conselho do mago cinzento que diz para abandonar o Condado
e até seu próprio nome e rumar com o anel. Diferentemente de qualquer um de sua espécie
Frodo aceita abandonar o Condado, porém por característica da raça, essa atitude foi
diferenciada, pois qualquer outro renegaria de imediato a imposição do fardo por não se tratar
de algo diretamente ligado a suas vidas. Ele aceita abandonar Bolsão, o Condado logo após
sua festa de aniversário, quando completasse seu qüinquagésimo aniversário e o centésimo
vigésimo oitavo de Bilbo (os dois festejavam a data comemorativa de nascimento no mesmo
dia.) e rumar à busca da destruição do Anel mestre sem se opor ou negar seu fardo prédestinado. Características desconhecidas do povo Hobbit acabam por emergir, começa-se a
nova descoberta dessa raça, a força interna presente nesses pequenos, até então adormecidos
entre os relatos das eras. Assim como quando Frodo aceita o encargo e responde
positivamente à nova tarefa, Gandalf explana:
-Meu querido Frodo! – exclamou Gandalf. – Os hobbits são de fato criaturas
surpreendentes, como já disse antes. Pode-se aprender tudo o que há para saber
sobre eles num mês, e apesar disso ainda podem depois de cem anos surpreendê-lo
numa emergência. Mal esperava por uma resposta dessas, nem mesmo vinda de você
(TOLKIEN, 2000a, p. 65).
Frodo nunca gostou muito do Condado, da vida que levava, era um ser que
se mostrava apático às coisas a seu redor, passava mais tempo divagando sobre a idéia de uma
aventura mundo afora do que viver o momento presente, porém, após ser anunciado sua
obrigatoriedade em abandonar sua atual vida, inclusive seu nome (Bolseiro para Monteiro,
Gandalf quem sugeriu esse nome), o valor por tudo aquilo que sempre teve e nunca notou
recai sobre o hobbit.
Para falar a verdade, Frodo relutava em partir, agora que o momento chegara.
Bolsão parecia uma residência muito mais desejável do que fora por muitos anos, e
ele desejava aproveitar ao máximo o seu último verão no Condado. Sabia que,
quando o outono chegasse, pelo menos uma parte de seu coração consideraria com
63
mais carinho a idéia de viajar, como sempre acontecia nessa estação. [...] A
possibilidade de seguir Bilbo predominava em sua mente, sendo a única coisa que
tornava suportável a idéia de ir embora. Pensava o mínimo possível no Anel e a que
lugares este poderia acabar por levá-lo. (TOLKIEN, 2000a, p. 67).
Conforme fora denominado, esse povo calmo, adorador de cantigas antigas,
pacato, que não possui em seu ímpeto a necessidade por buscas em ampliarem suas conquistas
terrenas, não explorando os arredores de suas terras, prefere sempre andar onde seus pés
conhecem, sem despertarem maiores interesses pelos problemas acerca da terra como um
todo, sendo que inicia as superações e as discrepâncias de alguns meros e pequenos jovens
hobbits. Primeiramente se apresenta por Bilbo (que parte movido apenas pelo desejo em viver
novas aventuras), logo após por Frodo (por motivos responsáveis e laboriosos referentes à
preservação da sua espécie), Sam (pela dedicação ao seu mestre e grande amigo Frodo) e por
fim Merry e Pippin (dois jovens aventureiros interessados em fazerem parte de “algo”
grande).
Frodo, o protagonista principal da saga, é movido a enfrentar denso fardo
pelo amor à sua terra e de seus povos, como de um súbito em tentar resguardar o seu Condado
do mal iminente.
Tendo cruzado o limiar, o herói caminha por uma paisagem onírica povoada por
formas curiosamente fluidas e ambíguas, na qual deve sobreviver a uma sucessão de
provas. Essa é a fase favorita do mito-aventura. Ela produziu uma literatura mundial
plena de testes e provações miraculosos. O herói é auxiliado, de forma encoberta,
pelo conselho, pelos amuletos e pelos agentes secretos do auxiliar sobrenatural que
havia encontrado antes de penetrar nessa região. Ou, talvez, ele aqui descubra, pela
primeira vez, que existe um poder benigno, em toda parte, que o sustenta em sua
passagem sobre-humana. (CAMPBELL, 1997, p. 56).
A tarefa lhe imposta recaía meramente sobre ele, mesmo seus amigos
desejando o acompanhar, Frodo, movido pela gratidão e responsabilidade pelos seus queridos
explica o mal que virão a enfrentar se acaso seguirem com a idéia de acompanhá-lo.
Não! Eu não poderia!” disse ele consigo mesmo. “Uma coisa é levar meus jovens
amigos para passear pelo Condado, até ficarmos famintos e cansados, quando temos
boa cama e comida. Levá-los para o exílio, onde a fome e o cansaço podem não ter
cura, é bem diferente – mesmo que se julguem dispostos a vir. A herança é só
minha. Nem Sam acho que devo levar. (TOLKIEN, 2000a, p. 90).
Porém, seus amigos assim decidem. Irão rumar junto a ele pelo simples
desejo de manter a salvo um amigo do inimigo, pois “[...] todos sabiam que aquela guerra
64
seria a ruína não só dos deuses, como do mundo todo” (FRANCHINI; SEGANFREDO, 2008,
p. 173).
À medida que a história desenvolve e as provações recaem sobre o hobbit
Frodo vemos, assim como Gandalf, que surge de seu ímpeto uma grande resistência aos males
a seu redor “[...] existe uma certa força em você, meu querido hobbit!” (TOLKIEN, 2000a, p.
231). Como em outrora o Anel foi a grande traição que levou à perdição dos Grandes, onde
pelas mãos de Isildur, todo o mal poderia ter sido desfeito, eles sucumbiram pelo poder da
beleza. Confiar em anões não seria prudente pelo fato de se sentirem atraídos pela ganância e
o magnetismo do ouro, assim como os grandes sábios, onde teriam trevas mais furiosas que o
próprio Senhor do Escuro.
A raça Hobbit nunca havia sido testada por provas que abalariam o caráter
deles, contudo o jovem Frodo aceita o fardo, mostra-se bem resistente ao mal que invade o
coração, sofre sem negar a dor a fim de levar a 3ª Era à salvação. “- Você parece um simples
hobbit – disse Bilbo. – Mas agora existe algo mais em você do que aparece na superfície”
(TOLKIEN, 2000a, p. 295).
O ponto crucial da saga que coloca em destaque o protagonista e sua
mudança interior sobre o mundo que o cerca ocorre quando Frodo consegue chegar ileso à
Valfenda, terra mágica dos elfos e moradia de Elrond. Após a estalagem ser confortada pelos
hobbits, chega ao dia que ocorre o Conselho de Elrond.
O Conselho de Elrond é apontado como fator decisivo, pois até o presente
momento a única responsabilidade de Frodo era em rumar até Valfenda, são e salvo com o
objeto, para que fosse resolvido o que seria feito com o Anel. Muitos representantes da Terramédia estavam presentes, contendo apetrechos armados como arcos, flechas, espadas,
machados e até encantamentos, tantos capazes de rumar até as Fendas da Perdição e em
carregar o objeto maléfico. No momento que o Anel é posto à vista de todos, e oferecendo
àquele que se propuser em rumar na jornada imposta, os presentes se esquivam, negando a
responsabilidade que recaía sobre todos os povos livres, a destruição do mal através do Anel.
Neste momento, Frodo, uma criatura singela e indolente, desprovido de
qualquer capacidade em guerrear, movido por grande ternura se vê obrigado a aceitar carregar
o Anel, sacrificando sua vida em portar o Anel até Mordor, que resultará na destruição do
mesmo.
Todos sabiam que rumar até as Fendas da Perdição, para que o Anel fosse lá
lançado e desfeito, seria o mesmo que ir direto ao próprio suplício e que nem os Grandes em
feitos heróicos seriam capazes de sobreviver a tal mal. “Que força possuímos para encontrar o
65
Fogo no qual foi feito? Esse é o caminho do desespero. Da tolice, eu diria, se a longa
sabedoria de Elrond não me proibisse” (TOLKIEN, 2000a, p. 284).
Elrond sabia que o único jeito de destruir o Poder do Mal seria extinguindo
o gerador e mantenedor de energia, o Anel. Sabia também que aquele que se tornasse o
portador passaria a estar diretamente envolvido com a impregnação do mal, corrompendo
vagarosamente o coração e a mente e, se não tomasse cuidado, poderia se transformar em um
espectro do mal, perdendo o desejo próprio, vivendo apenas em função do Anel. Elrond, em
seu âmago, sentia que seria Frodo o responsável direto em carregar o Um até a sua destruição,
elucida aos presentes no Conselho que chegara a vez dos Pequenos em fazer um dos maiores
feitos em todas as Eras, mostrando seus valores e marcando o fim de tal maldade que se
estendia em toda a Terra-Média.
Esta busca deve ser empreendida pelos fracos com a mesma esperança dos fortes.
Mas é sempre assim o curso dos fatos que movem as rodas do mundo: as mãos
pequenas os realizam porque precisam, enquanto os olhos dos grandes estão
voltados para outros lugares. (TOLKIEN, 2000a, p. 285).
Estas palavras proferidas por Elrond a todos os presentes no conselho nada
mais são que um presságio de quem viria a ser o incumbido de tal tarefa; grande confusão aos
espectadores causou. Bilbo arrebatou as palavras a si, como se a imposição fosse para ele, em
meio aos presentes de todos os Povos Livres da Terra-Média (Homens, Elfos, Anões e pela
primeira vez na história, Hobbits). Vemos a seguir a graciosidade da raça hobbit surgir por
Bilbo em resposta ao mago Gandalf em querer saber dos eleitos para a demanda e o desfecho
ao portador aparecer, vindo do menos provável em todos os presentes, o pequeno Frodo.
Despertando a valentia que surgiu em seu íntimo, e sem conseguir controlar a própria voz,
brada aos presentes, se mostrando responsável. Movido por uma força interior que até o pobre
eleito desconhecia, ele se mostra superior em querer ser presente, responsável e
principalmente capaz de um feito de tal amplitude, julgando-se responsável pela aventura que
o acaso o lançou e se entregando ao porvir.
- Exatamente! E quem são eles? Parece-me que é isto que este
Conselho precisa decidir; aliás, é tudo o que precisa decidir. Os elfos podem se
alimentar apenas de palavras, e os anões suportam grandes cansaços, mas eu sou
apenas um velho hobbit, e preciso comer ao meio-dia. Não pode propor alguns
nomes agora? Ou adiar a decisão até depois do almoço?
Ninguém respondeu. O sino do meio-dia tocou. Mesmo assim
ninguém falava nada. Frodo olhou para todos os rostos, mas eles não estavam
voltados para ele. Todo o Conselho se sentava com os olhos para baixo, pensando
profundamente. Um grande pavor o dominou, como se estivesse aguardando o
66
pronunciamento de alguma sentença que ele tinha previsto havia muito tempo, e
esperado em vão que afinal de contas nunca fosse pronunciada. Um desejo
incontrolável de descansar e permanecer em paz ao lado de Bilbo em Valfenda
encheu-lhe o coração. Finalmente, com um esforço, falou, e ficou surpreso ao ouvir
as próprias palavras, como se alguma outra vontade estivesse usando sua pequena
voz.
- Levarei o Anel – disse ele. – Embora não conheça o caminho.
Elrond levantou os olhos para ele, e Frodo sentiu o coração devassado
pela agudeza daquele olhar. – Se entendo bem tudo o que foi dito – disse ele -, penso
que essa tarefa é destinada a você, Frodo; e que se você não achar o caminho,
ninguém saberá. É chegada a hora do povo do Condado, quando deve se levantar de
seus campos pacíficos para abalar as torres e as deliberações dos Grandes. Quem,
entre todos os Sábios, poderia prever isto? Ou, se são mesmo sábios, por que
deveriam esperar sabê-lo, até que a hora chegasse?
- Mas o fardo é pesado. Tão pesado que ninguém poderia impô-lo a
outra pessoa. Não o imponho a você. Mas, se o toma livremente, direi que sua
escolha foi acertada; [...]. (TOLKIEN, 2000a, p. 286).
Após o conselho acabar, os companheiros Merry e Pippin, juntamente com
o leal servidor Sam se prontificam primeiramente em acompanhar Frodo. “Nós hobbits
devemos permanecer juntos. E vamos permanecer” (TOLKIEN, 2000a, p. 289). São relatadas
a lealdade e companheirismo da raça. Ninguém mais se prontificou até o momento a
acompanhá-los. Passam-se dois meses dos hobbits repousando em Valfenda até que
novamente o assunto sobre o Anel retorna e assim Elrond explica o porquê de escolher apenas
nove e o porquê dos eleitos serem escolhidos para a missão.
[...] O numero deve ser pequeno, já que sua esperança repousa na velocidade e no
segredo. Mesmo que eu tivesse uma horda de elfos providos com armaduras, como
nos Dias Antigos, isso de pouco valeria, a não ser para acordar o poder de Mordor.
- A Comitiva do Anel deverá ser composta de Nove; e os Nove
Andantes devem ser colocados contra os Nove Cavaleiros, que são maus. Com você
e seu fiel servidor, Gandalf deve partir, pois esta será sua maior tarefa, e talvez o fim
de seus trabalhos.
- Quanto aos restantes, devem representar os Povos Livres do Mundo:
elfos, anões e homens. Legolas irá representando os elfos, e Gimli, filho de Glóin,
representará os anões. Estão dispostos a ir no mínimo até as passagens das
Montanhas, e talvez mais além. Representando os homens, você terá Aragorn, filho
de Arathorn, pois o Anel de Isildur é de grande interesse para ele (TOLKIEN,
2000a, p. 293).
Após essa escolha, Boromir se elege para acompanhar os peregrinos na
demanda, movido pelo desejo de permanecer perto do que para ele era a herança de Gondor, o
Anel.
67
2.4.2. Os Magos, uma perspectiva de Gandalf e Sauron
Os istari são derivados na tradução de “wizards” que quer dizer magos
juntamente com “wise” que são os sábios, e com “witting” que quer dizer cônscio, entendedor.
São eles emissários de Eru (Deus) que faziam parte dos membros menores da raça dos Valar
(deuses) e que vêm à Terra-média para fortalecê-la contra o poder do Mau. Os Valar são
espíritos criados que possuem a incumbência de enviar seus anjos menores os istari) para
causas extra Valinor (morada dos Valar), residindo na Terra-média15. Dedicação, amor a terra
e àqueles que nela habitam, organiza e permite que a estrutura dela não sucumba.
[...] eles eram, como poderíamos dizer, o equivalente próximo, no modo dessas
histórias, dos Anjos, Anjos da guarda. Seus poderes são direcionados primariamente
ao encorajamento dos inimigos do mal, para fazer com que usem sua própria
inteligência e valor para unir e resistir. Aparecem sempre como homens velhos e
sábios, e embora (enviados pelos poderes do Verdadeiro Oeste) no mundo eles
próprios sofram, sua idade e cabelos grisalhos só aumentam lentamente. Gandalf,
cuja função é especialmente a de vigiar os assuntos humanos (dos Homens e dos
Hobbits), perdura por todas as histórias. (CARPENTER, 2006, p. 154).
Os magos são dotados de sabedoria, deixando sempre o livre-arbítrio dos
povos-livres sobre seus atos agir. O auxilio prestado por Gandalf, um istari, é dado de
maneira indireta, forçando o responsável por andar com as próprias pernas e a tornar-se
heróico a seu modo. Gandalf sempre se faz presente em momentos de difíceis decisões;
quando o desânimo recai ou todas as alternativas existentes se parecem a fiascos, ele traz
palavras de sabedoria em forma de conselhos, permitindo o agente escolher o que fazer com o
que lhe é dado. Ele incita as pessoas a perdurar, animando a mente e corações daqueles que
passam por severa prova.
Sauron, no entanto, outro istari, não era mau em sua origem. Sofreu densa
influência pelo primeiro Servo do Mau, Morgoth. Ele permitiu seu coração e mente se
deixarem corromper e escolhe pelo exílio de sua ordem.
Foi um espírito corrompido pelo Primeiro Senhor do Escuro (o Primeiro Rebelde
subcriativo), Morgoth. Foi-lhe dada uma oportunidade de arrependimento, quando
Morgoth foi derrotado, mas não pôde encarar a humilhação da retratação e da
súplica pelo perdão; e, assim, sua inclinação temporária para o bem e para a
“benevolência” terminou em uma recaída maior, até que se tornasse o principal
representante do Mal de eras posteriores. Mas no inicio da Segunda Era ele ainda era
15
Fontes extraídas do livro As cartas de J. R. R. Tolkien (2006); As melhores histórias da mitologia nórdica
(2008); O silmarillion (2009).
68
belo de se ver, ou ainda podia assumir uma bela forma visível – e de fato não era
totalmente mau, não a menos que todos os “reformistas” que desejam apressar-se
com “reconstrução” e “reorganização” sejam totalmente maus, mesmo antes do
orgulho e do desejo de exercer suas vontades os devorar (CARPENTER, 2006, p.
183).
Sauron, ao contrário de Gandalf o cinzento, busca exercer a plenitude de seu
poder corrompendo os fracos de espírito. Após a Queda de Morgoth, ele se torna o Senhor do
Escuro. Ele não cria o mau, e, sim, o propaga em meio a juras de poder oferecido àquele que
se tornar seu servidor. Foi o que ocorreu com o primeiro da Ordem dos sábios e presidente do
Conselho Branco, Saruman, de conhecimento vasto e profundo, mas infelizmente de grande
orgulho e cobiça por poder. Assim como Sauron fora corrompido pelo poder de Morgoth, ele
assim o faz com os povos habitantes da Terra-média. Sua maior ânsia é pelo Poder Completo.
Para tanto, criou anéis mágicos e os ofertou aos povos livres. Primeiro foram os elfos: três
foram ofertados para os Reis-Elfos, mas eles nunca o macularam, Sauron tentou seduzir com
o intuito de prometer sua ajuda (enquanto ainda era belo e transitava livremente entre os
povos) em deixar a Terra-média livre das maledicências e torná-la tão bela quanto Valinor.
Para que se conseguisse esse sacrifício, ele cria os anéis do poder, (lembrando que “poder” é
uma palavra utilizada com significância agourenta e sinistra) oferece sete aos Senhores Anões
com a mais preciosa jóia e aos homens. Nove foram ofertados aos Homens Mortais, que
permitiram seus orgulhos e arrogâncias trasbordarem sobre o objeto, aceitando de imediato o
presente ofertado, movidos pela cobiça e arrogância. Dados esses anéis, aqueles que o
possuem ficam vinculados a um outro anel, forjado secretamente para que seu poder fosse o
de dominar todos os outros restantes. “Ele é muito mais poderoso do que jamais ousei pensar
no início, tão poderoso que no final poderia literalmente dominar qualquer um da raça dos
mortais que o possuísse.”16 (TOLKIEN, 2000a, p. 48). Elfos e anões saem ilesos desse mal,
porém os homens que possuíram os anéis ficam ainda presos a eles e acabam por se tornar
Espectros do Anel.
Os Espectros do Anel são os piores servos de Sauron, suas almas ficaram
presas no desejo e ânsia pelo anel obedecendo àquele que o empunha, Sauron.
[...] Nove ele deu a Homens Mortais, orgulhosos e poderosos, e desse modo os
seduziu. Há muito tempo caíram sob o domínio do Um, e se tornaram Espectros do
Anel, sombras sob sua grande Sombra, seus mais terríveis servidores. Há muito
tempo. Faz muitos anos que os Nove foram levados para longe. Mas, quem sabe?
Conforme as sombras cresçam novamente, estes também podem retornar
(TOLKIEN, 2000a, p. 53).
16
Gandalf explicando a Frodo sobre o mal do Anel.
69
O grande desejo de Sauron é retornar o poder sobre o Um, anel esse forjado
por ele secretamente nas Fendas da Perdição, nas profundezas de Orodruin, comumente
chamada de “Montanha de Fogo”, nas terras de Mordor, que permitiu grande parte de seu
poder fosse passado para o anel, para que pudesse ter poder total sobre todos os demais anéis
e cobrir a terra sobre sua escuridão.
O Inimigo, em sucessivas formas, sempre se ocupa “naturalmente” da mera
Dominação, sendo o Senhor da magia e das máquinas; mas o problema - de que esse
mal aterrorizante pode, e surge, de uma raiz aparentemente boa, o desejo de
beneficiar o mundo e os demais, rapidamente e de acordo com os próprios planos do
benfeitor – é um motivo recorrente. (CARPENTER 2006, p. 143).
Mantendo o domínio sobre seus servos, Sauron recruta novos adeptos
errantes à sua necromancia, governando da grande torre negra de Barad-dûr em Mordor.
Para o autor, Sauron é representado como um reflexo dos principais
problemas decorrentes daquela época; torna-se um reflexo devido à experiência vivida
referente à industrialização, à mecanização e a produção em massa e as guerras que acabou
por presenciar (a 1ª e 2ª Guerra Mundial), que é retratado todo um cenário prognóstico da
maleficência destrutiva ocasionada pela imposição de um sobre tantos outros. Tolkien era
contra a mecanização, preferia a vida provida das mãos humanas e não maquinária. Era contra
a imposição obtida de maneira obrigada, adorador da natureza e dos animais, faz recair em
sua obra, de maneira incisiva esse mal que corrompe e destrói a vida tanto dos habitantes
quanto da Terra.
Na verdade, é preciso estar pessoalmente sob a sombra da guerra para sentir
totalmente sua opressão; mas, conforme os anos passam, parece que fica cada vez
mais esquecido o fato de que ser apanhado na juventude por 1914 não foi uma
experiência menos terrível do que ficar envolvido com 1939 e os anos seguintes. Em
1918, todos os meus amigos íntimos, com a exceção de um, estavam mortos.
(TOLKIEN, 2000a, p. XIV).
Mostra também que o poder por si não possui dono. Ele possui vida própria,
aguça e incita as pessoas a fraquejarem e desistirem do caminho certo. Ao longo da narrativa,
vemos o personagem Boromir sucumbir de imediato ao mau. Ao se deparar com o Anel, seu
coração foi tomado por uma força gigantesca de possuir a centralização do poder. Mesmo que
seu desejo fosse de possuí-lo apenas pelo intuito do bem, em salvar os povos empunhando o
Anel, para fazer com que seus poderes fossem capazes de combater a guerra iminente, o poder
seria tão grande que levaria a todos para a ruína.
70
O desejo de possuir o objeto se torna cada vez mais forte até que o coloca
em prova. Ao ver a fragilidade de seu portador, ele se envenena com o próprio desejo de
poder, junto com a cobiça que acaba por levá-lo a si próprio à ruína. Boromir tomba pela sua
própria fraqueza. Fraqueza humana onde o poder sempre fala mais alto que a razão.
O final feliz do conto de fadas, do mito e da divina comédia do espírito deve ser
lido, não como uma contradição, mas como transcendência da tragédia universal do
homem. O mundo objetivo permanece o que era; mas, graças a uma mudança de
ênfase que se processa no interior do sujeito, é encarado como se tivesse sofrido uma
transformação. Onde antes lutavam a vida e a morte, agora se manifesta o ser
duradouro — tão indiferente aos acasos do tempo como a água fervente num pote o
é para com o destino de uma bolha, ou como o cosmos com relação ao aparecimento
e desaparecimento de uma galáxia. A tragédia é a destruição das formas e do nosso
apego às formas; a comédia, a alegria inexaurível, selvagem e descuidada, da vida
invencível. Em conseqüência, tragédia e comédia são termos de um único tema e de
uma única experiência mitológicos, que as incluem e que são por elas limitados: a
queda e a ascensão (kathodos eano dos), que juntas constituem a totalidade da
revelação que é a vida, e que o indivíduo deve conhecer e amar se deseja ser
purgado
(katharsis = purgatório) do contágio do pecado (desobediência à vontade divina) e
da morte (identificação com a forma mortal). (CAMPBELL, 1997, p. 16).
Há também vários momentos relatados onde os Grandes passam por
pesarosas provações contra o vertente mal que corrompe; Gandalf o cinzento, logo de inicio
na saga já é testado contra o mal do Anel quando Frodo o oferece para que o mago cuide do
bem. Gandalf consegue rejeitar sabendo que seu poder seria estrondoso, porém maléfico,
consegue então não se corromper, muito menos compactuar com ele. Há também a bela elfa
de Caras Galadhon, da cidade dos Galadhrim em Lothórien, Galadriel, a Senhora de Lórien,
sendo aprovada no teste de honestidade e benevolência. Quando o Um Anel é ofertado à Elfa
de maneira livre pelo portador, a cobiça lhe vem ao ímpeto; ela possui um momento de
devaneio diante do poder que este traria a ela. É a maior explicitação do mal do Anel àquele
que já provido de grande poder ocasionaria se caso desfrutasse do objeto.
No lugar do Senhor do Escuro, você coloca uma Rainha. E não serei escura, mas
bela e terrível como a Manhã e a Noite! Bela como o Mar e o Sol e a Neve sobre a
Montanha! Aterrorizante como a Tempestade e o Trovão! Mais forte que os
fundamentos da terra. Todos deverão me amar e se desesperar!
Levantou a mão e do anel que usava emanou uma grande luz que iluminou a ela
somente, deixando todo o resto escuro. Ficou diante de Frodo e parecia agora de
uma altura incalculável, e de uma beleza insuportável, terrível e digna de adoração.
Depois deixou a mão cair, e a luz se apagou; e de repente ela riu de novo e eis então
que se encolheu: era uma mulher élfica frágil, vestida num traje simples e branco,
cuja a voz gentil era suave e triste. (TOLKIEN, 2000a, p. 389).
71
Mas felizmente ela se redime saindo ilesa e supera pela humildade esse mal,
não sendo corrompida na mais árdua prova de poderes.
Há também Aragorn. Este, que é o correspondente de todos os homens
dessa Era, é o espelho da raça humana e se sai de maneira heróica e polida. Quando foi posto
em prova, ele não chegou nem a permitir que o mal o dominasse, pois sabia que possuir o
Anel não correspondia em ser o mantenedor do poder, que possuir o Anel não significa dádiva
e sim um mártir.
Todo o conteúdo da obra mítica remete “[...] aos atos que pressupõem uma
realidade absoluta, uma realidade que é extra-humana” (ELIADE, 1992, p. 33), é relacionado
de maneira indireta sobre assuntos adjacentes referentes à Queda, Mortalidade e a Máquina. É
relatada toda a ventura e todo o fracasso de maneira nua e direta conforme o autor apresenta:
[...] todo esse material diz respeito principalmente à Queda, à Mortalidade e à
Máquina. Inevitavelmente com a Queda, e esse motivo ocorre em diversos modos.
Com a Mortalidade, especialmente na medida em que esta afeta a arte e o desejo
criativo (ou, devo dizer, subcriativo) que parece não possuir qualquer função
biológica e estar à parte das satisfações da vida biológica comum, com a qual, em
nosso mundo, de fato parece estar geralmente em conflito. Esse desejo está unido ao
mesmo tempo a um amor apaixonado pelo mundo primário real e, por isso, repleto
com o senso de mortalidade, e mesmo assim insatisfeito com ele. Possui várias
oportunidades de “Queda”. Podendo tornar-se possessivo, agarrando-se às coisas
criadas como “suas próprias”, o subcriador deseja ser o Senhor e Deus de sua
criação particular. Ele irá rebelar-se contra as leis do Criador – especialmente contra
a mortalidade. Essas duas condições (isoladas os juntas) levarão ao desejo por
Poder, para tornar a vontade mais rapidamente efetiva – e, assim, à Máquina (ou
Magia). Com a última tenho em mente o uso de planos ou artifícios (aparelhos)
externos ao invés do desenvolvimento dos poderes ou talentos interiores inerentes –
ou mesmo do uso desses talentos com o motivo corrupto da dominação: de intimidar
o mundo real ou coagir outras vontades. A Máquina é nossa forma moderna mais
óbvia, embora mais intimamente relacionada com a Magia do que se costuma
conhecer (CARPENTER, 2006, p. 142).
Por conseguinte, os dois magos: Sauron e Gandalf que, de origem
pertenciam à mesma raça (dos Valar), acabam desviando dos propósitos iniciais e traçando
seus próprios destinos. Sauron prefere a ganância e poder total sobre os povos, assim como a
seguir será relatado sua manifestação sobre o Pequeno Frodo e, Gandalf, passando no teste de
provações não sucumbe; mantêm sua alma elevada até o momento que se segue com a sua
queda e ascensão em Moria.
72
2.4.3 O necromante
De maneira particular será apontado o istari Sauron. Este é um necromante
que por onde passa dissemina terror e horror, que possui como tesouro o Anel, que é
carregado pela sua malícia e possui grande parte de seu poder antigo. Na saga do Anel,
Sauron é desprovido de corpo físico, sendo resumido apenas o seu espírito, e ele tenta
peremptoriamente resgatar seu bem para que volte a possuir corpo físico.
O desfecho que ocasionou a perda de poder e de seu veículo condutor
material se deu na guerra da Última Aliança pertencente à Segunda Era do mundo, formada
por Elfos e Homens que rumaram juntos até Mordor quando o Anel foi tirado do dedo de seu
dono por Elendil (amigo dos elfos) e Gil-galad (Luz das estrelas), Rei-Elfo. Isildur, filho de
Elendil cortou o dedo de Sauron e tomou o anel a si próprio, não conseguindo destruí-lo.
Sauron foi subjugado e seu espírito fugiu, e por muitos anos ficou no anonimato, escondido na
Floresta das Trevas. Isildur não conseguiu completar a missão e sucumbiu ao poder do Anel.
Em um dia de marcha aos arredores dos Campos de Lis, um bando de orcs das Montanhas
assaltou a ele e a seu bando, matando todos os presentes. Isildur se parte e o Anel se perde no
lago por longos anos.
O poder se Sauron diminuiu, mas não foi destruído. O anel estava perdido, mas não
desfeito. A Torre Escura foi quebrada, mas os alicerces não foram removidos, pois
haviam sido feitos com o poder do Anel, e enquanto este permanecer os alicerces
vão durar. (TOLKIEN, 2000a, p. 258).
Voltando ao momento presente da saga, o Anel ressurge quando se fez
querer ser descoberto por um descendente da raça hobbit, Déagol e seu amigo Sméagol que o
encontram nas profundezas dos Campos de Lis. Quando Sméagol toma de Déagol o anel,
matando seu amigo e sendo expulso de seu povoado, vaga até uma caverna onde faz lá sua
moradia. Seu nome passa então a ser Gollum e é ai que a história se cruza com as passagens
de O Hobbit: que em meio à expedição de Bilbo ele encontra Gollum e passa então a possuir
o Um. Gollum, que a muito se assemelhava à raça Hobbit, sofre as transformações do Anel
tornando-se asqueroso e desprezível aos olhos das pessoas.
Conforme apresentado, na terceira Era, Sauron era desprovido de corpo,
sendo seu espírito o maculador. Para podermos analisar o poder mítico do mal, temos em O
senhor dos anéis: a sociedade do anel, a passagem de quando Frodo se encontra com
73
Galadriel e vê pelo Espelho de Galadriel. O espelho “[...] revela coisas já passadas, coisas que
estão acontecendo, e as que ainda podem acontecer. Mas o que se vê, nem mesmo o mais
sábio pode dizer” (TOLKIEN, 2000a, p.384). Na obra literária Frodo e Sam vagam juntos
com Galadriel até o espelho. Sam pedia por magia élfica já que Frodo nada queria ver e
Galadriel oferta aos dois observar pelo Espelho.
Sam de imediato aceita olhar por entre o Espelho. Embora estivesse
acometido pelo medo, é impulsionado a olhar movido pela curiosidade. A ele é revelado o
Condado e um presságio da peregrinação dele com Frodo.
Chega a vez de Frodo. Esse reluta em olhar, mas Galadriel o encoraja.
Imediatamente o Espelho ficou transparente e mostrou uma região pouco iluminada.
Montanhas assomavam escuras na distância, contra o céu pálido. Uma longa estrada
cinzenta recuava, descrevendo curvas, até se perder de vista. Na distancia se via uma
figura, vindo lentamente pela estrada, apagada e pequena no inicio, mas ficando
cada vez maior e mais nítida conforme se aproximava. De repente Frodo percebeu
que a figura o fazia lembrar de Gandalf. Quase gritou o nome do mago, então viu
que o vulto estava vestido não de cinza, mas de branco, um branco que emitia uma
luz opaca no crepúsculo, e que sua mão segurava um cajado branco. A cabeça estava
tão curvada que não se podia ver o rosto, e naquele momento a figura enveredou por
uma curva da estrada e desapareceu da visão do Espelho. A mente de Frodo ficou
cheia de duvidas: seria uma visão de Gandalf em uma de suas longas viagens
solitárias de antigamente, ou seria aquela a figura de Saruman?
Depois disso a visão mudou. Numa imagem vívida, embora pequena e
rápida, ele enxergou de relance Bilbo andando inquieto de um lado para o outro de
seu quarto. A mesa estava carregada de papeis em desordem; uma chuva batia nas
janelas.
Então se fez uma pausa; depois muitas cenas rápidas se seguiram e
Frodo sabia, de alguma forma, que eram partes de uma grande história na qual
estava envolvido. A nevoa se desfez e ele teve uma visão que não conhecia, mas
identificou imediatamente: o Mar. Escureceu. O mar se levantou e se enfureceu
numa grande tempestade. Então Frodo viu, contra o sol que afundava num
vermelho-sangue em meio a um torvelinho de nuvens, o contorno negro de um navio
alto com as velas rasgadas, que vinha navegando do Oeste. Depois, um rio largo
correndo através de uma cidade populosa. Depois, uma fortaleza branca com sete
torres. Depois, de novo, um navio com velas negras, mas agora era manhã de novo,
e a água fazia ondas na luz, e uma bandeira levando o emblema de uma arvore
branca brilhava ao sol. Subiu uma fumaça de fogo e batalha, e outra vez o sol se pôs
num vermelho ígneo que se apagou numa névoa cinzenta; entretanto na névoa
passou uma pequena embarcação, piscando com muitas luzes. Sumiu e Frodo
suspirou, preparando-se para descer.
Mas, de repente, o Espelho ficou totalmente escuro, como se um
buraco se abrisse no mundo da visão, e Frodo olhasse no vazio. No abismo negro
apareceu um único Olho que cresceu lentamente, até cobrir quase toda a extensão do
Espelho. Tão terrível era aquela visão que Frodo ficou colado ao solo, sem poder
gritar ou desviar o olhar. O Olho estava emoldurado por fogo, mas era ele mesmo
que reluzia, amarelo como o de um gato, vigilante e atento, e a fenda negra de sua
pupila era um abismo, uma janela que se abria para o nada.
Então o Olho começou a se movimentar, procurando algo de um lado
e de outro, e Frodo percebeu, com medo e certeza, que ele próprio era uma das
muitas coisas que estavam sendo procuradas. Mas também percebeu que não podia
ser visto – por enquanto, a não ser que o desejasse. O Anel que estava pendurado na
corrente em seu pescoço ficou pesado, mais pesado que uma pedra, fazendo a cabeça
74
pender para baixo. O Espelho parecia estar ficando quente, e nuvens de vapor
subiam da água. (TOLKIEN, 2000a, p. 387).
A passagem transcrita acima (retirada da obra literária) mostra o poder de
Sauron adentrando o íntimo de Frodo. Sua busca constante ultrapassa qualquer tipo de
barreira, sempre em busca de seu imaculado Anel.
O Anel que se encontrava preso a uma corrente em volta de seu pescoço
começa a pender para dentro da água e de imediato aparece a figura de um Olho. O Olho é a
figura que se mostra simbologicamente sobre a existência de Sauron; um espírito desprovido
de corpo, o Olho busca por seu Anel e só sossegará após tomá-lo em seu domínio. A
representação física do Olho é semelhante à de um gatuno, não possui pálpebras, apenas a
intensidade de adentrar na alma da pessoa. E nisso o Anel começa a pender na água, torna-se
pesado, seu dono (Sauron) chama por ele e de súbito Frodo agarra o Anel e cai longe do
Espelho. Galadriel diz que sabe o que ele viu, pois também está em sua cabeça e diz que é
aquilo que acontecerá caso ele fracasse, pois a sociedade já estava por um fio. Fala de
Boromir que tentará roubá-lo e então Frodo livremente oferece o Um a ela. Ela diz o quanto
ansiou por esse momento, é então retratado o devaneio dela diante de estrondoso poder até
que ela se redime não sem antes animar o Pequeno que até mesmo a menor das criaturas é
capaz de mudar o rumo das coisas.
Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de
todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua
extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar
algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém,
mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao
centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na
companhia do mundo todo. (CAMPBELL, 1990, p. 137).
E assim a jornada do Pequeno continua. Em meio a auxílio sobrenatural ou
um ânimo desprovido de um companheiro de jornada; a batalha segue seu curso, percalços
surgem, muitos são os oponentes. Contudo, muitos são os auxílios encontrados no caminho.
75
2.4.4. Mithrandir, o Cinzento Peregrino
Possuidor de espessas sobrancelhas, cabelos e barbas demasiadamente
longos e de um humor instável, longas vestimentas cinzas com um chapéu pontiagudo, o
mago sempre é apontado oferecendo conselhos sadios, nunca obrigando o ouvinte a aderir ao
que lhe é proferido.
Ele responde à ordem de Saruman o grande sábio, presidente do Conselho
Branco todas as vezes que algum mal acomete a Terra-média. Nos tempos apresentados no
decorrer da terceira Era, Gandalf vai em busca de sábias instruções para como agir com o mal
que começa a afligir a terra. Gandalf então indaga Saruman.
Vim pedir sua ajuda, Saruman, o Branco.
Ajuda? É raro ouvir que Gandalf, o Cinzento, pediu ajuda a alguém, uma pessoa tão
inteligente e sábia, vagando pelas terras e se intrometendo em todas as coisas, quer
lhe digam respeito ou não (TOLKIEN, 2000a, p. 273).
Saruman reside na torre de Isengard e, em meio a sátiras com o cinzento, ele
se mostra adepto dos planos diabólicos de Sauron e pede que o mago una suas forças na
batalha a favor do mal. Gandalf nega, acusa Saruman em ter abandonado a sanidade e este
acaba por aprisioná-lo no pico da torre de Isengard, ao alto, no pináculo de Orthanc. O mago
consegue se desvencilhar da emboscada com o auxilio da Águia Gwaihir, o Senhor dos
Ventos, e se torna então grande rival do insano Saruman, tornando-se alvo direto de seus
encantos para que a demanda fracasse. Gandalf comenta sobre o maior mal que os aflige: “Em
todas as longas guerras contra a Torre Escura, a traição sempre foi o nosso maior inimigo”
(TOLKIEN, 2000a, p. 266).
Gandalf sempre se afeiçoou muito aos hobbits, criou um laço intenso de
amizade com Bilbo, assim como com o jovem Frodo. Frodo para ele era como um pupilo,
sempre despendia grande cuidado ao Pequeno e, quando este aceita carregar o fardo, é o mago
quem se prontifica em encaminhá-lo e aconselhá-lo até Mordor, porém sua viagem junto com
a demanda não se tornou tão longa.
- Gostaria que isso não tivesse acontecido na minha época – disse Frodo.
-Eu também – disse Gandalf. – como todos os que vivem nestes tempos. Mas a
decisão não é nossa. Tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos
é dado. E, Frodo, nosso tempo já está começando a ficar negro. O inimigo está se
tornando muito forte. Seus planos ainda não estão amadurecidos, eu acho, mas estão
76
amadurecendo. Será muito difícil para nós. Já seria, mesmo se não fosse por esse
acaso terrível.
- Para o Inimigo falta ainda uma coisa que lhe dê força e sabedoria para derrotar
todas as resistências, quebrar todas as defesas e cobrir todas as terras com uma
segunda escuridão. Ele precisa do Um Anel (TOLKIEN, 2000a, p. 53).
O primeiro grande obstáculo que a demanda enfrenta é ocasionado na ponte
de KHAZAD-DÛM em Moria, onde o mago se depara com um poder surpreendentemente
maléfico, há muito esquecido na superfície, só que vívido nas profundezas da terra. Eis que
surge um espírito do mundo subterrâneo, um Balrog, um demônio servidor do Morgoth e
Gandalf narra: “[...] de repente me vi enfrentando algo que nunca tinha visto. Não pude pensar
em mais nada a não ser lançar um encantamento [...] nunca senti desafio tão grande.”
(TOLKIEN, 2000a p. 347). Gandalf, o cinzento, luta com o demônio e cai. Istari e demônio
lutam nas maiores profundezas e nas mais altas montanhas até que, exaurido, consegue
derrotar o demônio.
O último ato da biografia do herói é a morte ou partida. Aqui é resumido todo o
sentido da vida. Desnecessário dizer, o herói não seria herói se a morte lhe suscitasse
algum terror; a primeira condição do heroísmo é a reconciliação com o túmulo.
(CAMPBELL, 1997, p. 179).
Quando ocorre a queda do guia e amigo mago, a demanda estremece,
perdem todas as esperanças de um porvir positivo. O mago enfrenta então todas as suas
fraquezas e desperta forças até então ocultas.
[...] foi para ele um sacrifício perecer na Ponte em defesa de seus companheiros,
talvez menos do que para um Homem mortal ou Hobbit, visto que ele possuía um
poder interior muito maior do que eles; mas também mais, uma vez que foi uma
humilhação e abnegação de si próprio em conformidade com “as Regras”: por tudo
que ele podia saber naquele momento, ele era a única pessoa que poderia conduzir a
resistência a Sauron de maneira bem-sucedida, e toda a sua missão foi vã. [...] Os
“magos”, como tais, haviam falhado; ou, se preferir, a crise tornara-se grave demais
e necessitava de um aumento de poder. Então Gandalf sacrificou-se, foi aceito e
aprimorado, e retornou. “-Sim, esse era o nome. Eu era Gandalf.” É claro, ele
continua similar em personalidade e idiossincrasia, mas tanto a sua sabedoria como
o seu poder são muito maiores. Quando fala, ele exige atenção; o velho Gandalf não
poderia ter lidado dessa maneira com Théoden nem com Saruman. Ele ainda está
sob a obrigação de ocultar seu poder e de ensinar ao invés de forçar ou dominar
vontades, mas onde os poderes físicos do Inimigo são demasiado grandes para que a
boa vontade dos opositores seja efetiva, ele pode atuar emergencialmente como um
“anjo” – de maneira não mais violenta do que a libertação de São Pedro da prisão
(CARPENTER, 2006, p. 195).
Gandalf depois de passar no teste de moralidade e aumentar seu poder,
acaba por se tornar capaz de enfrentar o Senhor dos Nazgûl proibindo sua entrada em Minas
77
Tirith, quando a Cidade era derrotada e os portões estavam destruídos. Ele faz com que uma
luz seja emanada de seu cajado agindo como um repelente contra o Nazgûl.
Essa morte à lógica e aos compromissos emocionais do fugaz momento em que
estamos no mundo do espaço e do tempo, esse reconhecimento e essa mudança da
nossa ênfase para a vida universal que palpita e celebra sua vitória no próprio beijo
da nossa aniquilação, esse amor fati ("amor ao destino"), que é inevitavelmente a
morte, constitui a experiência da arte trágica; aí reside o prazer que ela traz, seu
êxtase redentor. (CAMPBELL, 1997, p. 16).
Em meio a tantos poderes, após a queda em Moria, o istari ressurge. Agora
de maneira diferente, Gandalf, o cinzento, passa a ser Gandalf, o branco.
“Gandalf realmente “morreu” e foi transformado: pois esta para mim parece ser a
única verdadeira trapaça, para representar alguma coisa que pode ser chamada de
“morte” que não faz diferença. “sou G., o Branco, que retornou da morte”.
Provavelmente ele deveria ter dito a Língua de Cobra: “Não passei pela morte (não
“fogo e enchente”) para trocar palavras distorcidas com um servidor. [...] Mas G., é
claro, não é um ser humano (Homem ou Hobbit). Não há naturalmente termos
modernos precisos para dizer o que ele era. Arriscaria dizer que ele era um “anjo”
encarnado isto é, com os outros Istari, magos, “aqueles que sabem”, um emissário
dos Senhores do Oeste, enviado à Terra-média, à medida em que a grande crise de
Sauron surgia no horizonte. (CARPENTER, 2006, p.194).
Gandalf mantinha a incumbência de protetor e guardião, há muito relatado
pelo autor. Sua volta ocorre nas terras de Barbárvore em Fangorn com o encontro dos
companheiros Aragorn, Legolas e Gimli, que ao avistá-lo têm um estranhamento, e assim
como já ocorrido antes, ele é passado e confundido como sendo Saruman.
Aragorn olhou e viu uma figura curvada, movimentando-se devagar. Não estava
longe. Parecia um velho mendigo, caminhando fatigado, apoiando-se num cajado
rude. A cabeça estava curvada, e ele não olhava na direção deles. Em outras terras,
teriam-no cumprimentado com palavras gentis, mas naquele momento ficaram em
silencio, cada um sentindo uma estranha expectativa: algo que trazia um poder
oculto – ou ameaça – se aproximava.
Gimli observou com os olhos arregalados por um tempo, conforme a
figura se avizinhava passo a passo. Então, de repente, não conseguindo mais se
conter, falou numa explosão: - Seu arco, Legolas! Apronte-o! fique preparado! É
Saruman. Não deixe que ele fale, ou lance um feitiço sobre nós! Atire primeiro!
Legolas pegou o arco e o preparou, lentamente, como se outra vontade
se opusesse à dele. Segurava uma flecha na mão sem firmeza, sem encaixá-la na
corda. Aragorn ficou quieto, seu rosto vigilante e atento.
- O que está esperando? Qual é o problema com você? – disse Gimli
num sussurro chiado.
- Legolas está certo – disse Aragorn baixinho. – Não podemos atirar
num velho desse modo, traiçoeiramente e sem desafio, qualquer que seja o medo ou
a dúvida que tenhamos. Olhem e esperem!
Nesse momento, o velho apertou o passo e chegou com uma rapidez surpreendente
ao pé da muralha rochosa. Então, de repente, ergueu os olhos, enquanto os três
continuavam imóveis, olhando para baixo. Não se ouvia nenhum som.
78
Os companheiros não conseguiam ver seu rosto: ele estava usando um
capuz, e sobre o capuz havia um chapéu de aba larga, de modo que todo o rosto
estava encoberto, exceto a extremidade da barba grisalha. Mesmo assim, Aragorn
teve a impressão de ver de relance o brilho de olhos perspicazes, emitido daquele
rosto encapuzado.
Finalmente o velho quebrou o silencio. – bem vindos, meus amigos –
disse ele numa voz suave. – Desejo lhes falar. Vocês vão descer ou subir? – Sem
esperar uma resposta, começou a escalar.
- Agora! – disse Gimli. – Detenha-o, Legolas!
- Eu não disse que desejava lhes falar? – disse o velho. – Abaixe esse
arco, Mestre Elfo!
O arco e a flecha caíram das mãos de Legolas, e os braços ficaram
paralisados ao longo do corpo.
- E você, Mestre Anão, por favor, tire a mão do cabo de seu machado,
até que eu chegue aí! Não vai precisar desses argumentos.
Gimli fez um movimento e depois ficou petrificado, olhando,
enquanto o velho subia os rudes degraus com a leveza de um cabrito. Todo o
cansaço parecia tê-lo abandonado. Conforme pisou no patamar houve um brilho,
rápido demais para se ter certeza, um breve vislumbre de branco, como se alguma
vestimenta, ocultada pelos farrapos cinzentos, tivessem sido revelada por um
instante. Podia-se ouvir a respiração de Gimli como um chiado ruidoso quebrando o
silencio.
- Bem vindos, repito! – disse o velho, andando em direção a eles.
Quando estava a alguns passos de distancia, parou, inclinando-se sobre o cajado,
com a cabeça para frente, espiando-os de seu capuz. – E todos vestidos à moda dos
elfos. Não há duvida de que por trás de tudo isso há uma história digna de ser
ouvida. Essas coisas não são vistas com freqüência por aqui.
- Voce fala como alguém que conhece bem Fangorn – disse Aragorn.
– Isso é verdade?
- Não muito bem – disse o velho. – Isso seria estudo para muitas
vidas. Mas venho aqui de vez em quando.
- Podemos saber seu nome, e depois ouvir o que tem a nos dizer? –
disse Aragorn. – A manhã está passando, e temos uma missão que não pode esperar.
- Quanto ao que eu desejava disser, já o disse. E vocês, que andam
fazendo, e que história podem me contar sobre vocês? Quanto ao meu nome!
- Ele interrompeu, dando uma risada longa e suave. Aragorn sentiu um
tremor percorrer-lhe o corpo ao ouvir o som daquele riso, um arrepio frio e estranho;
mas não foi medo ou terror o que sentiu: era mais como um golpe repentino de ar
fresco, ou uma rajada de chuva fria despertando alguém de um sono tranqüilo.
- Meu nome! – disse o velho outra vez. – Ainda não adivinharam? Já o
ouviram antes, eu acho. Sim, já o ouviram antes. (TOLKIEN, 2002, p.91).
A história delonga mais um pouco até que os três conseguem ver que
realmente o velho estava de vestimentas inteiriça branca. Eles em sobressalto gritam
chamando-o de Saruman e se preparam para se defenderem até o momento que as vestimentas
lhe caem e eles avistam quem verdadeiramente é.
O capuz e os farrapos cinzentos caíram para trás. As vestes
brancas brilhavam. Levantou o cajado, e o machado de Gimli saltou de seu punho e
caiu com um ruído no solo. A espada de Aragorn, imóvel em sua mão paralisada,
brilhava com um fogo repentino. Legolas soltou um grito e atirou uma flecha no ar:
ela sumiu num clarão de fogo.
- Mithrandir! – gritou ele. Mithrandir! (TOLKIEN, 2002, p.
92).
79
Os companheiros por fim conseguem reconhecer o amigo ressurgido.
Gandalf reluzia como a aurora e relata aos presentes que abandonou o nome Gandalf para ser
Gandalf, o Branco. Ele explica que se tornou aquilo que Saruman deveria ter sido, mas
infelizmente fracassara.
2.5. Terra-média, um espaço imaginário
Suponho que eu tenha construído um tempo imaginário, mas mantive meus pés em
minha própria terra mãe para o local. Prefiro isso ao modo contemporâneo de
procurar planetas remotos no “espaço”. Por mais curioso que sejam, são alienígenas
e não são amáveis com o amor do parentesco sanguíneo. Terra-média (a propósito e
se tal nota for necessária) não é uma invenção minha. É uma modernização ou
alteração (N[ew] E[nglish] Dictionary] “uma preversão”) de uma palavra antiga para
o mundo habitado dos Homens, o oikoumenç: média por se vagamente imaginada
como localizada entre os Mares circundantes e (na imaginação setentrional) entre o
gelo do Norte e o fogo do Sul. Inglês ant. middan-geard, ing. medieval midden-erd,
middle-erd. Muitos críticos parecem supor que a Terra-média é outro planeta!
(CARPENTER, 2006, p. 270).
A história narrada não se trata de uma mitologia sem fundamentos, um
conto de fadas aleatório, e sim de uma complexa abordagem ideológica, psicológica e moral.
Os mitos antigos foram concebidos para harmonizar a mente e o corpo. A mente
pode divagar por caminhos estranhos, querendo coisas que o corpo não quer. Os
mitos e ritos eram meios de colocar a mente em acordo com o corpo, e o rumo da
vida em acordo com o rumo apontado pela natureza. (CAMPBELL, 1990, p. 83).
E Campbell ainda elucida sobre a necessidade e poder do mito na pessoa:
Quando alguém diz “bem, sabe como é, isso não pode ter acontecido e aquilo não
pode ter acontecido; então, vamos nos desfazer dos mitos”, está se desfazendo é do
diálogo entre o manomaia-kosha e o vijnanamaia-kosha, entre a sabedoria mental e a
sabedoria orgânica, do corpo vivo. (CAMPBELL, 2008, p. 24).
A Terra-média é a personificação de um mundo fantástico plausível; é pura
fantasia, pois se refere ao que é criado pela imaginação, o que não existe na realidade, porém
na criação literária, Tolkien buscou aproximar ao máximo sua criação fantasiosa e ficcional
no limiar da plausibilidade e verossimilhança, tornando o imaginário fator presente naqueles
que dessa fonte quiserem se alimentar.
80
Para a desenvoltura de Arda ser convincente e plausível, Tolkien buscou
relacionar analogicamente a Terra-média com a nossa terra. As características terrenas são
iguais, o mundo é igual, todavia as ordens regentes são diferentes.
“Terra-média”, a propósito, não é um nome de uma terra imaginária sem relação
com o mundo no qual vivemos (como o Mercúrio de Eddison). É apenas um uso da
palavra middel-erde (ou erthe) do inglês médio, alterada a partir da palavra
Middangeard do inglês antigo: o nome para as terras habitadas do Homens “entre os
mares”. E embora eu não tenha tentado relacionar o formato das montanhas e das
massas de terra com o que os geólogos podem dizer ou conjeturar sobre o passado
mais próximo, imaginativamente presume-se que essa “história” ocorra em um
período do verdadeiro Velho Mundo deste planeta (CARPENTER, 2006, p. 212).
O mundo construído por Tolkien se assemelha muito à Europa na Idade
Média, uma Europa mitológica, habitada por uma mescla de raças e culturas variadas que
serão apresentadas logo mais. A história se desenvolve em um tempo e espaço imaginários,
correspondente à Terceira Era da Terra-média, um mundo secundário (mundo esse subcriado
pelo autor) sendo moldado e inspirado pelo mundo primário (mundo em que vivemos, obra
criada por um Criador sobrenatural). A grande questão de Tolkien referente à Terra-média é
que ela é temporal e não espacial, a pertinência se dá em questionamentos de quando se deu a
história e não onde ocorreu.
Esse foi o grande truque da Terra-Média de Tolkien: um tempo imaginário da era
mítica do mundo real que tinha existência e evolução paralelas pouco antes do inicio
do tempo histórico da raça humana. A Terra-Média de Tolkien tem por intenção
aproximar-se daquilo que o filósofo Platão via como o mundo ideal dos arquétipos:
o mundo das idéias por trás de todas as civilizações e nações do mundo. É um
mundo no qual todos os nossos sonhos têm sua origem (DAY, 2004, p. 14).
Esse mundo subcriado possui em seu alicerce três dimensões essenciais, que
constituem particularmente:
Ampla diversidade – Devido ao desejo em explicar tudo o que na saga é
composta, Tolkien trata de assuntos variados. “Em seu mundo, ele nos apresenta diferentes
povos, paisagens e terrenos variados, costumes diversos conforme as regiões, também trajes,
línguas, crenças, calendários” (KYRMSE, 2003, p. 25). A história, quando é construída, não
se baseia nas criações apenas dos protagonistas, tais como os elfos, anões, magos e assim por
diante. Eles não foram apenas criados e sim inseridos primeiro em uma base, que contém a
razão da existência, as raças foram moldadas numa cultura, línguas, alfabetos, costumes. Tudo
o que é agregado à obra é explicado pelo autor o motivo de sua existência, tanto que, para que
haja congruência, foram também criados o mito, os idiomas, a geologia, a botânica, assim
81
como a fauna e flora. A diversidade então tem como relevância conferir a viabilidade do
mundo tolkeniano.
Profundidade – Aqui em especial é tratado da lingüística aplicada por
Tolkien na saga do Anel. Como ele era um adorador do idioma, fonética, da língua em geral,
ele consegue transpor um ar de estranhamento à obra com toda a bagagem lingüística
aplicada. Ele desenvolveu o Quenya (alto-élfico), Sindarin (élfico-cinzento); há também a
criação dos idiomas dos homens, anões, orcs e muitos outros.
Tempo – A terra antes de ser palco da saga já era existência por si. Há
vários relatos antigos, mapas que citam sobre o espaço demográfico, os efeitos climáticos e
temporais. Foi palco não só para a saga do Anel, mas para todos os trabalhos que Tolkien
desenvolvera. A grande personificação do tempo é retratada pelos elfos, que podem narrar
fatos ocorridos desde a Primeira Era da terra, ocorrida em muitos milênios passados até a
última, a Terceira Era. “O tempo do objeto mitológico é o perfeito: ocorre no presente como
se tivesse ocorrido outrora e por isso mesmo acha-se fundado sobre si, “autêntico”
(BAUDRILLARD, 2000, p. 83).
Há um estranhamento temporal muito marcante na obra literária que é a
passagem da sociedade pelas Florestas de Lothórien (a morada mais bela de todo o povo
élfico). Lá o tempo transcorre mais vagaroso que todo o resto da Terra-média, é essa condição
que dá a sustentação da imortalidade da raça. A estada da sociedade nessa terra não quebra a
cadeia cronológica dos eventos: eles continuam se desenvolvendo de forma linear, todavia a
passagem do tempo se dá de maneira mais vagarosa. É nisso que se dá um anacronismo
dentro da narrativa que não acaba por quebrar a cronologia dos atos, pois os personagens não
viajam no tempo, é o ritmo do tempo que é alterado. Pode ser observado esse anacronismo na
seguinte passagem dos membros da sociedade em Lórien:
Desde que pisara na outra margem do Veio de Prata, fora tomado por uma sensação
estranha, que ia se intensificando à medida que entrava no Naith: parecia-lhe que
tinha atravessado uma ponte do tempo e atingido um canto dos Dias Antigos, e
estava agora andando num mundo que não existia mais. Em Valfenda havia
lembranças de coisas antigas; em Lórien as coisas antigas ainda existiam no mundo
real. A maldade havia sido vista ou ouvida ali, conhecia-se a tristeza; os elfos
temiam e desconfiavam do mundo lá fora: os lobos uivavam nas fronteiras da
floresta; mas sobre a terra de Lórien não pairava sombra alguma. (TOLKIEN,
2000a, p. 371).
A partir do momento que Tolkien cria esse mundo, recheado de cunho
lingüístico, uma fantasia mitológica, ele, além de desejar que fosse compartilhado esse limiar
da realidade, explica e nos dá instruções para quem deseja traduzir (a obra) ou compreender.
82
“Os traços de tal comportamento mitológico revelam-se igualmente no desejo de reencontrar
a intensidade com que viveu, ou conheceu, uma coisa pela primeira vez; de recuperar o
passado longínquo, a época beatífica do “princípio”(ELIADE, 2007, p. 165). Ele busca
sempre ter o cuidado em explicar as coisas que são contidas na narrativa. Para isso, ao longo
da obra ele insere apêndices explicativos, com cronologias, árvores genealógicas, culturas
regionais, calendários, descrições de línguas e dos habitantes da Terra-média, tudo sendo
baseado em períodos históricos, lingüísticos e antropológicos.
Para tanto, há o guia: “Guide to the names in The Lord of the Rings” que foi
elaborado apenas para que se faça compreendido por aqueles que desejam compreender as
escolhas do autor sobre os nomes, as escolhas das línguas e palavras que são utilizadas na
obra literária.
O estudo de palavras, nas quais o componente cultural manifesta-se com mais
intensidade, pode ser o fio condutor para o conhecimento de uma comunidade. Esse
componente cultural é denominado, por Galisson (1987, p. 119), “carga cultural
partilhada” e permite identificar o falante na condição de “individuo coletivo”, um
conceito que distingue e esclarece mecanismos sociais, culturais e lingüísticos,
facilitando o estudo do comportamento humano. (CARVALHO, 2000, p. 102).
Em primeira instância, a obra do Anel havia sido traduzida apenas em sueco
e holandês. Percebendo que muitas línguas não poderiam traduzir fielmente a obra, ele cria
essa obra para que seja utilizada por futuros tradutores e que seja mantida a mesma qualidade
e a fidelidade do mesmo elaborado. Ele (o autor) aconselha como vemos no apêndice “F” do
livro (“On Translation”), Da Tradução, já citado acima, que seja mantida e seguida a mesma
teoria tradutória que foi aplicada pelo autor em sua “tradução do original”. Os apêndices dão
o pilar histórico à narrativa e qual foi o tipo de organização metódica que o autor utilizou,
insere também notas de rodapé que fazem com que haja a ilusão da realidade histórica como
sendo uma tradução fictícia.
Eu penso na mitologia como a pátria das Musas, as inspiradoras da arte, as
inspiradoras da poesia. Encarar a vida como um poema, e a você mesmo como o
participante de um poema, é o que o mito faz por você. (CAMPBELL, 1990, p. 66).
O cenário da saga do Anel ocorre na Terceira Era da Terra-média, que é o
término da Era dos Elfos e criaturas fantásticas como os istari, quando se dá a perda de
responsabilidade desses povos encantados sobre o destino da Terra. Com isso, ao término da
Terceira Era, todos os poderes místicos cessam, inicia-se a Quarta Era, era da ascensão dos
Homens.
83
Conforme as historias tornam-se menos míticas e mais semelhantes a historias e
romances, os Homens são entrelaçados nelas. [...] O contato entre Homens e Elfos já
prenuncia a historia das Eras posteriores, e um tema recorrente é a idéia de que os
Homens (como o são agora) há um traço de “sangue” e hereditariedade derivado dos
Elfos, e de que a arte e a poesia dos Homens são em grande medida dependentes
dele ou modificadas por ele. (CARPENTER, 2006, p. 145).
Essa estrutura mítica apresentada na saga do Anel é a recitação de mitos e
contos de outrora, transpassado pela aproximação conferida à literatura no limiar da fantasia,
havendo uma transportação, uma elevação atemporal.
O tempo que se “vive” ao ler um romance não é, evidentemente, o tempo que o
membro de uma sociedade tradicional reintegra, ao escutar um mito. Em ambos os
casos, porém, há a “saída” do tempo histórico e pessoal, e o mergulho num tempo
fabuloso, trans-histórico. O leitor é confrontado com um tempo estranho,
imaginário, cujos ritmos variam indefinidamente, pois cada narrativa tem o seu
próprio tempo, específico e exclusivo. O romance não tem acesso ao tempo
primordial dos mitos; mas, na medida em que conta uma história verossímil, o
romancista utiliza um tempo aparentemente histórico e, não obstante, condensado
ou dilatado, um tempo que dispõe, portanto, de todas as liberdades dos mundos
imaginários. (ELIADE, 2007, p. 164).
2.5.1. Fauna e flora da Terra-média
A Terra-média, um mundo imaginário e plausível, foi moldado e esculpido à
nossa habitação terrestre; Tolkien agregou inúmeros detalhes minuciosos para dar vida a seu
planeta fictício, Arda. O autor, para aproximar o mundo Arda com a Terra, o mundo fictício
com o real, utiliza como palco nossa existência com um período histórico diferente; seria
como a um elo histórico perdido pela humanidade.
Os elementos naturais que encontramos na Arda são correspondentes aos
nossos alimentos, tais como milho, repolho, cogumelos, assim como as rosas, lírios, podendo
aparecer produtos um pouco mais exóticos tais como athelas (Folha-do-rei que tem efeitos
curativo quando manipulados nas mãos de um Rei) e mallorn (a árvore de Lothlórien que
representa a vida dos elfos). Temos os animais, porcos, gatos, aves de rapina, pôneis e
também os diferenciados, tais como os Mearas apresentado por Shadowfax (Senhor dos
Cavalos, cavalo que Gandalf depois de se transformar em Gandalf o Branco utiliza em auxilio
nas batalhas, é incrivelmente belo e veloz), Gwaihir, o Senhor dos Ventos (uma águia
84
gigante), há os Wargs (lobos grandes e selvagens) e a Shelob, a mais temível de todos os
predadores, a imensa aranha.
As comidas são pães, bolos, o mel acompanha praticamente tudo, cevada e
também os pães élficos, Lembas que permitem ao viajante que deles se alimenta se fortalecer
e revigorar as energias. Os campos e a natureza aos arredores do Condado são retratados com
a semelhança da localização da Inglaterra.
2.5.2. O povoado da Terra-média
A Terra-média é povoada por diferentes raças e cada qual com suas
peculiaridades culturais, sociais. Há também a diferença lingüística entre as raças, os
vocabulários, dialetos e a maneira de construção frasal.
Como já explanado acima, temos os povos pequenos, a raça Hobbit (que se
aproxima ao estereotipo do inglês mediano), possui uma vida singela, sem necessidade de
aventuras e grandes desafios e exímios adoradores de boa comida e festa. Sobrevivem da
agricultura que é plantada e cultivada com as próprias mãos do qual o único apetrecho
tecnológico que possuem é um moinho de vento.
Há os Senhores Homens, descendentes numenorianos; suas variedades
regionais mostram a diferença cultural são fortes, altos e guerreiros. A figura Aragorn é
representativa da máxima que um homem pode atingir. Leal, desbravador, líder, solene e
nobre. “Eram os númenorianos, os reis dos homens, a quem os elfos chamavam os dúnedain.
(TOLKIEN, 2000b, p. 420).
Os Senhores Elfos, os preservadores da natureza, são belos, altos, podem vir
a ser perigosos quando necessário, mas são na maioria das vezes passionais. Possuem uma
vasta sabedoria que é angariada ao longo das eras passadas por eles, pois são imortais. As
maiores armas são arco e flecha e a espada. Os principais de destaque são Legolas que
acompanha a demanda, Elrond e Galadriel. “A mais nobre de todas era a Senhora Galadriel,
da casa real de Finarfin, irmã de Finrod Felagund, rei de Nargothrond.” (TOLKIEN, 2000b, p.
420).
85
Os Senhores Anões, gananciosos em construções, cavam profundezas nas
montanhas onde residem e buscam sempre por pedras preciosas. São íntegros e leais à
espécie, utilizam do machado para se defenderem. Gimli é o representante dessa raça.
São em geral uma raça resistente e obstinada, laboriosa, que conserva a lembrança
de injúrias (e de benefícios), amante da pedra, das gemas, das coisas que adquirem
forma nas mãos dos artesãos mais do que daquelas que vivem por si mesmas.
(TOLKIEN, 2000b, p. 425).
Os istari, ou magos, são os enviados dos Valar para a terra para que a ordem
seja estabelecida. Portam-se como guardiões da paz na terra, são dotados de sabedoria e bem
enigmáticos. Gandalf, Sauron e Saruman são os representantes.17
Orcs, são criaturas asquerosas, verdadeiras aberrações da natureza, baixos,
curvados. Sem vida e vontade própria são comandados pelos instintos daqueles a quem
servem. Não se locomovem na luz do dia, habitam cavernas ou montanhas. Brigam com
espada ou com arco e flecha, em que depositam veneno em suas pontas. “Os orcs foram
inicialmente engendrados pelo Poder Escuro do norte nos Dias Antigos.” (TOLKIEN, 2000b,
p. 423).
Uma descendência dos Orcs é a criação Uruk-hai, cruzada da raça humano
com goblin, são guerreiros fortíssimos, podendo se locomover durante o dia, altos e
aterrorizantes, a briga e o escárnio são o que os impulsiona.
Há os Espectros do Anel, Nazgûl. Foram Reis de outrora decaídos pela
corrupção do mal. Ficam no limiar entre homem e espírito sem nunca possuir sossego; são
servos de Sauron.
Por fim, os pastores das árvores, Ents. São as criaturas mais antigas da
Terra-média. A fala recai em um estilo que remete à antiguidade. É representada pela lentidão
buscam, quando falam, inserir a árvore genealógica daquilo que abordam para sempre
explicar a origem. “Ents. O povo mais antigo que sobrevivia na Terceira Era eram os onodrim
ou enyd. Ent era a forma de seu nome na língua de Rohan”. (TOLKIEN, 2000b, p. 423).
O poder do mito é grandioso, pois eleva e incita o homem a viver e
rememorar a própria história, recheada de feitos heróicos e fantásticos.
[...] os mitos, em suma, recordam continuamente que eventos grandiosos tiveram
lugar sobre a Terra, e que esse “passado glorioso” é em parte recuperável. A
imitação dos gestos paradigmáticos tem igualmente um aspecto positivo: o rito força
o homem a transcender os seus limites, obriga-o a situar-se ao lado dos Deuses e dos
17
Fonte extraída do livro O mundo de TOLKIEN, Day, 2004.
86
Heróis míticos, a fim de poder realizar os atos deles. Direta ou indiretamente, o mito
“eleva” o homem (ELIADE, 2007, p.128).
Os mitos fazem parte direta ou indireta na vida das pessoas.
[...] através dos contos maravilhosos — cuja pretensão é descrever a vida dos heróis
lendários, os poderes das divindades da natureza, os espíritos dos mortos e os
ancestrais totêmicos do grupo —, é dada uma expressão simbólica aos desejos,
temores e tensões inconscientes que se acham subjacentes aos padrões conscientes
do comportamento humano. Em outras palavras, a mitologia é psicologia confundida
com biografia, história e cosmologia. O psicólogo moderno tem condições de
retraduzi-la em suas denotações próprias e, desse modo, recuperar para o mundo
contemporâneo um rico e eloqüente documento das camadas mais profundas do
caráter humano. (CAMPBELL, 1997, p. 139).
Todos esses povos que compõem a obra mitológica de Tolkien permitem
ganhar vida e realidade em nossas vidas, fazendo com que se adentre a um mundo
imaginativo-real, que a tanto foi deixado de cultuar e vivenciar. É a possibilidade de
rememorar a própria existência, a origem, rememorar batalhas realmente valiosas e fundadas
em conceitos e caráter moral.
87
CAPÍTULO 3 – TRANSCODIFICAÇÃO FÍLMICA DA OBRA O
SENHOR DOS ANÉIS
Foi possível analisar até o momento questões peculiares referentes à obra
literária, sua estrutura, aspectos referentes ao autor e os motivos que resultaram a obra se
tornar o que é; aspectos da mitologia, assim como personagens inseridos na trama. Neste
capítulo serão apresentadas características em torno do cinema e a compreensão do mundo
cinematográfico, a arte da adaptação, assim como fatores referentes às grandes problemáticas
que os adaptadores enfrentam.
A transcodificação do veículo literário para o fílmico consiste em inúmeras
alterações que o adaptador deve adequar para produzir uma adaptação.
Uma adaptação de um texto literário para um programa televisivo é, em primeira
instância, um processo de mudança de suporte físico. Trata-se da passagem de sinais
e símbolos gráficos assentados em papel para um conglomerado de imagens e sons
captados e transmitidos eletronicamente. (REIMÃO, 2004, p. 107).
Continuando a explicação da autora:
A mudança de suporte implica uma série de mediações e mediadores que agem
como co-autores da produção audiovisual: atores, coreógrafos, figurinistas,
compositores e produtores musicais, iluminadores, cameramen, montadores, etc.
(REIMÃO, 2004, p. 109).
Como o ser humano é impulsionado constantemente a buscar expansão
comunicativa entre as pessoas e seus respectivos grupos, os meios de comunicação surgem
como propiciador de ligação entre individuo e sociedade.
[...] pode-se dizer que o processo comunicacional é, antes de tudo, uma práxis
objetiva. Trata-se de uma habilidade que se aprende, uma habilidade exclusivamente
humana. Ela ocorre através da linguagem, que é também uma capacidade que
pertence apenas ao ser humano (HOHLFELDT, 2001, p. 61).
A explosão de imagens transpassadas pelas telas fez com que o homem
passasse a concretizar um dos maiores desejos, o de reproduzir o movimento das imagens.
O conteúdo é fundamentalmente o que está sendo direta ou indiretamente expresso;
é o caráter da informação, a mensagem. Na comunicação visual, porém, o conteúdo
nunca está dissociado da forma. Muda sutilmente de um meio a outro e de um
88
formato a outro, adaptando-se às circunstancias de cada um. [...] Uma mensagem é
composta tendo em vista um objetivo: contar, expressar, explicar, dirigir, inspirar,
afetar. (DONDIS, 1997, p.131).
O ato de comunicar se encontra presente em qualquer arte: fatores
perceptivos entram, crenças são ponderadas para a boa veiculação de mensagens. A história
cultural, regional de uma sociedade é fundamentada e entendida para que um veículo seja
capaz de atingir de maneira eficaz o seu público.
Toda a tradição das artes aponta para uma característica constante no ser humano: o
gosto de contar histórias. Nesse sentido, o cinema narrativo e a TV se inserem
dentro de uma tradição muito antiga. (BALOGH, 2002, p. 53).
Quando se produz uma arte para a mídia, no caso o produto
cinematográfico, é necessário observar, na cultura em que se insere, tanto a representação
lingüística quanto os modelos subjacentes, pois todos os fatores interferem na escolha do
estilo de mídia escolhido. O público-alvo faz parte de uma cultura e é por meio dessa cultura
que será elaborado o produto massivo, uma vez que são as pessoas que mostrarão a aceitação
ou não da arte elaborada.
Na obra de arte é a totalidade do artista como homem que entra em jogo, a obra
emana da sua personalidade integral, da sua vida intelectual, afetiva e inconsciente, e
é uma criação até um certo ponto espontânea, de maneira alguma sujeita às
exigências daquilo que é “dado” como objeto para o trabalho cientifico.
(ROSENFELD, 1993, p. 190).
A análise da cultura-alvo levará ao produtor de filmes (que são de
finalidades lucrativas, comerciais) a reconhecer relevâncias que deverão constar para que se
chegue eficazmente ao receptor. São observações de fatores críveis, uma reflexão mais global
sobre as manifestações culturais de massa e do produto cultural industrializado escolhido que
levarão a decisão sobre o que se produzir, para que com isso haja uma maior aceitação pelo
público do produto.
89
3.1. A origem do espetáculo
Em 28 de dezembro de 1895 houve um grande espetáculo realizado no
Grand Café em Paris. A primeira projeção de filmes, onde a extensão máxima era de 16
metros, dando inicio a uma nova arte, a arte cinematográfica, que foi o ponto de partida da
captação e transmissão do movimento.
Essa nova arte cinematográfica foi o presságio da modernidade, vindo a
ocorrer a primeira adaptação por meio de Georges Méliés. Após o ponto de partida da criação
do cinema, o grande fascínio continuou a evoluir, conquistando novos horizontes e na década
de 30 houve a inserção do som, nos anos 40 foi a vez da presença da cor nas filmagens; por
último, as variadas tecnologias. Hoje vemos a expansão da sonorização, de perfeição da
reprodução da imagem, de fidelidade cromática, efeitos especiais, etc. “A modernidade foi
inaugurada com a invenção do cinema, em 1895, na França, graças aos irmãos Lumière e
adaptada à arte cinematográfica por Georges Méliès” (HOHLFELDT, 2001, p. 93).
Esse grande salto que concerne à comunicação foi dado pelo mágico
Georges Méliès, que havia solicitado a “máquina que filmava” (movida a manivela) e
utilizava negativos perfurados aos inventores do cinema, Lumière. Este não havia conferido
crédito ao desejo de Méliès, achando que o interesse fosse passageiro por sua criação, porém
logo mais deu-se como surpresa observar o estrondoso sucesso que se tornou.
A estréia se deu com um filme de curta, com filmagem de câmera parada,
em preto e branco e sem som. O grande fator cativante foi a ilusão que fora projetada na tela,
o “real” que não é real.
Essa ilusão de verdade, que se chama impressão de realidade, foi provavelmente a
base do grande sucesso do cinema. O cinema dá a impressão de que é a própria vida
que vemos na tela, brigas verdadeiras, amores verdadeiros. Mesmo quando se trata
de algo que sabemos não ser verdade, como o Picapau Amarelo ou O Mágico de Oz,
ou um filme de ficção científica como 2001 ou Contatos Imediatos do Terceiro
Grau a imagem cinematográfica permite-nos assistir a essas fantasias como se
fossem verdadeiras: ela confere realidade a essas fantasias (BERNARDET, 1985, p.
12).
A primeira apresentação ocorrida no Grand Café se deu com filmagens de
duração média de dois minutos e uma das projeções foi a emocionante locomotiva chegando à
estação.
90
Durante muito tempo a câmera permaneceu fixa, numa imobilidade que
correspondia ao ponto de vista do “regente de orquestra” assistindo a uma
representação teatral. Essa foi a regra implícita, a da unidade de ponto de vista, que
guiou Méliès – de resto um criador fecundo e original – ao longo de toda a sua
carreira.
No entanto, já em 1896, o travelling fora espontaneamente inventado por um
operador de Lumière que havia colocado sua câmera sobre uma gôndola em
Veneza.(...) Mas foi um inglês, G. A. Smith, representante do que Sadoul chama de
“a escola de Brighton”, que teve o mérito, a partir de 1900, de libertar a câmera de
sua posição estática, modificando o ponto de vista de uma mesma cena de um plano
a outro (MARTIN, 1990, p.30).
Após Méliès assistir a apresentação, lança-se a esse mundo, sendo o
pioneiro a filmar com figurinos, cenários e maquiagem. Ele mesmo se torna o ator de suas
criações, produtor, fotógrafo, figurinista e diretor. Ele desenvolve técnicas de trucagem e
efeitos visuais inusitados, onde aplicava técnicas de fusão de imagens, exposição múltipla de
negativos e truques ópticos. Uma das mais celebre filmagens é Viagem à Lua, baseada em um
livro de Julio Verne.
3.2. O impasse entre o falado e o escrito
Após os irmãos Lumière e Méliès em criar e transformar o cinema em arte,
pôde-se descrever o cinema como a sétima arte (nome empregado pelo teórico italiano
Riccioto Canudo em 1911), e fonte de entretenimento popular, que comunica, educa e
entretém os espectadores. O cinema confere um poder de comunicação universal, atingindo
toda a cultura, toda a massa. “A análise dos gêneros ficcionais deve ser entendida como um
momento, entre outros, da reflexão mais global sobre manifestações culturais de massa e
produtos culturais industrializados” (SOUSA, 1995, p. 71).
O cinema possui uma linguagem própria, servindo para entreter (filmes de
ficção) ou informar (documentários), porém os dois gêneros possuem a necessidade de narrar
uma história ao público-alvo e a necessidade de comover diretamente o espectador.
A expressão linguagem do cinema opera uma divisão de públicos. Aqueles que se
dão ao prazer de simplesmente ver cinema; rir; chorar; gostar; não gostar; rever
cinema; procurar só comédias, violência, grandes dramas, dramas comuns, mistério,
terror, aflições e reconforto tem com o cinema uma relação corporal, ingênua e
sentimental, como se uma emoção primitiva levasse a procurar ver histórias
contadas. Histórias que recontam ao falarem sobre os filmes vistos.
A esse espectador interessa mais o enredo que a trama, mais os atores que os
diretores, e mais que a interpretação, os personagens, revivendo, em múltiplas e
91
diferentes condições, o encantamento de ouvir histórias, o fluir da narração
(ALMEIDA, 2004, p. 23).
Partindo da premissa que o cinema é indústria, é mercadoria, o produtor
necessita cativar e despertar o desejo do espectador em consumir o produto, e para entender
a recepção obtida pelo telespectador basta compreender a cultura em que ela é inserida. É
saber dar ao público o que o público quer.
Quando um filme é elaborado, sonhos, desejos emoções são depositados no
contexto da narrativa, os personagens e a história carregam os sentimentos daquele que o
criou. Cria-se então uma troca de realidade, uma adequação entre o real e o imaginário.
O autor cinematográfico tende a ser seu próprio produtor. É ele que pensa o projeto,
procura os meios de realizá-lo, filma e acompanha a obra em todas as etapas. O
autor não faz uma obra de encomenda, sua obra corresponde a uma vontade de
expressão ou de comunicação. (BERNARDET, 1985, p. 104).
O produto, para que exista, precisa antes de tudo ter sido imaginado pelo
produtor.
O cinema, enquanto meio de comunicação, está aberto a todos os tipos de
simbolismo e energias literárias e imagísticas, a todas as representações coletivas,
correntes ideológicas, tendências estéticas e ao infinito jogo de influências no
cinema, nas outras artes e na cultura de um modo geral. (STAM, 2008, p. 24).
Imaginar é tudo o que sai da norma; são devaneios, é o dito “andar com a
cabeça nas nuvens”, pois não existe nada sem que antes ele não tenha sido imaginado e
desejado. Ele imagina e cria o cenário que virá a se transformar num produto final. “A
imaginação é um dos modos pelos quais a consciência apreende o mundo e o elabora.”
(NOVAES, 1991, p. 110)
Hoje em dia deparamos com uma questão tendenciosa sobre o mercado
cinematográfico, onde o que temos de maior escala são as imagens tomando lugar das
palavras. A tendência que se observa hoje é da avalanche de pura ação em que somos
envolvidos, deixando de lado o fator primordial do homem, que é a reflexão. “[...] o cinema
de massa segue os caminhos da televisão e pretende alcançar o estágio de pura ação, sem
reflexão.” (NOVAES, 1991 p. 109).
Cria-se, pois há a necessidade de se criar, de comunicar ou informar.
Partindo pelo intuito de se elaborar um produto por desejo próprio ou, compartilhar uma idéia
92
com a sociedade, seja o motivo que levou a se criar, Dondis (1997) elucida a necessidade
humana na criação cinematográfica.
Quais são as razões básicas e subjacentes para a criação (concepção, fabricação,
construção, manufatura) de todas as inúmeras formas de materiais visuais? As
circunstâncias são muitas, algumas vezes claras e diretas, outras, multilaterais e
sobrepostas. O principal fator de motivação é a resposta a uma necessidade, mas a
gama de necessidades humanas abrange uma área enorme. Podem ser imediatas e
práticas, tendo a ver com questões triviais da vida cotidiana, ou podem estar voltadas
para necessidades mais elevadas de auto-expressão de um estado de espírito ou de
uma idéia. (DONDIS, 1997, p. 183).
O produtor de cinema tem a incumbência de saber o que produzir para os
telespectadores verem, pois nem todos os materiais que se têm são materiais “filmáveis”,
muito menos facilmente aceitáveis pelo público. “Os produtores têm de tomar decisões sobre
o que filmar e o que deixar de fora”, pois “[...] não é o que você vê que importa – o que
importa é o que você faz os outros verem”. (WATTS, 1999, p. 97).
O que mais é almejado por um produtor é conseguir projetar por meio da
imagem uma superficial realidade, uma projeção ilusória da realidade que agrade ao público.
É saber selecionar uma versão da realidade e transpô-la para a tela “A imagem fílmica,
portanto, é antes de tudo realista, ou melhor dizendo, dotada de todas as aparências (ou quase
todas) da realidade.” (MARTIN, 1990, p. 22).
[...] a imitação não é uma criação ab nihilo, isto é, tirada do nada, mas do jáexistente, ou seja, depende da maneira como se combinam as diferentes imitações, o
que antecede, por seu lado, à teoria da metáfora, pois há combinações que
aproximam realidades mais próximas e outras que aproximam realidades mais
distantes. (HOHLFELDT, 2001, p. 75).
Nas palavras de Xavier (1984) a classificação de imagem é dada pelos
seguintes termos:
[...] significa, em sua primeira acepção, algo visualmente semelhante a um objeto
ou pessoa real; no próprio ato de especificar a semelhança, tal termo distingue e
estabelece um tipo de experiência visual que não é a experiência de um objeto ou
pessoa real. (XAVIER, 1984, p. 11).
A imagem passada do cinema ao espectador é a base da linguagem
cinematográfica; e carregada de um realismo descritivo, faz com que o espectador adentre
facilmente no espaço dramático fazendo-o participar da ação. É por meio desse mecanismo
93
que nos prende a atenção. “O cinema tem, portanto, o privilégio de ser uma arte do tempo que
goza igualmente de um domínio absoluto do espaço”12. (MARTIN, 1990, p. 208).
O roteirista busca incessantemente conseguir capturar a atenção do público;
é dele a responsabilidade em delinear os tempos adequados para que haja o interior das
seqüências assim como o tempo do conjunto de seqüências que resultarão em uma parte do
filme. Pode-se optar por iniciar cenas mais longas ou mais curtas, pode ser necessitado gastar
mais tempo com determinado personagem ou menos, ou ainda nem revelar outros
personagens na trama.
Sobre a questão de escolha dos personagens, pode-se observar facilmente
que, na obra literária O Senhor dos Anéis, muitos foram os personagens que deixaram de
constar na obra fílmica, devido a não apresentarem (na visão do roteirista) uma relevância
para o produto adaptado, tudo em busca de tornar pertinente e coerente a estrutura narrativa
do filme, buscando produzir adequadamente algo viável às pessoas, que agrade e prenda a
atenção do público. “Tanto o roteirista como o diretor e o montador trabalham com um único
objetivo: transformar uma idéia em narrativa” (LEONE; MOURÃO, 1993, p. 79).
3.2.1. O produtor de histórias-em-imagens
O cinema é instrumento de um novo lirismo e sua linguagem é poética justamente
porque ele faz parte da natureza. O processo de obtenção da imagem corresponde a
um processo natural – é o olho e o “cérebro” da câmera que nos fornecem a nova e
mais perfeita imagem das coisas. O nosso papel, como espectadores, é elevar nossa
sensibilidade de modo a superar a “leitura convencional” da imagem e conseguir
ver, para além do evento imediato focalizado, a imensa orquestração do organismo
natural e a expressão do “estado de alma” que afirmam na prodigiosa relação
câmera-objeto. (XAVIER, 1984, p. 86).
A grande importância da montagem de imagens em movimento é no que diz
respeito à atividade narrativa, organizando fatos e obtendo efeitos, por meio de cortes e da
colagem de fragmentos filmados. “A produção de imagens jamais é gratuita, e, desde sempre,
as imagens foram fabricadas para determinados usos, individuais ou coletivos. [...] a imagem
é a mediação entre o espectador e a realidade.” (AUMONT, 2002, p. 78).
Há também a montagem paralela, que aproxima acontecimentos simultâneos
em cenas diferentes. “A montagem funciona, então, como algo lúdico, como uma espécie de
12
Grifos do autor.
94
jogo, isto é, como um conjunto de regras mediante as quais o cinema transmite um simulacro
de liberdade”. (LEONE e MOURÃO, 1993, p. 59).
[...] nos livros o passado e presente é fluido, sem interrupções. Você vai e volta na
história. O personagem presente pode oferecer importantes dados do passado e vice
versa. No cinema os filmes ocorrem no presente, ficamos na mesma posição que o
personagem. “nós, assim como eles, não sabemos o que vai acontecer em seguida.
Não há tempo para refletir sobre o que está acontecendo. Só há tempo para viver o
presente, para se envolver com o desenrolar dos acontecimentos.” não necessitamos
assim de um narrador para nos auxiliar a interpretar ou nos relatar um
acontecimento. (SEGER, 2007, p. 42).
Em uma obra literária, quem nos guia por meio da história é o narrador.
Pode ser narrador personagem (narração em primeira pessoa, participa das ações, podendo ser
personagem principal ou não) ou narrador onisciente (normalmente é a presença do alter ego
do escritor, em terceira pessoa) que explica os significados daquilo que ocorre na história.
“No filme somos observadores objetivos das ações. Vemos aquilo que nos é dado.” (STAM,
2008, p. 37). No recurso audiovisual não há a presença de um narrador, a câmera se
responsabiliza pela tarefa de narrar. Quando é mostrada uma cena e ela é enfatizada com um
foco, isso é a ocorrência da narração. Tudo isso é compartilhado com o personagem, assim
como a trilha sonora que também narra. A câmera subjetiva funciona como narrador em 1º
pessoa, inserindo o espectador imaginariamente dentro da cena, produzindo maior
envolvimento entre espectador e fatos narrados. Ela acaba por aprofundar o pensamento do
personagem. “A materialização mais explícita de narrador dentro de personagem é a câmera
subjetiva” (CAMPOS, 2007, p. 59).
O grande impasse dado entre o “lido” e o “visto” é que a leitura de um livro
caminha conforme o tempo do leitor, tempo esse em que o leitor pode interpretar livremente
vários temas presentes na obra, ler, parar, retomar na hora que bem quiser reler; enfim, o livro
precisa do leitor para que ocorra a história.
Correlativamente às oposições distração/concentração e reflexão/emoção, um outro
ângulo diferenciador entre o leitor de impressos e o espectador de audiovisuais diz
respeito ao papel da imaginação. Em princípio, enquanto possibilidade técnica, a
mediação da câmera poderia ser um instrumento do alargamento dos limites do
campo das possibilidades de visão do olho humano. (REIMÃO, 2004, p. 111).
O livro é possuidor de muito mais camadas de significado, acompanha uma
linha temática que é tecida de detalhe por detalhe, página por página, abordando temas
referentes a costumes, rituais, festividades. No livro é a história que normalmente serve ao
tema, e no filme, o tema serve história.
95
A câmera pode focalizar um objeto tridimensional e, em questão de segundos,
comunicar detalhes que ocupariam páginas e páginas de descrição em um livro. O
filme consegue comunicar, a um só tempo, informações da história, dos
personagens, idéias, imagens e estilo. (STAM, 2008, p. 34).
No filme, o telespectador é obrigado a acompanhar o que lhe é imposto. O
filme constrói detalhes por meio de imagens.
[...] ler um livro e assistir a um filme são experiências bem diferentes. E é
exatamente esta diferença que causa dificuldades para a transformação do livro em
filme. Ao lermos um livro, o tempo está a nosso favor. Não se trata de uma
experiência puramente cronológica, em que a outra pessoa determina o nosso ritmo,
mas sim de uma experiência reflexiva. [...] ler um trecho, colocar o livro de lado,
refletir a respeito do que foi lido, reler uma página, tudo isso faz parte do prazer da
leitura. A linguagem em si nos dá tanto prazer quanto a própria história. (STAM,
2008, p. 32).
Quando as histórias são narradas por meio de imagens, o desfecho se dá de
maneira diferente, pois o que se impõe são imagens projetadas durante um tempo
determinado, havendo um distanciamento do elaborador e consumidor.
Na leitura, o leitor, lê a hora que quer, pode dispensar a leitura momentaneamente,
retomar a hora que quiser. Se não entendeu um trecho, pode retomar um ponto.
Quando é feito a segunda leitura, é mais proveitosa, se atenta a fatos importantes. A
tela não oferece essas vantagens. Cabe ao roteirista conseguir passar em uma vez
todos esses fatores. Nesse ponto pode transformar “o filme mais interessante que o
livro, no que diz respeito à movimentação, porém sempre perderá em profundidade”.
(REY, 2001, p. 60).
Há várias características que diferenciam um bom livro de um bom filme, de
um veículo literário e um audiovisual, assim como inúmeras peculiaridades que os
aproximam.
Ao leitor e ao telespectador, ao fruidor de um texto em forma de sinais tipográficos
ou de um programa televisivo correspondem dois sistemas diferentes de apreensão:
o leitor de um texto impresso utiliza, prioritariamente, um único sentido – a visão – e
basicamente em uma direção – a linearidade da linha impressa. O telespectador
utiliza simultaneamente a audição e a visão e cada uma delas em uma multiplicidade
de sentidos e direções. [...] a primeira forma de apreensão tende a ser mais
concentrada e a segunda mais emotiva. (REIMÃO, 2004, p. 109).
A mais importante é que ambas constituem registros, de fatos ocorridos ou relatados, seja pela
escrita ou pela lente de uma câmera e a grande diferença destes dois estilos é que a obra
96
literária é desprovida da capacidade oferecida pelos recursos visuais e sonoros que tanto
agradam e chamam a atenção dos espectadores.
Há um primeiro ponto comum ao cinema e à escrita, é que ambos são técnicas de
registro (não são apenas isso, certamente). Resumiremos pela palavra “registro”,
conforme um emprego freqüente, os três estágios sucessivos compreendidos pelo
processo quando completamente desenvolvido: o registro propriamente dito, a
conservação e a “reprodução” posterior.
O cinema e a escrita registram, portanto, processos. Mas tais processos são muito
diferentes nos dois casos. Aqueles que o cinema “fixa” são conjuntos de
acontecimentos acessíveis à visão e à audição; aqueles que a escrita fixa são, ora
seqüências faladas, e apenas faladas (no caso das diversas escritas fonéticas: escrita
silábica, que anota sílaba, escrita alfabética, isto é, fonética, que anota por fonética,
etc.) ora elementos discretos da experiência social, quando se trata de diferentes
escritas ideográficas (morfogramáticas, pictogramáticas, etc.). (METZ, 1980, p.
302).
Outra característica pertencente aos dois estilos midiáticos é do imaginário e
o pensamento, duas vertentes que unidas faz da linguagem uma mediação da relação do
espectador com a realidade. Mesmo possuindo uma grande aproximação, elas são distintas na
mesma proporção; a linguagem é única, porém o escritor e o roteirista a concretizam de
maneira diferentes. O escritor utiliza a linguagem por meio da palavra, já o roteirista utiliza a
linguagem imagética. A escrita é carregada de várias significâncias imaginárias, fazendo com
que o espectador (com o tempo que a leitura proporciona ao leitor) escolha a melhor hipótese
para a história; já a imagem, além de possuir várias significâncias, não são providas de tanto
tempo desprendido pela leitura, o espectador não divaga por muito tempo nas várias
interpretações ocasionadas pelo imaginário, sendo o roteirista o ocasionador da escolha
imagética que causará um impacto emocional e intelectual.
Há certas coisas que o cinema faz maravilhosamente bem, e os romances não. Os
filmes têm um elemento narrativo esplêndido: tamanho e alcance. São formas
totalmente diferentes. A única semelhança é que, quase sempre, ambas usam
diálogos. De resto, a maneira de lidar com uma cena num filme e a maneira de lidar
com uma cena num livro não têm nada a ver uma com a outra. (HOWARD;
MABLEY, 1996, p. 36).
Observamos, contudo, que a obra literária e a obra fílmica constituem
formas diferentes de expressão. A obra literária utiliza palavras para contar uma história,
descrever personagens e construir idéias. Na obra fílmica, para que se consiga atingir o
espectador, para que se consiga levar as pessoas do riso às lágrimas em fração de segundos,
utiliza-se das imagens e ação. “Portanto são duas mídias essencialmente diferentes, que em
97
geral oferecem resistência uma à outra tanto quanto cooperam entre si.” (SEGER, 2007, p.
45).
3.3. Cinema: A indústria do sonho
O cinema é sempre ficção. Ficção engendrada pela verdade da câmera, verdade das
possibilidades técnicas da reprodução do movimento das pessoas, das coisas, da
natureza. Abertura e lentes, o olho de quem opera a máquina, o olho de quem dirige
quem opera, o conflito entre a vontade e as possibilidades do olho técnico para a
reprodução de imagens e sons que o espectador receberá como verdade, provisória é
claro, durante o presente da projeção, não mais o cinema, mas daquilo que o cinema
produziu: o filme. O espectador nunca vê cinema, vê sempre o filme. O filme é
sempre um tempo presente, seu tempo é o tempo da projeção.” [...] “O cinema existe
antes e depois da projeção do filme. A industria, o mercado de filmes, o roteiro,
argumento, locações, atores, produção e tantas outras coisas fazem parte do cinema.
(ALMEIDA, 2004, p. 40).
A arte cinematográfica se mostra presente em nossas vidas, seja por meio de
criações novas ou por adaptações de obras literárias; adentra os lares por meio das telinhas ou
abarrota salas de cinemas, despertando o interesse do espectador fazendo-o buscar a ilusória
impressão de uma realidade, permitindo-lhe por àquelas horas conferidas ao filme adentrar em
uma paralela realidade, ou como afirma Metz (1972):
“[...] uma impressão de realidade vivida pelo espectador diante do filme. Mais do
que o romance, mais do que a peça de teatro, mais do que o quadro do pintor
figurativo, o filme nos dá o sentimento de estarmos assistindo diretamente a um
espetáculo quase real” (METZ, 1972, p. 16).
Devido então a essa parcial realidade, a arte cinematográfica conquista
imediatamente, prendendo nossa atenção principalmente pelos efeitos audiovisuais, fazendonos buscar por essa ficcional diversão, expandindo nossos variados sentimentos, pois a
máquina que filma interage diretamente com o imaginário coletivo das pessoas.
O filme exige uma percepção concentrada, exclusiva e até mesmo voyeurista, numa
sala escura de natureza psicanalítica, isolada do mundo exterior e de todas as suas
fontes de perturbação visual ou auditiva. As formas expressivas do cinema se
caracterizam por uma determinação ilusionista que lembra a experiência do sonho,
reclamando, em sua conseqüência, recepção contínua, sem interrupções, para que
não se quebre a ilusão. (MACHADO, 2001, p. 47).
98
A “impressão de realidade” que é conferida no espetáculo cinematográfico
possui uma temporalidade, tendo um inicio e um fim: é o tempo para que a narração se torne
real.
Um início, um final: quer dizer que a narração é uma seqüência temporal. Seqüência
duas vezes temporal, devemos acrescentar logo: há o tempo do narrado e o da
narração (tempo do significado e tempo do significante). Esta dualidade não é
apenas o que torna possíveis todas as distorções temporais verificadas
freqüentemente nas narrações (três anos da vida do protagonista em duas frases de
um romance, ou em alguns planos de uma montagem “freqüentativa” no cinema
etc.); mais essencialmente, ela nos leva a constatar que uma das funções da narração
é transpor um tempo para um outro tempo e é isso que diferencia a narração da
descrição que transpõe um espaço para um tempo), bem como da imagem (que
transpõe um espaço para outro espaço). (METZ, 1972, p. 31).
Possuímos três tempos: de projeção (duração do filme), da ação (duração
diegética da história contada) e da percepção (impressão de duração intuitivamente sentida
pelo espectador). Observamos que o tempo torna-se responsável em modelar o universo
fílmico, estruturando a narrativa cinematográfica que nada mais é que um processo de
transformação temporal. “[...] a câmera pode, com efeito, tanto acelerar quanto retardar,
inverter ou deter o movimento e, conseqüentemente o tempo”. (MARTIN, 1990, p. 214).
O tempo no cinema pode ser alterado conforme o roteirista assim o desejar,
tanto acelerando quanto retardando fatos, tudo para que torne mais atrativo à narrativa da
história. A perspectiva dos efeitos da imagem do tempo será associada a cenas referentes à
obra cinematográfica O Senhor dos Anéis. Lembrando que as análises referentes aos filmes
são inúmeras e intermináveis, cabe ao presente momento apresentar apenas os efeitos citados
acima. “Até mesmo quando a análise se restringe a uns poucos aspectos do filme, é sempre
possível acrescentar mais alguma coisa, há sempre elementos, detalhes, que podem ser
vinculados à análise.” (BERNARDET, 2003, p. 207).
Sobre a aceleração da imagem pode-se sintetizar em poucos minutos longos
espaços de tempo. Como exemplo são imagens sobre o crescimento de uma planta ou o tardar
de um dia ou vários dias. As passagens dos dias sobre os companheiros da jornada do Anel
são muitas vezes acelerados, assim como a mudança das estações. Cenas que durariam horas
ou até dias podem ser apresentadas por fração de minutos. Há também a câmera lenta que faz
perceptível os movimentos acelerados que a olho nu não conseguimos detectar. A principal
utilização da câmera lenta se dá por proporcionar um plano dramático na história. Como
exemplo são as cenas que mostra o pensamento de Frodo, quando se depara com a aflição do
mal que o instiga a colocar o Anel. Há a inversão do tempo que confere um ar cômico assim
99
como apresentado quando Frodo e Galadriel estão no Espelho de Galadriel e a passagem do
tempo se passa de maneira invertida, hora futura ou passada. E por fim a detenção do
movimento, que possibilita fortes e estranhos efeitos. No momento que o Espectro do Anel
atinge Frodo com a espada, um plano (estranho à ação) mostra uma onda imobilizada em
pleno movimento.
Todos esses recursos abordados são utilizados ao longo de uma narrativa
fílmica, passada pela esfera visual ao espectador, havendo sempre a representação do tempo,
da volta do passado ao presente ou vice-versa ou cenas invertidas ou mesmo lentas, assim
como a capacidade do movimento e a mudança no tempo e no espaço.
[...] que o passado lança sua luz no que é presente ou o que é presente lança sua luz
no que é passado; ao contrário, uma imagem é aquilo em que o Então e o Agora
juntam-se em uma constelação como um flash de luz. Em outras palavras: uma
imagem é a dialética imobilizada num instante. Pois enquanto a relação do presente
com o passado é puramente temporal e contínua, a relação do Então com o Agora é
dialética: não de natureza temporal, mas de natureza imagística (p.50)” Benjamin em
“Não é”. (CHARNEY; SCHWARTZ, 2001, p. 393).
Várias são as ferramentas dispostas para que se tenha um máximo
aproveitamento de retenção da atenção do espectador para o produto fílmico; alguns artifícios
são muito bem utilizados, tais como tecnologias sonoras, a montagem, escolhas de
personagem, enredo, roteiro, como vários outros aspectos de grande importância na
construção de um produto, que logo mais serão analisados.
Embora a superfície de uma tela de cinema seja bidimensional, para o espectador lhe
concede uma profundidade imaginária. Assim como a perspectiva artificialis dos
pintores da Renascença, o filme cria a impressão de uma terceira dimensão ao
incorporar o código de perspectiva característico da própria retina, ou seja, a
percepção do tamanho dos objetos varia proporcionalmente ao quadrado da
distância. A câmera, diz Marcelin Pleynet, cria “um code perspectif directement
hérité, construit sur Le modele de la perspective scientifique du Quanttrocento”.
(STAM, 1981, p. 161).
Para poder complementar a definição da arte do cinema, cabe salientar as
palavras do cineasta espanhol Luis Buñuel, citado por Couto:
Nas mãos de um espírito livre, o cinema é uma arma magnífica e perigosa. É o
melhor instrumento para exprimir o mundo dos sonhos, das emoções, do instinto. O
mecanismo produtor das imagens cinematográficas é, por seu funcionamento
intrínseco, aquele que, de todos os meios da expressão humana, mais se assemelha à
mente humana, ou melhor, mais se aproxima do funcionamento da mente em estado
de sonho. (COUTO, 1993, p. 49).
100
Para o momento, cabe definir cinema e seu produto, a arte fílmica, uma
derivativa de desejos, pensamentos e sonhos, o poder de atingir realidades ilusórias que
permitem aos espectadores fazerem aflorar desejos e sentimentos em cenas sabiamente
inseridas pelo diretor fílmico, tudo a fim de agradar o público.
3.4. Obra literária e adaptação fílmica
A obra fílmica, por melhor que seja, nunca exigirá tanto da imaginação do
espectador quanto um livro. A obra literária narra, descreve aquilo que é proposto contar,
sendo que o maior problema que se encontra é contar com a boa interpretação do leitor. “O
texto escrito é sempre o referencial mais importante, onde se tem a possibilidade de voltar,
pensar, refletir” (ALMEIDA, 2004, p. 8).
Já na obra fílmica as coisas acontecem de maneira diferente, pois a
informação que se quer passar já vem elaborada e interpretada por alguém (adaptador, diretor,
roteirista), sendo que o espectador desfrutará de um resultado produzido e imaginado por
alguém.
Texto literário e programas televisivos são produções culturais em suportes físicos
diferentes que engendram e solicitam diferentes formas de fruição, apreensão e
decodificação. (REIMÃO, 2004, p. 40).
Nem todos os bons livros de que dispomos para adaptar resultam em bons
filmes; muitos são os problemas que se somam em uma adaptação; tem-se que ter em mente
principalmente quem o consome e ver com que olhos será analisado o produto, já que:
“Adaptar implica manter a essência da narrativa original.” (CAMPOS, 2007, p. 299). Se a
obra já é possuidora de fiéis seguidores e esses se depararem com um disparate muito grande
no que se denomina adaptação, de certo o diretor, ocasionador dessa causa, terá uma péssima
recepção com o conteúdo.
Possuímos uma infinidade de fontes adaptáveis, musicais, poemas, contos,
romances, experiências de vida real, enfim tudo se adapta e podemos julgar que adaptar seria
a maneira mais fácil de entrar no circuito cinematográfico, embora não seja bem assim, como
vemos os autores Howard e Mabley afirmarem:
101
A primeira vista pode até parecer um trabalho mais fácil do que desenvolver uma
história totalmente inédita. Entretanto, adaptar uma história tirada de outra fonte em
geral exige mais habilidade e maior compreensão do veículo cinematográfico do que
criar uma história nova. São pouquíssimas as histórias criadas para um outro
veículo, ou as histórias reais, que se prestam imediata e facilmente às necessidades
de um roteiro cinematográfico. (HOWARD; MABLEY, 1996, p. 36).
A fidelidade imposta pelo adaptador vai a seu rigor, sempre mantendo a
linha do público. O roteirista tem que estar atento tanto ao conteúdo quanto ao público. Como,
na adaptação, a essência da obra tem que ser mantida intacta, de nada priva o adaptador em
alterar o conteúdo, já que seria impossível tanta fidelidade à obra já que adaptar resulta em
transpor uma história para um tempo diferente, formato, gênero e principalmente, outra mídia.
Adaptar implica recompor uma narrativa a partir da sua trama principal, manter as
tramas secundárias mais importantes, manter tema e premissa, bem como a essência
dos perfis dos personagens centrais. Transpor uma estória para outro lugar ou tempo,
mudar o estilo, as estratégias ou o formato da narrativa original não descaracteriza o
trabalho como sendo adaptação. Feita a adaptação, nos créditos de atribuição virá:
Adaptado de (o nome da obra adaptada e o seu autor). (CAMPOS, 2007, p. 299).
Ao adaptar um livro para um filme, o adaptador se preocupará em condensar
a obra original em apenas pouco mais de uma centena de páginas de um roteiro. “Em
essência, expandir ou condensar estória significa criar, aglutinar ou cortar incidentes e
personagens – e a conseqüente criação, aglutinação ou corte das tramas que eles traçam.”
(CAMPOS, 2007, p. 296).
A obra literária trabalha com histórias e temas mais complexos, pois tem mais tempo
para explicar, dar informações, esclarecer e repetir, se necessário, de modo que o
leitor consiga acompanhar a história.[...] No caso dos filmes, via de regra é
necessário simplificar a história. Portanto, se você tiver uma linha de ação dramática
que demande uma grande dose de explicações adicionais, ou muitos personagens,
considere a hipótese de simplificar a história. (SEGER, 2007, p. 136).
Há uma gama de material adaptável; pode variar a documentários,
biografias, produto fílmico ou literário, todos possuem uma essência em comum: baseiam-se
em arquivos históricos.
As gravações de imagens em movimento constituem o arquivo da história de cada
nação e, além disso, a herança cultural das mesmas. Não se restringe esta afirmação
unicamente às gravações de imagens em movimento de caráter informativo.
Qualquer gravação de imagens em movimento forma parte desta herança cultural da
humanidade. Trata-se de programas noticiosos de televisão, por exemplo, de eventos
esportivos, de interpretações artísticas, de teatro, comédia ou qualquer gênero de
102
gravações, sem importar sua classe ou qualidade, todas formam parte integral da
herança que corresponde à humanidade. (CHAVES, 1987, p. 279).
O fato de narrar histórias, seja verossímeis ou fictícias, recai na base que
sustenta a cultura humana, que desde o primórdio dos tempos já era utilizada essa técnica.
O cinema e a TV resultam de múltiplos e complexos entrelaçamentos entre as
trajetórias da ciência, da tecnologia e da arte. A voz longínqua que narrava ao pé do
fogo se transformou no narrador do papel impresso, passou pelas ondas do rádio,
deu vida a seres em movimento no cinema e na TV, na mimesis mais perfeita do
real, na fascinante mescla de som, palavra, ruído, música, movimento, cor,
enquadramento, luz, angulações, edição... (BALOGH, 2002, p. 194).
Hoje em dia, as telas da TV servem para poder disseminar uma idéia, um
relato, fazer rememorar uma obra literária consagrada ou outro conteúdo adaptável, algo que
se queira compartilhar com a massa provida ou desprovida de cultura.
3.4.1. A montagem do elenco
Afinal, fazer a montagem de um filme é uma tarefa fácil? Para essa resposta,
partiremos do prisma de um escritor. Quando ele vai criar uma ficção, antes que ela se
desenvolva, busca-se selecionar o melhor elenco, o melhor plano de fundo, assim como os
melhores personagens para que o produto final seja de boa qualidade e de boa coerência.
Antes que haja a escolha dos personagens para uma determinada cena, por
exemplo, eles passam por uma seleção, pois o escritor busca agrupar relações intertextuais
com experiências vividas, fazendo assim o personagem ganhar traços característicos
verossímeis. É nesse momento de fusão entre a vivência do escritor com a criação ficcional
que ocorre a montagem do personagem. Ao passo que o criador desenvolve sua criação criase um espaço para que a narrativa possa se desenvolver e conferir vida à sua ficção.
A montagem então se mostra presente em todo o desenvolver de uma arte,
seja literária quanto cinematográfica. Pelas observações elaboradas por Leone e Mourão, a
montagem não é apenas a última etapa de um processo, e sim o conjunto inteiro que a
compete, abrangendo desde o inicio de uma idéia até o desenrolar final da mesma.
[...] a montagem é a articulação de três etapas distintas: a escritura do roteiro, que
também chamaremos de peça cinematográfica, a realização, que também
103
chamaremos de encenação da peça, e a seleção e organização dos planos, buscando
uma aproximação estrutural com o roteiro; a isso também chamaremos de montagem
propriamente dita. (LEONE; MOURÃO, 1993, p. 15).
Todavia, para que um trabalho cinematográfico chegue a ser desenvolvido,
faz-se necessário a presença de um roteirista. “O roteiro é o esboço de uma narrativa que será
realizada através de imagens e sons numa tela de cinema ou TV.” (CAMPOS, 2007, p. 328).
Sem um material escrito não se pode dizer nada. O roteirista, para que
escreva um roteiro, precisa antes de tudo ser um bom escritor, caso contrário ele não será
agraciado no final por atingir bons resultados.
“Um bom roteiro não é garantia de um bom filme, mas sem um bom roteiro
não existe com certeza um bom filme.” (COMPARATO, 1995, p. 20).
Com isso o escritor e/ou roteirista, para que constitua uma trama envolvente
acarretada de suspense, tensão, humor ou terror, para que mantenha o interesse do espectador
necessita de uma boa elaboração do processo que compete à criação, elaboração e montagem
da obra.
E, além de escritor, o roteirista necessita compreender em profundidade o processo
cinematográfico nas suas três etapas básicas. Um som articulado a uma imagem
pode sintetizar determinada situação dramática que se perderia caso fossem
articuladas numa seqüência qualquer. (LEONE; MOURÃO, 1993, p. 24).
Além de compreender todo o processo cinematográfico, para que se possa
elaborar um produto visual, é necessário a boa formação da equipe, que engloba vários
membros que permitirão a produção fílmica. Deve de inicio ser feito um contrato de
produção, de direitos autorais e vários outros quesitos, assim como cumprir com o prazo
estipulado para o término da obra, enfim todos que participam da produção fílmica. “[...] a
responsabilidade do produtor para com os demais co-autores, artistas, intérpretes ou
executantes, no caso de co-produção da obra cinematográfica” (CHAVES, 1987, p. 69).
Tudo se desenvolve e acontece pelo alvará do diretor, que aprovará ou não a
composição da obra.
[...] devem estar prontos roteirista, diretor, equipe técnica e elenco devem estar
preparados para dar vida ao projeto. A filmagem pode começar quando tudo estiver
pronto: o roteiro foi finalizado e distribuído, os cenários foram construídos, os
artistas ensaiados, a equipe técnica contratada e os equipamentos alugados e
afinados para o trabalho, todas as locações foram escolhidas e asseguradas e todos
os outros detalhes foram considerados. (KELLISON, 2007, p. 185).
104
O trabalho é intenso e se torna necessário que sejam seguidas determinadas
etapas para que tudo corra da melhor maneira possível. Deve também haver e respeitar um
cronograma de filmagem; isso pode ser dado utilizando o storyboards (cenas narradas em
quadros) e um software para que se possa criar um cronograma eficaz, podendo ser calculado
o que será filmado, quando se filmará e respectivamente onde se filmará. O final apresentado
norteará todos os envolvidos no elenco.
Comparato (1995) define que os produtores têm, além de se ater às
características acima citas, levar em consideração três aspectos fundamentais, correspondentes
ao Logos, Pathos e Ethos. Que correspondem significadamente a:
A ferramenta de trabalho que dará forma ao roteiro e o estruturará é a palavra. O
Logos é essa palavra, o discurso, a organização verbal de um roteiro, sua estrutura
geral.
Um roteiro, a sua história, provoca identificação, dor, tristeza. Pathos é o drama, o
dramático de uma história humana. É, portanto, a vida, a ação, o conflito quotidiano
que vai gerando acontecimentos. O pathos afeta as pessoas que, arrasadas pela sua
própria história, quase não são responsáveis pelo que lhes acontece – o seu drama -,
nem pelo que as constrói – a sua tragédia -, convertendo-se inclusive em motivo de
divertimento – a sua comédia – para os outros.
A mensagem tem sempre uma intenção. É inútil tentar fugir à responsabilidade de a
emitir. Tudo é escrito para produzir uma influencia. É o ethos, a ética, a moral, o
significado último da história, as suas implicações sociais, políticas, existenciais e
anímicas. O ethos é aquilo que se quer dizer, a razão pela qual se escreve. Não é
imprescindível que seja uma resposta; pode ser uma simples pergunta.
(COMPARATO, 1995, p. 21).
Ninguém pode escrever algo daquilo que não se conheça o significado,
conhecer a palavra e seu significado, saber o que ela ocasionará no assistido, quais as
sensações que causará e o porquê de se veicular, qual o motivo que leva a se produzir tal
produto. Todas essas medidas, se levadas com afinco, permite ao diretor se precaver de três
erros comumente encontrados em uma obra audiovisual: erro no roteiro, erro na direção ou
erro na montagem.
Continuando, Comparato (1995) adiciona também a necessidade de se ter
em mente outros fatores para que a obra não fracasse: idéia, conflito, personagens, ação
dramática, tempo dramático e por fim unidade dramática.
105
3.5. A adaptação como arte
[...] o cinema vem prestando um desserviço à literatura. Termos como
“infidelidade”, “traição”, “deformação”, “violação”, “vulgarização”, “adulteração” e
“profanação” proliferam e veiculam sua própria carga de opróbrio. Apesar da
variedade de acusações, sua motriz parece ser sempre a mesma – o livro era melhor.
[...] Uma adaptação é automaticamente diferente e original devido à mudança do
meio de comunicação. A passagem de um meio unicamente verbal como o romance
para o meio multifacetado como o filme, que pode jogar não somente com palavras
(escritas e faladas), mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens fotográficas
animadas, explica a pouca probabilidade literal, que eu sugeriria qualificar até
mesmo de indesejável. (STAM, 2008, p. 20).
O ato de adaptar uma obra fílmica consta em transpassar um texto verbal em
um texto não verbal; é a mudança de um texto já preexistente. “[...] a adaptação é um novo
original, onde o adaptador busca o equilíbrio entre preservar o espírito do original e criar uma
nova forma.” (SEGER, 2007, p. 26).
Quando se busca por materiais adaptáveis busca-se sempre por materiais
leves, que se tornam de fácil acesso ao adaptador, pois obras literárias muito extensas podem
se tornar inviáveis, quando não impossíveis para a prática adaptativa. “[...] a adaptação é um
processo de transição ou conversão de uma mídia para outra. Assim, o material original
sempre oferecerá uma certa resistência à adaptação”. (SEGER, 2007, p. 17).
Adaptam-se autores muito prestigiados ou muito populares, ou ambos
simultaneamente [...] As adaptações de época exigem uma pesquisa prévia
ponderável e, em muitos casos, recursos técnicos a serviço dessa exatidão e
fidelidade ao tempo representado. (BALOGH, 2002, p. 130).
Ao transcodificar uma obra literária para fílmica, devido ao pouco tempo
disposto pelo recurso cinematográfico, busca-se condensar ou mesclar a história em uma
mesma trama, acoplando o conteúdo original. “A arte da adaptação fílmica consiste, em parte,
na escolha de quais convenções de gênero são transponíveis para o novo meio, e quais
precisam ser descartadas, suplementadas, transcodificadas ou substituídas.” (STAM, 2008, p.
23). Ou ainda pela máxima de Machado (2005):
E se lhes parece possível dizer que não existem mais romances, nem poemas, nem
tragédias ou comédias, resta, todavia, uma categoria que abrange todos, o livro, pólo
de permanência e de resistência de uma cultura, quiçá de uma civilização, de uma
Weltanschauung que recusa a integrar-se passivamente no terreno de outros meios
de expressão, como o disco, o cinema, a televisão, tudo isso que parece exprimir
106
uma outra cultura, uma outra economia e uma outra visão de mundo. (MACHADO,
2005, p. 68).
A maior ocorrência de deslize que transforma obras densas em fiascos é a
perda da essência da mesma. Uma obra de grande amplitude tem que ser encaixada
perfeitamente bem dentro de um filme; a condensação da obra deve ocorrer sutilmente.
A adaptação não precisa necessariamente conter tudo que está no livro. Mesmo
livros com muita ação têm capítulos monótonos ou vazios [...] Para o cinema os
romances grandes, calhamaços, sempre dão péssimas adaptações devido à excessiva
sintetização. A intenção aí é mais comercial, para aproveitar o êxito de algum best
seller ou a fama acumulada de algum romance consagrado. (REY, 2001, p. 59).
Quando foi cogitado, em 2001, o que viria a ser a adaptação de uma célebre
obra literária, O Senhor dos Anéis, a muito causou alvoroço e criaram-se expectativas entre os
fãs da obra literária do que viria a resultar a Terra-média adaptada às telinhas do cinema.
Há uma questão que há muito é debatida sobre a arte adaptativa: a
fidelidade.
Porque uma adaptação fílmica deveria ser “fiel” a um romance que alega ser “fiel”
ao fato, mas que, na verdade, é uma fabricação? Por que exigir “fidelidade” somente
a partir do ponto de uma trajetória maior em que o romance se transforma em filme?
(STAM, 2008, p. 97).
Ou ainda: “Orson Welles acreditava em adaptações infiéis. Por que adaptar
uma obra, dizia ele, se você não pretende modificar nada nela?” (STAM, 2008, p.72).
Dizer que o livro é melhor que o filme é assunto há muito investigado e
deveras polêmico, contudo, comparar ambas as obras se torna um trabalho desnecessário, já
que uma mídia é extremamente diferente da outra e que o texto de partida se transforma,
tornando uma nova obra, fruto de um novo autor, autor esse que decidirá, pela sua visão, o
que virá a se tornar material filmável ou não, podendo ele piorar ou até mesmo melhorar o
conteúdo original. A adaptação é uma recriação, uma arte que tem como objetivo pelo
roteirista, buscar no texto original, exercer a experiência imagética, abrindo novas
perspectivas de criação, permitindo novas leituras de um mesmo conteúdo.
Por outro lado a adaptação, mesmo excelente, sempre desagrada os que dela
esperavam uma fidelidade maior. O público que leu o livro deseja vê-lo todo na tela.
Notando falta de uma cena ou dum personagem sem importância, fica contra. [...] A
verdade é que certas adaptações ao pé da letra, fidelíssimas, são péssimas. Como o
escritor escrever um livro e não um roteiro de cinema ou tevê, precisa haver
adaptação, isto é, uma forma de contar para a tela, na linguagem, ritmo e
107
especificidade que ela determina. Isso implica em mudar ordem de cenas, acelerar
certas seqüências, resumir diálogos, valorizar ou não personagens, eliminar excessos
e acentuar as linhas de convergência para o final. (REY, 2001, p. 60).
Buscando uma obra para a prática da adaptação, busca-se por material que
tenha um bom visual e dinamismo, uma história envolvente e personagens atraentes. Histórias
adaptadas normalmente são as que proporcionam maiores sucessos no cinema.
Partindo da máxima: “Os maiores sucessos do cinema geralmente são
adaptações” (SEGER, 2007, p. 17), vemos que os produtores e executivos estão buscando
cada vez mais a prática dessa arte como fonte de material cinematográfico porque é produto
comercialmente mais viável devido ao fato de já possuir um público cativo para a referida
obra. Adaptar uma obra é um trabalho no mínimo caro. Se paga primeiro pelos direitos
autorais, depois para a escrita de um bom roteiro, tem que analisar qual o verdadeiro potencial
de adaptabilidade do material original e ainda detectar se a elaboração do roteiro foi coerente,
se fez a melhor tradução possível do material original. Neste ponto, o diretor ou o produtor
buscam visar à adaptação como fonte acessível ao grande público consumidor. “[...]
entretenimento não é só show, mas também negócio, e sendo assim, os produtores precisam
estar razoavelmente seguros de que conseguirão obter retorno sobre seus investimentos.”
(SEGER, 2007, p. 21).
3.5.1. Problemas enfrentados na adaptação
A grande dificuldade encontrada quando se busca adaptar um conteúdo para
as telas do cinema é perder a essência do material original. Modificações tornam-se
necessárias para essa prática, ainda mais quando a obra original se trata de um conteúdo
literário épico, material que permite o íntimo imaginativo de cada um transbordar.
“A ciência e a tecnologia transformaram os mitos em realidade. A arte os
renova a cada dia, a cada obra, a comunicação os difunde numa expansão sempre maior e
mais poderosa.” (BALOGH, 2002, p. 194). O material visual tem que adentrar nesse meio,
sendo capaz de no mínimo igualar, quando não suprir a necessidade do homem. Busca
equipar os dois veículos, de conteúdo literário e fílmico, satisfazer “[...] às nostalgias secretas
do homem moderno que, sabendo-se decaído e limitado, sonha revelar-se um dia um
“personagem excepcional”, um “herói” (ELIADE, 2000, p. 159). Compreende-se que se torna
108
então complicadíssimo adentrar numa adaptação mítica, porque pela leitura de conteúdo
mítico as pessoas possuem a capacidade de uma saída do tempo real para um atemporal.
O tempo que se “vive” ao ler um romance não é, evidentemente, o tempo que o
membro de uma sociedade tradicional reintegra, ao escutar um mito. Em ambos os
casos, porém, há a “saída” do tempo histórico e pessoal, e o mergulho num tempo
fabuloso, trans-histórico. O leitor é confrontado com um tempo estranho,
imaginário, cujos ritmos variam indefinidamente, pois cada narrativa tem o seu
próprio tempo, específico e exclusivo. O romance não tem acesso ao tempo
primordial dos mitos; mas, na medida em que conta uma história verossímil, o
romancista utiliza um tempo aparentemente histórico e, não obstante, condensado ou
dilatado, um tempo que dispõe, portanto, de todas as liberdades dos mundos
imaginários. (ELIADE, 2000, p. 164).
O adaptador de uma obra literária para fílmica busca oferecer pelo recurso
audiovisual a oportunidade do telespectador desfrutar do imaginário como algo real e vívido.
“O cinema e a TV, são instrumentos incríveis para transformar em realidade a substância da
qual os sonhos são feitos”. (BALOGH, 2002, p. 193). “Segundo Bertrand Russell, “ninguém
poderá compreender a palavra “queijo” se não tiver um conhecimento não-lingüístico do
queijo” (JAKOBSON, 1995, p. 63). Tem que conferir historicidade no material visual, o que
se lê miticamente é fácil de ganhar vida, a construção mental que se dá é instantânea; no
visual, tem que realmente ganhar vida para tornar-se verossímil e plausível a composição da
obra.
Outra agravante é a amplitude da obra. Tratando-se de conteúdo riquíssimo
de detalhes como a obra analisada aqui, o adaptador necessita não perder detalhes que podem
deixar a obra descompensada.
No tocante à temporalidade, o discurso audiovisual tem recursos muito mais restritos
do que a literatura. A literatura, por servir-se da língua, traz nos tempos verbais
nuanças temporais muito precisas. O cinema só dispõe das três temporalidades
básicas: presente, passado e futuro. Há o consenso de que o fluxo das imagens
ocorre sempre no presente no cinema. Cabe lembrar que a imagem fílmica, pelo
movimento, torna atual tudo o que é filmado. (BALOGH, 2002, p. 74).
O maior desafio é conseguir reunir apenas elementos essenciais da obra.
Condensar os excessos da obra literária, mas deixando as características dela. Para isso,
roteirista, diretor e produtor devem se atentar minuciosamente nas peculiaridades das ações
que ocorrem nas cenas.
Muitos conteúdos adaptados buscam pela alteração dos finais originais, caso
a equipe responsável sinta a necessidade de fazer, o fazem, devido ao fato de que fins felizes
possuem maior aceitação do público. “Ao fazer a transição para o cinema, muitos livros ou
109
peças que serviram como fontes de adaptações tiveram seus finais alterados, a fim de apelar
para o público mais amplo do cinema e da televisão.” (SEGER, 2007, p. 23).
“A pós-produção pode ser o aspecto menos compreendido do domínio do
produtor. É nessa fase que as cenas e o áudio são editados e mixados para criar uma obra
coerente e com fluidez.” (KELLISON, 2007, p. 215). O cinema se vale muito do recurso
áudio e efeitos especiais. A combinação desses fatores aplicados na obra erroneamente acaba
por destruir todo o conteúdo elaborado.
Todo o recurso sonoro, seja musicais, ruídos e até falas dos personagens, é
praticamente a essência do filme, pois compõe a trilha sonora dele e permite ao espectador
sentir a sensação impressa em alguma cena.
O som é também um elemento decisivo da imagem pela dimensão que lhe
acrescenta, ao restituir o ambiente dos seres e das coisas que percebemos na vida
real: nosso campo auditivo, com efeito, engloba a todo momento a totalidade do
espaço ambiental, enquanto o nosso olhar não consegue. (MARTIN, 1990, p. 22).
Além de permitir o espectador a sentir as sensações impostas pela equipe
elaboradora do material fílmico, ela pode também invadir a mente da pessoa e acabar por criar
imagens mentais que se moldam ao imaginário.
Exemplo de aplicabilidade na obra é marcado todas as vezes que o
personagem Frodo se depara com o Anel. Nesse momento foi escolhido pela utilização da
diminuição musical e na diminuição da velocidade dos movimentos (câmera lenta) referindo
ao espectador detectar uma espécie de transe e tensão que aquele objeto agrega no portador.
Há também a utilização do maior recurso da atualidade, os efeitos especiais
digitalizados.
Toda essa odisséia intelectual está dirigida no sentido de incrementar o “realismo”
da imagem digital, possibilitando obter matematicamente seres e paisagens flexíveis,
dotados de “dobras” e “torções” semelhantes àquelas que encontramos no mundo
natural ou manufaturado. Trata-se verdadeiramente do delírio do realismo
intelectual, uma aposta no sentido de descrever da maneira mais exata e rigorosa a
aparência visível do mundo, inclusive nos seus aspectos mais resistentes à
formalização. (MACHADO, 2001, p. 71).
Para esse grande aparato, na adaptação do Anel foi-se utilizado ricamente
dos efeitos visuais, haja vista a criação da criatura Smeagol, que é a imagem projetada e
criada computadorizada.
110
“A computação gráfica tem oscilado, em sua breve história, entre duas alternativas
distintas: ou ela é solicitada para simular o mundo “natural” (que inclui também o
mundo “artificial” criado pelo homem), ou então para simular a própria imagem.
Uma alternativa não implica necessariamente a outra. Uma coisa é construir, sob a
forma gráfica, uma “realidade” simulada, reproduzindo em ambiente experimental e
estilizando fenômenos e comportamentos do mundo físico; outra é criar imagens que
“parecem” reais, segundo o modelo do realismo “cientifico” da fotografia, padrão de
referencia privilegiado das imagens digitais. Às vezes, as duas coisas podem se
fundir numa só.” (MACHADO, 2001, p. 59).
Assim sendo, “[...] poderíamos dizer que toda imagem, analógica ou digital,
é modelo do possível” (FAUSTO; PINTO, 1996, p. 277).
3.5.2. A obra adaptada
A obra O Senhor dos Anéis que a tantos fascinava, de caráter mitológico,
recheada de uma historicidade e plausibilidade, foi cogitada para uma adaptação. Mesmo que
o autor literário seja veemente contra uma adaptação: (“Acredito que o livro seja deveras
inadequado para “dramatização”. (CARPENTER, 2006, p. 219)), ela ocorre. Houve a
transmissão no programa Third Programme da BBC durante 1955 e 1956, onde Tolkien
comenta com um cineasta que o questiona de transformar a saga em histórias de desenho
animado:
No que me diz respeito pessoalmente, recebo de bom grado a idéia de um filme
animado, com todo o risco de vulgarização; e isso independente do brilho do
dinheiro, embora à beira da aposentadoria essa não seja uma possibilidade
desagradável. Acho que considerarei a vulgarização menos dolorosa do que a
idiotização alcançada pela B.B.C. (CARPENTER, 2006, p. 246).
A produção fílmica animada foi proposta por Morton Grandy Zimmerrnan e
Tolkien o classifica como outro fracasso:
Devo dizer que Zimmerman, o construtor dessa trama, é deveras incapaz de extrair
ou adaptar as “palavras faladas” do livro. Ele é apressado, insensível e impertinente.
Ele não lê livros. Parece-me evidente que ele folheou o S.A. apressadamente e então
construiu sua trama a partir de lembranças parcialmente confusas e com o mínimo
de referencias ao original. [...] Não estou nem um pouco feliz com a tolice e
incompetência extremas de Z e sua completa falta de respeito pelo original.
(CARPENTER, 2006, p. 255).
111
Outra adaptação ocorre em 1978, produzida por Ralph Bakshi. Houve uma
grande descaracterização da obra, falta de publicidade e de explicação da obra adaptada,
como, por exemplo, que o filme tratava apenas da primeira parte do livro. Após o lançamento
lastimável do filme, o que viria a se tornar o segundo volume nem chegou a ser produzido.
[...] um trabalho que, na falta de uma tecnologia adequada de efeitos especiais,
tentou reproduzir os seres, as paisagens e os eventos da Terra-média através da
técnica de rotoscoping – filmando atores e sobrepondo desenhos animados às
imagens, em cada fotograma. Apesar de conseguir por esse meio uma razoável
naturalidade nos movimentos, o filme falhou em muitos outros pontos. O aspecto
visual dos personagens era insatisfatório; nomes foram alterados sem razão aparente
(Saruman transformou-se em “Aruman”); a obra não conseguiu transmitir a
amplidão física e histórica das vistas da Terra-média. Pior que tudo, o filme
interrompe-se mais ou menos na metade do livro. (KYRMSE, 2003, p. 139).
Compreender os aspectos da obra literária e permitir não serem perdidos em
essência numa adaptação acabou mostrando ser então um trabalho impraticável. A obra
literária é muito densa e possui uma variedade imensa de pequenos detalhes que compõem a
sua trama. Como a história da saga não é inteligível sozinha, sendo separada apenas pela
quantidade do conteúdo (A Sociedade do Anel possui 434 páginas, As Duas Torres com 364
páginas e O Retorno do Rei, 431 páginas.), compilar todo esse material exigiria, no mínimo,
muita capacidade de transposição midiática e conhecimento profundo do conteúdo.
“Elen síla lúmenn´ omentielvo, uma estrela brilha sobre a hora do nosso
encontro” (TOLKIEN, 2000a, p. 83). A hora de um novo encontro chega. A obra fora
cogitada novamente para uma adaptação. Dessa vez, por um neozelandês, apreciador e
apaixonado pela obra tolkeniana tenta desbravá-la, lançando-a novamente às telas
cinematográficas.
Demorou 50 anos para que alguém tivesse coragem de adaptar a obra. Então
o diretor, roteirista e produtor cinematográfico, Peter Jackson, que aos 18 anos já se mostrava
grande fã, lança-se ao desafio de adaptar aquilo que todos cobiçavam e não apresentavam
capacidade em fazê-lo. O projeto teve início em 1995, quando Jackson apresenta um prólogo
de meia hora aos executivos da New Line Cinema. A apresentação foi tão boa que eles
aprovaram o projeto que, se contivesse algum erro, acabaria com a carreira do diretor, pois
esse tinha como objetivo fazer algo nunca antes feito, adaptar toda a obra simultaneamente e
ininterruptamente até a obtenção do produto final.
Foi o projeto de cinema mais caro e mais difícil da história. Ninguém havia
filmado três grandes filmes de uma só vez. (demorou 40 meses). O maior comprometimento
112
foi de manter a terra-média de Tolkien intacta. Eles usaram o material centenário que possui
50 gravuras feitas por Alan Lee (artista plástico) e trouxeram o ilustrador de Tolkien, John
Howe (as imagens congeladas partem desse último ilustrador). Peter Jackson fez com que os
dois criassem o cenário do Condado.
O Senhor dos Anéis é a produção que, pela primeira vez na história filmou
uma trilogia de uma única vez. Se adaptar uma única obra já é deveras complicado, produzir
as três simultaneamente apresentou dificuldades exacerbantes ao diretor, porém esse não se
preocupou e fez história nessa sua obra.
Muito mais ambicioso – na verdade algo único, em sua magnitude, na história do
cinema – foi o projeto do neozelandês Peter Jackson, que filmou de uma só vez e
lançou em três etapas – em 2001, 2002 e 2003 – seu próprio Senhor dos Anéis. Não
apenas pela imensa publicidade dos filmes, mas também pelo merchandising de
todos os produtos correlatos, esse projeto atraiu a atenção do mundo e transformou
em fãs de Tolkien muitas pessoas que até então nunca tinham ouvido falar dele. No
mínimo este mérito tem a produção de Jackson: implantou Tolkien no imaginário
público e fez muita gente interessar-se por suas obras também no papel. (KYRMSE,
2003, p. 140).
O mundo criado por Tolkien, todos os povos, planícies, geografia, enfim,
esse reino fantástico cativante e que mantém sempre um caráter verossímil, foi analisado, para
que na adaptação fosse mantida a verdadeira essência da Terra-média, um mundo criado na
realidade ou nos limiares da realidade. O maior desafio foi Jackson traduzir em imagens todas
essas descrições que o autor permite ao espectador, criando uma ilusão de realidade existente
na obra e aguçando o apetite novamente pela releitura da obra pelos adeptos (o livro foi lido
por mais de 100 mil pessoas) e despertando a curiosidade da nova legião de fãs que a
adaptação ocasionou.
Até que ponto os filmes são puramente produções cinematográficas, ou será que
chegam a ser corretas dramatizações filmadas da obra de J. R. R. Tolkien? [...] Os
filmes representam um mergulho na Terra-média – talvez não exatamente na Terramédia de Tolkien, mas na visão de uma Terra-média completa, e historicamente
verdadeira em seus mínimos detalhes visuais. Basta olhar com atenção para vê-los:
da cerâmica de cozinha ao armamento de Gondor, passando pelos arreios das
montarias, pelos textos em caracteres élficos que apenas se entrevêem quando um
personagem folheia um pergaminho, e – é claro – pela paisagem estonteante.
(KYRMSE, 2003, p. 140).
Para ser escolhido o local da filmagem, foi preciso um trabalho minucioso
até que se definiu pelas planícies da Nova Zelândia. Com a ajuda de Alan Lee e John Howe, a
retratação da Terra-média virou uma verdadeira réplica do conteúdo original. Para que as
cenas não ficassem com aspecto de “montagem”, Jackson teve até a preocupação em um ano
113
antes de iniciar as filmagens, de estruturar a vila dos Hobbits. Foram plantados cogumelos,
plantas, os jardins, tudo para dar a sensação de habitação há anos. Partindo da premissa que
um dos principais personagens é a própria Terra-média, pois ela tem vida, conseguiu-se
manter viva a magia e encanto que a obra literária exprime.
Em uma entrevista, o jornalista Bill Moyers questiona o estudioso Joseph
Campbell sobre por que há tantas histórias de heróis na mitologia. A resposta de Campbell
permite ao leitor compreender o ensejo em Peter Jackson se lançar e querer reproduzir algo
tão grandioso e completo como a saga do Anel.
Porque é sobre isso que vale a pena escrever. Mesmo nos romances populares, o
protagonista é um herói ou uma heroína que descobriu ou realizou alguma coisa
além do nível normal de realizações ou de experiência. O herói é alguém que deu a
própria vida por algo maior que ele mesmo. (CAMPBELL, 1990, p. 137).
Como “O filme é construído e não filmado.” (CAMPOS, 2007, p. 327),
Peter Jackson atentou minuciosamente sobre detalhes, tendo o cuidado de retratar, por
exemplo, coisas pequenas que muitos teriam como irrelevantes, mas que permitem mais e
mais a fidelidade do original, tais como adornos nos botões das roupas, as tocas com suas
características internas e externas, assim como insígnias gravadas. Apesar do conceito de
fantasia, o filme foi ricamente trabalhado para que se conseguisse exprimir uma historicidade
realística humana.
Não creio que Peter Jackson possa ser acusado de pecar naqueles pontos que Tolkien
considerava importantes. Ele pode não ter reproduzido a letra do livro, mas sem
dúvida capturou seu espírito. Nas palavras de Niggle: “É uma dádiva!”. (KYRMSE,
2003, p. 144).
O grande diferencial que o diretor buscou aplicar na adaptação foi na
escolha e seleção do elenco. Como “O personagem é o grande elo entre o autor e o público”.
(REY, 2001, p. 27), Jackson buscou por atores não consagrados para que a impressão
exprimida por outras obras não viesse ocasionar a descaracterização do personagem,
mantendo o foco principal na história.
A escolha da compactação do material literário foi sabiamente feita. Muitos
personagens presentes no livro foram retirados e outros ganharam maiores destaques. A
escolha de mudanças nas ordens das cenas foi alterada visando sempre manter o espectador
preso à ação movimento do filme e outro diferencial no filme se da na profundidade das
músicas que ficaram a cargo de Howard Shore, que o fez com a maior maestria, permitindo o
114
espectador ser transportado por ela. Com isso, o filme conseguiu reproduzir aquilo que a
imaginação já havia criado na mente da pessoa por meio da leitura.
O grande diferencial que conferiu a Jackson transcodificar o material
literário no grande sucesso fílmico se deu pela utilização da equipe Weta Workshop ltd, de
Richard Taylor. Todos os efeitos concernidos pela Weta foram usados de maneira comedida,
sem tornar surreal ou cansativo, muito menos capazes de retirar a atenção da história.
Foi destinada a eles a responsabilidade da criação de miniaturas de
cidadelas, da maquiagem (“fazer” os pés dos hobbits levava cerca de duas horas), e das
criaturas (Gollum) e efeitos especiais. A criação das armaduras e armas (que totalizam 48 mil
peças) era grafada de adornos preservando a cultura expressa daquela época imaginada.
O maior desafio foi a criação da raça orcs. Para cada orc foram elaborados
dez esculturas diferentes. Todos os atores (para que fossem eleitos orcs) tinham que ser
lutadores de artes marciais, faixa preta para que a luta fosse real e menos perigosa.
Todas essas escolhas permitiram Jackson ser até tachado de hobbit, pois
conseguiu retratar a natureza da criatura e todo o mundo plausível de Arda.
A adaptação de uma obra literária ao formato cinematográfico implica sempre algum
rearranjo do material. Precisamos saber se este foi adequado. Todos sabemos que
um filme não é, nem pode ser, equivalente ao livro do qual foi adaptado: trata-se de
meios de expressão artística demasiado diversos. É evidente que o filme – qualquer
filme – não poderia refletir exatamente a obra literária. O filme não é o livro. Como
ponto de partida, cada um de nós tem direito à sua própria visão do mundo de
Tolkien, e também Peter Jackson tem a dele. É necessário lembrarmo-nos de que
também ele é um fã de Tolkien, que ama seu material e leva seu trabalho muito a
sério. Ele empreendeu um enorme esforço para nos transmitir a sua leitura
idiossincrática (admitamos, não tão diferente daquela da maioria de nós). Devemos
convir que alguns locais, como Lothlórien, e alguns personagens, como Galadriel,
são “impossíveis” de retratar; no mínimo, cada retrato ensejará discussões entre os
que “estiveram lá” (como eu estive).” e eu também. [...] “É bem verdade que grande
parte do material narrativo foi condensada, removendo trechos significativos,
citando falas em contextos diferentes e às vezes compactando dois personagens em
um, ou errando ao representar suas motivações. O que restou depois dos cortes foi
frequentemente elaborado muito além do original. Com isso, perdeu-se parte da
continuidade narrativa, correndo o risco de reduzir a história a uma série de
incidentes “amplificados” e ao mesmo tempo obscurecendo a profundidade histórica
do Mundo Secundário. Porém o espetáculo visual – como já foi dito – é
incomparável. Muitas cenas foram diretamente extraídas de desenhos do próprio
Tolkien; por exemplo, Bolsão, a toca de Bilbo e Frodo Bolseiro, tem o aspecto exato
que o autor imaginou. Também o elenco foi muito bem escolhido, digamos o que
quisermos. Na interpretação, os atores em geral conseguiram identificar-se
profundamente com seus personagens, e trabalharam com muita competência e amor
pelos papéis. [...] “caso o filme fosse rodado algum dia (o que parecia uma hipótese
altamente improvável, tanto pelo reduzido tamanho do público-alvo como pela
tecnologia necessária). Hoje conseguimos perfeitamente enxergar os personagens
através dos atores. Vão ficando cada vez mais sujos e rotos à medida que a narrativa
avança; também enfrentam suas aventuras com honestidade emocional. Cada um
deles é uma pessoa perfeitamente crível – talvez não exatamente o Saruman ou
Faramir do livro, mas certamente uma pessoa completa.[...] O filme faz com que nos
115
maravilhemos com a grandeza de sua visão; recordar-nos como é extraordinário que
tais histórias possam existir. (KYRMSE, 2003, p. 142).
Para finalizar, a obra repercutiu tão positivamente que acabou por consagrar
o diretor pela sua capacidade surpreendente em suprir em poucas horas (três horas cada filme
da trilogia) a estrondosa magnitude da literatura de Tolkien. As premiações foram:
2001 – vencedor de quatro Oscar (melhor fotografia, melhor efeitos visuais, melhor
maquiagem, melhor trilha sonora original)
2002 – vencedor de dois Oscar (melhor edição de som e melhores efeitos visuais)
2003 - vencedor de onze Oscar (melhor filme, melhor diretor, melhor direção de arte,
melhores efeitos visuais, melhor roteiro adaptado, melhor edição, melhor figurino, melhor
maquiagem, melhor som, melhor trilha sonora, melhor canção)
Basta agora esperarmos pela obra O Hobbit, também dirigida pelo
ocasionador desse estrondoso sucesso e de que se espera manter a mesma essência da saga
que arrebatou multidões.
3.6. O texto adaptado
Numa obra literária, o autor pode utilizar demasiadamente de variados
personagens, tanto principais como secundários, contudo, num filme a presença de muitos
personagens traz confusão à obra. Podem-se utilizar personagens secundários para certos
desfechos, pois eles auxiliam a completar a obra, porém personagens principais devem ser
utilizados restritamente, mantendo uma média de sete, após isso, torna-se difícil acompanhar a
obra.
No cinema, a técnica de combinar personagens pode ajudar a aperfeiçoar e
concentrar o foco da linha de ação dramática. [...] Combinar personagens não
significa necessariamente juntar as qualidades de dois personagens em um só. Pode
significar cortar um dos personagens, preservando dele somente uma fala ou uma
ação, que é passada a outro personagem. (SEGER, 2007, p. 158).
A seguir serão traçados elementos presentes no primeiro volume da saga
do anel: O senhor dos Anéis: a sociedade do anel (2000a) com os da adaptação de 2001
elaborada pelo cineasta Peter Jackson, onde se observarão os aspectos preservados do
romance para a obra adaptada, os elementos que ficaram ausentes na conversão fílmica, assim
116
como os elementos adicionados na obra cinematográfica. Foram apontados também as
personagens que foram cortadas e combinadas no decorrer da transcodificação, como o caso
da personagem élfica, Arwen e o elfo Glorfindel.
3.6.1. Aspectos preservados do romance
Tratando de uma obra adaptada, inúmeros são os elementos preservados do
original para a conversão, ainda mais se a obra adaptada perder a essência do conteúdo
primeva, certamente o resultado do trabalho tornar-se-á um fiasco.
As ordens dos elementos podem estar alteradas, contudo, o conteúdo é o
mesmo, assim como cortes ou acoplamentos de personagens e cenas, que resultam para a
eficácia da estética fílmica. O filme necessita condensar a obra original, o tempo que este
veículo dispõe em uma apresentação ao público que o consumirá é restrito e depende do
adaptador conciliar as cenas, condensando-as, resumindo-as e mantendo sempre o suspense
em máxima a fim de agradar e manter a atenção do espectador. A seguir veremos, por meio
do prisma condensado, as principais características que se mantiveram preservadas do original
para a réplica adaptada.
A principal atmosfera que o autor buscou proporcionar com a sua saga foi
concernente à raça hobbit. O filme, quando se inicia, consegue nos transportar à vila
hobbitiana, o Condado, permitindo ao espectador conhecer o estilo de vida dos pequenos, a
cultura daquela região, do povo que nela habita. As personalidades, características físicas,
enfim, todos os elementos referentes a Hobbits foram cuidadosamente preservados,
mantendo-se cópias fiéis ao original, permitindo aos que desconhecem a obra literária poder,
por meio duma apresentação fílmica, adentrar naquele mundo imaginário que o autor criou.
As festividades, vestimentas, carisma e apetites insaciáveis são padrões
peculiares da raça, principalmente a falta de interesse em desbravar o mundo que os abrange,
salvo exceção a uma minoria que se destaca na história.
Outro componente fielmente preservado é na personificação do mago
cinzento, Gandalf. Para os moradores do Condado, Gandalf era dito como o “perturbador da
paz”, pois a presença dele e as histórias que ele narrava acabava por incitar jovens hobbits a
desejarem e partirem mundo afora.
117
Quando Frodo, Sam, Merry e Pippin rumam sentido ao Pônei Saltitante, no
vilarejo de Bri, em busca de proteção, vários são os encontros com os espectros do Anel, os
pequenos buscam sempre se manterem alertas e unidos, somando uma proteção mútua pelas
suas vidas.
Gandalf busca pelos conselhos do membro da maior ordem dos Magos,
Saruman, o Branco, e neste encontro descobre que o amigo tivera se aliado ao rival.
Como o mago havia falado do Anel e do povo hobbit, Saruman na hora já
ordena que partam em busca do portador do Anel.
O mago cinzento é mantido prisioneiro na masmorra de Isengard até que
mudasse de idéia e se aliasse também aos poderes de Sauron. Por longo tempo o mago é
mantido prisioneiro até Gwaihir, Senhor do Vento, vir em seu auxílio e libertando Gandald
dos domínios de Saruman na masmorra.
Os quatro hobbits viajantes rumam até Bri, em busca da taverna (Pônei
Saltitante), de que Carrapicho era dono. Encontram com um novo companheiro, Aragorn que,
aparentava ser um mero chantagista mas que na realidade se tratava do herdeiro do trono das
terras ermas.
Aragorn pela sua espada protege os pequenos dos ataques repentinos dos
Espectros do Anel.
Ainda em Bri ocorre um desfecho dos Espectros adentrando o quarto dos
pequenos. Por sorte, Aragorn auxiliou-os a mudar de quarto, pois naquela noite havia ocorrido
muito tumulto pelo fato de Frodo ter colocado o Anel e sumido na multidão.
Na manha seguinte os companheiros rumam até a Estrada Velha refugiandose no Topo do Vento. Lugar comumente chamado Amon Sûl é o próximo encontro dos
pequenos com os Espectros do Anel. Não possuem a mesma sorte de outrora. Desta vez Frodo
é sucumbido, coloca o Anel e é atacado por um Espectro.
Aragorn tenta aliviar a dor de Frodo colocando sobre a ferida folhas da
planta Athelas que, manuseada por um rei, surte efeitos medicinais.
Os peregrinos continuam a caminhada até Valfenda em busca dos sábios
conselhos de Elrond.
Quando os companheiros atravessam o Vau e adentram nos domínios de
Valfenda, Aragorn, filho de Arathorn, é revelado descendente da raça dos grandes Reis.
Nem tudo o que é ouro fulgura,
Nem todo o vagante é vadio;
O velho que é forte perdura,
118
Raiz funda não sofre o frio.
Das cinzas um fogo há de vir,
Das sombras a luz vai jorrar;
A espada há de, nova, luzir,
O sem-coroa há de reinar.
(TOLKIEN, 2000a, p. 262).
Há a apresentação dos membros pertencentes do Conselho e a importância
que estes tinham na questão do mal do Anel naquela Era vigente.
Gandalf narra o quanto sofreu nos domínios de Saruman na torre de
Isengard e diz que perderam um aliado.
São escolhidos os membros que farão parte da demanda que rumará até a
destruição do Anel; os três hobbits são ofertados para acompanhar Frodo na missão, pois
assim como Pippin afirma: “Nós hobbits devemos permanecer juntos. E vamos permanecer.”
(TOLKIEN, 2000a, p. 289). Os outros companheiros também buscam auxiliar Frodo no
caminho. São eles: Gandalf; Boromir, Légolas; Gimli; Aragorn.
Os companheiros caminham até as Portas de Durin, nas Minas de Moria e lá
se deparam com um enigma para poderem ser abertos os portões. Frodo ajuda Gandalf a
desvendar tal dilema.
Nesse tempo, um monstro das profundezas surge e puxa alguns dos
membros para dentro da água. A demanda se desvencilha e adentram a Mina.
A Mina de Moria se encontra como um túmulo da raça anão. Orcs haviam
saqueado e destruído grande parte daquele que veio a ser um palácio dos mais cobiçados e
bem feitos de todos os tempos. Ataques de orcs e troll da caverna atingem a demanda, mas
todos se mantêm ilesos.
Agora a demanda se encontra com um mal maior; na ponte de KHAZADDÛM luta Gandalf e um demônio dos tempos antigo, um Balrog.
Gandalf cai com o demônio e a comitiva continua sentido a Lothlórien.
Quando eles adentram aquele reino, são surpreendidos por elfos da floresta que se encontram
desconfiados dos presentes.
A senhora de Lórien, Galadriel aparece e oferta a Frodo olhar pelo Espelho
de Galadriel. O espelho relata coisas que já aconteceram, coisas que estão acontecendo e as
que ainda estariam a acontecer.
Frodo olha pelo espelho e se depara com o Senhor do Escuro em sua
espreita e, com medo do que viu, acaba por oferecer o anel a Galadriel que, de maneira
esplêndida, rejeita-o.
119
Os viajantes recebem presentes ofertados pela elfa e continuam a
caminhada. Partem de Lórien e fazem uma parada para descansarem em Amon Hen. Boromir,
possuído pelo desejo do anel, tenta à força retirá-lo de Frodo. O pequeno se desvencilha de
Boromir e se encontra com Aragorn. Frodo livremente oferta o anel, mas o guerreio recusa de
imediato.
Frodo então se desvencilha do restante dos companheiros para continuar a
jornada sozinho, não antes de Sam o achar e rumar junto com seu mestre até os domínios de
Mordor.
3.6.2. Elementos ausentes na conversão fílmica
Como já dito anteriormente, num produto original, ainda mais quando se
trata de material literário, podem ser encontrados em demasia vários elementos que permitem
ao leitor deleitar-se por infindáveis momentos no lúdico que a obra proporciona. No caso da
obra O Senhor dos Anéis, Tolkien buscou enriquecer o conteúdo como um todo em detalhes e
explicações sobre o “por que” da obra ser o que ela é. Relatos, manuscritos, cantigas são
utilizadas abundantemente no decorrer do corpo do texto que, ao leitor, serve como base
sólida ao mundo imaginário, auxiliando a construção mental dos cenários e povos habitantes
daquele lugar, porém, para um filme (são estes elementos que se fazem desnecessários e, caso
sendo utilizado com muita freqüência) tornaria a obra enfadonha e confusa. São aspectos que
foram cortados da adaptação, mas que têm, na obra literária, importância plena.
A obra literária inicia com um prólogo da raça hobbit, contendo os hábitos
desses povos, seus estilos de vida e costumes, até o ponto que aponta um membro dessa raça,
o hobbit Bilbo Bolseiro, relatando como ele acaba por encontrar o Anel, dando inicio à Guerra
do Anel.
O grande elo que mantêm o caráter da obra é a importância da amizade. Na
obra literária pode-se observar claramente que, aos longos anos de espera até que os Hobbits
viagem carregando o Anel a mando do mago Gandalf, vários são os relatos dos ocorridos
envolvendo Frodo e a companhia de seus inseparáveis amigos Merry Brandebuque (seu
verdadeiro nome era Meriadoc, mas ninguém assim o chamava), Peregrin Tûk (vulgo Pippin)
e de seu leal amigo e jardineiro, Sam Gamgi.
120
Quando a jornada inicia, os três pequenos (Frodo, Sam e Pippin) partem
rumo à nova casa de Frodo em Cricôncavo, para posteriormente continuarem a jornada e,
enquanto caminham até o destino, muitos são os encontros com os Espectros do Anel.
Acontece também o primeiro contato deles com a raça élfica, no caso, os
Altos-Elfos, na Vila do Bosque. Acabam por conhecer um Elfo de grande importância, Gildor
Inglorion, que os abriga, deixando os pequenos na proteção desse povo encantado. Quando
ocorre o encontro entre eles, Frodo os saúda: “Elen síla lúmenn´ omentielvo, uma estrela
brilha sobre a hora do nosso encontro” (TOLKIEN, 2000a, p. 83).
Continuam a jornada e é de grande pesar não constar a hospedagem dos
pequenos na Terra dos Buques, na casa do velho Magote.
Magote é um hobbit robusto e vistoso, fazendeiro, cultivador dos melhores
cogumelos da região. Os pequenos ceiam em sua casa e após se saciarem, Magote os leva até
a Balsa, em direção do Porto da Terra dos Buques e é lá que o encontro com o quarto
integrante, Merry, ocorre.
O percurso da balsa ocorre tranquilamente até os domínios de Cricôncavo,
na Sede do Brandevin. Frodo havia comprado uma propriedade lá para se manter afastado de
possíveis rumores sobre sua vida e, como teria que abandonar tudo por causa da herança que
Bilbo deixou, evitaria quaisquer tipos de satisfações àqueles que quisessem saber de sua vida,
evitando também possíveis ameaças dos que poderiam vir em busca do Anel.
Pippin os acompanhava até a nova morada de Frodo. Frodo achava que
havia escondido o seu segredo de abandonar o condado para sempre, porém Mery e Pippin
confabularam secretamente para que na hora certa de quando Frodo se preparar para a viagem
novamente, pudessem rumar junto com ele e Sam. Eles pernoitam na nova casa de Frodo e
partem no dia seguinte, mas antes deixando o Hobbit Fatty incumbido de cuidar da casa e
manter sigilo sobre a partida de Frodo e dos outros.
Após saírem da nova morada, eles rumam adentro da Floresta Velha e se
perdem, tornando-se reféns do Velho Salgueiro-homem e, em meio a súplicas acabam por
encontrar nada mais que o inusitado Tom Bombadil caminhando por entre a floresta entoando
uma de suas cantigas. Ele, que conhecia todas as melodias das árvores, agia como que por
encanto sobre elas. Tom não era hobbit, pois era muito maior que um e também não era
homem, pois era muito baixo.
Tom Bombadil “é o Senhor da floresta, das águas e das colinas”
(TOLKIEN, 2000a, p. 130).
121
Quando os pequenos já desfalecendo por causa do Velho Salgueiro-homem,
Tom entoa uma cantiga como vemos a seguir:
Vem, linda boneca! Bela neneca! Querida minha!
Leve é o vento e leve é a pluma da andorinha.
Lá embaixo sob a Montanha, ao sol brilhando,
À luz da lua, na soleira já esperando,
Minha linda senhora está, filha da mulher do Rio,
Mais clara do que a água, esbelta qual ramo esguio.
O velho Tom Bombadil, nenúfares carregando,
Salta de volta pra casa. Podes ouvi-lo cantando?
Vem, linda boneca, bela neneca! feliz e bela,
Fruta d’Ouro, linda amora amarela!
Pobre e velho salgueiro, esconde tuas raízes!
Tom tem pressa agora. Há noites e dias felizes.
Tom de volta de novo, nenúfares carregando.
Vem, linda boneca, bela neneca! Podes ouvir-me cantando? (TOLKIEN 2000a, p.
125).
Quando Tom Bombadil vê o apuro dos pequenos nas mãos do Velho
Salgueiro-homem, entoa a canção do Salgueiro, fazendo libertos aqueles que se mantinham
em seu domínio.
Saltando, meus amiguinhos, vamos o Rio vencer!
Tom chegará na frente, e velas irá acender.
A oeste desce o sol: logo a treva cairá,
Quando a noite se abater, então a porta se abrirá,
Nas janelas vai brilhar da luz o bruxuleio.
Não temer o negro amieiro! Não ouvir o velho salgueiro!
Não temer ramo ou raiz. Tom lá estará na certa.
Salve, feliz neneca! Esperemos de porta aberta! (TOLKIEN, 2000a, p. 127).
Após a libertação a salvo dos viajores, Tom leva-os até sua residência e ali,
juntamente com a presença de sua linda senhora, a Fruta d´Ouro. Os viajantes passam
agradáveis dias com a companhia e proteção dos novos amigos, como se servisse para
reanimá-los ou prepará-los pelo que estava por vir na continuação da jornada.
Antes de partirem, Tom Bombadil ensina a Frodo a “cantiga de Tom” que,
em situação de perigo e entoada, o companheiro surgirá em auxílio, para assim poderem partir
um pouco mais protegidos.
Quando partem, eles se perdem e atravessam as Colinas dos Túmulos e
todos acabam por ser capturados pelas Criaturas Tumulares e ficam inertes mantidos em
túmulos, até que Frodo canta os versos ensinados pelo Senhor das árvores e entoou seu canto.
Tom de súbito surge, libertando-os do mal que os afligia. Tom os resgata e após um breve
122
descanso (juntamente com um bom desjejum) Tom, juntamente com seu pônei, Bolo-fofo
decide acompanhar os companheiros até a estrada para que não se percam novamente.
Tom então sugere aos amigos que busquem pela aldeia Bri e que se instalem
na estalagem chamada Pônei Saltitante, pois o dono é Cevado Carrapicho, uma pessoa sem
maldade e que iria auxiliá-los.
Quando eles adentram no vilarejo de Bri encontram pessoas que convivem
muito bem entre os Pequenos, os Grandes, assim como Elfos e Anões. Na companhia de
Cevado Carrapicho, no Pônei, havia muita comida, bebida e cantorias com pessoas amistosas.
Todos muito bem acomodados e bem à vontade com os estranhos, acabam
por conhecer Passolargo (Aragorn). O encontro com Passolargo acontece com ele chamando
Frodo a se atentar com seus amigos que, já embriagados, estavam dando informações em
demasia a uma platéia de estranhos.
Enquanto Pippin mantinha toda a atenção dos presentes do recinto com
histórias do Condado, Frodo preocupado em ocorrer algum comentário impróprio sobre o
Anel busca pela atenção da platéia, retirando o foco de Pippin para si. Canta uma cantiga
sobre estalagem e agrada aos ouvintes tanto que eles pedem por re-narrações da história. Ele,
ao meio da euforia, leva um tombo e o Anel, de maneira misteriosa acaba por deslizar por
seus pequenos dedos fazendo seu desaparecimento de súbito. Os presentes levam um grande
susto pela estranheza do fato e se alvoroçam. Frodo caminha até Passolargo, como em busca a
um refúgio e ali se esconde. Quando esse retira o Anel e volta a se tornar visível, Passolargo o
reprime de sua tola atitude.
Os pequenos agora contavam com a proteção de Aragorn e sua espada
Andúril, Chama do Oeste, de possíveis atentados que viriam a sofrer.
Seguem viagem rumo a Valfenda e em meio ao caminho acabam na
desventura de depararem com os Espectros, Frodo é tentado a tal ponto que acaba por ceder e
coloca o Anel.
Imediatamente, embora tudo continuasse como antes, escuro e sombrio, as figuras se
tornaram terrivelmente claras Frodo podia ver através de suas roupas pretas. Havia
cinco figuras altas: duas em pé, na saliência do valezinho, três avançando. Nos seus
rostos brancos brilhavam olhos agudos e impiedosos; sob as capas havia grandes
túnicas cinzentas; sobre os cabelos cinzentos, elmos de prata; nas mãos magras,
espadas de aço. Seus olhos caíram sobre ele e o penetraram enquanto corriam na sua
direção. Desesperado, Frodo puxou sua espada, tendo a impressão de que dela
emanava um brilho vermelho, como se estivesse em brasa. Duas das figuras
pararam. A terceira era maior que as outras: o cabelo era longo e brilhante, e sobre
seu elmo estava uma coroa. Numa mão segurava uma longa espada, e na outra uma
faca; tanto a faca quanto a mão que a segurava brilhavam com uma luz fraca. Ela
pulou para a frente e avançou sobre Frodo.
123
Naquele momento Frodo se jogou para a frente em direção ao chão, e ouviu sua
própria voz gritando alto: Ó Elbereth! Gilthoniel! Ao mesmo tempo, golpeou os pés
do inimigo. Um grito agudo cortou a noite, e ele sentiu uma dor, como se um dardo
envenenado tivesse penetrado seu ombro esquerdo. Ao desmaiar viu de relance,
como se por entre um turbilhão de névoa, Passolargo saltando da escuridão com um
pedaço de lenha em chamas em cada mão. Num último esforço, deixando cair a
espada, Frodo tirou o Anel do dedo e o apertou na mão direita. (TOLKIEN 2000a,
p.208).
Mesmo a ferida de Frodo doer em demasia, ele se mostra extremamente
resistente e continuam a jornada. Quando, há muito caminhado, a ventura do destino faz com
que cruzem com Glorfindel, um Elfo amistoso. “Ele é um senhor élfico de uma casa de
príncipes.” (TOLKIEN, 2000a, p. 235).
De repente apareceu, lá embaixo, um cavalo branco, reluzindo nas sombras,
correndo muito. No crepúsculo, a testeira brilhava e reluzia, como se estivesse
adornada com pedras que pareciam estrelas. A capa do cavaleiro flutuava nas suas
costas, e o capuz estava jogado para trás; o cabelo dourado esvoaçava brilhante no
vento veloz. Frodo teve a impressão de que uma luz branca brilhava através da
figura e das vestes do cavaleiro, como se viesse através de um véu tênue.
Passolargo pulou do esconderijo e correu em direção à Estrada, saltando com um
grito através do urzal; mas, antes mesmo que tivesse se movido ou gritado, o
cavaleiro puxou as rédeas e parou, olhando para cima em direção à moita onde
estavam. Quando viu Passolargo, desceu do cavalo e correu para encontrá-lo,
gritando: Ai na vedui Dúnadan! Mae govannen! A fala e a voz clara, musical, não
deixavam dúvidas nos corações: o cavaleiro era do povo élfico. Nenhuma outra
criatura habitante do vasto mundo tinha uma voz tão bela e agradável de escutar.
(TOLKIEN, 2000a, p. 222).
Os que residem em Valfenda haviam pedido ao Elfo Glorfindel que vagasse
em busca dos viajantes e os auxiliassem no regresso até sua morada para que assim pudesse
ser realizado o conselho que acabaria por decidir o fim do Anel.
Após os viajantes serem achados, Frodo já mostrando grande debilidade por
causa do acidente que sofreu com os espectros, necessitou chegar com urgência aos domínios
dos povos mágicos para ser curado. O cavalo veloz do Elfo foi ofertado a ele e assim ele ruma
sozinho ao encalço dos nove Cavaleiros Negros até Valfenda. Ao chegar às proximidades do
Vau, Frodo os afronta e, antes que os Espectros o pegassem, uma trompa d’água espumante
em forma de cavaleiros brancos montados a cavalos brancos surge e ataca os inimigos. Isso
significou a proteção dos Elfos para o pequeno portador. Na casa de Elrond, muitos são os
dias passados lá, muitos conhecimentos adquiridos, histórias e os registros de Bilbo são
mostrados. Frodo sente-se jubilado por encontrar com seu tio novamente e os dois
serenamente narram histórias e fatos que ocorreram.
124
Até que, em meio a vários povos que se encontravam no Conselho, eis que
são selecionadas nove pessoas para que sejam fiéis ao portador e que possam auxiliá-lo no
decorrer do caminho. Sam, com gana em desbravar o mundo e não permitir que seu patrão
fique longe de seus cuidados, oferece-se para acompanhá-lo, assim como Pippin, Merry,
Legolas, Gimli, Boromir, Gandalf e Aragorn que, junto com sua espada reforjada (Andúril,
Chama do Oeste), buscaria manter a salvo a Comitiva.
Partem e chegam aos domínios de Lothlórien. Acabam deparando com uma
Senhora poderosa e bela, a élfa Galadriel. Ela, juntamente com Sam e Frodo, vai até o
Espelho de Galadriel. Sam se mostra extremamente curioso em querer ver magia élfica
ocorrer em frente a seus olhos.
Galadriel, uma Senhora élfa, serena e amistosa, oferece ao pequeno Sam que
olhe pelo Espelho de Galadriel para que, assim, consiga saciar sua vontade e sanar sua
curiosidade em magia. Sam aceita o convite e olha pelo Espelho a fim de saber sobre sua
cidade. Nele, vê brevemente seu futuro juntamente com seu patrão e, logo em seguida aparece
no Espelho árvores sendo tombadas no Condado. Seus amigos, inclusive seu pai sendo
escravizado em suas próprias terras. Após Sam descer, é ofertado a Frodo olhar pelo Espelho.
A estadia da demanda em Lothlórien demorou alguns dias, como que
servindo de revigorarão aos corações; devido à grande perda que tiveram. Quando, antes de
partirem, foram convidados novamente a adentrarem o salão de Celeborn que, senhor e
senhora auxiliam os viajantes com palavras encorajadoras. Barcos são ofertados para que os
ajudem no andar da viajem, alimento, assim como cordas e as roupas élficas.
Os viajantes partem e rio adentram, na continuação da busca da destruição
do Anel. Entre as águas, acabam por encontrar o Navio-cisne se aproximando. Nele vinha
Celeborn e Galadriel, convidando-os a um banquete de despedida, que seria feito entre as
águas de Lórien.
Depois de saciados de muita comida e hidromel, Galadriel anuncia que
trouxera presentes aos pertencentes da Comitiva. Ao líder da comitiva, Aragorn, foi oferecido
uma bainha feita sob medida para sua espada Andúril e também Elessar, Pedra élfica da casa
de Elendil. Ele fixou a pedra em seu broche.
Boromir recebeu um cinto de ouro, Merry e Pippin receberam pequenos
cintos de prata. Para Legolas foi ofertado um arco que, a corda era feita de fios de cabelo
élfico.
125
Sam, amante da natureza, recebeu uma pequena caixinha que continha terra
do pomar de Galadriel e que mantinha a benção da Senhora. Esta terra, caso ocorresse todo o
mal previsto no Espelho, faria com que florisse quaisquer campos, mesmo desertos.
Ela pergunta a Gimli qual seria seu desejo. Ele pede então “[...] um fio de
seu cabelo, que ultrapassa o ouro da terra como as estrelas ultrapassam as gemas da mina.”
(TOLKIEN 2000a, p. 400).
E finalmente Frodo, que recebeu um pequeno frasco de cristal que emanava
luminosidade.
Este frasco – disse ela – contém a luz da estrela Eärendil, engastada nas águas de
minha fonte. Brilhará ainda mais quando a noite cair ao seu redor. Que essa luz
ilumine os lugares escuros por onde passar, quando todas as outras luzes se
apagarem. (TOLKIEN 2000a, p. 401).
Findada a cerimônia, partem, abandonando os mais celebres amigos. Vão
até Amon Hen e Frodo retira-se para pensar qual caminho tomar e o que fazer até chegar às
Fendas da Perdição para poder destruir o Anel. Boromir vai a seu encontro e tenta persuadir o
pequeno a seguir rumo às Minas Tirith. Ele se enfurece e Frodo coloca o Anel e desaparece.
Todos buscam pelo pequeno. Aragorn vai até a Cadeira do Amon Hen para poder ver o que
pudesse ser avistado. Aragorn vê o sentido que Frodo tomou e sai em disparada e Sam não
consegue acompanhar seus longos passos. Parou, refletiu e voltou até os barcos na expectativa
de alcançar seu patrão. Viu-o já dentro do rio e de súbito correu água adentro. Já se afogando
Frodo o resgata.
“De todos os malditos estorvos, você é o pior, Sam!” (TOLKIEN 2000a, p.
432).
Assim termina a primeira parte da história da Guerra do Anel, com os dois
hobbits partindo até as terras de Mordor em busca da destruição do Anel.
3.6.3. Elementos adicionados na obra adaptada
Observando que muitos elementos são condensados para dar mais solidez à
obra adaptada, assim como a ordem de determinadas cenas serem alteradas, ou uma
aceleração ou corte, tudo foi usado estrategicamente e encaixadas na obra fílmica da obra
126
literária. A estes fatores alterados que se encontram presentes no filme que, invertidos, dão
dubiedade a certas cenas ou até mesmo a personagens como veremos a seguir.
O filme inicia-se com um prólogo narrado em língua élfica pela Elfa
Galadriel, que narra e explica sobre os anéis do poder e sua criação, onde três foram
destinados aos Elfos; sete aos Anões e nove aos Homens. Já de início é apresentada a criação
do Um para que dele os outros anéis sejam subjugados. A batalha da última aliança é
sabiamente acoplada logo inicialmente, permitindo assim àqueles que desconhecem a obra
literária poder compreender facilmente a Queda da raça humana perante o mal existente no
Anel.
É narrada a queda de Isildur, rei de outrora, descendente da raça humana e
que foi facilmente levado à queda devido à traição feita pelo próprio objeto. Depois de seu
segundo mestre, o Anel busca pelo seu terceiro mestre e por ele permanece por longos anos; a
criatura Gollum. Escondido entre cavernas o Anel adormece e Gollum defasa no
esquecimento de todos.
Quando o hobbit aventureiro Bilbo Bolseiro, em uma de suas expedições
pela Terra-média acaba se deparando com a criatura Gollum e o anel se desvencilha dele,
fazendo ser encontrado pelo hobbit Bilbo. Agora, pelas mãos de um ser singelo e sem
maldades, o Anel novamente se mantem adormecido e esquecimento na memória de todos.
Por todo esse tempo a única magia que o objeto permitia ao portador era de longevidade e
poder ficar invisível aos olhos nus.
Uma festa tão esperada. Uma imagem panorâmica da região do Condado e
dos habitantes, em meio aos preparativos da grande festa de aniversário do Hobbit Bilbo
Bolseiro, os pequenos Merry e Pippin aparecem como dois personagens inconseqüentes que
adoram se meter em grandes confusões, assim como quando eles roubam foguetes de Gandalf
por pura traquinagem, acabando por ocasionar uma grande confusão ao lançarem o foguete
que se transforma em um imenso dragão.
As cenas dos feitos ocorridos da festa são brevemente relatadas. Quando
Bilbo, após dar as boas vindas aos convidados e fazer seu discurso que, no mínimo pode-se
denominar como inusitado, ele coloca o anel e desaparece, retornando apenas dentro de seu
lar. Lá, seu grande amigo Gandalf, o cinzento, já o aguardava. Por meio dos últimos
preparativos de Bilbo para a sua nova jornada, ele aponta o que ficaria como herança ao seu
sobrinho; são apresentadas escrituras de propriedades e o Anel. Quando ele, meio indeciso em
deixar o objeto, tenta o mago dizendo que este o quer para si. Neste momento, Gandalf se
impõe mostrando toda a fúria de leviana provocação até que o pequeno se redime dizendo ao
127
mago que por toda sua vida ele foi um fiel amigo e sábio em conselhos e que atenderia a essa
última norma estabelecida pelo mago. Bilbo parte então para Valfenda, a terra dos Elfos.
Logo após Bilbo Bolseiro ter abandonado sua residência, Frodo adentra e
encontra-se com Gandalf e com o Anel que ficara no chão quando Bilbo o abandonou e
partiu. Gandalf entrega os pertences agora de autoria de Frodo e já se despede do pequeno e
partindo às pressas.
A criatura Gollum é mostrada em Moria sofrendo as piores das torturas. Os
agressores estavam pressionando-o a dizer onde se encontrava o Anel e Gollum, depois de
muito sofrer acaba por dizer em ranger de dentes as seguintes palavras “Condado, Bolseiro!!”
com isso, coloca em partida os nove cavaleiros em busca daquele que estaria o portando.
Gandalf, após sair do Condado vai à busca de relatos, angariando mais
conhecimentos sobre a queda de Isildur, e conhecendo o verdadeiro mal que o anel representa.
Gandalf retorna à moradia de Frodo extremamente transtornado. Pede o
envelope que continha o Anel e o atira ao fogo. Pede a Frodo para pegá-lo e pergunta se havia
alguma inscrição nele. Depois de alguns minutos, Frodo diz que surgiu uma inscrição élfica.
O mago então relata toda a história do Anel e de seu verdadeiro dono, Sauron.
A força vital está presa ao anel. Ele precisa do anel para voltar a viver. “Eles
são um só”.
Frodo, com medo do que houve, oferece a Gandalf, para pegá-lo e destruílo. O mago pede para que não o tente, pois se o pegasse ele usaria o Anel com o desejo de
fazer o bem, mas, através dele, exerceria um poder mais intenso e terrível do que se poderia
imaginar.
Pede ao pequeno que parta do Condado e que deixe para trás o nome
Bolseiro para Monteiro e que rume em direção à aldeia Bri, no Pônei Saltitante.
Frodo, às pressas, se apronta e aceita o fardo imposto. Gandalf se sensibiliza
e diz que os hobbits realmente são criaturas fascinantes, podem-se aprender tudo sobre eles
em um mês, mas, mesmo após cem anos, ainda podem surpreendê-lo.
Sam escuta a conversa na soleira da janela e Gandalf o descobre. Ele, com
medo de ser transformado em uma criatura horripilante e asquerosa, pede piedade ao mago.
Gandalf, em vez de puní-lo, destina que o pequeno acompanhe Frodo na jornada.
Sam, contra sua vontade, parte junto com seu mestre até Bri, onde ocorreria
o próximo encontro com o mago.
Após a sua saída do Condado, Gandalf busca conselhos no membro da
maior ordem, Saruman o branco, que reside em Isengard. Gandalf, o cinzento comenta do
128
Anel que estava em domínio dos pequenos hobbits. Saruman mostra uma das palantíri (pedras
videntes) e relata que o auxílio e a glória seriam apenas aos aliados da Torre Escura.
Gandalf acusa Saruman de ter perdido a sanidade e os dois magos lutam. O
mago cinzento perde e é aprisionado na masmorra até que uma das águias (o Senhor dos
Ventos) o salva.
Os dois pequenos traquineiros, Pippin e Merry esbarram com Frodo e Sam
nas terras do Velho Magote. Eles estavam roubando legumes e o Velho rabugento e malvado
estava ao encalço deles.
Quando eles escapam de Magote e de seu feroz cão, caem de um
desfiladeiro. No momento que recolhem os pertences, surge um dos cavaleiros. Frodo é
tentado a colocar o anel e os amigos o auxiliam a se desvencilhar do torpe. Os quatro correm
sentido à ponte, na balsa de budebuco e, mais uma vez, cavaleiros negros são adicionados e os
pequenos correm dos espectros.
Os viajantes chegam a Bri em meio à torrente chuva. Há um enorme
estranhamento dos ali presentes, pessoas mal encaradas e mal propositadas deparam no
caminho dos pequenos. Eles acham o Pônei Saltitante e buscam pelo senhor Carrapicho,
proprietário, e pedem pelo amigo Gandalf. O dono, meio letárgico, diz não se lembrar da
ultima vez que o mago teria vindo até Bri.
Os quatro, desolados, começam a beber quartilho em excesso. Pippin acaba
com a língua entre os dentes, em meio a relatos de árvores genealógicas (costume dos
hobbits), acaba relatando que havia um Bolseiro (nome que há muito fora recomendado
abandonar) junto com ele. Frodo se apressa para chamar a atenção do amigo e, tropeçando, o
Anel escorrega e entra em seu dedo, deixando-o invisível.
O quinto elemento da viajem é adicionado. Passolargo surge e os tira de
cena.
Há mais um atentado contra eles e os Espectros, mas eles saem ilesos.
Quando eles estão em partida, agora Passolargo os guiando, ele explica aos pequenos dos
espectros e dos Nâzgul e o mal que estão correndo. Pippin se preocupa com as refeições.
Dizendo que eles têm o habito de fazerem dois desjejuns, um lanche das 11hrs, depois
almoçarem, fazem lanche da tarde, para no fim poderem fazer a ceia. Fica desolado quando
Passolargo não conhece e participa desse habito alimentar.
Aparece um exército sendo montado por Saruman a mando de Mordor.
Os cinco viajantes chegam a Amon Sul (torre da vigia) e lá Frodo é atingido
por um dos Espectros. Aragorn os repele com tochas de fogo. As cenas são interpoladas em
129
seqüências de eventos envolvendo Saruman e seu exército, Frodo atingido pelo Espectro e
Gandalf em tortura na masmorra de Isengard.
Em Isengard é mostrado como foi criado o mais novo exercito de Saruman.
Ele havia cruzado um exercito de orcs e homens que, além de inigualável força e malvadeza,
podiam se locomover na luz do dia.
Aragorn coloca planta de athelas, folha-do-rei no ferimento de Frodo, em
busca de retardar o mal que penetrou em seu corpo.
Quando o guerreiro Aragorn, ou Passolargo, como era dito pelos amigos,
está ajudando e cuidando de Frodo, Arwen, a mais bela elfa, filha de Elrond, surpreende a
todos com sua sorrateira chegada. Ela vê o ferido e carrega-o em seu cavalo em busca dos
auxílios mágicos dos Valar. Em meio à fuga, os nove Espectros do Anel partem em disparada
tentando pegar Frodo e o Anel. A elfa chega até o Vau, nos domínios de sua morada em
Valfenda. No momento que os cavaleiros tentam avançar o rio ela pronuncia palavras em
élfico e, como mágica, o rio sobe como uma avalanche, surgindo dentre as águas cavaleiros
montados a cavalos brancos de espuma, varrendo os Espectros de perto deles.
Frodo desvanece. Arwen passa a graça oferecida pelos Valar a Frodo em
busca de permitir que seu espírito não deixe o corpo físico.
Após alguns dias de intenso repouso, Frodo acorda. Em seu quarto ele
encontra com o grande amigo Gandalf, que o reconforta e narra os motivos de sua ausência.
Novamente a cena retorna à batalha dos dois magos. Passada pelo pensamento do mago é
relatado Gandalf já exaurido quando de repente surge uma grande águia que o resgata da
masmorra.
Frodo já se apresenta bem melhor do ferimento e se surpreende quando se
encontra com seu tio Bilbo. Bilbo mostra sua mais nova obra “De lá e de volta outra vez”,
encontra-se também com seus amigos e Sam diz que já chegou a hora deles retornarem, pois
já haviam feito o que o mago lhes tinha pedido.
Elrond e Gandalf conversam. O elfo diz que o hobbit mostrou resistência
extraordinária ao mal do anel e a seu próprio mal, já insinuando que o Anel deveria ser
mantido nas mãos do pequeno, porém Gandalf tenta relutar, dizendo que Frodo já havia feito
muito e que o Anel deveria ser mantido em Valfenda.
O elfo explica que os poderes dos elfos já chegaram ao fim e que o Anel
deveria ser encaminhado até Mordor, para que lá fosse destruído. Gandalf diz que deve ser
confiada aos homens essa missão.
130
Elrond narra o fato de que quando foi proporcionada a oportunidade de
destruir o Anel, Isildur falhou, resultando no que hoje eles sofriam, mas Gandalf mais uma
vez afirma que o trono de Gondor será reivindicado pelo verdadeiro rei, no caso, Aragorn.
Boromir está observando os fragmentos da espada Narsil, a espada que
retirou dos dedos de Sauron o Anel, e se encontra com Aragorn. Boromir se mostra superior e
extremamente arrogante, desprezando e insultando a simbologia da representação da espada.
Aragorn se encontrava receoso, pois o mesmo sangue que pulsou naquele
que fracassou na grande prova, era o mesmo sangue que corria em suas veias. Arwen acalenta
seu coração, encorajando-o, dizendo que ele não estava fadado ao mesmo fracasso de seus
ancestrais. Com isso, os dois, em élfico fazem promessas de amor e Arwen dá a estrela
Vespertina a Aragorn como prova de seu amor.
Frodo conhece o grande elfo Elrond, muito amistoso e de uma inigualável
inteligência, acolhe os pequenos e muitos outros povos representantes da Terra-média.
No Conselho de Elrond, o elfo explica do grande mal que está por afligir
toda a terra e todas as raças estarem fadadas ao avaçalador mal presente no Anel.
Boromir sabendo que o Anel se encontra nos domínios, sucumbe; cobiça e
quer usar o anel a favor deles, dizendo que é uma dádiva e triunfo ter o Anel em mãos.
Aragorn replica dizendo que não, explicando que o Anel responde só a
Sauron. Boromir fica enfurecido e chama-o de guardião. Legolas levanta e anuncia que na
verdade Boromir é vassalo dele. Todos descobrem que é Aragorn o verdadeiro herdeiro de
Isildur.
A atenção volta mais uma vez para o Anel. Alguma solução deve ser
encontrada no Conselho. O mestre anão Gimli levanta e, numa martelada desfere um golpe na
tentativa de destruir o Anel. Frodo neste momento fica torpe e sente o Olho de Sauron
atingindo-o. O martelo de Gimli se racha.
Elrond pede por alguém para portar o Anel até as chamas de Mordor.
Boromir fala do mal que existe em Mordor, dizendo que ninguém seria capaz de adentrar
aquele local.
O elfo Legolas se sente insultado e pede respeito pelas palavras do sábio
Elrond, dizendo que o Anel deve ser destruído.
Como elfos e anões há muito travaram um richa, Gimli retruca, acusando o
elfo de querer ser o portador do Anel. Boromir fomenta a briga dizendo que Sauron vencerá.
Uma verdadeira anarquia ocorre, uma discussão entre elfos e anões começa,
pois nenhuma raça confia na outra.
131
Frodo sente um poder dentro de si, sente-se só, com dor, desespero e todos a
seu redor estão brigando por tolices. Em meio a um devaneio diz que será ele quem o
carregará, embora não saiba o caminho, ele levará o Anel até Mordor. Frodo bradava, mas
ninguém o ouvia em meio a tanta discussão.
Gandalf ouviu Frodo aceitar o fardo e sentiu-se abalado. Ele apóia o
pequeno dizendo que pela sua sabedoria buscaria proteger o portador. Aragorn oferece sua
espada; Légolas seu arco; Gimli seu machado. Boromir, por não querer ficar de fora desse
feito de tamanha importância, diz que os acompanhará.
Sam aparece atrás de arbustos dizendo que vai onde o mestre dele for;
Pippin e Merry também dizem que vão.
Assim é formada a demanda por nove integrantes. A Sociedade do Anel.
Quando Frodo se despede de Bilbo, ele oferece sua espada ferroada e um
colete feito de mithril.
Partem os integrantes da demanda em busca do fim do Anel. A escolha de o
caminho a seguir sempre foi sabiamente ponderada pelo mago que, temendo as Minas de
Moria, tentava escolher opções alternativas. Saruman sabendo do medo do mago, provocou
avalanches na montanha em que eles se encontravam, obrigando a comitiva a trilhar até
Moria.
O temor do mago baseava-se na ganância que os anões tiveram quando a
cavaram. Foi tão fundo que acabaram despertando nas trevas de Khazad-dûm um antigo
demônio de outrora, rodeado de sombra e chama.
Eles rumam até Moria e se deparam com um cemitério de anões. Ali havia
virado a morada de orcs. Recebem ataques incessantes dessa raça até chegarem a um ponto
fatídico que não mostrava outra solução a não ser a morte pelos orcs. Uma sombra surge das
profundezas repelindo os orcs. Tum, o chão treme. Gandalf sente a presença do mal que
começa a surgir. Um Balrog, demônio de outrora. Todos fogem e Gandalf tenta afrontá-lo,
mesmo sabendo que seus poderem são inferiores aos do demônio. A ponte de Khazad-dûm é
o palco da batalha. Gandalf mostra vantagem na luta até o momento que o chicote do demônio
se enrola na perna do mago fazendo-o cair, arrastando-o junto nas profundezas da montanha.
A comitiva desolada continua a viagem sem o mago. Eles rumam até os
domínios de Lórien e são capturados pelos elfos da mata. Gimli diz que a elfa Galadriel,
senhora daquele lugar é uma bruxa e que aquele que de seus olhos olharem, por encanto cairá.
Eles ganham amparo e palavras de sabedoria. Frodo é convidado a olhar
pelo Espelho de Galadfriel. Vê que o Olho está a sua procura e que se não tiver cuidado cairá.
132
Ele oferta o Anel à elfa. Ela, de subido apresenta-se como uma verdadeira bruxa, terror toma
conta de todo seu ser até que, redimindo-se ela diz ter passado no teste e conseguido negar a
cobiça ocasionada pelo Anel.
A demanda parte de Lórien com alguns presentes até os domínios de Amon
Hen. Os companheiros descansam um pouco e Boromir deixa se levar pelo mal do Anel,
tentando arrancar à força o anel de Frodo. Ele foge.
Um bando de servos de Saruman o Branco (orcs cruzados com homens)
caminha ao encontro dos companheiros.
Todos procuram por Frodo, mas são atacados pelo bando e Boromir,
tentando defender os pequenos Pippin e Merry é seguidamente atacado, vindo a falecer e os
pequenos sendo capturados e levados.
Frodo tenta fugir, mas Sam corre a seu encontro e juntos rumam em busca
das Montanhas de Mordor, a fim de destruir o Anel.
Aragorn, Gimli e Légolas partem em busca dos pequenos que foram levados
pelo bando, na esperança de salvá-los das terríveis mãos dos inimigos. Assim termina o
primeiro volume.
Como observado ao longo desse trabalho, diferenças existentes entre um
texto literário para uma obra adaptada são críveis e essenciais. Muitas peculiaridades são
acrescidas ou retiradas para que haja a transcodificação da obra literária para a fílmica; há
alterações no enredo (na ordem da narração da história), havendo uma regressão temporal,
assim como nos diálogos, onde são aumentados ou cortados. Há também o recurso auditivo,
onde as músicas e ruídos possuem a caracterização de intensificar sentimentos dos
personagens e servindo também para ligar uma cena a outra ou ainda antecipar a entrada de
um personagem na história.
Ao decorrer desse capítulo, algumas temáticas foram abordadas, tais como:
elementos que mantiveram preservados do romance; os elementos que foram retirados na
conversão; assim como os que foram adicionados, ganhando maiores ênfases na adaptação.
Nesta hora, o adaptador em meio aos personagens já existentes de uma obra
se encontra com a responsabilidade em saber detectar e escolher, cortar e combinar
personagens, ou até mesmo redefinir um personagem, tudo com o intuito em manter o foco do
público na obra e para não deixá-la enfadonha, pois “o público só consegue se concentrar em
poucos personagens. Se existirem muitos personagens, o público ficará confuso.” (SEGER,
2007, p. 157).
133
Com isso, conclui-se a abordagem da transcodificação literária do primeiro
volume da saga do anel: O Senhor dos Anéis: a sociedade do anel (2000a) e do filme
veiculando em 2001, pelo cineasta Peter Jackson.
134
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Três Anéis para os Reis-Elfos sob este céu,
Sete para os Senhores-Anões em seus rochosos corredores,
Nove para Homens Mortais fadados ao eterno sono,
Um para o Senhor do Escuro em seu escuro trono
Na terra de Mordor onde as Sombras se deitam.
Um Anel para a todos governar, Um Anel para encontrá-los,
Um Anel para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam (TOLKIEN, 2000a, p. 52).
Na atualidade muito se tem usado obras literárias célebres para sofrer a
transcodificação para outro meio midiático, no caso, para serem adaptados para os cinemas.
Com isso, a transposição da obra literária O Senhor dos Anéis para o meio cinematográfico
serviu de fonte para análises e considerações sobre o processo adaptativo.
Utilizando a análise de conteúdo na obra literária e fílmica, pôde-se levantar
a hipótese que houve um grande diferencial relevante na comparação da narrativa literária
escrita por John Tolkien em meados de 1954 e sendo transpassado para as telas dos cinemas
por intermédio do cineasta neozelandês, Peter Jackson que, por tratar de linguagens e mídias
dessemelhantes, o resultado certamente responderá também de maneira diferenciada.
A obra cinematográfica foi veemente aclamada pela crítica e pelos fãs da
obra literária devido à qualidade de elaboração, preparação, compondo o produto final com
maestria e fidedignidade, assim como havia sido planejado por Peter Jackson. Devido ao
grande sucesso neste resultado, tornou-se esta a principal razão em se escolher como proposta
do estudo em averiguar as variadas etapas da transcodificação midiática que decorrem do
processo adaptativo de uma obra literária à cinematográfica.
Para compor este estudo, o primeiro passo foi reunir informações sobre a
vida do escritor, obtendo dados pertinentes sobre os motivos que o levaram a escrever densa
obra. Percebeu-se que os principais aspectos que ladeavam Tolkien em seu processo criativo
derivavam principalmente do fator mitológico. Como a obra O Senhor dos Anéis é procedente
de O Hobbit, observa-se a seguinte crítica sobre suas criações:
“J. R. R. Tolkien continua a história imaginativa do mundo imaginário ao qual nos
apresentou no seu livro anterior, mas de um modo adequado aos adultos”, Auden
comenta a criatividade de Tolkien, a consistência do mundo subcriado, e a
relevância que este pode ter para o nosso. (KYRMSE, 2003, p. 130).
135
Tolkien desenvolveu uma atmosfera mítica envolvente, criando desde o
palco para as histórias (Terra-média ou Arda), historicidade para o romance, assim como uma
instigante e envolvente história mítica heróica.
Os dois mundos, divino e humano, só podem ser descritos como distintos entre si —
diferentes como a vida e a morte, o dia e a noite. As aventuras do herói se passam
fora da terra nossa conhecida, na região das trevas; ali ele completa sua jornada, ou
apenas se perde para nós, aprisionado ou em perigo; e seu retorno é descrito como
uma volta do além. Não obstante — e temos diante de nós uma grande chave da
compreensão do mito e do símbolo —, os dois reinos são, na realidade, um só e
único reino. O reino dos deuses é uma dimensão esquecida do mundo que
conhecemos. E a exploração dessa dimensão, voluntária ou relutante, resume todo o
sentido da façanha do herói. Os valores e distinções que parecem importantes na
vida normal desaparecem com a terrificante assimilação do eu naquilo que antes não
passava de alteridade. Tal como nas histórias das ogresas canibais, o temor dessa
perda da individuação pessoal pode configurar-se, para as almas não qualificadas,
como todo o ônus da experiência transcendental. Mas a alma do herói avança com
ousadia — e descobre as bruxas convertidas em deusas e os dragões em guardiães
dos deuses. (CAMPBELL, 1997, p. 124).
Imbuído pelo desejo em transportar o leitor para um período histórico
atemporal da terra, pôde-se então compreender a ficção do escritor e a importância que a
mesma obteve na sociedade, dando-nos a possibilidade de rememorar algo grandioso e válido
aos tempos atuais.
Dando seqüência ao estudo, em segundo momento, abordou-se a mitologia e
a obra literária, traçando um parâmetro entre três aspectos fundamentais para o
desenvolvimento da obra: a fantasia; o mito e a criação lingüística ficcional, correlacionandoos com a obra literária, assim como uma análise da inserção direta em alguns personagens que
ganharam destaque no estudo.
Quis fazer isso para minha própria satisfação, e tinha alguma esperança de que
outras pessoas ficassem interessadas nesse trabalho, especialmente por ser ele fruto
de uma inspiração primordialmente lingüística, e por ter sido iniciado a fim de
fornecer o pano de fundo “histórico” necessário para as línguas élficas. (TOLKIEN,
2000a, p. XI).
Por fim, a terceira etapa apresentou um prólogo sobre cinema, contendo as
principais diferenças contidas entre um texto literário e fílmico
[...] nos livros o passado e presente é fluido, sem interrupções. Você vai e volta na
história. O personagem presente pode oferecer importantes dados do passado e vice
versa. No cinema os filmes ocorrem no presente, ficamos na mesma posição que o
personagem. “nós, assim como eles, não sabemos o que vai acontecer em seguida.
Não há tempo para refletir sobre o que está acontecendo. Só há tempo para viver o
presente, para se envolver com o desenrolar dos acontecimentos.” não necessitamos
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assim de um narrador para nos auxiliar a interpretar ou nos relatar um
acontecimento. (SEGER, 2007, p. 42).
Após as apresentações, adentrou-se no campo da adaptação, relatando os
principais equívocos que podem ocorrer e o que fazer para evitar fracassar nesta arte. Para que
fosse concluído o estudo, traçou-se um comparativo entre partes da obra literária e da fílmica
com o propósito de apontar as diferenças entre as duas linguagens e poder então detectar
elementos que ganharam ênfase na obra cinematográfica, elementos que foram cortados e o
que se preservou do romance para o filme.
Detectada a composição da obra adaptada, vê-se que o processo da
transcodificação literário-fílmica resultou em uma obra que manteve toda a essência do
original, tornando-se fidedigna, conseguindo transpassar toda a cultura daqueles povos,
atentando a detalhes minuciosos como botões de roupas a adornos de armas, assim como na
escolha do elenco (não foi contratado nenhum ator consagrado para não haver relações de
personagens já atuados sobre a personalidade do que iria se contracenar). Com isso, o cineasta
manteve a atenção e interesse no público consumidor, utilizando em demasia de recursos
sonoros, visuais e efeitos especiais. Acabou despertando na sociedade atual o prazer em
buscar por esse tipo de cultura, reimplantando o imaginário nas pessoas por meio do filme,
fazendo muitos espectadores procurar pela obra literária e conferir o mundo imaginado pelo
grande escritor, Tolkien.
Não apenas pela imensa publicidade dos filmes, mas também pelo merchandising de
todos os produtos correlatos, esse projeto atraiu a atenção do mundo e transformou
em fãs de Tolkien muitas pessoas que até então nunca tinham ouvido falar dele. No
mínimo este mérito tem a produção de Jackson: implantou Tolkien no imaginário
público e fez muita gente interessar-se por suas obras também no papel. (KYRMSE,
2003, p. 140).
Por fim, pode-se constar no estudo que mesmo na atualidade a abordagem
mítica se encontra defasada e, ao despertá-la no inconsciente, tanto crianças como adultos se
perdem na narração de tantos fatos heróicos e instigantes, e que, independente dos processos
de transcodificação midiática ocorridos, tanto a narrativa original como na obra fílmica
adaptada, vê-se que este estilo de narrativa não se defasou, basta apenas iniciar a leitura ou
assistir ao filme para que o inconsciente permita o mundo mítico se aflorar.
O mito ocorre pela comunicação entre o seu consciente e o seu inconsciente. “As
imagens mitológicas são aquelas que colocam o consciente em contato com o
inconsciente. É isso que elas são. Quando não temos imagens mitológicas, ou
quando o consciente as rejeita por uma ou outra razão, perdemos o contato com a
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nossa parte mais profunda. Acho que esse é o propósito de uma mitologia pela qual
se possa viver. Temos de descobrir por qual mitologia estamos de fato vivendo e
conhecê-la, para podermos tocar a nossa ocupação com a competência.
(CAMPBELL, 2008, p. 111).
E ainda,
A mitologia é a música. É a música da imaginação, inspirada nas energias do corpo.
Uma vez um mestre zen parou diante de seus discípulos, prestes a proferir um
sermão. No instante em que ele ia abrir a boca, um pássaro cantou. E ele disse: “O
sermão já foi proferido”. (CAMPBELL, 1990, p. 36).
Demonstra também que a obra literária transpôs e superou o tempo e, como
tal, os causadores desta façanha (o escritor John Ronald Reuel Tolkien e o cineasta Peter
Jackson) devem ser respeitados e aclamados pela qualidade que se mantiveram entre estes
dois formatos dramatúrgicos.
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