mauá e a ética saint-simoniana - Centro de Documentação do

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mauá e a ética saint-simoniana - Centro de Documentação do
JOSÉ MAURÍCIO DE CARVALHO
MAUÁ
E A ÉTICA
SAINT-SIMONIANA
2
A
Antônio Paim,
dedicado estudioso do pensamento nacional
A
Miguel Reale,
ardoroso defensor da dignidade humana
3
4
No nosso modo de ver, os valores não possuem uma realidade em si, ontológica, mas
sim vinculada a atos e coisas valiosas. Trata-se de algo que se revela na experiência
humana, através da história. Os valores não
são uma realidade ideal que o homem contemple como se fosse um modelo definitivo,
ou que só possa realizar de maneira indireta, como quem faz uma cópia. Os valores
são, ao contrário, algo que o homem realiza
em sua própria experiência e que vai assumindo expressões diversas e exemplares,
projetando-se através do tempo, numa incessante constituição de entes valiosos.
REALE, Miguel. Introdução à filosofia. 2ª ed. - São Paulo:
Saraiva, 1989. p. 157.
5
6
SUMÁRIO
NOTA INTRODUTÓRIA......................................... 9
CAP. 1 - A CARACTERIZAÇÃO DA
PROBLEMÁTICA: OS VALORES....................... 17
CAP. 2 - IRINEO EVANGELISTA DE SOUZA ASPECTOS GERAIS DO SEU PENSAMENTO... 43
1. Pressupostos teóricos.......................................... 43
1.1. A problemática.............................................. 48
2. A dinâmica da moral contra-reformista.............. 50
3. Proposta moral de Melo Freire........................... 55
4. As dificuldades da moral contra-reformista........ 58
5. A formação moral.............................................. 60
6. A busca do progresso material............................ 81
7. O final do sonho de progresso............................ 89
7.1. O contexto sócio-econômico e político...........
CAP. 3 - QUESTÕES DE MORAL E
POLÍTICA NO SÉCULO XIX............................... 99
1. As raízes do debate político................................ 106
2. Pombal, razão de estado e independência
entre ética e política........................................... 108
2.1. A razão de estado e os moralistas
lusitanos do séc. XVI.................................... 110
2.2. A política pombalina..................................... 113
3. A idéia de progresso e o liberalismo ético
normativo.......................................................... 120
3.1. Cairu e o propósito conciliador...................... 125
3.2. Os valores e virtudes..................................... 128
4. Silvestre Pinheiro Ferreira.................................. 131
5. Eduardo Ferreira França.................................... 133
6. Domingos Gonçalves de Magalhães................... 136
7. Antônio Pedro de Figueiredo.............................. 138
8. Luis Pereira Barreto........................................... 141
9. O liberalismo de Smith e Say............................. 150
CAP. 4 - ASPECTOS FUNDAMENTAIS DO
FISIOLOGISMO SOCIAL DE SAINT-SIMON..... 174
1. A concepção evolutivo-messiânica na
civilização ocidental........................................... 196
7
90
2. As conseqüências filosóficas do
industrialismo.................................................... 217
3. O industrialismo de Saint-Simon e o
liberalismo de J. B. Say...................................... 234
4. A evolução teórica do saint-simonismo............... 242
CAP.5 - MAUÁ E OS VALORES............................. 261
1. A hipótese inicial............................................... 261
2. A retomada da questão....................................... 272
3. Mauá e o saint-simonismo.................................. 283
4. Uma ética heterodoxa......................................... 290
5. A ética saint-simoniana e o econômico............... 296
6. A síntese de sua vida.......................................... 305
CONCLUSÃO.......................................................... 316
BIBLIOGRAFIA....................................................... 326
8
NOTA INTRODUTÓRIA
O
presente trabalho foi apresentado e aprovado como
tese de doutorado na Universidade Gama Filho - Rio
de Janeiro, em abril de 1990. Nele nos detivemos a examinar questões ligadas ao substrato moral de nossa cultura, sobretudo à in-fluência em Mauá da ética saint-simoniana e do
sonho iluminista de progresso. Na proporção em que avançávamos na pesquisa, o problema de entender como se processara, em nossa circunstância, o contacto com os valores
modernos tornou-se inadiável.
Nos anos seguintes nos dedicamos ao exame desse problema em pesquisa de pós-doutorado desenvolvida no programa de pós-graduação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e na Universidade Nova de Lisboa (UNL Portugal) com financiamento da FAPEMIG. O resultado
dessas pesquisas deram origem ao livro Caminhos da moral
moderna; a experiência luso-brasileira editado pela Itatiaia
em 1995.
Concluído o estudo pudemos voltar à tese acadêmica. Ela
está intimamente ligada ao livro já publicado, acreditamos
que é uma chave para entendê-lo. Com o objetivo de publicá-la retiramos as notas extensas e as longas referências as
quais, embora exigidas no trabalho universitário, dificultam
uma leitura linear. O texto original foi, no entanto, respeitado.
A questão continua a suscitar controvérsias. No prefácio
da edição de 1996 da Exposição de Mauá aos credores e ao
público, editado pela Expressão e Cultura, Amaury Temporal desqualificou a hipótese da influência saint-simoniana
em Mauá e assim não é inoportuno publicar o resultado de
nosso estudo, ainda que concluído há algum tempo. Substituímos também algumas referências que mereceram publi-
9
cação posterior à defesa da tese, pois na época eram textos
se sala de aula.
Finalmente uma palavra de agradecimento ao Dr. Ricardo Vélez Rodrigues que foi na ocasião o orientador da pesquisa. Ainda hoje guardamos boas lembranças de nossas
conversas.
O Autor
10
INTRODUÇÃO
A
o considerarmos a presença das idéias saint-simonianas, inspirando o pensamento e ações de Irineo
Evangelista de Souza, Barão de Mauá, (1813-1889), procuramos reconstituir a força das motivações éticas na vida humana. Foi em vista disso que nos voltamos para o exame dos
valores que o influenciaram, procurando também identificar
a sua contribuição para a valorização da vida humana e para
a edificação de um ideal de homem consciente de seus deveres de cidadão. No desenvolvimento desta tese nos deparamos com a questão do substrato moral de nossa cultura, que
tivemos adicionalmente que examinar.
A difícil missão de compreender o significado da vida,
en-tender os valores que norteiam a circunstância atual, nos
colocam frente a frente com o passado, mesmo quando desejaríamos estar voltados para o futuro. No entanto, nem o
passado, nem o futuro significam muito se não ajudam a entender o presente, se não auxiliam a ampliar o conhecimento
que temos de nós mesmos. Precisamos aprender com o passado, possuímos compromisso com o devir, mas não temos
como ser indiferentes aos desafios de nosso tempo. Devemos estar prontos para enfrentar as dúvidas de nossa geração, como sugeriu Ralph Waldo Emerson (1803-1882). Cada época tem suas incertezas e angústias, o nosso tempo
busca esclarecer o sentido da cidadania, intenta deslindar as
teias do compromis-so do homem com o seu grupo, aspira
encontrar os elementos que facilitem a compreensão do que
seja o homem.
O desejo de entender a humanidade do homem não nasceu em nosso tempo. Ele nos acompanha ao longo de toda a
nossa aventura terrestre, mas ganhou intensidade e força
com Immanuel Kant (1724-1804) e Johann Gottlieb Fich-
11
te (1762-1814) quando a filosofia passou a privilegiar a ação
do sendo em detrimento da descrição do ser. Mais recentemente o ser que somos tornou-se o farol na busca de resposta para a indagação do que é o ser. Mesmo sem considerarmos a transição para o realismo de nossos dias, podemos tirar desse pensamento a preocupação antropológica. O caminho clássico da metafísica acabou esquecendo o homem, estamos desafiados a re-encontrá-lo.
Urge, pois, no horizonte conceitual desvincular o avanço
do espírito de qualquer absoluto, ou melhor, voltar o pensamento transcendental para uma totalidade impessoal. Transmudar o foco de nossa atenção do mundo da natureza para o
espaço de criação da humanidade, para a herança que a
humanidade impregna em seus membros, é um dos capítulos
mais apaixonantes do desafio de nossos dias.
Nesse contexto, Delfim Pinto dos Santos (1907-1966)
chamou atenção para o fato de que a pessoa humana se
cons-titui, ou torna-se um ente moral, quando está no espaço
coletivo. O homem é inseparável de seu mundo e é nele que
devemos buscar os elementos para entendê-lo, sobretudo
quando temos em vista o propósito de desvendar o que nele
existe de mais essencial.
A subjetividade pensante, que René Descartes (15961650) identificou, ganha assim um novo significado quando
não é abstraída do seu universo social. O indivíduo é membro de uma civilização, de uma sociedade e é nela e através
dela que aprende a ser homem, sensível aos apelos de seus
semelhantes, preocupado com os temas universais.
Quando nos voltamos para um problema ético não podemos deixar de ter em vista a questão da cultura. É do seio de
seu grupo que o homem dignifica sua subjetividade e descobre o sentido de encontrar seu caminho. Muito mais importante que os objetos que constrói com a força de suas mãos e
a genialidade de seu pensamento são os valores que elabora.
Muito mais significativos que esses últimos é o próprio ho-
12
mem, que se descobre razão de ser do universo cultural e
agente capaz de decidir entre o que deverá continuar a existir ou que precisa ser substituído na história de sua gente.
A história registra os valores que marcaram uma época,
que levaram os homens a fazer a guerra e a paz, que orientaram esforços para a edificação de ferrovias ou catedrais, que
lhe ensinaram a confiar em si ou a submeter-se a forças
maiores como a religião, o estado, o partido político ou um
absoluto qualquer.
É ainda Delfim Santos que nos ensina ser uma capacidade, uma sabedoria, identificar na cultura, alternadamente,
um propósito de renovação e de conservação. É que a cultura forma-se desses dois movimentos. É preciso mudar o que
já não funciona, ousar quando os meios e valores tornaramse inadequados e é igualmente desejável saber o que é preciso conservar. A tradição só é um mal quando se torna exclusiva e, ao contrário, é um bem quando instaura a responsabilidade com os destinos do grupo. Assim quando nos voltamos a um problema ético, notadamente ao exame de uma
questão desta natureza, estamos dedicando um certo esforço
a esclarecer as etapas do humanismo de nossa cultura, sem
precisar adotar qualquer tipo de historicismo.
Se a virtude esteve na Grécia Antiga associada à sabedoria e se com o cristianismo tornou-se a capacidade de obter a
salvação eterna, o desafio dos tempos de Mauá foi associá-la
ao processo de transformação do mundo social através da
produção material. José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu
(1756-1835) chegara mesmo a propor a valorização do trabalho livre como forma de promover o aperfeiçoamento moral, proporcionando à sociedade o progresso e a felicidade.
Ao escrever a biografia do Visconde de Mauá, Alberto
de Faria (1869-1925) observou que ele dera, como o Visconde de Cairu igualmente fizera, um significado moral às
práticas econômicas, mas não se mantinha no modelo tomista adotado por aquele, paradigma que não podia prescindir
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de fundamentar as ações éticas no absoluto. Ao fugir do caminho trilhado por Cairu, Mauá abandonou o entendimento
de que a metafísica presidia e orientava as restantes ciências, mas conservou sólida referência humanista. Faria entendeu que o componente humanista existente no pensamento de Mauá advinha do saint-simonismo. Aí pareceu encontrar a explicação para o propósito de Mauá dedicar-se à causa do progresso, tal como se ele fora uma resultante da ordem geral do ser, na qual o progresso está em germe e é o
fim.
Aqui temos, portanto, o objetivo de investigar a hipótese
de Alberto de Faria. Procuramos explicitar os elementos que
indicam a influência do saint-simonismo no pensamento e
na vida de Mauá. A defesa do trabalho, de uma sociedade
estruturada sob a inspiração da indústria, haveria de constituir um cidadão altruísta, um sujeito voltado para os grandes
compromissos dessa sociedade. O ideal ético do homem moral estava voltado para orientar o melhor de seus esforços,
pensamentos e emoções na direção dos valores construídos
pela elite dirigente, capaz de indicar os caminhos corretos
em todos os aspectos da vida. O povo em seu existir cotidiano era incapaz de viver plenamente a virtude, razão pela
qual precisava ser dirigido por aqueles que já houvessem alcançado um nível de elevação moral que o fizesse responsável pelos destinos da sociedade. Assim os dirigentes deviam
elaborar um código de valores, vinculando-se responsabilidade ética com autoridade política.
No capítulo primeiro procuramos caracterizar a problemática, a reforma pombalina promoveu uma valorização da
ciência e até do trabalho voltado para o bem da sociedade. A
felicidade a ser obtida era então a do estado, não a do indivíduo, mas as reformas de Pombal basearam-se apenas na
incorporação de novos hábitos e não foram capazes de alterar o eixo da moral tradicional. O Marquês acreditou que a
ciência seria competente para orientar o comportamento co-
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letivo, mas como não promoveu uma alteração na moral,
permitiu que a tese do direito natural como produto da razão
fosse usada como expressão dos antigos valores. O saintsimonis-mo viria preencher essa lacuna apontando o significado ético do compromisso de humanização do mundo.
No capítulo seguinte indicamos quais as variáveis mais
significativas que influenciaram na formação dos valores de
Mauá. A vida de Mauá foi marcada pela influência da moral
cristã, mas ele não resguardou a fundamentação divina do
direito natural, responsável por manter intacto o ideal moral
contra-reformista. O pombalismo promoveu uma dupla atitude frente o trabalho e a riqueza, cuja combinação influiu
na complexa formação moral do Visconde, pois propusera a
valorização da riqueza voltada apenas para a construção do
estado. Do ponto de vista político, existia em nosso país um
ambiente propício à conciliação das teses individualistas
com a concepção autoritária de estado, esta última resultante
da argumentação absolutista do tradicionalismo. Estava
pouco explicitada a dificuldade de associar o individualismo
a uma sociedade total, que em si mesma se determina e historicamente se fundamenta.
No capítulo terceiro abordamos algumas características
básicas do estado patrimonial brasileiro. Procuramos estudar
a sua estrutura onde a espontaneidade somente parecia
admitida quando circunscrita a projetos mais amplos que
delimitavam as alternativas da sociedade. A atuação
empresarial, a livre iniciativa, apenas quando apresentada
dentro dos grandes objetivos nacionais, era aceita. Nos
projetos nacionais a diversidade dos interesses, mesmo não
sendo eliminada, perdia a condição de elemento
desagregador. Ficou tolerada a individualidade, mas a
essência do estado transcendia o acordo ou pacto dos
cidadãos. Era efetiva a desconfiança na liberdade contratual
para promover as relações sociais na justiça, ou supor que
daí pudesse advir o maior bem para a felicidade do maior
15
felicidade do maior número como sugeriu Jeremy Bentham
(1748-1832).
No quarto capítulo apresentamos uma síntese do pensamento econômico e filosófico de Saint-Simon (1760-1825).
Sua doutrina, denominada industrialismo, configura-se como uma meditação de natureza fundamentalmente éticopolítica, que, segundo o próprio autor, deve ser compreendida como parte do processo evolutivo da civilização ocidental. O ocidente, que teve no cristianismo primitivo um elemento dinamizador, precisava, assim acreditava o filósofo,
superar a es-tagnação e o imobilismo resultantes da versão
moderna daquela doutrina. Preservava-se o seu núcleo político onde o cidadão era um aspecto da ordem coletiva, mas o
compromisso principal deixava de ser a conquista da felicidade eterna. O grande compromisso passava a ser a preservação e o progresso da humanidade, alçada à uma dignidade
excelsa, a quem todos os homens são chamados a respeitar e
servir. A vida humana estaria voltada para resolver as dificuldades dela mesma, esgotava-se em si própria.
Tido como um dos precursores do socialismo, Saint-Simon elaborou uma vasta obra onde estão combinados elementos próprios do conservadorismo e empirismo associados a críticas à liberdade política tudo isso tendo como pano
de fundo um conteúdo místico e religioso, onde a vida humana somente se define, na gênese e nos objetivos, no seio
do corpo coletivo. O ideal de moralidade está voltado para a
formação dos homens e comprometido com o seu destino
terreno, destino pessoal primeiro com os compromissos desse mundo e depois da morte na influência sobre os demais
seres humanos. No entanto, num e noutro caso preso a um
ideal coletivo de vida e aos serviços à humanidade.
Do ponto de vista ético, ele atentou para a importância da
paixão, tida como um fator motivador do comportamento.
Nesse impulso encontraria o princípio da prática, utilizandoo para valorizar a ação individual e realçar a importância da
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crença messiânica no progresso, em contraposição à idéia de
progresso conduzida pelo espírito absoluto no idealismo hegeliano. Havia no saint-simonismo uma confiança romântica
na capacidade do homem para promover o avanço histórico,
ao contrário do modelo metafísico de uma totalidade objetiva em evolução, posta em curso pelo hegelianismo.
No quinto e último capítulo completamos a pesquisa.
Procuramos penetrar no filosofar saint-simoniano, ultrapassar os aspectos exteriores da teoria e encontrar os seus eixos
temáticos: historicismo, religião laica, confiança na ciência
e no progresso humano. Esses elementos são justamente aqueles que haveriam de promover em nosso século o desencanto do homem consigo mesmo. Eles veicularam uma associação da história ao aperfeiçoamento ético, que sugeriu a
existência em processo da auto-realização da humanidade. A
crítica que hoje daí emerge advém do entendimento de que a
irreversibilidade temporal não possui consistência ontológica. O homem sente-se, pois, o objeto privilegiado de suas
indagações e a temporalidade é vista sob outro prisma, ainda
que se deva em ética considerar os avanços em torno do ideal de pessoa como uma invariante axiológica.
O pensamento de Saint-Simon foi extraído tanto de suas
Obras Escolhidas (1850), quanto das Obras Completas
(1865); tivemos ainda o cuidado de consultar alguns de seus
comentadores mais conhecidos. O saint-simonismo tinha a
vantagem de preservar do pombalismo o ideal de constituição do cidadão perfeito, agindo com vistas ao bem do grupo,
além de associar esse propósito com o ideal de virtude, com
o que não sonharam os teóricos do pombalismo.
Sob o aspecto metodológico, procuramos estudar a influência saint-simoniana no pensamento e nas ações de Mauá,
conduzindo a discussão em torno a problemas específicos.
Esta estratégia metodológica já havia sido utilizada por Nicolai Hartmann (1882-1950) em Auto-exposição sistemática. Baseia-se na descoberta de que o estudo das idéias pode
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privilegiar as perspectivas, os sistemas e os problemas. Meditar centrando atenção nos problemas é mais dinâmico e
tem-se revelado mais fecundo.
Miguel Reale (nasc. em 1910) observou adequadamente
que esse modelo teórico se caracteriza por três pontos: 1. identificar um problema específico na consciência humana;
2. abandonar as comparações das interpretações e 3. considerar o problema como o referencial no exame dos autores.
Foi ainda Reale quem explicou a importância de examinarmos a formação dos valores, pois eles não existem por si só
e se constituem em referência a um sujeito histórico. Ao
cuidarmos das opções de Mauá ajudamos a por às claras o
processo da experiência humana com o qual estamos todos
comprometidos.
18
CAPÍTULO I
A CARACTERIZAÇÃO DA PROBLEMÁTICA: OS
VALORES
O
século XIX, como praticamente todos os períodos
da história, foi caracterizado por uma pluralidade de
visões sobre o homem, a sociedade, os valores, a liberdade e
o papel do estado. Aquela centúria foi um momento no qual
a polêmica em torno desses temas alimentou diferentes concepções filosóficas. Paradoxalmente, o idealismo absoluto
de Hegel pode ser apontado como ponto de partida daquele
século, especialmente pela posição que o filósofo assumiu
em relação à história e à razão. O filósofo prussiano não abdicou de pensar sistemicamente, vinculando cada problema
ao todo e também cuidou de integrar a política e a ética no
conceito de tempo. Ao eleger a relação entre indivíduo e totalidade co-mo um dos problemas centrais da filosofia, Hegel abriu um espaço de reflexão sobre as características da
relação entre o sujeito e o grupo humano, alimentando a especulação sobre o significado da liberdade. Era uma questão
candente entender a capacidade do sujeito de ser senhor de
sua vida e do seu destino, bem como examinar até onde ia o
controle do estado sobre o indivíduo. Ainda que sem essa intenção, o hegelianismo inspirou diferentes modos de considerar os problemas acima enumerados.
A filosofia romântica já havia chamado atenção para a
importância da análise da vida das comunidades e das pessoas, mas foi com Hegel que o papel desempenhado pelos
indivíduos e pelos grupos assumiu grande realce. Ao estabe-
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lecer o seu sistema filosófico, Hegel propôs que o verdadeiro caráter do processo histórico é o desenvolvimento da razão divina universal. Desde então, o valor das ações dos sujeitos marcantes e das nações ganharam destaque, ainda que
não se partilhasse da tese hegeliana, segundo a qual a história era o resultado do processo de autoconsciência do espírito, um processo do qual ele emerge enaltecido, glorificado,
um espírito purificado.
A oposição entre os indivíduos e o estado, tornara-se
uma questão crucial. A reforma pombalina em Portugal
consti-tuiu-se num obstáculo para a explicitação do sentido
da liberdade política, pois circunscreveu-a ao espaço de opções muito restritas que o homem fazia, orientado por sua
consciência moral. O pombalismo considerou a liberdade,
que estava na base do ato moral com vistas a escolha do bem
e do mal, mas não associou essa capacidade à possibilidade
do homem de dar um sentido à sua vida. Ao contrário, a filosofia política que daí emergiu privilegiou o estado e não o
indivíduo. Pascoal José de Melo Freire (1738-1798), o teórico desse modelo político, entendeu o direito como uma forma de consciência social e hegelianamente considerou o estado co-mo o guardião da ética e fiador da liberdade. A diferença em relação a Hegel foi que Melo Freire conservou, no
plano pessoal, a ética católica, transcendente e eudemonista
tal como o desejara Pombal. Tomou-a como o alimento para
a codificação legal, que exprimia a universalidade da moral.
Isso obrigou, posteriormente, Silvestre Pinheiro Ferreira
(1769-1846) a refazer os direitos e deveres do cidadão no fi1
nal de suas Preleções Filosóficas.
O pensamento político gerado no pombalismo, notadamente a sua sistematização teórica dada por Melo Freire,
1
FERREIRA, Silvestre Pinheiro. Preleções Filosóficas. São Paulo, Grijalbo/USP, l970. p. 280/1.
20
transpunha para o Estado parte da responsabilidade de formar o homem moralmente. Embora Deus fosse o fundamento último da moralidade, era no Estado que as obrigações
morais obtinham a expressão racional. Esse fato fazia do estado um justificador das ações éticas, sacrificando a liberdade pessoal às situações e objetivos coletivos. Ficava a liberdade política e pessoal desfigurada do significado que adquirira nas tematizações de John Locke (1632-1704). Foi essa circunstância, apreendida por Renato Archer, que explicou as dificuldades de se impor uma teoria da liberdade onde a liberdade política não conseguia espaço entre as instituições:
“Conhecendo as leis do lucro, encontrava-se com os
ideais de engrandecimento da Pátria; visando ao diaa-dia dos negócios, não se desprendia da fascinação
do progresso social”.2
O hegelianismo chamara atenção para o significado da
busca de satisfação individual na força e na prosperidade da
pátria, pois o Estado era a efetividade da idéia ética. O indivíduo, reduzido a si, era apenas uma abstração, afirmara Hegel, e a verdadeira unidade orgânica era o povo. O hegelianismo veiculou o historicismo e o organicismo social que foi
aceito por Saint-Simon. Apesar de pensar segundo categorias liberais, Mauá, na hipótese de Faria, teria sido influenciado pelo espírito do saint-simonismo, pretendendo conduzir o
Brasil a uma era de progresso e pensando nesse progresso
como a implementação de um objetivo ético na idéia de estado. As reflexões de Castro Rebello criaram uma imagem
diferente daquela veiculada por Alberto de Faria em seu texto Mauá; Irineo Evangelista de Souza, Barão e Visconde de
Mauá. Em seus estudos, Castro Rebello apresentou Mauá
2
ARCHER, Renato. Mauá ontem e hoje. São Paulo, Bianchi, 1987. p.
17/18.
21
como um exemplo da nova burguesia nacional, consciente
da oposição insuperável que existia entre burgueses e trabalhadores, dicotomia sem qualquer possibilidade de ser harmonizada no seio do estado. Nesse estado o cidadão era um
componente ajustado a uma totalidade política, os grupos
sociais constituíam uma unidade de propósitos e interesses.
Utilizando o esquema marxista, alimentado pelo cientificismo gerado no comtismo, Rebello jamais admitiria a pluralidade cultural, preferindo explicar a história através do rígido
esquema que supõe a inelutável evolução do progresso segundo a alternância comunismo-primitivo, escravagismo,
feudalismo e ca-pitalismo. Nesse esquema um empresário
não revelaria preocupação social e um Estado plural era incapaz de propiciar as determinações da liberdade.
Essas duas interpretações que nos conduzem a uma visão
bipolar na qual ora se enfatiza a figura de um egoísta, que
usa de todos os recursos para obter favores do governo, ora
de um homem absolutamente desprendido, onde os interesses próprios estavam submetidos aos deveres do cidadão,
obscurecem uma interpretação mais objetiva de Mauá. Burguês, prático e defensor dos próprios interesses, ou cidadão,
ético e voltado para o grupo, tal é a forma como diferentes
estudos nos veiculam a sua imagem. A superação de semelhantes aná-lises é o que propomos neste trabalho. Pode-se
notar em Mauá os traços típicos da burguesia emergente,
uma vez que ele defende muitas de suas teses tais como: a
legitimidade do lucro, a necessidade de baixas taxas de juros
para a promoção do crescimento da indústria e do comércio
e a auto-re-gulação do mercado. Por outro lado, afasta-se
muito das teses dos industriais britânicos e defende uma política de proteção alfandegária à incipiente indústria nacional, além de dar ao Estado Brasileiro o papel de dinamizador
do progresso material, liderado, como devia ser, pelos industriais.
22
A criação humana é obra de um povo e se concretiza numa determinada cultura. Essa cultura é uma espécie de pa-no
de fundo sobre a qual o cidadão formula os seus valores,
pensa a liberdade, dá uma justificativa a sua existência. No
entanto, as culturas se influenciam do mesmo modo como as
nações dialogam. Mauá desejou fomentar esse diálogo em
virtude de sua importância para o aperfeiçoamento dos povos e descobriu aspectos capazes de enriquecer seus compromissos de cidadão. Foi também Archer quem observou
que as raízes dessas intenções éticas estavam vinculadas à
moral dos sentimentos e ao utilitarismo:
“Quando de sua primeira viagem à Inglaterra, em
1840, já havia lido os clássicos do liberalismo anglosaxão, e os pensadores da escola de Manchester, todos descendentes do utilitarista Jeremy Bentham. Adam Smith, o francês Say e o arquiliberal Stuart Mill
abriram-lhe as portas para a ideologia da modernidade que ele mais tarde representou entre nós”.3
Devemos admirar em Mauá seu desejo de promover o
desenvolvimento material e ético, mas ficou evidente que
ele ajustou-se à tradição pombalina, dando realce à majestade do Estado. Tal projeto político nasceu associado aos novos tempos, onde o impulso para a liberdade deixou de possuir sentido metafísico para se associar ao plano ético da
cultura. A recomposição do pensamento dos filósofos modernos, indicou-nos o abandono da referência metafísica,
que marcara as origens da investigação filosófica na Grécia,
em favor de uma nova concepção. A filosofia não era mais
entendida como um pôr-se de acordo com o ser e sim como
um pensar que se expressava no conhecimento racional e na
transformação do mundo. Esta modalidade de reflexão elegia o homem ser fundamental, medida e base da própria re-
3
ARCHER, Renato. Mauá ontem e hoje. São Paulo, Bianchi, 1987. p.
17/8.
23
flexão. Essa confiança nascia da certeza da razão indicar,
ainda que não exclusivamente, os caminhos corretos, precisando o homem nela confiar para melhorar a vida social. Por
isso, a influência filosófica na vida das pessoas foi mais palpável. Mauá viveu os altos ideais do século e a análise de
Paulo Gaudêncio evidenciou o seu propósito revolucionário:
“O homem pagou altas somas em dinheiro e dolorosas frustrações, para manter-se em alto preço. Não
carecia. Todos os seus empreendimentos seriam marcados pelo pioneirismo, revolucionando a sociedade
em que vivera”.4
É claro que a complexa solução dada por Mauá não pode
limitar-se a uma interpretação unilateral, nem tender para
um desprendimento inocente não comprovado, nem ser entendido como fruto do egoísmo.
A hipótese já levantada por Alberto de Faria constitui-se
numa variável que, sem dúvida, merece uma investigação
mais detalhada. Se explorada a influência saint-simoniana
no pensamento de Mauá, parece que determinadas perguntas, antes sem respostas, começam a ganhar significado. A
respeito frisa o citado autor:
“O exame de sua vida, a contemplação de sua obra e
a meditação sobre seus escritos posteriores não deixam dúvida de que uma influência filosófica ou misticismo religioso, ou inspiração sobrenatural convenceu Mauá, em sua mocidade, que lhe estava destinado
o papel de civilizador industrial de sua pátria”.5
Não se deve ignorar que essa inspiração aos poucos alimentou um impulso ético, um propósito de fazer o bem e
espalhá-lo pela sociedade. Não nos parece lícito atribui-lo às
4
GAUDÊNCIO, Paulo. Mauá-biografia Psicanalítica. São Paulo, Bianchi, 1987. p. 79.
5
FARIA, Alberto. Mauá, Irineo Evangelista de Souza, Barão e Visconde
de Mauá. 2. ed. São Paulo, Comp. Editora Nacional, 1933. p. 101.
24
próprias relações sociais. O movente básico de suas ações
parece ser uma convicção messiânica que deveria impulsionar o progresso material do País. Não se enxergue nesta motivação uma inspiração religiosa, como fica claro existir nos
quakers ocupantes da América do Norte. Também não se
trata, como na moral contra-reformista, de encarar o trabalho como uma revanche divina que impôs ao homem uma
obrigação depois do pecado original. O saint-simonismo,
proposta como uma espécie de novo cristianismo, fornecia
boas razões para alimentar o altruísmo e estimular a responsabilidade dos mais hábeis e diligentes a promover o progresso humano. Até que ponto é romântico alimentar esse
sonho diante das páginas de Arthur Schopenhauer (17881860) é difícil de afirmar. De todo modo o saint-simonismo
possuía uma dimensão conservadora, buscando na tradição
os valores sociais, enquanto simultaneamente aderia com o
iluminismo ao reconhecimento da capacidade da razão traçar as bases da política. Nesse caso a tradicional organização da sociedade era um estágio a ser ultrapassado, nas
mãos dos industriais estavam as fórmulas da prosperidade
social e da moral.
O fervor pelo trabalho provinha do fato de que por ele
era possível humanizar a paisagem, fazê-la mais bonita e
mais de acordo com as necessidades humanas. Não parece
razoável entender que a organização dessa topografia comportamental possa derivar da simples prática do trabalho. A
realização material que certamente estimula o trabalho é um
motivo importante; mas é necessário considerar-se também
um certo propósito ético, capaz de responder aos desafios de
mudar o mundo da natureza num espaço da dignidade e do
respeito. Essa paixão pela realização material e pelo progresso humano constituíram-se no ideal que Saint-Simon
propôs à humanidade como forma de superação do cristianismo, entendido esse como uma religião ultrapassada, que
combinava ideais racionais com superstições que precisa-
25
vam ser erradicadas. A consciência moral, desafiada pelo
mundo da natureza, passava a imprimir uma finalidade ética
ao trabalho e à mudança do mundo.
Saint-Simon entendeu que o fator religioso desempenhava um papel de primeira ordem na organização social. A religião — escreveu o filósofo - vinha associada ao projeto de
instaurar o progresso moral à sociedade. Ela
“tem servido e servirá sempre como base de organização social (...); a humanidade tem atravessado crises científicas, morais e políticas sempre que a ideologia religiosa tem experimentado algum câmbio. E
dedicou a última parte de sua vida a procura desse
embasamento religioso para a sociedade industrial.
Georges Gurvitch frisa que a religião saint-simoniana se refere em particular a atividade coletiva da sociedade, ao surgimento de sua nova moral do amor e
do trabalho combinados, própria do regime industrial. A humanidade não somente tem inventado Deus e
descoberto a sua presença no mundo natural e social,
mas elas mesmas tornam-se cada vez mais divinas. No
seu esforço por reconciliar o panteísmo naturalista e
o panteísmo humanista, Saint-Simon chega a preponderância deste último, realizada pela moralidade coletiva considerada como Deus (...)”.6
Caso a hipótese básica deste trabalho possa ser suficientemente demonstrada, confirma-se o quão fecunda é a trilha
que liga os pensadores e une o que aparentemente é oposto
no universo da filosofia, porquanto Saint-Simon foi um dos
teorizadores do positivismo social, movimento que inclui os
chamados socialistas utópicos. O pai do industrialismo propôs que a história se constituía como unidade contínua, porém sustentada num princípio dialético segundo o qual as
épocas se opunham com razoável grau de organização e pro-
6
RODRÍGUES, Ricardo Vélez. Porque ler Saint-Simon, Hoje. O Estado
de São Paulo. Ano I, nº 41 - 22-03-81.
26
progresso, seguidas de outras de decadência. O ponto mais
elevado do progresso de um povo é também o primeiro do
seu retrocesso, princípio do saint-simonismo derivado do
hegelianismo. O processo histórico dera-se pelo antagonismo e pela sucessão dessas épocas de progresso (denominadas orgânicas) e das de implosão (denominadas críticas).
Um período orgânico era justamente aquele no qual os princípios básicos norteadores da vida, do mundo e de Deus se
mantinham organizados e eram a base do desenvolvimento
harmonioso da cultura. Consideramos, por exemplo, o período politeísta, que fora postergado pelas idéias monoteístas
que, em seguida, se solidificaram num corpo coerente durante a Idade Média. Esse período histórico foi posto em crise
pela evolução do pensamento científico, que alterou a ênfase
eidético-qualifica-tiva enfatizando a mecânica do movimento. A nova época orgânica era a da ciência positivista cujas
descobertas e sabedoria fundamentavam uma visão do homem e da sociedade laica. A organização da sociedade moderna não podia mais se fundamentar nas bases da escolástica; as ciências positivas, porém, deviam proporcionar a base
de sustentação para um novo período tão orgânico como aquele. A ciência moderna, colocada no centro do universo
conceitual, precisava alimentar o respeito e o amor a toda a
humanidade e isso pretendera o saint-simonismo, tornando-a
fomento do amor à humanidade.
Dando prosseguimento à análise dos principais aspectos
do pensamento de Saint-Simon, que encontram ressonância
nas atividades de Mauá, seria preciso destacar, de maneira
sucinta, uma faceta do seu pensamento ético-político. A teoria saint-simoniana tinha forte apelo religioso, como já fizemos notar, e misturava esse apelo a idéias políticoeconômi-cas. Dessa maneira, parece que Saint-Simon transferiu ao nível do trabalho e construção material toda privação afetiva, assim como a carência de sentido que o mundo,
em sua organização material, parecia sugerir. O trabalho
27
constituía-se, desta forma, num apostolado, objetivando a
transformação da realidade material. Nesse apostolado cabia
aos industriais um papel relevante, já que deviam conduzir o
processo de produção da sociedade. O saint-simonismo
combinando o progresso científico e tecnológico com um
propósito ético, alimentava um conceito orgânico e estrutural da sociedade de con-teúdo conservador. Não é, portanto,
incompreensível o fato de Mauá haver buscado no saintsimonismo o conceito de aperfeiçoamento moral, pois era
também orgânico o conceito de sociedade elaborado por
Melo Freire. Em Melo Freire e Saint-Simon historicidade,
dignidade humana e aperfeiçoamento moral estavam próximas, a diferença é que no primeiro elas ancoravam-se na ontologia católica e no segundo numa espécie de divinização
da humanidade. O que fez Cairu asso-ciando a filosofia sensista e os valores materiais à metafísica cristã, procurou fazê-lo Mauá aproximando o progresso social e moral das iniciativas altruístas colocadas como suporte das realizações
materiais.
O saint-simonismo e os ideais iluministas possuíam muitos aspectos convergentes e complementares, apesar dos
pon-tos de antagonismo. O industrialismo estava mais próximo da segunda fase do liberalismo, quando o jusnaturalismo e o contratualismo se achavam abalados pelas filosofias políticas de Rousseau, Burke e Hegel. Naquele momento o ideário saint-simoniano forneceu aos industriais o suporte teórico que o utilitarismo liberal ainda não tinha conseguido oferecer. O industrialismo buscou a coincidência
dos interesses singular e social. A razão humana fornecia adicionalmente um caminho para a ética, nas águas do imanentismo místico anunciava uma vinculação entre o progresso material e as virtudes humanas. Essa associação do porvir
com a ética colocara o futuro nas mãos dos homens, afastando a idéia de fatalidade que o misticismo religioso trouxera à consciência ocidental.
28
O século XIX assistiu a um grande progresso material e
no saint-simonismo ele se associara à evolução da razão experimental. A ampliação do conhecimento e as realizações
materiais identificavam-se com o dever-ser e nasciam do
impulso para a ação. Essa paixão pela realização material
que, na formulação de Gurvitch, se constituía numa forma
de pan-teísmo, espalhou-se pelo mundo na mesma proporção
em que se popularizou a confiança na eficácia da razão experimental. Em muitas regiões onde o entusiasmo pela realização material se difundiu não se chegou a uma síntese teórica desse momento cultural. Não foi em toda parte que esse
imanentismo ético pode explicitar-se sem conflitos. Contradições haviam muitas em nossa organização social, fruto sobretudo dos limites do pombalismo.
O ponto básico da ética saint-simoniana era a produtividade, o combate à ociosidade. Existia, igualmente, na ativida-de de Mauá a convicção de que o trabalho era algo fundamental, não apenas como forma de realização material,
mas, como justificação para a vida. De certo modo é lícito
supor que para Mauá o homem estava nesse mundo para trabalhar. Na formulação protestante, o trabalho fora legitimado como participação na atividade criadora de Deus, e a
mística da ação desenrolava-se em torno desse eixo. SaintSimon desenvolveu a mesma temática, sem apelar, já o afirmamos, para uma razão transcendente. Esse elemento encontrava-se presente na Exposição aos credores, onde uma
vida que não fosse consumida no trabalho não era digna. Esse tratamento ao trabalho, considerado como um instrumento a serviço do bem, pode ser facilmente identificado. Priválo dessa atividade fora sentido como um grande castigo. A
vida somente tinha sentido quando ocupada com o progresso
moral e com a transmutação do mundo, afirmou Mauá:
“A falência significa apenas torcer o punhal que haviam cravado no coração em 17 de maio de 1875, para que a dor fosse mais funda. Foi isso que se prefe-
29
riu! O procedimento é até enigmático, desde que nem
só uma vez, em época alguma anterior, fora a lei (reconhecida inexeqüível) por semelhante forma aplicada para instituições de crédito, nem mesmo de caráter
exclusivamente particular. Destruída a fortuna, abatido o nome, que mais queriam os meus perseguidores
durante os longos anos que terminam agora? Meu único crime foi trabalhar muito, tendo sempre por norte — fazer algum bem”.7
Assim, ao final de sua experiência como empresário,
Mauá afirmou não almejar outra coisa do que encontrar alguém, tão motivado quanto ele próprio, para promover a
transformação da sociedade. Estamos frente ao sonho iluminista, de resto encontrado nas raízes gregas da filosofia, de
que a filosofia era um fator de modificação do mundo, não
diretamente é claro, mas alimentando os propósitos e calibrando as intenções:
“Só me resta fazer votos para que no meio século que
se segue encontre o meu país quem se ocupe dos melhoramentos materiais da nossa terra com a mesma
fervorosa dedicação e desinteresse (digam o que quiserem os maldizentes) que acompanhou os meus atos
durante um período não menos longo...”.8
Mauá vivia as angústias de seu tempo onde a filosofia se
estruturara sobre a sólida base da subjetividade. Os fundamentos deste modo de pensar foram primeiramente sistematizados por Descartes e consolidaram-se com a filosofia
transcendental de Kant. Em seguida, Hegel mostrou as implicações que essa categoria possuía no universo humano.
7
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição
Credores de Mauá e C. e ao Público. Rio de
de J. Villeneuve e C. 1871. p. 163/4.
8
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição
Credores de Mauá e C. e ao Público. Rio de
de J. Villeneuve e C. 1871. p. 165.
30
do Visconde de Mauá aos
Janeiro, Typ. Imp. e Const.
do Visconde de Mauá aos
Janeiro, Typ. Imp. e Const.
Ele colocou na subjetividade os interesses e objetivos do indivíduo e considerou esse o motivo pelo qual, como limite,
eram a causa da insatisfação e da dor. O saint-simonismo tivera a vantagem de não fortalecer esse entendimento hegeliano, antes atribuía à ética o papel de harmonizar tais interesses aos projetos mais amplos da sociedade. Teoricamente o
mesmo tipo de solução foi adotado pela geração pombalina,
que incorporou o conceito de utilidade, mas submeteu-o ao
controle da razão de estado.
A filosofia saint-simoniana realçou ainda a força da história, sem dúvida presente na tradição cristã, mas colocada
em destaque por Hegel. Saint-Simon enfatizou logo que a
his-tória carregava o destino, não de um espírito absoluto,
mas da humanidade. Essa seria tomada como um caminho
para o esclarecimento do pensar, transformando-se, desta
forma, em ser fundamental, em categoria básica. A humanidade, por seu caráter fundante, atraía a paixão e o esforço
humano, papel que a filosofia católica, de Agostinho e Duns
Scotus, por exemplo, atribuíam ao absoluto. O utilitarismo,
ainda que nascido num contexto cristão, tradicionalmente
historicista, não privilegiou a historicidade como categoria
fundamental, embora falasse de progresso. O saintsimonismo favoreceu uma melhor compreensão da idéia de
progresso, associando-a à de história. Vinculou, pois, a idéia
de progresso material com a implantação de uma nova ordem. Mauá utilizou este mesmo referencial, combinando-o
com as idéias utilitárias. Os moralistas lusitanos do século
XVIII já defendiam que as paixões produziam bons efeitos
sociais. Ao fazê-lo em nome da utilidade puderam valorizar
a sagacidade, a diligência, a regularidade, o empenho, o esforço e um sem número de outras virtudes.
Nesse mesmo sentido pretendiam os saint-simonianos
implementar o progresso dos povos e inaugurar uma nova
ordem, pois, do mesmo modo que Hegel, acreditavam que
uma solução meramente política e econômica era, senão im-
31
possível, pelo menos insuficiente para resolver os problemas
humanos. Filosofia e política no pensamento de Saint-Simon
estão de tal modo vinculadas que falar de uma significa falar
da outra.
No século XIX, enquanto o iluminismo pregava uma razão universal, o idealismo hegeliano enfatizava que a razão
universal se manifestava de forma particular nas diferentes
nações. Esses grupos ultrapassavam os indivíduos mas permitiam que cada sujeito encontrasse a si próprio, de forma
objetiva, refletido neles. Nessas nações, cada um atingiria o
seu destino, para empregarmos a linguagem hegeliana, pois
este destino se manifestava nos costumes locais e na vida do
povo. Dessa forma, o idealismo contribuiu para a reedição,
em novos termos, de uma concepção orgânica de sociedade,
em que o espírito foi proposto como a própria realidade da
razão entificada (transformada em ser concreto). O saint-simonismo procurou um equilíbrio entre o sentido e a importância das diferentes nacionalidades e um projeto político
uni-versalista. Foi uma interpretação peculiar da filosofia
política de Hegel. Assim se restabeleceria a unidade moderna, desfeita com o surgimento do pluralismo ontológico e da
formação dos estados nacionais. Fica claro em Saint-Simon
que essa comunidade internacional não sufocaria a plurinacionalidade. Essa sociedade universal seria o objeto do amor
maior a inspirar a paixão de todos os homens.
A filosofia saint-simoniana estabelecia como ideal a reorganização profunda da sociedade humana. Nela o compromisso ético com o progresso estimularia o desejo de
transfor-mação do mundo. O saint-simonismo, como doutrina ética, contribuiu para comprometer os industriais com os
grandes projetos de desenvolvimento material. Para o saintsimonis-mo, o estado moral significava estado investidor,
fornecedor de uma nova ordem política, espaço próprio para
a vida do homem, tal como aparece nesse texto de Mauá:
32
“Visitando Montevidéu antes e logo depois de organizado o governo constitucional e atravessando a campanha, fiquei contristado. Na capital era completa a
desorganização em todos os ramos da administração.
Quanto a recursos financeiros, o governo, dominado
por um grupo de exploradores de má fé; quanto à arrecadação das escassas rendas, prevalecendo a rapina. No comércio, mesmo nas minguadas proporções
em que um consumo limitadíssimo colocava esses elementos de vida, reinava a desordem em seus movimentos; agricultura, nenhuma; os ricos campos de
criação, pelados; atravessam-se dezenas de léguas
sem encontrar-se uma só rês; finalmente, o país era
um verdadeiro cadáver político, econômico e financeiro; os dez anos de guerra civil haviam tudo assolado. A meu ver, só a ocupação brasileira e os novos
auxílios do Brasil durante alguns anos salvaram esta
nacionalidade de uma dissolução completa. O Brasil
estendeu mão protetora à República, em vez de deixála cair em dissolução; entretanto, essa política foi, até
mui recente data, mal compreendida, atribuindo-se ao
governo imperial idéias de absorção que aconselhariam visivelmente outra política. Conhecedor da verdadeira intenção do governo do meu país nessa época,
julguei dever também auxiliar as suas idéias de reerguer a nacionalidade oriental do abatimento em que
jazia, pois a desordem nessa região afetava interesses
brasileiros; consegui prestar serviços reais e positivos
da mais sabida importância, a reorganização desse
país nessa conjuntura”.9
O pensamento ético-político de Mauá pode ser também
avaliado pelos discursos10 que apresentou na Câmara dos
De-putados. Ele aí discutiu questões que serão posteriormente reafirmadas na Exposição aos credores. Notamos ni-
9
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
Credores de Mauá e C. e ao Público. Rio de Janeiro, Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C. 1871. p. 23.
10
BRASIL, Império. Annaes da Câmara dos Deputados. Arquivo Nacional, Ano 1858, sessões de julho. p. 181/183, 238/256, 276/284.
33
tidamente traços marcantes das teses saint-simonianas. Observamos a confiança na capacidade humana para modificar
a realidade sem justificá-la num Ser transcendente, antes
fundamentando a ação numa mística do trabalho. Existe, no
saint-simonismo, uma enorme paixão pela atividade e, ainda, pelo progresso material. Tal desenvolvimento se justificava como necessidade de promover o aprimoramento da
sociedade humana. Essa fundamentação para o progresso
social foi captada magnificamente por Hubbard, que a ela se
referiu como um aspecto marcante da ética saint-simoniana:
“Dar a todos os membros da sociedade a maior amplitude para o desenvolvimento de suas faculdades. É
o sentido do apelo central: apelo aos capacitados
contra os poderes. Religião da glória do homem através do desenvolvimento em cadeia de suas capacidades, glória à humanidade sobre um planeta remodelado até recuperar o seu regime edênico”.11
Quanto à uma coincidência entre a busca da satisfação
pessoal e o máximo de realização coletiva, Jeremy Bentham
propusera existir uma coincidência entre o que era significativo para o indivíduo e a utilidade pública. Ele preferiu esse
caminho à adoção do direito natural, que fundamentava no
próprio sujeito os deveres que teria para com a sociedade.
Em outras palavras os valores sociais somente se revelavam
ao promover a felicidade social e podiam ser descobertos
unicamente pela via da experiência.
A promoção da riqueza e dos valores sociais no Brasil
adveio de um debate no interior da moral contra-reformista.
Assim, embora os moralistas do século XVIII construíssem
uma ponte apta a aproximar a conduta individual e a felicidade coletiva, lembremos de José Veríssimo Álvaro da Silva, autor de Memória sobre as verdadeiras causas porque o
11
DESROCHE, H. Genese et structure du nouveau christianisme du Saint-Simonien. Paris, Editions de Seuil, 1969. p. 9.
34
luxo tem sido nocivo aos portugueses, eles lembravam que
permaneciam válidas as virtudes tradicionais da abnegação,
pobreza, esquecimento de si e humildade. Nesse quadro de
virtudes os interesses pessoais permaneciam afastados dos
resultados coletivos e a virtude continuava sendo o hábito de
conformar as ações com os princípios capazes de obter a felicidade eterna. Os interesses dos indivíduos ficavam, por
conseqüência, afastados dos do Estado, conforme observou
Mauá:
“Desgraçadamente, entre nós entende-se que os empresários devem perder para que o negócio seja bom
para o estado”.12
A crítica acima estava pautada sem dúvida, no entendimento de que era impossível reduzir os compromissos sociais ao único princípio de promover o bem do Estado, tese
que Joseph Butter na sua Dissertação sobre a natureza da
virtude já demonstrava não ser razoável. Mauá, entretanto,
logo a seguir se afastaria do utilitarismo para revelar a crença numa comunidade organicamente constituída. Numa sociedade concebida como um corpo supõe-se não se poder
afetar os outros e a relação com eles faz parte de uma integração substancial. O progresso que buscava era o ideal universal, mas a sua efetivação se concretizaria na história particular das nações. Cada povo buscaria o desenvolvimento
universal através de ações particulares, do mesmo modo que
as mônadas de Leibniz exprimiam todo o universo sob uma
forma particular. A unidade humana vive de forma diluída
nas unidades nacionais. O empenho moral apresentado por
Mauá transformou-se em sofrimento quando ele percebeu
que a sua tarefa não teria continuidade. Ele revelou o seu so-
12
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
Credores de Mauá e C. ao Público. Rio de Janeiro, Typ. Imp. e Const. de
J. Villeneuve e C, 1871. p. 12.
35
frimento no momento da falência, mais pelo que deixaria de
fazer pelo progresso do Brasil do que pelo que perderia:
“Como os chamados bens da fortuna não foram jamais para mim senão instrumentos de fazer o bem,
suportarei com inteira resignação as perdas que me
couberem, pois estou seguro de que prejuízos a terceiros é impossível”.13
Observe-se que a coletividade aparece, nesse pensamento, como um fim em si mesmo:
“Quanto a vós, credores do Banco Mauá e C., acreditai que a dor pungente que me dilacera a alma nasce de ter sido causa involuntária do prejuízo que a liquidação pode acarretar-vos: minorar esse prejuízo é
o único pensamento que me preocupa, e modera a
violência de meu sofrimento moral a possibilidade de
vos poder ser útil”.14
A peculiaridade dos valores apresentados por Mauá deveu-se, conforme hipótese já proposta, a uma necessidade de
obter para o País o mais amplo desenvolvimento material.
Essa busca do progresso é um dos eixos básicos do pensamento de Saint-Simon que, nesse aspecto, partilha da crença
romântica da evolução contínua da história. A vida humana
e o seu sentido encontravam expressão na linha do tempo,
fora da história perdia-se a possibilidade de suplantar o estado de natureza. Johann Gottfried Herder (1744-1803), na
obra Outra filosofia da história para a educação da humanidade (1774), já destacara o progresso humano como um
ideal a ser buscado, enfatizando tratar-se, não de um progresso abstrato, mas do progresso da humanidade. Nesse ca-
13
FARIA, Alberto. Mauá, Irineo Evangelista de Souza, Barão e Visconde
de Mauá. 2. ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1933. p. 91.
14
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá & C. e ao Público. Rio de Janeiro, Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C, 1871. p. 164.
36
so, tratava-se não apenas do avanço material, mas do aperfeiçoamento da dimensão humana, isto é, uma tentativa de
promover a superação da brutidão e da animalidade. O referido ideal permaneceu como um dos caracteres típicos do
pensamento romântico e sobre ele Hegel aplicará o método
dialético. Saint-Simon seguirá essa mesma intuição historicista que parece ter como precursores Agostinho de Hipona,
Joaquim de Fiori e Giambattista Vico. Buscar o desenvolvimento material com obstinação seria também uma das características desse projeto. O saint-simonismo estabeleceu
uma relação entre o combate à inveja, mesquinhez, preguiça
e o progresso material, esse último decorrente da prática das
autênticas virtudes. Mauá escreveu a respeito:
“Já se vê que, ao engolfar-me em outra esfera de atividade, possuía eu uma fortuna satisfatória que me
convidava a desfrutá-la. Travou-se em meu espírito,
nesse momento, uma luta vivaz entre o egoísmo, que
em maior ou menor dose habita o coração humano, e
as idéias generosas que em grau elevado me arrastam
a outros destinos, sendo a idéia de vir a possuir uma
grande fortuna questão secundária em meu espírito,
posso dizê-lo afoitamente, com a mão na consciência
e os olhos em Deus”.15
Efetivamente, eram os outros destinos a que Mauá se referia, a promoção do desenvolvimento do Brasil e da América. Não o progresso do homem abstrato, mas conforme pretendia Saint-Simon, o do homem concreto. O trabalho humano com sua peculiaridade e sua força poderia estimular o
avanço da sociedade como um todo. Mesmo relativizando o
papel dos governos e das fronteiras, a busca do progresso
concreto não pode desconsiderar a história dos povos, as-
15
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao Público. Rio de Janeiro, Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C, 1871 p. 4.
37
pecto que Herder também já notara. O programa para o desenvolvi-mento do País e do continente ancorava-se na idéia
saint-simoniana de industrialização, e o exemplo mais concreto a ser seguido naquele momento era o da revolução industrial britânica. A implantação da indústria era uma trilha
de fortalecimento moral da sociedade.
A filosofia saint-simoniana forneceu um caminho racional capaz de reorientar a especulação ontológica, limitandoa pe-los contornos precisos dos conceitos científicos. A
compreensão dos fatos encerrava um outro comportamento
perante a realidade, significava uma nova maneira de conceber o mundo e a vida. Incorporando a ciência como linguagem privilegiada, o saint-simonismo não apenas justificava
o seu emprego na produção industrial, mas a apresentava
como um novo instrumental teórico da humanidade. Na prática, significava apontar para o mesmo caminho, o emprego
da ciência na organização da produção fabril, o que conduziu à Revolução Industrial. Esta realmente mudou a vida,
como se constata no texto abaixo:
“O fato de que a mecanização do trabalho nas manufatureiras corresponde ao eixo fundamental, não exclui a circunstância de que tal desfecho seja devido a
certos antecedentes nem obscurece a evidência de que
se haja espraiado para diversas outras atividades.
Dentre os antecedentes mais marcantes destaca-se a
modernização da agricultura iniciada na Inglaterra
por volta da década de sessenta. E no que se refere à
mecanização e à introdução de aperfeiçoamentos técnicos em outras atividades cumpre destacar a extração carbonífera, a fundição de ferro e os transportes.Tomado por base o conjunto de tais parâmetros,
T. S. Ashton, da Universidade de Londres, autor do
mais importante estudo dedicado à matéria, propõe
38
que os limites da Revolução Industrial sejam entre
1790 e 1830”.16
A nova ordem que o saint-simonismo pretendia estabelecer objetivava criar uma nova era de paz e progresso, projeto
retirado do ideal cristão, mas que precisava, na compreensão
de Saint-Simon, de uma adaptação. Em tal contexto, a tarefa
dos industriais seria de promover o progresso.
Todas as realizações econômicas, na perspectiva saintsimoniana faziam parte de um projeto político: este exigia
que se suprimisse o antagonismo entre o indivíduo e o grupo. Tal tema de filosofia política possui raízes na Grécia,
mas na mo-dernidade Hegel pretendeu encontrar, numa religião do povo, o fator de união do indivíduo com a totalidade. Na mesma trilha caminhou Saint-Simon, embora o cristianismo que pregasse fosse mais um panteísmo humanista
do que a síntese racional do projeto cristão elaborada por
Hegel. Com tal projeto político, o Conde de Saint-Simon
justificou o desenvolvimento econômico.
O projeto político-econômico de Saint-Simon pretendia
inaugurar uma nova era, moral por excelência. O problema
da integração do indivíduo no grupo, desenvolvido nos últimos trabalhos de Saint-Simon encontrava-se mediatizado
pelo conhecimento científico e pela adoração da humanidade; esta última seria intermediada pelos conselhos, garantida
a autonomia interior das pessoas. No Brasil, a integração do
sujeito no grupo assumiu um caráter especial, com a incorporação da idéia de utilidade ao cerne da moral. Nessa circunstância era difícil o desenvolvimento de qualquer empresa à re-velia do Estado, o que explica parte das dificuldades
de Mauá. A realização material precisava, para ser legítima,
vir acompanhada da aprovação do estado.
16
A Revolução Industrial. São Paulo, Instituto de Humanidades, 1987. p.
120.
39
O espírito humano avança ao longo do tempo, construindo novas formas de organização social, é o que se conclui a
partir da concepção saint-simoniana de história. No Brasil, o
progresso advindo da nova era seria dificultado pela rejeição
dos valores modernos, sobretudo da riqueza tida como a
causa dos males sociais. Apenas a riqueza das instituições
seria admissível, conforme observara Marquês Saes:
“Assim, o sistema ferroviário só começou efetivamente a ser implantado quando se estabeleceu a chamada
garantia de juros, um mecanismo que assegurava aos
capitais investidos uma rentabilidade mínima ( 5 a 7
% ao ano, conforme o contrato ), caso a operação da
empresa não bastasse para tanto. O mesmo se deu em
relação aos serviços urbanos, consagrando uma certa dependência dessas empresas em relação ao Estado”.17
Saint-Simon possuía um modelo para o desenvolvimento
material da humanidade, que tinha como princípio fundamental a condução da vida econômica pelos industriais, considerados homens de trabalho, que substituiriam a nobreza.
Cum-pre dar um passo adiante e identificar esses valores saint-simonianos nos ideais vividos por Mauá. Efetivamente,
tal projeto seria influenciado pelas idéias utilitárias de Bentham e pelo sonho de transformação material proposto por
Saint-Si-mon, que combinou teses iluministas com românticas.
Existe no saint-simonismo, um sentido religioso assumido pelos valores estéticos e éticos, explicitados na religião
da humanidade, pela reativação do significado do passado e
pela valorização da história. Estas variáveis são o resultado
da crítica que Saint-Simon fez a um aspecto do iluminismo.
O propósito de servir-se da razão e da ciência não podia sig-
17
SAES, Flávio Azevedo Marques. Mauá e sua presença na economia
brasileira do século XIX. São Paulo, Bianchi, 1987. p. 87.
40
nificar, no sentir de Saint-Simon, que se pudesse abdicar da
solidariedade grupal formada na tradição. A razão não podia
destruir as crenças, passado não era sinônimo de erro, embora houvessem muitos erros na sociedade.
Mauá incorporou valores tradicionais, especialmente através da ótica saint-simoniana, consagrando primacialmente
o historicismo e a atividade criadora do espírito, caracteres
essenciais do romantismo. Dessas variáveis apenas a valorização da subjetividade apareceu no liberalismo e no iluminismo, mesmo assim, com outra ênfase. Sob o aspecto filosófico, essa influência diminuiu a força da filosofia da razão, tematizada pelos filósofos iluministas, para consagrar a
vida e a história como queriam Johann Gottfried Herder
(1744-1803) e o poeta-filósofo Friedrich Schiller (17591805). Na prática, o progresso significava, naquele momento, aproximar as virtudes que se estava obrigado a praticar
com o desenvolvimento material.
A realização material fora tomada como ponto de culminação do progresso ético, ela trazia em si o movimento que a
inspirava e sugeria a superação da virtude pura pela realização material, quando se efetivaria o reconhecimento da dignidade do homem pelo homem. Mauá estava possuído por
esse propósito moral e chegou a explicitar um plano de desenvolvimento para o país. Ele afirmou:
“Era precisamente o que eu na mente contemplava
como uma das necessidades primárias para ver aparecer a indústria propriamente dita no meu país; por
isso, aceitei gostoso o convite. Era já então, como é
hoje ainda, minha opinião que o Brasil precisava de
alguma indústria dessas que podem medrar sem
grandes auxílios, para que o mecanismo de sua vida
econômica possa funcionar com vantagem; e a indústria que manipula o ferro, sendo a mãe das outras, me
parecia o alicerce dessa aspiração. Causou-me forte
impressão o que vi e observei, e logo ali gerou-se em
meu espírito a idéia de fundar em meu país um
estabelecimento idêntico; a construção naval fazia
41
belecimento idêntico; a construção naval fazia também parte do estabelecimento a que me refiro”.18
O propósito de criar indústrias estava, pois, motivado por
valores que encontravam no progresso material a mais alta
forma de humanismo. Esse foi o motivo pelo qual Mauá dedicou-se a tal causa inteiramente. Entregou-se por inteiro ao
trabalho de modificar a realidade social. Não intentava estimular a dependência dos outros, nem entendia que se tratasse de qualquer forma de caridade. Sua ação era virtuosa no
sentido saint-simoniano, segundo descrição da virtude principal feita por Henry Desroche:
“... saibamos que essa filantropia não resulta nem da
assistência social e nem do Estado Beneficente, nem
mesmo de uma solidariedade preferencial com a classe mais numerosa e mais pobre. A felicidade pública
de que se trata é aquela cantada mais tarde pelo poeta: Não há outra felicidade para o homem do que dar
a sua plenitude. É a sua última palavra. Dar a todos
os membros da sociedade a maior amplitude para o
desenvolvimento de suas faculdades... Religião da
glória: glória do homem através do desenvolvimento
em cadeia de suas capacidades, glória a humanidade
sobre um planeta remodelado até recuperar o seu regime edênico”.19
Consideramos que o modelo de homem, tido como um
ser perfectível e inacabado, encontrou no projeto de SaintSimon uma possibilidade real de concretização. O positivismo com-tiano estabeleceu posteriormente uma outra visão de homem rigidamente determinado pelas circunstâncias
sociais, o que não pode ser concebido à luz do saint-
18
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
Credores de Mauá e C. e ao Público. Rio de Janeiro, Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C, 1871. p. 8.
19
DESROCHE, H. Gênese et structure du nouveau christianisme du Saint-Simonien. Paris, Editions du Seuil, 1969. p. 9.
42
simonismo. A idéia de homem na teoria saint-simoniana,
que opta por entendê-lo co-mo um ser destinado ao progresso, não é incompatível com a liberdade interior, nem com a
liberdade de iniciativa. Esta última, quando ancorada na ética protestante, elaborou um con-ceito racionalmente válido
do que seja o homem, um ser destinado a criar aqui na terra
uma obra gloriosa.
Mauá não demonstrou desejo de vincular o processo de
aperfeiçoamento material e moral da sociedade com qualquer projeto religioso. Não significa que ele fosse ateu, mas
simplesmente que não associava progresso à virtudes religiosas. Como viveu as virtudes veiculadas no saintsimonismo? Co-mo se conduziu num meio onde a prática
das virtudes tinha em vista a construção da cidade celeste e
não o aprimoramento desse mundo? Qual a dimensão de seu
programa ético? Como viu os outros? Como exprimiu o amor à humanidade? Que gratificação esperava ter com a trajetória que realizou? São essas algumas das questões que
examinaremos a seguir.
43
44
CAPÍTULO II
IRINEO EVANGELISTA DE SOUZA
ASPECTOS GERAIS DO SEU PENSAMENTO
1. Pressupostos teóricos.
O
trabalho que ora realizamos, traz para o campo da
consciência especulativa uma questão do universo
cultural. Nele empregam-se os instrumentos filosóficos e o
compromisso com a verdade, próprio do filosofar. Trata-se
de estar em sintonia com a exigência de fundamentalidade
para pensar o significado da moral social, que consideramos
um componente essencial de qualquer coletividade humana.
Vivemos no tempo da técnica, mas as mudanças importantes
no campo das relações humanas dependem sobretudo de alterações no substrato ético. É no espaço moral que as ações
do homem ganham uma dimensão crítica e é nele que a intersubjetividade adquire foros de associações propriamente
humana. O sentido de nossa vida, enquanto vivência compartilhada, não se mostra em todos os seus contornos desvinculado de perguntas sobre o significado e relevância de
estar junto ao outro. É que a vida humana não é apenas individual, é também histórica. Nem mesmo a ausência física
das pessoas nos liberta de suas presenças e isto não somente
45
devido à memória. Tal fato confere uma dinâmica extraordinária aos assuntos antropológicos e nos trazem dúvidas sobre as formas corretas de agir nas situações concretas, formas que permeiam o tecido das relações intersubjetivas.
Na luta pela existência os indivíduos e os grupos afastam-se da conduta que desejariam manter. Desconhecer ou
suprimir isto em nome da felicidade futura não traz bons resultados, conforme nos mostraram Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) e Ludwig Feuerbach (1804-1872). No
entanto, se durante o dia a dia a força e a brutalidade parecem imperar, nós percebemos a importância de lhes impor
limites através de preceitos morais. Portanto a moral é o ramo da filosofia onde se estudam as máximas que se apresentam à consciência com a pretensão de universalidade ou a
relação entre a ação particular e a lei moral. É ela que lança
luzes à dimensão coletiva da vida humana e é ela também
que a todo momento está a nos cobrar sobre o sentido verdadeiramente humano de um ato qualquer. A totalidade do
saber que se constrói sobre o homem e mesmo sobre o mundo é imprescindível para a moral, pois acaba influindo decisivamente nela.
O espaço da consciência, onde se estabelecem os planos
para agir corretamente, é o reino da liberdade, não redutível
aos esquemas epistemológicos ou religiosos. É o lugar do
reconhecimento de nossa maturidade, ou kantianamente, do
exercício do pensamento e da autodeterminação. Ser livre
em moral não é o mesmo que sê-lo nem como investigador
da natureza, nem como crente.
Na perspectiva moderna, a moral filosófica precisava
tornar-se um esforço de humanização. Ela elaborou princípios sem fundamentos transcendentes, mas com a mesma
pretensão de universalidade, isto é, querendo que tivessem
validade para todos os homens. A fim de realizar tal
propósito foi preciso considerar a liberdade e a dignidade
como integrantes de um núcleo dinâmico. Ele é que ao
mesmo tempo lhe confere um caráter universal e
46
tempo lhe confere um caráter universal e simultaneamente
lhe abre as portas às experiências históricas, as quais inevitavelmente dão corpo aos princípios.
Observe-se que a história não é coerente e racional, a sua
teorização, lembrou-nos Silva Dias, não se realiza quando
de-la “expulsamos a inerência do contraditório, do impreciso, do confuso, do paradoxal”.20 No entanto, as contradições, a imprecisão, a falta de segurança, a incoerência e a irracionalidade não são apenas o tormento do experimentador
em seu esforço epistêmico de organização do fatológico, são
antes companheiras permanentes do homem, quer quando
ele procura ganhar o pão que o sustenta, quer quando se lança como explorador do universo, navegador de hoje como de
ontem, enamorado do imprevisível. Aceitar esse risco é viver corajosamente e faz parte de uma vida normal.
A validade das leis morais não está desvinculada da finitude humana, mas nada nos impede de apontar os limites ou
as circunstancialidades do existente, sem prejudicar a articulação do suporte axiológico que o reconhece com a finalidade das ações. Entendemos que a dignidade e a liberdade, esta última considerada como a capacidade de pôr-se projetos
e normas de ação, formam um núcleo em torno do qual a
temporalidade do homem e de suas obras se revela.
Concordamos com Jean Paul Sartre (1905-1982) e F. Nietzsche que realçaram o caráter histórico da moral, mas atribuímos um sentido particular à relatividade temporal. No
processo de criações das leis morais pode-se constatar uma
tensão entre os núcleos e as máximas que são sua expressão
histórica. É devido à historicidade dessa relação que cada
sociedade, ou eventualmente cada grupo de povos avalia e
discute valores e atribui ao homem os direitos e deveres que
20
SILVA DIAS, J. S. Pombalismo e projeto político. In: Cultura - História e Filosofia. Lisboa: INIC, 1984. p. 1.
47
regulam a vida coletiva. Nesse aspecto os grupos nacionais
vivem um desafio particular: como assegurar a liberdade individual e simultaneamente permitir a convivência entre
pessoas diferentes? Como é possível resguardar a liberdade
e vivenciar a virtude contemporânea da tolerância? Como
garantir o desenvolvimento econômico dentre as condições
limitativas? A questão é que existe uma inevitável dissimetria entre aquilo que se pode construir como princípio ético
e a sua forma de expressão coletiva, problema que se estende também para o relacionamento entre nações, ou grupos
humanos cuja fronteira passa a ser cada vez mais cultural. O
desafio é, em síntese, o de preservar a liberdade e dignidade
e simultaneamente estabelecer regras de convivência entre
sujeitos que se reconhecem finitos e limitados, ou melhor,
condicionados pelos fatores ambientais e filogenéticos. Sem
se pôr o desafio de humanizar o mundo, nenhum progresso
será experimentado.
Kant vislumbrou um aspecto essencial dessa problemática, quando considerou a liberdade da vontade processada no
âmbito da autodeterminação. Ele explicou, entre outros exemplos, que o cidadão deve pagar os impostos à sociedade
em que vive, mas “o mesmo cidadão não infringe as suas
obrigações civis se, como indivíduo sabedor, emite publicamente o seu pensamento acerca da impropriedade, ou
mesmo da injustiça de tais medidas fiscais”.21 O propósito
de Kant, naquela oportunidade, era expressar os objetivos
do saber iluminista, mas deixou ver claramente que uma coisa são as normas sociais a que nos submetemos e outra é a
opinião que podemos formar delas, incluindo a legitimidade
de apresentar e debater opinião contrária à oficial. As luzes
por elas mesmas não promovem o crescimento moral, mas o
21
KANT, Emmanuel. Resposta à pergunta: o que são as luzes. In: Cultura
- História e Filosofia. Lisboa: INIC, vol. VIII. p. 163.
48
livre debate de idéias quando evolui no sentido da criação de
normas socialmente aceitáveis é o caminho mais direto para
o exercício da liberdade, da tolerância, da pluralidade, virtudes imprescindíveis à vida coletiva e à moral social. Há ainda um outro componente essencial do kantismo, o propósito
de constituir normas válidas e auto-impostas. O que Kant
não explorou com o maior cuidado foi a tensão residual entre o intento e a sua realização concreta, confiando na marcha da natureza.
Expliquemos melhor a questão. Encontra-se na moral
kan-tiana a mais bela representação moderna do que aqui
apresentamos como núcleo da moral, mas é importante avançar na análise de sua face histórica. Entre o reconhecimento da dig-nidade inalienável do sujeito e as máximas levanta-se um hiato que não pode ser eliminado e que decorre
da condição de finitude do homem e de suas obras, estando
interditado qualquer solução mística ou escorregadela para o
absoluto, transcendente ou transcendental.
Uma tal ruptura exprime, no bojo da moral, a própria dinâmica filosófica em sua jornada rumo ao universal, e é esse
aspecto que o kantismo pouco explorou e o hegelianismo
perverteu, transformando a natureza em espírito absoluto. A
expressão efetiva desse esforço é a representação conceitual
possível, que aguarda relação com o tempo e a cultura, apesar da liberdade criativa do espírito. Expressamos assim o
entendimento de que não se pode instrumentalizar a verdade
e nem apreendê-la integralmente, apesar de podermos elaborar uma convicção pessoal firmada em argumentos.
O espaço cultural privilegiado, a partir do qual as grandes questões da humanidade são hodiernamente postas,
constitui os atuais Estados Nacionais ou alguma de suas
subdivisões. Neles a insegurança do sujeito cambiante encontra algum am-paro. Organizar e catalogar teses filosóficas é uma prática comum desde Aristóteles (384-322 a.C.),
mas foi a partir de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-
49
1831) que a especulação ganhou um sentido mais preciso
como criação nacional das dúvidas e respostas com caráter
filosófico. Afinal, a coruja de minerva que alça vôo ao entardecer do dia está pousada nos galhos da árvore antes de
lançar-se no espaço. As dúvidas do homem de sempre exprimem-se no sujeito concreto. Assim, pensar a cultura é
pensar o homem.
Um aspecto mais. Não estamos entre os que postulam
qualquer forma de aperfeiçoamento moral automático, o que
nos põe em rota contrária a Oswald Splenger (1880-1936),
Karl Marx (1818-1883) ou dos evolucionistas de todas as
matizes. Toda direção adotada é fruto das escolhas e dos
propósitos assumidos. É um modo singelo de dizer a supremacia da atividade humana contra todo o tipo de ciclo, método e processo. Olhar o futuro como possibilidade e desafio
fortalece o sentido do compromisso pessoal contra as visões
totalizantes. Não há mudança sem escolha e não há aperfeiçoamento sem esforço pessoal e coletivo de permanente auto-limitação. Nem há garantias contra o retrocesso. O mito
de aperfeiçoamento moral permanente tem a bomba atômica
na sua sombra, além do recrudescimento do racismo, do nazismo e de outras formas de discriminação eticamente inaceitáveis, tidas como definitivamente superadas há alguns
anos. Apesar da completa insegurança quanto ao futuro, temos elementos para confiar no destino da humanidade.
Nunca o homem foi tão consciente de sua capacidade
destrutiva, nunca se ansiou tanto pela paz, jamais se ocupou
tanto com o futuro, inclusive do planeta.
Pelo acima exposto os ideais éticos revelam-se, sem
qualquer exclusividade fundante, um poderoso agente de
mudança histórica e social contra as várias formas de predetermina-ção. Assim trazemos até nós a descontinuidade
entre o homem e a natureza representados na consciência,
cada um com a sua própria dinâmica, lição magistral do
pensador sergipano Tobias Barreto de Menezes (1839-
50
1889). O homem sujeito moral rompe a cadeia da determinalidade natural em que está mergulhado, razões para confiar
no futuro pois se percebe a autodeterminação por ideais morais.
1.1. A Problemática.
M
editar sobre os caminhos da filosofia e da moral
exige que nos voltemos para os fundamentos das
normas que regulam a ação do homem. Não há possibilidade
de uma vivência verdadeiramente humana da dignidade sem
a experiência do outro ser vivida na tolerância e no reconhecimento da pluralidade das vontades. Louis Lavelle (18831951) revelou que nesse processo há estreita relação entre os
assuntos econômicos e os interesses. Os primeiros estariam
sob a dependência das necessidades e os últimos dos valores. Foi nisto que fundamentamos a vinculação entre a conduta e a atualização das motivações e concebemos o instrumental teórico para investigar o que se passou em nossa realidade. O contato com as idéias modernas foi obra da geração pombalina e coube ao próprio Marquês papel de destaque na abertura aos novos tempos, mesmo porque assuntos
econômicos e morais eram motivo de debate naquela ocasião.22 A aritmética política pombalina (ou ética derivada do
didatismo científico e pragmatismo político que José Esteves Pereira denominou de newtonianismo moral) foi insuficiente como modelo ético e incapaz de promover uma ética
social vivida como tolerância. Se para o aperfeiçoamento
humano podem contribuir as artes e o conhecimento, como
entenderam os intelectuais da arcádia lusitana, não se garante por eles mesmos o desenvolvimento moral da sociedade.
A curiosidade humana sobre o significado da vida, dos valo-
22
CF. PEREIRA, José Esteves. As idéias fisiocráticas em Portugal. Projeto de investigação. Universidade de Coimbra, 1980. p. 7.
51
res que possui, das formas corretas de se relacionar com os
outros, não se expressa cientificamente e nem pode ser um
programa artístico. O conhecimento não desemboca nas virtudes, a liberdade epistemológica não implica na liberdade
moral, nem esta pode ser obtida por uma espécie de utilitarismo coletivo vivido como prática política, conforme parece haver pretendido Pombal. As dificuldades de justificação
do valor da vida concreta na ética contra-reformista e no
pombalismo sugerem as razões de uma aproximação de
Mauá com o saint-simonismo. Nesse sistema a paixão pelo
trabalho era justificada com o desejo do progresso. O estímulo à responsabilidade social, pela eliminação da pobreza,
sustentava-se no propósito do progresso. O saint-simonismo
tinha ainda a vantagem de reunir os aspectos básicos que a
filosofia de então consagrava: progresso, evolução histórica,
valorização da ciência, da atividade industrial e preocupação
com a justiça social. Vamos indicar, a seguir, as dificuldades deixadas pela ética contra-reformista na valorização da
existência concreta.
2. A dinâmica da moral contra-reformista.
A
moral medieval, notadamente o tomismo, haviam
propugnado que estávamos inseridos numa ordem
que determinava as virtudes esperadas, na qual “o fim maior
do homem é a perfeição, e esta contém em si a verdadeira
felicidade”.23
Era uma moral organizada em torno do ideal de felicidade, conforme se fazia desde Aristóteles. Há, no entanto, um
aspecto bem particular cujo contorno foi estudado por Henri
Gautier, pois se para Aristóteles a felicidade era o bem viver
na pólis, no tomismo significava recomendar-se à salvação
eterna. A moral tomista organizou os valores de modo que a
23
PACINI, Dante. Ética. Brasília: Horizonte, 1979. p. 118.
52
ação humana não se reduzia à experiência da cidadania, mas
à humilde submissão à vontade de Deus.
A questão é que S. Tomás de Aquino (1224-1275) tinha
em vista a elaboração de uma teologia moral e não propriamente um justo meio apto a proporcionar uma vida feliz na
terra. A transformação decorreu em torno do conceito phronesis. Para o estagirita esta virtude tinha em vista indicar o
estado mais elevado da vida em sociedade. Gautier mostrou
como esse termo, que identificava felicidade com a liberdade do cidadão, foi inicialmente traduzido como prudência e
sabedoria por Cícero (106-43 a.C.) e posteriormente no
tomismo por contemplação.24
O primeiro grupo de contra-reformistas foi composto por
autores como Frei Heitor Pinto (1528-1584), Frei Amador
Arrais (1530-1600), Pe. Manuel de Góis (1542-1597), entre
outros. Vivem todos no clima da filosofia tomista, mas incorporaram um sentido humanista que não os levou a abdicar do projeto transcendente. Isso contribuiu, no entanto, para abrandar o rigor das máximas medievais, pois a filosofia
era um saber que unia o homem a Deus.
Na medida em que o racionalismo construtivista se sobrepôs ao jusnaturalismo escolástico, a discussão moral voltou-se quase exclusivamente para um propósito restrito, destinado ao controle de qualquer efeito não intencional da
conduta, ou melhor, a anunciar que “a conquista da virtude
na terra seria um requisito essencial à obtenção da paz interior após a morte”.25 Abandonaram-se as questões levantadas pelos moralistas de Salamanca.26 O propósito moral per-
24
CF. GAUTIER, Henry. Ética a Nicômaco. Louvain: Publications Universitaires, 1970.
25
PAIM, Antônio. Modelos éticos. São Paulo: Ibrasa; Curitiba: Champagnat, 1992. p. 14.
26
CF. MOREIRA, José Manuel. Luís de Molina e as origens ibéricas da
economia de mercado. In: Atas do Encontro Ibérico sobre História do
53
deu em amplitude de horizontes. O Pe. Góis ocupou-se dos
seus fundamentos metafísicos, da importância da felicidade,
do sentido do agir virtuoso, da natureza do homem. Evidentemente, seguindo a orientação do Concílio na composição
dessa moral, enfatizou os seguintes valores: pureza, moderação, humildade, acessibilidade, acolhimento do próximo,
limpeza pessoal, cas-tidade, obediência, pobreza, etc. Não
há ainda, de modo explícito, a condenação das grandes teses
Pensamento Econômico. Lisboa: CISEP, 1992. p. 41 a 62. O autor desenvolveu uma tese, apoiando-se em Hayek, segundo a qual as raízes do pensamento liberal já se encontravam na escolástica tardia. A questão estava
ligada a uma terceira ordem posicionada entre o instinto e a razão. A problemática envolvia a compatibilização entre a ciência divina e a liberdade
humana. A solução de Luís de Molina, explicou o autor, foi de distinguir
na ciência divina três estados ou signos da razão, que levou ao desenvolvimento “dos fundamentos da gênese e funcionamento das instituições sociais formadas espontaneamente”. (p. 57) Mesmo que se possa concordar
com a mencionada tese, ela não invalida a hipótese de Max Weber como
ele sugeriu, (p. 59) baseando-se em ROBERTSON H. M. Aspects on the
rise of Economic Individualism. Cambridge, 1963. O contra-reformismo,
que foi a posição oficial do catolicismo, reduziu o sentido da vida à conquista do céu o que foi sintetizado pelos moralistas do séc. XVII no repúdio às riquezas e aos prazeres. Procuraram eliminar o efeito de qualquer
ação não intencional através de um rigoroso processo de estreitamento racionalista o que comprometia a liberdade do homem e eliminava qualquer
efeito de imprevisibilidade nas ações. No entanto, os caminhos da moral
não são os mesmos da ciência, o que explicou magistralmente Immanuel
Kant no início da conclusão da Crítica da razão prática:
“Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre novas
e crescentes, quanto mais frequentemente e com maior assiduidade delas
se ocupa a reflexão: o céu estrelado ‘sobre’ mim e a lei moral ‘em mim’.
(grifos nossos)
O esforço racionalista promoveu um avanço do conhecimento do
mundo natural, mas significou um empobrecimento quando se transferiu
com o mesmo propósito ao universo interior do homem. Sobre a questão
da racionalidade dos escolásticos contra a usura CF. CAMACHO, Francisco Gomes. Introdução. In: MOLINA, Luís de. Tratado sobre los prestamos y la usura. Madrid: Instituto de Estúdios Fiscales. p. XI a XLI.
54
da moral moderna: a racionalidade, a liberdade, o valor do
profano (sexualidade, riqueza, trabalho, poupança, pluralidade de opiniões, estado laico, etc.).
Ocorre é que a dinâmica moral contra-reformista tentou
abalar a espontaneidade da vida em nome de uma racionalização do fenômeno humano. O que representava para Aristóteles vida interior e para René Descartes (1596-1650) era
um fenômeno passivo do espírito foi condenado como sinônimo de rebeldia. As paixões desregulavam o homem e confundiam o seu propósito. Os espiritualistas católicos, notadamente os espanhóis, foram primorosos na demonstração
do que significa a renúncia das coisas do mundo. Frei Antônio das Chagas (1631-1682) reproduziu esse propósito dizendo: “não tenhamos nem amor, nem gosto, nem vontade
própria, nem escolha ou eleição alguma, nem desejo de consolação sensível”.27
Embora a moral de Heitor Pinto estivesse voltada para
mostrar como os bens desse mundo não são os mais
verdadeiros, Frei Amador Arrais em colocar a justiça
comutativa na base da sociedade e Manuel de Góis escrito
que para a felicidade humana requerem-se valores mais altos
que os alcançáveis nesse mundo, há em todos uma postura
flexível para justificar as razões temporais. Eis o cerne de
suas idéias. Para o Pe. Góis havia uma hierarquia nas
virtudes e a autêntica felicidade somente se obtinha com os
bens da alma, significando uma sobreposição dos valores
sobrenaturais aos humanos. Depois de fundamentada a
moral, definida a hierarquia dos bens, passou o moralista a
compor a tábua das virtudes: as morais e as teológicas.
Amador Arrais, no diálogo contra o judaísmo, mostrou
como era ruim o vício da cobiça da riqueza pois foi ele que
impediu os judeus de reconhecerem a divindade de Cristo.
27
CHAGAS, Frei Antônio das. Cartas espirituais. Lisboa: Seleção, Prefácio e notas de Rodrigues Lapa, 1939. p. 130.
55
conhecerem a divindade de Cristo. Deus não era matéria,
lembrava, ao contrário, espírito puríssimo e não se devia
trocá-lo por cobiça. Cuidou, em seguida, de traçar as bases
de uma filosofia da história e a defender uma ética presidindo o governo dos príncipes. Frei Heitor Pinto olhou a vida
humana como uma peregrinação errática nesse mundo de
aparências, voltada para a contemplação da verdade pela união com Deus. Era uma concepção platônica cristianizada
na qual o indivíduo somente se realizaria unindo-se ao ser
perfeito, porquanto seu horizonte humano era a morte. O
homem concreto voltado para a morte fora preocupação da
moralista.
A geração que se seguiu afunilou esse debate moral. Bom
exemplo foi o Frei Sabino Bononiense que, depois de descrever os principais vícios da natureza humana decaída, afirmou que “pecam mortalmente todos os que desordenadamente e contra a justiça, desejam alguma coisa de notável”.28 O Pe. Manoel Bernardes (1644-1710), apesar de sua
vasta obra, carregou a pena no combate à riqueza comparando a usura à lepra. Esse vício dinamizava a própria maldade,
e é, nas palavras do moralista, ”o cancro universal, porque
consome a honra, a saúde, a vida e as virtudes”.29 Pareceulhe mesmo impossível ser rico e ser virtuoso, dizia: “não é
muito ordinário essa concordata, porque as riquezas da terra
dificultam adquirir e conservarmos as do céu”.30 É essa a tônica dos moralistas da “segunda geração” onde se incluem
Frei Francisco Fernandes, Antônio Feo e outros. Da relatividade humana concluíram que o mundo era o próprio mal e a
riqueza o seu símbolo. Era necessário banir as manifesta-
28
BONONIENSE, Frei Sabino. Luz moral. Lisboa: Ofic. de Antônio Isidoro da Fonseca, 1737. p. 30.
29
FERNANDES, Pe. Manoel. Estímulo prático para seguir o bem e fugir
do mal. Lisboa: Ofic. de Antônio Pedroso Galram, 1730. p. 23/4.
30
Idem, p. 9/10.
56
ções humanas espontâneas, aquelas que conduziriam, segundo Mandeville, ao progresso material. No Brasil os representantes dessa pregação são especialmente Nuno Marques Pereira (1652-1728)31 e Feliciano de Souza Nunes
(1730-1808).32 Completou-se então o afunilamento do debate ético em torno da preocupação com a riqueza e no desprezo do mundo. Mesmo os sermões, onde o caráter apologético prevalecia, às vezes enveredavam pela trilha moralizadora com o propósito de condenação da riqueza. Eles traduziam o amor a Deus “no contínuo das esmolas e na compaixão
dos necessitados”.33 Inclusive aqueles pregados em autos de
fé, destinados à salvaguarda da divindade de Cristo, possuem propósito moralizador de combater a riqueza e os vícios
a ela associados. Persuada-se, dizia o Frei Luís Silva, ”a
deixar riqueza, desprezar honra e fugir da delícia”.34 Ficou
eliminada qualquer manifestação não intencionada da ação
individual e o mundo humano fechou-se em programas de
vida como os encontrados nos compromissos das irmandades de São João del-Rei, MG, Brasil. É o apogeu da racionalização da cultura e a sua desvitalização mais completa.
3. Proposta moral de Melo Freire.
A
insuficiência moral da reforma pombalina abriu espaço para a solução de Melo Freire. Na proporção
em que o significado da liberdade como capacidade efetiva
31
Autor do Compêndio narrativo do peregrino da América. - 7. ed. - Rio
de Janeiro: Acad. Bras. de Letras, 1988.
32
Autor dos Discursos político-morais. - 2. ed. - Rio de Janeiro: Ofic. Industrial, 1931.
33
DEUS, Frei Manoel da Madre de. Sermão fúnebre nas exéquias do Senhor Roque da Costa Barreto. Lisboa: Ofic. de Manoel Lopes Ferreira,
1699. p. 20/1.
34
SILVA, D. Frei Luís. Sermão do auto da fé que se celebrou no terreiro
do paço desta cidade de Lisboa a 1º de Dezembro de 1673. Lisboa: Ofic.
de Antônio Graesbeeck de Mello, 1674. p. 21.
57
de optar foi recuperado teoricamente, redirecionou-se a preocupação Ética. Entendeu-se, então, o ser homem como o
resultado da avaliação constante da memória coletiva. O filósofo foi o articulador de uma visão do tempo como algo
mais do que mera seqüência numérica, anunciando que a obrigação moral progride em direção a uma forma. Melo
Freire, através da análise histórica, procuraria explorar o esforço humano de avizinhamento com Deus. Trata-se de superar a finitude humana pela infinitude de um apelo transcendente.
Espraiando-se da moral para a política, como fizeram os
contra-reformistas da primeira geração inspirados no aristotelismo tomista, Melo Freire procurou dar um ordenamento
jurídico ao edifício legal pombalino, reconstituindo o significado da inspiração metafísica que fundamenta a primazia
do Absoluto e preponderância do bem.35 Ao fazê-lo deu uma
significação própria ao vínculo entre a moral e a jurisprudência, contrariando a solução kantiana e dos liberais de
modo geral. Para ele a codificação legal exprimiu a universalidade do fenômeno moral, além de preservar a liberdade
concreta, aspecto bem notado por Antônio Ribeiro Liz Teixeira.36 A meditação melo-freiriana depositada na lei o ser
do homem. Toda a sua vida social e cultural ali se concretiza.
Os códigos garantiam a liberdade do homem e a objetividade da moral. Melo Freire colocou sua gênese na história
nacional e não na consciência subjetiva. O peculiar foi que
para ele esse processo adquiriu um significado moral, pois
do mesmo modo que a consciência singular atua na criação
35
CF. PEREIRA, José Esteves. O pensamento político em Portugal no
séc. XVIII; Antônio Ribeiro dos Santos. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa
da Moeda, 1983. p. 252.
36
CF. LIZ TEIXEIRA, Antônio Ribeiro. Curso de direito civil português.
Coimbra: Imprensa da Universidade, 1848. p. 3.
58
das normas éticas, os códigos constituem uma razão coletiva.37 Essa consciência dos valores não é algo que se consolide abruptamente e nem se compara a um produto material,
que depois de pronto pode ser integralmente transmitido às
gerações seguintes. As idéias e valores como produção incorporal não podem ser entregues em si mesmos, constituindo um extrato histórico que precisa ser conservado, organizado e aprimorado. Desse modo a consciência nacional recupera para si os valores, feitos heróicos que ela própria criou. É a maneira melo-freiriana de entender as teses do idealismo alemão de Johann Gottlieb Fichte (1762-1814)38 e
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831).39 Do primeiro
observa-se a idéia do processo de elaboração da consciência
como resultado da recuperação de um algo de si posto por
ela própria e do segundo o caráter histórico desse processo.
Em nome da organicidade da consciência coletiva combateu a noção de pacto social, que é a base de uma moral
laica e negociada, assumindo o anti-contratualismo e justificando a autoridade do monarca da divina. Melo Freire retornou com Pombal às teses dos primeiros contra-reformistas.
Acrescentou à justificação daqueles padres moralistas o fato
de que o monarca representava os altos valores da nação, cuja independência se fez por conquista e sangue. Está em evidência a idéia de que no estado natural unem-se os homens
para compor a sociedade pela progressiva incorporação da
família, da propriedade e do estado. É, portanto, o mesmo
temário de Robert Filmer (1588-1653) e Thomas Hobbes
(1588-1679), mas sua inspiração primeira eram os contra-
37
CF. MELO FREIRE, Pascoal José. Ensaio do código criminal. Lisboa:
Maigrense, 1823. p. 2.
38
CF. FICHTE, J. G. A doutrina da ciência de 1794. Trad. de Rubens
Torres Filho. - 3. ed. - São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 43/56.
39
CF. HEGEL, G. W. Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Trad. de H.
C. de Lima Vaz. - 4. ed. - São Paulo: Nova Cultural, 1988.
59
reformistas, além da volta ao direito tradicional, “o qual entre os povos católicos desde a Idade Média era tido como
produto da razão esclarecida”.40 Nesta fonte se baseou Melo
Freire para contradizer o naturalismo hobbesiano, segundo o
qual o homem era o lobo do homem, o que desembocava
num estado primitivo de guerra generalizada e no pacto social. A lei como produto da razão de todo o povo era a expressão da vida. O processo de racionalização da cultura evoluiu e ganhou um tratamento sistemático sob influência
do hegelianismo.
O entendimento do caráter ético normativo do direito é
algo que foi claramente notado (1790-1847) por Liz Teixeira, como o fora antes por Manuel de Almeida Souza e Lobão
(1745-1817).41 Este último observara não somente o sentido
ético do direito, mas o esforço de racionalização das instâncias jurídicas, um trabalho magistral para resolver a problemática colocada pela última geração de contra-reformistas.
O ponto essencial foi a procura de estabelecer as condições
de liberdade retiradas da práxis histórica do povo lusitano,
considerada ocasião privilegiada para o estabelecimento do
sig-nificado epocal da vida. Nesse projeto há a intenção de
preservar as virtudes da moral contra-reformista, o autodomínio das paixões e a conquista da felicidade ultraterrena,
temas centrais da moral de Amador Arrais.
O código de Melo Freire indicou o caminho para vários
autores tradicionalistas do período subseqüente, o que se realizou colocando o agir do homem no mundo e trazendo à
40
CF. CAETANO, Marcelo. Introdução. In: FREITAS, Frei Serafim de.
Do justo Império Asiático dos Portugueses. Lisboa: Instituto Nacional de
Investigação Científica. 1983. p. 15.
41
CF. SOUZA e LOBÃO, Manuel de Almeida. Adições, ilustrações e remissões sobre os títulos e parágrafos do livro Terceiro das instituições do
direito civil lusitano do Dr. Pascoal José de Melo Freire. Lisboa: Imprensa Nacional, 1866, parte III. p. 3.
60
tona a reativação do arquétipo nacional naquilo que representou o passado do reino. A moral tradicional ficou intacta,
ainda que tivesse sido adaptada para propiciar a preservação
da liberdade individual e a separação institucional da Igreja
e do Estado.
4. As dificuldades da moral contra-reformista.
O
problema dos valores e o significado da pertença ao
grupo havia experimentado um novo significado entre os britânicos, sobretudo após Thomas Hobbes (15881679). Os moralistas britânicos conseguiram acomodar a ação no interior da consciência. Hobbes abriu o caminho para
a superação do suporte metafísico aos valores morais, posteriormente o kantismo associou a humanização à ética dando
expressão ao entendimento de que o agir humanamente era
portar-se moralmente. Assim a fundamentação da ética libertou-se de seus suportes metafísicos e refez o sentido da
vida, passou a referir-se ao futuro como possibilidade, reexaminou a experiência da liberdade, considerou a tolerância,
abriu espaço para a pluralidade.
O contato com a moral dos sentimentos não se efetivou
de modo linear pelos moralistas brasileiros. O caminho estava interditado em virtude da moral pombalina oscilar entre a
fundamentação metafísica e a histórico-juridicista. Em ambos os modelos não se cogitava de abandonar o fundamento
estabelecido pelos contra-reformistas ao formular o seu
quadro normativo, nem a compreensão de uma ética voltada
para a conquista da felicidade. Quando muito a geração
pombalina conseguiu, além dos progressos na racionalização
do conhecimento, reestruturar o conceito orgânico de sociedade, combatendo a noção de pacto coletivo em nome de um
direito natural de bases racionais.
A incorporação da ética social realizou-se a partir das
contribuições de Samuel von Puffendorf (1632-1694) que
distinguiu a razão pura da revelada, diferenciação que não
61
propiciou conhecimento imediato de suas conseqüência. Ao
abordar o problema da soberania, o filósofo negou a participação do povo no poder. Jean Jacques Rousseau (17121778) optou pelo caminho oposto e em nome da soberania
popular chegou ao democratismo. Também nisso a insuficiência moral do pombalismo revelou-se, pois esse assunto
não se resolve por uma opção entre a ética racional e teológica, nem reduzindo a questão a um embate entre o sentimento e o raciocínio, conforme entendeu-se na ocasião.
Moralistas como Cairu conceberam o liberalismo como
um projeto ético-normativo, uma espécie de esqueleto de
mentalidade para sustentar as relações econômicas. A fragilidade desse propósito foi sentida pelo moralista, que gradualmente retomou o quadro de virtudes e valores da ética de
Manuel de Góis.
Cairu valendo-se do que propusera Adam Smith propusera inicialmente que a atividade econômica decorria da própria natureza humana para combater o voluntarismo puro. A
economia adquirira o papel de mediadora entre o sujeito e a
felicidade, eudemonismo que, exceto pela sua intermediação, mantinha intacto a fórmula contra-reformista. Permaneceu o fundamento metafísico da ética bem como sua orientação teleológica, intermediada pela prática quotidiana do
trabalho.
O ideal humanizador, otimista e desenvolvimentista das
luzes ganhou expressão na apologia do comércio mundial.
Por ele, os diferentes grupos adquiriram condições para o
exercício dos bons costumes, logo contribuiu para o aperfeiçoamento de toda a humanidade. É em seu nome que o Visconde pediu o fim do monopólio do comércio.
A necessidade gradual que Cairu encontrou de fundamentar o ideal humanista na ética cristã, sentiu-o igualmente
Mauá. Pareceu-nos, contudo, que esse último preferiu fundamentar a promoção do progresso num humanismo mais
próximo da justificação iluminista. O propósito de apresen-
62
tar um programa de vida destinado a promover momentos
sucessivamente mais avançados de progresso material e moral, acomodou-se adequadamente ao novo cristianismo e aos
valores voltados para valorização da vida terrena. O saintsimo-nismo, na proporção em que orientou a meditação para
o homem, edificou uma moral terrestre. Foi também o promotor da fraternidade universal realçando a importância do
altruísmo na base da organização social, além de associar o
trabalho com as necessidades práticas da vida.
5. A formação moral.
A
análise da formação moral de Mauá é sem dúvida
um dos aspectos básicos deste trabalho. O seu pensamento e toda a sua vida achavam-se inspirados por um
modelo ético complexo; se por um lado ele valorizava o trabalho produtivo, por outro valorizava também o desprendimento e o desinteresse pessoal face ao lucro. Desta combinação curiosa é que brotariam os compromissos morais de
Mauá. Segundo nossa hipótese, os elementos resultantes
desta combinação estão próximos do modelo ético saintsimoniano, que estudaremos no quarto capítulo da presente
pesquisa.
O comportamento de Mauá é bastante divulgado e conhecido e os principais valores que cultivou foram a sobriedade, compromisso com o progresso, altruísmo, dedicação,
esforço, honestidade, segundo observou Gaudêncio:
“Cultivando hábitos sóbrios e inimigo da ostentação,
surge pouco a pouco o empresário, industrial e político atuando no cenário nacional e internacional, imbuído do sentimento maior de alçar seu país aos píncaros do progresso existente. É abrindo mão de
quaisquer benefícios e acreditando nesses propósitos
que o homem se fez instrumento das idéias, eclipsando em si (conscientemente ou não) quaisquer emoções
não condizentes com o altruísmo a que se propunha,
condenando todos aqueles que não lhe seguissem o
exemplo. É na luta obstinada da realização impecável
63
do seu papel que se desenrola a sua existência; o zelo
pela onipotência e a sua preocupação com a honestidade são traços marcantes”.42
A formação moral de nosso industrial é complexa. Ele
revelava traços da ética cristã, tanto do neotomismo contrareformista quanto da ética puritana, mas apresentava, igualmente, aspectos que marcaram um compromisso com a
transformação da sociedade. As raízes desta concepção filosófica ligam-se ao utilitarismo de James e John Stuart Mill,
que, por sua vez, confirmavam as teses fundamentais de
Bentham. Saint-Simon inspirou-se no mesmo aspecto, isto é,
na moral do altruísmo, que evoluiu, em seguida, para uma
moral do amor e do trabalho combinados. Todas estas concepções possuem em comum o fato de considerarem a ética
como elemento diretor e disciplinador da conduta. Os compromissos do homem com os valores que adota são de natureza moral.
Ao se apresentar como credor, Mauá mostrou-se um filantropo, para quem a caridade era uma obrigação, assim
como o amparo do mais fraco ou mais pobre. Nessa hora, a
atitude de Mauá era a de alguém que se sentia comprometido com o progresso material, mas também com a caridade,
precisava a todo custo distribuir benefícios, fazer caridade,
emprestar mesmo correndo o risco de não receber.
Assim comentou ele em certa ocasião:
“No longo período da minha vida ativa tive ocasião
de fazer suportar o transe doloroso que me fazem atravessar a centenas de indivíduos e a inumeráveis
firmas comerciais, dentro e fora do Brasil; no entanto, nem uma única falência foi aberta a requerimento
42
GAUDÊNCIO, Paulo. Mauá, Biografia Psicanalítica. In: Barão de
Mauá, empresário e político. São Paulo: Bianchi, 1987. p. 68.
64
de qualquer das firmas que levaram meu nome à sua
frente”.43
Em várias cartas a seu amigo Ricardo Ribeiro, enaltecia
o compromisso com a melhoria de vida, com a assistência
aos necessitados e com a bondade no trato interpessoal.
Mauá nos ensinou que era sempre importante fazer o bem e
que fugindo desse compromisso com os outros homens não
era possível esperar nem a generalização das virtudes sociais, nem o progresso dos grupos humanos:
“— Somos muito felizes, não devemos fazer mal a
ninguém (3.6.1864) — Quando estivermos interessados em falência e a boa-fé seja patente, não seja exigente, antes o primeiro a concordar com qualquer arranjo (31.5.1869) — É um velhaco; não tenho dúvida,
pelo que o Amigo mostra; mas quem mais sofrerá
com a prisão não será ele, será a família, que é gente
sã. (24.11.1877)”44
Na sua concepção de progresso, era o trabalho a atividade que preponderava no processo econômico. Neste ponto,
identificamos aspectos tanto do contra-reformismo, quanto
da ética puritana. Da primeira note-se o realce do trabalho
sobre o capital; da segunda, destaque-se a valorização do
trabalho, elemento mais significativo do processo econômico; e de ambas, uma condenação implícita dos juros, considerados como apropriação indevida do trabalho de outrem.
Apenas o trabalho podia instituir uma sociedade feliz:
43
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro, Typ. Imp. e Const. de
J. Villeneuve & c, 1871. p. 164/5.
44
FARIA, Alberto de. Irineo Evangelista de Souza, Barão e Visconde de
Mauá. - 2. ed. - São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933. p. 70/1.
65
“Acreditai, senhores, que a taxa elevada dos descontos é uma víbora que devora as raízes da produção”.45
Quando credor era sempre complacente, vivendo o perdão e a caridade, mas, quando devedor, sofreu muito com os
prejuízos que dava a terceiros, valor mais próprio de um
ambiente puritano em que o prejuízo material causado a outros era intolerável.
Fundamental, neste momento, é explicitar a origem dos
valores veiculados pela ética católica e pela ética protestante, a fim de fornecermos os subsídios teóricos que orientam
a classificação que estamos propondo. Chamamos de ética
católica à tradição contra-reformista e a ética puritana seria
aquela que inspirou a procura da utilidade como forma de
mudança do mundo:
“A ética de salvação, afirma ele, foi elaborada
durante a Idade Média, assim denominada por ter interpretado a ética grega de ângulo teológico, dando
precedência à vida eterna. A ética social foi elaborada nas nações protestantes, na Época Moderna, com
o propósito de fixar critérios para a incorporação de
princípios morais à sociedade, já que a moralidade
básica é entendida como sendo individual e dizendo
respeito a uma relação com o Criador, que não admite mediações”.46
O ideal de salvação era a base da moral contrareformista, espécie de síntese das tradições judaica e grega.
Na primeira, as leis morais foram consolidadas no Pentateuco, enquanto na Grécia o comportamento moral mereceu
uma investigação autônoma, desvinculada da religião, cujo
45
SOUZA, Irineo Evangelista de. Discurso na Câmara dos Deputados.
Anais da Câmara, 7/5/1875.
46
PAIM, Antônio. Modelos éticos; introdução ao estudo da moral. Rio
de Janeiro, s.e., 1983. p. 11.
66
maior representante foi Aristóteles.47 Na Grécia firmou-se
um compromisso do homem com a felicidade social que
acatamos como um compromisso permanente do homem. Os
valores produziam a felicidade e levavam a harmonia social.
Segundo o filósofo grego, a virtude seria uma conquista
pessoal, estaria associada ao saber, assumiria formas diferentes segundo a classe social ocupada pelo indivíduo. Notese ainda que a virtude não era alcançada por todos, sendo
privilégio de alguns.
A análise cristã do trabalho de Aristóteles e de outros
gregos obrigou a alteração dos aspectos hedonísticos e naturalísticos, além de submeter a moral a uma idéia de bem situada além dos limites da vida humana.
Essa ética grega foi revista no período medieval e refeita
sob a ótica teológica, privilegiando-se a outra vida.
“A conquista da virtude, na terra, seria um requisito
essencial à obtenção da paz interior após a morte.
Esse aspecto é importante na medida em que serve
para enfatizar o caráter do elemento novo aparecido
na época do Renascimento. Consiste este na religião
protestante, que iria dissociar a solução do comportamento terreno. Agora, ao homem só resta cumprir a
lei moral, não se credenciando à solução pela obra
que poderá, no máximo, segundo concluiria o debate
teológico coroado no século XVIII — servir como indício”.48
Segundo a ética puritana, o destino final do homem já estava traçado e era conhecido pela inteligência onipresente de
Deus, e era assim por causa de sua vontade absoluta, insondável pela razão. Nada havia neste contexto que pudesse garantir a salvação eterna, ficando o crente numa situação de
47
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de Leonel Vallandro e Gerd
Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
48
PAIM, Antônio. Modelos éticos; introdução ao estudo da moral. Rio
de Janeiro, s.e., 1983. p. 5.
67
contínua expectativa, certamente imerso na mais profunda
angústia, sentimento de que nos fala Kierkegaard49, resultado da solidão absoluta e da incerteza. A certeza de estar apenas uma vez nesse mundo e a insegurança quanto ao futuro propiciou um compromisso com a sua transformação. Aos
poucos esse compromisso associou-se à idéia de progresso,
progresso das obras do homem.
A angústia da solidão e sua vinculação aos valores capazes de mudar o mundo foram anunciados por Weber:
“No que era, para o homem da época da Reforma, a
coisa mais importante da vida — sua salvação eterna
— ele foi forçado a, sozinho, seguir seu caminho ao
encontro de um destino que lhe fora designado na eternidade. Ninguém poderia ajudá-lo. Nenhum sacerdote, pois o escolhido só por seu próprio coração podia entender a palavra de Deus. Nenhum sacramento,
pois embora os sacramentos houvessem sido ordenados por Deus para aumentar sua glória, devendo assim ser escrupulosamente observados, não são meios
de obtenção da graça, mas apenas os externa subsidia objetivos da fé. Nenhuma Igreja... finalmente nenhum Deus... Isto — a completa eliminação da salvação através da Igreja e dos sacramentos (que no luteranismo não foi de modo algum desenvolvido até suas
conclusões finais) — era o que constituía a diferença
absolutamente decisiva entre o calvinismo e o catolicismo”.50
O aparecimento das várias versões do cristianismo, especialmente na Inglaterra, promoveu o debate sobre a moral
49
KIERKEGAARD, Soren Aabye. O conceito de angústia. Trad. de João
Lopes Alves. - 2. ed. - s. 1, Presença, s.d.
Idem. O desespero humano: doença até a morte. Trad. de Adolfo Casais
Monteiro. - 5. ed. - Ed. Porto: Tavares Martins, 1961.
Idem. Temor e tremor. Trad. de Maria José Marinho. Lisboa: Guimarães,
1959.
50
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São
Paulo: Pioneira, 1967. p. 72.
68
social consensual, o que ainda não havia sido feito no ocidente católico, pois até aquele momento os problemas relativos ao comportamento do indivíduo estavam debaixo de
valores inquestionáveis. Quando diferentes religiões precisaram conviver é que o problema de uma moral independente da religião apresentou-se como um assunto fundamental,
um desafio a ser considerado pelo homem.
Na ética protestante, a Igreja era o culto exterior da divindade, e o problema da relação com Deus permanecia no
âm-bito particular. A convivência social precisava então de
uma regulamentação própria. Tal era a origem dos valores
sociais, modelo com o qual Mauá mantinha contato e pelo
qual seria influenciado, mesmo sem se preocupar em analisá-lo. Contudo, difícil seria adotar esses valores numa circunstância onde o homem desconsidere seus compromissos
nesse mundo em nome de uma felicidade futura.
A separação entre a moral e a religião dá-se, segundo
Hazard, pela primeira vez com P. Bayle (1647-1707), que
dedicou grandes esforços à defesa da tolerância religiosa.
“Estabelecidas a prova e a contraprova, Bayle chega
ao termo de sua demonstração: religião, moralidade,
longe de serem indissociáveis, são independentes;
pode-se ser religioso sem ser moral; pode-se ser moral sem ser religioso. Um ateu que vive virtuosamente
não é um monstro que suplanta as forças da natureza”.51
A importância das referidas discussões sobre a moralidade social na Inglaterra durante o século XVIII pode ser avaliada pela quantidade e pela qualidade dos pensadores que
ao assunto dedicam algum trabalho. Entre aqueles que se
dedicam ao tema, destacam-se John Locke e Adam Smith,
este último, autor de uma das principais obras do liberalismo
51
HAZARD, Paul. La crise de la conscience européenne - 1680/1715.
vol. 2. Paris: Gallimard, 1961. p. 78.
69
econômico, enquanto o primeiro é considerado o pai do liberalismo político, tratando ainda da questão da tolerância religiosa. Foi justamente a tolerância que permitiu considerar
a existência humana como um fato peculiar, mantendo o indivíduo livre da ingerência do poder político.
Não podemos esquecer também a contribuição de David
Hume52, que justificaria a universalidade dos juízos morais,
através da aceitação ou não dos atos na vida social. O julgamento moral, segundo ele, somente pode ocorrer numa
sociedade que possua normas bem definidas e que faça a apreciação das atitudes do sujeito segundo essas normas.
Na configuração da moral social laica, especialmente para este trabalho, é muito importante avaliar a contribuição de
Bernard Mandeville. Ele formulou de modo claro a distinção
entre as virtudes pessoais e sociais, à medida que criticava a
análise de Shafsterbury, esse último, defensor do princípio
segundo o qual cada homem seria o possuidor de um sentido
moral, uma espécie de faro instintivo que lhe permitia conhecer o bem e o mal, derivando dele os valores sociais. O
entendimento de que os valores sociais não eram pura extensão dos individuais foi demorada.
“Shafsterbury não se dava conta, contudo, que os valores da sociedade poderiam não ser os mesmos da
aristocracia — que procurava exaltar em sua obra —,
como se tornou evidente no debate que se sucedeu.
Esta descoberta seria devida ao seu principal crítico
— Bernard Mandeville (1670-1733)...Seu livro básico
— A fábula das abelhas (1723) — insere o sugestivo
subtítulo: vícios privados, virtudes Públicas (private
vices, public benefits). Na crítica a Shafsterbury,
Mandeville logrou demonstrar, de modo insofismável,
que os valores morais presentes na sociedade variam
com o tempo e não podem ser pura e simplesmente
52
HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. Trad. de
Leonel Vallandro. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
70
identificados com as virtudes que os homens piedosos
se sentiam obrigados a cultivar com o propósito de
salvar as próprias almas. Mandeville tampouco reduz
a moral social a uma questão de direito. A exemplo
da moral individual, deve estruturar-se em torno de
valores que as pessoas aceitem e procurem seguir livremente. E apontou também um critério segundo o
qual devem ser incorporados à vida social, ao exaltar
o trabalho e a tenacidade, colocados a serviço do
progresso material”.53
Os debates acerca da moralidade social envolveram também autores consagrados da literatura, tais como Daniel
Dephoe (1660-1731), autor de Robinson Crusoe (1719),
uma versão do bom selvagem, idéia já veiculada por Rousseau.54 O filósofo genebrino considerou o homem naturalmente bom, mas livre para escolher o bem e fugir do mal
moral. Ao referir-se às misérias humanas em sociedade,
Rousseau abriu uma trilha importantíssima. Ele ensinou aos
homens que, em última instância, eram eles as causas de suas próprias desgraças, estando em suas mãos evitar o mal e
construir uma sociedade moralmente boa.
Na ética puritana a moralidade básica era a individual,
estabelecida a partir do contato íntimo do fiel com o Criador, sem a mediação de nenhuma instituição. Isso exigiu um
grande esforço no sentido de se estabelecerem regras sociais
de convivência e trabalho, contexto no qual se inscreve a
meditação de Mandeville. Criou-se assim nas ilhas britâni-
53
PAIM, Antônio. Moral Social. In: Curso de Humanidades. São Paulo:
Instituto de Humanidades, 1987. p. 115/6.
54
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. Trad. de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
Idem. Ensaio sobre a origem das línguas. Trad. de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
Idem. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre
os homens. Trad. de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural,
1988.
71
cas um ambiente favorável aos valores sociais, promotores
da iniciativa privada e incentivadores do cumprimento dos
contratos, atitude absolutamente necessária à viabilização do
progresso material e moral. O resultado desse ambiente no
campo da moralidade foi a construção da ética social negociada. A separação dos valores individuais dos coletivos
manteve a individualidade preservada do perigo de se substituir a cons-ciência singular pela do grupo, seja ela um estado, partido político ou uma igreja.
Sobre as razões pelas quais a diversidade religiosa, desemboca numa meditação laica da moral social, observou
Paim:
“... a simples presença da diversidade religiosa entre
os protestantes pressupunha que se estabelecessem
regras de convivência nessa matéria. De sorte que,
concluído o processo de estruturação do governo representativo com a revolução Gloriosa de 1688, parece a Locke que a questão deveria ser meditada. E
ainda que não a tenha vinculado especificamente à
moral — Locke considerava que a moralidade estava
associada à totalidade da atividade humana — sua
consideração corresponde a uma etapa prévia de
grande relevância na constituição da moral social de
tipo consensual”.55
Locke56 trata do problema nas cartas sobre a tolerância
religiosa, cuja autoria durante bom tempo ele negou. O objetivo fundamental de Locke foi procurar separar os assuntos
religiosos dos civis, para ele de natureza distinta. A separação entre valores públicos e privados sugeriu a John Locke a
possibilidade de distinguir os valores civis dos religiosos.
55
PAIM, Antônio. Modelos éticos; introdução ao estudo da moral. Rio
de Janeiro, s.e., 1983. p. 21/2.
56
LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo:
Abril Cultural, 1973.
Idem. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
72
Admirável intuição capaz de comprometer o homem com
seu destino, mesmo acreditando em Deus e praticando uma
religião.
Os assuntos da comunidade, notadamente os ligados à
sociedade e os políticos, eram distintos dos de natureza religiosa e assim a ética pactuada nasce de consenso do grupo
como maneira de estabelecer a vida social. Ao promover a
separação dos valores garantiram a sobrevivência do indivíduo:
“A comunidade, é uma sociedade de homens, constituída apenas para a preservação e melhoria dos bens
civis de seus membros. Essa esfera estará regulada
em lei, cumprindo ao governo fazer respeitá-la recorrendo inclusive ao emprego da força”.57
Por outro lado, a sociedade religiosa é uma organização
cuja finalidade é culto externo da divindade. Como a ninguém é dado conhecer qual a melhor maneira pela qual Deus
deseja ser cultuado, cada qual, ao entrar para uma religião,
admite que o seu ritual seja agradável ao Ser Supremo. Uma
Igreja é, portanto, uma associação voluntária de crentes. Assim sendo era sempre possível separar o indivíduo da organização a que pertencia.
Comentando a posição de Locke a respeito da relação entre a sociedade civil e a religiosa, assim se expressou Paim:
“Em matéria religiosa deve vigorar a tolerância entre
pessoas que professam diferentes crenças como entre
as próprias Igrejas. O argumento principal consiste
no seguinte: nenhuma religião pode ser útil e verdadeira se não se acredita nela como verdadeira... Se
eles acreditam, virão por sua livre vontade; se não
acreditam, de nada lhes valerá comparecer. Por conseguinte, por maior que seja o pretexto de boa vonta-
57
PAIM, Antônio. Modelos éticos; introdução ao estudo da moral. Rio
de Janeiro, s.e., 1983. p. 2.
73
de a caridade, e a preocupação de salvar a alma dos
homens, eles não podem ser forçados a se salvar. A
lei civil deve pois assegurar a tolerância para as diversas sociedades religiosas”.58
Falta-nos ainda explicar de que forma esse ambiente protestante gerou uma ênfase na produtividade e no progresso
material, elementos igualmente presentes na ética saintsimoniana, que, entretanto, tinha pressupostos diferentes.
Nesse último o progresso era sempre do grupo e tinha um
compromisso com a humanidade, constituída em espírito ético.
Durante os primeiros anos do século XVIII, houve na Inglaterra uma grande pressão social de cunho moralizante. As
pessoas que porventura violassem algum elemento do código eram consideradas como autênticas inimigas do Estado,
capazes de promover desordem e insurreição. Estavam associadas então a moral individual e a moral social. Funcionava, assim, o princípio de que quem era infiel no nível individual também o era no plano social e político. O agravamento
desta interpretação ocorreu quando, à semelhança do Antigo
Testamento, os fenômenos naturais passaram a ser interpretados como resultados da ira divina. O terremoto de 1692
que atingiu Londres e as chuvas violentas que se abateram
sobre aquela capital, passaram a ser apresentadas como vingança de Deus contra as más ações da sociedade. Nesse caso
os compromissos individuais e coletivos estavam ainda misturados.
Desses movimentos de cunho moralizante participa
Shafsterbury. Neles, a moral individual era considerada como uma parcela da moralidade pública. Esta última seria o
resultado da soma do comportamento moral dos sujeitos, is-
58
PAIM, Antônio. Modelos éticos; introdução ao estudo da moral. Rio
de Janeiro, s.e., 1983. p. 24.
74
to é, o todo seria o resultado da soma das partes. Shafsterbury chegou a desvincular a moral da religião59, mas não
conseguiu tirar daí as conclusões possíveis; ao contrário,
confundiu as duas na sua explicitação do processo político,
aproximando a direção do estado com sistema representativo. A separação proposta precisava concluir com a autonomia dos valores, o que acabou não ocorrendo. Um esforço
demonstrativo desse nível devia considerar que a ética considera a existência humana e a religião tem pressupostos radicados noutra vida.
“O cerne da crítica de Mandeville a Shafsterbury reside no seguinte: as virtudes da piedade e da abnegação, que exalta, não tém nenhum papel a desempenhar na vida social, onde o principal consiste na
conquista do progresso. Parece a Mandeville que as
virtudes requeridas por semelhante objetivo são o
trabalho e a tenacidade. Por desconhecer esse quadro real, afirma, Shafsterbury realizou uma construção inteiramente artificial”.60
Para criticar Shafsterbury, Mandeville61 identificou a raiz
dos equívocos que, a seu ver, estavam presentes na obra daquele pensador. O ponto de partida é que não se pode falar
de um senso moral inato, inerente à natureza humana, e que
a conduza vida afora, dirigindo-a e orientando-a segundo
seus ditames. Sujeitos que vivessem segundo o modelo proposto por Shafsterbury seriam verdadeiros parasitas, indolentes, pouco produtivos e incapazes de produzir para o bem
do estado, incapazes de investir e aumentar a própria riqueza. Shafsterbury preservava a interpretação racionalista, na
59
PERELMAN, Chaim. Introduction historique à la philosophie morale.
Bruxelles: Université de Bruxelles, 1980.
60
PAIM, Antônio. Modelos éticos; introdução ao estudo da moral. Rio
de Janeiro, s.e., 1983. p. 37.
61
MANDEVILLE, Bernard. The fable of bees or private vices, public benefits. v. 2, Oxford: Claderan Press, 1924.
75
medida em que pressupunha a capacidade da razão dirigir a
vida humana, e ingenuamente otimista, na medida em que
desconhecia as motivações que orientam e impelem o comportamento humano, motivações de natureza freqüentemente
inconsciente, como mais tarde demonstrara Freud.62 Observou corretamente Antônio Paim:
“Segundo Mandeville, não foi o senso moral desinteressado ou o amor da humanidade que fez surgir a
sociedade e compeliu ao trabalho, mas um de seus vícios: a vaidade. A tendência natural à preguiça, encontrada no homem, somente foi superada pela forte
paixão desencadeada pela vaidade. Argumenta: é
certo que o homem gosta de companhia, mas tal se dá
do mesmo modo como aprecia inúmeras outras coisas
para o deleite pessoal. Ao buscar associar-se a outros
homens, quer em primeiro lugar confirmar a alta opinião que tem de si mesmo; é além disso, se pode
proporcionar prazer aos outros, espera ser em troca
lisonjeado”.63
Mandeville conseguiu identificar motivações de natureza
emocional que impeliam o homem por caminhos opostos
àqueles previstos por Shafsterbury. O estado devia limitar e
dirigir as motivações egoístas do sujeito que, deixado por
conta própria, buscava a sua própria satisfação em detrimento dos demais. No entanto, não existe aí qualquer dependência do estado no sentido hegeliano. Para Hegel o cidadão,
vivendo no interior do estado, experimenta a liberdade em
decorrência do movimento do espírito, que se manifesta ora
como existência imediata, ora mediata. No hegelianismo a
62
FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Trad.
de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
Idem. O ego e o id e outros trabalhos. Trad. de Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, 1976.
63
PAIM, Antônio. Modelos éticos; introdução ao estudo da moral. Rio
de Janeiro, s.e., 1983. p. 38/9.
76
ética nasce no interior e em oposição a esse movimento. A
moral consensual que possibilitaria a convivência social não
seria derivada de um instinto natural, mas era, ao contrário,
uma criação artificial e histórica. Justamente por este último
aspecto, as normas sociais alteravam-se de sociedade para
sociedade e muitas vezes dentro da mesma sociedade. A ética consensual não advém dos movimentos do absoluto, não
se sustenta em qualquer referência essencialista, mas do
pacto.
Mandeville inclui-se entre os pensadores que atribuíram
o progresso humano à divisão do trabalho, defendendo a idéia de que foi a especialização que produziu o desenvolvimento material. Indicaremos adiante que esta posição será
defendida por muitos dos economistas clássicos, notadamente J.B. Say.
O contexto cultural no qual se desenvolveu a doutrina liberal achou-se impregnado por essas discussões que permitiriam uma atitude positiva perante as riquezas e aos valores
necessários a promovê-la. Mandeville apresentou esses valores propondo que se subordinavam à liberdade, evitando tanto a dependência da metafísica quanto do direito:
“que os valores morais presentes à sociedade variam
com tempo e não podem ser pura e simplesmente identificados com as virtudes que os homens piedosos
se sentiam obrigados a cultuar com o propósito de
salvar as próprias almas. Embora atribua primazia
ao governo nesse terreno, de modo idêntico a seus
oponentes, não reduziu a moral a uma questão de direito. A exemplo da moral individual, deve estruturarse em torno de valores que as pessoas aceitam e procuram seguir livremente. E apontou também um critério segundo o qual devem ser incorporados à vida social, ao exaltar o trabalho e a tenacidade, colocados
a serviço do progresso material. É certo, que não
conseguiu circunscrever os limites precisos da discussão de caráter teórico para separá-la do propósito de
influir sobre o curso da sociedade. Este passo seria
dado por Joseph Butler, cuja obra antecede justamen-
77
te o empenho de formalização da nova doutrina moral empreendido por Hume”.64
Ao considerar a ética um saber humano com valores próprios, abdicando tanto de fundá-la na idéia de bem, conforme propôs o neotomismo contra-reformista, quanto de tornála o produto da consciência coletiva solidificada no direito,
a escola inglesa afastou-se da tradição luso-brasileira.
Depois dessa digressão, podemos retornar agora à análise
do comportamento do Visconde, trabalho já iniciado quando
procuramos identificar os aspectos da ética católica que, a
nosso ver, predominavam no trato com aqueles que tinham
dúvidas com ele. Procuramos mostrar que, ao agir como
credor, Mauá era extremamente complacente, como se possuísse um sentimento de culpa por acumular grande riqueza,
ideal pouco cultivado na tradição católica, e igualmente desestimulado pela ética pombalina. Era também extremamente generoso com as obras de assistência, doador incansável
de enormes parcelas aos governos das províncias em ocasiões de calamidade pública, quando suas doações se equiparavam às do próprio imperador.
Por que Mauá agia assim? Paulo Gaudêncio, em seu trabalho sobre Mauá já citado anteriormente, observou com total propriedade que ele não precisava ser tão exigente consigo mesmo. A moderna psicologia ajuda-nos a compreender
a importância dos condicionamentos na vida de uma pessoa,
especialmente daqueles dos primeiros anos de vida. Ao assimilar os ideais éticos que apresentamos, Mauá irá se convertendo numa personalidade diferente daquela das pessoas
com quem convivia.
Os valores adotados pelos homens podem ser melhor
compreendidos à luz do estudo de sua existência, estudo que
64
PAIM, Antônio. Modelos éticos; introdução ao estudo da moral. Rio
de Janeiro, s.e., 1983. p. 41.
78
não nega a importância dos comportamentos de auto-preservação e do egoísmo, mas demonstra quão é maleável a
construção de cada mundo interior.65
Até aqui, temos mostrado Mauá como credor. Vejamos
agora como percebeu os compromissos que tinha com os outros.
Logo no início de sua Exposição aos Credores, obra que
ele publicou para explicar as razões do seu insucesso, afirmou:
“A explicação das causas que possam ter influído no
desastre, que eu considero grande, porque não sou o
único que sofre, e os interesses de terceiros afetados
tocam-me no fundo da alma... Na idade avançada em
que me acho, em presença do acontecimento que motiva esta exposição, realizado pelo modo por que foi
resolvido, não posso ter outro objeto em vista senão
salvar do naufrágio aquilo que para mim vale mais
do que quanto ouro tem sido extraído das minas da
Califórnia — um nome puro, pois persisto em acreditar que o infortúnio não é um crime”.66
E no final da mesma obra assim concluiu:
“Quanto a vós, credores do Banco Mauá e C., acreditai que a dor pungente que me dilacera a alma nasce
de ter sido causa involuntária do prejuízo que a liquidação pode acarretar-vos: minorar esse prejuízo é
65
SKINNER, B. F. Ciência e comportamento humano. Trad. de J. C. Todorov e R. Azzi. - 2. ed. - São Paulo: Edart/Edusp. 1974.
Idem. La conduta de los organismos. Trad. de Luiz Flaquer. - 2. ed. Barcelona: Fontanella, 1975.
Idem. .A análise do comportamento. Trad. de R. Azzi. - 6. ed. - São Paulo: Epu/Edusp, 1975.
Idem. O mito da liberdade. Trad. de L. Goulart e M. L. F. Goulart. - 2. ed.
- Rio de Janeiro: Bloch, 1977.
66
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de
J. Villeneuve & c, 1878. p. 5/6.
79
o único pensamento que me preocupa, e modera a violência de meu sofrimento moral a possibilidade de
vos poder ser útil”.67
Ter sido causa, ainda que involuntariamente, do prejuízo
financeiro de um grande número de pessoas era tão doloroso
quanto maior fosse o significado das posses. A ética puritana entendia que a riqueza acumulada era um indicativo da
salvação, pois esta se encontrava desvinculada das obras e
justamente por isso causar prejuízo era inadmissível. O sentimento de culpa de Mauá foi grande o que não se explica
pelos valores veiculados pela ética contra-reformista:
“Não é um desabafo, é um gemido que esta exposição
encerra, e o gemer é privilégio de quem sofre: pretender negar que sofro, e muito, seria faltar à verdade”.68
Em várias de suas correspondências a Ricardo Ribeiro,
Mauá analisou a situação em que se encontrava, e em todas
elas é admirável a sua resignação diante da tragédia, ao deixar transparecer, com toda evidência, sua obstinação em pagar todos os prejuízos. Citamos abaixo partes das correspondências que confirmam o que foi aqui exposto. Essas
correspondências foram publicadas parcialmente por Alberto de Faria.
“— Finalmente a fatalidade que trouxe o cataclisma
(sic) de Montevidéu veio logo, obedecendo ao mesmo
impulso, desfechar aqui sobre a minha cabeça golpe
ainda mais desabrigado. Por momentos fiquei semimorto. Assim, porém, não aconteceu. A certeza de que
nenhum prejuízo pode resultar a terceiros me foi restaurando o ânimo, que se sentia prostrado ante a e-
67
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de
J. Villeneuve & c, 1878. p. 164.
68
Idem, ibidem. p. 165.
80
normidade do sucesso. (carta de 5/5/1875) — Como
os chamados bens de fortuna não foram jamais para
mim senão instrumentos de fazer o bem, suportarei
com inteira resignação as perdas que me couberem,
pois que estou seguro de que prejuízos a terceiros é
impossível. (citada carta) — Na moratória não se fala
em juros; porém, só deixarão de ser pagos os que
corresponderem até a última hora do pagamento que
se dever, se empenhando a camisa, o chapéu e as botas de montar, isso não se puder conseguir. (citada
carta) — estudem o que for melhor na certeza de que
sou indiferente ao que resolverem pelo lado do interesse. Meu desejo é minorar os males de que a fatalidade me fez causa inocente. (carta de 9/11/1875) Apesar de ter quitação plena, tudo quanto me vier às
mãos será para os meus credores. (artigo sobre a São
Paulo Railway, Jornal do Comércio, 1884)69
Em todos os seus pronunciamentos era patente o compromisso com o progresso humano e a transformação do
mundo. Orientado por normas rígidas de moralidade, ele iria
passar os últimos anos de sua vida procurando pagar o que
devia, mesmo depois de ter sido plenamente reabilitado pelos seus credores que aceitaram os acordos propostos na justiça.
É importante notar também a condenação de Mauá à escravidão. A ela sempre se referiu como propriedade maldita,
exploração do homem e nefanda escravidão. Cairu também
combateu a escravidão, mas se valeu da defesa da dignidade
construída na ética cristã. Cada homem possuía a dignidade
de ser filho de Deus, criado de modo único pela infinita inteligência divina.
Não pode haver nenhuma dúvida de que Mauá reconhecia e admitia a dignidade dos homens. As práticas liberais
69
FARIA, Alberto de. Mauá, Irineo Evangelista de Souza, Barão e Visconde de Mauá. - 2. ed. - São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933.
p. 91.
81
serviram-lhe de roteiro prático para consagrar o trabalho livre, que melhor incorporava a idéia de pessoa.
No entanto, houve no relacionamento de Mauá com seus
empregados um tratamento fraterno, cujos exemplos são
numerosos. Fosse ele um capitalista preocupado com o aumento do poder aquisitivo dos negros, para consumir maior
número de mercadorias, sem nenhuma preocupação humanista, não lhe seria necessário gastar tempo e afeto com eles,
bastando, para tanto, estimular formalmente a extinção da
escravatura.70 No entanto, Mauá não justificava a dignidade
na filiação divina, mas na fraternidade universal.
Alberto de Faria observou aspectos do que então se chamava de fraternidade universal, tese básica da ética saintsimoniana:
“Foi Mauá o primeiro contratante que escreveu em
sua proposta de serviços públicos esta cláusula, que
só figurava em contratos ingleses — o contratante
obriga-se a não empregar o braço escravo — e quando desse braço se utilizava, era com a benignidade de
um coração cristão”.71
A crítica à escravidão não se limitava a discursos empolgados, mas se efetivava em atitudes humanitárias como nas
tentativas de colonização que ele empreendeu com os algarvianos e hindus realizada sem suas fazendas, demonstrando
alto espírito filantrópico, valor igualmente estimulado pelo
saint-simonismo.
O rigor com o qual cumpria os compromissos que assumia era outro valor que adotara. A responsabilidade nos negócios era um valor igualmente proposto por Adam Smith e
Saint-Simon:
70
FARIA, Alberto de. Mauá, Irineo Evangelista de Souza, Barão e Visconde de Mauá. - 2. ed. - São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933.
p. 96.
71
Idem, ibidem. p. 96.
82
“Noutra carta, de 1856, a J. H. Reydell de Castro, escrevia: Não os acompanharei em pedir acréscimo de
garantia de juros. Pelos infortúnios da empresa, pelo
roubo talvez de que foi vítima, não pode responder o
Governo. Até lá não os acompanharemos; não posso
pedir; limito-me por atenção à nossa velha e prezadíssima amizade à mais absoluta neutralidade. Consciente de que só tinha a preocupação de bem servir, e
a devoção dos serviços públicos, era natural que fosse áspero, por vezes quando se via incompreendido e
atacado”.72
A conjugação dos valores propostos pela moral liberal e
saint-simoniana, um grande ideal de construir a indústria nacional e promover o progresso, fizeram de Mauá uma notabilíssima figura. A compreensão da existência humana como
derivada das necessidades e carências foi explicitada por diversas concepções filosóficas, embora cada uma derivasse
deste fato conseqüências distintas. A postura de Mauá estava mais próxima da compreensão saint-simoniana, o que fica
evidenciado pela adoção de um humanismo filantrópico.
Mauá experimentou uma amizade e respeito para com os outros homens que foi reconhecida por inúmeros estudiosos:
“Ao contrário dos demais homens, principalmente de
negócios, tinha Mauá a volúpia dos fortes. Só os humildes lhe conheciam as transigências. — Na entrega
dos bens aos credores, o estoicismo de Mauá constituiu uma verdadeira exceção”.73
ou esta ainda:
72
CARNEIRO, Ennor de Almeida. Mauá. Rio de Janeiro: Deptº Adm. do
Serviço Público, 1956. p. 41.
73
CUNHA, Arnaldo Pimenta. Visconde de Mauá. Conferência realizada
em 21/10/1939, no Instituto Histórico e Geográfico da Bahia. p. 52 e seguintes.
83
“Espírito de Irineo! Cumpriste bem a nobre, a árdua
missão para que foste destacado aqui na terra”.74
ou esta então:
“Mauá cumpriu o seu destino histórico. Na campa,
onde repousaram da luta grandiosa os seus restos
mortais, deveria a nação mandar inscrever, como epitáfio, as palavras admiráveis que um dia lhe dirigiu
Francisco Otaviano de Almeida Rosa. Deus lhe dê
agora a resignação para só se lembrar do bem que
fez, sem se importar com os males que sofreu”.75
e ainda:
“A figura de Mauá agitando-se neste apertado ambiente do segundo império é de uma singularidade impressionante”.76
E a mesma autora, reconhece a associação do espírito filantrópico com o compromisso com o progresso:
“É o homem perdido numa maré de sonhos, de idéias
de edificar um país mais forte, onde pudesse expandir
o seu gênio industrial”.77
6. A busca do progresso material.
M
auá viveu o humanismo saint-simoniano, reconheceu por um lado a dignidade do homem e simultaneamente colocou-o no centro da natureza. Sua vida seria
marcada pelo empenho de implementar o progresso. O progresso do país, que ele pretendia promover, tinha um signi-
74
PESSOA, V. A. de Paula. Cinquentenário das estradas de ferro no
Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Politécnico Brasileiro, 1903. p. 83.
75
CARNEIRO, Ennor de Almeida. Mauá. Rio de Janeiro: Deptº Adm. do
Serviço Público, 1956. p. 45.
76
BESOUCHET, Lídia. Mauá y su época. Buenos Aires: America Economica, 1940. p. 21.
77
Idem. Correspondência política de Mauá no Rio da Prata. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1943. p. 11.
84
ficado amplo. No século XIX a idéia de progresso contínuo
foi revivificado pelas teses românticas. Fichte combinou as
idéias de história e de progresso e Saint-Simon entendeu que
a tarefa do filósofo era compreender a marcha instável dos
fenômenos. Mauá procurou operacionalizar este clima do
século XIX, e é nesse contexto que devemos entender os
empreendimentos do industrial voltados para a melhoria da
vida:
“Estabelecimento da Ponta d’Areia. Companhia de
Rebocadores para a Barra do Rio Grande. Companhia de iluminação a gás do Rio de Janeiro. Serviços
prestados à política do governo imperial no Rio da
Prata, a pedido dos ministros. Companhia Fluminense de Transportes, Banco do Brasil (anterior ao atual), Companhia da Estrada de Ferro de Petrópolis
(vulgo Mauá), Companhia Navegação a Vapor do
Amazonas. Serviços prestados à realização da Estrada de Ferro da Bahia, Companhia Diques Flutuantes,
Companhia de Curtumes, Luz Elétrica. Montes Áureos Brazilian Gold Mining Company, Estrada de
Ferro de Santos a Jundiaí, Serviços prestados à
Companhia da Estrada de Ferro de D. Pedro II. Serviços prestados ao caminho de ferro da Tijuca. Botanical GardenÆs, Rail Road Cy. exploração da Estrada de Ferro do Paraná a Mato Grosso, Cabo Submarino. Abastecimento de água à capital do império. Estrada de Ferro do Rio — Verde. Banco Mauá e C. e
suas ramificações dentro e fora do país. Serviços
prestados à agricultura”.78
A ética utilitária, que se constituía no fundamento do capitalismo, aguçou o problema angustiante do individualismo, que a filosofia cartesiana consagrara. O progresso material acabou exigindo uma concepção política capaz de supe-
78
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve & c, 1878. p. 6.
85
rar o subjetivismo moderno em favor da humanidade ou do
estado. O saint-simonismo ocupou-se dos interesses do estado.
A liberdade de consciência e o subjetivismo moderno acabaram realçando a diferença entre a vontade individual e a
vontade geral. Já não era mais possível o nível de identidade
entre o sujeito e o estado como acontecia no mundo antigo.
A síntese destes interesses fora proposta de forma coerente
pelo saint-simonismo, que enfatizou um roteiro econômico
para enfatizá-lo. O ideal de Saint-Simon era muito semelhante ao adotado por Mauá. A sua atuação e compromissos
afiguravam-se como coisa rara, conforme notou Francisco
Iglesias:
“Ele tem os traços do grande empresário, aquele que
se joga no negócio com crença, entusiasmo, domínio
da situação, vencedor. É raro no Brasil essa figura
que marca com traço forte a história do capitalismo,
essa psicologia do pioneiro que é a criação de um sistema econômico. No Brasil de meados do século XIX,
Irineo é quase aparição fantástica. Sua biografia é a
história de um homem moderno, em meio ainda acanhado, de industrial e financista entre agricultores e
comerciantes tímidos”.79
Mauá viveu o compromisso da mudança. A filosofia política orientou os estudiosos para o abandono das teses do direito divino, enquanto a ética procurava consolidar uma moral sem bases teológicas. A epistemologia reduzia o conhecimento à experiência, e por influência do positivismo, reeditava-se a crítica aos problemas da razão especulativa, incorporando-se os elementos da análise kantiana. Em tal contexto, o filósofo não era mais o antigo questionador dos fundamentos metafísicos da realidade, mas um artífice com-
79
IGLESIAS, Francisco. Vida política. In: Holanda, Sérgio Buarque. O
Brasil Monárquico. vol. III. São Paulo: DIFEL, 1967. p. 36.
86
prometido com a felicidade humana. Essa felicidade, por influência do iluminismo, passou a ser compreendida como a
realização do destino do homem. Movidos pelo historicismo
e pela confiança no estabelecimento de um futuro melhor, os
filósofos propuseram uma secularização da Cidade de Deus.
A questão que os diferenciava era a prevalência que atribuíam ao homem individual e à sociedade.
Mauá, em contato com este ambiente, incorporou o espírito de renovação nele embutido. A melhoria da sociedade, a
renovação da organização econômica e uma cosmovisão liberta das superstições formavam os novos referentes a
orientar a vida. O espírito prático do Visconde incentivou-o
a criar, no Brasil, um contexto semelhante, através da
mudança no universo social. Essa era tida, especialmente na
Inglaterra, como a causa fundamental do progresso. Mauá
nos relatou que as mudanças desejadas encontravam
possibilidade na indústria.
“Era já então, como é hoje ainda, minha opinião de
que o Brasil precisava de alguma indústria dessas
que podem medrar sem grandes auxílios, para que o
mecanismo de sua vida econômica funcione com vantagem; e a indústria que manipula o ferro sendo a
mãe das outras, me parecia o alicerce dessa aspiração. Causou-me forte impressão o que vi e observei, e
logo ali gerou-se em meu espírito a idéia de fundar
em meu país um estabelecimento idêntico; a construção naval fazia também parte do estabelecimento a
que me refiro”.80
A atividade econômica, para o saint-simonismo, não podia ser desvinculada da idéia de história e progresso que o
idealismo hegeliano realçou. Saint-Simon, partindo desse
80
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve & c, 1878. p. 8.
87
ideal do século, propôs à humanidade um modelo de desenvolvimento, no qual a história, à semelhança do hegelianismo, seria iluminada pela razão. A concretização desse ideal
seria realizada pelos industriais e com o implemento material por eles promovido. Conforme se pode verificar no texto
abaixo, de autoria de Heitor Ferreira Lima, Mauá adotou o
progresso como ideal de vida e para realizá-lo criou a indústria:
“Lá se construíram tubos para encanamento d’água,
caldeiras para máquinas de vapor, engenhos de açúcar e de serras, guindastes, prensas, galgas para fábrica de pólvora, molinetes, e outras obras mais, além de 72 navios, entre os quais 15 para a marinha
de guerra nacional”.81
Hegel associou o progresso do espírito com o espírito de
um povo, estabelecendo um roteiro teórico capaz de superar
a concepção atomística própria do liberalismo. No hegelianismo, o progresso era resultado da história do espírito em
sua jornada de auto-descoberta. O saint-simonismo traduziu
o progresso como o produto da ação do trabalho e por ele
elevou esse ideal ao ponto supremo do humanismo.
A realização do progresso material era no saintsimonismo uma maneira de realizar o destino do povo. Este
revelava a identidade da nação e se manifestava na exterioridade, nas obras empreendidas, não importando quem as
realizasse. O mais alto dever do indivíduo era contribuir para o desenvolvimento do estado. O do progresso tinha algo a
iluminá-lo, a finalidade da história:
“O telégrafo elétrico, descoberto em 1837, teve inaugurada sua ligação entre os continentes, dos Estados
Unidos à Inglaterra, em 1858. Entre nós, existia o telégrafo elétrico desde 1852, com serviços entre a cor-
81
LIMA, Heitor Ferreira. 3 industrialistas brasileiros: Mauá, Rui Barbosa, Roberto Simonsen. São Paulo: Alfa-ômega, 1976. p. 20.
88
te e seus arredores: Petrópolis. Coube a Mauá a glória de ter introduzido no Brasil o telégrafo submarino. Obtendo a concessão desse serviço para si em
1872, deu-a — é o termo exato, pois que a vendeu por
uma libra! por não poder doá-la — a uma empresa
estrangeira, a Brazilian Submarine Telegraph Company, sem ao menos reservar as vantagens mínimas
de ter direito a telegramas gratuitos”.82
O idealismo hegeliano chamara a atenção para a integração que deveria passar a existir entre o destino do indivíduo
e o do estado. Do trabalho dos indivíduos o estado faria a
sua riqueza; por sua vez, a vida dos indivíduos receberia
sentido no estado. O saint-simonismo seguiu este roteiro realçando a importância do empenho individual. No gesto de
Mauá, acima descrito, parece-nos que os seus interesses e os
do Brasil estavam bastante próximos.
Castro Rebello, analisando as principais obras de Mauá,
especialmente à luz dos estudos de Alberto de Faria, pede
moderação e pretende descobrir outros motivos que possam
explicar a dedicação de Mauá. Insistiu em negar o espírito
filantrópico do velho Visconde, enxergando nos seus empreendimentos algo que não pôde perdoar; Mauá desejava
obter algum lucro como paga pelos seus trabalhos. Como algum lucro não era digno dos homens éticos, Rebello contraditou a hipótese de Alberto de Faria. Segundo supunha o
movente de Mauá era o lucro, não a filantropia ou o desejo
desinteressado:
“Ora contem-se as coisas como devem ser contadas.
Aos 36 anos de idade, era Mauá enormemente rico,
estimava-se-lhe a fortuna em 300 mil libras esterlinas, e vinte e sete anos depois ele mesmo dirá a seus
credores que, ao tempo daquela aventura, as sobras
de seu ativo pessoal o colocavam a coberto de qualquer eventualidade. Onde, portanto, o desprendimen-
82
Idem, ibidem. p. 22.
89
to? — Simples negócio. Emprestando dinheiro para a
guerra, não fazia mais do que colocar, isto é não fazia mais do que lhe colocar as sobras e colocá-las
sem risco, na hora mesma em que o governo imperial
ia pôr a serviço da mesma causa a eficiência militar
de que era capaz e sacrificar-lhe a vida de inúmeros
brasileiros”.83
Dispondo-se a financiar a resistência do Uruguai, a pedido do governo brasileiro, Mauá estaria revelando interesse
egoísta ou um sentimento de identificação com os interesses
do Brasil? A resposta parece ser a segunda alternativa. Raciocinando dessa forma estaria realizando uma identidade
com os interesses nacionais, o que não deixa de significar o
compromisso ético, que Saint-Simon propunha devesse vincular o destino individual ao do seu grupo.
Ao procurar auxiliar o povo uruguaio, revelou também
uma preocupação com o progresso daquela nação, o que só
pode ser compreendido na perspectiva de uma filosofia da
história em que a ação individual fosse considerada fundamental para a realização dos altos destinos da humanidade,
que se realizaria na vida concreta dos povos, com a efetivação de seu destino.
Na mesma direção são todas as outras críticas de Rebello. O que não perdoa em Mauá é que ele era um investidor
que objetivava obter lucro com o seu trabalho. Viu-se, de
longe, que a crítica era tendenciosa. Justamente por isso é
que ele não pode sequer imaginar a possibilidade de Mauá
ter sofrido influência de Saint-Simon, e assim justifica:
“O equívoco do novo acadêmico (referindo-se a Faria) pareceu-me aí evidente. Michel Chevalier foi, de
fato, discípulo de Saint-Simon, mas (e isto ninguém
ignora), afastou-se tanto de seu ensino que pertence
83
REBELLO, Edgardo de Castro. Mauá e outros estudos. Rio de Janeiro:
Livraria São José, 1975. p. 10.
90
indiscutivelmente à escola liberal, ao passo que aquele é por todos incluído entre os precursores do socialismo moderno”.84
Em vista da argumentação de Castro Rebello vamos mostrar adiante quais aspectos do pensamento de Saint-Simon
estão próximos das teses defendidas por Chevalier, e mesmo
de liberais, como J.B. Say. Efetivamente, não se pode considerar Mauá um socialista; negar, contudo, o seu espírito filantrópico por isso, não parece razoável.
A aproximação dos valores propostos no liberalismo com
a filantropia e o compromisso com o progresso em bases finalistas são os elementos que formaram o pensamento de
Mauá e tiveram em Saint-Simon um sistematizador. No Brasil o pensamento eclético contribuiu para estabelecer a ponte
entre a ética puritana e o ideal de progresso.
No início do século XIX, o ecletismo apresentou Kant
como filósofo da ilustração, não sendo completa a compreensão do significado filosófico da perspectiva transcendental. A postura crítica do filósofo alemão, distanciada tanto
do ceticismo como da atitude dogmática, conferiu-lhe, aos
olhos de Feijó, o papel de um conciliador. Assim, utilizando-se da teoria kantiana, o nosso sacerdote-político conseguiu unir a tradição escolástica aos novos valores propagados pela revolução francesa.
O pensamento de Kant também foi estudado na Faculdade de Direito e no ambiente acadêmico daquela Escola Paulista. Tomou-se, então, consciência da inovação proposta pelo filósofo. Ali se entendeu o espaço e o tempo como formas a priori da sensibilidade. A penetração de Kant abriu as
portas para o pensamento de seus continuadores Fichte, Schelling, Hegel e Krause. Como se vê o ecletismo foi o ins-
84
REBELLO, Edgardo de Castro. Mauá e outros estudos. Rio de Janeiro:
Livraria São José, 1975. p. 10.
91
trumento teórico a realizar o que o pombalismo tanto sonhara, abrir as portas da modernidade, conservando valores tradicionais e referentes situados além da experiência diária. A
singularidade da proposta é que Mauá buscou os valores
vinculados à dignidade humana e ao compromisso com a
história e o estado em Saint-Simon, não se valendo da moral
católica como Cairu.
Saint-Simon elaborou uma síntese das idéias iluministas
com as idéias tradicionais, e propôs ainda uma conciliação
entre o empirismo britânico e o método histórico idealista.
Conseguiu traduzir num ideal prático, num projeto político e
econômico, esta aspiração do século. Incentivou o progresso
material como subsídio para a evolução espiritual da humanidade.
Todos os empreendimentos de Mauá, citados
anteriormente, colocam-se na perspectiva de progresso
tematizada por Saint-Simon. Foram muitas as atividades
empresariais85 a que seu nome esteve associado, mas, basta
demonstrar que Mauá pretendeu mudar a realidade nacional
através do desenvolvimento industrial e que, movido por
esse ideal, nem sequer avaliou de forma adequada o meio
sócio-econômico no qual se encontrava. Procuramos mostrar
ainda que Mauá perseguia, a todo custo, o desenvolvimento
material do país e que várias vezes teve seus interesses
pessoais prejudicados por causa disso. Parece-nos
demonstrado os principais valores do humanismo
filantrópico veiculado no saint-simonismo:
“O impulso admirável de nossa vida econômica era
em boa parte obra de Mauá, reflexo de sua atuação,
mas que ao mesmo tempo atuava sobre ele, impelindo-o para a frente, juntamente com outros, de atuação destacada na época. O comércio renovou-se e
85
MAUÁ, et alii. Melhoramentos do porto de Pernambuco. Rio de Janeiro: Progresso, 1868.
92
ampliou-se; nasceram indústrias; novos meios de
transporte e comunicações apareceram, dando lugar
a uma expansão considerável da riqueza nacional”.86
7. O final do sonho de progresso.
A
falência de Mauá é difícil de ser entendida caso seu
propósito de enriquecimento estivesse desvinculado
de valores outros que o impeliam na promoção do progresso,
na implantação da fraternidade universal e na vinculação aos
interesses do Estado.
7.1. O contexto sócio-econômico e político.
O
que significa progresso? O progresso econômico acabou por estimular uma reflexão filosófica que integrava essa temática e a ela associava a confiança na razão,
própria do iluminismo, o materialismo, estimulado pelo monismo, a redescoberta idealista da importância da história e
o propósito de estabelecer novas bases para o humanismo.
A Inglaterra se tornou um fórum de debates, privilegiando a discussão sobre a riqueza, a produção, a representação
política, variáveis culturais essas que facilitaram sobremaneira o desenvolvimento econômico, social e político do país, e lhe indicaram novos rumos dentro da história humana,
aspectos que a diplomacia e a força da marinha britânica foram divulgando pelo mundo. Não acreditamos que se deva
atribuir todo o processo, inclusive aquele de natureza social,
como a condenação da escravidão, a um mero apêndice do
desenvolvimento econômico produzido pelo capitalismo in-
86
LIMA, Heitor Ferreira. 3 industrialistas brasileiros: Mauá, Rui Barbosa, Roberto Simonsen. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976. p. 28.
93
dustrial. Sem diminuir a importância do progresso econômico como fator de alteração cultural, deve-se, contudo, estudar e debater os outros aspectos da cultura, que são também
elementos dinâmicos e promotores de modificações. Como é
possível desconsiderar o debate sobre a moral social, a que
já nos referimos, como elemento dinamizador do progresso
britânico? Como é possível desconsiderar a importância da
filosofia inglesa que privilegia o empirismo e a discussão
dos problemas humanos, enquanto em outros países, especialmente nos da Península Ibérica, se discutiam problemas de
metafísica? À parte desta preocupação geral sobre como se
processa o desenvolvimento cultural e como a filosofia ajuda a explicitá-lo, fica-nos a questão de distinguir a idéia de
progresso veiculada no liberalismo.
O progresso material britânico era, para os homens do
século XIX, apenas um exemplo das mudanças que seriam
possíveis, se a humanidade agisse racionalmente:
“A abertura de canais, a aparição das sociedades
anônimas, companhias de monopólio para o abastecimento de água, gás, etc., a crescente concentração
urbana, a queda dos preços dos artigos de primeira
necessidade, a elevação geral do padrão de vida, o
aperfeiçoamento das máquinas, o aumento da importação de matérias primas (o algodão, cuja cifra de
importação alcançou, em 1831, a cinqüenta e um milhões de libras, chegou em 1840 a quatrocentos e noventa milhões; a lã de nove milhões de libras em
1820, passa a quatrocentos e noventa milhões em
1841), a decadência do campo e da produção agrária
nacional, a fundação de bancos e casas bancárias em
todo território (de 1822 a 1850 surgem na Inglaterra
mais de seiscentas casas desse gênero), e o considerável aumento do meio circulante, até então restrito e
controlado pelo Estado, revelam os indícios do es-
94
plendor capitalista, nesta fase de crescimento industrial.87
O progresso britânico88 expresso nas realizações antes citadas fora conseqüência do compromisso moral que o puritanismo associou com a construção de um mundo merecedor
da presença de Deus. Os valores dessa ética possuíam, entretanto, uma lógica que dificilmente se adaptaria a nações
consolidadas sobre firme tradição católica. A austeridade
dos pu-ritanos não equivalia ao ideal de pobreza veiculado
pelos contra-reformistas, nem a idéia de maior bem para o
maior número dos primeiros se assemelhava à de felicidade
social dos segundos. A ética contra-reformista contribuiu ainda para a difusão da crença no organicismo social com o
que não sonharam os britânicos. Nas épocas de crise, como
naquele momento, mais as nações católicas precisavam apoiar-se no estado. Aqueles de estrutura unitária e centralizada sentiam ainda mais o efeito desta crise. Teve, portanto,
muita relevância o programa de progresso proposto pelos saint-simo-nianos, pois significou alternativa teórica para as
nações de formação católica em contraposição ao ideal de
riqueza e prosperidade concebido por Adam Smith.
A idéia de progresso, que a ética de Cairu veiculava mais
ainda, propunha questionamentos para os quais a filosofia
da história de Condorcet já chamara atenção. Esse filósofo
já se preocupara com a redução da desigualdade entre as nações, com a melhoria de oportunidades e com o desenvolvimento integral do homem. Tal projeto, o saint-simonismo
incorporou, e Mauá procurou implementar. No entanto, a
vida ética e política do Brasil era incompatível com as alte-
87
BESOUCHET, Lídia. Mauá y su época. Buenos Aires: America Economica, 1940. p. 28/9.
88
ARRUDA, José Jobson. História moderna e contemporânea. São Paulo: Ática, 1983.
95
rações desejadas por Mauá. No sentir de Ferreira Lima os
valores eram contraditórios:
“Mauá era um adversário social do regime como industrialista e abolicionista; para que fosse vitorioso,
portanto, era necessário que uma profunda transformação se operasse, modificando a nossa estrutura
agrária e escravocrata”.89
As teses de Mauá indicam que ele não avaliou com profundidade a estrutura unitária, centralizada e escravocrata do
Estado Brasileiro. Acreditou, contudo, que os estados estruturados sobre idéias descomprometidas com o humanismo
iluminista não teriam futuro.
Castro Rebello, ao analisar a atuação do Visconde, não
cuidou de examinar o sistema saint-simoniano, o que seria
fundamental para justificar suas críticas, preferindo desconhecer a filantropia e os valores propostos por Mauá. Sua
crítica tinha um caráter mais ideológico que teórico. Mesmo
assim, Rebello reconheceu a importância da atuação de
Mauá quando concluiu:“Pode-se, por tudo isto, fazer, em
torno dele, a história econômica do Império”.90
Admirável por sua conduta, Mauá cometeu um equívoco
fatal devido ao desconhecimento da força dos valores tradicionais, e justamente por isso julgou-se capaz de alterar os
costumes arraigados, revertendo o quadro de então. Apesar
disso, a sua atuação produziu alguma mudança no panorama
econômico do império, o que, associado a outros eventos,
difundiu o ideal de progresso e da filantropia, como afirmou
Oliveira Viana:
89
LIMA, Heitor Ferreira. Obra precursora de Mauá e os primórdios do
capital estrangeiro no Brasil. In: Aspectos da formação e evolução do
Brasil. s.n.t. p. 444.
90
REBELLO, Edgardo de Castro. Mauá e outros estudos. Rio de Janeiro:
Livraria São José, 1975. p. 111.
96
“Mauá fracassou, mas o fracasso de Mauá foi individual. Daí por diante, a nova técnica do ferro e da
máquina a vapor começou a criar, aqui, instalações
industriais, que se classificavam entre as da média e
as da grande indústria. (...) Queremos dizer: das empresas pequenas e médias, jogando com capitais próprios; das fábricas pequenas e médias, produzindo
com a preocupação ainda da economia de vivência e
status — e não exclusivamente de lucro)”.91
Na primeira metade do século XIX os teóricos ecléticos
estavam às voltas com a justificativa do ideal de progresso,
transformado em tema filosófico por diversos pensadores
europeus. Ele ganhou um tratamento teleológico com a ética
cristã de Antônio Pedro de Figueiredo. Mas o idealismo de
Mauá não se originava nos ideais propostos pela ética cristã,
adotava, sim, a concepção de progresso vigente no saintsimonismo, onde a industrialização era como o elemento dinamizador do progresso material da humanidade. A esse fato, associava Saint-Simon, o desenvolvimento moral da humanidade, enquanto Figueiredo entendia as conquistas da
humanidade como explicitação do cristianismo.
Encantado com as teorias, mas sem uma formação teórica mais sólida, Mauá cometeu um equívoco na avaliação dos
valores sociais e problemas políticos. Não lhe parecia razoável que a política pudesse representar uma disputa de interesses; como era claro para Locke:
“Embora alcançando uma esfera altamente elevada
por suas realizações industrialistas, Mauá não pôde
superar a inferioridade de sua formação, de sua deseducação para as lutas partidárias. Entre o grande
homem que foi dentro da época nebulosa de nosso
surto industrialista e o falível previsor dos acontecimentos políticos, existe uma distância tão grande e
91
VIANNA, Oliveira. História social da economia capitalista no Brasil.
Belo Horizonte: Itatiaia; Rio de Janeiro: UFF, 1987. p. 201.
97
tão profunda, que parece até inexplicável à primeira
vista”.92
Esse despreparo de Mauá é um dos fatores de seu insucesso, porque ele não avaliou de forma adequada os valores
presentes na sociedade brasileira. A ética pombalina e os esforços de aproximação com o liberalismo não foram suficientes para difundir o otimismo quanto ao futuro entre os
moralistas de então. Não havia nenhum compromisso efetivo com o progresso humano nem com a implantação de uma
nova ordem social. Os objetivos de Mauá eram diferentes do
que então era comum:
“O movimento iniciado por Mauá trazia, por isto
mesmo, muita coisa de artificial, apesar dos patrióticos objetivos a que visava. De artificial e de exótico
— e o seu fracasso bem demonstrou este caráter exótico e artificial das suas iniciativas. não só a estrutura pré-capitalista, existente então em nosso povo, como também as nossas tradições de cultura, moldadas
por este padrão pré-capitalista, contra-indicavam a
pretensão de Mauá — essa industrialização brusca e
em grande escala, essa tentativa de reajustamento
técnico à civilização européia impediam que este reajustamento se pudesse processar com o ritmo acelerado e intensivo desejado pela impetuosidade idealista e reformadora de Mauá”.93
A tradição patrimonialista e centralizadora do estado brasileiro trazia dificuldades adicionais ao projeto de Mauá.
Um estado com a tradição do nosso não podia permitir que
da sociedade brotasse um outro poder que lhe pudesse fazer
frente. Aliás, a identificação dessa realidade já havia sido
92
BESOUCHET, Lídia. Correspondência política de Mauá no Rio da
Prata. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1943. p. 9/10.
93
VIANNA, Oliveira. História social da economia capitalista no Brasil.
Belo Horizonte: Itatiaia; Rio de Janeiro: UFF, 1987. p. 205.
98
feita por Cairu94, que de forma geral, previa, cinqüenta anos
antes de Mauá, o insucesso de quem tentasse estabelecer
uma sólida produção fabril sobre bases econômicas tão débeis.
Do ponto de vista ético, o ambiente era também amplamente desfavorável, pois era ainda difícil justificar o valor
da vida humana desvinculada da metafísica cristã. Era necessário, então estruturar novo arcabouço teórico para permitir, inclusive, o avanço filosófico da jovem nação.
Mauá não percebeu as dificuldades do discurso do progresso. Por isso, julgou razoável a imediata realização da
nova ordem proposta no saint-simonismo, ideal que os filósofos da ilustração já haviam divulgado. A nova era seria caracterizada pela afirmação da sociedade técnico-industrial,
pela apresentação da ciência como única forma de saber válido, pela universalização do ensino básico e pela valorização do progresso. Então, os homens teriam luzes suficientes
para se conduzirem segundo a própria razão e obteriam os
recursos suficientes para viver. A tentativa de implementação de tal sonho num estado como o nosso era, na opinião
de Besouchet, decorrente de uma formação teórica insuficiente. Ela afirmou:
“Mauá cresceu isolado; não absorveu na infância este aglomerado de princípios familiares que se revelam mais tarde em interesses regionais e nacionais,
por extensão. Foi por si mesmo que viu, que analisou
e que julgou os homens do seu tempo. Foi por si mesmo que saiu do estreito ambiente comercial, para alcançar horizontes mais amplos. E naturalmente esse
autodidatismo social (como seu autodidatismo literá-
94
PAIM, Antônio. Cairu e o liberalismo brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968.
99
rio) formou um Mauá utopista, no terreno das realizações públicas e partidárias”.95
A deficiência teórica lhe trazia sérios problemas na defesa de seus ideais. Mauá não encontrava qualquer simpatia
para com a convivência pacífica entre diferentes crenças,
muito menos qualquer preocupação com a melhoria do saber
e dos modos de ação. Foram estas condições que permitiram
Saint-Simon desviar-se da idéia de fatalidade histórica para
colocar nas mãos do homem a responsabilidade por seu futuro. Observou Lídia Besouchet que sem isto a idéia de progresso era um sonho utópico, inútil como compromisso de
transformação do mundo do homem:
“Ler a Mill, a Say despertava nos seus contemporâneos ideais liberais, sonhos de liberalismo econômico, mas sempre sonhos. As utopias de legislação liberal, dentro de um sistema escravagista, transformavam o ambiente nacional num campo de batalha, no
qual na maioria das vezes não se sabia por que se
combatia. Em troca, Mauá, pondo-se em contato com
a cultura inglesa, liberal, avançada para a época, reagia com uma necessidade de construir, de realizar.
Nada tinha de comum entre seu desejo de navegar os
rios do Brasil; de canalizar as águas para abastecer
as cidades; de aumentar o meio circulante; de iluminar a gás os centros urbanos do Brasil; de abrir bancos, de fazer estradas de ferro que facilitassem a distribuição da produção estancada nos centros produtores do país, com os discursos inflamados que se
pronunciavam no Parlamento, ou com os artigos panfletários dos abolicionista da primeira ho-ra”.96
O saint-simonismo entendia que o progresso do espírito
humano tornara-se histórico. A filosofia saint-simoniana fa-
95
BESOUCHET, Lídia. Correspondência política de Mauá no Rio da
Prata. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1943. p. 11.
96
BESOUCHET, Lídia. Correspondência política de Mauá no Rio da
Prata. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1943. p. 14.
100
zia severas críticas à vinculação da ética à metafísica, propondo como tarefa filosófica a reunião e ordenação das normas úteis ao convívio social. Nesse aspecto, o saintsimonismo viveu o ideal iluminista demonstrando confiança
nos valores que a inteligência humana propunha e na sua
capacidade de transformar as instituições sociais.
O iluminismo acalentou o sonho da compreensão perfeita, o homem julgou-se em condições de compreender o
mundo. Naquele momento sua razão estava solidamente
fundamentada nas sensações e encantada com os resultados
da ciência experimental. O pensamento tornara-se o senhor
da natureza. Assim não é de admirar que as normas morais
aí originadas sugerissem segurança e objetividade. Mauá
julgou que a difusão do altruísmo, a confiança no progresso,
a fraternidade universal fossem capazes de resolver os problemas humanos, viveu o sonho iluminista embalado pelo
saint-simonismo, movimento que lhe deu o esqueleto capaz
de sustentar o ideal de progresso que a ética utilitária buscava na negociação quotidiana. O saint-simonismo deu um novo alento à ética pombalina.
101
CAPÍTULO III
QUESTÕES DE MORAL E POLÍTICA NO SÉC. XIX
102
O
presente capítulo possui, no contexto desta pesquisa, um papel ancilar. A compreensão de que, conquanto se reconheça certa autonomia das manifestações do
componente espiritual da cultura, não se pode desconhecer a
contribuição de Hegel no sentido de enfatizar o caráter histórico dessas manifestações, e menos ainda o diálogo que
estabelecem com os outros aspectos da cultura. Para além
dos conflitos permanentes do dia a dia, afirmara Hegel, havia um sentido para tudo além do fenomênico. Nesse quadro
a política é um capítulo da vida cultural, uma parcela importante porque refere-se à dimensão coletiva da vida e, nós o
sabemos, a existência humana não é uma realidade isolada.
A soberania do estado e o papel do príncipe na condução
dos negócios públicos foram problemas da sociedade no renascimento. Era preciso que o poder fosse reconhecido por
todos, mas era igualmente necessário garantir que o governante estaria ocupado com as obrigações do estado. Essa associação entre o poder e a eficiência governativa tornou-se
mais ou menos importante nos diferentes estados.
A análise da vida cultural brasileira no século XIX exige
que estudemos a evolução do debate político em nossa realidade. Coube ao romantismo a valorização das tradições locais, mas foi o idealismo hegeliano que realçou a importância do estudo do espírito do povo. Ao enfocarmos uma tradição teórica, estamos, ainda que numa ótica distinta, reconhecendo que o espírito universal se manifesta nas nações
sob forma particular. Aqui e ali destacam-se questões distintas e a opção pelos temas mantém estreita correlação com a
realidade e com a vocação de um povo. Nesta ótica precisamos mergulhar nos diferentes aspectos que envolvem a
compreensão de política em Portugal. De início registramos
103
uma aproximação com o propósito de Aristóteles. Política
seria, então, um instrumento à serviço da felicidade coletiva.
Os filósofos culturalistas têm se esforçado, entre outras
coisas, para demonstrar que as diferentes culturas constituem tradições filosóficas específicas, ainda que participando
da grande jornada universal do espírito humano. Na busca
de compreender essa singularidade e as formas de pensamento nela privilegiadas, centramos nossa atenção no universo lusitano. Verificamos, então que aquele povo nasceu
da decisão política de um pequeno grupo que conscientemente se separou da tutela do reino de Castela. O que aconteceu, pois, foi a associação da idéia do estado com a vontade do monarca. Na sua origem, esse estado consolidou uma
filosofia política orgânica e sobre tais bases edificou uma
prática distinta da que se tornou corriqueira nos lugares onde o pluralismo e a subjetividade afloraram como valor. A
relação entre o monarca e seus ajudantes não se pautou na
flexibilidade encontrada noutros povos. A unidade do estado
tornou-se um grande valor, capaz de subordinar os interesses
conflitantes nascidos da sociedade.
Nos séculos seguintes, o poder do Estado continuou crescendo e o processo de controle centralizado tornou-se ainda
mais evidente. Para isso, contribuiu significativamente a
aplicação da justiça, que se baseava no direito romano, em
detrimento cada vez maior dos costumes locais. A política
foi entendida como a aplicação do poder a fim de implantar
a justiça e constituir um sólido agrupamento humano. O objetivo da vida social era, portanto, a organização.
O processo de sobreposição do Estado Nacional à sociedade continuou no renascimento quando o propósito de expandir a fé tornou-se um ideal a unir o povo português. Nesse período, processou-se a chamada Reforma dos Forais ,
em que se fixaram os encargos fiscais dos municípios.
“Administração dos grêmios vicinais aristocratizou-se
pois a governação local cabia aos homens bons,
abastados e proprietários. Só eles elegiam e se faziam
104
bastados e proprietários. Só eles elegiam e se faziam
eleger. O regime de prestação de trabalho rural sofrera transformações, especialmente depois da grande
peste negra de 1348. A pressão progressiva da autoridade real e os agentes de desagregação reduzem os
municípios, atingindo o seu poder político a simples
circunscrições administrativas locais.97
No final da Idade Média, Portugal já se constituía em um
Estado Nacional, sob a direção de uma monarquia fiel à
Santa Sé. Foi exatamente essa submissão à Igreja Católica,
especialmente a partir da Contra-Reforma, que deu especificidade no projeto de nacionalidade, passando a se valer do
conhecimento organizado. Naquele momento, a ciência passou a se fundamentar na experiência e se estruturou num
contexto subjetivista, o que significou dar ao homem um
novo papel na elaboração das teorias sobre a realidade natural. Este caráter humano da filosofia refletiu-se na meditação de temas políticos e éticos. A preocupação com o método, que garantiria o saber, deu origem a duas grandes linhas
do pensamento moderno: o empirismo e o racionalismo. Apesar das diferenças entre as correntes, ambas conferiam
primazia ao problema do conhecimento, buscando explicitar
as fontes do saber e determinar os seus limites. A força do
cartesianismo, no debate ético lusitano, atuou no sentido de
racionalizar o ideal de pessoa.
A ética, em Portugal, seguiu um caminho distinto daquele trilhado na Europa. Entre os séculos XVI e XVIII desenvolveu-se um tipo de pensamento, que não incorporou as polêmicas suscitadas pelo humanismo renascentista. O movimento ficou conhecido como Segunda Escolástica, privilegiando a metafísica aristotélica e procurando nela adaptar as
novas discussões relacionadas ao sentido da vida. Naquela
97
AVELLAR, Hélio de Alcântara. História administrativa e econômica
do Brasil. Rio de Janeiro: FENAME, 1970. p. 30.
105
época já se configurava nitidamente a opção da filosofia
portuguesa pela vinculação dos problemas éticos e políticos
à metafísica, o que nos séculos seguintes não será substancialmente modificado. No entanto, vale realçar que sob o governo de Pombal esboçou-se uma reação. Procurou-se promover uma abertura do pensamento lusitano aos movimentos científicos que renovavam a cultura européia na pretensão de que renovassem os hábitos sociais.
A nação lusitana, nascida na luta contra os árabes, associou o caráter místico à soluções práticas do dia-a-dia. Esse
aspecto pragmático encontrava-se vinculado a uma compreensão do real, enquanto dado de estrutura visível e objeto
singular, ou seja, por uma classificação aristotélica dos seres, baseada no princípio do gênero próximo, natureza específica, que favoreceu a adoção de uma perspectiva que acabou orientando as questões de ética e política.
A base da estrutura intelectual lusitana foi um tipo de realismo que propunha como modelo uma adequação do intelecto à coisa. Essa concepção estava de acordo com as necessidades expansionistas de Portugal e com a epistemologia
da época, que retomara do espírito aristotélico a ênfase na
observação. O realismo lusitano, no início da modernidade,
apresentava os seres em sua luminosidade como campo précategorial, como desafio do intelecto. Todo o real estava à
espera do homem para ser apreendido, analisado e modificado.
A base metafísica em Portugal nasceu sob a difusão do
pensamento aristotélico e da espiritualidade mística franciscana. Essa base facilitaria, posteriormente, o desenvolvimento do empirismo pombalino. O caráter místico inspirou
uma filosofia política organicista e favoreceu a consolidação
de um estado forte. Pombal procurou conciliar o espírito
empirista que se fortalecia naquele momento com uma opção por um governo absolutista. Tratava-se de um projeto
político modernizador que mantinha o espírito autoritário e
106
radicalizava o sentido de aproximação do real, procurando
fundamentar o estudo na filosofia newtoniana e não mais no
aristotelismo, como acontecera nos séculos XV e XVI. O
prof. Antônio Paim captou os movimentos filosóficos como
reflexo da evolução histórica de Portugal e assim os explicou:
“O processo histórico antes resumido reflete-se na Filosofia, registrando-se três grandes tradições: hebraico-portuguesa, muçulmana e cristã-ocidental. Pinharanda Gomes distingue-as nitidamente e as estuda em
separado, tendo já divulgado pesquisa exaustiva e
minudente acerca do que denominou de filosofia hebraico-portuguesa. Essas tradições têm em comum o
traço que Joaquim de Carvalho havia apontado no
ensaio sobre o desenvolvimento da filosofia em Portugal durante a Idade Média (Obras Completas, vol.
1, Lisboa, Fundação Caloustre Gulbenkian, 1978,
págs. 337-354), a saber: a filosofia medieval nasceu e
em grande parte gravitou em torno das religiões, ou
melhor, das teologias das quais era solidária, quando
não subordinada. Esta relação, verdadeira para toda
a Idade Média, é duma forma muito particular para
Portugal, pois é quase exclusivamente na esfera dos
problemas patrísticos e da teologia cristã que se move
o vago e tênue espírito filosófico. Este espírito, em
Portugal como alhures, nem sempre é ortodoxo, e é
até interessante notar que as suas manifestações mais
vivas assumiram por vezes uma feição heterodoxa”.97
Essa influência religiosa cuja temática se refletiu
vivamente
na
meditação
portuguesa
marcou
significativamente a cultura lusitana. O problema básico da
escolástica fora a compreensão da verdade revelada, não se
caracterizando o movimento como uma investigação
filosófica autônoma. O problema da relação entre a ação
moral e o resultado na sociedade debatido no contraste da fé
97
PAIM, Antônio. História das idéias filosóficas no Brasil. São Paulo,
Convívio: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1984. p. 200
107
ciedade debatido no contraste da fé e da razão, acabou se
prolongando em Portugal.
A cultura portuguesa acabou privilegiando a submissão à
autoridade, e, neste clima, os indivíduos buscaram apoiar-se
na responsabilidade coletiva. Sob o aspecto moral, a cultura
lusitana enfatizou não ser razoável confiar nos acordos humanos formulados fora de referências transcendentes; sob o
ângulo político, consolidou no País um governo forte, cuja
origem era tida como divina, o que aproximou a organização
político-administrativa do despotismo oriental.
Outra característica da monarquia nacional portuguesa
era a sua justificação religiosa. Santo Tomás de Aquino, cujo pensamento passou a nortear a organização política dos
estados católicos, observou que, se todo poder emana de
Deus, para que ele seja concretizado, utiliza-se do Sumo
Pontífice. O Papa assumiu o papel de árbitro internacional, e
os monarcas exerciam sua autoridade civil como o Papa governava a Igreja e Deus o universo, isto é, com unicidade de
poder.
Nota-se ainda, como característica básica, a soberania
política do Estado, que coexistia com a soberania social. Por
isso, o Estado Português caminhou em direção a um controle
da sociedade pelo executivo, fato que se tornou mais nítido
à medida que a disputa pelo poder no governo português foi
perdendo sua importância. Essa trajetória pode ser assim sistematizada:
“O sistema representativo (representação, nas Cortes,
das três ordens, estados ou braços da população: clero, nobreza e povo, fazendo atuar a soberania social
em face do Estado. O período mais brilhante da vida
das Cortes foi o dos primeiros monarcas da segunda
dinastia, a de Avis, cujo fundador, D. João I, as convocou vinte e duas vezes, tendo as Cortes de Tôrres
Novas, de 1438, retirado do arbítrio real as convocações, sob protestos da Rainha regente, na menoridade
de D. Afonso V. No reinado deste, reuniram-se vinte e
três vezes e tiveram força suficiente para argüi-lo nas
108
cortes de Santarém, de 1451, e de Lisboa, de 1455. Já
no governo de seu filho D. João II, O Príncipe Perfeito, declinou a limitação da monarquia pelas Cortes,
na marcha para a centralização. Sob D. Manuel I, em
mais de vinte e cinco anos de reinado, Só houve quatro cortes e três sob D. João III, passando a ser decenal a convocação; a partir de 1525, os novos recursos
trazidos pelos descobrimentos permitiram aos soberanos independer do que lhes votavam aquelas assembléias)”.98
Finalmente, vale destacar o princípio de conquista do
poder. A tradição visigótica segundo a qual se elegia o monarca entre vários príncipes foi-se desgastando com o tempo, na mesma proporção em que cresceu o entendimento de
que o estado se caracteriza pela unicidade de comando. A
racionalização da ética, que levou ao afunilamento do debate em torno do problema dos valores, contribuiu para a centralização do poder.
A tradição de comando do Estado acabou consolidando,
como conseqüência, a sobreposição dos interesses do estado
sobre os da sociedade, pelos motivos anteriormente expostos
e também por influência árabe. Aquele projeto político baseava-se no princípio de que o estado e os súditos eram posses do califa, que através do estilo personalista de governo
administrava a coisa pública como coisa privada. Essa mesma tendência pode ser encontrada nos escritos de Maquiavel
onde a administração do reino surge como coisa natural do
Príncipe.
Feitas essas rápidas considerações, podemos dar um passo adiante. Julgamos ter fundamentado, embora de maneira
muito sucinta, as razões pelas quais a tese da representação
teve dificuldades de se implantar no Estado Lusitano e mais
tarde no Brasil.
98
AVELLAR, Hélio de Alcântara. História administrativa e econômica do
Brasil. Rio de Janeiro, FENAME, 1970. p. 25/6.
109
Há de se lembrar que a política inclui uma série de questões importantes. No ocidente abrangeu desde a tentativa de
uma fundamentação ética até questões vinculadas ao comportamento coletivo. Pluralidade de temas, multiplicidade de
interpretações. Para o que será apresentado a seguir é essencial entendermos como a política ocupou-se das investigações relacionadas à administração da sociedade como forma
de obter bons resultados. Embora tenha raízes clássicas, Platão a denominara de ciência régia e Aristóteles a considerara
a terceira tarefa da política, nos tempos modernos esse sentido ganhou força e amplitude, motivo pelo qual precisamos
aprofundar a questão.
1. As raízes do debate político.
D
esde Platão (438-348 a.C.) o mundo ocidental concebeu a política como a ciência e a arte de governar,
objetivo que foi reafirmado por Aristóteles (384-322 a.C.).
No entanto, o estagirita deu também ao assunto uma profunda dimensão humana e ética. A partir de Aristóteles entendeu-se ser inútil abandonar a responsabilidade inelutável dos
compromissos sociais. O homem procurava o bem e o bem
maior era justamente o objeto da política, pois ela era a mais
elevada e arquitetônica das ciências. No mundo grego emergiu o entendimento de que a política era um espaço privilegiado para se entender parte da vida do homem. No caso específico referia-se a um aspecto da vida pública, a vida do
cidadão. Desde então a política tornou-se primordialmente
um momento da história humana, momento que transcende a
pura organização e administração do estado.
Durante o renascimento essa compreensão ampla de política ganhou força. Ela foi separada tanto da esfera privada
quanto do fundo transcendente que defendia ser pré-traçada
a história dos povos. Foi nesse contexto de tomada de consciência da capacidade humana de perceber, criticar e alterar
os influxos da história que surgiu o conceito de razão de es-
110
tado. O paradigma originou-se no âmbito da laicização da
história, mas foi também aproveitado pelos moralistas da
contra-reforma. A dinâmica do debate contra-reformista tornou-o, contudo, assunto pouco relevante porque se concentrou na relação entre a ciência divina e a liberdade do homem, abandonando, por conseqüência, a esfera pública para
se centrar no universo da consciência. Ocupou-se prevalentemente de submeter o resultado da ação aos atos intencionais, o que acabou concentrando a atenção na prática das
virtudes. Quanto mais prosperava o racionalismo no seio da
cultura ibérica, mais intensamente era veiculado o ideal de
vida perfeita, obtido segundo o esforço intelectual e o controle das paixões. Nesse processo esvaziou-se o entendimento do papel criador do homem na histórica, o cidadão deixou
de ter responsabilidade no governo e solidariedade com os
rumos da sociedade que integrava.
Pombal pretendeu recuperar o cerne do debate renascentista e contra-reformista, pois ali havia a defesa do bem do
estado com base no que anunciara a ética aristotélica. Reportar-se aos moralistas e políticos do renascimento não significou uma compreensão do fenômeno político como campo da participação coletiva, tese que começara a se consolidar no período. Mesmo assim no âmbito da política parecenos maior a sua proximidade com teóricos do século XVI do
que com os iluministas. Para esses últimos os fins do homem e da sociedade independiam ou podiam prescindir da
religião, eram postos pela razão, filha do estado social. O iluminismo, lembremo-nos de Rousseau, rejeita o mistério e
o inesperado, o que nunca cogitou o Marquês de Pombal. A
razão tomara, na época das luzes, as rédeas da vida política e
apontava para a vinculação entre os interesses dos cidadãos
e os negócios públicos. O principal alvo político de Pombal,
em contrapartida, era refazer as relações existentes entre a
nobreza e o centro do poder, aumentando a eficiência da atuação do estado. Ao garantir o reencontro com a geração de
111
Amador Arrais, Manuel de Góis e Heitor Pinto, Pombal atualizou e estruturou o que fora por eles denominado de razão
de estado, aproximando-se, igualmente, de Machiavelli. Eis
o que examinaremos a seguir.
2. Pombal, razão de estado e a independência entre ética
e política.
N
iccolo Machiavelli (1469-1527), secretário da chancelaria de Florença, renovou os paradigmas com os
quais se avaliavam as relações sociais no âmbito dos governos e da sua organização. Ao descrever as coisas do estado
como são e não como deveriam ser, Machiavelli criou uma
escola de realismo político, que, pouco a pouco, ganhou adesões nos tempos modernos. A constatação hegeliana da
existência do estado, por exemplo, corresponde a voltar-se à
realidade dos fatos, coisa que o florentino tivera sempre presente.
Ao efetivar tal opção metodológica, Machiavelli trouxe
para a política a mesma metodologia que a ciência experimental consagrou com Galileu e Newton: ênfase na observação sistemática, abandono dos referentes metafísicos, preocupação com os fatos e valorização da eficiência no manejo da natureza. Vive-se as relações políticas tal como são, os
governantes devem buscar a eficiência e não podem agir de
outro modo. Posta sem mais essa circunstância enseja a ética
dos fins e nos propõe o fato político à parte das interdições
tradicionais da ética: não há bem e mal absoluto, a intenção
do governante vale menos que o produto da ação, legitimando-se, assim, qualquer meio na obtenção dos fins desejados.
O Pe. jesuíta Busenbaum (1602-1668) sistematizou essa tese
machiaveliana afirmando que “quando o fim é lícito, os
meios também são lícitos” (Medulla theologiae moralis, IV,
3, 2). Esse aspecto do machiavelismo é que levou o florentino a merecer críticas impiedosas de Jean Bodin (1530-
112
1596), que o considerou apologista da crueldade, defensor
da impiedade e da injustiça.
A metodologia machiaveliana permitiu, contudo, elaborações mais sofisticadas. João Botero formulou, a partir dela, o conceito de “razão de estado” (Della R. di Stato, 1589),
o qual incluía os meios aptos a fundar, conservar e ampliar
um Estado. Esse conceito legitimou, entre outras coisas, a
escravidão. O Pe. Vieira dele se valeu para defender a ênfase nas ações ou agir resoluto do governante: “assim há de
ser quem há de obrar, afirmou, e não homens que nem atam
nem desatam”.99
A proposta de objetividade historiográfica e realismo político não significaram, como pode parecer, ausência de valores morais.100 Machiavelli apreciava a honestidade e a lealdade na vida civil, enaltecendo os estados governados à
luz desses princípios como a Suíça. O essencial para o filósofo era que a política possuía uma dinâmica axiológica
própria e não guardava uma conseqüência simétrica entre o
resultado e as ações boas, que cada homem virtuoso está,
por sua consciência, obrigado a praticar. O êxito na política
dependia, assim, da capacidade do governante “de ajustar-se
às circunstâncias”.101
A filosofia política de Machiavelli trouxe, apesar das
con-trovérsias, inúmeras contribuições no ajuste do pensamento político aos tempos nos quais o homem tornou-se,
como o desejara René Descartes (1596-1650), o senhor da
natureza. A partir do renascimento “a nossa cultura não vai
mais centrar-se em Deus, mas no homem, e é a partir do
99
VIEIRA, Pe. Sermões. v. XVI. São Paulo: Edameris, 1957. p. 17.
MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe. In: Curso de ciência política. 2. ed. - Brasília: Ed. da UnB, 1984.
101
Idem, ibidem. 1984. p. 101.
100
113
homem que ela focalizará o cosmos e a história”.102 Eis algumas das contribuições de Machiavelli: o espaço para as
utopias não foi desfeito, pois o filósofo queria uma sociedade espelhada na virtuosa Roma Republicana, mas foi submetido à realidade; houve uma valorização do indivíduo e de
suas obras, conforme sonharam os renascentistas, mas ficou
intacta a compreensão do egoísmo e violência inerentes à
vida humana, “a parábola desse professor semi-humano, semi-animal, adverte que um príncipe deve usar as duas naturezas, e que qualquer uma delas, sem a outra, não é duradoura”103; a história tornou-se o palco das criações humanas
perdendo o caráter fatalista, segundo também desejavam os
renascentistas, mas associou-se a força das circunstâncias na
contraposição entre virtude e fortuna, “não obstante, para
não ignorar inteiramente nosso livre arbítrio, creio que se
pode aceitar que a sorte decide a metade de nossos atos, mas
que nos permite o controle sobre a outra metade”;104 valorização do passado destacando-se os ciclos históricos, cada
crescimento sucedia uma decadência, mas mantendo-se uma
abertura às alternativas futuras vislumbradas na audácia, “acredito seguramente que é melhor ser impetuoso do que cauteloso, pois a sorte é uma mulher, sendo necessário, para
dominá-la, empregar a força”.105
2.1. A razão de estado e os moralistas lusitanos do século
XVI.
O
s principais moralistas lusitanos do período foram
Frei Heitor Pinto (1528-1584), Frei Amador Arrais
102
LARA, Tiago Adão. Caminhos da razão no ocidente. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 27.
103
MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe. In: Curso de ciência política. 2. ed. - Brasília: Ed. da UnB, 1984. p. 84.
104
Idem, ibidem. p. 99.
105
Idem, ibidem. p. 101.
114
(1530-1600) e Pe. Manuel de Góis (1542-1597). Coube ao
último sistematizar um ideal ético inspirado no tomismo, segundo o qual a felicidade do homem repousava no Supremo
Bem, em Deus, e não nas coisas desse mundo. O tomismo
abandonara o entendimento aristotélico, que superpunha ética e política, ambas voltadas para obter a felicidade. A ética
orientou-se, então, para a conquista da beatitude eterna, entendida como êxtase contemplativo de Deus no céu. Expliquemos a problemática. Na proporção em que apresentou a
argumentação relativa aos bens do homem, Manuel de Góis
distinguiu: os externos, os do corpo e os da alma. Os dois
primeiros convergiam para o último, pois eram fortuitos,
instáveis e passageiros. A alma, por sua vez, obrava através
de potências, hábitos e operações. Essa última forma era a
mais completa, desde que se destinava à procura da felicidade. A suprema operação da alma consistia na contemplação
intuitiva da divindade. Nesse contexto, a ética estava orientada para atender “à razão e ao dever de tender, por meio de
ações meritórias para a pátria celeste e visão de Deus, como
para o último termo da criatura intelectual”.106
O debate ético centrou-se, pois, na afirmação de um poder sobrenatural e na identificação dos vícios e da bondade
na natureza humana. No entanto, quando considerou os bens
externos, o Pe. Góis reconheceu que a vida social exigia um
maior número de bens do que os necessários para se viver
individualmente com louvor. O poder terreno devia, por isso, promover a riqueza, acumular um maior volume de bens,
devendo ainda garantir uma ordem social justa, exercer a
beneficência e repelir os vícios, tudo porque visava o bem
público. Reconheceu assim, os moralistas, um espaço singu-
106
GÓIS, Manuel de. Disputas do curso conimbricense sobre o livro de
moral a Nicômaco. Trad. de Antônio Alberto de Andrade. Lisboa: Alta
Cultura, 1957. p. 125.
115
lar para a ação política voltada para o homem social, afirmando:
“Embora a felicidade resida na operação da alma, o
certo que os bens exteriores se requerem para a defesa da república, para exercer a beneficência, repelir
as injúrias e fins semelhantes”.107
Manuel de Góis deixou aberto o campo da política, isto
é, legitimou uma razão de estado à parte da razão individual.
Cuidou, contudo, o Frei Heitor Pinto para que essa razão de
estado não validasse todas as qualidades que Machiavelli
entendia necessárias ao Príncipe. Ele explicou que não existe “República onde não haja justiça”.108 A virtude da justiça
era essencial aos príncipes, pois eles tinham a responsabilidade de premiar os bons e castigar os maus. Justiça era a virtude por excelência, através dela o monarca podia guiar a si
e a relação entre os súditos. Heitor Pinto reativou, pois, a
compreensão aristotélica segundo a qual a justiça era o meio
mais correto de viabilizar as relações humanas. Para o moralista a ação governativa era moral e consistia em “tirar vícios, plantar virtudes, reformar costumes, e melhorar vidas”.109
O esforço de Heitor Pinto não evitou que o conceito de
razão de estado justificasse uma atuação singular do monarca, sobretudo na legitimação do poder pela prosperidade material. “A peste do governo é a irresolução”,110 explicou o
Pe. Vieira. Para um governo próspero o monarca devia cuidar da escolha dos ministros, não maltratar o povo e não rea-
107
GÓIS, Manuel de. Disputas do curso conimbricense sobre o livro de
moral a Nicômaco. Trad. de Antônio Alberto de Andrade. Lisboa: Alta
Cultura, 1957. p. 133.
108
PINTO, Frei Heitor. Imagem da vida cristã ordenada por diálogos.
Lisboa: Alves Correia, 1940. p. 209.
109
Idem, ibidem. p. 197.
110
VIEIRA, Pe. Sermões. v. XVI. São Paulo: Edameris, 1957. p. 17.
116
lizar reformas bruscas, explicou Frei Amador Arrais.111 Há
de se considerar que todos esses procedimentos figuravam
como necessários e importantes para Machiavelli, eles objetivavam manter o estado soberano e seu dirigente inatingível. A razão de estado tornou-se o instrumento teórico pelo
qual o Estado luso pode manter-se e renovar-se, mesmo conservando um projeto teleológico que propunha de antemão o
objetivo da vida social e o destino da história humana.
2.2. A política pombalina.
S
ebastião José de Carvalho, Marquês de Pombal
(1699-1782) estruturou um pensamento político marcado pelo encontro com os moralistas do século XVI. Ele
partiu do princípio aristotélico de que a saúde social era preferível à individual, no que acompanhou Frei Heitor Pinto,
propugnou um modelo orgânico de estado, igualmente postulado pelo mesmo sacerdote e pelo Frei Amador Arrais, para quem o príncipe era a cabeça e o povo os membros. Insistiu na benignidade da ação da autoridade e na justiça desta
como o fizera Amador Arrais. Atribuiu à justiça e ao bem
comum, citando Aristóteles o papel de objetivos da ação governamental como o fizeram os mesmos contra-reformistas,
defendeu os pobres contra os ricos.
Examinaremos aqui os elementos caracterizadores do
projeto político pombalino, especialmente as repercussões
nele causadas pelo conceito de razão de estado concebido
por Machiavelli. Nas “Observações secretíssimas” (1775)
Pombal apontou alguns princípios norteadores da política.
1. Os três primeiros princípios referem-se à relevância de
estimular o surgimento de súditos produtivos “que são os
braços e as mãos de todos os Estados”. Pombal falava tam-
111
LOTHAR, Thomas. Contribuição para a história da filosofia portuguesa. Trad. de Antônio José Brandão. Lisboa: Clássica, 1944. p. 209.
117
bém da importância de se formar especialistas capazes de
ocupar postos da administração pública. Esses objetivos do
governo são nomeados explicitamente por Machiavelli, revelando o compromisso dos dirigentes com a melhoria das
condições de vida da sociedade:
“Os príncipes, afirmou, devem demonstrar também
amor pelas virtudes, dar preferência aos mais capazes
e honrar os excelentes em cada arte... devem os príncipes (...) recompensar quem é ativo e procurar de um
modo ou de outro melhorar sua cidade ou estado”.112
2. O nono princípio proposto por Pombal referia-se ao
estado de riqueza. Os súditos deviam poder “possuir carruagens novas e de bom gosto” além de vestirem-se ricamente,
“desde os indivíduos de primeira nobreza até os de última
plebe”. Essa visão mais favorável ao enriquecimento não
contraditava a tese de Manuel de Góis, desde que também
para ele o enriquecimento do Estado era admitido. A novidade consiste justamente na releitura do princípio de justiça
do Frei Amador Arrais, atendendo ao objetivo de aproximarse do povo. Nas palavras de Machiavelli o incentivo ao enriquecimento seria feito nos seguintes termos:
“Devem (os governantes) incentivar os cidadãos a
praticarem quietamente sua atividade — no comércio,
na agricultura ou em qualquer outro ramo profissional, de modo que uns não deixem de aumentar seu patrimônio pelo temor de que lhe seja retirado o que
possuem, e outros não deixem de iniciar um comércio
com medo de tributos”.113
Acreditar que seria possível promover a riqueza através
do incentivo real e da educação sem alterar a componente ética da cultura foi um equívoco presente em Machiavelli que
112
MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe. In: Curso de ciência política. 2. ed. - Brasília: Ed. da UnB, 1984. p. 96
113
Idem, ibidem. p. 96.
118
o Marquês de Pombal não conseguiu superar. Não o percebendo atribuiu o atraso da sociedade ao desprestígio da ciência, como era comum entre os moralistas do período.114 O
apelo moral e a sua força foram deixados de lado.
3. No oitavo princípio o Ministro lusitano referiu-se à
harmonia que devia existir entre as classes, revelando a influência de Heitor Pinto. No entanto, em carta a seu sobrinho demonstra ter consciência de que os conflitos entre a
nobreza e o povo eram inevitáveis, devendo o governante
tomar partido do povo. Ao que parece a organicidade do estado era um ideal a ser buscado, mas o dia a dia estava cheio
de conflitos. A vida social com a pluralidade dos gostos,
preferências, valores e interesses foi reconhecida à parte do
desejo de considerar o estado como unidade.
“Não consinta (asseverou) V.Excia. violência dos ricos contra os pobres, seja defensor das pessoas miseráveis, porque de ordinário os poderosos são soberbos, e pretendem destruir e desestimular os humildes
(...) Toda a república se compõe de mais pobres e
humildes que de ricos e opulentos; e nestes termos,
conheça antes a maior parte do povo a V.Excia. por
pai, para o aclamarem defensor da piedade”.115
Considerando o mesmo assunto Machiavelli não apenas
insistiu que era preciso fugir do ódio do povo, como da importância de manter-se ao lado dele contra os nobres. Não há
como deixar de aproximar o propósito de Pombal de encantoar a nobreza, daquilo que ensinara o secretário da chancelaria de Florença:
114
SILVA, José Veríssimo Álvaro da. Memória sobre as verdadeiras causas porque o luxo tem sido nocivo aos portugueses. Lisboa: Ofic. da Academia Real de Ciências, 1789.
115
POMBAL, Marquês de. Carta do tio, Ministro, ao sobrinho, Governador. In: Documentação e atualidade política. Brasília: UnB, n. 3. abr./jun., 1917. p. 1.
119
“É impossível satisfazer a nobreza pela conduta justa,
sem causar prejuízo aos outros, mas é muito fácil satisfazer assim as massas. De fato, o povo tem objetivos mais honestos do que a nobreza; esta quer oprimir, enquanto o povo deseja apenas evitar a opressão.
Acrescente-se também que o príncipe nunca se pode
garantir contra a hostilidade do povo, devido ao seu
número, mas pode precaver-se contra a hostilidade
dos poderosos”.116
O príncipe, explicou adicionalmente o florentino, encontra na república dois partidos antagônicos e fortes. O primeiro nasce do “desejo do povo de evitar a opressão dos poderosos”, o outro “da tendência destes últimos para comandar
e oprimir o povo”.117 Era pois preferível aproximar-se do
povo.
4. Em nome de uma vida social eticamente melhor, deviam agir os governantes, alterando, cuidadosamente os costumes. Os homens comuns, ao que parece, não vislumbravam o bem geral, nem se comportavam para instituí-lo, limitando-se a buscar o próprio bem. O comando do povo, posto
nas mãos do monarca e seus auxiliares, devia orientar a busca desses bens mais amplos, esses mesmos que, como sugerira Platão (Leis, 874e, 875c), estavam voltados para a preservação do Estado. Nessa empresa era necessário, ensinara
Machiavelli, “evitar a transgressão dos costumes tradicionais e saber adaptar-se a circunstâncias imprevistas”.118 Estamos longe do propósito aristotélico de promover a justiça
pela prática de uma vida virtuosa. Pombal afirmou a mesma
coisa que Machiavelli, mas atribuiu o ensinamento a
Aristóteles:
116
MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe. In: Curso de ciência política. 2. ed. - Brasília: Ed. da UnB, 1984. p. 69.
117
MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe. In: Curso de ciência política. 2. ed. - Brasília: Ed. da UnB, 1984. p. 69.
118
Idem, ibidem. p. 52.
120
“Quando a razão o permite, e é preciso desterrar os
abusos, e destruir costumes perniciosos..., seja com
muita prudência e moderação: que o modo vence
mais do que o poder. Esta doutrina é de Aristóteles e
todos aqueles que a praticaram não se arrependeram”.119
A semelhança com Machiavelli é maior ainda na continuidade do texto:
“Não altere cousa alguma com força, e nem violência, porque é preciso muito tempo e muito jeito para
emendar costumes inveterados, ainda que sejam escandalosos”.120
5. A autoridade dos governadores e ministros eram, no
sentir de Pombal, uma continuação da do rei. Os auxiliares
do monarca deviam primeiramente nele pensar. Afirmaria
taxativamente: “nos generais substitui El-Rei o seu alto poder, fazendo deles imagens sua”.121 Ambas as idéias, a escolha pessoal dos ministros e a transmissão do poder do monarca para os auxiliares são teses defendidas por Machiavelli nos seguintes termos:
“A primeira impressão que se tem de um governante,
e da sua inteligência, é dada pelos homens que o cercam. Quando estes são competentes e leais, pode-se
sempre considerar o príncipe sábio, pois foi capaz de
reconhecer a capacidade e de manter fidelidade”.122
119
POMBAL, Marquês de. Carta do tio, Ministro, ao sobrinho, Governador. In: Documentação e atualidade política. Brasília: UnB, n. 3, abr./ju.,
1917. p. 1.
120
POMBAL, Marquês de. Carta do tio, Ministro, ao sobrinho, Governador. In: Documentação e atualidade política. Brasília: UnB, n. 3, abr./ju.,
1917. p. 1.
121
Idem, ibidem. p. 2.
122
MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe. In: Curso de ciência política. 2. ed. - Brasília: Ed. da UnB, 1984. p. 96.
121
A origem do poder dos ministros estava no monarca, razão pela qual nele devia pensar o auxiliar:
“(...) quem tem em suas mãos um Estado não deve
pensar em si, mas no monarca, não devendo se importar com nada que não diga respeito a este”.123
Por seu turno, a manutenção da fidelidade do ministro
podia ser obtida “fazendo-lhe favores, conferindo-lhe honrarias e atribuindo-lhe incumbências de responsabilidade”.124
O mesmo afirmou Bento Farinha, um dos moralistas do
pombalismo: “Na República devem-se dar as dignidades e
privilégios aqueles que são dignos deles”.125
6. Pombal advertiu seu sobrinho quanto às conseqüências
danosas da falta de lealdade dos empregados da casa, que
trazem para dentro o que não se passa fora e para lá levam
suas próprias opiniões e não as do seu senhor. No caso, Machiavelli chamou atenção do soberano para o mesmo problema, referindo-se ao valor da lealdade e da necessidade de
fugir, a todo custo, dos “aduladores que cercam os soberanos”.126 Eis a advertência de Pombal:
“São os criados inimigos domésticos, quando são desleais, e companheiros estimados, quando são fiéis; se
não são como devem ser participam para fora o que
sabem de dentro e depois passam a dizer dentro o que
se não sonha fora”.127
123
Idem, ibidem. p. 97.
Idem, ibidem. p. 97.
125
FARINHA, Bento José de Souza. Compêndio de filosofia civil. Biblioteca da Ajuda, cód. 49-I-18, Portugal.
126
MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe. In: Curso de ciência política. 2. ed. - Brasília: Ed. da UnB, 1984. p. 97.
127
POMBAL, Marquês de. Carta do tio, Ministro, ao sobrinho, Governador. In: Documentação e atualidade política. Brasília: UnB, n. 3, abr./ju.,
1917. p. 1.
124
122
7. A natureza dual do homem, que Pombal reconheceu e
que já encontrara expressão nos textos de Heitor Pinto, corpo material e parcela espiritual, também expressou-se nos
escritos de Machiavelli. Enquanto o corpo obedecia as paixões, o espírito era “uma substância participante da razão
incorpórea, imortal, invisível, acomodada a reger o corpo”.128 Machiavelli referiu-se a essa dualidade do homem,
afirmando que os animais guiam-se pela força e os homens
pela razão, porém era necessário que “o príncipe soubesse
usar bem tanto o processo dos homens como o dos animais”.129 Evidentemente o pensamento de Pombal sobre as
duas naturezas possuía mais plasticidade que o maquiavélico
em virtude de vir intermediado pelo neotomismo, além de
em Machiavelli o espírito não vir descrito como entidade
imortal. Em ambos, no entanto, o espaço público era povoado pelas duas naturezas do homem.
A compreensão de nós próprios é elaborada pelo conhecimento que conseguimos estruturar, depende da ampliação
do nosso entendimento do mundo e de nossa formação. Ao
propormos um reencontro com as teses políticas de Pombal
estamos fazendo isso. Procuramos evidenciar aspectos de
um momento em que a prática governativa se distanciou dos
critérios firmados pela filosofia antiga. Na Grécia o problema ganhara significado teórico na indagação posta a Sócrates por Pitágoras: a existência da cidade dependia de quais
virtudes dos cidadãos? A mitologia apontara o pudor e a justiça, que foram articulados para constituir a base da arte política. A política mantinha a ordem justa, uma imitação da
cidade dos deuses, e essa favorecia a sobrevivência do estado. A República de Platão sintetizou o ideal de formar prin-
128
PINTO, Frei Heitor. Imagem da vida cristã ordenada por diálogos.
Lisboa: Alves Correia, 1940. p. 49.
129
MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe. In: Curso de ciência política. 2. ed. - Brasília: Ed. da UnB, 1984. p. 84.
123
cípios amplos capazes de constituir a justiça na cidade e no
espírito humano. Platão associara o homem justo ao estado
justo, cabendo posteriormente a Aristóteles subordinar os
bens individuais aos coletivos. Essa mesma hierarquia foi
mantida no neotomismo ibérico. Em contrapartida, a política
seria para Pombal, como o fora para Machiavelli, um campo
próprio, isto é, um espaço à parte dos valores individuais.
Apesar do esforço pombalino para não tocar na esfera subjetiva da consciência, destinada à moral, em certas circunstâncias o social justificava o privado. Pombal não conseguiu
manter a inseparabilidade entre o ético e o político. Especificamente isso ocorreu na condução dos negócios públicos,
situado além do mundo interior em cujo seio era restrita a
idéia de bem. Procuramos demonstrar que o assunto ganhou
justificação teórica com a idéia de razão de estado, que
Pombal aproveitou dos primeiros contra-reformistas. Adicionalmente indicamos que essa idéia de razão de estado,
apesar da roupagem neotomista, conservou uma grande proximidade com a formulação original de Machiavelli. Devia
o governante orientar-se para obter de todos o que melhor
pudessem dar em benefício do estado, adotando como referência o ideal de unidade orgânica desejado pelos contrareformistas. No entanto, a ação monárquica estava mais dirigida pela utilidade ou objetivos a alcançar do que pela vivência pessoal do justo e do verdadeiro. Tendo tido êxito na
separação entre a ética e a política, Pombal não conseguiu,
entretanto, propor uma moral social consensual e laica, capaz de intermediar os valores públicos da política e os escolhidos no mundo interior.
3. A idéia de progresso e o liberalismo ético normativo.
A
insuficiência moral do pombalismo revelou-se, não
apenas na adoção parcial das idéias modernas, mas
na atenção concedida ao papel normativo e racionalizante do
estado, “mola real de um reformismo que interpretaria a or-
124
dem natural, inserindo o econômico nos quadros jurídicos e
morais”.130
Do mesmo modo que a moderna filosofia inglesa constituíra-se em torno da experiência, Adam Smith (1723-1790)
apresentou o trabalho como um componente variável que
dinamizava toda a vida social. De sua lógica era possível derivar princípios de moral e direito. Smith, além dos temas
que posteriormente integrariam a ciência econômica, por
exemplo, o capital fixo e circulante, a teoria dos juros, o volume da população,131 abordou certos objetivos e fins da existência, os quais reproduzem determinados valores. A ciência econômica evoluiria posteriormente para abdicar de
qualquer propósito ético, conservando-se no campo operativo por um rigoroso processo de afunilamento epistemológico.
O Visconde de Cairu insistiu que a adoção das práticas
liberais propiciaria o aperfeiçoamento moral proporcionando o progresso e a felicidade. Ao homem cabia o próprio aprimoramento e a melhoria do mundo. Manuel de Azevedo
Fortes e sucessores haviam iniciado uma polêmica em torno
da valorização do saber e da ação.132 Daí decorreu o entendimento de que o sofrer só era vivenciado, como forma de
melhoria moral, por poucas pessoas. Além disso, a pobreza
de um povo causa mais a impressão de incapacidade governativa do que revela a prática de virtude. Esse debate conseguiu praticamente eliminar os efeitos da racionalização da
moral efetivada pela segunda geração de contra-reformistas
130
PEREIRA, José Esteves. As idéias fisiocráticas em Portugal. Projeto
de investigação. Universidade de Coimbra, 1980. p. 17.
131
Referimo-nos mais especificamente ao livro segundo e quinto onde
Smith considerou a constituição do capital e as políticas públicas.
132
CF. PEREIRA, José Esteves. Ética, estética e técnica no pensamento e
na pedagogia de Manuel de Azevedo Fortes. Viana do Castelo: Câmara
Municipal, 1991. p. 4.
125
e fundamentar no direito natural, como produto da razão, o
significado da vida terrena, da organização civil, permitindo
inúmeras conclusões.
A primeira e mais importante delas foi a de valorização
do homem sob o patrocínio do jusnaturalismo pufendorfiowolffiano, que propiciou a Cairu eliminar, de modo bem
fundado, a condição negativa da vida terrena, expressa no
contra-reformismo como conseqüência de uma natureza decaída. A outra foi a absorção do ideal de progresso que as filosofias do século reproduziram de modos múltiplos, apesar
da prevalência do caráter estrutural herdado do hegelianismo.133 Foi a análise hegeliana do nexo racional subjacente
aos fatos que considerou a dignidade humana como parte da
compreensão do espírito na sua motivação interior de autodesenvolvimento. Há de se realçar que Cairu não partilhou
de qualquer visão cíclica, estruturada e fechada da história,
mas nem por isto perdeu de vista a totalidade dos fatos que
nos revela Deus.
O antropomorfismo moderno, cujas raízes vinculam-se à
meditação cartesiana,134 encontrou em Cairu uma expressão
ética. A subjetividade não significava um rompimento com
o princípio ontológico e nem conduzia a qualquer forma de
ma-terialismo. O individualismo era somente o espaço privado do cogito na sua vocação de abertura aos planos e leis
divinas, obrigando o homem a um esforço adicional para o
entendimento dos ideais transmitidos por Deus à humanidade.135 Para sustentar esta posição, Silva Lisboa valeu-se da
133
CF. HEGEL, G. W. F. Introdução à História da Filosofia. Trad. de
Antônio Pinto de Carvalho. - 4. ed. - São Paulo: Nova Cultural, 1984. p.
91.
134
DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. de J. Guinsburg e
Bento Prado Júnior. - 4. ed. - São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 46/51.
135
CF. CAIRU, Visconde de. Leituras de economia política. Rio de Janeiro: Planches-Seignot, 1827. p. 36.
126
metafísica católica. Cada homem é imagem divina e traz em
si a marca da dignidade, herdou do criador a capacidade de
refletir e agir. Não tem, entretanto, consciência plena de até
onde pode chegar a sua capacidade, mas deve exercitá-la ao
máximo. A natureza humana traz em si uma marca da capacidade divina e de seu impulso criador.
A atividade econômica decorria da própria natureza humana e foi utilizada para fundamentar a justificação da conduta contra o voluntarismo puro. A economia assumiu o papel de tronco científico, capaz de propiciar a tematização
dos valores.136 Ela adquiriu o papel de mediadora entre o sujeito e a felicidade, eudemonismo que, exceto pela sua intermediação, mantinha-se intacto da fórmula contrareformista. Temos, pois, uma ética com pressupostos ontológicos e de orientação teleológica intermediada pela prática
quotidiana do trabalho.137
Ao contrário da teoria hobbesiana, em que a subjetividade somente se viabilizava pela concessão da liberdade civil
ao poder constituído,138 presenciamos uma elaboração teórica do esforço humano voltado para a construção do planeta
e submetido a uma visão escatológica. Voltando as paixões
para o trabalho produtivo era possível relativizar o pessimismo da moral contra-reformista. Cairu reconheceu, nesse
aspecto, a influência de Sr. Colquhoum, no atalho que ela-
136
CF. CAIRU, Visconde de. Ensaio econômico sobre o influxo da inteligência humana na riqueza e prosperidade das nações. Rio de Janeiro:
Revista Guanabara, 1851. p. 48.
137
CF. CAIRU, Visconde de. Ensaio econômico sobre o influxo da inteligência humana na riqueza e prosperidade das nações. Rio de Janeiro:
Revista Guanabara, 1851. p. 47.
138
CF. HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. de J. P. Monteiro e M. B. N.
Silva. - 4. ed. - São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 104/5.
127
borou entre a natureza humana e a moral pública.139 Quanto
à razão de ser do estado, foi explicada não apenas pelo papel
de fomentador da atividade econômica, mas também de
guardião do projeto político nacional, necessário à conservação dos valores da fidelidade e da honra.
O ideal humanizador, otimista e desenvolvimentista das
luzes ganhou expressão na apologia do comércio mundial.
Por ele, os diferentes grupos humanos adquiriram condições
para o exercício dos bons costumes, logo contribuiu para o
aperfeiçoamento de toda a humanidade. É em seu nome que
o Visconde pediu o fim do monopólio comercial. Ao contrário deste, o livre comércio e a liberdade de empreender proporcionariam maior confiança nas realizações humanas,
contribuindo para o desenvolvimento das virtudes,140 alçadas
à condição de alma nacional.
As filosofias iluministas, na proporção em que orientaram a meditação para o homem, edificaram uma moral provisória, porém segura, mesmo quando desvinculada de roupagem transcendente. A insuficiência moral da reforma
pombalina fechou a compreensão para essa possibilidade.
Era impossível uma ética universal desvinculada de pressupostos metafísicos, assim acreditaram os moralistas do
pombalismo.
Foi em nome da dignidade dos filhos de Deus que Cairu
reprovou o tráfego e o trabalho escravo, rechaçando os argumentos econômicos contra a escravidão concebidos pelos
moralistas britânicos. Ainda que as conseqüências materiais
da escravidão fossem positivas, ela continuaria vil e avultan-
139
CAIRU, Visconde de. Ensaio econômico sobre o influxo da inteligência humana na riqueza e prosperidade das nações. Rio de Janeiro: Revista Guanabara, 1851. p. 50.
140
CAIRU, Visconde de. Observação sobre a franqueza da indústria e
estabelecimento de fábricas no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Régia,
1810. p. 56.
128
te. Todo homem trazia em si um pouco do seu criador, tinha
uma dignidade que o diferenciava das coisas e o convidava a
ser ele próprio. Nisto já se revela que o programa de aperfeiçoamento moral não era resultado automático de qualquer
tipo de atividade econômica, mas ancorava-se na própria
moral religiosa.141 A economia era sua auxiliar.
A valorização da filosofia da experiência permitiu-lhe
dar um sentido especial ao aperfeiçoamento do homem. Para
ele, a aprendizagem contribuía muito bem para o desenvolvimento humano. Ao renunciar à metafísica e deslocar o
problema do conhecimento para o campo das sensações,
John Locke (1632-1704) dera consistência teórica ao processo de aprendizagem. Cairu serviu-se desse raciocínio,
sem ir aos seus pressupostos, para distinguir o trabalho humano daquele realizado pelos animais. A atividade era a
contrapartida do desafio agostiniano de mergulho em si como forma de tornar real para a consciência a presença divina. Na ação o conhecimento de Deus exprimia-se como coparticipação em sua natureza criadora. Assim, quanto maior
fosse o papel da inteligência na realização do trabalho, melhor. Estava plantada a raiz do conceito de produtividade
que é a expressão desenvolvida e atualizada desse ideal de
Cairu. A ação inteligente produzia uma nova ordem que, por
sua vez, repercutia no universo moral. No sentir de Soares
Dutra, “a inteligência regulada pela moral é o fator capital
no sistema econômico de Cairu”.142
Silva Lisboa logo verificou que a hipótese de Adam Smith seria inconcebível sem a superação completa da argumentação da 2ª geração de contra-reformistas. Procurou evidenciar que o homem era extraordinário, mas contra os ilumi-
141
CAIRU, Visconde de. Leituras de economia política. Rio de Janeiro:
Planches-Seignot, 1827. p. 106.
142
CF. DUTRA, José Soares. Cairu, precursor da economia moderna.
Rio de Janeiro: Vechhi, 1943. p. 71/4.
129
nistas entendeu a singularidade humana como sendo transposta da divindade. Cada um é singular, possui seu papel no
mundo, tem direitos, valor, porém isso é verdade enquanto
Deus está nele.143 Os conflitos humanos e a violência das revoluções144 indicaram ao pensador a necessidade de melhor
estruturar a moral, de fazê-la mais claramente um encontro
do homem consigo próprio, que não era coisa diversa de encontrar Deus.
3.1. Cairu e o propósito conciliador.
T
iago Adão Lara Lembrou-nos que no iluminismo a
razão “justifica e corrobora as pretensões da liberdade. Pode-se, com efeito, defini-lo: doutrina ou movimento
que defende a liberdade”.145 Cairu experimentou essa realidade, mas não acompanhou os iluministas na defesa da confiança na capacidade da razão de estabelecer sozinha os rumos que garantissem o aprimoramento moral do homem. Ele
criticou o catecismo de Volnei indagando “como é possível
fazer os homens melhores doutrinando-lhes moral egoísta e
anti-cristã, prescindindo dos dogmas da Divina Providência”.146 A insuficiência moral do pombalismo manteve-o na
mesma linha argumentativa do Pe. João da Fonseca (16301710).147 A solução que deu ao problema pode ser assim resumida: as práticas econômicas eram até úteis à sociedade,
143
CAIRU, Visconde de. Escola brasileira ou instrução útil a todas as
classes da Sagrada Escritura. Para uso da mocidade. Rio de Janeiro:
Planches-Seignot, 1827. p. 2/3.
144
LISBOA, João Luís. Ciência e política. Lisboa: Centro de História da
Cultura da Universidade Nova de Lisboa, 1991. p. 171/2.
145
LARA, Tiago Adão. Caminhos da razão no ocidente. A filosofia ocidental do renascimento aos nossos dias. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 70.
146
CAIRU, Visconde de. Constituição moral e deveres do cidadão. Rio
de Janeiro: Typografia Nacional, 1824. p. 118.
147
CF. FONSECA, Pe. João. Morte espiritual da vida cristã. Coimbra:
Ofic. de Joseph Ferreira, 1687. Cap. 3.
130
mas era imprescindível não perder de vista o verdadeiro bem
para se estabelecer uma hierarquia de valores que fosse válida. O fundamental era o entendimento de que o Sumo Bem
agia permanentemente no mundo, não como causa exterior,
mas intrínseca.148 Trata-se, possivelmente, de uma influência
difusa da ética de Baruch Spinoza, a qual funcionou como
pano de fundo para as idéias jusnaturalistas de Puffendorf,
ainda que vista de um modo crítico, à luz da interpretação
leibniziana. A inter-relação e compatibilidade entre a razão
humana e a revelada mereciam melhor tratamento. Bergier149 inserira a natureza sensível do homem no plano divino,
procurando superar os impasses entre a nova idéia de sensibilidade e o conceito anterior de distinção substancial entre
o corpo e a alma. Deus fez o homem como ele é para que ele
desejasse as coisas que lhe parecessem vantajosas e fugisse
das contrárias. É na sensibilidade que residia o apelo intersubjetivo, porque o sofrimento alheio nos comovia, prova de
que o homem era membro natural de uma coletividade. Bergier reavaliou a questão da sensibilidade tema caro ao empirismo, segundo a ótica tradicional. Cairu adotou-o como
modo moderno de encontrar Deus. A dificuldade, a ser então
superada, residia, a seu ver, não na inadequação do jusnaturalismo, mas no abuso promovido pelo individualismo da ilustração, isto é, na supervalorização do homem isolado, afastado da sua força fundante, juiz das normas e leis sociais.150 A sua resposta para a questão foi o estabelecimento
de um vínculo entre o conceito de felicidade social, susten-
148
CF. CAIRU, Visconde de. Escola brasileira ou instrução útil a todas
as classes extraída da Sagrada Escritura. Para uso da mocidade. Rio de
Janeiro: Planches-Seignot, 1827. p. 37/8.
149
CF. BERGIER, N. Apologie de la religion chrétienne, contre auteur
du christianisme devoité... Pais: Humblot, 1770. tomo 2, parte 6. p. 24/5.
150
CF. CAIRU, Visconde de. Constituição moral e deveres do cidadão.
Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1824. p. 85.
131
tado na teoria dos sentimentos gerais, e a moral cristã.151 E
assim, em razão da incapacidade da moral humana de
encontrar os verdadeiros valores, o Visconde procurou
corrigir os seus excessos naquilo que ela abandonou: a
busca da felicidade, orientada que estava pelo desejo de
criar os seus fins e valores.152
Ao promover a conciliação ficou evidente a necessidade
de superar uma dificuldade. Será que o conceito mais positivo da vida, a preocupação com a segurança neste mundo, ou
melhor, com as sociedades civis e os governos, garantia a
superação definitiva dos argumentos mobilizados pela 2ª geração de contra-reformistas? Pereceu-lhe que sim, desde que
se examinasse a capacidade de labor da humanidade. Adam
Smith ajudou a estabelecer um programa de vida inerente à
tradição cristã, pensou o Visconde. Ele lembrou o Pe. Vieira
para quem “a indústria (entenda-se trabalho) é o complemento da onipotência; e o que faz Deus por Todo Poderoso,
fazem os homens por muito industriosos.153 Pelo trabalho integrava-se o homem no eterno movimento do mundo, era
copartícipe da criação, volta-se para finalizá-la, pois tudo estava permanentemente se fazendo.
Cairu pretendeu oferecer um programa capaz de formar o
bom caráter, conscientizar as pessoas, principalmente as
mais jovens, para o que não quis prescindir dos ensinamentos morais da Igreja. Quando o pensamento liberal inspirou
violentos movimentos separatistas no Brasil, conseguindo
interromper “o processo de constituição das instituições a-
151
Idem, ibidem. p. 60/1.
CF. MERQUIOR, José Guilherme. As idéias e as formas. - 2. ed. - Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
153
CF. CAIRU. Visconde de. Estudos do bem comum e economia política. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1819.
152
132
feiçoadas ao governo representativo”,154 o Visconde radicalizou a necessidade da moral estar voltada para a felicidade
verdadeira, que não se obtém nesta vida. A preservação do
ideal contra-reformista inviabilizou o propósito jusnaturalista de Puffendorf dedicado a estabelecer um sentido
para a vida humana, ainda que não desvinculado de Deus.
Foi o que conseguiu sistematizar sob a inspiração de uma ética vertida “sob uma roupagem sensista, mas (onde) os preceitos morais permaneciam absolutamente ortodoxos”.155
3.2. Os valores e virtudes.
F
ormular um sólido sustentáculo para a ética era uma
exigência da própria ciência. Os jusnaturalistas cristãos passaram a apresentar Cristo como um modelo, não
propriamente contrário à modernidade, mas como um protótipo de virtude supra temporal. Assim, para o Visconde de
Cairu, a ação virtuosa provinha tanto da conformidade ao
modelo divino como do ato intencional que inspirou o comportamento. Era o principiar de um esforço sistêmico.
O Visconde de Cairu organizou uma tábua de valores que
funcionavam como o esqueleto racional de sustentação da
ética. Divide-a inicialmente em virtudes individuais (ciência, temperança, coragem, atividade, limpeza; que foram
posteriormente subdivididas. A temperança, por exemplo,
repartia-se em sobriedade e castidade), virtudes domésticas
(a economia, o amor paterno e materno, o conjugal, o filial e
o fraternal) e as virtudes sociais (essas tão numerosas quanto
as boas ações que se podem fazer na comunidade em que se
154
PAIM, Antônio. Liberalismo no Brasil. In: Logos. Lisboa: Verbo,
1991. p. 342.
155
CF. RODRIGUES, Ana Maria Moog. O problema da ética de Eduardo
Job na história do pensamento brasileiro. In: Revista Brasileira da Filosofia. v. XXVIII, fasc. 112. p. 416/7.
133
vive).156 Havia uma em especial que presidia a todas as virtudes sociais: a justiça. Ao elegê-la como tal, demonstrou o
forte influxo que recebeu do aristotelismo-tomista via moralistas da Contra-Reforma.
Além desse grupo, que regulava o relacionamento em sociedade, e se baseava na razão natural, havia aquelas que se
relacionavam com Deus: a esperança, a fé e a caridade, isto
é, as denominadas virtudes teologais. É nelas que o Visconde se amparou para tratar de assuntos relativos a origem do
homem e seu destino, o futuro, a morte, as limitações humanas, a dor, o sentimento de fracasso, a insegurança, enfim,
tudo aquilo que na provisoriedade do quotidiano nos demanda o mais dramático quadro de indagações.
Cuidou, em seguida, de considerar a formação do sujeito
moral. Para tanto postulava a prática de virtudes que ele denominou de fundamentais porque sem elas as boas qualidades tornavam-se impraticáveis.157 Eram igualmente numerosas, mas o Visconde deu realce a quatro: a piedade (que abria um canal transindividual de valor com Deus), a veracidade (que é o princípio das boas relações em sociedade), o
senhorio de si (ou controle das paixões, possuindo o mesmo
sentido que lhe deram os contra-reformistas), a tolerância
(para favorecer o relacionamento humano, embora não a
ponto de levar a uma moral social laica. Na verdade, por tolerância, Cairu compreendia a expressão do espírito magnânimo, opondo-a à crueldade). No seu entendimento algumas
destas virtudes fundamentais eram muito necessárias ao povo brasileiro, cabendo especial cuidado no sentido de bem
conservá-las. Eram pois: “fidelidade, contentamento, continência, pudicícia, candura, sinceridade, honra, indústria, ho-
156
CF. CAIRU, Visconde de. Constituição moral e deveres do cidadão.
Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1824. p. 83.
157
CF. CAIRU, Visconde de. Suplemento à Constituição Moral. Rio de
Janeiro: Typografia Nacional, 1825. p. 24.
134
nestidade e literatura”.158 As outras destinavam-se ao relacionamento humano em geral, como: afabilidade, afeição,
cautela, concórdia, confidência, conselho, constância, docilidade, delicadeza, gratidão, lisura, integridade, parcimônia,
sensibilidade, etc. Organizar as virtudes é um modo de contestar o princípio da autonomia moral, que desembocaria no
subjetivismo e arbitrariedade.
Concluída a tábua das virtudes, distinguiu dois tipos de
obrigação moral, uma natural ou universal (associada ao que
entendia constituir a natureza humana), outra pública (relativa ao bem comum que dá crédito ao estado). Estas últimas
referem-se àquilo que, no pensamento de Antônio Ribeiro
dos Santos (1745-1818), representava o objeto do poder real, ou melhor, o que contribuía para “a tranqüilidade e felicidade temporal dos homens”.159 Introduziu então longo estudo sobre o dever e evoluiu daí para o significado da consciência moral.
Essa era uma questão importante. Por consciência moral
entendia-se o fato do espírito, responsável pelo remorso ou
sentimento de culpa e também a alegria moral, espécie de
reação ao cumprimento dos deveres. Para Cairu, consciência
moral era o que propiciava a concordância com as normas
humanas ou reveladas. Quanto à forma ela expressava-se em
juízos práticos e princípios, calcados no sentimento (tematizados pela moral humana) e na revelação ou tradição (vindas da moral cristã). A revelação exprime-se na tradição e
ocupa lugar de destaque na moral de Silva Lisboa. É ela a
fonte da certeza, está sustentada pelo próprio Deus e garantida por seus representantes. A unidade da verdade impõe o
158
CF. CAIRU, Visconde de. Suplemento à Constituição Moral. Rio de
Janeiro: Typografia Nacional, 1825. p. 46.
159
SILVA DIAS, J. S. Pombalismo e teoria política. In: Cultura - história
e filosofia. v. I. Lisboa: Centro de História da Cultura da Universidade
Nova de Lisboa, 1982. p. 66.
135
caráter permanente da mensagem e a importância de bem
transmiti-la às gerações seguintes. Confere-lhe a marca da
universalidade, exclusividade e unidade. Quanto à tradição,
ela é portadora da mensagem divina, o que dá à história uma
importância magnífica. É nela que transita a comunicação de
Deus, devendo trazer, a par de algumas distorções em seu
curso sinuoso, pontos de interseção com a verdade revelada.
Neles, a razão humana e divina coincidiam fornecendo uma
mensagem densa de significação e riquíssima de conteúdo.
Faltou-lhe o entendimento de que a ordem cultural não é puramente derivada dos instintos, nem precisa ser redutível a
tratamento ontológico. Em relação à finalidade da existência, embora Cairu revelasse preocupação com a situação do
homem na precariedade de sua finitude, seguiu a orientação
do contra-reformismo e a subordinou a seu fim último. O
propósito de lançar um programa a fim de “alcançar estádios
sucessivamente mais elevados de civilização, de progresso
material e moral”,160 mencionado por Antônio Almodovar
acomodou-se de modo progressivo ao racionalismo e inatismo moral gerados no eudemonismo contra-reformista. A
moral permaneceu uma rota para a felicidade e esta identificava-se com o estado de gozo eterno após a morte.
Vejamos, a seguir, como essas questões deixadas pelo
pombalismo foram consideradas pelos principais teóricos
brasileiros do século XIX.
4. Silvestre Pinheiro Ferreira.
A
parcela do pensamento de Pinheiro Ferreira que merece maior destaque, pela influência que deixou no
pensamento brasileiro, está voltada para o exame do empi-
160
ALMODOVAR, Antônio. Introdução. In: Lisboa, José da Silva. Escritos econômicos escolhidos (1804-1820). Tomo I. Lisboa: Banco de Portugal, 1993. p. XIV.
136
rismo e dos assuntos ligados à política. Suas idéias foram
sistematicamente estudadas e suas principais obras reeditadas recentemente: Preleções filosóficas, Categorias de Aristóteles, Idéias políticas, Ensaios filosóficos. Coube a Pinheiro Ferreira encontrar uma solução para as dificuldades advindas da aproximação da tradição aristotélica com o jusnaturalismo de Hugo Grócio (1583-1645) e Samuel von Puffendorf (1632-1694) operada pela geração pombalina. Bento
José de Souza Farinha (1740-1820) valera-se do jusnaturalismo moderno para propor uma conciliação da razão humana e divina, o que exigiu um aparato teórico capaz de aproximar a teoria da sensibilidade de Aristóteles (384-322 a.C.)
com as teses do empirismo britânico, sobretudo de John
Locke (1632-1704). Silvestre realizou esse empreendimento
reinterpretando o conceito aristotélico de substância. Em seu
entendimento essência, substância e natureza equivaliam a
qualidades dos corpos apreendidos pela sensibilidade. A essência englobava as qualidades atuais de um corpo, a substância além dessas referia-se às passadas, enquanto natureza
perspectivava ou projetava qualidades futuras como o fazia
o conceito aristotélico de potência. Não há, pois, distinção
entre a noção de indivíduo e de substância, ficando à parte o
conceito de natureza pelo que ele aponta em relação ao devir. Estabelecida a base do conhecimento foi preciso indicar
como se constituía sua ordenação. O pensador adotou solução original e curiosa ao propor uma espécie de correspondência entre realidade e linguagem para superar as dificuldades modernas advindas do dualismo cartesiano. Superpõem-se assim as dimensões ôntica, lógica e gramatical.
Tornara-se possível a aproximação da prática experimental
com a teoria da sensibilidade tradicional tão desejada pelos
teóricos do pombalismo.
No campo político Silvestre Pinheiro Ferreira desejou
propor uma teoria capaz de justificar a liberdade e propiciar
a implantação do direito constitucional. A idéia de liberdade
137
brotou de um entendimento próprio da relação do espírito
com o corpo, da sua capacidade ativa, que somente encontraria uma explicação coerente com os ecléticos. Mesmo assim o filósofo concluiu pela transcendência do espírito e acreditou justificada a liberdade política. Foi assim que pôde
defender a monarquia constitucional como um sistema capaz
de garantir a unidade do estado, a organicidade dos poderes
e simultaneamente introduzir a idéia de representação dos
interesses tal como a estavam construindo, em outro contexto, os filósofos britânicos.
5. Eduardo Ferreira França.
F
erreira França, autor das Investigações de Psicologia
publicada na Bahia em 1854 e reeditada em 1973 pela EDUSP, foi um dos grandes nomes da filosofia eclética
no século XIX. Ele buscou demonstrar a atuação do espírito
seguindo o método da observação preconizado pela ciência.
A geração pombalina procurara incorporar, ainda no século XVIII, o conceito de utilidade no debate moral. Ao fazê-lo deixaram intacta a moral contra-reformista que condenava a riqueza e os bens materiais, mas ampliaram a tolerância às paixões a eles associados tendo em vista as vantagens públicas daí advindas. Em nome desses benefícios abriram também as portas à ciência moderna, evidenciando a
necessidade de justificá-la e conciliá-la com os aspectos nucleares da idéia de pessoa, pilar da ética neotomista. Tal foi
a herança teórica a partir da qual se desenvolveu o espiritualismo eclético em nosso país no século passado.
A filosofia moderna nascera sob a égide do dualismo cartesiano, isto é, uma teoria que distinguia a substância material da espiritual. Separadas entre si tais realidades apenas
podiam ter um ponto de contato onde Deus as unissem. O
empirismo suscitava interpretação distinta ao propor a experiência sensório-motora como fonte do conhecimento e distinguir a experiência interna, a que o sujeito sentia intima-
138
mente, da externa, aquela advinda do ambiente social ou natural.
Ferreira França entendeu haver entre essas duas formas
de experiência uma vinculação inseparável. A percepção exterior, que Hegel julgara ser o critério de verdade do empirismo desde que ela devia ser encontrada fora do eu, somente era possível em virtude do sentimento fundamental. Era
necessário encontrar explicação para os fenômenos da consciência que leva o indivíduo a considerá-los como seus.
O que entendeu por sentimento fundamental? Ferreira
França o definiu como um conjunto de experiências interiores, tais como fome, sede, atividade de respirar, dores, enfim
todo o conjunto de movimentos internos que atuam sobre a
consciência. O agrupamento das sensações simultâneas formam uma ambiência interna que influi na percepção dos dados advindos do meio externo.
Assim visto ficam patentes as diferenças em relação ao
empirismo lockeano. Para o filósofo britânico o conhecimento legítimo somente se constituía a partir dos estímulos
externos. Em Ferreira França existe uma base interior, que,
sem ser emocional, livre ou dinâmica, influencia na percepção exterior e na formação das idéias.
Essa versão do mundo interior, que ainda não menciona
as emoções livres e dinâmica, quer ir adiante da interpretação de Etiénne Bonot de Condillac (1715-1780). O mundo
interior possuía sensações que, embora privadas, podiam ser
cientificamente observadas. As sensações eram a porta de
entrada pela qual chegavam os influxos sobre os quais obrava a consciência. A razão era simples:
“passiva a consciência seria nula, e todavia antes de
se separar de suas modificações, ele (o homem) se acha no estado da estátua de Condillac, que se torna
em todas as suas sensações, que se identifica com to-
139
das elas, que não as distingue, porque não as distingue de si”.161
O obrar sobre os dados permitia à consciência chegar ao
conceito de eu, através do qual o sujeito diferenciava-se do
mundo exterior. Esse exercício intelectivo Ferreira França
denominou de vontade e é através dele que a distinção subjetivo-objetivo se forma na mesma direção anunciada por
Baumgarten, em 1739. Subjetivo tornara-se, desde então,
uma referência ao eu, discriminação que se fazia entre as
coisas e quem as pensa. Nas palavras de Ferreira França:
“É depois dos atos da vontade que o eu se estabelece
verdadeiramente distinto de tudo o que não é ele, é
então que se distingue bem do não-eu e de suas próprias modificações, depois dos atos da vontade começa uma nova era para o eu, tudo se esclarece na
consciência”.162
Apesar das fraquezas dessa forma de abordar a questão,
veja que os empiristas nunca conseguiram dar uma explicação coerente dessa experiência exterior, o pensamento de
Ferreira França representou um importante momento da meditação nacional. Permitiu incorporar a ciência, manter a
moral católica e desenvolver as idéias liberais. Vejamos a
base de sua justificativa ética.
O reconhecimento do espírito, a auto-referência ou a
consciência de si como fator determinante da atividade cognitiva não justificava nenhuma forma de espiritualismo, nenhuma redução do real ao espírito. Até aí seguiu a tradição
inaugurada por Kant.
Nesse ponto o pensador brasileiro afastou-se, entretanto,
da trilha neo-kantiana para quem o eu é um sujeito com pos-
161
FRANÇA, Eduardo F. Investigações de Psicologia. 2. t., - 2. ed. - São
Paulo: EDUSP, 1973. p. 58.
162
FRANÇA, Eduardo F. Investigações de Psicologia. 2. t., - 2. ed. - São
Paulo: EDUSP, 1973. p. 59.
140
sibilidades limitadas. Segundo Kant a união do sujeito e do
predicado nos juízos não autorizava inferências sobre a realidade que a ultrapassava. Ferreira França, ao contrário,
admitiu o conhecimento de um “fenômeno produzido por
uma causa que não observamos, tem duração e é uma
substância que não vemos, estes conhecimentos não derivam
da observação, que nos mostra o fenômeno e o corpo, mas
não nos mostra a causa, o espaço, o tempo e a substância.163
Preconizou, desse modo, um tipo de conhecimento que não
tinha origem na experiência.
A simples admissão desse tipo de conhecimento permitiu
a Ferreira França acatar e defender a idéia de Deus. Ele admitiu que a organização interna da consciência deixava
transparecer uma subjetividade infinita, causa de tudo quanto há, embora inacessível a um contacto corporal. Na verdade seu raciocínio nesse ponto parece mais a declaração de
um crente.
“Deus quis que o homem, a quem dotou de inteligência e liberdade, não chegasse a conhecê-lo senão usando dessa mesma inteligência e liberdade de que o
havia dotado, para que o amor que lhe tivéssemos
fosse um amor refletido e livre, fruto de uma razão
calma e esclarecida e não objeto de um instinto”.164
Ferreira França pode ser considerado um eclético por intentar arrumar as condições para que a procura dos princípios pelos quais atuava a consciência na busca das verdades
não prejudicasse a tese da liberdade frente a Deus (ética) e
diante do estado (política). Esse foi o argumento para a aproximação da moral tradicional com as teses políticas liberais.
163
FRANÇA, Eduardo F. Investigações de Psicologia. 2. t., - 2. ed. - São
Paulo: EDUSP, 1973. p. 80.
164
Idem, ibidem. p. 280.
141
6. Domingos Gonçalves de Magalhães.
G
onçalves de Magalhães retomou a problemática da
vinculação do corpo com o espírito de onde o empirismo deixara a pergunta. Em Silvestre, como entre os empiristas britânicos, o grande problema era explicar a atividade
e a passividade do espírito, isto é, de que modo o espírito influía no corpo e vice-versa. Como essa correspondência não
era perfeita, isto é, nem sempre as ações e estímulos correspondiam ao efeito esperado, havia um espaço que Silvestre
explicava como sendo fruto da liberdade humana, em contraposição ao comportamento mecânico dos animais. Magalhães avançou esse estudo adotando uma postura eminentemente espiritualista. Entende que a filosofia propiciava posição antagônica, conforme se privilegiasse o sensualismo
ou o espiritualismo. Seu projeto intelectual acompanhou o
eixo desenvolvido por Ferreira França, cuidando de estudar
os desdobramentos do sentimento fundamental que iluminava a consciência com estados presentes nela.
As principais obras filosóficas de Magalhães são da segunda metade do século: “Fatos do Espírito Humano”
(1858) reeditado em 1865, “A alma e o cérebro” (1876) e
“Comentá-rios e Pensamentos” (1880).
O principal pensador brasileiro do momento eclético avançou o entendimento de Pinheiro Ferreira quando asseverou em A alma e o cérebro que lesões no segundo podem afetar a primeira sem que essa seja uma função cerebral. Tal
será a tese desenvolvida posteriormente em Matière et Mémoire por Henry Bergson (1859-1941). Deixando à parte o
caminho neurofisiológico, a opção espiritualista de Magalhães se revela numa espécie de gnose, onde o conhecimento
e a própria epistemologia tornaram-se um caminho para
Deus e para a salvação. Não é o espírito uma entidade alojada no corpo, mas ao contrário tudo que há de corporal ganha
sua existência porque está no espírito ou diante dele. Os espíritos, entre eles Deus, são a base onde se acomodam os ob-
142
jetos e fora deles nenhuma coisa é possível existir. Convivendo em absoluta liberdade esses espíritos não se movem
deterministicamente, não são uma continuidade do pensamento divino. A autonomia do espírito frente a Deus revelase na consciência da individualidade do sujeito humano. O
conhecimento da natureza independente da atividade psíquica nasce da transcendência de si mesmo, pelo entendimento
dos limites que é sentido como não-eu. Tal postura aparece
claramente em Fa-tos do Espírito Humano, notadamente na
pág. 29, e também antecipa aspectos fundamentais da filosofia do eu de Bergson. É porque o sujeito pensante sai de si
que a filosofia surge, afirmou Magalhães, pela oposição que
daí nasce entre o universo interior e o exterior. Nesse sentido temos uma reflexão fundamentalmente anti-romântica.
Friedrich von Schelling (1775-1854) entendia, por exemplo,
que a filosofia nasce da aproximação, que culmina na identidade, entre o eu e o não-eu, o subjetivo e o objetivo. A
compreensão das virtudes e limites da filosofia de Magalhães, tal como aconteceu com Tobias Barreto, somente se
completou nesse século. Em vista dessa avaliação Antônio
Gomes Penna concluiu que “Magalhães merece ser considerado pelo espírito crítico de seu trabalho, um verdadeiro pioneiro da psicologia como o foi também, da filosofia no
Brasil”.165
7. Antônio Pedro de Figueiredo.
O
utro pensador de destaque daquele período foi Antônio Pedro de Figueiredo (1814-1859) sobre quem
Gilberto Freire já chamara atenção. O balanço da obra do filósofo foi realizado recentemente por Tiago Adão Lara em
165
PENNA, Antônio Gomes. Magalhães e a Psicologia. Rio de Janeiro:
ISOP, 1987. p. 14.
143
As raízes cristãs do pensamento de Antônio Pedro de Figueiredo.
Figueiredo, vivendo um pensamento de inspiração historicista, encontrou em Victor Cousin uma referência para
compreender o homem. Cuidando de início em preservar a
liberdade humana, que o empirismo lockeano não fundamentara, o pensador sentiu-se livre para evitar as polêmicas
que envolveram o empirista britânico. Cuidou, então, de examinar a diretriz filosófica que utilizava a experiência como norma de verdade. Figueiredo pôde, assim, retomar a linha de avizinhamento com o utilitarismo britânico.
A aproximação com o conceito de utilidade propiciara à
última geração de contra-reformistas, ainda no século XVIII,
preparar os caminhos para o surgimento do pensamento tradicionalista. A discussão ali desenvolvida deixava claro estar intacta a moral que condenava a riqueza e os bens materiais, mas ampliou a tolerância às paixões a eles associados,
tendo em vista os benefícios públicos daí advindos. Foi o
suficiente para reconhecer os interesses humanos como legítimos, como o faria, em seguida, Silvestre Pinheiro Ferreira.
No sentir de Figueiredo a ação humana era orientada pelo prazer. O desejo era o móvel das atividades humanas,
conforme já afirmara César Beccaria (1738-1794) e estruturara Jeremy Bentham (1748-1832). Contudo, acentuava-se,
na ocasião, a tendência psicológica do utilitarismo. As condições para que existisse prazer são assim descritas: além do
desejo propriamente dito, era essencial a existência do objeto desejado, a proximidade com ele e que o objeto pudesse
ser utilizado para obter prazer.
As idéias utilitaristas associaram-se com a emergente ciência econômica, pois sua motivação moral seria uma base
para as reformas desejadas pelos economistas. Elas tinham
em vista oferecer as condições para o aumento generalizado
do bem estar. Assim não é estranho que Figueiredo orientasse o melhor de seus esforços para a ética e a política, refe-
144
rindo-se a essa última como “a ciência que se liga mais diretamente do que outra qualquer ao movimento das paixões
humanas”.166
Ocupando-se da atividade humana, Figueiredo revelou o
aspecto moderno da ética que pretendia construir. O homem
devia ser o árbitro em relação aos bens que almejava, devendo aprofundar a compreensão dos valores que intentava
alcançar e difundir. Seguindo o veio anti-romântico do
ecletismo, sobretudo a oposição entre o subjetivo e objetivo,
o pensador considerou a existência humana como um pôr-se
entre objetos concretamente presentes. Na existência ocorre
uma aproximação com os objetos, embora ele seja, em verdade, um ideal irrealizável. Esse modelo reflete o que ocorre
no mundo da criação e Antônio Paim o denominou de tensão
bipolar. Eis aí a explicação que Figueiredo deu aos vários
momentos da ação criativa do sujeito humano.
A atividade humana na história revela-se de modo progressivo. Figueiredo referiu-se ao progresso em inúmeros artigos e mencionou as características de um tempo em movimento, de um período marcado pela ciência, pela técnica,
pela máquina. Há no seu pensamento a crença de que os fatos históricos comportam um sentido, revelam um aperfeiçoamento continuado:
“Como as línguas de fogo da escritura, novas palavras se colocaram sobre as nossas cabeças: associação, garantias, socorros mútuos, extinção da miséria,
etc. etc.; eis a glória do tempo em que vivemos, o caráter que assinala a nova geração, a tendência desse
século”.167
166
FIGUEIREDO, Antônio Pedro de. O Progresso. Amaro Quintas (org.).
Recife: Imprensa Oficial, 1950. p. 171.
167
FIGUEIREDO, Antônio Pedro de. A carteira. Diário de Pernambuco.
Recife, 14/6/1858.
145
O aspecto principal desse discurso do progresso estava
no seu caráter ideal, isto é, ele não advinha da experiência
concreta. O idealismo também repudiara o seu caráter empírico. Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) falara de uma necessidade puramente racional do progresso histórico. Para
Hegel o regresso e/ou estagnação histórica era aparente, eles
preparavam um progresso mais intenso. A idéia de progresso para Figueiredo era, contudo, de cunho moral, refletia o
que estava embutido em potência na mensagem cristã, havendo sido estimulada pelo ideário iluminista e as conquistas de então. A idéia de progresso estava fora da experiência
e do saber científico, traduzia uma esperança ou um ideal ético para o futuro:
“Nada do que realmente é bom, verdadeiro e humano,
nas conquistas da humanidade, pode ser contra o
cristianismo verdadeiro. Antes o cristianismo está na
raiz mesmo do moderno, naquilo que ele tem de válido”.168
Existe na obra de Figueiredo aquele propósito conciliador da modernidade com a tradição cristã tão característica
da geração pombalina. Esse pensamento conciliador reaviva
o conceito de história como progresso, que o iluminismo e o
ecletismo construíram. O conceito exigia, no entanto, uma
medida do progresso. Figueiredo como já o fizera Giambattista Vico (1668-1744) foi buscá-la num ideal que a história
concreta procura imitar. A diferença é que enquanto para o
filósofo italiano esse ideal transhistórico acompanhava passo a passo o tempo histórico das nações, para Figueiredo era
um ideal de cunho ético, introduzido nos espíritos pela mensagem cristã.
8. Luís Pereira Barreto.
168
LARA, Tiago Adão. As raízes cristãs do pensamento de Antônio Pedro
de Figueiredo. São João del-Rei: FDB, 1977. p. 156.
146
T
ambém é importante examinar a relação entre as raízes cientificistas herdadas de Portugal e as teorias
positivistas. O positivismo adquiriu formas próprias em nosso país, à semelhança do que ocorreu em quase todas as nações do mundo ocidental.
A filosofia positivista propiciou uma mistificação da ciência e de seus produtos, tidos como única forma de saber
válido e inspiradores de uma nova religião e moral. Refletindo a proposta saint-simoniana, o comtismo estimulou a
constituição de um novo ordenamento social fundamentado
na unicidade da religião da humanidade.
O método científico proposto por Augusto Comte baseava-se tanto na descrição e previsão rigorosa dos fenômenos,
quanto se escorava na evolução histórica da consciência.
A confiabilidade do método científico foi assim explicada pelo mestre francês:
“Não há liberdade de consciência em astronomia, física, química, fisiologia, porquanto cada indivíduo
consideraria absurdo não aceitar, em confiança, os
princípios estabelecidos nessas ciências”.169
A validade da observação e exposição rigorosa dos fatos
advinha dos resultados obtidos. Esse procedimento científico amadureceu na consciência humana ao longo dos séculos.
Comte identificou três grandes fases nesse processo de contínuo aperfeiçoamento do espírito. Na primeira o homem
buscava respostas seguras, pressionado pela instabilidade e
insegurança material. Nessa etapa estava à procura de princípios absolutos e causas sobrenaturais. Buscava respostas
para sua insaciável necessidade de conhecer. Comte denominou-o de estado teológico. A esse período seguiu-se o metafísico em que a explicação dos fenômenos perdeu o caráter
169
COMTE, Augusto. Opúsculos de Filosofia Social. Porto Alegre: Globo, 1972. p. 61.
147
religioso, mas não o abstrato. Finalmente o terceiro e último
degrau de evolução do espírito constituía o estado positivo.
Aí o espírito perdia a inocência primitiva e submetia-se a evidência dos fatos, buscava, então, constituir as leis descritivas das relações e semelhanças. A organização política típica desse estado de maturidade intelectiva era a República
positivista.
Augusto Comte descreveu o processo evolutivo do
espírito como o cumprimento da lei dos três estados. Por
eles passam os espíritos individualmente, bem como as
nações, em trajetória progressiva de amadurecimento. O
comtismo representa uma versão do historicismo ao
preconizar que o conhecimento passa por etapas históricas.
Afasta-se, contudo, do idealismo romântico pois não
considera a coincidência entre a história humana e a
evolução
A aplicação
do Absoluto.
das teses positivistas de Comte à realidade
social foi tentada por Júlio de Castilhos (1860-1903) na
Constituição gaúcha de 1891. Nela temos a justificação das
leis em nome da família, da pátria e da humanidade, tal como o preconizara Comte, a centralização do poder nas mãos
do executivo, em nome da autoridade, a preferência pelo
“refe-rendum” como forma de desenvolvimento da responsabilidade, uma das virtudes centrais do positivismo. A
constituição defendia ainda o livre exercício das atividades
profissionais, a liberdade de imprensa e de pensamento, mas
as associavam à responsabilidade, além de referir-se expressamente à ordem como condição necessária do progresso.
Tudo leva a crer, contudo, que o positivismo tenha adquirido características próprias nos diversos estados da federação, segundo a força maior ou menor da religião católica
ou de outra manifestação filosófica aí presentes.
A avaliação das contribuições dos pensadores positivistas, tanto quanto das manifestações culturais por influência
do positivismo, também é fenômeno desse século. Somente
recentemente pudemos compreender a contribuição de Luís
148
Pereira Barreto (1840-1923). A abertura intelectual do pensador, que procurou rever os fatos da ciência de seu tempo à
luz do eixo básico do positivismo, foi examinada por Maciel
de Barros e Ivan Lins. O historiador do positivismo listou os
principais estudos sobre Pereira Barreto concluindo que,
mes-mo sendo obrigado a abandonar um ou outro ponto do
comtismo, Pereira Barreto preservara a lei dos três estados
como a suprema regra que regia o desenvolvimento do espírito. Nesse sentido fortaleceu o positivismo abrindo-o debaixo das contribuições da ciência de seu tempo e dele retirando as ilusões de um governo de sábios atuando para além
das disputas. A Maciel de Barros coube o primoroso trabalho de separar os textos de Pereira Barreto. Dividiu-os em
livros e opúsculos, artigos publicados em “A Província de
São Paulo”, polêmica com José Bonifácio, com Nash Morton, sobre o darwinismo, a viticultura, com D. Miguel Kruse, Eduardo Prado, Arthur Mendonça, Nuno de Andrade,
Antônio Prado e Eduardo Cotrim. Ao proceder a essa divisão propiciou uma melhor compreensão dos múltiplos aspectos de sua obra.
Luís Pereira Barreto formou-se em medicina no ano de
1865 adquirindo uma formação naturalista. Pouco depois
publicaria os dois primeiros volumes de suas “Três filosofias”, Filosofia teológica (1874) e Filosofia metafísica (1876).
Não chegou a escrever o terceiro volume dedicado ao positivismo, provavelmente porque considerou esgotado o tema
nos dois primeiros volumes de seu trabalho. Desse texto nos
valemos para apresentar o básico de suas idéias.
Na perspectiva eminentemente teórica Pereira Barreto
anunciou o poder do conhecimento como agente de evolução cultural. Afirmou que “a grandeza política de uma nação
jamais procede, mas sempre segue a sua grandeza intelectu-
149
al”.170 Nessa linha de consideração o desafio principal daquele momento era abandonar os aspectos metafísicos do
pensamento a fim de melhor aderir à razão moderna. Somente um pensamento penetrado pela ciência haveria de “converter uma soberania nominal e fictícia em uma soberania
real e definitiva”.171
A razão experimental associada às virtudes praticadas pelo espírito ilustrado eram “a condição fundamental do progresso”172 sendo urgente ultrapassar o conceito de nacionalismo associado à cultura militar típica do século XVIII.
Pereira Barreto dedicou parte de seus esforços a demonstrar que eram inadequadas as considerações do ecletismo
sobre as sensações e os sentimentos. Retomou a tradição
empirista buscando estabelecer conexão entre os estados do
corpo e os sentimentos e emoções. A confiança nas emoções
e sentimentos para entender o mundo era uma crença que
contraditava o progresso do espírito humano e dificultava a
utilização “do domínio da inteligência”.173 O motivo era que
o sentimento “conduz ao indefinido das opiniões”,174 contrário “ao espírito de nossos dias que não aspira senão a um saber relativo, mas positivo, o único que interessa ao bem estar da humanidade”.175
Na proporção em que expôs uma perspectiva eminente
naturalista, apontando com competência a evolução da psicologia e o entendimento dos estados interiores, Barreto
contrapôs-se às conclusões de Ferreira França, notadamente
170
BARRETO, Pereira. As três filosofias. v. II. Rio de Janeiro: Larmmert,
1874. p. VII.
171
Idem, ibidem. p. XIV.
172
Idem, ibidem. p. XIII.
173
BARRETO, Pereira. As três filosofias. v. II. Rio de Janeiro: Larmmert,
1874. v. II. p. 76.
174
Idem, ibidem. p. 79.
175
Idem, ibidem. p. 80.
150
à evidência da revelação interior da idéia de Deus. Expondo
o equívoco do dualismo cartesiano, o pensador supôs destruir a intuição dos ecléticos. Ele apontou a fragilidade da lógica do argumento ontológico e do pensamento metafísico, em
geral. Segundo explicou:
“A metafísica é uma tentativa, um esforço para passar
da idéia à existência, e fazer do espírito humano ou
uma emanação do espírito infinito ou uma identidade
com o espírito absoluto, o que uma vez admitido implica com efeito que as nossas idéias tem a universalidade, a necessidade e a objetividade”.176
A metafísica procura transformar esses objetos puramente racionais em fatos objetivos, o que não tem qualquer justificativa como, aliás, o demonstrou Immanuel Kant.
Havendo avaliado os limites e equívocos do pensamento
metafísico e considerando o estado interior como um produto do organismo, tal como o indicara o darwinismo, o pensador julgou que podia rejeitar o deísmo, o espiritualismo e
as conclusões da filosofia eclética. Apenas um tipo de saber
permanecia válido: a ciência. “Só ela tem visto crescer, e
crescer seus limites, o seu prestígio, quando o espírito teológico-metafísico desceu rapidamente o declive de suas ruinosas construções”.177 Ele possuía confiança absoluta na ciência para promover o progresso do conhecimento humano.
A ciência ajudava a colocar precisamente os fatos e a
precisar o sentido e significado da história humana. Ao fazêlo removia “as utopias com o passado por ideal, utopias com
o futuro sem passado, ou utopias de um presente sem passado e sem futuro”.178
176
Idem, ibidem. p. 145.
BARRETO, Pereira. As três filosofias. v. II. Rio de Janeiro: Larmmert,
1874. v. II. p. 34.
178
Idem, ibidem. p. 49.
177
151
Nesse ponto cabe indagar o modo pelo qual o positivismo abordava o problema da sensação e do mundo interior.
Pereira Barreto explicou-o a partir de quatro leis, três estáticas e uma dinâmica. A primeira vinha desde Aristóteles e
encontrara em kant o interlocutor moderno, “nada há no intelecto que não tenha passado pelos sentidos”. Comte, segundo ele, com-pletou as considerações dos filósofos antes
citados ao notar que “o espírito não permanece passivo e
que a ação do ambiente externo provoca sempre mais ou
menos uma necessária reação interna”.179 A segunda lei refere-se a força da sensação externa frente às internas e lembranos Hume. Ela enuncia que “a pressão do mundo externo
prevalece sobre a nossa economia mental”.180 A terceira é
uma derivação da segunda e assim se enuncia: “a imagem
normal é a mais viva do que as que a agitação cerebral faz
simultaneamente surgir”.181
Essas três leis de funcionamento do intelecto eram presididas por um princípio dinâmico que é justamente a pedra
de toque do comtismo. “Todos os nossos conhecimentos vão
do estado teológico ou fictício ao estado positivo, passando
pelo estado abstrato ou metafísico”.182 Esse processo evolutivo era uma lei que se aplicava indistintamente ao indivíduo
e a espécie, “todas as nossas concepções, quaisquer, tanto
individuais como coletivas, passam por três estados teóricos
diferentes, que são o teológico, o metafísico e o positivo”.183
Explicado o funcionamento do entendimento, redimensionada a questão do sentimento, indicados os equívocos e li-
179
Idem. v. I. p. 211.
Idem, ibidem. p. 213.
181
BARRETO, Pereira. As três filosofias. v. II. Rio de Janeiro: Larmmert,
1874. v. I. p. 216.
182
Idem, ibidem. p. 224.
183
Idem, ibidem. p. 3.
180
152
mites da metafísica e do deísmo, resta-nos entender as características e vantagens da filosofia positivista.
O pensamento positivista representava para Pereira Barreto, uma fase especial de desenvolvimento do espírito humano. Nessa fase é que se compreendia adequadamente as
novas condições do progresso em contraposição “aos dogmas do ... século anterior”,184 nela se avaliava o saber falso,
de virtudes falsas e de anarquia certa”,185 revelava-se que a
humanidade deve todo progresso “às ciências positivas”,186
superava-se “o otimismo supersticioso, que na maior facilidade degenera em retrogradação”.187
O positivismo representava, pois, o ponto alto da filosofia moderna. “A filosofia moderna não pode deixar de assenhorear-se deste alto domínio: é de sua missão assinalar as
tendências positivas da humanidade e marcar o alvo do progresso, tendo sempre por base a ordem”.188
A originalidade de Pereira Barreto, nosso maior
positivista na avaliação de Luís Washington Vita, foi
interpretar as dificuldades do país à luz da teoria comteana.
Seu esforço intelectual ajudou a divulgar um referencial
teorético de onde sobressaía a unidade da natureza e o
imanentismo fenomenológico.
A história humana possuía, no sentir do nosso autor, a
mesma inflexibilidade da natureza, o mundo social estava
submetido à estrutura mecânica, isto é, era um “vasto centro
da natureza”.189 Por isso declarou:
184
Idem, ibidem. p. XIII.
Idem, ibidem. p. XXIII.
186
Idem, ibidem. p. XXIX.
187
Idem, ibidem. p. LXVIII.
188
BARRETO, Pereira. As três filosofias. v. II. Rio de Janeiro: Larmmert,
1874. v. I. p. LXXXIV.
189
Idem, ibidem. p. 36.
185
153
“A história se apresenta à nossa vista como um vasto
fenômeno natural, que se obedece a leis fixas e invariáveis, e que se deixa estudar pelos métodos e processos positivos tão vantajosamente como qualquer
outra ordem de fenômeno”.190
O objetivo fundamental do positivismo não era de cunho
epistemológico. Ao valer-se da ciência e anunciar a sua validade como a forma mais elaborada de conhecimento, Comte tinha em vista que o saber científico modificaria o homem
e alteraria a sociedade. Comte possuía, pois, uma intenção
ética. Ele elaborou um projeto de reforma espiritual da humanidade buscando razões sólidas para fundamentar os valores sem precisar valer-se da autoridade da religião. Essa
perspectiva moralizante do positivismo esteve presente na
filosofia de Pereira Barreto. A posse da ciência tinha indiscutível propósito ético na reforma da sociedade. Ela organizaria o progresso antes obtido através de procedimentos
pouco sistemáticos, agilizando os avanços preliminarmente
obtidos por formas inferiores do conhecimento:
“Em resumo, asseverou, melhoramentos sociais realizados apesar da teologia e sem teologia, descobertas
encadeadas umas às outras, engrandecimento do domínio do espírito e da ação da sociedade, movimento
determinado da vida política para um alvo puramente
humano, o pensamento da posteridade substituindo as
preocupações da salvação eterna, substituição da filantropia à caridade, extensão da história, diminuição das aspirações aos conhecimentos absolutos”.191
Pereira Barreto dedicou-se a explicar o modo pelo qual o
aprimoramento moral ocorria. Os valores não se transmitiam
do mesmo modo como se ensinava uma técnica ou outra forma de conhecimento. Ainda assim era possível transmitir,
190
Idem, ibidem. p. 4.
BARRETO, Pereira. As três filosofias. v. II. Rio de Janeiro: Larmmert,
1874. v. I. p. 33.
191
154
sob a forma de princípios ou noções éticas, hábitos e valores
elaborados na vivência concreta das pessoas e dos grupos.
Destacado como ideal e elevado à condição de norma moral,
os hábitos sociais tornavam-se passíveis de permanente aperfeiçoamento. O vínculo entre os comportamentos e sentimentos associados nos valores contribuía para erradicar a
falsa “opo-sição entre a razão e o coração”.192
Podemos considerar apresentado o essencial desse pensador, em resumo, uma epistemologia calcada na experiência externa, confiança na ciência para explicar a natureza e o
mundo social, uma idéia de desenvolvimento ético advindo
das relações humanas nascidas e elevadas à condição de
princípios ao longo da história, uma lei dinâmica capaz de
explicar esse processo e um diagnóstico da validade nacional à luz desse referencial teórico.
Embora sem o mesmo destaque de Pereira Barreto devese mencionar entre os positivistas brasileiros pelos menos
outros dois pensadores. O primeiro é Pedro Lessa (18591921) autor de “É a história uma ciência”(1906), “Discursos
e conferências” (1912) e “Estudos de filosofia do direito”
(2. ed., 1916). Ele distinguiu a religião, objeto da fé, do saber científico, objeto do conhecimento. Essa posição fez dele um positivista muito singular, pois não reduziu a religião
a uma etapa preliminar do conhecimento, como enunciava a
lei dos três estados de Comte. O outro nome a realçar é o de
Vicente Licínio Cardoso (1889-1931) autor de “Filosofia da
arte” (1918). Seu pensamento estético esteve vivamente influenciado pelo positivismo entendendo a criação artística
como um produto social das civilizações. Ao fazê-lo valeuse da compreensão positivista de que a criação do homem é
um resultado maior do nível de desenvolvimento social do
que da sua genialidade ou autonomia frente a esse processo.
192
Idem, ibidem. p. 67.
155
9. O liberalismo de Smith e Say
ainda necessário discutir algumas idéias básicas que
Éfundamentam o utilitarismo, especialmente aquelas
que explicam o mecanismo das trocas e o valor dos produtos. Não se trata de uma análise econômica contundente,
mas apenas da identificação de alguns princípios que parecem influenciar o pensamento de Mauá. Esses aspectos, somados ao projeto de desenvolvimento material da humanidade, conforme expunha Saint-Simon, deram ao nosso industrial uma visão de política e moral, as quais o colocavam
muito adiante da maioria dos membros da elite nacional. O
utilitarismo não chegara a formular uma nova moral para a
humanidade pautada no amor e no trabalho. Em nossa realidade não era possível prescindir dela como forma de justificar uma vida social e política voltada para a transformação
do mundo. A guinada de Cairu demonstrou a impossibilidade de adotar o liberalismo como ético-normativo.
O empenho na promoção do progresso, que era próprio
da atividade de Mauá, insere-se no contexto filosófico caracterizado pelo conhecimento e transformação da realidade
concretamente considerada. O apelo à história fora a solução
hegeliana para os impasses da filosofia pós-kantiana. Era,
entretanto, muito difícil encontrar no Brasil semelhante
compreensão da realidade, assim como confiança no destino
do homem, pois o País não desfrutava ainda dos benefícios
do desenvolvimento técnico que se espelhavam pela Europa.
Os sonhos do iluminismo estavam muito distantes de nós.
Quando a sociedade experimentou os benefícios do progresso material, começou a partilhar do otimismo que contagiou a Europa. Criou-se, então, um clima de entusiasmo e
confiança na marcha inexorável da história. Acreditaram viver um novo tempo dedicado à transformação concreta do
mundo material. O saint-simonismo, o positivismo e o idealismo contribuíram para espalhar a idéia de que a filosofia
não tinha mais nenhuma combinação hipotética a fazer, mas
156
deveria elaborar uma meditação sobre a evolução da humanidade. Essas teorias forneceram o esqueleto capaz de orientar a negociação quotidiana das ações voltadas para o desenvolvimento social, onde o jusnaturalismo de Hutcheson
não estivesse presente.
O sucesso obtido pela aplicação da ciência aos mais diversos assuntos, permitiu um redirecionamento das outras
manifestações do espírito. Saint-Simon, por exemplo, afinado com o espírito do século, confirmou a estrutura monista
da realidade, embora reconhecendo nela duas formas de fenômenos: os sólidos e os líquidos. Não há mais qualquer
vestígio do dualismo cartesiano, indicando uma espécie de
humanismo calcado no homem percebido como unidade. À
esta concepção ontológica aplicou as idéias de história e
progresso, compondo uma nova ética destituída de finalidade metafísica. Tratava-se de fazer um mundo mais eficiente
na promoção do bem estar da sociedade.
A confiança na capacidade do homem de estabelecer as
bases de seu futuro permitiu que Mauá estruturasse uma visão de mundo impregnada dos ideais iluministas. Uma versão do idealismo contribuiu para divulgar a tese de que a
história do homem é a busca da liberdade, aspecto que possibilitou a aproximação desta corrente com idéias liberais,
como na síntese de Krause. Schelling é um dos principais
divulgadores desse ideal de liberdade e progresso do homem. Também ele criticou o dualismo cartesiano e estabeleceu uma aproximação entre o mundo moral e o da natureza.
O saint-simonismo encarnou bem as idéias de progresso e
liberdade proposta no idealismo de Schelling. Por sua vez a
filosofia liberal também pretendeu estabelecer um roteiro
para realizar o ideal de liberdade e progresso, mas estabeleceu como elo de ligação entre estas variáveis a noção de
pacto. Pela importância que têm no pensamento de Mauá,
analisaremos, a seguir, as idéias básicas do ideário liberal
em sua formulação clássica de Adam Smith e Jean Baptista
157
Say. No próximo capítulo voltaremos ao saint-simonismo. A
esta altura podemos perguntar: como o conceito de utilidade
pode orientar a atividade produtiva?
“O crescimento da produtividade do trabalho, que
tem origem em mudanças na divisão e especialização
do processo de trabalho, ao proporcionar o aumento
do excedente sobre os salários, permite o crescimento
do estoque de capital variável, determinante do volume de emprego produtivo; a pressão da demanda por
mão de obra sobre o mercado de trabalho, causado
pelo processo de acumulação de capital, provoca um
crescimento concomitante dos salários e, pela melhora das condições de vida dos trabalhadores, da população; o aumento paralelo do emprego, salários e população amplia o tamanho dos mercados que, para
um dado estoque de capital, é o determinante básico
da extensão da divisão do trabalho, iniciando-se assim a espiral de crescimento”.193
O projeto de enriquecimento nacional torna-se a síntese
do ideal a ser procurado, isto é, representa o bem concreto
da maior parte da sociedade. Como isso se processa? O enriquecimento nacional passa pelo acúmulo de capitais e pelo
aumento crescente dos salários da classe trabalhadora, assim
como da sua condição de vida.
A crítica marxista194 anunciou com toda força as dificuldades do referido projeto, porquanto os interesses do capital
e do trabalho foram apresentados como antagônicos e irreconciliáveis, de tal forma que não poderiam realizar-se. Sem
pretender entrar no mérito da crítica de Marx, o utilitarismo
foi mais direto, a situação do trabalhador precisava ser avaliada pelos resultados palpáveis das mudanças sugeridas. Pe-
193
FRITSCH, Winston. Apresentação In: A riqueza das nações, de Adam
Smith. São Paulo, Abril Cultural, 1983. p. XII.
194
MARX, Karl. O capital; crítica da economia política. Revisão de Paul
Singer. Trad. de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo, Abril Cultural, 1984.
158
lo menos, se houve alguma dificuldade com a implantação
da indústria, os trabalhadores tiveram sua condição de vida
substantivamente melhorada nas décadas seguintes. A negociação dos interesses permitiu que isso ocorresse. O contraste inicial foi percebido por Tocqueville, e Paim assim explicitou o que nomeou de paradoxo da pobreza:
“Na análise do processo de formação da civilização
industrial cumpre partir do quadro real no qual tem
lugar. As condições de existência vigentes na Europa
do século XIX apresentavam-se extremamente desfavoráveis. Entre 1790 e 1820, na França, a mortalidade infantil até um ano era de 200 por mil e até 5 anos
de 310 por mil. Em 1890, a mortalidade infantil até
um ano mantinha-se muito alta e alcançava 150 por
mil. No começo daquele século, a Média de vida situava-se abaixo dos 30 anos. Além da cólera, a peste
bubônica fazia grande número de vítimas e ainda em
1894 aparecia em Hong Kong e se alastrava pelo
mundo. Mesmo no século XX, a tuberculose continuava representando mal terrível e provocaria, apenas na
França, 85 mil mortes em 1920. Entretanto, ao mesmo
tempo que de fato alargava a camada enriquecida e
expandia sucessivamente os benefícios resultantes da
difusão do saneamento básico e dos progressos da
medicina, a sociedade industrial — presumivelmente
pelo contraste que estabelecia — fazia sobressair a
miséria”.195
O estudo do desenvolvimento social nas sociedades onde
predominou o utilitarismo, especialmente a partir da Revolução Industrial, foi realizado por Himmelfard.196 A negociação propiciava a adoção de ações orientadas para a melhoria da vida coletiva.
195
PAIM, Antônio. A emergência da questão social e posição anterior a
Keynes. O Keynesianismo. In: Curso de introdução ao liberalismo. Rio
de Janeiro, 1986. p. 2/3.
196
HIMMELFARD, Gertrude. The ideia of poverty. New York, Vintage
Books, 1985.
159
O otimismo subjacente ao modelo de Smith fundamentava-se na moral puritana. Cabe, contudo, observar que ele
próprio não acreditava que o referido estado de progresso
continuasse indefinidamente. De todo modo o utilitarismo
vinha acompanhado do ceticismo quanto à possibilidade de
se fazer referências ao conjunto da história, mantendo a discussão em torno de temas específicos:
“O estado estacionário no qual a acumulação líquida
de capital tenderia a desaparecer, embora logicamente não necessário, era visto como resultado inevitável
da redução da taxa de lucro-incentivo básico à acumulação — pela exaustão das oportunidades de investimento e pelo crescimento dos salários conseqüente
de um rápido e sustentado aumento do estoque de capital”.197
Por esse caminho seguiria Keynes,198 que daria ao estado
o papel de corrigir os equívocos resultantes da confiança estrita no mercado para instituir o melhor para o maior número
de pessoas.
A obra de Adam Smith, publicada em cinco livros, apresenta nos dois primeiros um modelo de aperfeiçoamento social. De início, propôs-se a estudar o crescimento da produtividade e a distribuição da renda, elementos esses que regulavam a acumulação do capital. O autor destacou, então, a
divisão social do trabalho como um dos aspectos que conduziam à melhoria das condições sociais, ao mesmo tempo que
iniciou a discussão, relacionando a disposição humana, as
197
FRITSCH, Winston. Apresentação In: A riqueza das nações, de Adam
Smith. São Paulo, Abril Cultural, 1983. p. XII.
198
PREBICH. Introducción a Keynes. México, Fondo de Cultura, s.d.
KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da
moeda. Trad. de Mário R. da Cruz. São Paulo, Abril Cultural, 1983.
Idem. Inflação e deflação. Trad. de Rolf Kuntz. São Paulo, Abril
Cultural, 1983.
160
trocas e o progresso. E assim se expressou à propósito da
divisão do trabalho:
“O maior aprimoramento das forças produtivas e a
maior habilidade, destreza e bom senso com os quais
o trabalho é em toda parte dirigido ou executado parecem ter sido resultados da divisão do trabalho”.199
A conseqüência da divisão do trabalho era o desenvolvimento ou o avanço da qualidade de vida da comunidade
humana:
“É a grande multiplicação das produções de todos os
diversos ofícios multiplicação essa decorrente da divisão do trabalho que gera, em uma sociedade bem dirigida, aquela riqueza universal que se estende até às
camadas mais baixas do povo”.200
A noção de valor, conforme a formulação de Smith, não
se limitava à teoria da demanda-valor de uso, que se mantém
limitada aos preços de mercado. Smith introduziu a idéia
dos custos de produção, onde valor se encontra embutido no
preço final do produto, concepção essa que dominaria as teorias de progresso material.
“Nenhum comentário sobre o livro primeiro de A riqueza das nações pode omitir menção às inconsistências formais da análise de valor nele apresentada,
fruto da profunda imprecisão verbal de Smith em seu
capítulo V e fonte de controvérsias que tornaram ainda mais obscura a essência da teoria smithiana dos
preços”.201
199
SMITH, Adam. A riqueza das nações. Trad. de Luis João Baraúna. São
Paulo, Abril Cultural, 1983. p. 41.
200
SMITH, Adam. A riqueza das nações. Trad. de Luis João Baraúna. São
Paulo, Abril Cultural, 1983. p. 45.
201
FRITSCH, Winston. Apresentação In: A riqueza das nações, de Adam
Smith. São Paulo, Abril Cultural, 1983. p. XIV.
161
Smith havia proposto que o valor de um bem estava estritamente ligado à quantidade de trabalho que corresponde a
ele, isto é, que pode ser oferecida por ele. David Ricardo
procurou estudar como foi possível formular semelhante
concepção de valor.
Tal teoria supõe que o processo de troca se baseia numa
comunidade produtiva que dividia o trabalho e, ao intercambiar os produtos, estabelecia como regra de troca a quantidade de trabalho gasto na confecção dos mesmos. Ricardo
verificou então que isso somente aconteceria se não existisse o lucro como objetivo da produção e que, levando-se em
conta esta variável, a afirmativa anterior perderia a sua validade. Wilson e Skinner,202 fazendo uma releitura do capítulo
VI da grande obra de Smith, recolocaram o problema e buscaram identificar o propósito original do autor, que fazia suas afirmações levando em conta as sociedades primitivas. O
homem trabalhava basicamente para atender seus interesses
imediatos e garantir uma certa projeção social.
Fundamental para compreensão do trabalho de Smith foi
identificar as principais influências que se conjugaram para
produzir o condicionante histórico e cultural, base a partir
da qual Smith passa a meditar o progresso. No sentir de
Rosseti precisamos compreender que:
“Por defender o individualismo e propor o liberalismo econômico, o pensamento de Adam Smith tem diversos pontos em comum com a teoria dos fisiocratas.
Todavia, os analistas da evolução do pensamento econômico geralmente não admitem que a obra de
Smith tenha sido diretamente influenciada pela fisiocracia. É verdade que, enquanto se achava em Paris,
Smith manteve diversos contatos com Quesnay e Turgot, mas o fato é que ele construiu em alicerces próprios o seu esquema de análise da realidade econômi-
202
WILSON T. e SKINNER, A. S. The market and the state: essays in
honour of Adam Smith. Oxford, s. e. p. 204 e segs.
162
ca. Ademais, a teoria clássica não nasceu de pressões
coletivas geradas por convulsões sociais, mas, sim, da
análise das possibilidades de manutenção da ordem
econômica, através do liberalismo, e ainda da interpretação das mudanças tecnológicas produzidas no
sistema econômico pela Revolução Industrial”.203
Não podemos desconhecer a influência filosófica de Grotius, Puffendorf, Shaftesbury e Hutcheson na organização do
sistema de Smith. Hutcheson foi professor de Smith e lhe
transmitiu as teses de filosofia moral típicas do jusnaturalismo puritano. Para nosso propósito basta considerar a teologia racionalista como a teoria segundo a qual o Universo
possui uma certa ordem de origem divina, porém cognoscível pela razão. Essa ordem natural estende-se ao mundo moral através de normas de conduta individual que devem ser
seguidas para que a vontade divina, que lhes é subjacente,
possa ser cumprida. Essa moral protestante marcadamente
otimista crê que existia uma mão divina, que por trás da atividade individual, promovia o equilíbrio nas relações humanas. Desta forma, os possíveis desvios decorrentes das injustiças acabariam corrigidos e a soma da produção dos diferentes setores do processo econômico acabariam por constituir a riqueza das nações. A riqueza e prosperidade eram indicativos de bem social.
Para elaborar o seu sistema, Smith agiu segundo a tradição empirista. Não raciocinou metafisicamente; ao contrário, foi observando e anotando as principais reações do mercado e sobre elas refletiu segundo o espírito da ciência moderna. Ele observou as trocas efetivadas em sociedade. Gastou na composição de sua obra A riqueza das nações quase
203
ROSSETI, José Pascoal. Introdução à economia. 2. ed. São Paulo, Atlas, 1985 p. 89.
163
trinta anos, demonstrando que se tratava de um trabalho paciente de organização, conforme observara Schumpeter.204
Podemos identificar em seu pensamento influência também significativa de David Hume205 e de Montesquieu.206
Esses autores permitiram-lhe fazer uma leitura nitidamente
empirista do jusnaturalismo, projeto intelectual que manteve
a noção de ordem natural, porém captável apenas pela razão
experimental, considerada a base epistemológica de todo o
saber. Esse aspecto foi observado por Bittermann.207 Caberia
a mão invisível prover a justiça que individual ou racionalmente não haveria como alcançar:
“Por outro lado, já na Teoria de Sentimentos Morais,
Smith afasta-se decisivamente da componente altruísta do jusnaturalismo de Hutcheson no que concerne à
análise da ética das relações econômicas, propondo
em seu lugar a justificativa moral da defesa do interesse próprio nessa esfera das relações humanas, com
base na idéia de que da busca do interesse individual
resultam benefícios sociais, noção já exposta de forma contundente por Mandeville em sua Fábula das
abelhas, publicada entre 1714 e 1729”.208
Os instrumentos de abordagem do desenvolvimento com
base no princípio utilitário foram estudados e aperfeiçoados
durante todo o século XIX, quando, além de novos problemas, a filosofia liberal teve que se deparar com as críticas
204
SCHUMPETER, Joseph Alois. Fundamentos do pensamento econômico. Rio de Janeiro, Zahar, 1968.
205
HUME, David. Escritos sobre economia. Trad. Sara Albiere. São Paulo, Abril Cultural, 1983.
206
MONTESQUIEU, Barão de la Bréde e de. Do espírito das leis. São
Paulo, Abril Cultural, 1973.
207
BITTERMANN, H. J. Adam Smith,s empiricism and the law of nature.
In Journal of Political Economy, 1940.
208
FRITSCH, Winston. Apresentação. In: A riqueza das nações, de Adam
Smith. São Paulo, Abril Cultural, 1983. p. XVII.
164
socialistas. O liberalismo acabou incorporando a idéia de
representação e constituindo-se no veículo político das sociedades democráticas e pluralistas. A verdade seria construída no estabelecimento do consenso. O estudo filosófico do
liberalismo é efetivado por vários autores e todos realçam o
fato de que o liberalismo acabou incorporando as grandes
aspirações da classe trabalhadora, ao mesmo tempo que conservara a livre-iniciativa e mantivera a experiência de aperfeiçoamento das instituições via negociação.209 Era preciso
constituir consensualmente as bases da convivência coletiva.
O liberalismo político desenvolveu-se em sociedades pluralistas que possuíam claro sistema moral e cultural, sociedades que enfatizaram a eficácia das decisões na elaboração do
valor do indivíduo e da democracia.
“O capitalismo democrático não é um sistema de livre
empresa apenas. Ele não pode ser posto à margem da
cultura moral que alimenta as virtudes e valores sobre
os quais repousa sua existência. Ele não pode viver à
margem de uma política entregue, de um lado, ao governo limitado e, de outro lado, a muitas atividades
legítimas sem as quais uma economia própria é impossível. A sabedoria prática inarticulada, embebida
no sistema político e no sistema moral-cultural, tem
afetado profundamente as realizações do sistema econômico. Tanto as decisões políticas quanto o clima
moral encorajam este desenvolvimento. Em várias épocas da História americana, o sistema político e o
209
CF. BELL, John Fred. História do pensamento econômico. Rio de Janeiro, Zahar, 1961.
ZAMORA, Francisco. Tratado de teoria econômica. México, Fondo de
Cultura Economica, 1953.
HEILBRONER, Robert L. Introdução à História das idéias econômicas. Rio de Janeiro, Zahar, 1966.
RICHARDSON, G. B. Introdução à teoria econômica. Rio de Janeiro,
Zahar, 1974.
MILL, John Stuart. Princípios de economia política. México, Fondo de
Cultura Economica, 1943.
165
sistema moral-cultural intervieram de modo sério, positiva e negativamente, no sistema econômico. Cada
um dos três sistemas modifica o outro”.210
O sistema ético-político formulado por Smith seguia a
tradição empirista britânica no que se referia à metodologia
empregada para a sua elaboração. Deve-se realçar a importância atribuída aos fatos concretos. Houve um grande aumento na produção agrícola, um substancial crescimento na
produção industrial, ao mesmo tempo que se operava a revolução no sistema de transportes. Entretanto, o resultado econômico, considerado isoladamente, é muito estreito para entendermos toda a pujança do liberalismo sistematizado por
Smith. Por esse motivo, procuramos identificar o contexto
cultural e o fundamento moral que, assim como as questões
de natureza econômica, contribuíram para a estruturação da
teoria formulada em A riqueza das nações. Podemos então
compreender o sistema a partir de sua gênese empirista e do
fundamento moral ensejado pela ética calvinista, cuja combinação peculiar própria do iluminismo britânico tinha características bastante diferenciadas da versão iluminista propagada no continente. O que foi dito indica que a idéia de
progresso concebida sob a égide do utilitarismo era muito
distinta da elaborada pelo idealismo alemão, pelo historicismo de Condorcet, ou ainda no novo cristianismo de SaintSimon.
Um dos teóricos que estudaram o pensamento de Smith,
e que acabou por tornar-se adepto e defensor de suas teses,
foi o francês Jean Baptiste Say, um dos autores preferidos
de Mauá. Além de divulgador das teses de Smith,
“Say destaca-se por suas discussões em torno do valor e por ter formulado uma teoria geral sobre o au-
210
NOVAK, Michael. O espírito do capitalismo democrático. Trad. de
Hélio Pólvora. Rio de Janeiro, Nórdica, 1985. p. 85.
166
tomatismo das forças auto-reguladoras das economias de mercado”.211
Em nossa tentativa de estruturar as variáveis mais significativas que compõem o pano de fundo para a compreensão
da vida e do pensamento de Mauá, cremos necessário discutir um pouco das correções propostas por Say, porque foi
seguramente através dele que Mauá começou a aprofundar
conceitos relativos ao progresso que experimentava na vida
prática.
Como estudioso do projeto de Smith, Jean Baptiste Say
pertenceu à geração dos que contribuíram efetivamente para
a consolidação dos princípios utilitários, expressos por Smith. Dessa geração faziam parte também T. R. Malthus
(1766-1829), David Ricardo (1772-1823) e Sismonde de
Sismondi (1773-1842). Para Tapinos, Say divulgou a confiança na capacidade humana de tratar cientificamente a questão das trocas:
“De todas as contribuições de Jean Baptiste Say, talvez a menos conhecida tenha sido a de atribuir à ciência econômica uma função mais ampla do que a de
orientar o príncipe na administração de seu reino. Ele
não escreve para um público restrito. Preocupa-se intensamente com a divulgação da informação econômica. Com Say, a Economia Política torna-se a ciência dos produtores, de todos os produtores”.212
Décio Alvim, ao se reportar à contribuição intelectual de
Say, fornece-nos excelente pista para investigar a influência
de Saint-Simon no pensamento de Mauá. Este assunto constituirá o tema básico da redação do quinto capítulo do pre-
211
ROSSETI, José Pascoal. Introdução à economia. 2. ed. São Paulo, Atlas, 1985. p. 91.
212
TAPINOS, Georges. Prefácio. In: Say, J. B. Tratado de economia política. Trad. de Rita Valente Correia Guedes. São Paulo, Abril Cultural,
1983.
167
sente estudo, parecendo-nos, todavia, oportuno fazer aqui
uma ligeira alusão a ele. Alvim identificou no projeto de
Say, o propósito de constituir uma ciência para tratar dos assuntos econômicos, influência do positivismo. Aliás, a essa
influência já se havia referido Alberto de Faria213, mas sua
suposição pareceu equivocada a Castro Rebello. Segundo
observou Alvim, J. B. Say incorporou uma metodologia matemática, principalmente a noção de ciência rigorosa que ele
propôs em seu estudo. Certamente teria tido influência do
industrialismo de Saint-Simon, que fora o precursor do positivismo social, além e inegavelmente de Smith, de quem absorveu as noções básicas de seu modelo. Assim Alvim percebeu que a ética utilitária seria adaptada ao modelo francês:
“Influenciado pelas idéias positivistas, J. B. Say quis
afastar da ciência econômica toda especulação, todo
subjetivismo, todo apriorismo, toda metafísica, e com
esta orientação aplicou os princípios de Adam Smith
no sentido de um verdadeiro industrialismo, com o
mínimo de intervenção do Estado”.214
Retornando à discussão das principais contribuições de
Say, precisamos observar que sua concepção de valor acabou consagrada, devido à distinção que fazia do processo e
avaliação das etapas: produção, repartição e consumo das
riquezas. Ele entendia que o valor agregava importantes elementos do processo produtivo, isto é, a de que os preços
precisariam considerar o poder de compra da população.
Tornando-se um estudioso e seguidor de Smith, J. B. Say
incorporou a visão da natureza e das relações humanas que
haviam sido formuladas por Hutcheson e que permaneciam
subjacentes na ética utilitária, aspecto de que, aliás, já tra-
213
FARIA, Alberto de. Mauá; Irineo Evangelista de Souza, Barão e Visconde de Mauá. 2. ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1983.
214
ALVIM, Décio Ferraz. História das doutrinas econômicas. S. P., Saraiva, 1955. p. 73.
168
tamos. Vale, contudo, retomar e aprofundar a concepção antropológica de Hutcheson, uma vez que a sua compreensão
facilita a leitura de Say. A reflexão de Hutcheson sobre o
homem foi sintetizada magnificamente por Taylor:
“A Teoria de Hutcheson dos fatores existentes na natureza, da experiência, da reflexão e da motivação
humanas, agindo para tornar as ações dos homens
boas, isto é, conducentes ao bem e à felicidade comuns e gerais, era uma teoria complexa que, embora
atribuísse papéis muito importantes à benevolência
universal e à razão e, assim, a esforços deliberados e
o mais possível baseados e racionais, por todos os
homens bons individualmente, para agirem de acordo
com as exigências de maior felicidade de todos os
homens coletivamente; entretanto, ela atribuía um
papel ainda importante, para ajudar a obter o mesmo
resultado final, aos sentimentos julgadores, intuitivos
e éticos no sentido moral natural humano que capacita os homens para aprenderem (perceberem ou sentirem) e criarem ou realizarem a ordem moral natural
em suas vidas e sociedades, como seu sentido estético
os capacita a criar e apreciar esteticamente obras
bem ordenadas de belas artes e, na ciência pura, a
compreenderem o plano da ordem em toda a natureza”.215
A formulação teórica de Say tinha além desta sustentação
ética outras influências bem nítidas. Ele enfatizou a noção
de utilidade-valor e não a idéia corrente entre alguns liberais, de valor-trabalho. A concepção de utilidade-valor é
bastante antiga na cultura ocidental, remontando a Aristóteles, mas em sua versão moderna foi formulada e defendida
por Galiani, em meados do século XVIII. Esse pensador observou, muito antes que Smith, o problema do preço das
mercadorias consideradas inúteis e que tinham um preço
215
TAYLOR, Overton H. História do pensamento econômico. São Paulo,
Fundo de Cultura, 1965. vol. I, p. 77.
169
muito superior ao daquelas consideradas imprescindíveis.
Muito antes que Smith considerasse o grau de escassez como elemento fundamental no preço dos produtos, já Galiani
afirmava que o grau de utilidade dependia do grau de saciedade, isto é, o oxigênio é útil mas, como existe em grande
quantidade, seu valor econômico é nulo. Há uma outra influência bastante nítida no pensamento de Say. Trata-se do
empirista francês Étienne Bonnot de Condillac, que, desvinculando-se da concepção de valor dos fisiocratas, propôs
como possuindo valor tudo o que tinha utilidade, não importando o preço. Com Condillac, as teses do utilitarismo britânico alcançou maturidade na França:
“Say faz igual uso dessa idéia, não Só contra o que
ainda restava da fisiocracia na França, como também
contra os traços dessa influência na obra de Smith e
Malthus. Ambos haviam revelado uma inclinação anacrônica ao atribuírem lugar de destaque à agricultura e ao distinguirem entre a atividade produtiva da
força de trabalho, visível no produto físico, e o trabalho improdutivo dos administradores, técnicos etc.
Quando se considera o valor como determinado pela
utilidade, todos os fatores de custo são reconhecidos
como produtivos. Cada um dos fatores de produção
contribui com alguma parcela para o valor do produto, já que cada um deles tem certa utilidade”.216
Com esses elementos, Say reviu a papel do industrial na
sociedade, considerando-o como o encarregado de prever as
necessidades dos consumidores e planejar o processo econômico. Ao valorizar o trabalho do industrial, Say aproximou-se da doutrina social de Saint-Simon, que analogamente conferia destaque aos industriais. O industrial ganhou,
com Say, um papel fundamental, seu trabalho seria considerado produtivo, ao contrário do que pensavam os fisiocratas,
216
HEIMANN, Eduard. História das doutrinas econômicas. 2. ed. Rio de
Janeiro, Zahar, 1971. p. 115.
170
por exemplo. A idéia de trabalho ampliava-se e passava a
incluir os aspectos voltados ao planejamento.
“É o primeiro livro que ofereceu uma exposição didática, seguindo um plano rigoroso do conjunto da ciência econômica”.217
Nogaro observou que o processo econômico foi dividido
e tratado em partes: primeiro a produção, depois a distribuição e por fim o consumo. Já havíamos referido à preocupação de Say em compor um sistema econômico, seguindo o
ideal de uma ciência positiva, mas a observação de Nogaro
destacou o aspecto prático da obra, que foi escrita para que
todos os homens de negócio pudessem compreendê-la,
mesmo considerando o fato de que alguns se ocupassem de
fundamentar. Acerca da concepção de ciência que Say possuía, Heiman comentou:
“A tese de Say leva os ensinamentos de Smith à sua
conclusão lógica, já vimos como Smith protestou contra a ansiedade dos fisiocratas a respeito da proporcionalidade do fluxo circular de mercadorias: culpara-os por ignorarem as tendências autocuradoras do
organismo; Say também acentuou a tendência autocriadora mas esta é antes mecânica do que biológica,
porque a lei não admite exceção. Na verdade, o próprio Say fez uma referência explícita à Física newtoniana, como a analogia adequada para a ciência da
economia”.218
Com isso, Say reivindicou a identidade da ciência econômica, que, embora submetida aos princípios gerais da ciência, não se confundia com a política. Essa ciência também
não estudava a agricultura, o comércio e as artes, mas con-
217
NOGARO, B. Le developpment de la pensée economique. Paris,
LGDJ, 1944. p. 70.
218
HEIMANN, Eduard. História das doutrinas econômicas. 2. ed. Rio de
Janeiro, Zahar, 1971. p. 117.
171
centrava a atenção no fenômeno da produção. Apesar de
procurar separar a economia da política, ele reconheceu que
nação alguma conseguiu tornar-se próspera antes de estabelecer um governo regular. Ao governo caberia o papel de segurança dos bens acumulados, para que o processo de produção pudesse crescer e aumentar o bem-estar da população.
Assim se referiu Say ao papel do governo:
“Quando a autoridade pública não é ela própria espoliadora, fornece às nações o maior dos benefícios:
o de defendê-las dos espoliadores. Sem essa proteção,
que traz o socorro de todos às necessidades de um Só,
é impossível conceber qualquer desenvolvimento importante das faculdades produtivas do homem, das
terras e dos capitais; é impossível conceber a existência dos próprios capitais, pois eles são apenas valores
acumulados e que trabalham sob a salvaguarda da
autoridade pública. É por essa razão que jamais nação alguma chegou a um grau qualquer de opulência
sem estar submetida a um governo regular; é à segurança fornecida pela organização política que os povos civilizados devem não somente as inúmeras e variadas produções que satisfazem suas necessidades,
mas também as belas artes, os lazeres, frutos de algumas acumulações, e sem os quais não poderiam
cultivar os dons do espírito nem, por conseguinte, atingir toda a dignidade que a natureza do homem
comporta”.219
O papel do Estado passara a ser portanto, o de guardião
da atividade produtiva. Ao propor que o enriquecimento individual geraria a riqueza coletiva, tanto Smith quanto Say
entendiam que a própria harmonia da natureza estabeleceria
o equilíbrio necessário e corrigiria possíveis distorções decorrentes do processo produtivo. Nenhuma preocupação havia de separar a riqueza coletiva da individual, como fizeram
219
SAY, Jean Baptiste. Tratado de economia política. Trad. de Balthazar
Barbosa Filho. São Paulo, Abril Cultural, 1983. p. 135/6.
172
os moralistas do pombalismo. Já tivemos oportunidade de
mostrar que este referencial trazia como pano de fundo a ética do trabalho, implícita na mentalidade protestante. O que
acontece quando este mecanismo regulador é questionado?
Passa-se a duvidar da responsabilidade dos indivíduos na
produção de riqueza, fato que conduz inevitavelmente ao autoritarismo, com todos os inconvenientes decorrentes do
processo de centralização e controle da produção. A filosofia liberal, apesar de estabelecer pela primeira vez um projeto de estudo científico do processo econômico, não isentou o
sujeito da responsabilidade de produzir e reservou aos produtores um papel de liderança, papel esse que também lhes
atribuiu Saint-Simon. O tratamento científico dos dados econômicos, num ambiente em que não se discute o problema
da produção também do ponto de vista moral, conduz ao totalitarismo.
No caso específico de Say, além do debate acerca do valor, decorrente do utilitarismo, é fundamental para a compreensão do seu pensamento destacar o seu Diálogo com
Malthus220 e Sismondi221, pois foram as críticas destes últimos que lhe permitiram definir com mais rigor as suas idéias.
Para uma melhor compreensão da lei de Say é preciso entender o estabelecimento do valor no mundo em que reina a
divisão de trabalho.
“Numa tal economia, os indivíduos Só oferecem os
seus serviços para poderem comprar produtos, e os
empresários Só produzem para satisfazer as necessidades dos consumidores. É claro, então, que o valor
(valor de troca em termos reais) dos bens produzidos
220
MALTHUS, T. R. Principles of political economy considered with to
their pratical aplication. 2. ed. Londres, s. e., 1836.
221
SISMONDI, S. de. Les nouveau principes d’economie politique. 3. ed.
Genebra, s. e., 1987.
173
é identicamente igual ao valor das remunerações dos
serviços produtores, que é por sua vez igual ao total
dos bens e serviços comprados”.222
A proposta de Say era explicar a composição do valor
como resultado entre a oferta e a procura das mercadorias,
mas isso entendido como uma tendência natural do mercado
dentro de um prazo razoável. Desequilíbrios parciais e setoriais são sempre possíveis e acontecerão, porém haverá um
retorno ao equilíbrio depois de algum tempo. Say salientava
que a mão invisível operava dentro de um período de tempo,
isto é, a correção natural não era instantânea.
O equilíbrio dependia também de outros fatores. Fundamental seria a livre-escolha da profissão assim como a liberdade de produção, pois os trabalhadores livres iriam produzir dentro dos limites desejados. Ingerência externa ao processo comprometeria o equilíbrio, fato que realmente vem
acontecendo ao longo da História da humanidade. A idéia de
equilíbrio percorre toda a obra de Say e desqualifica o esforço dos Estados por assumirem o controle do desenvolvimento. Muitos povos não permitiram que o processo econômico tivesse uma evolução natural, conforme verificou
Say:
“Lembremos que uma lei do Egito prescrevia ao filho
adotar a profissão do pai. Significava, em determinados casos, prescrever a criação de produtos além do
que a situação da sociedade exigia; era obrigar à ruína para obedecer à lei e a prosseguir nas mesmas
funções produtivas, quer as pessoas possuíssem ou
não capitais necessários. Tudo isso é absurdo”.223
222
TAPINOS, George. Pref. In: Tratado de economia política. Trad. de
Rita Valente Correia Guedes. São Paulo, Abril Cultural, 1983.
223
SAY, Jean Baptiste. Tratado de economia política. Trad. de Balthazar
Barbosa Filho. São Paulo, Abril Cultural, 1983. p. 47.
174
Um aspecto importante do pensamento de Say é a idéia
de progresso, variável certamente originada do contato com
a tradição historicista e tematizada pelos idealistas e iluministas, porquanto ausente na ética utilitária. Em filosofia, a
referida tradição segue a sistematização de Joaquim de Fiori
e teve em Hegel224 um dos maiores defensores. Para estes
autores, entre outros, a história seguia uma rota de progresso, possuindo uma finalidade específica, que em Fiori era a
implantação do reino divino e para Hegel, a realização do
espírito. Para Say, a finalidade do progresso era a implantação da técnica, resultado das leis da natureza. Se por um lado Say tem com os socialistas este ponto de convergência, a
saber, que a história tem uma referência além da experiência, por outro lado diverge deles pela confiança que revela
na negociação, que geraria um crescimento da produção e do
nível de emprego, e ainda facilitaria o consumo devido à
baixa dos preços. Ao referir-se à introdução de novas máquinas, conseqüência do progresso técnico, assim se expressou Say:
“...o homem realiza uma conquista sobre a natureza,
obrigando as forças naturais, as diversas propriedades dos agentes naturais a trabalharem para sua utilidade; o ganho é evidente. Sempre há aumento de
produto ou diminuição dos custos de produção. Se o
preço venal do produto não baixa, essa conquista beneficia o produtor sem nada custar ao consumidor. Se
o preço baixa, o consumidor tira proveito de todo
montante da baixa, sem que isso se faça às expensas
do produtor”.225
224
HEGEL, G. F. Wilhelm. Introdução à História da filosofia. Trad. de
Antônio Pinto de Carvalho. Coimbra, Armenio Amado, 1980.
225
SAY, Jean Baptiste. Tratado de economia política. Trad. de Balthazar
Barbosa Filho. São Paulo, Abril Cultural, 1983. p. 93.
175
Neste contexto era fundamental bem compreender o papel do industrial, que, como já destacamos, era o de
intérprete das necessidades sociais. Esse papel de destaque
deveu-se, sem dúvida, à sua contribuição ao progresso
material que, na formulação de Saint-Simon, tinha, tanto
quanto para Say, pa-pel relevante. Entretanto, para SaintSimon, o progresso material era programado por um
conselho, enquanto que, para Say, tinha uma racionalidade
própria, inerente à natureza, que deveria ser decodificada
pelos industriais, assim como na síntese de Smith a soma
dos interesses particulares se identificava com o geral, e a
utilidade econômica, com a social. O industrial, ao procurar
produzir o melhor, com o menor custo, obtendo maior lucro,
interpretando os desejos do mercado, tornava-se o ponto de
equilíbrio de todo o sistema. Não havia necessidade de
programas centralizados como propôs Saint-Simon e
também defendera Pombal.
Esses pontos fundamentais de sua teoria produziram um
grande avanço na economia política, embora suas observações tenham sido aperfeiçoadas. David Ricardo226 utilizou a
lei de Say para transformá-la no suporte do liberalismo, enquanto John Stuart Mill227 distinguiu a economia mercantil
da monetária. Na primeira, a lei de Say seria sempre válida,
enquanto na segunda seria válida apenas a longo prazo.
Os maiores críticos de Say são, sem dúvida, os marxistas,
que viram nele um comentador de Smith, no que , aliás, têm
razão. Contudo, é necessário reconhecer-lhe algum mérito,
especialmente depois da adesão de Ricardo às leis de mercado. O seu Tratado, assim como A riqueza das nações, de
Smith, rompem com o mercantilismo, reagindo contra as i-
226
RICARDO, D. Princípios de economia política e tributação. Trad.
Paulo Henrique Ribeiro Sandroni. São Paulo, Abril Cultural, 1982.
227
MILL, J. Stuart. Princípios de economia política. Trad. de Luis João
Baraúna. São Paulo, Abril Cultural, 1982.
176
déias simplicistas pretendendo construir uma ciência da economia. O próprio Walras228 tem uma concepção de equilíbrio muito próxima da de Say e isso fica claro, se nos abstrairmos da sua formulação matemática e conseguirmos lê-lo
na descrição literária dos seus princípios.
O problema do equilíbrio na composição do valor, conforme a formulação dos autores clássicos, já foi bastante estudada. A interpretação mais adequada desse princípio parece a que foi apresentada por Schumpeter229. Esse autor
interpretou a lei de Say como uma equação e não como um
princípio de identidade, tal como fizeram Keynes e Lange230. Neste caso ela fica limitada ao equilíbrio entre a procura e a oferta da moeda, porém a teoria ganha em consistência e parece mais de acordo com o propósito inicial de J.
B. Say. A volta ao projeto de Say parece indicar-nos o que
ele pretendia e, se pudermos superar uma revisão formal de
sua obra, acabaremos por concluir que
“Say foi o verdadeiro visionário do século XIX. Mais
do que qualquer outro, ele pressentiu a verdadeira
distinção entre os agentes produtivos e os improdutivos, e não a diferenciação de Smith entre os produtivos materiais e os outros, ou a dicotomia marxista entre os assalariados e os não assalariados. Não existem obstáculos insuperáveis para o desenvolvimento.
Não existem limites para o enriquecimento de uma
nação. O bem-estar de um país depende da sua população ativa, do progresso técnico, do dinamismo de
228
WALRAS, Leon. Compêndio dos elementos de economia política pura. Trad. de João Guilherme Vargas Netto. São Paulo, Abril Cultural,
1983.
229
SCHUMPETER, Joseph A. Teoria de desenvolvimento econômico.
Trad. de Maria Silvia Possas. São Paulo, Abril Cultural, 1982.
230
LANGE, O. Say’s Law: A Restatement and Criticism. In: Studies in
mathematical economies and econometrics. by O. LANGE. Chicago,
University, Department of economics, 1942.
177
seus empresários. Essa é a verdadeira mensagem de
Jean Baptiste Say”.231
Esse otimismo e confiança no progresso é um dos elementos que marcaram profundamente as ações do Visconde
de Mauá em toda a sua vida. As suas idéias do valor estavam baseadas na ética utilitária. Existem, entretanto, variáveis que precisavam de uma outra explicação, tais como:
uma motivação subjacente aos empreendimentos, uma nítida
opção pelo desenvolvimento industrial, uma retidão moral
típica dos ideais da nobreza, ou, conforme prefere o próprio
Mauá, da velha escola de mentalidade positivista, uma espécie de panteísmo humanista, uma obsessão pelo desenvolvimento material, uma crença quase infinita na capacidade
do homem, de resolver os próprios problemas, um desejo
confessado de converter as lideranças políticas de seu tempo
ao seu modelo de desenvolvimento material, uma atitude de
respeito diante da velha Europa, sem entretanto, nenhuma
idéia de dependência, uma atitude sempre magnânima diante
das necessidades sociais e dos projetos econômicos. Mauá
viveu e trabalhou como se o desenvolvimento material do
País dependesse da modificação das estruturas do estado.
Efetivamente defendia o lucro dos investimentos, que entendia como justa retribuição pelo trabalho, o que não invalida a tese de que se sentia um industrial com ideais saintsimonianos.
No próximo capítulo nos ocuparemos dos aspectos principais da filosofia de Saint-Simon, quando explicaremos os
tópicos mais significativos de seu pensamento. O filósofo
proclamou o nascimento de uma religião universal, apta a
conduzir a humanidade para um período de paz e felicidade.
A ética saint-simoniana significava uma alternativa para a
231
TAPINOS, George. Pref. In: Tratado de economia política. Trad. de
Rita Valente Correia Guedes. São Paulo, Abril Cultural, 1983.
178
superação do que era, no sentir do pensador, um dos momentos críticos da história humana. A adoção do humanismo utópico foi a estratégia saint-simoniana para vencer a
falta de referência ou fundamento, numa filosofia que proclamava ser o progresso fruto da dinâmica do organismo social.
179
CAPITULO IV
ASPECTOS FUNDAMENTAIS DO FISIOLOGISMO
SOCIAL DE SAINT-SIMON
obra232 de Saint-Simon considerou os compromissos
sociais numa ótica concreta, nela a individualidade
não separava o sujeito dos destinos da comunidade. Caso
fosse rompida essa relação corria-se o risco de cair num atomismo irreal ou num sistema totalitário. Em 1802, escreveu Cartas de um habitante de Genebra a seus contemporâneos, em que começou a discutir os princípios básicos de
sua teoria social. Entre 1807 e 1808, procurou dar ao seu
pensamento uma perspectiva filosófica. Foi nesta ocasião
que escreveu Introdução aos trabalhos científicos do século
XIX, Memória sobre a ciência do homem e Trabalho sobre a
gravitação universal.
Quando advém a reação conservadora, Saint-Simon é a
cabeça visível do denominado socialismo utópico. Em 1817
e 1818, aparecem quatro volumes de seus trabalhos sob o título A indústria; considerações políticas, morais e filosófi-
A
232
SAINT-SIMON, C. H. Ouvres choisies. III vol., Bruxelas: Lemonnier,
1859.
180
cas em interesse de quantos se dedicam ao trabalho útil e
independente.
“Em 1819, escreve O político, em 1819 e 1820 começa a publicar O organizador (onde apareceu, por exemplo, sua famosa parábola);* 1821 e 1822, Sobre o
sistema industrial; em 1823 e 1824, O catecismo dos
industriais; em 1825, Opiniões literárias, filosóficas
e industriais. A última obra de Saint-Simon é O Novo
Cristianismo (1825)”.233
A obra de Saint-Simon sustenta-se numa trilogia que
constitui a base de seu pensamento: a superação do deísmo
pelo fisicismo, a elaboração de uma doutrina econômica e a
sociabilidade filantrópica de onde deriva uma moral terrestre. Esses três humanismos saint-simonianos coexistem dentro de uma mesma obra, funcionando como pilares de um
único sistema. Para bem entendê-lo, precisamos situá-lo no
esforço teórico de promover uma aproximação dos destinos
humanos com compromissos éticos, isto é, o homem não
podia se resignar diante dos fatos, antes precisava alterá-los
como dever ético.
O núcleo fundamental do sistema saint-simoniano reside
na idéia de que a sociedade precisava ser reorganizada. O
saint-simonismo constituiu-se, por isso, em um projeto de
reforma social, que incluía, por um lado, uma reestruturação
das instituições e, por outro, uma mudança na maneira de
conceber a vida e a realidade, fundamentada numa interpretação da própria história. O recurso de valer-se de uma explicação historicista possui raízes profundas no seio da cul-
*
NOTA: Referimo-nos àquela parábola na qual Saint-Simon conjectura
sobre os possíveis efeitos da súbita morte da nobreza fidalga. Ver adiante
p. 214
233
DYNNIK, M. A. et al. História de la filosofia. De la revolucion burguesa de Francia de 1789 al nascimiento del marxismo. México, Grijalbo, 1965. p. 137.
181
tura ocidental, o que demonstraremos adiante. Por enquanto,
apro-ximaremos o saint-simonismo apenas da filosofia de
Condocert. Este pensador inscreveu-se entre os que privilegiavam a história humana. A história tornara-se um movimento progressivo em contraposição ao conceito estóico segundo o qual ela era um permanente processo de repetição
do ciclo humano. A idéia de história como progresso exigiu
a apresentação de um critério de verificabilidade desse processo e Condorcet o concebeu a partir dos descobrimentos
científicos e técnicos no quadro da evolução humana. Em
sua filosofia da história, Condorcet, refletindo o espírito de
sua época, propugnou que a nova era para a qual o homem
evoluía se caracterizaria pela organização sócio-política e
intelectual fundamentada nas luzes da razão. Este eixo temático seria igualmente o ponto básico da filosofia saintsimoniana e perpassaria os três humanismos anteriormente
indicados. Na tentativa de implementar seu projeto, SaintSimon chegou a participar do Parlamento, mas abandonou-o
quando se convenceu de que as discussões ali realizadas baseavam-se em conceitos abstratos e vazios. Nenhuma ordem
social podia ser artificial e abstrata e aquela era. O referido
Parlamento só tinha, no sentir de Saint-Simon, uma finalidade, a saber, a de operar a transição de uma sociedade feudal para uma sociedade baseada na indústria, que no seu entender era a atividade básica, raiz de todas as riquezas e
prosperidades. Por indústria entendia Saint-Simon toda atividade produtiva no campo econômico, intelectual e artístico. Mais adequado seria traduzir o termo indústria por compromisso com o trabalho, quando estaríamos mais próximos
do sentido ético que ele pretendia; entretanto, vamos conservá-lo, em razão do uso consagrado que adquiriu no jargão
saint-simoniano. Condorcet em Esquise d’un tableau historique des progrès de l’esprit humaine (1795) entendeu que a
ciência moral podia se valer do mesmo modelo adotado pela
182
economia, valendo-se dos escritos de Diderot e D’Alembert.
Esse parece ser o intento de Saint-Simon:
“A organização social do futuro, o industrialismo,
implica, em primeiro lugar, o desaparecimento das
classes. Não haverá nobres, nem burgueses, nem clérigos. Apenas existirão duas categorias de pessoas:
trabalhadores e os ociosos. Na classe dos trabalhadores Saint-Simon engloba não só os operários manuais, como os artífices, mas os industriais, os agricultores, os negociantes, os banqueiros, os homens de ciência, os artistas. Estas pessoas devem viver sem outras diferenças que as que naturalmente resultem das
suas diferentes capacidades”.234
Do ponto de vista filosófico o progresso exprimia vivamente o seu caráter moral. O homem seria convocado pela
ação a transformar a história e a ampliação do trabalho produtivo seria realizada pela indústria. Para Sartre, tal concepção é o sonho de uma anti-natureza, ideal iluminista que ganharia novas cores no kantismo. Esta nova ordem humana
distingue-se, contudo, daquela concebida por Kant, pois não
se trata apenas de impor ao mundo uma nova organização
através da razão mas, via trabalho, especialmente pela introdução do compromisso ético com as mudanças sociais, que
penetravam e alteravam a globalidade dos costumes.
As associações de produtores, que seriam representadas
em organismos internacionais, eram grupamentos orientados
pela ética. Elas se guiavam pela ação, estavam possuídas da
vinculação entre a vontade de trabalhar e o propósito de alterar os costumes. Segundo Prada esse processo era a base
de uma nova fraternidade. As associações:
234
TAYLOR, Artur. As grandes doutrinas econômicas. 5. ed. s.l., Publicações Europa América, 1975. p. 84/5.
183
“(...) determinariam os métodos e procedimentos e
poriam de acordo quantos participam na produção”.235
As sociedades nacionais dirigidas por produtores, conforme a formulação de Saint-Simon, apresentariam um inequívoco caráter socialista, embora muito distinto do formulado posteriormente por Marx. Saint-Simon encontra-se a
meio caminho, entre os utópicos e os marxistas, conservando o desejo de promover uma melhor organização social,
projeto no qual igualmente se inscreveram Thomas Morus,236 Francis Bacon237 e o próprio Platão,238 através de uma
doutrina de cunho moralizador. Considerado por alguns como integrante do grupo dos utópicos, que precederam a sistematização marxista do socialismo, ele ficaria mais bem localizado entre os teóricos intermediários, aqueles colocados
entre um e outro grupo. Essa é a posição defendida por Talada, que concluiu:
“Em uma posição intermediária entre o socialismo
utópico e o socialismo científico está uma série de escritos cujas teorias e atividades permitem dar-lhes o
qualificativo de moralistas e de políticos. Saint-Simon
(1760-1825) idealizou um sistema industrial que só
em seus discípulos Bazard e Enfantin adquiriu mais
claro desenvolvimento”.239
235
PRADA, Valentin Vásquez. História econômica mundial; da Revolução Industrial à atualidade. Porto, Civilização, 1973. p. 16.
236
MORE, Thomas. A Utopia. Trad. de Luis de Andrade. 4. ed. São Paulo, Nova Cultural, 1988.
237
BACON, Francis. Nova Atlântica. Trad. de José Aluysio Reis de Andrade. 4. ed. São Paulo, Nova Cultural. 1988.
238
PLATÃO. Político. Trad. de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat
e João Cruz Costa. 4. ed. São Paulo, Nova Cultural, 1988.
239
TALADA, José Maria. Curso de economia política. 3 ed. Barcelona.
Buenos Aires, José Montesó, 1963. p. 45.
184
O socialismo pré-marxista mereceu muitos estudos e a
importância do movimento tem sido constantemente reavaliada por grande número de estudiosos240. Esses estudos deixam cada vez mais claro que, embora Saint-Simon pretendesse tornar-se um crítico do liberalismo, tinha em sua própria formulação teórica muitos pontos de convergência com
as teses liberais e mesmo com as formulações tradicionalistas, procurando um ponto de equilíbrio entre as idéias conservadoras e as progressistas. O ponto de equilíbrio é o papel atribuído aos industriais e cientistas, que deveriam liderar os esforços humanos na sua marcha civilizatória.
Embora seja de difícil comprovação, a referida posição,
possui raízes na filosofia hegeliana241 O estado seria então a
instituição que concretizaria, através da dialética, a evolução
da espiritualidade no processo histórico. Saint-Simon enxergou na elite composta de artistas, intelectuais e industriais a
própria expressão do espírito, que pela organização de uma
nova ordem permitiria o caminhar do ser em devir, revelando-se no pensamento desta nova humanidade. Tal seria o
novo momento do qual o filósofo apresentar-se-ia como profeta. Sua preocupação estava mais voltada para o problema
do valor e do progresso histórico do que da simples fixação
de procedimentos para estabelecer o preço dos produtos.
A organização social proposta por Saint-Simon sustentava-se num substrato metafísico já tematizado no idealismo
alemão. O problema que havia sido levantado por Fichte acerca do significado da filosofia foi retomado por Schelling.
Com este último, a filosofia tornou-se a reconstrução da his-
240
CUVILLER, A. Hommes et idéologies de 1840. Paris, s. e., 1956.
COLE, G. D. H. A History of Socialist Thought. Vol. I Londres, s. e.,
1953.
241
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Trad. de Henrique
Cláudio de Lima Vaz, Orlando Vitorino, Antonio Pinto de Carvalho. São
Paulo, Abril Cultural, 1980.
185
tória do espírito, aspecto que seria também incorporado por
Hegel. O tempo tornava-se, assim, uma estrada através da
qual a humanidade afastava-se de sua organização primitiva,
ganhava consistência ética em relação às formas primitivas
de organização.
A concepção orgânica do espírito foi abordada por Schelling, que a associou a uma filosofia natural, igualmente sustentada por uma concepção orgânica. O mundo natural não
seria apenas o resultado de choques mecânicos dos seres,
conforme supunha a física de Newton, mas a própria vida
espiritual ainda não realizada de forma plena. A história da
natureza era a evolução do espírito, que adquiriu no homem
a consciência. O cosmo já possuía o princípio absoluto que
obteve sentido e especificidade na vida do espírito. Esta
concepção filosófica demonstrou que o significado da natureza se resolvia no espírito. Tal formulação encontra-se subjacente ao pensamento de Saint-Simon. Sob esse aspecto o
trabalho humano voltado para o progresso era uma forma de
superação da condição negativa dos primeiros momentos da
história do espírito.
A doutrina saint-simoniana propôs uma espécie de panteísmo naturalista, defendendo um materialismo desvinculado
de qualquer relação com um ser transcendente, porém dirigido pelas construções e pelo trabalho humano. Em seguida,
submeteu o panteísmo naturalista a um outro tipo de panteísmo de inspiração humana, sendo este, em última instância,
o verdadeiro condutor do seu sistema. O elemento vivificador do panteísmo humanista seria, então, uma religião promotora do culto das realizações humanas. Mesmo numa sociedade dirigida por industriais e sábios, Saint-Simon, no
sentir de Ricardo Vélez,
“(...) aos poucos foi reconhecendo a necessidade de
alicerçar o comportamento coletivo harmônico numa
base mais ampla do que a pura ciência, a fim de abranger os sentimentos humanos, que possuem um
186
papel tão importante na conduta dos homens. O filósofo procurou, assim, forças mais profundas numa religião vital”.242
A realização material, inspirada por essa religião vital,
estava a cargo dos industriais, como já mencionamos anteriormente. Para o propósito fundamental deste trabalho, isto é,
identificar no pensamento e nas ações de Mauá influências
das teses de Saint-Simon, é básico verificar que a introdução
de Saint-Simon nos assuntos de economia política se deu através do mesmo autor que se encarregou de divulgar o liberalismo no Brasil, J. B. Say. Mesmo entre os liberais o problema do trabalho e dos valores não adquirira uma precisão
conceitual própria da ciência, mas suas explicações afastamse do modelo historicista onde a evolução da história possuía um cunho estritamente moral.
O estudo dos trabalhos de J. B. Say deram uma direção
definida ao projeto de realização material formulado por Saint-Simon, mas não o levaram a admitir os pressupostos da
ética calvinista. Foi o que afirmou Henri Denis:
“O seu temperamento entusiasta opõe-se a isso; nunca admitirá que basta apoiar-nos no egoísmo dos indivíduos para assegurar a ordem social. Pretende, pelo contrário, realizar o que o cristianismo havia prometido: a fraternidade universal dos homens. Por isso, é necessário que todos os indivíduos se elevem à
consciência do serviço mútuo que se prestam no trabalho. É pela multiplicação das necessidades e dos
trabalhos diferentes que a fraternidade dos homens
pode tornar-se objeto de prática”.243
Enquanto o liberalismo de Adam Smith trazia em seu bojo um elemento natural que distribuía as riquezas, de tal
242
RODRÍGUES, Ricardo Vélez. Porque ler Saint-Simon, hoje. Estado de
São Paulo - Ano I, nº 41, 22/03/81.
243
DENIS, Henri. História do pensamento econômico. Lisboa, Horizonte,
1978. p. 380/1.
187
forma que a soma dos interesses individuais produzia automaticamente o bem coletivo, o socialismo de Saint-Simon
defendia uma organização política calcada na indústria244
mas dirigida por sábios. A organização social, equivalia no
saint-simonis-mo à idéia de Estado em Hegel. Através dela
era possível instaurar a efetividade ética como forma de ação regular, nela a ética torna-se o objetivo do comportamento dos cidadãos. Sobre isto, Ferguson comentou:
“Nessa sociedade organizada tudo era para o trabalho, e os direitos individuais de competência, propriedade, gerência e liberdade pessoal estavam subordinados ao bem comum”.245
Uma organização social dirigida por industriais se tornaria, por certo, mais eficiente e seria capaz de assegurar uma
existência econômica e moral mais digna para as classes
mais pobres246. Essa ordem material seria distinta da organização política, sendo esta última comandada pelos sábios. A
organização econômica desvinculada de qualquer poder teria uma atuação mais eficiente e seria promotora de uma melhoria das condições materiais da sociedade. Saint-Simon
chegou mesmo a afirmar, no espírito do hegelianismo, que a
liberdade nasce da participação nos compromissos históricos, de onde emergia a interioridade: Os homens entregues à
indústria só têm uma necessidade, a liberdade.247
Os responsáveis pelo progresso constituiriam um grupo
de dirigentes capazes de resolver as questões sociais nasci-
244
SAINT-SIMON, C. H. Du systéme industriel. Paris, Renouvard, 1821.
A. III.
245
FERGUSON, John. História de la economia. 3. ed. México, Fondo de
Cultura Econômica, 1963. p. 195.
246
GURVITCH, Georges. A idéia do direito social. Paris, s. e., 1931. p.
305.
247
GOUHIER, Henri. A juventude de Augusto Comte e a formação do positivismo. Paris, 1933/41, III vol. p. 137.
188
das no seio das comunidades humanas. Para Saint-Simon,
não existia problema que não pudesse ser resolvido por essa
tecnocracia de dirigentes. Nesse aspecto parece existir uma
aproximação do pensamento de Saint-Simon com o de Rousseau248, para quem a vanguarda do povo se encarregaria de
promover dentro da sociedade as alterações capazes de provocar uma mudança substancial no padrão de vida desta
mesma sociedade.
A aproximação entre a teoria de Rousseau e a de SaintSimon foi reconhecida por Ricardo Vélez Rodrígues, quando assim se pronunciou a respeito:
“O Novo Cristianismo de Saint-Simon inspira-se na
Religião Civil que o filósofo genebrino Jean Jacques
Rousseau (1712-1778) propôs na última parte de sua
obra Do Contrato Social (1762). Partindo do fato da
desigualdade humana criada pela sociedade, que
Rousseau explica no seu livro A origem da desigualdade entre os homens (1753), o filósofo salienta que,
só no surgimento de uma Religião Civil que unifique
as mentes e as vontades ao redor do Estado, poderá
ser conseguida a ordem social e política. Como o
próprio Rousseau reconhece, ele é inspirado, em parte, pela proposta do poder único e indivisível em mãos
do Estado, que Thomas Hobbes (1588-1679) tinha
formulado, um século atrás, no Leviatã (1651) para
superar o estado de guerra permanente, ou de insegurança coletiva”.249
A religião proposta por Saint-Simon assentava-se sobre o
naturalismo e o humanismo. O fundamento dela não era
mais um ser transcendente, mas a própria humanidade elevada à categoria de ser superior. Esta leitura da tradição
cristã foi conduzida por Hegel. A própria esquerda hegelia-
248
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. Trad. De Lourdes Santos Machado. 4 ed. São Paulo, Nova Cultural, 1987.
249
RODRÍGUES, Ricardo Vélez. Porque ler Saint-Simon hoje. Estado de
São Paulo. Ano I, nº 41, 22/03/81.
189
na encarregou-se de reduzir o momento religioso em filosófico. O resultado disso foi que a religião passou a ser tida
como um fato puramente humano, morrendo como adoração
de Deus e nascendo como adoração do homem. Utilizandose do conceito de religião proposto Hegel, para quem o conteúdo da filosofia era o mesmo que o de religião, imposto
sob forma de conceito e não de representação e do caráter
naturalista e horizontal que Saint-Simon impôs a religião,
David Friedrich Strauss (1803-1874) aprofundou a crítica ao
cristianismo. Na mesma linha, seguiria Ludwig Feuerbach
(1804-1872), que afirmava realizar-se, no homem, a unidade
entre o finito e o Infinito, que Hegel dizia concretizar-se no
Absoluto. Essa releitura do pensamento de Hegel foi iniciada por Saint-Simon e concluída pela esquerda hegeliana. No
entanto, Saint-Simon, ao contrário daquele grupo, manifestava uma crença irrestrita na racionalidade e no bom-senso
dos homens para resolver as questões de interesse coletivo,
o que era o calcanhar de Aqui-les de sua formulação. Foi este elemento que o tornou aos olhos dos marxistas um socialista utópico.250
Essa mesma racionalidade promoveria a recompensa diferenciada para os membros do grupo social, devendo receber a maior parte aqueles que produzissem mais, pois eles
(os produtores) constituíam a própria alma do Estado, aquilo
que a nação possuía de mais sublime. Nos industriais e diri-
250
LEROY, M. Les précurseurs français du socialisme de Condorcet à
Proudhon. Paris, s. e., 1948.
BOUGLÉ. C. Socialismes français: du socialisme utopique à démocratie
industriel. Paris, s. e., 1932.
MARTINS, M. M. Les doctrines sociales en France et l’evolution de la
societé française du XVIIIº siécle à nos jours. Paris, s. e., 1963.
FAGUET, E. Politiques et moralistes au XIXº siécle. Paris, s. e., 18911901.
LOUIS, P. Histoire du socialisme en France: les faits, les idées, les partis
ouvriers, de la révolution à nos jours. Paris, s. e., 1950.
190
gentes da sociedade o espírito ético mostrava-se como vontade manifesta:
“A assertiva leva à conclusão de que impossível é a
comparação entre os ociosos e aqueles que produzem
e, por isso, deverão caber, aos últimos, as maiores
compensações na sociedade, o que não ocorre. Embora tenha assim fixado o problema, Saint-Simon não
indica a solução para o mesmo, não indica as soluções a serem adotadas para equacioná-lo... dizia certo o processo industrial, em sua hierarquia, pois era
através dele que os que produziam receberiam a recompensa... ao Estado competiria a orientação dos
homens e não a direção das coisas, competindo aos
governos pautarem seus procedimentos pelo que fosse
econômico e não por aquilo que era político”.251
Os aspectos analisados até aqui permitem indicar muitos
pontos de convergência no compromisso com o progresso
entre Saint-Simon e os liberais, especialmente na formulação teórica empreendida por Say. A manutenção da propriedade, a direção do processo sócio-econômico pelos industriais, a procura de melhoria do padrão de vida da sociedade, a
crítica à antiga nobreza, o otimismo quanto à capacidade dos
industriais de garantirem o crescimento econômico, a valorização do trabalho são alguns dos pontos de aproximação
aos quais já fizemos referência, mas precisamos destacar ainda o fato de Saint-Simon defender o lucro como uma forma de pagamento aos representantes da nova organização,
isto é, os industriais. A defesa do lucro não afetava o compromisso da vontade pessoal com o progresso histórico. Segundo Arthur Birnie,
“Por estes, Saint-Simon tinha em mente, em sentido
lato, as classes produtoras, em contraposição às classes ociosas, e entre os produtores ele situava os capi-
251
SOUZA, J. C. de. Economia política. São Paulo, José Bushatsky,
1970. p. 138.
191
talistas, não apenas em virtude da sua posição como
diretores de indústria, mas também como proprietários de capital. Permitindo que seu capital fosse usado por outros produtores, auxiliavam produção e tinham direito a uma recompensa. Desta forma, SaintSimon justificava os juros, mas de forma um tanto incoerente condenava a renda, que considerava um imposto lançado sobre as classes produtoras”.252
Em função dos aspectos que o aproximavam do pensamento liberal, Bell pretende tratá-lo não como um socialista,
mas como um coletivista. A preocupação com um novo quadro de valores corresponde ao propósito generalizado no século XVIII de promover mudanças na sociedade. O pombalismo incluiu nesse debate o “problema da população, a recusa da ociosidade, a dignificação da atividade comercial e
o levantamento dos recursos”.253 Fred Bell julga desta maneira ampliar a compreensão da filosofia saint-simoniana e
assim se justifica:
“Defendia a igualdade de oportunidade e a abolição
do privilégio, a eliminação das distinções de classe e
o estabelecimento da igualdade industrial. Não advogou a abolição da propriedade privada, e sim que se
deveria fazer ver aos possuidores de riqueza e propriedades que suas posses deviam ser usadas para o
bem público. Acreditou que os conhecimentos e a indústria deviam unir-se para governar o mundo, formando, assim, um novo sistema social baseado na associação universal”.254
252
BIRNIE, Arthur. História econômica da Europa. Trad. De Christiano
Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro, Zahar, 1964. p. 139.
253
PEREIRA, José Esteves. O pensamento econômico de Manuel Gomes
de Lima Bezerra. In: Cadernos Vianenses. Viana do Castelo, 18, 1995. p.
193.
254
BELL, John Fred. História do pensamento econômico. Trad. de Giasone Rebuá. Rio de Janeiro, Zahar, 1961. p. 320.
192
A união entre os sábios e os industriais produziria uma
elite dirigente que ficaria encarregada de promover as mudanças sociais desejadas por ele. Os dirigentes tinham pois o
compromisso ético marcante de alterar os rumos da história.
Mesmo sem identificar as raízes rousseaunianas de
semelhante maneira de pensar, Henri Guitton inscreveu, por
esse motivo, Saint-Simon entre os socialistas autoritários. O
pensamento de Rousseau, a que já nos referirmos, de fato
realçava o papel de vanguarda do povo, como o grupo
responsável pela deflagração das condições de progresso
que o próprio povo não poderia realizar. Como seria
possível constituir essa camada de líderes purificados
capazes de regenerar toda a sociedade Rousseau tentou
explicar no Emílio, mas um grupo de dirigentes, durante a
Revolução Francesa,255 pretendeu purificar a sociedade e
estabeleceu o período do terror. Assim é razoável considerar
a formulação rousseauniana como sustentáculo teórico do
autoritarismo, na medida em que os líderes jacobinos se
inspiravam naquela teoria. Também Saint-Simon considerou
as alterações sociais como resultado do trabalho da elite. No
entanto, seu projeto de comprometer o homem com o futuro,
como forma de transformar a natureza humana, não teve
propósito revolucionário:
“Ele é aristocrata demais para poder acreditar que o
povo em cujo favor trabalha seja capaz de fazer alguma coisa a favor da sua renovação”.256
O socialismo de Saint-Simon assumiu o caráter ético da
socialização como conseqüência da influência do rousseau-
255
LEFEBVRE, Georges. A revolução francesa. Trad. de Ely Bloem de
Melo Pati. São Paulo, IBRASA, 1966.
256
BREHIER, Émile. História de la filosofia. Trad. De Demetrio Nánez.
Buenos Aires, Sudamericana, 1942. p. 112.
193
nismo, que desta forma contribuiu para o estabelecimento de
um
“socialismo da inteligência ou da competência, primeira forma de economia dirigida, ou, para dizer melhor, de economia organizada”.257
Ao analisar a história da humanidade, Saint-Simon identificava uma série de períodos, de épocas, com características específicas ou não, e que se alternavam sucessivamente,
com-pondo um jogo de ações e reações que faziam parte de
um mecanismo de progresso. Pode-se identificar nesta concepção de história uma aproximação com o pensamento de
Hegel.258 Para Saint-Simon, a história se constitui como unidade contínua, porém sustentada num princípio dialético segundo o qual as épocas se opõem com razoável grau de organização e progresso, seguidas de outras de decadência. O
processo histórico dá-se pelo antagonismo e pela sucessão
dessas épocas de progresso (denominadas orgânicas) e das
épocas de implosão (denominadas críticas). Um período orgânico é justamente aquele em que os princípios básicos,
constituídos para justificar e explicar a vida, o mundo e
Deus, mantêm-se coerentemente organizados e constituem a
base para o desenvolvimento material. O período politeísta
foi postergado pelo momento monoteísta, que se constituiu
num coerente conjunto teórico durante a Idade Média. Este
período histórico foi posto em crise pelo avanço das ciências
naturais, que alterou a ênfase eidético-qualitativa, enfatizando a mecânica do movimento. Daí se estabeleceu uma nova
época orgânica, que para Saint-Simon era a da ciência positiva, cujas descobertas e sabedoria fundamentavam uma no-
257
GUITTON, Henri. Economia política. 2. ed. Rio de Janeiro, Fundo de
Cultura, 1961. p. 65.
258
HEGEL, G. F. Introdução à história da filosofia. Trad. de Antônio
Pinto de Carvalho. 4. ed. Coimbra, Armenio Amado, 1980.
194
va visão do homem e da sociedade. A organização da sociedade moderna não podia mais se sustentar nas bases da Escolástica; as ciências positivas é que deviam proporcionar a
base de sustentação para um novo período orgânico.
A análise histórica convenceu-o de que era possível perceber as leis da evolução e organização das sociedades. Havia na história diferentes momentos que se sucediam e para
o que contribuíam os homens com o seu trabalho. Hugon
considerou a vinculação da história com o progresso:
“A lei da evolução é o progresso. A lei da organização necessária a esta evolução é o industrialismo,
terminologia pela qual ele pretende fazer a distinção
entre o seu sistema e o liberalismo. Esta lei, apreendida por Saint-Simon através de observações gradativamente feitas a partir do século XVII, leva-o a conceber o mundo sob a forma de uma vasta oficina, na
qual a produção, organizada de modo a alcançar o
máximo de expansão, asseguraria, com a prosperidade, a melhor organização social”.259
A organização social permitiu que o homem melhorasse
a sua capacidade produtiva, efetivasse a potencialidade da
ação que de fato conferia sentido à vida. O trabalho ia além
de prover as necessidades materiais: ele permitia um encontro do homem consigo mesmo, com a sua vocação fundamental. Saint-Simon observou que cabia aos cidadãos pensar
como aprimorar a vida concreta numa determinada época
histórica:
“Em toda Europa Ocidental, os trabalhadores de todas as classes administrarão o seu salário, eles ad-
259
HUGON, Paul. História das doutrinas econômicas. 13. ed. São Paulo,
Atlas, 1978. p. 199.
195
quirirão a previdência suficiente para suprir a todas
as suas necessidades”.260
Retomou o mesmo tema em outra obra, L’introduction
aux travaux scientifiques du XIXº siècle, uma série de comentários sobre a natureza das ciências. A validade do conhecimento, assim como o método que fundamentaria o trabalho científico, já fora discutido por Descartes261 e Bacon,262 porém conforme verificou Bréhier:
“Não estão esses dois temas bastante coerentes: o
primeiro estaria fundamentado na concepção cartesiana de uma ciência geral, que compreenderia, por
sua vez, a ciência da Natureza e a ciência do Homem,
aproximando Newton e Locke, o astrônomo e o fisiólogo, intentando generalizar a gravitação newtoniana de tal forma a aplicá-la também às coisas humanas e morais; o segundo tema estaria orientado
para aquelas ciências que não teriam alcançado ainda o estado positivo, em especial a ciência do homem,
ciência que ainda concebia, em 1812, ao modo de
Cabannis, fazer-se da psicologia um ramo da fisiologia”.263
Ao preconizar o fisicismo como uma religião destinada a
substituir o deísmo, Saint-Simon propôs as bases de uma epistemologia cujas raízes estariam mergulhadas nas ciências
da natureza, mas cuja copa atingiria as ciências do homem e
da sociedade. A transição para as ciências humanas SaintSimon percebera como uma lógica do espírito humano, reinterpretando o pensamento de Condorcet. A direção desse
260
SAINT-SIMON, C. H. Du systéme industriel. Paris, Renouvard, 1821,
A. VI., p. 467.
261
DESCARTES, René. O discurso do método. Trad. de Gilles-Gaston
Granger. 4. ed. São Paulo, Nova Cultural, 1987.
262
BACON, Francis. Novum organum. Trad. de José Aluysio Reis de Andrade. 4. ed. São Paulo, Nova Cultural, 1988.
263
BRÉHIER, Émile. História de la filosofia. Trad. De Demetrio Nánez.
Buenos Aires, Sudamericana, 1942. p. 170.
196
processo seria entregue aos sábios positivos, espécie de sacerdotes da ciência, encarregados de conduzir a sociedade
humana segundo os cânones do pensamento científico. Os
sábios cientistas sabiam a trilha capaz de evitar a crise de
então e colocar a sociedade no caminho do progresso.
A idéia de um processo social que evoluía dirigido pelos
industriais ancorava-se na crença de que a humanidade adquiriu, em determinado momento da história, a capacidade
de auto conduzir-se. O sentido deste movimento seria o progresso e este apontaria para uma complexificação contínua
do Universo. As idéias historicistas que Saint-Simon aplicou
ao desenvolvimento da natureza e da sociedade deixariam o
caminho aberto para o positivismo evolucionista tematizado
por Jean Baptiste Lamarck (1744-1829) e Charles Darwin
(1809-1882). Esses autores, aplicando à doutrina biológica a
noção de progresso, proporiam o evolucionismo metafísico.
O positivismo evolucionista utilizou ainda a idéia de evolução dos períodos orgânicos da história na compreensão da
natureza. Daí derivou o conceito de evolução da matéria de
um estado de dispersão a um outro de integração. SaintSimon não chegou a tanto, limitando-se a estudar as idéias e
a organização dos diferentes períodos da história.
Contemporâneo da Revolução Francesa, Saint-Simon observava que os novos tempos e os novos ideais impunham-se
aos homens do seu tempo, que entenderam feudalismo e sistema aristotélico-tomista como elementos de uma ordem social antiga, condenada à extinção. Os revolucionários, segundo sua análise, derrotaram o antigo regime, mas não se
deram ao trabalho de repensá-lo, o que, entretanto, precisava
ser fei-to a todo custo. Sem este estudo, o governo limitavase à função policial de manter a ordem social, trabalho inferior e muito aquém daquele que Saint-Simon sugeria para
ele. Era preciso possuir uma compreensão da marcha da civilização sem necessitar confrontá-la com qualquer modelo
metafísico.
197
Em seu livro O Sistema Industrial (1821),264 Saint-Simon
fez uma análise comparativa da sociedade de então com a
sociedade romana em decadência, o que ocorrera no período
das invasões dos bárbaros, concluindo que uma nova crise
estava instituída. Da mesma forma que o cristianismo estabeleceu a nova ordem, capaz de superar a pagã, era preciso
então a criação de um novo sistema, destinado a substituir o
antigo. Ele próprio se intitulou o messias desta nova era,
propondo um novo cristianismo, capaz de substituir o antigo. Esse novo cristianismo tinha, em comum com o anterior,
a mesma preocupação com a fraternidade universal, mas
desvinculava esse amor de qualquer ser transcendente, mantendo-o restrito às relações humanas. O amor aos homens ou
altruísmo significava a orientação ética definitiva, capaz de
garantir a sistematização da vida humana.
A nova ordem se caracterizaria, assim, pela superação da
metafísica e pela desvinculação com qualquer ser transcendente. Seus elementos básicos constituiriam a doutrina denominada positivismo, corrente filosófica sistematizada por
um discípulo de Saint-Simon. Padovani e Castagnola explicitaram que o positivismo, em Comte e Saint-Simon, representava uma tentativa de elaborar uma epistemologia rigorosamente humana:
“O positivismo admite como fonte única de conhecimento e critério de verdade a experiência, os fatos positivos, os dados sensíveis. Nenhuma metafísica, portanto, como interpretação, justificação transcendente
ou imanente, da experiência. A filosofia é reduzida à
metodologia e à sistematização das ciências. A lei única e suprema que domina o mundo concebido positivisticamente é a evolução necessária de uma indefectí-
264
SAINT-SIMON, C. H. Du systéme industriel. Paris, Renouvard, 1821,
A. III.
198
vel energia naturalista, como resulta das ciências naturais”.265
Nesse contexto, a afetividade humana seria deslocada para uma religião da humanidade, um panteísmo humanista,
que seria posteriormente reeditado por Augusto Comte. Essa
religião proclamaria a glória do homem livre das amarras do
sobrenatural, livre para construir nesse mundo o seu paraíso
e ser dono do seu próprio destino. Esse homem encontraria
no trabalho a sua forma de oração e, elevado à condição divina, justificaria a si próprio, assim como sua obra, na construção de sua própria morada no planeta. O homem, segundo
a formulação saint-simoniana, era um ser histórico, progressivo e divinizado.266 Com o novo cristianismo formulava-se
a justificativa ética para a procura do progresso e para fundamentar a fraternidade universal.
Neste ponto podemos introduzir a famosa parábola saintsimoniana que justamente explicava como a alma de uma
nação era constituída, e o era exatamente por aqueles que se
dedicavam ao trabalho produtivo. Todos os outros, mesmo
os que constituíam o alto comando político, seriam coadjuvantes, e era por isso que urgia estabelecer uma nova ordem
que corrigisse tais equívocos.
“Suponhamos, diz ele, perca a França, de repente,
seus primeiros 50 físicos, fisiologistas, químicos, banqueiros, seus primeiros 200 negociantes, 600 agricultores, 50 ferreiros etc. Sendo esses franceses essencialmente produtores, os que fornecem os produtos
mais importantes, tornar-se-ia a nação um corpo sem
alma, a partir do momento em que os perdesse. Passaria imediatamente a um estado de inferioridade em
relação às nações, suas atuais rivais, em relação às
265
PADOVANI, H. e CASTAGNOLA, L. História da filosofia. 2. ed. São
Paulo, Melhoramentos, 1956. p. 376
266
XIRAU, Ramon. Introdución a la historia de la filosofia. México,
Textos universitários, 1971. p. 317.
199
quais permaneceria em uma posição subalterna, enquanto não conseguisse reparar essa per-da, enquanto não tivesse feito brotar de novo uma cabeça... Passemos a outra hipótese. Admitamos conserve a França
todos os homens de gênio que possui nas ciências, nas
belas-artes, nas artes aplicadas, tendo entretanto a
infelicidade de perder, no mesmo dia, o senhor irmão
do rei, o senhor duque d’Angou-lême (segue-se a enumeração de todos os membros da família real), enquanto perde, concomitantemente, to-dos os grandes
oficiais da coroa, todos os ministros de estado, todos
os conselheiros, todos os referendários, todos os marechais, todos os cardeais, arcebispos, bispos, vigários-gerais, cônegos, todos os prefeitos e viceprefeitos, todos os funcionários dos ministérios, todos
juizes e, além disso, 10.000 dos mais ricos proprietários dentre os que vivem fidalgamente — este acidente
afligiria, certamente os franceses, por serem eles
bons... Mas esta perda de 30.000 indivíduos, havidos
como os mais importantes do Estado, só afligiria do
ponto de vista sentimental, uma vez que daí nenhum
mal político resultaria para o Estado”.267
Em sua análise, o organismo estatal trazia em seu bojo os
vícios de uma ordem social superada, fundamentada em um
sistema metafísico e orientada pelos padres, que boicotaram
o desenvolvimento daquilo que melhor produzia o espírito
humano, isto é, a ciência. Essa forma de organização social
produziu ainda uma séria perversão, porquanto permitiu a
transferência hereditária dos bens, colocando a liderança da
sociedade nas mãos de pessoas absolutamente inaptas. O resultado disso foi uma queda na produção, o que comprometeu o sustento de toda a comunidade. O princípio a cada um
conforme as suas obras era violado pela transferência hereditária dos bens, pois garantia rendas elevadas a pessoas
pouco produtivas e tirava de outras mais capazes a oportuni-
267
SAINT-SIMON, C. H. L’Organisateur. 1. ed. Paris, Corréard, 1820. p.
10/20.
200
dade de conduzir com mais sucesso o empreendimento. A
posse dos bens, por via hereditária, era a causa maior da exploração dos homens produtivos ou trabalhadores. Apesar
de tal conclusão ser elaborada a partir da máxima saintsimoniana, ele próprio não chegou a abordar especificamente essa questão, que foi formulada por dois de seus discípulos, Enfantin (1796-1864) e Bazard (1791-1852).268 Em outras palavras fora da organização social o progresso humano
era impossível. Notou-o Paul Hugon:
“Em resumo, a crítica saint-simoniana se decompõe
da maneira seguinte: o direito de sucessão hereditária
distribui ao acaso, sem obedecer a determinada direção ou coordenação, a propriedade dos meios de
produção, ao invés de fazê-los passar, como deveria,
às mãos dos mais capazes. Daí advém o vício fundamental da produção anárquica existente. E não apenas o interesse geral — a utilidade — deixaria de ser
atendido, mas, sim, também a justiça, pois o direito de
sucessão hereditária se opõe igualmente à repartição
eqüitativa, ou seja, a cada um segundo suas obras”.269
O objetivo desta pregação é claro: os trabalhadores de
todas as classes sociais é que deveriam receber os melhores
frutos da produção. A felicidade social se obteria com a associação das idéias de justiça e utilidade. Heilbroner observa a respeito:
“Na verdade, a sociedade está organizada como uma
fábrica gigantesca e devia levar o princípio fabril à
sua conclusão lógica. O governo devia ser econômico
e não político, devia orientar as coisas, e não dirigir
os homens. As recompensas deviam ser proporcionais
à contribuição social, deviam recair sobre os que tra-
268
ENFANTIN, BAZARD. Doctrine de Saint-Simon, exposition. 2. ed.
Paris, s. e., 1854.
269
HUGON, Paul. História das doutrinas econômicas. 13. ed. São Paulo,
Atlas, 1978. p. 202.
201
balham nas fábricas, e não sobre observadores ociosos. Não é uma revolução o que prega Saint-Si-mon,
nem mesmo o socialismo, tal como compreendemos. í
uma espécie de hino do processo industrial e um protesto contra o fato de que, numa sociedade de trabalho, sejam os ociosos que levem a parte do leão da riqueza”.270
A observação de Heilbroner é importante porque nos ajuda a dimensionar a extensão do socialismo de SaintSimon, o que é de extrema valia para os propósitos desta
pesquisa. Como Hegel, Saint-Simon entendia que a Revolução Francesa produzira uma nova ordem social na qual a
humanidade atingira a fase adulta do seu desenvolvimento.
Contra Hegel, o pensador francês descreveu este novo momento com ênfase no movimento econômico, no qual se inscreviam a política, a moral e a filosofia, ocupadas em facilitar a reestruturação do processo industrial. No sistema saintsimoniano, a filosofia tornou-se teoria social e esta converteu-se em economia política.
Pode-se de fato, nesse aspecto, concluir como Bréhier:
“Os saint-simonianos não são comunistas, como se
lhes tem chamado com freqüência, tampouco são utopistas, preferem as medidas eficazes no presente a
uma ilusão futura; por querer que a propriedade se
converta em uma função social e deixe de ser a trincheira do egoísmo, atacam as leis sobre a gerência e
propõem, de uma parte, que o Estado seja o principal
herdeiro em todas as sucessões em linha colateral e,
de outra, que qualquer um possa adotar um herdeiro,
se os próprios filhos são incapazes de fazer valer sua
fortuna. Ademais, o Estado deve criar bancos de cré-
270
HEILBRONER, Robert L. introdução à história das idéias econômicas. Trad. de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Zahar, 1974. p. 107.
202
dito para proporcionar instrumentos de trabalho a
todos os que sejam capazes para ele”.271
1. A concepção evolutiva-messiânica na civilização
ocidental.
D
epois dessa introdução ao pensamento de SaintSimon, procuraremos rastrear as origens do historicismo que caracterizou o pensamento hegeliano e inspirou
as idéias sócio-históricas do saint-simonismo. A influência
de Hegel se fez sentir mais destacadamente na idéia de história, eixo da doutrina saint-simoniana, da qual o Conde derivou a noção fecunda de crise. A história, para SaintSimon, é composta por períodos que amadurecem crises, estas provocam a decadência da referida etapa e preparam um
novo momento orgânico. Tal evolução chegaria a seu clímax
na civilização industrial, quando as necessidades das classes
mais pobres da sociedade passariam a ser atendidas. Do
mesmo modo que em Hegel, a dialética chega ao seu clímax:
no pensamento do alemão, quando o espírito absoluto tomasse plena consciência de si; no sentir de Saint-Simon,
quando as necessidades das classes mais pobres estivessem
atendidas. Esse mesmo aspecto foi tratado por Marx, que
também enxergou a possibilidade da implantação de uma
sociedade perfeita.
Saint-Simon observou a distinção entre o mundo da natureza e o mundo social. Em seu escrito L’Introduction aux
travaux scientifiques du XIXº siècle (1810), apontou para
duas coisas bem distintas: aquilo que é próprio do homem e
do grupo social, e aquilo que é exterior a essa dimensão.
Contudo, ao contrário do kantismo que explorou a mesma
distinção, a sua concepção de homem distingue-se da formulação produzida no seio do liberalismo, doutrina que enten-
271
BREHÍER, Émile. História de la filosofia. Trad. de Demetrio Nánez.
Buenos Aires, Sudamericana, 1942. p. 717.
203
de o homem como um ser perfectível ao infinito. Não se trata de apontar a dicotomia homem-natureza, mas, sobretudo,
de constatar que a referida polaridade não permite, no liberalismo, compreender a humanidade como algo dado e concluído. O historicismo saint-simoniano apontava para um
período final do processo histórico, a ser atingido no futuro.
Para atingir a plenitude era preciso alterar a realidade. Daí
se infere a idéia de uma humanidade que trabalha, transforma a natureza em benefício próprio e deve distribuir os resultados do trabalho entre os produtores da riqueza. A idéia
de desenvolvimento da sociedade, implícita no historicismo
hegeliano, seria neste contexto incorporada à doutrina que
Saint-Simon defendeu e propagou. Diferentes nos fundamentos, na prática o liberalismo no século XVIII e o saintsimonismo buscaram o mesmo fim, a saber, a implantação
de uma sociedade industrializada e com novos valores decorrentes desse processo.
O historicismo de Saint-Simon atribuiu à indústria como
produto cultural uma valorização extraordinária, ultrapassando os limites estritos da sociologia e tratando o fato numa perspectiva sócio-política, estabelecendo, enfim, uma filosofia da história. Ele entendia a história como possuindo
um rumo preestabelecido, a saber, a destruição do Estado —
o Estado entendido, neste contexto, como uma manifestação
da dominação de uma classe sobre as outras. Nota-se aqui
um afastamento das idéias de Hegel, para quem, ao contrário
do que acreditava Saint-Simon, era no Estado que se alcançava a dimensão ética da vida e a consciência de si. SaintSimon entendia que o Estado era uma instituição cultural
produzida para governar o processo econômico numa época
que foi prolongada pela insistência dos legistas e dos metafísicos. O pensamento sociológico de Saint-Simon encontrava-se impregnado por essa predição utópica de dissolução
do Estado, aspecto que também se encontrava presente nas
idéias de Proudhon e Marx.
204
A filosofia da história, que perpassa o industrialismo, entende que aquele seria o momento de o esforço humano manifestar-se suficientemente, o que não pudera acontecer em
etapas anteriores devido ao governo das teocracias, dos militares e dos metafísicos. No momento em que a produção econômica pacífica, em forma de industrialização, se espalhasse pelo mundo, duas coisas começariam a acontecer: a
eliminação dos ociosos e a liberação das forças criativas da
sociedade. A ordem social saint-simoniana permitiria aquilo
que Adam Smith desejava obter com o livre comércio, a paz
perfeita e a prosperidade material e moral.
A produção humana era, ao mesmo tempo, espiritual e
material. No livro intitulado Travail sur la gravitation
(1813), Saint-Simon acenou para o fato de que, corporificar
uma abstração é materializá-la, e extrair uma idéia de um
objeto é gerar um elemento espiritual. Esses dois aspectos
encontram-se interpenetrados na cultura e se desenvolvem
simultaneamente, podendo, às vezes, entrar em conflito.
Quando os dois aspectos, a produção material e a espiritual,
estão em desacordo, anuncia-se um período crítico de transição e mudança. A ordem social saint-simoniana propiciaria
o progresso sem as conturbações sociais que, no seu entendimento, advinham da associação do conceito de progresso
com as teorias do contrato social.
Para evitar os efeitos negativos das revoluções, a sociedade precisaria ser dirigida pelos sábios, pelos industriais e
pelos empresários. A ética que ele pregou enfatizava a condução dos interesses cristãos para este mundo, deslocando a
preocupação com o transcendente para uma atenção com o
imanente. Aos poucos sua ênfase deslocou-se para a humanidade, dando então o sentido derradeiro de sua filosofia,
evoluindo de um panteísmo naturalista para um panteísmo
humanista, momento em que antevê a necessidade de criar
um culto à humanidade. Para implementar o seu projeto de
desenvolvimento material, ele conclamou a todos, mas espe-
205
cialmente convocou os líderes sociais e os príncipes, a trabalhar na implantação do industrialismo e a empregar todas as
forças para fazer crescer a felicidade social, promovendo o
enriquecimento dos mais pobres. Essa filosofia estimulou
um grupo de homens empenhados em gerar uma era de progresso, capaz de remodelar a face da Terra. Saint-Simon não
deixou muito claro como seria possível conciliar a idéia de
uma filosofia social entendida como uma ciência da liberdade com a sua idéia de história. Ele acreditava que o progresso da humanidade e da sociedade não seria resultado de mecanismos determinísticos, mas o resultado da harmonia estabelecida no seio da sociedade, harmonia essa pressuposta
no liberalismo, onde há crença de que do choque dos interesses individuais ou grupais resultaria o equilíbrio da sociedade. Entretanto, a filosofia da história proposta, estabelecia uma forma de evolucionismo, e ele deixou-se apanhar
pela pregação de uma filosofia da história dogmática cuja
versão conhecida era, naquele momento, a hegeliana. A sua
filosofia da história limitou as possibilidades criativas do
homem, porquanto estabeleceu um fim predeterminado para
a vida social. Dessa forma introduziu um elemento que reduziu as alternativas humanas uma vez que considera a história como a realização de uma idéia. O dogmatismo é um
sério problema para a evolução dos debates de natureza histórica e sociológica. Apesar disso, existe no sistema uma idéia de progresso humano, uma espécie de panteísmo moralista que ameniza os efeitos do determinismo evolucionista e
que lhe permitiu formular uma visão original da sociedade
humana. Assim, se em seu conjunto a história continha um
plano infalível, na perspectiva ética era impossível efetivá-lo
sem as vontades particulares.
Cumpre explicitar que, embora fundamentada numa filosofia da história nos moldes hegelianos, o resultado prático
do processo histórico levava a um fim diferente daquele preconizado pelo alemão. Saint-Simon estabeleceu uma oposi-
206
ção bastante nítida entre o Estado e a sociedade econômica.
A dissolução do Estado era uma meta imediata, ao contrário
da idéia de Hegel, para quem as liberdades se exercitariam
no Estado. Saint-Simon estabeleceu uma ligação entre o Estado e a organização social opressora, conforme já afirmamos, que mantinha no centro do poder decisório as classes
improdutivas e seus seguidores. Defendia Saint-Simon um
realismo sem grande aproximação com o idealismo espiritualista, exceto pelo emprego das mesmas concepções fundamentadoras de uma filosofia da história que afirmava a inevitabilidade do progresso.
A sociedade assumiu, na perspectiva de Saint-Simon, o
status de ser privilegiado e o exercício da consciência coletiva tornou-se a razão universal. Em algumas partes do Le
nouveau christianisme tem-se a impressão de que a divinização da sociedade não se justificaria nos sujeitos concretos.
Nesse caso, pode-se pensar na existência de um Ser Transcendente que pudesse conferir valor à humanidade, mas não
era essa a questão. A hipótese mais viável, então, é compreender que a transcendência do social foi dada pela própria
razão universal, que ultrapassou os limites dos sujeitos cognoscentes. Trata-se de uma leitura antropocêntrica do projeto cristão. O industrialismo é uma espécie de prisma que decompõe o cristianismo, ao mesmo tempo que promove uma
releitura do universo fenomênico. Saint-Simon não chegou a
anunciar a morte de Deus, no sentido estabelecido por Nietzsche, mas a teoria que ele concebeu está próxima da visão
daqueles teólogos para quem a religião se tornou uma expressão da socialidade. Nessa visão teológica, o social prevalece e o sentido transcendente e escatológico inerente à
religião cristã deixa simplesmente de ser considerado. Comte propôs uma religião da humanidade, que possui o mesmo
eixo fundamental, a saber, a substituição do Ser Transcendente. Naquele caso, a hu-manidade igualmente seria divinizada. Saint-Simon é, por is-so, o pai das modernas versões
207
materialistas da história e das teologias imanentistas que atualmente têm grande número de seguidores.
A filosofia francesa, notadamente a partir do final do século XVIII e durante o século XIX, compreendeu que a moralidade interior poderia ser favorecida pela alteração das
circunstâncias exteriores. Exatamente por isso, apesar da
importância atribuída aos estados internos, os pensadores
deste pe-ríodo dirigiram-se preferencialmente para a questão
social. Eles acabaram por concluir que a própria justiça exigia uma melhoria das leis civis e da situação dos cidadãos.
Buscou-se então de forma enfática, o progresso social. Acreditou-se que o progresso na ordem dos fatos promoveria
o aprimoramento pessoal.
Saint-Simon enquadra-se entre os pensadores franceses
de índole socialista, de tendências fatalistas e naturalistas, e
exerceu grande influência sobre a filosofia da história e da
sociedade. Ele caminhou na mesma trilha já percorrida por
Fiori, Vico e Hegel, para citar apenas aqueles pensadores
mais conhecidos. Entendeu que o progresso é uma necessidade, o que sugere a idéia de um plano providencial como o
implícito nas teorias milenaristas. Essas teorias entendiam o
progresso como uma necessidade de mudança com o fim de
alcançar um estado definitivo de perfeição. Segundo Fouillé
esse era o esquema hegeliano que
“(...) terá lugar em virtude de uma lei de progresso
necessário que rege a história e reproduz em parte o
fatalismo histórico”.272
Na medida em que concluiu que o universo físico e moral
era regido por leis matemáticas e também que a sociedade
poderia ser compreendida dentro deste mesmo esquema de
leis inflexíveis, onde o movimento das idéias seguia um ru-
272
FOUILLÉ, Alfred. Histoire de la philosophie. - 3. ed. - Paris, Librairie
C. H. Delegrave, s.d., p. 430.
208
mo prefixado, dirigiu os seus esforços para a criação de uma
nova organização social. A sociedade que iria se constituir
estaria de acordo com as últimas descobertas da ciência,
com a evolução da humanidade, que atingira, naquele período, a industrialização. A implantação deste modelo de estrutura sócio-econômica e política exigia, por um lado, o estabelecimento de um novo organismo social e, por outro, uma
alteração na hierarquia dos valores então estabelecidos. Por
isso, sua meditação caminhou na direção social, sem contudo perder de vista a filosofia da sociedade e da história que
lhe davam sustentação.
A partir de Hegel, a filosofia da história adquiriu um sentido distinto do que tinha na tradição estabelecida por Fiori.
O idealismo proposto pelo alemão era uma variante imanentista, que possuía como pano de fundo a perspectiva transcendental. É isto que afirmou Paim:
“Ao sobrepor ao entendimento kantiano o momento
da autoconsciência (consciência de si) e à razão o
momento do espírito, Hegel se lança a um grandioso
empreendimento de racionalização, não mais de uma
realidade dada, independente do homem e da sua evolução histórica, mas da própria criação humana em
seu conjunto. Embora essa construção só se sustente a
partir da crença no progresso integral da razão, Hegel não viola os princípios da filosofia kantiana nem
se propõe a elaboração de qualquer espécie de metafísica dogmática”.273
Fiori, apesar de ter proposto uma filosofia da história
com objetivos concretos de mudança social, também se articulava na perspectiva transcendente que vigorava na Idade
Média. Essa perspectiva medieval, cuja origem remonta à
Grécia, teve no sistema aristotélico-tomista uma versão bem
273
PAIM, Antônio. História das idéias filosóficas no Brasil. 3. ed. São
Paulo, Convívio, INL, Fundação Nacional Pró-memória, 1984. p. 7.
209
sucedida e alcançou a hegemonia durante um extenso período na história cultural do ocidente. Saint-Simon, adotando a
filosofia da história na perspectiva hegeliana, estabeleceu
um rompimento com aquela formulação transcendental imanente, ao propor uma síntese advinda da ciência moderna,
fundando uma nova religião. Ao estabelecer esse roteiro,
caminhou para um certo ontologismo, o que, considerandose a perspectiva transcendental, consistia numa confusão de
planos, porquanto confundia epistemologia com ontologia.
O mesmo equívoco foi cometido por Comte, porém o neopositivismo retornou aos fundamentos da perspectiva transcendental, estabelecendo uma doutrina coerentemente elaborada. Mesmo remontando à dimensão histórica numa perspectiva hegeliana274, Saint-Simon conservou bem viva a intenção de Fiori. Considerou que a história continha um plano providencial dividido em período e, sobretudo, que o último período coincidia com a transformação do mundo.
A idéia de progresso e de evolução da história, encontrada no idealismo alemão, possui raízes culturais muito profundas na nossa civilização e está certamente associada à
tradição hebraica. Entre os cristãos existiu um grupo que introjetou logo tal idéia de evolução e a integrou à expectativa
do final dos tempos, cume do processo histórico, momento
no qual Cristo retornaria. Entre os pensadores cristãos destacou-se a figura de Joaquim de Fiori, que realizou uma leitura original da escatologia cristã. A filosofia do abade partia da intuição de Agostinho para quem a história era constituída de diferentes idades.
O abade de Fiori tem despertado o interesse de pesquisadores que, no século XX, reportam-se a ele por considerá-lo
um intérprete original da filosofia e teologia cristãs. Sob o
ângulo filosófico, que nos interessa mais de perto, procura-
274
A idéia de história é básica no romantismo filosófico.
210
remos enfatizar a sua filosofia da história. Autores como
Henry de Lubac entendem que a reflexão historicista de Vico e Hegel encontram inspiração original em Fiori. O abade
havia elaborado uma filosofia da história fundamentada numa hermenêutica. Estamos de acordo com essa interpretação
de Lubac que reconheceu no propósito dos historicistas modernos o sonho milenarista, ainda que substituindo a fé pela
fundamentação racional.
Saint-Simon, como um grande número de outros historicistas, fez uma reflexão sobre o progresso humano influenciado diretamente por Hegel, mas incorporou inúmeros elementos da tradição historicista do ocidente cristão. Joaquim
de Fiori é, conforme já procuramos demonstrar, uma espécie
de precursor dos pensadores modernos que fizeram do historicismo a coluna vertebral de sua meditação. A releitura das
obras de Fiori, indicando-o como um dos precursores da
concepção historicista da sociedade, é bastante recente e exigiu uma análise cuidadosa do invólucro teológico que caracteriza seus escritos. Henry Mottu foi um dos teóricos que
descobriu essa relação, cabendo-lhe o mérito de reinterpretar
o pensamento apocalíptico do abade medieval, dando-lhe
uma nova versão.
Ao retomarmos o pensamento filosófico de Fiori, não
podemos desconhecer o alerta de Mottu. Ele afirmou que o
próprio Fiori elaborou seu projeto não apenas como uma
proposta histórica, mas teológica. Em sua interpretação, analisou o sistema hermenêutico de Fiori, destacando os pontos
originais. Tendo em vista as conclusões do intérprete de Fiori, Lubac275 fez uma releitura do significado complexo do
vocábulo concórdia e alterou a partir dele a hipótese segundo a qual o abade seria um dos precursores da Reforma. Lu-
275
LUBAC, Henry. La posterité spirituale de Joaquim de Fiori. Paris, LNamur, 1983.
211
bac concordou com Mottu, quando ele estabeleceu que os
personagens bíblicos, tratados por Fiori, não são símbolos,
mas paradigmas. Estudando o pensamento de São Paulo e
São João, o abade tomou como certa a vinda do Espírito
Santo. Esse aspecto é fundamental para esclarecer o eixo
temático da sua filosofia da história, teoria que estabeleceu
o período da concórdia a partir da implantação do Reino do
Espírito Santo. O referido período, também denominado de
terceira idade, seria o momento do Espírito, uma terceira etapa da história, cuja fonte inicial foi o Pai e que teve em Jesus Cristo o elo intermediário.
A leitura joaquimita do evangelho permitiu antever o início da nova era, época na qual Cristo já não seria mais a figura central, porque depois de sua morte e ressurreição, a
história passou a se organizar em torno da pessoa do Espírito Santo. Da perspectiva teológica, a referida interpretação
mereceu reprovação, mas as conseqüências de tal modo de
pensar trouxe uma novidade. Fiori entendia que o novo momento que se avizinhava teria uma nova Igreja, a do Espírito
Santo, a qual ocuparia no seio da história o papel que vinha
sendo cumprido pela Igreja de Cristo. Ele disse que a nova
Igreja seria a sucessora daquela fundada por Cristo e que tivera Pedro como o primeiro chefe. Nessa nova fase prevalecerá a Graça, termo que usou para designar a manifestação
plena da inteligência divina.
Fiori, ao fazer referência à nova Igreja, no entender de
Lubac, não estava reagindo a uma situação histórica, propondo a substituição de uma Igreja que perdera a competência de manifestar a vontade de Deus, mas propondo um novo
tempo, já anunciado na Escritura, e que fazia parte do plano
divino. A Igreja de Cristo teve o objetivo de preparar o homem para a novidade espiritual anunciada por Deus. Atingindo o homem um grau suficientemente elevado de espiritualidade (assim pensava o abade), superaria o papel que lhe
reservou a transitória Igreja de Cristo, para assumir o posto
212
na nova etapa, no reino espiritual. Essa nova fase não era
uma correção, mas a realização de um plano já previamente
traçado pela razão divina.
A sua teoria da história trazia embutida este plano: ela
anunciava o novo momento. Fiori não estava propondo uma
alteração ou um aperfeiçoamento na Igreja de Cristo, mas a
sua completa extinção. Ele não deve, por isso, ser incluído
entre os anunciadores da Reforma, como notou Henry Mottu, exceto, talvez, pelo seu ímpeto de interpretação religiosa,
independente das orientações da Igreja. Para Fiori o sujeito
da história era a inteligência que organizou o plano, da qual
o homem era um coadjuvante.
O advento da terceira etapa que Fiori anunciava estava
por acontecer, e ela teria como característica a transformação do tempo morto num novo tempo, vivo e vivificante. Na
teologia joaquimita, Cristo era a penúltima palavra de Deus,
reservado o papel final ao Espírito Santo. A boa nova anunciada por Jesus configurava o momento pedagógico da história da salvação, período no qual o homem começaria a entender melhor os planos de Deus. O homem não estava ainda suficientemente maduro para viver a plenitude do Espírito. Quando Cristo voltou para junto do Pai, anunciou o plano definitivo de Deus, a saber, a vinda do Espírito Santo e o
estabelecimento de uma nova Igreja. A interpretação de Fiori divergia muito da ortodoxa, que entendia a encarnação de
Cristo como o momento decisivo e a presença do Espírito
Santo como o elemento vivificador da cristandade. De todo
modo é a mesma tradição que considera a história como um
avanço contínuo sem interrupção ou retorno.
Joaquim de Fiori interpretou o papel de Jesus como o do
profeta do novo reino. Na sua visão apocalíptica, a derradeira etapa da evolução da humanidade constituiria o evangelho do Espírito Santo. Tal interpretação não fugiu do anúncio da criação de um novo homem, que foi o tema constante
da mensagem de Jesus, nem alterou o sentido escatológico
213
da mensagem do Messias. O que ficou estabelecido a partir
da releitura bíblica, nesta ótica teológica, foi a criação de
uma filosofia da história, que trouxe como característica distintiva a crença no estabelecimento de uma nova etapa de
duração temporal neste mundo, introduzindo-se uma fase
qualitativamente distinta.
A terceira etapa, ou tempo do Espírito Santo, comportaria um encerramento da história humana neste mundo ou seria uma reinterpretação da escatologia cristã? Nesse caso,
seria uma nova visão da história que capacitaria o homem a
realizar, aqui na terra, o Reino de Deus, rompendo com o
tradicionalismo dos primeiros séculos do cristianismo,
quando se destacava o papel contingente deste mundo e se
esperava o seu fim. Lubac não chegou a esclarecer este ponto, mas fez uma consideração fundamental. A interpretação
joaquimita minimizou o emaranhado pensamento apocalíptico que caracterizava a fé até aquele momento, e passou a
servir de base para o estabelecimento de uma nova concepção de história. A imersão do Espírito Santo na história humana conferia-lhe um status novo, porquanto inaugurava
uma outra iniciativa de Deus, a de mudar a história. Se essa
novidade teológica produziu uma reação da Igreja, por outro
lado mostrou-se como uma heterodoxia fecunda, pois abriu
o caminho para diferentes concepções de história que, conservando a noção de progresso, estabeleceram o rompimento
com o transcendente. Efetivamente Fiori conservava o aspecto religioso, mas algumas interpretações posteriores puderam, mantendo-se o caráter imanentista, estabelecer uma
leitura laica da história. Pareceu-nos correta também essa intuição de Lubac, que separou a ordem providencial da história de uma crença em Deus. Algumas teorias modernas da
história beberam nessa fonte, mas negaram o conceito religioso de providência. Tal fora justamente o caso de Hegel,
Saint-Simon e Augusto Comte.
214
Joaquim de Fiori entendia que a terceira idade, ou período do Espírito Santo, era a proposta do Criador para o estabelecimento do seu reino entre os homens. Articulando-se
no modelo do corpo místico de Cristo, Fiori concebia Igreja
do Espírito Santo como uma composição igualmente orgânica, onde os membros trabalhariam para manter o corpo.
Concepção semelhante de grupo social possuiria mais tarde
o próprio Saint-Simon. O Conde, na Correspondance avec
M. de Redern (1811), afirmou que as sociedades não eram
meras aglomerações de seres individuais, ao contrário, os
homens constituíam um verdadeiro ser e o trabalho de cada
um contribuía para o funcionamento do corpo social. O desenvolvimento da ciência promoveu uma fragmentação epistemológica que acabou dificultando a compreensão de que a
economia e a psicologia, por exemplo, forneciam uma visão
parcial de um único ser, o homem. Essa justificativa para a
falta de compreensão da sociedade como um corpo encontra-se em De la physiologie sociale(1813).
Colaborava, também, para dificultar a compreensão da
sociedade como um corpo orgânico a ênfase nas histórias
nacionais que, conforme a observação de Saint-Simon, predominava naquele momento. Um estudo tão segmentado não
poderia permitir um entendimento mais amplo do desenvolvimento do organismo social. Por isso, os historiadores não
formularam uma síntese capaz de explicar a ordem dos fatos, e a teorização daí derivada não se tornou uma filosofia
que conferisse aos fenômenos históricos ordem e coerência.
Assim o verdadeiro progresso era a humanidade, o homem
de sempre, que Augusto Comte denominou Grande Ser, responsável pelo aprimoramento da ordem universal.
À crítica das concepções inorgânicas da história, SaintSimon formulou no Travail sur la gravitation universelle
(1813).
Essa crítica dos estudos históricos demonstra que SaintSimon se inscreve na tradição historicista que se constituía
215
no ocidente cristão. Depois de termos tratado resumidamente das teses de Fiori, abordaremos, agora, de maneira igualmente sucinta, as idéias de Vico.
Giambattista Vico (1670-1744) entendia que toda criação
humana, elaborada em um dado momento da história, mantinha vinculações entre si, compondo unidades mais ou menos homogêneas e que se diversificavam com o correr dos
tempos. As unidades estruturais eram entendidas como o
caminho natural percorrido pelos homens e pelos grupos sociais. Vico, assim como Fiori, entendia a história como o resultado de uma marcha triádica, mas propôs o estabelecimento de três outras etapas: a idade divina, a idade heróica
e, finalmente, a idade humana, que fechavam um ciclo histórico. Eis aí novamente a idéia agostiniana dos três períodos
presentes no desenvolvimento do plano providencial da história.
Na primeira idade, aquela denominada de divina, os homens não apresentavam razoável capacidade de reflexão,
tendo desenvolvido mais a capacidade de fantasiar. Estabeleceram explicações mitológicas e imagens plásticas da realidade, sentindo as intempéries como castigo de deuses terríveis, que eles imaginavam existir e povoar os céus e as altas montanhas. Neste período estabeleceram-se as repúblicas
monásticas, fundamentadas na autoridade paterna e caracterizadas pelas rígidas relações sociais de poder e mando.
Nesse período, segundo Vico, o homem criara
“(...) a sabedoria poética, que foi a primeira forma de
sabedoria da gentilidade, precisou começar de uma
metafísica, não racional e abstrata (igual a dos nossos doutrinadores), mas sentida e imaginada (qual
deve ter sido a dos tais homens primevos, já que eles
não dispunham de raciocínio algum e eram apenas
robustos sentidos e vigorosíssimas fantasias, como ficou dito nas Dignidades). Esta foi para eles a própria
poesia, que para eles constituiu uma faculdade que
lhes era conatural (dotados que eram de tais sentidos
e de fantasias), provinda de uma ignorância de ra-
216
zões, sendo-lhes a matriz de maravilharem-se de todas
as coisas. E eles, justamente por ignorantes de todas
essas coisas, fortemente se encontravam delas...”.276
O final da primeira etapa foi marcado pela criação das
famílias e das primeiras formas de organização social, o que
só foi possível com o controle dos instintos. A fim de garantir a estabilidade das primeiras instituições, preservando-as
quer dos ataques externos, quer das contestações interiores,
os chefes desses grupos passaram a se unir, compondo as oligarquias. Neste momento, apareceram as cidades, que passaram a propor como ideal para a vida humana as virtudes
da moderação, do equilíbrio e da prudência. O universo cultural ainda não havia retirado o véu do raciocínio e a investigação racional e a fantasia alternavam-se e sobrepunhamse num quadro de atos heróicos, de momentos de êxtase e de
criatividade. A esta segunda etapa Vico denominou de heróica e correspondeu ao momento de composição do Antigo
Testamento e da Ilíada de Homero.
A última etapa desse ciclo iniciou-se com a revolta dos
plebeus, que passaram a exigir seus direitos. As sociedades
passaram a se organizar sobre bases racionais e a metafísica
platônica constituiu-se no modelo típico de raciocínio. Esta
idade humana procurou estabelecer relações mais coerentes
entre o mundo exterior e interior. A decadência dos costumes e a quebra das antigas instituições produziu uma era de
decadência, que encerrou este ciclo tripartido, e ao mesmo
tempo iniciou um novo momento. Durante essa interfase cíclica a humanidade reverteria ao barbarismo primitivo, para
iniciar um novo ciclo.
276
VICO, Giambattista. Princípios de uma ciência nova acerca da natureza comum das nações. Trad. Dr. Antônio de Almeida Prado, Nova Cultural. 1988. p. 181.
217
Para Vico, a história compunha-se da sucessão dos ciclos
históricos cujo motor seria a providência divina. Vico elaborou um modelo teórico que conciliava o trabalho humano
com a orientação divina, sistematizando melhor que Fiori a
atuação do Criador na história. O suceder dos fatos não deixava de possuir um impulso divino, mas tal não se dá sem a
atividade humana. A condução divina não era inflexível de
tal forma que inviabilizasse as histórias particulares; ao contrário, dava-lhes consistência e possibilidade. A providência
divina estaria presente no homem, de várias formas, primeiro como fantasia poética e depois como sabedoria reflexiva,
mas tanto num caso como no outro o sustentáculo verdadeiro seria de ordem transcendente. Bori esclareceu a questão
da providência no sucessivo correr dos anos. Depois de estudar a filosofia da história de Vico, ele explicitou que não
se tratava nem de
“(...) intervenção milagrosa nem determinação imanente ao processo histórico, a providência divina
concebida por Vico como valor e norma situados além (e nesse sentido é transcendente) dos acontecimentos particulares: é o valor ideal que sustenta os
acontecimentos em seu curso ordenado, mas ao qual
os acontecimentos jamais se conformam totalmente.
Somente na relação com a providência o homem pode
criar a capacidade de produzir o mundo da história e
conservá-lo”.277
A importância que Vico atribuía à providência, a sua
compreensão da história como resultante dos ciclos sucessivos, a crença de que os ciclos têm períodos áureos e que inevitavelmente caminham para a decadência, são alguns
componentes que o qualificavam como um dos sucessores
277
BORI, Alfredo. Vida e obra. In: VICO, Giambattista. Princípios de
uma ciência nova acerca da natureza comum das nações. São Paulo, Nova Cultural. 1988. p. 105.
218
de Fiori e herdeiros de Agostinho. A providência percorre a
história, concluiu Vico.
“Segundo a ordem das coisas civis, ... se nos faz patentemente sentir naqueles três significados: um, de
maravilha; outro, de veneração que todos os doutos
até agora têm nutrido pela insuperável sabedoria dos
antigos; e o terceiro, daquele ardente desejo em que
fervem de investigá-la e de obtê-la. Pois eles de fato
constituem os três lumes de sua divindade, que neles
fez surgirem os já referidos três belíssimos sentidos
corretos, os quais, depois, pela vacuidade dos doutos
unida á vacuidade das nações..., se depravam: e são
eles que todos os doutos admiram, veneram e almejam
unir-se à sabedoria infinita de Deus”.278
Depois desse rápido comentário dos principais defensores da idéia de história como um plano providencial, podemos passar a estudar Hegel, que foi, entre os modernos, o
tematizador mais notável do historicismo. Mantendo a perspectiva transcendental, retomou o estudo da história e promoveu uma leitura rigorosamente racional da evolução dos
fatos, mantendo a visão tripartida do processo, na mesma trilha de Fiori e Vico. A razão que conduz a história era justamente o objeto da filosofia hegeliana desejosa de apreender
o plano de execução da história universal.
Ultrapassando a perspectiva transcendente que marcara
historicamente o período medieval, Hegel (1770-1831) retomou o estudo da conexão dos fatos e, portanto, da história.
A história, para ele, era o resultado da evolução do espírito,
que ao longo do tempo se manifestava para si próprio. As
diferentes concepções produzidas por povos distintos, e
mesmo pelos indivíduos, não passavam de momentos do espírito universal, que evoluiria para uma auto compreensão.
278
VICO, Giambattista. Princípios de uma ciência nova acerca da natureza comum das nações. Trad. Dr. Antônio de Almeida Prado. São Paulo,
Nova Cultural. 1988. p. 289.
219
O tempo da síntese estava se aproximando e Hegel disse aos
seus contemporâneos:
“Saudamos ao mesmo tempo a aurora de uma era
mais esplendorosa, em que o espírito, violentado para
o exterior, possa voltar a si próprio e conquistar o
território onde estabeleça o seu reinado, onde os ânimos se alteiem por sobre os interesses do momento e
se tornem capazes de acolher o vero, o eterno, o divino, de contemplar e de compreender o que de mais
sublime existe”.279
Desta forma, a compreensão inadequada que se forma da
história devia-se ao fato de que os indivíduos buscavam
compreendê-la da ótica de um único intelecto, não sabendo
como ultrapassar a muralha que os separava do todo, permanecendo, assim, na ótica individual. A história também não
era uma sucessão de verdades ao longo do tempo, mas a evolução progressiva do espírito através de uma longa jornada de autoconhecimento. Existia, portanto, uma relação dos
fatos com o espírito: este último subsiste enquanto os primeiros se sucedem. Hegel entendia que
“a história(...) aspira a contar aquilo que existiu um
tempo, e noutro tempo deixou de existir, por ter dado
lugar a qualquer outra coisa. De fato, verificamos ser
eterna a verdade: não cai no âmbito do que passa, e
por isso não tem história”.280
O motor da história, no entender de Hegel, seria a própria
evolução do espírito. A verdade não se apreenderia da alteridade sujeito-objeto, mas a partir do momento em que o sujeito estivesse vivendo nos fatos e não a eles se contrapondo; então começaria a conhecer a verdade. Portanto, Hegel,
279
HEGEL, Georg Friedrich Wilhelm. Introdução à história da filosofia.
Trad. do Dr. Antônio Pinto de Carvalho. Coimbra, Armênio-Amado,
1980. p. 31.
280
Idem, ibidem. p. 45.
220
assim como Fiori e Vico, procurou encontrar uma forma para explicar como o Ser Eterno se relacionava com os fatos
históricos e como lhes conferia sentido e coerência. Deus
prevalecia, lembrou-nos Hegel, e a história do mundo é unicamente o plano providencial. Deus tornara-se assim um
Absoluto, um senhor da história.
As idéias do jovem Hegel, especialmente as apresentadas
em O espírito do cristianismo e o seu destino, são bastante
semelhantes às de Fiori. Nesse trabalho pode-se falar de
uma luta do espírito para encontrar-se consigo próprio. Na
Fenomenologia do espírito, Hegel abandonou, ainda que
parcialmente, esta ênfase, mas na sua Introdução à história
da filosofia ele se aproximou ainda mais do abade, quer pela
valorização da temática histórica, quer pelo uso do vocabulário trinitário. Ali explicita-se o entendimento da história
como a realização de um plano providencial, onde os acontecimentos estão possuídos da autoconsciência ou absoluto.
Na introdução das Lições sobre a filosofia da história,
Hegel tematizou o progresso do Espírito e o seu movimento.
Retomou o referencial de Vico e enxergou na história dos
povos um movimento cíclico. Atribuiu, em seguida, importância à Reforma iniciada por Lutero, não tanto pelas alterações provocadas imediatamente no plano temporal, mas
porque permitiu que o espírito pudesse fluir mais livremente
nas consciências individuais, facilitando a sua tarefa de autoconhecimento.
O cristianismo, historicamente, iniciou-se no Império
Romano, mas esse Império não possuía uma estrutura capaz
de garantir a sua evolução, pensou Hegel, cabendo tal empresa ao povo germânico. Descendentes dos gregos, os germanos possuíam a força e a inteligência que serviria de base
para que o cristianismo pudesse perpetuar-se na Idade Média e ser transmitido para a modernidade, período no qual atingiria o seu destino.
221
Seguindo a mesma estrutura triádica de Agostinho, Fiori
e Vico, Hegel entendeu que o processo de evolução do espírito no mundo moderno passou por três etapas. A primeira
foi iniciada ainda no Império Romano, com a fundação da
Igreja. Esse período estendeu-se até o reinado de Carlos
Magno. A partir da sua morte, inaugurou-se a segunda etapa,
marcada pelos constantes atritos entre a Igreja e as monarquias feudais. No reinado de Carlos V, iniciou-se o terceiro
e último período, cujo ponto culminante foi a Reforma, que
instituiu a liberdade do espírito e permitiu posteriormente a
consolidação dos estados nacionais.
O historicismo de Hegel foi marcado pelo suceder de etapas e, no seu entendimento, o cristianismo foi o movimento que historicamente permitiu a evolução do espírito. A
vinda de Cristo ao mundo caracterizou o momento no qual o
espírito foi elevado ao máximo das suas possibilidades. Acelerou-se então o desenvolvimento do espírito, que evoluiu
numa estrutura triádica distinta daquela sistematizada por
Fiori. As etapas históricas, entretanto, eram bastante semelhantes, principalmente se ultrapassarmos a mera divisão
histórica e compreendermos que, para Hegel,
“(...) o reino do Pai, comporta já uma certa consciência da Trindade, e por assim dizer a esfera da essência pura; o reino do Filho é a inteligência do Cristo
histórico seguindo o seu senso religioso, isto é, como
fenomização da Trindade ou, em outros termos, como
manifestação objetiva da essência no mundo; o reino
do Espírito, enfim, não é outro que a plena consciência do mistério trinitário, e que significa na realidade
a plena realização da essência na consciência do homem”.281
281
LUBAC, Henri. La posterité spirituale de Joaquim de Fiori. Paris, L.
Namur, 1983. Trad. italiana. p. 434.
222
A filosofia hegeliana da história tinha um outro ponto de
aproximação com aquela teoria elaborada por Fiori. Tratavase de uma interpretação do projeto cristão e uma transposição, para o plano racional, das escrituras. Os dois pensadores fizeram uma leitura pessoal dos escritos bíblicos e
elaboraram uma história da evolução do espírito, assim
como uma versão do culminar do processo, estabelecendo,
cada um à sua própria maneira, a escatologia como
inevitável coroamento do processo.
O culminar da história para Hegel e Fiori tinham aspectos muito distintos. O abade medieval entendia a terceira idade como uma etapa temporal e não existe evidência de
que o mistério de Deus pudesse ser esclarecido aí. Não era
também um momento do saber absoluto, como pensava Hegel, mas especialmente o momento do amor ao saber e amor
a Deus. E mais: Fiori não pretendia inaugurar uma época racional com um total e definitivo secularismo, como parece
pretender o fi-lósofo alemão. Mesmo sem desconhecer estas
diferenças, Lubac apontou para a proximidade do reino do
espírito de Hegel e da idade do Espírito Santo, conforme
formulação de Fiori. Em ambas consolidava-se o projeto anunciado por Cristo e ainda existia uma preocupação com o
destino histórico da humanidade e uma explicação racional
desse destino. Por causa desses pontos de convergência Lubac entendeu que Hegel estava mais próximo do movimento
de dissociação de Cristo e do Espírito Santo do que das interpretações teológicas de origem protestante. O movimento
de instituição da Igreja do Espírito Santo teve sua origem
em Fiori, e a sua filosofia da história encontrou em Hegel
uma formulação moderna.
Depois de comparar Hegel a Fiori, Lubac indicou um outro aspecto fundamental. A evolução do espírito, conforme a
formulação hegeliana, não apontou para o estabelecimento
de uma teoria com tendências atéias, conforme teriam entendido Bruno Bauer e Karl Marx. Ao contrário, o eixo cen-
223
tral do pensamento de Hegel era a volta ao tempo dos primeiros joaquimitas, utilizando a idéia da Trindade como
chave para a compreensão da história.
A análise destas filosofias da história dão-nos certamente
uma compreensão mais efetiva da meditação de SaintSimon. Ele inscreveu-se nesta tradição historicista e está vivamente impressionado com a possibilidade de laicização do
projeto cristão. A estratégia para tanto era o emprego da ciência, que se tornaria o evangelho dos novos tempos, e as
transformações materiais seriam possíveis graças ao desenvolvimento da indústria e a uma reestruturação da ordem social.
Podemos tratar, agora, dos aspectos filosóficos que encontramos subjacentes ao industrialismo de Saint-Simon.
Cumpre ressaltar que, para ele, a filosofia era o estudo do
esforço humano, quer das criações individuais, quer das coletivas. Não se entendia, ainda, o estudo da filosofia ao nível
dos pro-blemas ou das perspectivas, sendo mais razoável afirmar que Saint-Simon se move no difícil terreno dos sistemas. Compreende-se, então, a razão de ter elaborado um
projeto ético tão ambicioso, propondo estabelecer um novo
modelo de vida e de organização social.
2. As conseqüências filosóficas do industrialismo.
A
crítica saint-simoniana da organização social de seu
tempo tornou-o conhecido entre os precursores do
socialismo, para quem a sua contribuição era bastante limitada. O que apresentamos mostra, entretanto, um SaintSimon com razoável conhecimento de política e especialmente com objetivos bastante definidos. Crítico da sociedade de sua época, propôs um modelo teórico capaz de harmonizar a valorização da ciência, a defesa da industrialização,
o combate ao clero, representante do atraso intelectual e social. Acima de tudo valorizou o trabalho e a criação humana
e encontrou assim o sentido para a existência, fundamentada
224
não mais por um ser transcendente, mas haurindo em si própria as razões do seu ser.
Os referidos elementos foram combinados numa religião,
tentativa romântica de encontrar uma motivação para a conduta humana, que seria o instrumento de divulgação de sua
doutrina. Se os exageros e as excentricidades promovidos
por essa nova religião foram capazes de desacreditá-la, não
podemos deixar de reconhecer o mérito daquele que ousou
encontrar para o homem um sentido imanente e que tematizou o progresso material das sociedades como forma de eliminar as condições sub-humanas de vida.
Sobre algumas de suas teses apoiaram-se posteriormente
tanto o positivismo quanto o marxismo. Augusto Comte não
o indicou com clareza, mas é de Saint-Simon que ele retirou
as teses fundamentais282, e Marx reconheceu o seu esforço
extraordinário para estabelecer uma nova ordem social.
De fato, os aspectos centrais do positivismo e do marxismo têm pontos em comum com o saint-simonianismo.
Com efeito, segundo indicou Abbagnano:
“O positivismo acompanha o nascimento e a afirmação técnico-industrial da sociedade, fundada e condicionada pela ciência. Exprime as esperanças, os ideais e a exaltação otimista que provocaram e acompanharam esta fase da sociedade moderna. O homem,
nesta época, julgou ter encontrado na ciência a garantia infalível do seu próprio destino. Por isto rejeitou, considerando-a inútil e supersticiosa, toda a garantia sobrenatural e pôs o infinito na ciência, encerrando, nas formas desta moral, a religião, a política,
a totalidade da sua existência”.283
282
DAVAL, Roger. História das idéias na França. Trad. de Maria Lúcia
Montes. São Paulo, DIFEL, 1964. p. 78.
283
ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. Trad. de Armando da
Silva Carvalho e Antônio Ramos Rosa. Lisboa, Editorial Presença, 1970.
v. X. p. 168.
225
O marxismo, com a proposta de uma nova ordem social,
com a defesa da evolução da matéria e das sociedades, suas
teses manifestamente anti-metafísicas, sua tentativa de constituir aqui na terra o paraíso para a humanidade, sua ênfase
na direção do Estado pela classe trabalhadora, da mesma
forma que o positivismo apresentava muitos pontos em comum com o saint-simonismo.
Mesmo propondo uma nova ordem social, expressando
um projeto novo para a sociedade que começava a ganhar
espaço a partir da crítica iluminista, o saint-simonismo têm
pontos de convergência com a reação tradicionalista que
surge no século XIX, cujos representantes mais destacados
são Joseph de Maistre, Louis de Bonald (1754-1840) e Robert Felicité de Lamennais (1782-1854). A defesa da tradição, no âmbito do movimento romântico, encontrou-se com
o projeto religioso. Os autores tradicionalistas desejavam
implantar uma nova ordem social e política:
“(...) delineia-se em torno à tradição, oposto ao antitradicionalismo iluminista e ao espírito da Revolução,
em nome do princípio da autoridade política e religiosa. Contra a autoridade absoluta da razão se reivindica a necessidade da tradição personalizada na Igreja Católica e a subordinação da ordem social a um
princípio transcendente”.284
O novo cristianismo de Saint-Simon era uma tentativa de
operacionalizar o projeto de Jesus. Saint-Simon pretendia
organizar a sociedade de tal forma que a classe mais pobre
fosse beneficiada, e para tanto pretendia que a Igreja assumisse a tarefa de dirigir a humanidade. Para realizar semelhante empresa, ela precisaria ser dirigida por sábios e industriais. Como a cúpula católica não admitia tal estruturação, Saint-Simon a acusou de traidora do projeto de Cristo e
284
SCIACCA, Michele Federico. História da filosofia. Trad. de Luis
Washington Vita. São Paulo, Mestre Jou, 1968. v. 2. p. 99.
226
sonhou instituir uma organização capaz de suprir a lacuna
que a Igreja deixou, quando, deliberadamente, por volta do
século XV, abandonou o papel de condutora da humanidade
e porta-voz do Divino Fundador. Tal projeto, mesmo não
sendo novidade na história do cristianismo a opção pela
classe mais pobre, haja vista a reforma de Francisco de Assis (1182-1226) e a filosofia de Joaquim de Fiori (11451202), encontrava naquele momento histórico nova fundamentação ética. A demolição da física peripatética já se
completara e o que vigorava era um projeto leigo de civilização. O empirismo britânico ousou destruir a noção de
substância e com ela o propósito de fundamentar a ética na
metafísica. Era preciso encontrar nova justificação para o
ordenamento social:
“O trabalho é a utilização humana das forças naturais; a espécie de fé no trabalho e na indústria que se
vê nos saint-simonianos supõe o otimismo, a crença
na bondade de uma natureza que se submete ao serviço do homem; este otimismo constitui o fundo da religião saint-simoniana, que não quer, como na mística
cristã, sacrificar a carne ao espírito, nem como no
paganismo, o espírito à carne, já que toda realidade é
divina: Deus é tudo o que existe; tudo está Nele, tudo
é por Ele; nenhum de nós está fora Dele; porém tampouco nenhum de nós é Ele”.285
Esse cântico expressa o esforço no sentido de justificar
as ações empreendido pelo panteísmo saint-simoniano, evidencia a elevação da humanidade à categoria de ser fundamental e permite uma reavaliação do significado do trabalho, considerado agora como atividade nobre.
O trabalho industrial permitiria a consolidação do progresso inerente à história humana.
285
BRÉHIER, Émile. História de la filosofia. Trad. de Luis Washington
Vita. São Paulo, Mestre Jou, 1968. v. 2. p. 99.
227
“Nesse contexto, a sociedade é concebida como verdadeira máquina organizada ou como um organismo
que, ao longo dos tempos, criou os próprios órgãos
para adaptar-se às diferentes situações. A unidade inteligível da História não é nem o Estado nem a Nação, mas a sociedade organicamente considerada. As
suas forças e processos não são criação deliberada de
ninguém, mas fruto do organismo social”.286
A própria filosofia seria o resultado do esforço adaptativo do conjunto da sociedade, que produz respostas para as
questões que polarizam a consciência num determinado
momento da história. Aplicando a sua concepção de história
à sua própria época, ele afirmou que o progresso científico
colocou em descrédito as doutrinas filosóficas e teológicas,
o que promoveu a destruição daquela que seria uma época
orgânica. A partir do século XVI, a química, a física, a biologia e a astronomia passaram a se sustentar sobre uma base
positiva. Acreditava que sobre esta base deveria construir-se
uma ordem positiva que resultaria num novo período orgânico. As raízes do novo período estavam na Renascença.
Naquele mo-mento, o período orgânico anterior começava a
degenerar-se.287
“A novidade da ciência moderna reside no fato de
não existir nela qualquer interesse por problemas ontológicos. A metafísica tradicional tinha por objeto os
286
RODRÍGUES, Ricardo Vélez. Por que ler Saint-Simon, hoje. Estado
de São Paulo. Ano I, nº 41, de 22/03/81.
287
KOIRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento científico.
Trad. Márcio Ramalho, Rio de Janeiro, Forense e Ed. Universidade de
Brasília, 1982.
GRANT, Edward. Hipóteses no fim da Idade Média e nos primórdios
da ciência moderna. In: Iniciação à história da ciência. São Paulo, s. e.,
1965.
NICOL, Eduardo. Los princípios de la ciência. México, Fondo de Cultura Econômica, 1974.
NEWMAN, James R. Que és la ciência?. Trad. de Federico Portillo.
Madri, Aguilar, 1962.
228
primeiros princípios do ser em geral, enquanto que a
física se ocupava fundamentalmente do ser em movimento. Nesses momentos iniciais ainda não havia uma
distinção razoável entre a física e a ontologia. Por isso, encontramos traços da velha metafísica no trabalho dos físicos renascentistas, mas eles, já naquele
momento, voltavam sua atenção para a medida do
movimento. Com efeito, o desinteresse pela ontologia
manifesta-se em diversos momentos na nova física.
Estruturam-se distinções evidentes entre o pensamento antigo e moderno e poderíamos começar salientando que, a partir da superação da velha ontologia, esboça-se no centro do pensamento ocidental, com a
geometrização do espaço e a despreocupação com a
ordem universal, uma nova cosmologia”.288
Em razão da evolução da ciência, o mundo já não pode
mais apoiar-se nos pressupostos metafísicos e teológicos.
Saint-Simon foi anunciador dessa nova ordem social que
possuía uma outra crença, a da religião positiva.289 Nela os
cientistas assumiriam o papel do antigo clero católico, condenado a desaparecer como tudo aquilo que estava ligado ao
período anterior.
O industrialismo tornou-se na França uma religião civil,
que difundiu socialmente o valor das descobertas científicas
e se tornou uma espécie de doutrina do progresso. O compromisso com o progresso era oriundo não somente da atividade científica, mas de compromissos éticos. Nesse período
espalhou-se pelo mundo um otimismo realizador derivado
do progresso tecnológico, que teve na doutrina de SaintSimon o suporte ideológico, pois “punha em relevo a grande
288
CARVALHO, José Mauricio de. A causalidade no pensamento de Moritz Schlick. Juiz de Fora, UFJF, 1986.
289
SAINT-SIMON, C. H. Le nouveau christianisme. Paris, Editions du
Seuil, 1969.
229
importância da indústria organizada e guiada cientificamente pela técnica”.290
Saint-Simon preocupou-se não só com o desenvolvimento humano, mas também em entender os fundamentos teóricos subjacentes a ele. A busca desta fundamentação teórica
o consagrou como um dos grandes pensadores do início do
século XIX.
Analisando a filosofia naquele momento, ele se deu conta das duas grandes linhas introduzidas na modernidade com
Descartes: o empirismo e o racionalismo. Verificou que, notadamente na Alemanha, o racionalismo possibilitou a consolidação do idealismo, enquanto na França e na Inglaterra
teria vingado uma meditação empirista. Mesmo negando a
interpretação idealista da natureza, não podia deixar de reconhecer a importância do método dialético desenvolvido
pelos pensadores alemães, notadamente Hegel. O mais destacado dos discípulos de Kant estudou a evolução da idéia,
submetida a um processo de evolução dialética. Os momentos desta evolução seriam a tese, a antítese e a síntese. No
último momento se combinariam os aspectos contraditórios
que o precederam na marcha triádica. A filosofia seria o estudo da evolução da idéia291.
Aplicando o método evolutivo à história, Saint-Simon identificou momentos que vão sendo superados, e enxergou
na história o progresso da humanidade, que se iniciou com o
politeísmo, passou pelo deísmo, para atingir, em sua fase
madura, o fisicismo. A história do homem passou por estas
três fases, assim explicitadas por ele:
290
AMERIO, F. Carlini, e FABRO, C. História de la filosofia. Madrid,
Rialp, 1965. p. 268.
291
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Trad. de Henrique
Cláudio de Lima Vaz, Orlando Vitorino, Antônio Pinto de Carvalho. São
Paulo, Abril Cultural, 1980.
230
“A mente humana acredita a princípio na existência
de grande número de causas independentes. Logo, aceitou a idéia de muitas causas consideradas como
resultado de um todo único, que é a razão. Mais tarde
se elevou até a idéia da razão universal e una, ou
Deus. Finalmente compreendeu que as relações entre
Deus e o universo são incompreensíveis e indiferentes
(indiferentes porque Deus, ao prever tudo o que haveria de ocorrer, não pode trocar nada na ordem estabelecida por ele) e que era preciso socorrer a busca
de fatos e considerar o fato mais geral, que ela descobrirá como causa única de todos os fenômenos”.292
Lendo os físicos modernos mais notáveis, aqueles que
deram a esta ciência um enfoque distinto do que ela havia
herdado dos gregos e que persistia até o século XV, SaintSimon verificou que eles faziam referência a Deus. Esse fato, entretanto, foi interpretado como parcela do processo de
mudança. Na Renascença, a Igreja aumentou o controle sobre os intelectuais, assumindo uma posição retrógrada que
só serviu para atrasar o movimento renovador. Muitos cientistas foram perseguidos e sacrificados. A Igreja utilizou-se
da mesma estratégia de repressão de que fora vítima nos
primeiros séculos da cristandade.293 Cada época reagia para
impedir sua superação, mas a mudança acabava por se implantar.
Estudando os teólogos e metafísicos que se reportavam a
Deus e davam a ele a tarefa de fundamentar a realidade, Saint-Simon concluiu que a referida estratégia era um equívoco e que os teólogos apenas atribuíram a Deus a maximização das potencialidades humanas. Retirou de Deus não só o
seu papel de criador, mas também o de sustentáculo da rea-
292
SAINT-SIMON, C. H. Oeuvres choisies. v. I, Bruxelas, Lemonnier,
1859. p. 199/200.
293
SAINT-SIMON, C. H. Le nouveau christianisme. Paris, Editions du
Seuil, 1969.
231
lidade, concluindo que “(...) a idéia de Deus não é outra coisa senão a idéia da razão humana generalizada”.294
Constituindo-se a idéia de Deus em algo dispensável ante
a maturidade do pensamento humano e as religiões teístas,
tendo-se tornado uma produção social ultrapassada, caberia
destaque à nova religião, cuja tarefa básica era de natureza
pedagógica e consistia na difusão do culto das ciências e na
defesa do desenvolvimento, o que realmente modificaria a
face da terra.
Para Saint-Simon, o progresso científico desmascarou a
fragilidade intelectual que precisou de Deus como fundamento. O cristianismo assumiu essa herança, tornando-se
uma espécie de guardião da infância intelectual. Pouco tempo depois, também Nietzsche desferiu contra o cristianismo
severas críticas, responsabilizando-o por estabelecer uma
moral de escravos. Enquanto a crítica do francês era mais
enfaticamente epistemológica, a do alemão era mais de natureza moral, mas ambos condenavam a mesma coisa, uma religião repressora que impedia a grandeza e o desenvolvimento humano.
Na crítica moral de Nietzsche,
“o ideal do cristianismo deu ao homem um sentido,
fundamentou o seu sofrimento, porém privou-o de viver, de contemplar o inesperado, de superar as adversidades. O ideal cristão fecha os olhos dos homens e
os impede de contemplar a realidade tal qual ela é. A
realidade da vida é luta, é batalha, é força e não benevolência e caridade... A vida é negada porque ela
inclui a dor e assim, em lugar de um mundo concreto,
elabora-se um mundo sobre-humano onde existem anjos, vivendo valores antivitais. Contra o cristianismo
Nietzsche levanta-se. Em primeiro lugar é preciso acabar com Deus, destruir o outro mundo que é a sua
294
SAINT-SIMON, C. H. Oeuvres choisies. v. I, Bruxelas, Lemonnier,
1859. p. 217.
232
morada. Torna-se fundamental revalorizar tudo aquilo que havia sido condenado pela moral tradicional, o
corpóreo, o anti-espiritual, o irracional”.295
A crítica de Saint-Simon ao cristianismo teve, conforme
indicamos, diferenças da de Nietzsche,296 mas estava próxima daquela no seu objetivo de inaugurar uma nova organização social pela qual o homem fosse glorificado pelos seus
feitos.
Como já afirmamos, a raiz da crítica saint-simoniana à
metafísica e à teologia teve sobretudo um pressuposto epistemológico.
“O conhecimento humano fica nos limites das verdades de fato, portanto, nos limites dos seres materiais
sensíveis... O materialismo gnosiológico ou epistemológico vai dizer-nos que o conhecimento humano, realmente válido, atinge só a realidade material. O resto é suposição gratuita, é sonho, é ilusão, é projeção
de desejos humanos, infundados, do ponto de vista do
conhecimento real”.297
Sob o aspecto epistemológico, o positivismo saint-simoniano assemelha-se ao empirismo, mas incorporou a idéia de
295
CARVALHO, José Mauricio de. Uma introdução ao pensamento de
Nietzsche. In: Filosofia brasileira. Juiz de Fora, Revista do mestrado em
filosofia da UFJF. Ano I, vol. III. p. 21.
296
NIETZSCHE. F. Assim falou Zaratustra. São Paulo, Abril Cultural,
1974.
Idem. Para a genealogia da moral. São Paulo, Abril Cultural, 1974.
Idem. O crepúsculo dos ídolos. Trad. de N. C. Havara Gary. Lisboa, Editorial Presença, 1973.
Idem. Ecce homo. Madrid, Aliança Editorial, 1971.
MAMN, Heirich. O pensamento vivo de Nietzsche. Trad. de Sérgio Milliet. São Paulo, Martins, s.d.
COPLESTON, Frederick. Nietzsche; filósofo da cultura. Porto, Tavares
Martins, 1953.
297
LARA, Tiago Adão. Caminhos da razão no Ocidente. A filosofia ocidental do renascimento aos nossos dias. Petrópolis, Vozes, 1986. p. 78.
233
progresso moral que não estava explícita naquele. A evolução seria uma lei típica dos fatos naturais e humanos, aspecto que, conforme indicamos, estava presente no idealismo
alemão,
“com esta diferença, entretanto, que o idealismo concebia o vir-a-ser como desenvolvimento racional, teleológico, ao passo que o positivismo o concebe como
evolução, por causas”.298
O conceito que Saint-Simon tem da natureza é materialista. A natureza possuía leis próprias às quais o próprio homem se encontrava submetido. A matéria era dividida em
duas classes: a sólida e a líquida, de cuja combinação se originavam todos os seres do Universo. O homem seria composto de uma combinação mais sutil dos mesmos elementos
materiais presentes nos outros seres. Já em seus primeiros
escritos Saint-Simon formulou um princípio ao qual se manteria fiel por toda a vida, isto é, a concepção de que a natureza era dirigida por leis naturais.
A realidade material era composta por uma única substância, assim entendia Saint-Simon, que não concordava
com o dualismo introduzido no pensamento ocidental por
René Descartes. Este último concebia a natureza e o próprio
homem como resultado de um composto dual, produto da
soma da alma e do corpo.299 Por sua vez, Saint-Simon entendia que os movimentos dos corpos no espaço obedeciam
a uma regra simples segundo a qual os seres se moveriam na
direção em que se opusesse a eles menor resistência. No
mundo inanimado predominariam os corpos sólidos, ao contrário do mundo orgânico onde prevaleceria a matéria líqui-
298
PADOVANI, H. e CASTAGNOLA, L. História da filosofia. 2. ed. São
Paulo, Melhoramentos, 1986. p. 376.
299
DESCARTES. René. As paixões da alma. Trad. de J. Guinsburg e
Bento Prado Júnior. 4. ed. São Paulo, Nova Cultural, 1987.
234
da. Essa formulação teórica opunha-se ao dualismo cartesiano reafirmando a tradição monista.
Em 1813, publicou um trabalho sobre a gravitação universal, idéia que ele considerou adequada para explicar não
apenas os fenômenos do mundo natural, mas a própria evolução da sociedade humana. A idéia de gravitação pode ser
aproximada do conceito hegeliano de progresso, porque todo o sistema se baseia nela,300 conforme nos relatam Rist e
Gidei:
“Procurou elaborar uma síntese científica que, no futuro, pudesse fornecer uma moral positiva e substituir
os dogmas religiosos. Seria, como diz Dumas, um
breviário científico em que o conjunto dos fenômenos
devia ser deduzido de uma só idéia, a da gravitação
universal. Ele próprio reconheceu quanto tinha de
quimérica uma explicação tão simples e a insuficiência dos seus conhecimentos para realizar tão ambiciosa tentativa filosófica”.301
Parece-nos existirem também na sua teoria do conhecimento alguns resquícios do racionalismo, que ele não pretendia manter, mas que acabaram permanecendo. Conservou
na base de seu empirismo algumas idéias que não seriam derivadas das sensações, mas adviriam do próprio intelecto e
que estariam na base das idéias derivadas da experiência,
permitindo estabelecer relações com os fatos observados.
A sua teoria das sensações, apesar disso, é muito semelhante àquela formulada por John Locke,302 para quem todo
conhecimento advém das experiências externas e internas,
300
SAINT-SIMON, C. H. Oeuvres chosies. v. I, Bruxelas, Lemonnier,
1859.
301
RIST, Charles e GIDEI, Charles. História da doutrinas econômicas.
Trad. de Eduardo Salgueiro. 5. ed. São Paulo, Atlas, s.d. p. 238/39.
302
LOCKE, JOHN. Ensino acerca do entendimento humano. São Paulo,
Abril Cultural, 1973.
235
essas últimas resultantes da reflexão. O empirismo de Locke
fundamentava-se, no sentir de Sciacca, na experiência:
“Duas são as formas da experiência: a sensação ou
percepção externa, da qual nos vêm as idéias dos objetivos externos (uma cor, um som etc) e os atos espirituais. Em suma: idéias das coisas e idéias do eu.
Tanto a percepção externa como a interna nos fornecem conjuntos de idéias que representam conjuntos
individuais ou substâncias; decompondo estes conjuntos, chegamos a elementos simples não mais decomponíveis”.303
O que fica patente na sua teoria do conhecimento é a existência de dois métodos. O método a posteriori ou método
científico introduzido por Bacon e Newton e destinado ao
conhecimento do mundo, que se caracterizava por buscar estabelecer leis gerais a partir de fatos específicos observados
em experiências cuidadosamente planejadas. O outro método a priori , seria aplicado na investigação dos problemas de
natureza matemática.
“A missão da ciência, sustentam eles, é reduzir os fatos parciais ao fato fundamental, estabelecer quais
são as várias relações que existem entre o parcial e o
geral. O caráter unilateral dos métodos a priori e a
posteriori será superado combinando-se a análise e a
síntese mediante um único método (operation general)
de conhecimento do universo”.304
A concepção de Saint-Simon de ciência apresentava
componentes dialéticos, o que o diferencia bastante dos outros materialistas franceses do século XIX. Sobre a relação
303
SCIACCA, Michele Federico. História da filosofia. v. II. São Paulo,
Mestre Jou, 1968. p. 97.
304
DYNNIK, M. A. et alii. História de la filosofia. De la revolucion burguesa de Francia em 1789 ao nascimiento del marxismo. México, Grijalbo, 1965. p. 141.
236
entre os fatos particulares e as leis gerais assim se expressaria:
“Para facilitar o conhecimento de uma série nova de
idéias em um prazo menor, conviria utilizar duas possibilidades: apresentá-la sem sua relação recíproca e
também separadamente, a fim de que o exame inclua
tanto o geral como as partes”.305
Em uma de suas Cartas de um habitante de Genebra a
seus contemporâneos formulou uma divisão da ciência, propondo que a organização do conhecimento se dava conforme
o seguinte esquema interpretativo: fenômenos astronômicos,
físicos e químicos. A complexidade de cada uma dessas áreas podia ser sentida em função do momento histórico em
que o homem se dedicou a cada uma delas; os fenômenos
mais simples foram os primeiros a ser investigados. Os fenômenos químicos e os fisiológicos sendo de natureza mais
complexa mereceram investigação num período posterior.
Num de seus escritos seguintes, intitulado Trabalho sobre a gravitação universal306 Saint-Simon avaliou o significado da extensão do conhecimento entre as diferentes camadas da sociedade, assim como uma certa equivalência frente
às normas morais. Acabou concluindo que semelhante forma
de organização não era possível. O sistema moral e o de idéias precisariam ser diferenciados dentro das várias classes
da nova sociedade industrial.
“Assim, por exemplo, os inventores e diretores se regem pela idéia universal da gravitação (na ciência e
na sociedade), as classes inferiores seguem mantendo
305
SAINT-SIMON, C. H. Oeuvres choisies. v.I. Bruxelas, Lemonnier,
1859. p. 56.
306
SAINT-SIMON, C. H. Oeuvres choisies. Bruxelas, Lemonnier, 1859.
237
a crença em Deus, que é uma transcrição popular da
gravitação universal”.307
Tratou também no mesmo estudo de ampliar a síntese científica que ele havia proposto anteriormente nas Cartas de
um habitante de Genebra... Tomando por base o conhecimento científico acumulado até o século XVIII, ele propôs
uma nova classificação das ciências, reservando à física o
papel de coluna vertebral do sistema.
A sua classificação das ciências apresentou uma novidade em relação às formulações anteriores, notadamente a de
Lémery, que serviu de base para a de Condillac. A classificação das ciências elaborada por Saint-Simon308 foi resumida no seguinte esquema, proposto por Dynnik, notável, aliás,
por sua simplicidade:
“ciências físicas
/----------------------------------------^-----------------------------------------\
física especial, física geral,
física geral,
ou ciência da análise das
ou ciência da generalização
propriedades e relações
das propriedades e relações
dos corpos
dos corpos
/--------------------^------------------\ /--------------------^--------------------\
corpos não
corpos
corpos
corpos
organizados
organizados
astronômicos
terrestres
/--------^---------\ /--------^---------\
Química Química
Fisiologia
/--------^---------\ /--------^--------\
corpos corpos corpos corpos
307
MORA, José Ferrater. Diccionário de filosofia. Buenos Aires. Editorial Sudamericana, s.d.
308
SAINT-SIMON, C. H. Introduction aux travaux scientifiques du XIXº
siécle. Paris, Scherff, 1808. p. 158, 162-171.
238
dos
corpos
sólidos
dos
Psicologia
corpos
fluidos”.309
sólidos fluidos
sólidos fluidos
No seu sistema permaneceu implícita a possibilidade de
mudança de um corpo sólido em outro fluido, o que representava a idéia de progresso presente no sistema. Dessa
forma, ele deixou aberta a possibilidade de evolução, de
progresso, de abertura para o novo, aspectos que havia sido
consagrado no idealismo hegeliano e que ele trouxe para o
contexto empirista. A referida concepção estaria presente
tanto em suas idéias sociais, que o consagraram como um
dos precursores do socialismo, como nas suas teses filosóficas que, por esse aspecto, dão ao empirismo francês um aspecto não contemplado pelo empirismo britânico. Como
conseqüência disso ele se distinguiu daqueles pensadores
que negavam o progresso e o surgimento de novos elementos, daqueles que entendiam a realidade como uma mera repetição e reduziam o movimento a um círculo vicioso. E explicou quem eram tais pensadores:
“Chamo de filósofos circulares aos sábios que afirmam que a razão humana roda eternamente descrevendo o mesmo círculo, que volta, por conseqüência,
ao mesmo ponto de onde partiu e que tem percorrido
muitas vezes este círculo”.310
A sua idéia de progresso aparece de forma mais nítida na
sua ética, onde ele explicou o desenvolvimento dos sistemas
sociais, partindo dos mais simples para os mais complexos.
Para elucidar esse desenvolvimento, ele tomou como base o
idealismo hegeliano, aspecto a que já fizemos referência,
309
DYNNIK, M. A. et alii. História de la filosofia. De la revolucion burguesa de Francia em 1789 ao nascimiento del marxismo. México, Grijalbo, 1965. p. 143.
310
SAINT-SIMON, C. H. Oeuvres choisies. v. I Bruxelas, Lemonnier,
1859. p. 84.
239
mas dele se distinguiu. Cumpre-nos, então avançar nessa
temática e explicitar em que aspectos ele se diferenciou de
Hegel. O desenvolvimento das sociedades humanas e a própria formulação teórica eram para o filósofo alemão o resultado da evolução do espírito absoluto a caminho do autoconhecimento. Para Saint-Simon, o progresso era fruto do desenvolvimento da razão humana ao longo dos tempos. Nesse
desenvolvimento, os homens eram considerados instrumentos da razão.*
Em que pese o aspecto idealista marcante no seu pensamento, que lhe valeu a classificação de utópico, Saint-Simon
apresentou algumas teses que tiveram reconhecimento universal, entre as quais destacamos a idéia de que a organização social visava ao ajustamento do processo de produção
econômica, assim como a idéia de recrutar dirigentes para o
Estado com experiência de direção nas indústrias.
“A sociologia de Saint-Simon contém elementos de
historicismo. Toda a sua obra se vê presidida pela feliz idéia de que cada ciclo tem seu caráter e cada instituição tem sua duração. Estabelece a ordem de sucessão que existe na história entre o passado, o presente e o futuro, e tem em grande estima o progresso
industrial com a aparição do capitalismo”.311
A sociedade industrial não promoveria mais do que um
código de interesses, razão pela qual Saint-Simon, com sua
doutrina, pensava em estabelecer uma nova ordem. A nova
sociedade seria conduzida pelos industriais e também pelos
*
O progresso do espírito humano em várias etapas aparece em Mémoire
sur la science de l’homme. IN ENFANTIN, P. Science de l’homme,
Physiologie religieuse. Paris, Masson, 1858. A. V. b. p. 42/43.
311
DYNNIK, M. A. et alii. História de la filosofia. De la revolución burguesa de Francia em 1789 ao nascimiento del marxismo. México, Grijalbo, 1965. p. 145.
240
sábios e artistas. Estes últimos se aliariam e elaborariam
uma ética e uma estética geral, e a beleza, em escala global,
polarizaria as prospectivas destes pensadores. A filosofia saint-simoniana seria, ao mesmo tempo, um hino ao trabalho e
a uma paixão geral que, a gosto do romantismo, seria expressa por essa estética generalizada.
A sociedade moderna viveu um momento de crise semelhante àquele vivido pelo Império Romano no seu período
de decadência. O responsável por isso foi um complexo conjunto de variáveis que contribuíram para alterar substancialmente a organização mundial, dentre as quais se destacaram a reforma protestante, a reação católica, o liberalismo, a
revolução gloriosa, a independência dos Estados Unidos da
América e das várias colônias das nações ibéricas.
“No mundo moderno, o problema que predomina sobre todos os outros, incluídos o político e o religioso,
é o econômico: é a condição dos trabalhadores — totalmente descurada na especulação dos teóricos e nos
programas dos políticos — que revela toda a profundidade e gravidade da crise da nossa época. A crise
não poderá ser resolvida, segundo Saint-Simon, senão
pondo à frente da sociedade os grandes industriais e
os homens da ciência: o interesse da indústria coincide com o interesse de todos, e a indústria deve ao
progresso das ciências e seu contínuo desenvolvimento a sua crescente influência na vida social. No novo
sistema de organização da sociedade, a direção espiritual deve passar da nobreza para a indústria e os
bancos”.312
312
MONDIN, Battista. Curso de filosofia; os filosófos do ocidente. Trad.
de Benômi Lemos. São Paulo, Paulinas, 1983. p. 114.
241
Saint-Simon inscreve-se, pois, entre os críticos do idealismo e do liberalismo,313 apesar de conservar muitos pontos
comuns com aquelas doutrinas.
3. O Industrialismo de Saint-Simon e o Liberalismo de J.
B. Say
A
partir do final do século XVIII, a intelectualidade
européia sentiu que os valores defendidos pelo antigo regime estavam se desfazendo. A modernidade, que nascera sob o patrocínio da razão, considerada como o fundamento de todos os valores, conseguira finalmente sobreporse à antiga organização, cuja fundamentação metafísica foi
sacralizada pelo tempo e pela origem divina.
Ao estabelecer como critério de verdade as idéias claras
e distintas, Descartes havia dado à razão a tarefa de iluminar
a realidade. Os iluministas pretenderam, seguindo a mesma
rota, elaborar uma síntese do saber, criando a grande enciclopédia. Edificadas as bases da confiança na razão, acreditaram poder dela se valer para implantar novos valores e instituir uma nova ordem.
Ao propor uma sociedade sobre novas bases, alguns pensadores responderam aos questionamentos da época e enxergaram uma nova etapa na história humana, marcada pelo
progresso e destinada a salvar a humanidade. A implantação
desta nova ordem exigia um projeto amplo, capaz de garantir o progresso para a maioria e superar as dificuldades que
começavam a surgir. O utilitarismo e o industrialismo partilharam do otimismo do novo momento e propuseram, sob o
patrocínio da razão, um projeto para superar dificuldades
emergentes. As duas éticas possuíam origem e objetivos
313
JACOT, Louis. História crítica do pensamento. Trad. de Charles Marie Antoine Bouéry. v. II. São Paulo, Mundo Musical, 1973.
242
comuns, apesar das diferenças que aos poucos foram tornando-se evidentes.
Um estudo mais atento do industrialismo nos permitiu
identificar traços idealistas e até mesmo valores tradicionais
no sistema. O industrialismo trazia um conjunto de traços
complexos para permitir a procura do progresso, a iluminação moral e a estrutura orgânica da sociedade.
Saint-Simon foi um observador agudo dos episódios sociais de sua época e assistiu à luta pelo poder na França durante o período revolucionário. Enxergou de forma precisa o
antagonismo entre os industriais, representantes da nova ordem, e os nobres e o clero conservador, defensores da ética
tradicional. Verificou que a balança tendia a favor dos primeiros e ele próprio passou a pregar uma nova ordem. Sua
avaliação permitiu-lhe aderir aos compromissos com o progresso:
“Quando da emancipação das comunas, vemos a
classe industrial, depois de ter resgatado a sua liberdade, conseguir criar para si um poder político. Este
poder consiste em nada lhe ser imposto sem seu consentimento. Ela desenvolve-se e enriquece pouco a
pouco, ao mesmo tempo que se torna mais importante; a sua existência social melhora sob todos os aspectos, ao passo que as classes a que podemos chamar teológicas e feudais perdem constantemente em
consideração e em poder real, donde concluo que a
classe industrial deve continuar a ganhar e invadirá,
por fim, toda a sociedade. É para aí que as coisas se
encaminham, é para aí que nós vamos”.314
Um aspecto característico da ética utilitária era a defesa
da liberdade para agir, para investir, para crescer. A capacidade de alguns, de identificar no mercado as carências, e de
conseguir organizar os meios de supri-las, era o eixo dina-
314
SAINT-SIMON, C. H. Lettres á un Américan. Oeuvres Choisies. v. II,
Bruxeles, Lemonnier, 1959. p. 166.
243
mizador da sociedade. Os indivíduos tocados pelo valor do
trabalho encontravam nesse ambiente um meio propício para
o desenvolvimento de suas potencialidades, montavam livremente seus negócios e buscavam no lucro a paga pelo
próprio esforço. No utilitarismo identificaram trabalho e
progresso econômico. Considerando que, por indústria, Saint-Simon entendia qualquer atividade produtiva e não apenas a produção fabril, mesmo reservando para ela um papel
de destaque, podemos verificar através de suas palavras o
quão ele está próximo dos valores propostos pelos liberais.
“A base da liberdade é a indústria... a liberdade só
com ela pode crescer, só com ela se pode fortificar. Se
esta verdade, tão antiga nos fatos, tão nova ainda para o pensamento, se encontrasse nos espíritos em vez
de todos os sonhos mentirosos da antigüidade, nunca
teríamos ouvido proclamar esta tolice sanguinária: a
igualdade ou a morte”.315
A Revolução Francesa inaugurara uma nova ordem social, estabelecera uma assembléia que passou a propor normas
para o funcionamento da sociedade. Esse regime parlamentar, segundo Saint-Simon, consagrara uma organização provisória encarregada de realizar a transição de uma sociedade
feudal para uma nova sociedade cujos fundamentos estariam
alicerçados no industrialismo. Aquele governo revolucionário nada mais era do que um governo de transição, e a isso
ele referiu-se textualmente, considerando-o “(...) como uma
passagem indispensável para o regime industrial”.316
Aquela organização revolucionária era
315
SAINT-SIMON, C. H. Oeuvres de Saint-Simon e d’Enfantin. v. II, Paris, Dentu, 1865. p. 210/1.
316
SAINT-SIMON, C. H. Lettres d’un habitant de Genéve à su contemporains. In: Oeuvres de Saint-Simon e d’Enfantin. v. III, Paris, Dentu, 1865.
p. 22.
244
“(...) necessária para operar a transição do regime
inteiramente arbitrário que existiu, para o regime inteiramente liberal que existirá mais tarde”.317
A sociedade francesa naquele momento histórico tinha,
no sentir de Saint-Simon, duas vertentes bastante características, uma representada pelas forças liberais progressistas e
a outra, pelos defensores do antigo regime, absolutista, feudal e arbitrário. Nota-se que Saint-Simon dividia a sociedade
em dois grupos: um constituído por pessoas laboriosas, no
qual ele incluía todos os que trabalhavam segundo o espírito
do novo momento, e outro constituído pela nobreza improdutiva, que vivia das rendas de terras herdadas, dos juízes
arbitrários, do clero retrógrado e dos militares defensores do
antigo estado de coisas. Somente o espírito altruísta dos industriais e cientistas podiam retirar a sociedade da crise que
experimentava. A dicotomia social completava-se na classificação desses dois grupos em partidos que ele denominou
nacional e antinacional. O primeiro seria constituído por:
1º. Todos os que cultivam a terra, bem como os que dirigem os trabalhos de cultura;
2º. (...) todos os artífices, todos os negociantes, todos os
empresários de transportes por terra e mar, assim como aqueles cujos trabalhos servem direta ou indiretamente à produção ou à utilização das coisas produzidas: sábios entregues ao estudo das ciências positivas, artistas, advogados liberais, o pequeno número de padres que prega a sã moral,
em suma, todos os cidadãos que empregam francamente os
seus meios para desembaraçar os produtores da injusta supremacia exercida sobre eles pelos consumidores ociosos.
Quanto ao partido antinacional eram integrados pelos
que se manifestavam contra o compromisso com o progresso
e com a marcha da civilização:
317
Idem, ibidem. p. 21.
245
“(...) figuram os nobres que trabalham pela restauração do antigo regime; os padres que fazem consistir a
moral na cega credulidade nas decisões do Papa e do
clero; os proprietários de imóveis que vivem nobremente, sem fazer nada, os juízes que sustentam o arbitrário; os militares que os apoiam; numa palavra: todos os que se opõem à instauração do regime mais favorável à economia e à liberdade”.318
A interpretação saint-simoniana não era uma crítica aos
proprietários e nem ele próprio propôs destruir os ganhos
derivados do trabalho, reservando o papel de improdutivo
para a nobreza fundiária que vivia ociosamente com os recursos das terras que arrendavam. Ele combateu os valores
veiculados pela nobreza tradicional que se ocupava de jogos
e caçadas, como aliás fizera Pombal.319 Nesta crítica, nota-se
claramente que era a ociosidade o que ele condenava, e não
a propriedade, ainda que o industrialismo fosse uma espécie
de cruzada moral de apologia do trabalho. Esse aspecto do
industrialismo o aproximou muito da ética do trabalho desenvolvida sob a égide do calvinismo. A diferença era que,
para Saint-Simon, o trabalho e a produção econômica davam
sentido à vida, enquanto que na moral protestante eram uma
forma de participar do ato de criação de Deus, além do que o
progresso material seria ainda um indicativo da salvação,
uma vez que, segundo aquela doutrina, o destino dos homens já estava traçado previamente na inteligência absoluta
e suprema do Criador. Apesar de motivos diferentes, o resultado prático das duas concepções era muito semelhante.
Ambas valorizavam o trabalho produtivo, condenavam a ociosidade e estimulavam o progresso material.
318
SAINT-SIMON, C. H. Le parti nacional en polítique. In: Oeuvres de
Saint-Simon e d’Enfantin. V. III, Paris, Dentu, 1865. p. 203/204.
319
CARVALHO, José Mauricio de. Caminhos da moral moderna; a experiência luso-brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1995.
246
A grande diferença entre o industrialismo de Saint-Simon
e o liberalismo de Say residia no papel atribuído ao governo.
O liberalismo consagrou um regime parlamentar, em que todos os interesses estariam representados, e dedicou ao parlamento o papel de harmonizador da vida política do país.
Ao contrário, Saint-Simon propunha a substituição do governo político pelo econômico. Essa alteração se faria pela
transformação do governo político em uma administração
nitidamente empresarial e dirigida pelos industriais, que teriam como conselheiros os cientistas e os intelectuais positivos. Nesses aspectos ele se aproximava das doutrinas socialistas e afastava-se das liberais. A sua discordância em relação a Say estava notadamente no papel atribuído ao Estado.
O liberal parece só ter percebido
“(...) vagamente e como contrariado que a Economia
Política é o verdadeiro e único fundamento da política”.320
Existem ainda outros aspectos que o aproximavam das
teses socialistas, mas que não eram antagônicas àquelas defendidas pelos liberais. Destacamos inicialmente o objetivo
da organização social que Saint-Simon propôs no Novo
Cristianismo. Ali ele afirmou que os homens
“(...) devem organizar a sociedade da maneira mais
vantajosa ao maior número; devem propor-se como
fim, em todos os seus trabalhos, em todas as suas ações, melhorar o mais rápida e o mais completamente
possível a existência moral e física da classe mais
numerosa”.321
320
SAINT-SIMON, C. H. Lettres á un Américan. In: Oeuvres de SaintSimon e d’Enfantin. V. II, Paris, Dentu, 1865. p. 185.
321
SAINT-SIMON, C. H. Le nouveau christianisme. In: Oeuvres de
Saint-Simon e d’Enfantin. v. VII, Paris, Dentu, 1865. p. 108/109.
247
Em um outro trabalho ele havia afirmado que a finalidade da vida humana era promover a melhoria da condição de
vida:
“O fim direto do meu empreendimento é melhorar o
mais possível a sorte da classe que não tem outros
meios de existência que não seja o trabalho dos seus
braços”.322
O trabalho seria a atividade humana capaz de modificar a
vida do homem no planeta — é a conclusão a que podemos
chegar diante do industrialismo de Saint-Simon. Como já
pro-curamos mostrar, em sua organização social cada um seria recompensado pela qualidade do trabalho que apresentasse e os industriais seriam os dirigentes, imprimindo em
toda a sociedade o seu caráter dinâmico e produtivo. A sociedade não seria dirigida pelo povo, isto é evidente.
“Que a questão (da organização social) se resolverá,
mas ele conservar-se-á exterior e passivo... O povo foi
eliminado da questão”.323
O novo cristianismo era a tentativa de deificar o homem
e promover a unidade de compromisso com o destino da
humanidade:
“(...) confiar aos chefes das empresas industriais os
cuidados... de dirigir a administração pública, porque
eles tenderão sempre a dar, diretamente, a máxima
extensão possível às suas empresas, e dos seus esforços neste sentido resultará o maior acréscimo possível
da massa de trabalhos que são executados pelos homens do povo”.324
322
Idem. C. H. Du systéme industriel. In: Oeuvres de Saint-Simon e
d’Enfantin. v. VI, Paris, Dentu, 1865. p. 81.
323
Idem. C. H. L’organisateur. In: Oeuvres de Saint-Simon e d’Enfan-tin.
v. IV, Paris, Dentu, 1865. p. 158.
324
SAINT-SIMON, C. H. Du systéme industriel. In: Oeuvres de SaintSimon e d’Enfantin. v. VI, Paris, Dentu, 1865. p. 82/83.
248
Os múltiplos problemas contemplados pelo sistema saintsimoniano refletem a riqueza daquele hora histórica, além da
sensibilidade intelectual do filósofo. Ele estava voltado para
os temas que empolgariam a intelectualidade durante a maior parte do século XIX. Por outro lado, esse fato comprova a
intuição de Rodolfo Mondolfo. Ele atentou para o equívoco
existente no interior do hegelianismo, que excluía a
pluralidade de sistemas num mesmo momento histórico. O
saint-simonismo não apenas conviveu com outros sistemas,
mas procurou oferecer respostas alternativas, além de
permitir interpretações divergentes de seus princípios. Os
saint-simonianos acabaram constituindo grupos, conforme a
ênfase que conferiam aos aspectos filosóficos, sociológicos
ou econômicos. Este aspecto é outra evidência da riqueza da
realidade, pois de uma mesma fonte podem partir múltiplas
correntes. De qualquer forma, após a morte de Saint-Simon,
os seus seguidores procuraram explicitar o seu pensamento,
e, durante algum tempo, mantiveram-se unidos, quando fizeram um amplo estudo das suas idéias. A complexidade dos
assuntos abordados no industrialismo leva-nos a entender
que o fato de Mauá guiar-se por princípios liberais não exclui de antemão a influência dos valores e ideais saintsimonianos.
Depois da morte de Saint-Simon, como já mencionamos,
seus seguidores encarregaram-se de divulgar a sua doutrina
e a ela acrescentaram em alguns casos, notáveis contribuições, especialmente nos valores vinculados ao trabalho.
Muitos saint-simonianos tiveram atuação de destaque na sociedade e os seus nomes foram associados a grandes empreendimentos, fato que não passaria despercebido a Mauá.
Considerando-se tudo isso, vejamos rapidamente de que
forma os discípulos de Saint-Simon passaram a discutir a teoria dos valores e os ideais do mestre depois de sua morte.
4. A evolução teórica do saint-simonismo.
249
C
omparando a tematização geral da filosofia no século XIX e as questões essenciais desenvolvidas pelos
filósofos ao longo de todo o século XVIII, nota-se que em
seu conjunto o pensamento filosófico no século XIX enfatizou extraordinariamente o historicismo, preocupação que
não encontramos com a mesma amplitude entre os pensadores do século anterior. Entretanto, conforme já apresentAmos, a raiz do historicismo encontra-se profundamente mergulhada no chão da cultura ocidental. Ernst Cassirer demonstrou que o iluminismo antecipou-se ao idealismo romântico ao privilegiar o debate sobre significado da história,
mas o tema só adquiriu maior realce na primeira metade do
século XIX, quando o idealismo predominou no cenário filosófico.
O caráter historicista, que serviu como ponto de aproximação entre os diferentes sistemas daquele momento histórico, adquiriu um significado distinto ao ser desenvolvido
por correntes filosóficas diferentes. Cumpre, por isso, fazer
este alerta: uma idéia inspiradora pode aproximar pensadores distintos, mas não lhes reduz a singularidade. Na tentativa de divulgar a teoria de Saint-Simon e discuti-la em seus
aspectos essenciais, diferenciando-a das demais, discípulos
de Saint-Simon, como Enfantin, Bazard, Chevalier e Duverger, organizaram uma série de conferências. Daí foi extraída
uma síntese, posteriormente publicada sob o título Doctrine
de Saint-Simon, Exposition .O plano da obra foi bem compreendido por Taylor, que observou:
“No primeiro volume expunha-se a doutrina social de
Saint-Simon, no segundo as suas concepções filosóficas e morais”.325
325
TAYLOR, Artur. As grandes doutrinas econômicas. 5. ed. s. I., Publicações Europa América, 1975. p. 86.
250
O industrialismo incorporou o otimismo e a crença na
capacidade do homem para resolver os seus problemas, utilizando-se da razão. O otimismo seria resultado das conquistas obtidas com o uso da razão. Este movimento filosófico
pretendeu fornecer ao homem um instrumental teórico, de
natureza complexa, capaz de torná-lo consciente do destino
que lhe estava reservado. O movimento saint-simoniano
consti-tuiu-se numa síntese entre o ideal iluminista adaptado
aos tempos da Revolução Industrial, uma visão da história
como progresso, à semelhança das proposições de Vico e de
Hegel e uma teoria sócio-política, capaz de dar respostas aos
problemas mais contundentes daquele período. Uma leitura
atenta da teoria saint-simoniana permite-nos observar um
projeto para a instauração de uma nova ordem, capaz de instituir o progresso sem promover a convulsão social, preparando uma reforma moral da sociedade.
Saint-Simon havia identificado na história os períodos
orgânicos e os críticos, momentos que se alternavam, fazendo surgir ora etapas de progresso, ora de nítido retrocesso.
Esforçaram-se os saint-simonianos para esclarecer que a cada novo período orgânico a humanidade avançava, e não apenas retornava a um período de maior equilíbrio alcançado
anteriormente.
“A Humanidade (é-nos dito) é um ser coletivo que obedece, no seu desenvolvimento, à lei psicológica seguinte: as associações que se constituem entre os homens alargam-se cada vez mais, de maneira que os
antagonismos que dividem a sociedade reduzem-se
progressivamente. Tem-se primeiramente a família,
depois a Cidade, a Nação, a Igreja. E à medida que
os pequenos grupos se inserem nos maiores as oposições temperam-se, quer entre os grupos, quer no interior de cada um. No início reinam por toda parte o
império da força física e a exploração do homem pelo
251
homem. Mas progressivamente a inteligência tende a
levar a melhor sobre a força”.326
A história humana segundo a leitura dos saintsimonianos, revelava uma notável evolução da humanidade
no sentido de estabelecer verdadeira fraternidade universal.
Para esse ideal contribuiu o cristianismo, que precisava,
contudo, ser atualizado, para atender a nova etapa da história humana, caracterizado pela emergência das ciências e do
saber positivo. O saint-simonismo baseava a ética numa religião laica defensora do progresso:
“Esta marcha do progresso, afirmam os saintsimonianos, é necessária; todavia, a sua teoria do
progresso é ainda pouco realista: é, em seu entender,
o sentimento de simpatia que leva os indivíduos a
constituir associações cada vez mais amplas; ignoram
inteiramente a influência da técnica na história; e, finalmente, apelam para a idéia da Providência Divina
para melhor fundamentarem a sua convicção. Por outro lado, imaginaram que doravante nos aproximaremos do estado definitivo da humanidade, por
uma evolução pacífica e sucessiva. O seu utopismo
marca-se nisso claramente; ele é devido a uma análise demasiado insuficiente das condições da vida econômica e social”.327
Os saint-simonianos estavam convictos de que o mundo
social apresentava uma evolução natural, lenta, porém contínua, em que o progresso ia-se concretizando. Esta crença
era derivada da aplicação do método das ciências naturais ao
estudo das sociedades. A crença no progresso induzia ao dever de trabalhar pela melhoria do destino humano. Este é o
aspecto onde se manifestou a mais ampla separação entre o
326
Doctrine de Saint-Simon, Exposition. 1º ano, nov. ed., Paris, 1924, 4ª
sessão.
327
DENIS, Henry. História do pensamento econômico. Lisboa, Horizonte, 1978. p. 385
252
pensamento saint-simoniano e a tradição hegeliana, pois para os seguidores de Saint-Simon a liberdade fora separada da
vontade racional dos indivíduos. E, assim, a idéia de progresso atingiu o status de lei natural, aspecto que foi igualmente tematizado e completado por Comte. Esta idéia comandava a história, instrumentalizada pela ação humana.
Apesar de utilizar a dialética hegeliana, os saint-simonianos
mostraram que sua filosofia caminhou na direção oposta à
de Hegel. A filosofia saint-simoniana se iniciou sustentando
a unidade en-tre idéia e realidade e concluiu pelo antagonismo entre ambas.
O movimento iniciado pelos seguidores de Saint-Simon
te-ve ampla repercussão na filosofia durante um período de
aproximadamente dez anos após a sua morte.
“Muitos dos integrantes acompanharam Comte e tornaram-se positivistas, outros ligaram-se a várias escolas do socialismo humanitário, havendo certo número abraçado carreiras comerciais ou industriais,
em que se distinguiram pela sua energia e capacidade. Lesseps construiu o canal de Suez; Enfantin tornou-se diretor de uma estrada de ferro; os irmãos Peréire fundaram importante instituição de crédito;
Chevalier fez-se senador sob o segundo império, desempenhando papel saliente na negociação do Tratado Comercial de Cobden com a Inglaterra. A combinação inusitada dos pontos de vista místicos e da habilidade prática constituiu uma característica da maioria dos principais saint-simonistas”.328
Os saint-simonianos esforçaram-se por demonstrar que o
universo axiológico era justificado pela realidade. Tal postura filosófica foi conseqüência da valorização do significado
da ciência e contrária à crença na independência do que vale
em relação ao que existe. Encontramos as raízes de tal modo
328
BIRNIE, Arthur. História econômica da Europa. Trad. de Christiano
Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro, Zahar, 1964. p. 140.
253
de pensar nas filosofias românticas de Fichte e Hegel. Existe, contudo, especificidade na maneira pela qual os saintsimo-nianos desenvolveram essa doutrina. A compreensão
da realidade, segundo os discípulos do Conde de SaintSimon, dar-se-ia por partes, sendo tarefa da ciência. A soma
dos estudos científicos possibilitaria o conhecimento da totalidade do Universo concebido monisticamente. Esse universo, destinado ao progresso, reclamava a ação decidida
dos homens, a fim de realizar a sua plenitude. Exatamente
por isso, os saint-simonianos deram ênfase à mudança de valores e lançaram-se na construção das grandes obras. Os
compromissos éticos precisavam se concretizar em ações
concretas.
No primeiro volume da obra Doctrine de Saint-Simon
são discutidas as principais teses de natureza ética e social.
Nele se desenvolve
“(...) toda uma crítica da propriedade privada. O economista, para fazer esta crítica, pode colocar-se em
dois planos diferentes: o da distribuição e o da produção das riqueza, no ponto de vista da justiça ou da
utilidade. A Doctrine ataca, simultaneamente, o nosso
regime social por estes dois aspectos, e agrupa já,
num feixe, a maior parte dos argumentos que no decurso do século XIX, serão dirigidos contra ela. Nesta dupla tarefa aliás ela escora-se nas próprias idéias
de Saint-Simon”.329
Valorizando a ciência, o saint-simonismo colocou-se nas
pegadas do empirismo. Ao fazer derivar o mundo axiológico
da realidade, a filosofia de Saint-Simon aproximou-se do idealismo de Fichte. Entretanto, afastou-se da teorização do
idealista ao abandonar o exame do pensamento, tese fundamental daquele filósofo. Assim fazendo, o saint-simonismo
329
RIST, Charles e GIDEI, Charles. História das doutrinas econômicas.
Trad. de Eduardo Salgueiro. 5. ed. São Paulo, Atlas, s.d. p. 248/249.
254
utilizou um outro caminho para proclamar a imperativa necessidade de comandar a práxis. As mudanças viriam do
compromisso ético de cada homem com o progresso.
As idéias defendidas pelos saint-simonianos manifestavam uma preocupação, que seria explicitada pelas teorias filosóficas espalhadas na França, a partir de meados do século
XVIII. O racionalismo característico do período era distinto
do elaborado no século anterior, privilegiando a experiência
sensível e conferindo-lhe importância no processo de desenvolvimento da razão. Desta forma, a epistemologia francesa
fez uma síntese das duas grandes linhas da filosofia moderna, o empirismo e o racionalismo. Sobre esta base promoveu-se uma tematização enfática dos problemas sociais e políticos. Os pensadores franceses procuravam aproximar-se
do povo, tanto empregando uma forma de expressão simples, quanto dedicando-se aos problemas sociais. Os saintsimonianos não foram exceção a esta característica da época
e as suas reflexões sobre a organização social devem ser vistas dessa forma. Preocuparam-se em explicitar como seria a
justa retribuição ao trabalho, tema a que tanto Sismondi
quanto Marx retornariam posteriormente.
Sismondi limitava o conceito de exploração do trabalho
ao pagamento inadequado do trabalhador, fato que possibilitava o enriquecimento imoral dos proprietários, ao contrário
dos operários, que mal conseguiam recursos para sobreviver.
Nesse caso, o abuso não era um vício orgânico do sistema,
conforme pretenderam os saint-simonianos, mas um abuso
que poderia ser perfeitamente reparado, sem que fosse necessário alterar todo o processo produtivo.
“Marx concebe também a exploração como um vício
orgânico do capitalismo, mas dá a esta palavra um
sentido inteiramente diferente dos saint-simonianos.
Inspirando-se nos socialistas ingleses, vê a origem da
exploração numa particularidade da troca. Para ele,
só o trabalho dos operários cria todo o valor dos
produtos; por conseqüência, o juro e o lucro não po-
255
dem deixar de ser um roubo feito ao operário. O rendimento do empresário não é menos injusto que o do
capitalista ou o do proprietário rural. Esta última teoria parece muito mais radical do que a precedente,
porque condena todo o rendimento que não seja o salário do operário; na realidade, é muito mais frá-gil.
Bastará demonstrar que o valor dos produtos não resulta do trabalho manual, para se destruir toda a estrutura de Marx. Os saint-simonistas nunca se embaraçaram com uma teoria do valor. A sua teoria, muito
simples, assenta na distinção evidente de rendimento
do trabalho e rendimento da propriedade. Ninguém
pode contestá-la. Sismondi já a tinha feito. Para escapar à conseqüência que dela deriva — a ilegitimidade do rendimento sem trabalho — é absolutamente
preciso encontrar um alicerce para este rendimento
diferente do trabalho e descobrir uma nova justificação do atributo essencial da propriedade”.330
A filosofia liberal justificava a propriedade como um direito inalienável do homem. Os saint-simonianos não entendiam assim, pois a posse indiscriminada da natureza implicava em desperdício e sobretudo no enfraquecimento do
pensamento. O subaproveitamento da natureza produziria
problemas que impediriam o progresso humano. A evolução
do pensamento dar-se-ia através da reflexão individual e para isso contribuiria a transformação do mundo em indústria.
Os saint-simonianos entendiam que melhor seria a sociedade
administrar os bens. A condução efetiva do processo seria
realizada por um banco central do qual emanariam as diretrizes para as atividades de toda a sociedade:
“O sistema compreenderia, em primeiro lugar, um
banco central representando o governo, na ordem
material; este banco seria depositário de todas as riquezas, de todo o fundo de produção, de todos os instrumentos de trabalho, numa palavra, do que hoje
330
RIST, Charles e GIDEI, Charles. História das doutrinas econômicas.
Trad. de Eduardo Salgueiro. 5. ed. São Paulo, Atlas, s.d. p. 251/252.
256
compõe toda a massa das propriedades individuais.
Deste banco central dependeriam bancos de segunda
ordem, que seriam o seu prolongamento, e por meio
dos quais se poria em relação com as principais localidades para lhes conhecer as necessidades e o poder
produtor; estes dirigiriam ainda, na circunscrição
territorial que abrangessem, outros bancos cada vez
mais especiais, abrangendo um campo menos extenso,
ramos mais fracos da árvore da indústria. Aos bancos
superiores convergiriam todas as necessidades; deles
divergiriam todos os esforços”.331
Essa organização proposta pelos saint-simonianos é o
protótipo de todas as concepções socialistas que surgiram no
século XIX. A teoria estabelecia uma bem fundada crítica à
sociedade, propunha um controle das oportunidades pelo estado, concentrava nesse ponto a igualdade social buscada. A
igualdade desejada é a de oportunidades, mas no processo
de produção vigoraria a máxima: a cada um, conforme a sua
capacidade de trabalho; a cada capacidade, conforme as suas
obras.
O centro da problemática sócio-econômica é o mesmo da
filosófica, a saber, o homem. O saint-simonismo encontravase, neste particular, inteiramente de acordo com a linha básica da filosofia moderna. Estruturou, entretanto, uma
concepção orgânica de sociedade, solução bastante distinta
das teses individualistas que vieram a fundamentar o
contratualismo. Evoluindo do panteísmo naturalista, a
sociedade aparecia no seio do sistema saint-simoniano como
uma comunidade metafísica, curiosamente conservando o
valor dos indivíduos. Neste contexto, a educação dos
sentimentos produzia efeitos positivos para a sociedade. A
propriedade não isentaria o seu dono de trabalhar e se isso
acontecesse seria resultado de uma perversão do sistema.
331
ENFANTIN, P. BAZARD. Doctrine de Saint-Simon, Exposition. 2. ed.
Paris, s. e., 1854. p. 206/207.
257
resultado de uma perversão do sistema. Sobre o direito à
propriedade comentam Rist e Gidei:
“Os saint-simonistas não vêm atacar a constituição
da propriedade senão na medida em que ela consagra, para alguns, o ímpio privilégio da ociosidade, isto é o de viverem do trabalho de outros”.332
Os saint-simonianos propunham uma doutrina embasada
numa filosofia da história.333 Acreditaram que essa filosofia
retratava fielmente a evolução da humanidade e também que
o resultado de sua divulgação facilitaria a implantação de
um novo mundo e de uma nova ordem.334 Eles herdaram do
mestre uma mistura de filosofia religiosa e teoria social. Esse socialismo dirigia-se especialmente para as classes elevadas e cultas às quais caberia a tarefa de alterar a organização
exis-tente, princípio baseado na observação e nas doutrinas
econômicas de maior circulação naquele momento. Como se
vê o compromisso moral não produziu um modelo prático de
governo.
A direção da sociedade devia ser entregue aos melhores,
que se tornariam os administradores do trabalho. O objetivo
da equipe dirigente seria desenvolver a sociedade, para (assim acreditavam os saint-simonianos), através da prática racional de produção das riquezas, organizar uma comunidade
voltada para a satisfação das carências humanas. Dirigentes
e dirigidos tinham lugar bem definido nessa estrutura, trabalhando em harmonia para a implantação do progresso. Como
conseqüência desta organização, o homem realizaria o seu
destino cujo ápice haveria de ser a organização de um mun-
332
RIST, Charles e GIDEI, Charles. História das doutrinas econômicas.
Trad. de Eduardo Salgueiro. 5. ed., São Paulo, Atlas, s.d. p. 256.
333
ENFANTIN, B. Science de l’homme. Physiologie religieuse. Paris,
Marson, 1858. p. 42/43.
334
SAINT-SIMON. C. H. Le nouveau christianisme. Paris. Editions du
Seuil, 1969. p. 67.
258
do racional, capaz de facilitar o livre desenvolvimento da
espécie. A sociedade era um todo natural resultante do esforço dos sujeitos, na qual se resolviam as possíveis contradições resultantes da participação dos indivíduos.
Uma outra questão levantada pela doutrina saint-simoniana era a necessidade de ajustes que facilitassem a regularização do mercado, sem precisar disputá-lo com empresas
similares.
“O Estado não quer nem pode encarregar-se desta
tarefa; mas vemos a cada passo multiplicarem-se os
acordos entre os industriais, os intermediários e os
sindicatos de produtores, cujo fim é sempre o mesmo:
evitar, por uma previdência e uma centralização inteligentes, os maus efeitos da concorrência. E isto será
ainda uma aplicação parcial e prática do saintsimonismo”.335
Muitos dos conceitos desenvolvidos pelos saint-simonianos foram posteriormente utilizados pelos teóricos socialistas. A expressão exploração do homem pelo homem foi
empregado seguidamente, até ser reformulada, em 1848, por
Marx. A partir de então, ficou consagrada a expressão luta
de classes, que, em sua essência, queria dizer a mesma coisa. Bem antes de Marx falava-se também de instrumentos de
trabalho e antes de Louis Blanc já era usada a expressão organização do trabalho, no mesmo sentido que ele mais tarde
consagraria. Por isso, Engels reconheceu que estão em Saint-Simon e no seu grupo de seguidores os germes das doutrinas socialistas que se seguiram.
Já falamos várias vezes do papel que o Estado teria na
distribuição dos bens da sociedade e também na tarefa de
constituir um fundo social. Deve-se ressaltar:
335
RIST, Charles e GIDEI, Charles. História das doutrinas econômicas.
Trad. de Eduardo Salgueiro. 5. ed. São Paulo, Atlas, s.d. p. 262.
259
“Trata-se, pois, de um governo econômico, em substituição ao governo político. Essa idéia será retomada
mais tarde por Proudhon e, por A. Menger. Esta constituição consagra o predomínio das elites, propiciando o aproveitamento de novo feudalismo industrial.
Aliás, Villeneuve de Borgemont conceberá algo de
semelhante. Assim também pode-se entrever aí o esboço da teoria das elites, de Vilfredo Pareto. Este
projeto de constituição não representa, aliás, a parte
principal do edifício saint-simonista, servindo apenas
de ilustração das idéias do mestre. Os saint-simonistas não adotarão esta forma, mas se manterão fiéis
ao seu espírito, ou seja, a restauração da autoridade,
bem como o predomínio dos mais aptos”.336
A caracterização das elites como as responsáveis pela direção da sociedade daria uma marca autoritária a esse projeto político. Esse mesmo caráter autoritário apareceria na teoria social de Augusto Comte e teria ampla representação em
vários movimentos políticos em nosso país. Afirmou Ricardo Vélez que Comte, “à semelhança de Saint-Simon, mostrou simpatia pelos regimes que se aproximavam dos modelos ditatoriais”.337
O saint-simonismo herdara do iluminismo o princípio da
verificação empírica como critério de validade do conhecimento. Isso não impediu esses filósofos de estabelecerem
metas a serem alcançadas, fruto mais da reflexão do que da
observação. O que poderia parecer contraditório, caso nos
situássemos na ótica dos empiristas ingleses, torna-se compreensível ao se considerar a influência do pensamento dialético de Hegel. O idealismo forneceu subsídio para o iluminismo fundamentar a crença na capacidade humana de dominar o mundo. Partindo dessa crença os saint-simonianos
336
HUGON, Paul. História das doutrinas econômicas. 13. ed. São Paulo,
Atlas, 1978. p. 203.
337
PAIM, Antônio. História das idéias filosóficas no Brasil. São Paulo,
Convívio, INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1984.
260
afirmaram que o homem poderia alterar a realidade, utilizando seu conhecimento e suas capacidades.
O saint-simonismo não foi apenas uma teoria moral, como procuramos mostrar, mas ansiava por organizar uma nova sociedade através da difusão de princípios filosóficos.
Tal era a estratégia elaborada pelo grupo, para a implementação da nova ordem social. Com a difusão da doutrina, pretendiam estabelecer uma era de paz e prosperidade, um momento novo na história humana em que as guerras fossem
superadas por uma expansão do ideal de fraternidade universal. O grupo esperava ainda que a nova ordem pudesse
criar uma corrente filosófica capaz de promover uma ordem
social mais justa. No sentir de Hugon,
“Eis aí o que de essencial há no saint-simonismo. Apresenta-se como um verdadeiro sistema socialista,
traço pelo qual se caracteriza principalmente na parte
crítica e na construtiva: na primeira, através do espírito autoritário, da crítica à propriedade privada e da
concepção do conflito de classes, o socialismo ulterior ditará a luta de classes e transformará o antagonismo trabalhadores-ociosos no conflito trabalhadores-capitalistas. Na parte construtiva esse
traço socialista característico ressalta de maneira ainda mais acentuada através da supressão do direito
de sucessão hereditária e do de propriedade dos meios de produção, medida essa que constituirá o fundamento do próprio sistema. Esta tendência autoritária
impõe a organização coletivista. Confia-se ao Estado
a incumbência de impulsionar o mecanismo econômico e garantir o seu funcionamento, tendo em vista assegurar, de início, a igualdade entre todos os homens
através da socialização dos meios de produção e darlhes a possibilidade de fazer a distribuição do produ-
261
zido em função da capacidade de cada um. Estes, os
traços socialistas mais característicos do sistema”.338
Na história do pensamento verificamos que a partir de
um mesmo sistema podem desenvolver-se diferentes concepções, muitas vezes apresentando contrastes recíprocos.
De Descartes, por exemplo, originaram-se as duas grandes
vertentes do pensamento moderno, o empirismo e o racionalismo. As raízes deste fato, como bem observou Rodolfo
Mondolfo, encontram justificativa nas próprias vacilações
do autor do sistema. A doutrina saint-simoniana continha elementos da ética utilitarista, mas também possuía o sonho
do progresso e a perspectiva teleológica da história, herança
da tradição cristã.
O socialismo proposto pelos saint-simonianos apresentava muitas dificuldades de ordem prática. Eles supunham que
a direção do Estado seria operada por um grupo de industriais que, por seus próprios méritos, ascenderiam aos postos
supremos. Esses sujeitos se imporiam por seus talentos, mas
quem reconheceria seus valores e os confirmaria na direção
da sociedade? Este aspecto não ficou esclarecido. O mesmo
problema havia ficado pendente na obra de Rousseau, Do
Contrato Social. Nela o filósofo genebrino afirmava que um
grupo de cidadãos deveria dirigir a sociedade e promover a
educação das massas, mas também ficou em aberto a questão de como seria constituído e educado o próprio grupo de
dirigentes. Existe ainda um outro problema de difícil solução: Saint-Simon supunha que a autoridade dos novos dirigentes não seria questionada e que sua legitimidade estaria
assegurada por via racional. Ele acreditava que, depois de
um processo educativo, as pessoas se submeteriam à nova
ordem, pois aprenderiam valores e este seria o melhor cami-
338
HUGON, Paul. História das doutrinas econômicas. 13.ed. São Paulo,
Atlas, 1978. p. 204/205.
262
nho para o desenvolvimento social. Esta crença é muito ingênua e sa-be-se perfeitamente que tal grupo de dirigentes
não conseguiria manter-se no poder a não ser pela força, e
isso a Revolução Francesa havia demonstrado claramente.
Para ajudar a vencer as resistências, também contavam os
saint-simonianos com uma nova religião, um novo cristianismo. O recurso de valer-se de uma religião indica que Saint-Simon intuíra que o problema dos valores não se reduzia
a aprendizagem intelectual, mas não significa que entendesse a força dos interesses.
Os saint-simonianos reeditaram a postura questionadora
que os iluministas haviam consagrado com suas críticas às
concepções religiosas e metafísicas, sendo essas sustentáculo do antigo regime. Com a restauração da monarquia e a
queda de Napoleão, os saint-simonianos retomaram o critério da verificação empírica para contestar a organização política do País. Entendiam que o governo deveria ter como
base o progresso e a felicidade do maior número de pessoas,
não importando o sistema utilizado. A crença na possibilidade de instaurar esta nova organização da sociedade aproximou os saint-simonianos dos defensores da ética utilitária
em virtude de também para eles a ética estar orientada para a
obtenção da felicidade do maior número.339
Como movimento religioso, o saint-simonismo foi
merecedor de muitas críticas, notadamente a partir da
tentativa de estruturação de uma igreja com padres e
339
LOUIS, Paul. Histoire du socialisme em France de la Revolution a
nous jours. Paris, Librairie des Sciences Politiques et sociales, Marcel Riviére, 1925.
LEROY, Maxime. Le socialisme des producteurs: Henri de SaintSimon. Paris, Marcel Riviére, s.d.
WEILL. G. Le Saint-Simon hors de France. Paris, Marcel Riviére,
1921.
SILBERLING, E. Dictonnaire de sociologie phalanstérienne, guide
des oeuvres completes de Charles Fouvier. Paris, Marcel Riviére, s.d. p.
460.
263
estruturação de uma igreja com padres e discípulos, com ritos e um aparato exterior muito semelhante ao utilizado pela
Igreja Católica. Enfantin, que acabou tornando-se o grande
líder, acreditava-se inspirado pelo ser supremo, para estabelecer um período de notável progresso.
“Acreditava que o projeto do canal de Suez e os outros grandiosos planos que ele e seus colegas haviam
traçado eram expressão essencial da nova religião do
trabalho, a qual haveria de desterrar os ociosos e melhorar a sorte dos pobres, acabando com toda exploração e com todo antagonismo de classes”.340
O problema do significado da religião na organização da
sociedade, foi uma questão que ultrapassou os limites da polêmica estabelecida depois de Hegel. No século. XIX ocorreu uma autêntica crise do cristianismo, decorrente da cosmovisão produzida pelo iluminismo, positivismo, empirismo, materialismo e evolucionismo. Hegel acreditava ter encontrado o sentido da religião, indicando-lhe um lugar na
dialética da idéia, mas o que ocorreu foi a difusão da crença
segundo a qual a religião, tal como era compreendida, fora
um momento histórico superado. A conseqüência disso foi
uma ruptura não só com a religião, mas com a especulação
filosófica acerca do Absoluto. Por isso, os saint-simonianos
preocuparam-se em mostrar que o sistema filosófico proposto possuía uma religião sem dogmas e sem apego ao sobrenatural. A humanidade fora elevada à categoria de Absoluto
e se tornaria o fundamento da evolução histórica da consciência. Isso explicaria também por que o sistema tinha em alta conta o trabalho, pois era através dele que o espírito se
materializava no mundo.
340
COLE, G. D. H. Historia del pensamiento socialista. México: Fondo
de Cultura Economica. v. I, 1957. p. 62.
264
O saint-simonismo se completou como pensamento filosófico e se superou quando a atividade prática derivada da
teoria apareceu como o ponto da efetiva realização do projeto articulado por Bacon, que foi o de submeter a natureza
em benefício do homem. A partir de 1830 a preocupação
dos saint-simonianos dirigiu-se sobretudo para a política:
“Leroux mesmo havia sido atraído pelo Novo Cristianismo de Saint-Simon e também pelos aspectos mais
seculares da doutrina do mestre, porém não caiu nos
excessos e absurdos de Enfantin e de seu círculo imediato. Com Chevalier, aplicou as idéias essenciais do
saint-simonismo à crítica diária da política francesa
depois que subiu ao trono Luís Felipe, de tal modo
que apresentaram um programa coerente, se bem que
não de todo satisfatório”.341
O jornal dirigido pelos saint-simonianos teve duração efêmera, de apenas dois anos. Ele foi, contudo, o veículo através do qual o grupo pretendeu defender e divulgar suas
teses. Esforçaram-se para demonstrar que a simples aplicação da ciência ao mundo da economia não promoveria o efetivo progresso, podendo promover, no máximo, o desenvolvimento material. Pretendiam criar um laço de solidariedade
social e estabelecer um novo humanismo, capaz de impedir
que os resultados da ciência quantitativa bloqueassem a vida
afetiva e sentimental, disciplinando, assim, o sentido da liberdade individual e do confronto que o homem estabelece
com a natureza material. O objetivo dos saint-simonianos
era, portanto, promover uma nova ordem moral.
Cole apreendeu de forma sucinta os aspectos principais
do saint-simonismo. No seu entendimento os pontos de divergência entre o saint-simonismo e o socialismo seriam:
341
COLE, G. D. H. Historia del pensamiento socialista. México: Fondo
de Cultura Economica. v. I, 1957. p. 63.
265
“a) a exaltação do trabalho e dos direitos dos produtores;
b) reconhecimento dos grandes industriais e banqueiros como guias naturais dos trabalhadores;
c) boa disposição em trabalhar através de qualquer
governo monárquico, imperialista, burguês, porque a
forma de governo político parece-lhe de muito pouca
importância ao lado da organização dos assuntos econômicos”.342
A convicção básica inaugurada com a perspectiva transcendental fora a de que a filosofia deveria abandonar a postura dogmática, típica da metafísica tradicional. Hegel enfatizara sobre esta base filosófica que o conhecimento era fruto do processo de interação entre o pensamento e a realidade. Os saint-simonianos, mesmo estabelecendo como critério de validade do conhecimento a comprovação pela experiência, herdaram dos idealistas a desconfiança de que uma
parcela da vida humana era constituída de elementos incapazes de serem submetidos à verificação. Esse aspecto não
era uma questão exclusivamente epistemológica. Com base
nela Saint-Simon estabeleceu o princípio da liberdade da
consciência, o que sugeria respeito com quem não partilhasse das mesmas idéias. Posteriormente, Comte utilizaria o
dogma geral da invariabilidade das leis físicas, para instituir
uma outra postura epistemológica e derivar dela outras conclusões.
No final de sua obra, Saint-Simon procurou estruturar
uma doutrina religiosa, que adquiriu grande importância entre os seguidores do seu sistema filosófico. No sentir de Ricardo Vélez Rodrígues, essa doutrina seria caracterizada pelas seguintes proposições:
342
COLE, G. D. H. Historia del pensamiento socialista. México, Fondo
de Cultura Economica. V. I, 1957. p. 67.
266
“1. ela deve dar aos homens a Weltanschaunng coerente, que lhes ofereça um quadro do lugar que ocupa
no universo e do código de conduta que corresponde
a esse lugar;
2. essa religião é indissociável do fator político e social, porquanto é o alicerce deles. Portanto, não cabe
divisão alguma entre poder espiritual e temporal, entre Igreja e Estado;
3. a vivência religiosa, ao fazer-nos sentir dependentes de alguma realidade objetiva, exterior a nós mesmos, impede a dominação egoísta de uns por outros,
bem como os conflitos de interesses;
4. essa religião vital será o cristianismo revivificado,
mediante a incorporação de todos os adiantamentos
científicos e a sua identificação total com o impulso
construtivo da classe produtora, substituindo as idéias metafísicas e as esperanças transcendentais por idéias sociais, e tomando o encargo de melhorar prontamente a situação moral e física da classe mais numerosa e evitar que os ricos e poderosos continuem,
tiranizando aos pobres.
5. o novo cristianismo será vivido por uma nova Igreja, que deve tomar a iniciativa a fim de que o sistema
industrial dê seus frutos, mediante a mobilização dos
cientistas e dos industriais, para que elaborem planos
que desenvolvam ao máximo a inteligência e a produtividade”.343
Para concluir, Saint-Simon entendia que a filosofia se articulava em sistemas e eles se exteriorizavam durante um
dado momento da cultura. A organização material da sociedade era denominada regime pelo Conde. Segundo este esquema, cada regime era vinculado a um sistema filosófico.
A modificação em um deles funcionava, efetivamente, como
motor da história, pois não seria possível estabelecer um novo regime sem instituir um outro sistema filosófico que a ele
correspondesse. Podemos enxergar, subjacente a tal inter-
343
RODRÍGUES, Ricardo Vélez. Porque ler Saint-Simon hoje. Estado de
São Paulo. Ano I, nº 41, 22/03/81.
267
pretação, as linhas gerais do historicismo de Vico ou da evolução do espírito de Hegel, ressalvando, mais uma vez, que
o alemão não abandonara a perspectiva transcendental, enquanto Saint-Simon tinha por base um tipo de realismo muito mais próximo da perspectiva transcendente. A influência
de Vico nota-se pela valorização do processo histórico entendido como projeção do espírito humano, que lhe conferia
sentido e valor. Tal relação com o mundo natural efetiva-se
através de subjetivações e objetivações que caracterizariam
a experiência humana. Pode-se sentir a influência hegeliana
em vários momentos do seu estudo de 1817, intitulado
L’industrie. Nele, Saint-Simon relatou a marcha do espírito
e o progresso que se estabeleceu a partir do cristianismo.
Apontou, em seguida, para a necessidade de consolidar uma
nova moral mais de acordo com os tempos modernos, já que
a moral cristã perdera o sentido. O mesmo tema seria retomado em Le nouveau christianisme, quando ele reafirmou a
necessidade de se fazer uma civilização calcada nas bases de
uma moral terrestre e positiva.
A moral saint-simoniana efetivaria os laços de solidariedade social, fortalecendo o desenvolvimento espiritual a partir da educação dos sentimentos. A promoção do progresso,
operacionalizado numa série de atividades econômicas, seria
a garantia de que cada ser humano realizaria o seu destino, e
então a humanidade teria construído uma nova era sobre um
mundo remodelado. A finalidade do progresso na filosofia
saint-simoniana, era a glória do homem. O sonho da laicização da cultura, iniciado com a filosofia moderna, encontrou
no sistema saint-simoniano uma versão acabada.
268
CAPÍTULO V
MAUÁ E OS VALORES
1. A hipótese inicial.
S
egundo Faria, Mauá assumira valores como ideal de
vida, valores que possuíam um significado importante graças a determinadas experiências que viveu. Para desvendá-las Faria começou pesquisando o espírito do século
XIX, quando o impacto da ciência sobre o pensamento metafísico se completara e a construção de uma racionalidade
social apresentava-se como alternativa à antiga ordem medieval, engendrada na religião e na metafísica dogmática. O
otimismo do período estava baseado na crença de que a racionalidade conduziria a humanidade à rota do progresso.
Mauá assumira que o progresso a ser obtido não devia depender do poder do estado, entendendo o desafio de manter
o poder organizado dentro de limites sem ameaçar os cidadãos. Revela-nos Faria que Mauá:
“(...) embebia-se de progresso e de sonhos a um
canto da larga varanda, devorando revistas inglesas que falavam de metalurgia, da incipiente na-
269
vegação a vapor, das vias de ferro na Inglaterra e
nos Estados Unidos, e às escondidas, não deixava
de passar os olhos por coisas mais sérias,..., os
seus economistas prediletos eram Stuart Mill e J.
B. Say”.344
Mesmo sem desconsiderar que a formação do estado liberal e democrático estão inspirados no propósito “de estabelecer limites ao poder do estado”,345 depois de uma análise
cuidadosa dos seus compromissos morais, Alberto de Faria
começou a suspeitar que existia um conjunto de valores que
precisaria ser examinado, para que fosse possível entender
melhor a atuação de Mauá. Alberto de Faria passou a suspeitar e acabou convencido de que nos momentos em que devia
fazer escolhas Mauá era movido por um grande ideal que o
impulsionava a trabalhar e a produzir, visando sempre a
transmitir aos seus contemporâneos esse mesmo espírito.
Tal sonho era uma aventura inspirada nos ideais de progresso. A história, segundo sua percepção, era formada pela tradição, mas se encontrava aberta para receber novas conquistas e realizações. O futuro como um desafio moral estava
presente na vida e no pensamento de Mauá, ficando o desafio de explicar como se constituíra esse valor ou esse propósito para agir, mesmo em circunstâncias amplamente desfavoráveis.
Mais tarde, diante do infortúnio, ele chegaria mesmo a
afirmar que estava errado ao confiar na possibilidade de implantar uma organização social organicamente estruturada e
dirigida basicamente por interesses gerais. O problema é que
na escolha a pessoa não depende unicamente de seus propó-
344
FARIA, Alberto de. Mauá Irineo Evangelista de Souza, Barão e Visconde de Mauá. - 2. ed. - São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933.
p. 68/9.
345
BOBBIO, Noberto. Direito e estado no pensamento de Emmanuel
Kant. - 3. ed. - Brasília: Ed. UnB, 1995. p. 11.
270
sitos, mas das alternativas que concretamente a ela se oferecem:
“Não é preciso dizer-vos que errei, e errei grosseiramente, a vós, credores do Banco Mauá e C.,
que suportais comigo as conseqüências do erro
que cometi optando por uma nova vida de atividade sem exemplo em nossa terra, e mui rara em
outros países, onde outros elementos auxiliam os
esforços da iniciativa individual vigorosa para alcançar altos propósitos, em bem dos interesses
gerais, que eu afianço ter sido o pensamento dominante que atuou em meu ânimo rodando todas
as outras considerações muito abaixo desse nível”.346
Da perspectiva filosófica, o tema progresso, depois de
Saint-Simon, foi retomado por Darwin, que reuniu provas a
favor do transformismo biológico, mas foi com Spencer
First Principles que o conceito ganhou uma conotação metafísica e passou a ser aplicado à toda a realidade. No caso
de Saint-Simon a idéia de progresso tinha sobretudo implicação ética e orientava o projeto político de transmudar a
vida da humanidade. Desejava-se criar uma sociedade pautada pela generosidade e pela fraternidade, princípios que
não tinham como ser impostos, apenas apontados como ideais.
A idéia de progresso, entendida por Mauá como diretiva
da ciência e da sociedade, era muito semelhante à de SaintSimon. O desejo de promover o desenvolvimento social foi
uma constante na vida de Mauá,347 conforme observou Faria:
346
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve, 1878. p. 4.
347
VIANNA, Oliveira. História social da economia capitalista no Brasil.
Belo Horizonte: Itatiaia; Rio de Janeiro: UFF, 1987.
271
“Como compreender que um rapaz, saído do nada, e tendo conquistado posição comercial e fortuna particular como de outra não há memória,
abandone, em pleno vigor, aos trinta e três anos
de idade, a sua casa de comércio, filão de ouro
que lhe deu a fortuna, meios fartos e seguros de
garantir a família e que poderia assegurar-lhe vários monopólios, se a comum preocupação do lucro o dominasse?”.348
A partir da valorização do homem, Saint-Simon transitou
coerentemente pela idéia de desenvolvimento material, até
chegar a uma concepção mais ampla de evolução, que ele
denominou de progresso. Da ótica filosófica, tratava-se de
uma versão da idéia de desenvolvimento aplicada ao curso
da história. Faria constatou nos textos de Mauá várias expressões nas quais o Visconde dava demonstração de desprendimento, generosidade e discrição. Considerando que
numa ótica utilitarista não seria compreensível alguém abrir
mão de seus legítimos interesses, notadamente quando nenhum mal a outras pessoas estivesse sendo perpetrado, era
preciso explicar por Mauá decidiu voluntariamente abrir
mão deles. Para explicar tal convicção, Faria concluiu que
Mauá precisava estar convencido de que era predestinado a
grandes trabalhos e agia visando interesses mais amplos. Escreveu ele, então:
“Percebe-se bem de suas palavras que ele se acreditava o missionário de uma grande obra. A
convicção de que lhe estava reservada uma tarefa
providencial, e só isso, pode explicar uma vida
tão ardente e abnegada. Produto de uma inspiração de fundo religioso, ou de um idealismo filosófico, Mauá se supôs apóstolo do progresso. Nas
palavras que deixou impressas, em seus escritos
348
FARIA, Alberto de. Mauá, Irineo Evangelista de Souza, Barão e Visconde de Mauá. - 2. ed. - São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933.
p. 101
272
particulares, há traços pronunciados dessa convicção messiânica. O que não se divisa nunca é o
feito da educação romana da época”.349
O problema do desenvolvimento no projeto ético de
Mauá exige que se considere a possibilidade do pouco comum que se insere na ordem temporal. Embora se possa afirmar que a maioria age para defender um interesse restrito,
acontece que pessoas possam orientar-se por interesses gerais. A procura de princípios universais não podia se pautar
em compromissos religiosos, pois esses de antemão excluem
um substancial número de pessoas. O panteísmo humanista
saint-simoniano conseguiu vislumbrar tal possibilidade, pois
não dissolveu o objeto na subjetividade universal — no absoluto — como em Hegel, que confundiu liberdade com autoconsciência, nem se fechou no estreito círculo do determinismo dos interesses. Era razoável ajudar os demais homens,
pois todos nós esperamos ajuda nos momentos em que passamos por dificuldades reais. Deve-se esperar que todos estejam comprometidos com todos e que se preocupem uns
com os outros. Assim como num corpo onde há apenas um
órgão doente, a atenção e as demais partes desse corpo ocupam-se de sua parcela enferma, também assim deviam agir
os homens.
A crença em um organismo social que, ressalvando o papel do indivíduo, o mantinha vinculado ao todo era o cerne
da ética saint-simoniana. A teoria defendeu também que os
membros não podiam ser separados da totalidade, e o progresso era a finalidade deste corpo. Depois de estudar o movimento, Faria acabou concluindo:
“Mauá está fixado, sem dúvida, entre os que, no
século passado, sofreram o influxo da escola sociológica de Henri de Saint-Simon. Esse grande
349
Idem, ibidem. p. 101
273
filósofo, apesar de suas extravagâncias de lançar
as bases de uma religião que viria substituir a organização religiosa e política, para os Enciclopedistas e a Grande Revolução, foi um espírito, diz
Faguet, aliás seu crítico pouco simpático, que teve
intuição de tudo quanto devia constituir o objeto
das preocupações do século”.350
Percebemos que o saint-simonismo se sustentava na idéia
de evolução espiritual da humanidade. As raízes dessa crença remontam a Heráclito, na Grécia Antiga, embora, na era
cristã, a idéia de progresso social tenha sido tema de autores
como Agostinho de Hipona, Joaquim de Fiori, Giambattista
Vico e Hegel. A teoria de Saint-Simon instituiu um panteísmo imanentista, pois elevava a humanidade à categoria de
ser supremo, e propunha um programa para realizar o sentido da história humana. Partindo de Hegel, os saintsimonianos transferem a noção de progresso para a história
dos homens. Segundo Faria,
“Esses teóricos de um comunismo inegualitário,
hierárquico, fundado sob a restauração mística
da autoridade social, foram, em França, os criadores dos movimentos capitalistas da monarquia
de julho e do Segundo Império; (...), tendo celebrado o poder do crédito e da associação, que o
trabalho industrial, e não a guerra, é o fim das
sociedades modernas, souberam, por demais, depois de muitos rodeios, tirar partido prático de
sua doutrina”.351
A interação entre o espírito e a natureza fora considerada
por Hegel como conseqüência da evolução histórica,
constituindo um processo onde preponderava o
350
FARIA, Alberto de. Mauá, Irineo Evangelista de Souza, Barão e Visconde de Mauá. - 2. ed. - São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933.
p. 105.
351
FARIA, Alberto de. Mauá, Irineo Evangelista de Souza, Barão e Visconde de Mauá. - 2. ed. - São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933.
p. 107.
274
tuindo um processo onde preponderava o desenvolvimento
do espírito. Schelling rompera esta compreensão atribuindo
concomitantemente ao espírito e à natureza os papéis de sujeito, ambos constituindo-se em fundamento último e absoluto. O saint-simonismo aproveitou-se da distinção entre sujeito e natureza, tematizada por Schelling, para reinterpretála como na proposta de Hegel. Saint-Simon entendia inicialmente a realidade como um panteísmo naturalista, mas evoluiu posteriormente para um panteísmo humanista. A melhor maneira de realizar a natureza humana era, neste contexto, através do trabalho. A ele estaria submetido o capital
cuja função seria, na perspectiva saint-simoniana, a de incrementar o progresso material, mas também induzir os homens a não trabalharem unicamente por interesse. O progresso material era a entrada no compromisso de mudança
moral, que recebeu força com o messianismo político de Saint-Simon. Essa parece ser a inspiração de Mauá:
“Visitando Montevidéu antes e logo depois de organizado o governo constitucional, e atravessando a campanha, fiquei contristado. Na capital era
completa a desorganização em todos os ramos da
administração. Quanto a recursos financeiros, o
governo, dominado por um grupo de exploradores
de má fé; quanto à arrecadação das escassas rendas, prevalecendo a rapina. No comércio, mesmo
nas minguadas proporções em que um consumo
limitadíssimo colocava esse ele-mento de vida,
reinava a desordem em seus movimentos; agricultura nenhuma; os ricos campos de criação pelados, atravessam-se dezenas de léguas sem encontrar-se uma só rês; finalmente, o país era um cadáver político, econômico e financeiro”.352
352
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve, 1878. p. 123.
275
Com a valorização do mundo material, Schelling abrira
no idealismo um espaço para uma consideração mais enfática do significado da natureza. De fato, Schelling atribuíra à
natureza a mesma importância do eu, buscando um equilíbrio entre esses pólos epistemológicos, embora permanecendo fiel à perspectiva transcendental estruturada por Kant.
Na mesma trilha seguiu o saint-simonismo, orientado, todavia, mais para a valorização da sociedade humana. SaintSimon propôs um naturalismo organicista em que a natureza
se apresentava co-mo um elemento desafiante da capacidade
humana. O idealismo modernizador e a luta pelo desenvolvimento típicas de Mauá, inscrevem-se nesta visão de natureza. É também por isso que Faria entendeu estar o Visconde inspirado pelo mesmo espírito de solidariedade que animava os saint-simonia-nos.
Logo que publicou o seu estudo, Faria foi imediatamente
contestado por Castro Rabello. Os argumentos deste último
para contraditar a tese do primeiro podem ser resumidos
sim-plificadamente em dois pontos:
“1º _ Não se pode utilizar o empreendimento industrial de Ponta d’Areia como um marco significativo na história de Mauá, pois o que ele fez foi
apenas continuar um estabelecimento já existente,
imprimindo-lhe, todavia, maior dinamismo.
2º - Em relação à aproximação de Mauá dos amigos de Chevalier e dos próprios escritos dele, comentou: O equívoco do novo acadêmico (referindo-se a Faria) parece-me aí evidente. Michel Chevalier foi, de fato, discípulo de Saint-Simon, mas
(e isto ninguém ignora) afastou-se tanto de seu ensino que pertence indiscutivelmente à escola liberal, ao passo que aquele é por todos incluído entre os precursores do socialismo moderno. Na-da
se transmitiu, da orientação de um à do outro, a-
276
lém da noção relativa ao papel do estado na economia e na sociedade”.353
Sem realizar qualquer análise do que significava ter como princípio a solidariedade universal, Cláudio Ganns entrou no debate em torno da formação intelectual e moral de
Mauá e concordou com a conclusão de Castro Rebello. Não
considerou os compromissos éticos do antepassado ilustre e
nem a sua obstinação de colocar o país, e mesmo o continente, na estrada gloriosa do progresso que na Europa já apresentava grandes frutos. Na perspectiva de Saint-Simon esse
ideal de progresso e a fraternidade universal eram indicativos generalizados que afetaram a um extenso número de ações. Ganns não observou tais elementos:
“No ponto de negar essa influência por falta de
provas que nos convençam, damos — entre outras
tantas contrárias às suas vistas, ao menos nesta
vez! — inteira razão ao Sr. Castro Rebello — que
aliás está nessa discordância acompanhado por
outro francês lúcido: o professor Henri Hanser”.354
Na verdade, Cláudio Ganns não acrescentou uma única
razão para contraditar a hipótese de Faria, limitando-se a repetir Rebello. Não analisou a idéia de história, de sociedade,
de progresso, presente no pensamento de Mauá. O conceito
orgânico de sociedade também presente era o tema dominante da filosofia no século XIX. São esses conceitos que
manifestavam a adoção de aspectos de uma ética utilitária e
de uma outra ética. A questão básica proposta por Faria é
que mesmo não se desconhecendo que o homem tenha em
vista seus interesses, pode também agir com vistas a fins
353
REBELLO, Edgardo de Castro. Mauá e outros estudos. Rio de Janeiro: São José, 1975. p. 20.
354
GANNS, Cláudio. A trajetória de um pioneiro. In: Autobiografia. Rio
de Janeiro: Valverde, 1942. p. 42/3.
277
maiores. Esta polêmica sugere que alguém possa guiar-se
por éticas distintas, desde que consiga compatibilizar seus
princípios. Vive-se um pluralismo de escalas quando se assume uma multiplicidade de valores. Outro exemplo do sincretismo intelectual do período era o conceito de história de
Saint-Simon, compartilhado por filósofos como Fichte e Schelling. Nada disso, porém, foi considerado por Rebello ou
por Ganns.
O idealismo mostrou que a razão humana era histórica,
caminhava no tempo e não possuía uma formulação de verdade completa e imutável. Este aspecto permitiu que Mauá
conciliasse a idéia de evolução da razão com a pesquisa científica e a liberdade política. Foi porque não aprofundou
esta temática que Ganns não reconheceu influência saintsimonia-na.
Muito curiosamente, depois de concordar com Rebello,
Cláudio Ganns indicou o caminho pelo qual Mauá teria tomado contacto com os ideais saint-simonianos:
“A ligação que Alberto de Faria se afadiga em fazer da conformação intelectual de Mauá com o
pensamento de Michel Chevalier encontrará talvez mais proximidade com André Rebouças, ao
qual este se refere constantemente no seu livro
Garantias de juros (de 1874). É certo que naquela época eles se entendiam sobre assuntos ferroviários (Rebouças e Mauá), como deixa evidente a
publicação recente do Diário de Rebouças. Se existe tal analogia entre as palavras de Mauá, em
1878, e Chevalier, seria através de Rebouças ou
pela mão deste que Mauá viria a conhecer o economista Francês”.355
A conclusão que se tira da citação acima é óbvia: o autor
preferiu concordar com Rebello para evitar contraditá-lo,
355
GANNS, Cláudio. A trajetória de um pioneiro. In: Autobiografia. Rio
de Janeiro: Valverde, 1942. p. 42.
278
mas indicou o caminho por onde se poderia investigar a influência saint-simoniana. Conforme bem a observou Karl
Jaspers, a ciência empírica da histórica tem limites, pois
sempre se põe frente ao acontecido sem interrogá-lo. Neste
trabalho, não poderíamos limitar-nos a tal procedimento, e a
análise cuidadosa da vontade e das ações do Visconde exigem que consideremos as suas crenças e valores.
A aproximação da ética utilitária com o panteísmo humanista de inspiração saint-simoniana permitiram a Mauá
crer no progresso infinito. A partir disso foi possível propor
um plano de trabalho com possibilidade de superar a crença
na identificação da totalidade com a unicidade do real, o que
conduziria inegavelmente à extinção do processo dialético,
pois o real se desintegraria na mais absoluta indistinção. A
luta pelo progresso humano devia ser contínua.
A obra escrita por Mauá356, destinada a dar conhecimento
de suas idéias e motivações, não é extensa. Os seus escritos
356
SOUZA, Irineo Evangelista de. Carta ao Visconde de Iguassu.
27/03/1879.
Idem. Ofícios enviados aos membros do Tribunal de Comércio.
28/11/1859.
Idem. Melhoramentos do Porto de Pernambuco. Rio de Janeiro: Typ.
Progresso, 1868.
Idem. Reclamação da legação do Brasil sobre a quebra do Banco
Mauá. Montevideo, 27 de julho de 1869.
Idem. Relatório da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas: apresentado à Assembléia Geral dos acionistas em 19 de junho de
1871 pelo presidente Barão de Mauá. Rio de Janeiro: Typ. de Lourenço
Winter, 1871.
Idem. Correspondência política de Mauá no Rio da Prata. (18501885). Pref. e notas de Lídia Besouchet. São Paulo: Cia. Editora Nacional,
1943.
Idem. Relatório da Imperial Companhia de Navegação a vapor e estrada de ferro de Petrópolis. apresentado à Assembléia Geral dos acionistas em 26 de março de 1856 pelo presidente Barão de Mauá. Rio de Janeiro: Typ. de J. Villeneuve, 1856.
279
tinham quase sempre uma finalidade prática e imediata. Ele
não cuidava muito das justificativas e disso todos sabem;
mas é possível identificar alguns aspectos fundamentais do
seu pensamento e mostrar a semelhança com algumas teses
saint-simonianas. Este assunto continuaremos a explorar,
mas expliquemos um pouco melhor o que era o compromisso com o progresso.
O saint-simonismo foi uma teoria filosófica que pretendeu, assim como o comtismo, o marxismo e o evolucionismo, estabelecer um programa para implementar uma nova
organização racional da sociedade. Calcado num conceito
limitado de ciência, não é de se estranhar que apresentasse
muitos equívocos. O movimento justificava-se, entretanto,
da perspectiva moral. O debate entre Faria e Rebello não se
fundamentou na análise do saint-simonismo, o que impediu
qualquer conclusão definitiva. Foi por falta de consistência
teórica que Heitor Ferreira Lima, insatisfeito com as razões
apresentadas, propôs: “deixemos para outros a exegese de
sua filiação ao saint-simonismo, ao positivismo ou ao catolicismo”.357
É necessário, portanto, distinguir a idéia de religião existente no saint-simonismo do conceito tradicional. Este movimento filosófico, expressando o espírito do século, não
aceitava qualquer explicação mítica da realidade. Como teoria, propôs a instalação de uma nova ética, o culto das capacidades humanas. Se alguns saint-simonianos revelaram algum apreço pela religião tradicional, não foi sem antes
transformar Deus no princípio racional ordenador da realidade. A superação do pensamento mítico conduziu a valori-
Idem. Exposição do Visconde de Mauá aos credores e ao público. Rio
de Janeiro: Typ. Imp. de J. Villeneuve, 1878.
357
LIMA, Heitor F. Obra precursora da Mauá e os primórdios do capital
estrangeiro no Brasil. In: Aspectos da formação e evolução do Brasil..
s.n.t.
280
zação máxima da razão, transformada em instância legisladora da ação. O novo cristianismo era o meio de se obter a
estabilidade política e o compromisso com o progresso. O
novo cristianismo cumpria a finalidade de estimular a poupança e o trabalho, mas não as desvinculavam de um comprometimento com os demais homens. Mantinha os valores
da moral contra-reformista, sem se valer da argumentação
consagrada pela ética tomista.
2. A retomada da questão
O
historicismo hegeliano embutido no industrialismo
subordinou a ele a experiência física. Quanto a experiência social, política e moral permaneceram como momentos do espírito. Do ângulo epistemológico, a experiência
concreta submeteu-se à progressiva objetivação do espírito,
configurando-se como experiência segunda. Entretanto, ao
contrário do hegelianismo, o industrialismo, apesar de possuir um denso substrato filosófico, possuía uma linguagem
prática e estimulante para os homens de negócio. A ética saint-simoniana era de fácil compreensão e não contraditava
princípios solidamente consolidados na sociedade. Os valores e princípios referiam-se ao homem concreto em sua vida
diária.
O saint-simonismo, que como sistema filosófico enalteceu a razão e assegurou o sucesso do pensamento lógico, da
ótica moral passou a utilizar o uso da técnica para a transformação da realidade, valendo-se do trabalho industrial.
Conforme observou Gonnard,
“Um grande número de homens dotados dos mais
diversos tipos de talento — engenheiros, escritores, artistas, banqueiros — passou pelo saint-
281
simonismo e dele conservou o cunho, a saber, o
gosto pelos grandes empreendimentos”.358
O número de industriais defensores do progresso e da
melhoria das condições de vida da sociedade e que se aproximaram da doutrina saint-simoniana foi muito grande. O
movimento ganhou destaque inicialmente na França, como
relatou Paul Hugon:
“Fundam os irmãos Péreie, em 1863, a primeira
grande sociedade financeira moderna, o Crédito
Mobiliário, antepassado de nossas grandes sociedades financeiras. Enfantin organiza uma sociedade para a abertura do canal de Suez e auxilia a
criação de uma das maiores redes ferroviárias
francesas, dando grande impulso ao moderno desenvolvimento do crédito. Michel Chevalier, solicitando intervenção do Estado, vai ainda contribuir para a expansão das grandes obras públicas
do século”.359
Os resultados práticos do compromisso moral com a
transformação do mundo acabaram chamando atenção para
o movimento. O universo da matéria inerte, com seus componentes e explosões, aparecia diante dos saint-simonianos
co-mo matéria transformável. A história da humanidade
compunha-se de ações, tradições e memórias conscientes
que conferiam, nesta perspectiva filosófica, uma visão da
natureza, considerada como um campo onde as ações humanas produziam fenômenos semelhantes, mas únicos. Paul
Hugon aproximou Mauá do saint-simonismo porque o viu
perseguindo as mesmas finalidades que eles perseguiam,
considerando estar nisso a sua realização pessoal:
358
GONNARD, R. Histoire des doctrines économiques. Paris: s. e., 1930.
p. 453.
359
HUGON, Paul. História das doutrinas econômicas. São Paulo: Atlas,
1978. p. 207.
282
“Mauá assemelha-se a Saint-Simon sob vários
aspectos: dotado de uma prodigiosa atividade, entusiasta e convicto apologista do industrialismo e
do poderio da ciência, das suas ilimitadas possibilidades técnicas representará, nesse terço do século XIX, um dos artífices mais notáveis do desenvolvimento econômico de seu grande país. A exemplo dos irmãos Péreie, organizou, no Brasil,
sociedades por ações fazendo-se, a um tempo,
banqueiro, empresário de grandes obras públicas,
construtor de estradas de ferro, armador, além de
agricultor e diplomata... sua energia não tinha
limites. Suas iniciativas estendem-se a todos os
campos. Sua vida, brilhante como poucas, teve um
triste fim em meio a grande pobreza. E por este
fim mesmo aproxima-se sua existência, de maneira muito estranha, da de seu longínquo mestre”.360
O argumento básico de Hugon baseia-se no fato de que o
saint-simonismo exerceu sua influência em homens comprometidos com a mudança do mundo. O movimento foi
uma apologia do trabalho, da produção industrial, do auxílio
dos Estados para os grandes empreendimentos, do controle
do próprio Estado pelos industriais, enfim, um verdadeiro
hino ao progresso na suposição de que as mudanças no
mundo promoviam o aprimoramento da vida social. O valor
do progresso nasceu da necessidade de aperfeiçoar as formas de convívio entre os homens, o que era sentido como
um desafio crucial. Os compromissos sociais guiaram a ética
saint-simoniana e orientaram as preocupações individuais.
O industrialismo reconhecia, na sociedade, a autosuficiência e a supremacia que o hegelianismo atribuíra ao
Estado. Não possuía, entretanto, uma formulação organicista
tão rigorosa e extrema, reservando algum espaço para a liberdade individual na construção do progresso social.
360
Idem, ibidem. p. 207/208.
283
Chacon dedicou-se a examinar o compromisso moral veiculado pelos saint-simonianos. O grande argumento que ele
utilizou para aproximar Mauá do saint-simonismo foi de natureza conjuntural. Ele considera que
“(...) é impossível ter escapado aos seus olhos
perspicazes a intensa atividade saint-simoniana,
propagandista de algo tão sensacional, como o
Canal de Suez, influenciando Napoleão III, repercutindo na imprensa, transbordando até para a
arregimentação operária, através de Pecqueur,
Vidal e Leroux com grande susto para a burguesia”.361
Mauá era portador de um profundo senso prático e o conhecimento das teses saint-simonianas lhe seriam muito importantes. Elas asseguravam a totalidade dos valores morais
propostos pelo catolicismo, com a vantagem de dar à existência terrena um sentido não encontrado nele. Quanto ao
en-tendimento da sociedade como um organismo, sabemos
perfeitamente que a hipótese organicista permanece subjacente às várias doutrinas sociais e políticas modernas, entre
as quais se incluem as de Hegel e Saint-Simon. Para ambos
a sociedade é o elo de ligação entre os extremos que unem
os interesses particulares e os interesses coletivos. Mauá revelava uma preocupação constante com a relação que se estabelecia entre seus interesses particulares e os interesses do
País. A sua vida de realizações, a sua atuação política, os pareceres que dava aos altos dirigentes do País, demonstram o
quão ele se envolvia com o futuro da sociedade.
Chacon propôs um outro argumento que permitiria aproximá-lo das idéias de Saint-Simon. Afirmou que as teses
deste e muitas das idéias defendidas pelos economistas
clássicos, especialmente Smith e Say , possuíam pontos
361
CHACON, Vamireh. História das idéias socialistas no Brasil. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p. 250/1.
284
sicos, especialmente Smith e Say , possuíam pontos comuns.
Ele considerou que
“(...) também por ser homem prático, Irineo não
tinha preocupação ortodoxa: em que o industrialismo, mais social que socialista, de Saint-Simon e
seus adeptos, contrariava o liberalismo também
industrialista de Adam Smith? Este, ao contrário
do que muita gente superficial imagina, chegou a
recear os abusos do laissez-faire levado às últimas conseqüências. O que era uma porta aberta
para seus sucessores irem admitindo um crescente
intervencionismo estatal”.362
Mauá tinha como objetivo permanente o desenvolvimento. A este objetivo ele subordinaria sua atuação como empresário e político. Entendeu que a natureza era generosa e
como que pedia o trabalho humano para libertá-la de sua
própria brutalidade. A estratégia para promover esse desenvolvimento não podia ficar restrita a modelos científicos
pouco desenvolvidos. Em função disso, assume posição de
cautela diante de certos princípios da teoria econômica liberal que não haviam tido suficiente comprovação:
“E, na verdade, cumpre estar prevenido contra
certas idéias apregoadas com dogmática severidade por parte de doutrinários inflexíveis, as
quais nem sempre são aplicáveis a países onde as
causas que determinam certos fenômenos são diversas, e portanto o regime aconselhado como
salvador de altos interesses para uns daria em resultado ficarem estes seriamente comprometidos
em outros, se o bom senso nacional não repelisse
o presente grego que os chamados mestres da ciência lhe querem impor... O estudo da economia
política é difícil, pelas variantes que abrange, e
pelas circunstâncias essencialmente diversas até
362
CHACON, Vamireh. História das idéias socialistas no Brasil. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p. 251/2.
285
onde pretende estender essa ciência a influência
dos seus princípios, querendo seus apóstolos dominar fatos que ainda não podem explicar. Isto
provoca resistência que, sem condenar a ciência,
desautorizam alguns dos seus dogmas, como outros com igual pretensão já o foram, e denuncia a
necessidade de maior estudo quanto à origem de
certos fatos em controvérsia, ou talvez a necessidade de expulsar do seu vasto arsenal científico
mais de uma pretensão insustentável. E principalmente nas discussões prolongadas que ainda
hoje se dão, e prometem mais largo desenvolvimento quanto a seu ramo mais difícil, a ciência
monetária, que divergem as opiniões, assim das
massas (a quem mais interessa a solução), como
dos apóstolos autorizados das doutrinas econômicas”.363
A análise apresentada sobre a estrutura metodológica da
ciência econômica revela, como observou com muita propriedade Vamireh, que Mauá estudava as teorias fundamentadoras da economia-política. Tais idéias envolviam uma concepção de riqueza, valor da história, vida social e política.
Demonstrou também que Mauá estava aberto à conciliação
de diferentes aspectos, desde que eles pudessem ser verificados pela experiência. Saint-Simon já apresentara um sistema filosófico em que buscava conciliar vários aspectos do
iluminismo com idéias do romantismo-idealista. Isso não seria uma exceção, pois nota-se em todo pensamento europeu
a tentativa de acolher aspectos das diferentes escolas que
procuravam substituir a suposta ordem das verdades imutáveis, típicas da mentalidade medieval. O novo saber estava,
naquele momento histórico, em fase de estruturação. A ética
pombalina pretendeu dar um novo alento à vida coletiva, orientando a atenção mais para os interesses coletivos que pa-
363
SOUZA, Irineo Evangelista de. Jornal do Comércio. Rio de Janeiro,
11/23 de abril de 1878.
286
ra os individuais. Ao fazê-lo não desejou tocar nas virtudes
tradicionais, especialmente nas virtudes humanas como a
prudência, temperança, coragem, limpeza, amor paterno,
materno, filial e um sem número de outros. O saintsimonismo ocupou na consciência de Mauá o vácuo deixado
pela ética pombalina. Além disso, pode-se bem verificar, a
preocupação de Mauá com o desenvolvimento e o compromisso com os destinos das massas, isto é, com as camadas
mais pobres da sociedade, de resto não só uma preocupação
social do momento, mas um dos objetivos explícitos de
Pombal.
Mauá não era um teórico, especialmente se entendermos
como tal quem se preocupa com um conjunto de regras e
princípios gerais formados pela abstração de dados concretos, conforme definiu Kant. Não se pode negar, contudo, o
esforço de elaboração conceitual, principalmente nos assuntos econômicos. Nestes trabalhos, a principal deficiência
que revelou foi a incompreensão dos mecanismos de controle da economia. Tais instrumentos, entretanto, somente ganharam um tratamento científico depois de Keynes,364 o que
permitiu a participação do Estado na economia, mantidas as
teses liberais mais significativas. Nesse particular ouça-se
Celso Furtado:
“No quadro da doutrina, admitia-se, de forma
mais ou menos vaga, que o equilíbrio monetário
assegurava a utilização eficaz dos recursos. O
pensamento Keynesiano, ao destruir as bases teóricas dessa doutrina, ampliou a frente da política
econômica, levando a definir como objetivo explícito desta consecução a manutenção do plenoemprego do fator trabalho. Na medida em que os
364
KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da
moeda. Trad. de Mário R. da Cruz. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Idem. Inflação e deflação. Trad. de Rolf Kuntz. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
287
objetivos da política econômica se tornam complexos, mais complexos têm que ser os instrumentos dessa política. Com efeito, cada novo objetivo
de política econômica exige que se ponha à disposição das autoridades centrais pelo menos um novo instrumento de ação. Surge então o problema
de compatibilizar os objetivos e de coordenar a
manipulação dos instrumentos”.365
A idéia de estado entre os liberais era atomista ou contratualista, isto é, entendia-se o estado como formado pelos sujeitos. Apesar de sua preocupação com os indivíduos, os saint-simonianos tendiam mais para a concepção organicista
da sociedade onde a totalidade prepondera sobre as partes.
Na modernidade, Fichte já apontava para o fato dos cidadãos estarem submetidos ao estado, mas foi Hegel quem levou esta concepção ao extremo. Os saint-simonianos, mesmo não chegando ao ponto de identificarem Deus e o Estado
mantiveram a concepção organicista. Em que se baseara Rebello para afirmar que Chevalier evoluiu para uma concepção de sociedade liberal? Seria apenas porque ele fora contra a Revolução do início do século XIX? A argumentação
não tem consistência conforme observou Vamireh
“... quanto a Chevalier, volteriano de origem, o
temor do socialismo lhe fez abandonar muitas das
suas idéias saint-simonianas. Weill relembra seus
ataques contra Louis Blanc. A arregimentação
das massas contrariava o plano de Revolução de
cima para baixo; entre Proudhon ou Marx e Napoleão III, os saint-simonianos preferiam es-te. O
que não nos deve surpreender; os próprios companheiros de Louis Blanc, como Vidal, que tinham
origem saint-simoniana, olhavam com temor a
Revolução armada: uma revolução seria hoje terrível, pavorosa; faria vítimas, destroços, ruínas,
365
FURTADO, Celso. Teoria e política do desenvolvimento econômico.
São Paulo: Abril Cultural, 1983.
288
sem organizar uma nova ordem. As revoluções úteis e fecundas são as que realizam o progresso
consumado nas idéias, que destroem para criar e
chegam no momento oportuno”.366
Se homens como Vidal367 não apoiavam as idéias de
Blanc e eram contrários a uma revolução armada, mesmo
tendo experiência e convívio com movimentos populares,
com muito mais razão Chevalier condenaria o movimento,
pois não acreditava que o povo pudesse promover o progresso sem ser dirigido para tal finalidade. Aliás, esse também
fora o entendimento dos teóricos do pombalismo.
Chevalier difundiu muitas das teses saint-simonianas entre os industriais de todas as partes do mundo e Rebouças
era um deles. O trabalho, segundo o francês, era uma experiência fundamental da existência, que possibilitava a transformação da realidade, permitindo ao homem romper os
seus limites naturais. O mundo desafiava a inteligência e o
homem podia iluminá-lo. O saint-simonismo enfatizava o
trabalho sobre a natureza, mas considerava a atividade de
pensá-la como uma das tarefas fundamentais da humanidade.
O saint-simonismo tematizou com precisão a atitude existencial que fundamentava a civilização emergente com a
indústria. O sentido da vida tornou-se a atividade produtiva,
capaz de aumentar as riquezas disponíveis e ampliar os serviços básicos ligados à higiene, ao transporte, à saúde e à
educação. A capacidade produtiva expressava uma atitude
filosófica, frente os outros. A humanidade seria elevada à
categoria de grande ser, composta, entretanto, por sujeitos
concretos. Este aspecto indica que a teoria considerava fun-
366
CHACON, Vamireh. História das idéias socialistas no Brasil. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p. 250/1.
367
VIDAL, F. De la repartition des richeses. In: Cent cinquante ans de
penseé socialiste. Paris: Marcel Riviére, 1947.
289
damental o conceito de intersubjetividade, idéia posteriormente ampliada pela fenomenologia. Nunca é demais realçar
que, no sistema saint-simoniano, produtividade não tinha um
caráter exclusivamente econômico, mas comportava uma
nova maneira de existir. Esse esforço para prevenir as más
ações enfatizando o trabalho e a ocupação das classes mais
pobres era um objetivo explícito de Smith e fora adotado pelo Visconde de Cairu. Ele chegou a afirmar que “a economia
política é mais eficaz que a ciência da moral ou da legislação”.368 No entanto, logo compreendeu Cairu que os valores
éticos eram imprescindíveis, havendo adotado os princípios
católicos. O saint-simonismo preencheu o mesmo vazio percebido por Cairu, pois o Novo Cristianismo propunha as
condições de manifestação objetiva dos valores trazidos pela
modernidade para o espaço experiencial do indivíduo.
A teoria saint-simoniana, mesmo possuindo nítida orientação historicista e sociológica, comportava uma fundamentação ética. O pensador parece ter compreendido que, quanto mais nos aprofundamos num ramo qualquer do conhecimento, mais compreendemos que as suas raízes estão presas
à filosofia. Os saint-simonianos não avançaram nesse ponto
e Augusto Comte conduziu esta investigação, tendo como
pano fundo um modelo de ciência limitado. Mauá não explorou tais possibilidades filosóficas, mas notou o quão eficaz era utilizar o ideal de progresso no controle das paixões.
Neste aspecto lembramos que o saint-simonismo veiculava,
na ocasião, um outro universo axiológico, uma revolucionária estrutura hierárquica dos valores capazes de dar um novo
sentido à ocupação do mundo, absorvendo em seu interior o
antigo quadro dos valores.
368
CAIRU, Visconde de. Leituras de economia política ou direito econômico. Rio de Janeiro: Planches-Seignot, 1827. p. 36.
290
Mauá teria tomado conhecimento das principais idéias
morais defendidas pelos saint-simonianos, sem se ocupar
com outras questões de natureza filosófica, mística ou religiosa que haviam ganho destaque no período de Enfantin e
Bazard, ou aquelas de natureza populista defendidas por
Pecquer, Leroux e Vidal. Efetivamente, as idéias morais daqueles seguidores de Saint-Simon apoiavam-se nas teses filosóficas; Mauá, porém, travou conhecimento com as primeiras e aproveitou-se delas para fundamentar e adequar o
próprio pensamento. Aquele industrialismo tinha ainda a
vantagem de possuir um substrato de natureza econômica,
aspecto que lhe permitiria maior amparo intelectual do que o
sustentáculo religioso sobre o qual se assentava a ética protestante. Desta forma, parecem-nos respondidas as objeções
de Castro Rebello. O saint-simonismo veio preencher e fundamentar o sentido ético-normativo das práticas econômicas, uma vez que Mauá não possuía os mesmos pressupostos
éticos que orientavam Adam Smith.
Por tudo isso concluiu Vamireh:
“Irineo Evangelista de Souza, Barão e depois Visconde de Mauá, tinha todas as possibilidades de
ser um saint-simoniano, e constitui o cúmulo da
coincidência o encontro do seu vocabulário com
suas idéias, ambos com claríssimas aproximações
dos discípulos do autor do Novo Cristianismo”.369
O Novo Cristianismo de Saint-Simon foi a obra de conclusão do seu sistema filosófico. Nele ficou espelhada a união do entendimento com a realidade, a explicação de que o
destino do homem era o progresso e que a sua glória seria
efetivada com a transformação da terra num espaço novo e
remodelado. O programa do livro era banir a ignorância, cri-
369
CHACON, Vamireh. História das idéias socialistas no Brasil. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p. 254.
291
ar laços fraternos entre a nova humanidade purificada de seu
passado, libertada da superstição e capacitada a realizar o
destino do homem. Quão importante foi esse projeto ético
no sentido de criar uma justificação capaz de propiciar a retidão moral e a paz interior sem a necessidade de apelo
transcendente.
3. Mauá e o saint-simonismo
O
saint-simonismo forneceu uma moral com valor inquestionável para orientar o econômico. A relação
entre os homens ganhava assim um novo significado redimensionando valores como a responsabilidade, a fraternidade e a justiça.
A história da filosofia nos mostra como, a partir do início
da Idade Moderna, o pensamento europeu evoluiu no sentido da laicização. Alguns sentimentos como a fraternidade, a
solidariedade e o amor, fundamentados tradicionalmente na
ética cristã, continuavam a ser considerados como imprescindíveis para a convivência humana; entretanto, precisavam
de um fundamento fora do âmbito religioso. O desenvolvimento da ética encarregou-se de situá-los fora do contexto
religioso, o que foi complementado pelo jusnaturalismo iluminista. O valor da pessoa humana não estava mais vinculado a outras vontades. Noberto Bobbio definiu-o como pertencente “ao indivíduo, a todos os indivíduos, pela sua própria natureza de homens, independentemente da participação
desta ou daquela comunidade política”.370 A ética viveu uma
crescente preocupação antropológica que quando não eliminou o apelo à religião transcendente, como ocorreu no saintsimonismo, forjou um estudo do fenômeno religioso secula-
370
BOBBIO, Noberto. Direito e estado no pensamento de Kant. - 3. ed. Brasília: Ed. UnB, 1995. p. 15.
292
rizado considerado um evento significativo, apenas pelo caráter humano que possuía.
O saint-simonismo propunha igualmente um roteiro para
realizar o sonho nascido na modernidade, de tornar o real
compreensível e de poder transformá-lo através do exercício
da razão operante. Como doutrina, as idéias de Saint-Simon
contribuíram para realçar a importância da ciência, do trabalho, do progresso e da necessidade de estabelecer limites ao
poder do estado, que emergiu colossal depois do processo de
unificação nacional.
Ennor Carneiro foi uma das pesquisadoras que se interessou pelo debate Faria - Rebello e, depois de estudar o saintsimonismo, considerou que Mauá sofreu maior influência da
ética saint-simoniana, mas achou possível destacar também
outros princípios filosóficos daquela teoria no pensamento
do industrial. Conforme ela própria afirmou:
“As idéias profundamente humanitárias de SaintSimon se refletem em quase todos os gestos do positivista Mauá. Saint-Simon, ideólogo puro, preconizava a redenção do gênero humano pela fundação de um Estado eminentemente industrial,
onde o capital se empregasse exclusivamente em
empreendimentos de interesse social, e o trabalho
se reconhecesse como o mais nobre título de honra. Saint-Simon anteviu a revolução industrial;
Mauá colaborou para realizá-la. O eminente biógrafo de Mauá (referindo-se a Faria) reconhecelhe um temperamento e uma vocação messiânicas”.371
Essa mesma vocação messiânica a autora reconheceu no
Visconde. O industrialismo conseguiu manter coerente a valorização da individualidade, ainda que considerasse uma
existência absoluta apenas quando, à moda de Rousseau,
371
CARNEIRO, Ennor de Almeida. Mauá. Rio de Janeiro: Departamento
Administrativo de Serviço Público, 1965. p. 33/4.
293
fosse pautada numa consciência social. Hegel, apesar de todo o seu esforço em entender a história como exercício da
liberdade, acabou por contribuir para reduzir o valor do indivíduo, considerado como instrumento do espírito absoluto.
Tanto o utilitarismo como o industrialismo permitiram a tematização do imprevisto no processo espiritual e, conseqüentemente enfatizaram a importância da ação individual
na consolidação dos fatos históricos e no aprimoramento da
vida social.
Hegel fez uma análise filosófica da civilização ocidental
e pretendeu que a referida análise fosse a autoconsciência da
humanidade. Em seu livro Fenomenologia do Espírito ele
es-tabeleceu uma estreita vinculação entre o conteúdo ontológico e o histórico, associando as diferentes etapas da história da humanidade às manifestações do espírito. E este caráter ontológico, que ganhou realce no final da obra especificada, é responsável pela diminuição do valor dos indivíduos. O hegelianismo deixou apenas ao espírito absoluto a
possibilidade de liberdade, permanecendo a realidade como
algo negativo, que o espírito só conhecia a si próprio e era
apenas em si e para si que o pensamento manifestava. Conservando um espaço de liberdade na ação individual, o saintsimonismo rompeu com este aspecto do hegelianismo, dele
mantendo a confiança no logos e no progresso. O progresso
anunciado por Hegel seria concretizado pelos industriais,
assim pensou Saint-Simon, assim fez Mauá. A este aspecto
referiu-se Ennor Carneiro, afirmando, de maneira idêntica a
Faria, que Mauá estava movido por uma obsessão pelo progresso e por uma inspiração messiânica. Eis como ela se expressou:
“Saint-Simon, com a sua teoria da civilização industrial, colocava em primeiro plano a reabilitação do trabalho, e julgava necessário transferir a
direção do Estado das mãos da nobreza, das forças armadas e do clero, para as dos sábios, dos
industriais, dos agricultores, e dos artistas; pro-
294
pugnando pela separação radical dos grupos sociais, divergentes, de trabalhadores e ociosos.
Mauá, produto de uma inspiração de fundo religioso, ou de um idealismo filosófico, se supôs apóstolo do progresso. É quase certo que Mauá estava tomado dessa convicção messiânica. A influência dos ideais sociológicos do saint-simo-nismo
sobre seus escritos e suas idéias é evidente. Havia
uma espécie de profissão de fé messiânica nas
freqüentes alusões, algo alegóricas, algo místicas, que fazia aos seus outros destinos”.372
Apesar da afirmação de Cláudio Ganns, para quem Mauá
acreditava em Deus, não existe prova de uma vinculação do
empresário a qualquer religião. Este aspecto é, no mínimo,
curioso, pois naquele momento igreja e estado estavam unidos e o Brasil era oficialmente um país católico. Provavelmente, a ética saint-simoniana inspirasse o trabalho e os
com-promissos adotados. Se na Inglaterra as idéias de Smith
encontravam respaldo numa sociedade marcada pelo puritanismo, o mesmo não se podia dizer do Brasil. O saintsimonismo era uma alternativa para compatibilizar compromisso moral com o destino da sociedade.
Utilizando o saint-simonismo como fundamento para o
trabalho, Mauá não abandonou certos princípios católicos,
como já procuramos demonstrar, estando o seu nome associado a quase todas as obras de caridade de que tinha notícia. “Mauá foi filantropo no mais completo sentido do vocábulo”.373 Recordemos que Saint-Simon considerou como expressão de um comportamento ético justo a filantropia, instrumento de aperfeiçoamento social para uma sociedade em
crise.
372
CARNEIRO, Ennor de Almeida. Mauá. Rio de Janeiro: Departamento
Administrativo do Serviço Público, 1965. p. 33/4.
373
CARNEIRO, Ennor de Almeida. Mauá. Rio de Janeiro: Departamento
Administrativo do Serviço Público, 1965. p. 36.
295
O saint-simonismo indicou as bases frágeis sobre as
quais se estruturaram a filosofia e a moralidade ocidentais, a
saber: a transformação da realidade em essência e das condições históricas e econômicas em metafísicas. Por isso, os
saint-simonianos projetaram um novo mundo, revertendo
semelhante quadro. Neste espírito indicaram como deveria
ser a nova ordem social. Sonharam com um mundo onde, através do trabalho, a humanidade atingisse níveis cada vez
maiores de eficácia e de felicidade. Ennor Carneiro enxergou, na atuação de Mauá no Uruguai, o desejo de progresso
próprio dos saint-simonianos:
“Era o eterno Saint-Simon concretizando os seus
ideais, verdadeiro mago da revolução industrial,
levantando em um país que não era o seu, como
igualmente fizera no Brasil, uma obra que ninguém, até hoje, pretendera ter feito igual, nem
com os recursos próprios nem com os cofres públicos à disposição”.374
Bacon estabelecera no Novum Organum que o saber era
democrático, porque não era privilégio de nenhuma casta.
Mais que isso, o pensamento moderno assumiu um caráter
prático, abandonando o conhecimento contemplativo que fora um ideal cultivado desde a origem da filosofia. O saintsimonismo pretendeu realizar este desejo de dominar a natureza expresso nas origens do pensamento moderno. O caráter messiânico que pode ser encontrado no empenho realizador de Mauá revela o seu compromisso com a transformação
da realidade. Mauá viveu o ideal humanista, otimista e desenvolvimentista da ética iluminista, como escreveu Souza
Ferreira:
“Irineo Evangelista de Souza anteviu, como deixamos dito, a época de prosperidade que ia abrir-
374
Idem, ibidem. p. 561.
296
se para o Brasil; conheceu, — melhor diremos
sentiu — que tinha de tornar-se a alma, o guia,
desse movimento industrial que ensaiava as forças, mas acanhado e vacilante. Propugnador convencido e sincero dos princípios liberais, como se
mostrou em toda sua vida, ele não desconhecia,
entretanto, que os preceitos da escola econômica
caracterizada pela frase célebre — laisser faire,
laisser passer — não são verdades absolutas, independentes do meio social em que têm de ser aplicadas; antes se modificam sob a pressão dos
acontecimentos, sofrem na prática a ação fatal do
tempo e do espaço, quando têm de se desenvolver”.375
Renato Costa acompanhou com vivo interesse o debate
estabelecido entre Faria e Rebello. O que mais lhe chamava
atenção na vida do industrial era a certeza de que progresso
do País dependia do seu esforço. O engajamento de Mauá
orientava-se pela crença de que o curso dos eventos históricos formava uma série, cujos momentos eram partes da história e, o mais significativo, cada momento possuía valor pelo que absorvia da etapa antecedente. O trabalho promovia a
felicidade humana e aumentava a confiança no destino humano.
Para a execução do seu ideal de progresso, mobilizou o
melhor de si, motivado por esta idéia romântica, que os saint-simonianos se esforçaram para difundir, ao mesmo tempo que propagaram, ser apenas aparente, o regresso dos
momentos críticos, entendidos como parcelas da história e
componentes de um progresso maior. Certamente os saintsimonianos herdaram de Hegel a convicção de que os períodos críticos possuíam a mesma racionalidade do todo. Do
mesmo modo que Cairu, Mauá acreditava no desenvolvi-
375
FERREIRA, J. C. de Souza. Esboço biográfico do Visconde de Mauá.
Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Comércio, 1898. p. 9.
297
mento humano, e tal esperança consolidou-se em empenho
moral. A respeito das qualidades pessoais de Mauá e do embate Rebello - Faria Costa escreveu:
“Aos vinte e três anos Ricardo Carruthers o associava nos negócios, entregando-lhe a direção da
casa. Castro Rebello, que tentou deprimir a biografia de Mauá, magistralmente traçada por Alberto Faria, negando ao genial brasileiro as características dominantes de precursor e líder de
todos os grandes empreendimentos nacionais, em
mais de um quarto de século de suas atividades
econômicas e financeiras, reconhecia-lhe, entretanto, na sua ascensão sucessiva a posse de
qualidades superiores, que podem fazer dele um
desses exemplares de homens capazes de triunfar
— pela inteligência, pela habilidade, pela energia, senão por qualidades menores — das dificuldades da vida...”.376
Mauá desenvolveu habilidades que quando mobilizadas a
favor do progresso responderam prontamente. Pouco antes,
durante o século XVIII, o kantismo chamara atenção para a
distinção do conceito e das coisas consideradas em si mesmas. Portanto, ficara evidente que o ser tematizado pelos
filósofos não era um predicado real. Em seguida, o
idealismo de Hegel, ainda que permanecendo na perspectiva
transcendental, buscou atribuir ao pensamento o caráter de
realidade que o kantismo negara. O saint-simonismo
seguindo esta trilha chamou atenção para a ligação entre a
ordem social e o pensamento. Teoria desenvolvida logo após
a Revolução Francesa, sofreu profunda influência dos
movimentos populares. O que merece ênfase nesta teoria é
que ela buscou o equilíbrio entre a organização social e as
manifestações do espírito, conquanto isso não significasse o
determinismo de uma sobre a outra. Saint-Simon não
376
COSTA, Renato. Síntese de uma vida - Mauá. Porto Alegre: Associação Comercial, 1941. p. 7.
298
uma sobre a outra. Saint-Simon não afirmou que a simples
mudança na organização social promoveria uma mudança no
pensamento. Pelo contrário, ocupou-se em fornecer uma nova religião que pudesse transmitir a representação conceitual
do novo momento. A vida do espírito tinha portanto uma dinâmica singular. Entretanto, ao propor essa representação da
realidade, ele deu à ética a tarefa não apenas de pensar a realidade, mas de ajudar a alterá-la, promovendo assim o progresso do espírito humano.
O saint-simonismo era o anúncio desta nova época de
progresso. O movimento que possuía uma face epistemológica e outra ético-política enxergou em ambas instrumento
de promoção da humanidade. Pela educação dos sentimentos, da razão e da vontade era possível implantar uma fase
de progresso ainda não experimentado pela humanidade.
4. Uma ética heterodoxa
A
ética de Mauá incorporou o componente social que
as críticas de Burke e Hegel ajudaram a explicitar.
Ele, assim, apreendeu do liberalismo a valorização do indivíduo e da liberdade, mas preconizou a exaltação da sociedade conforme o outro ramo do romantismo no século XIX,
o idealismo. A liberdade se explicitava concretamente no
universo social.
O ideal de Saint-Simon possuía raízes no saber científico, entendido na dialeticidade e resultante do condicionamento histórico, o que o aproximava de Saint-Simon e o distinguia da lógica pura estabelecida no criticismo transcendental de Kant. O fato do filósofo propor o seu sistema como a expressão máxima da história da cultura é resultado de
uma visão típica daquele período no qual os pensadores se
sentiam como pertencentes ao processo de coroamento da
história. A etapa anterior instaurara a anarquia e não chegou
a promover o bem estar da sociedade. A adesão à idéia de
consenso na busca do progresso permitiu a Mauá escapar
299
deste equívoco. Por isso, ele preferiu discutir a defesa da indústria e da propriedade na trilha de Locke e de Smith.
O utilitarismo, do mesmo modo que a ética saintsimonia-na, incorporou o papel da ciência moderna, realçou
a descoberta dos fatos particulares via experimentação, objetivando o progresso material e a sua conseqüência, o desenvolvimento natural do espírito do maior número de indivíduos. Em vez de procurar redefinir antigas categorias como
substância, acidente, ser, paixão e qualidade, a ciência moderna elaborou um discurso quantitativo da relação entre os
fatos, e a filosofia, a partir de então, nunca mais foi a mesma. No entanto foi apenas no saint-simonismo que os detentores do saber, associando-se aos industriais, deviam orientar os destinos da sociedade.
Desenvolviam-se, então, na Europa o racionalismo iluminista e o romantismo, ambos procurando fornecer as bases de uma nova ordem social, política e econômica. Se o
romantismo idealista evoluiu das exigências do rigor racionalista para a valorização das forças irracionais, o racionalismo calcado no jusnaturalismo procurou reafirmar o valor
de uma ordem racional. Essa ordem estava ao alcance da razão e conservava o ideal de conhecimento geometrizado
concebido por Descartes. Estabelecer uma síntese destas idéias fora o projeto de Saint-Simon. Ele atribuiu ao Governo
o papel de planificador desta nova ordem e pretendeu encarregar os industriais de dirigi-lo, a fim de obter o progresso
social. A hipótese saint-simoniana era um absurdo à luz do
projeto político lusitano, ao contrário de Mauá, que, pelo
menos, no que toca ao segundo aspecto, estava plenamente
de acordo com o saint-si-monismo.
A monarquia lusitana sustentava a estabilidade social e
política na presença do monarca. O centro do poder político
incorporou às suas pretensões o ideal dos grandes proprietários, num equilíbrio que associara o poder econômico à con-
300
dução política dos negócios do estado. Mauá era uma ameaça a semelhante projeto político:
“Todas essas conquistas constituíram seu lastro
intelectual, de feição eminentemente prática. Por
isso mesmo, quando Mauá começou a jogar com
tais idéias e a estruturar planos de empresas, muita prevenção se manifestou contra o realizador.
Mauá surgira com a força imprevista de uma
caudal que, depois de represada, se espraiou indômita. De realização em realização, vai criando
nome e vai-se impondo. Seus cometimentos suscitam invejas. Vai pagando pesado tributo a uma
sociedade escravocrata. O trabalho realizado pelo braço escravo é anti-econômico e anti-social.
Marasma os empreendimentos. Entorpece as iniciativas. Os senhores de escravos mandam em todos os níveis da sociedade. Poderosos cons-tituem
apoio indispensável ao mundo político. Seus haveres crescem desabusadamente. Mas não representam enriquecimento real do Império... os senhores de escravos, rotineiros e orgulhosos, acompanham com suspicácia a ação de Mauá”.377
Mauá não aceitaria nem a escravidão, nem o tráfico de
escravos.378 O liberalismo estava baseado na idéia de liberdade e na da representação dos interesses. Através desses
conceitos, o liberalismo pretendeu vencer a violência política; através do debate parlamentar, estruturou um pacto social. As nações que associaram à sua luta pela independência
política a luta pela liberdade escreveram belas páginas na
história moderna. Por isso mesmo, Kant considerava as lutas
pela independência da Suíça, da Holanda e da Inglaterra
como os eventos históricos mais importantes da Idade Mo-
377
SOARES, Teixeira. O gigante e o rio. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Artes Gráficas, 1957.
378
COUPLAND, Reginald. The British anti-slavery movement. Oxford: s.
e., 1933. p. 165 e seguintes.
301
derna. Kant considerou no ensaio “O que é o iluminismo”
que a mudança do controle do poder poderia acabar com
uma ordem política indesejável, mas não era capaz de promover uma reviravolta nos valores e no modo de pensar. O
saint-simonismo, neste aspecto, concordava inteiramente
com a visão de Kant, defendendo a liberdade política para o
homem poder melhor realizar a sua natureza. Ambas as doutrinas comprometem moralmente a comunidade pela prática
de atos repreensíveis. Mauá combateu a escravidão com argumentos morais num momento em que
“a ninguém repugnava comerciar com escravos.
No tempo não era coisa que se fizesse furtivamente, coberto de vergonha, fugindo às críticas da
população... Por isso, marcando-os na sociedade,
tiveram mesmo os traficantes a sua irmandade,
espécie de sindicato sob a invocação de um Santo,
e que funcionava na pequena Igreja de Santo Antônio da Barra, erigida numa das eminências da
cidade, dominando a Bahia de Todos os Santos e
o Atlântico, e donde São José, padroeiro da devoção dos traficantes, deveria velar pela sorte das
embarcações que rumavam em busca de negros a
serem escravizados e cristianizados pelo batismo”.379
A idéia de história como progresso, conforme pensaram
Vico e Saint-Simon, é problemática, porquanto exige uma
medida do progresso. Para Vico existia uma história ideal,
Kant descobriu na Revolução Francesa um episódio capaz
de significar um sinal da tendência de aprimoramento moral
da humanidade, já Saint-Simon estipulou como medida desse progresso a implantação de uma era de trabalho industrial, que ao estabelecer nova ordem, substituiu os momentos
passados, contribuindo assim para o aperfeiçoamento do
379
VIANNA FILHO, Luís. O negro na Bahia. Rio de Janeiro: s. e., 1946.
p. 29.
302
conjunto. Saint-Simon não concordaria em adotar como índice de evolução moral um movimento brutal e cheio de erros como a Revolução Francesa.
Ao propor a implantação de uma nova ordem, propondo
o progresso como uma evolução na consciência da humanidade e não como autodesenvolvimento do espírito, o saintsimonismo afastou-se igualmente de Hegel e da metafísica
idealista em geral. O sistema filosófico de Saint-Simon, ao
tematizar a unidade do corpo social, retomou um aspecto da
antiga ordem, mais precisamente da metafísica medieval. A
concepção de uma sociedade orgânica era um dos aspectos
mais destacados de sua teoria, e que, combinado com idéias
econômicas, conferiu ao pensamento saint-simoniano um
caráter próprio. O sistema social saint-simoniano encontrou
no organicismo da sociedade o fundamento para a solidariedade entre os homens, que na cultura liberal clássica fora
obtida pelo empirismo e pelo jusnaturalismo. A organicidade social sustentava-se no fundamento histórico como afirmou São Paulo, mas não no passado ou na tradição segundo
sugeriu o santo e sim no futuro, na nova ordem.
O saint-simonismo confiava, tanto quanto os empiristas
ingleses, na utilização da ciência para a compreensão da natureza. A realidade era vista sob a orientação da nova matemática. O pensar se estruturou numa metodologia automática que possuía uma lógica própria. Esse caráter complexo
do saint-simonismo o aproximou das idéias liberais, mas
forneceu uma resposta muito mais adequada àquelas culturas de sólida tradição católica como a francesa e a brasileira,
que buscavam o espírito de modernidade à parte das teorias
voluntaristas do poder.
Utilizando-se dos fundamentos da ética saint-simoniana,
Mauá pôde desenvolver idéias econômicas de cunho nitidamente liberal. Sobre a livre-iniciativa, escreveu:
“desgraçadamente entre nós entende-se que os
empresários devem perder, para que o negócio se-
303
ja bom para o Estado, quando é justamente o contrário que melhor consulta os interesses do país”.380
Podemos agora analisar com mais cuidado o econômico,
aquele ingrediente de mentalidade tão específico, sem perder de vista o conjunto. O estabelecimento desse processo é
essencial para a compreensão da ética de Mauá, permitindo
analisá-lo num plano mais amplo, sem se limitar ao simples
campo da economia, abrangendo a própria filosofia.381
380
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C. 1878. p. 12.
381
FERREIRA, João Carlos de Souza. Um grande brasileiro; esboço biográfico do Visconde de Mauá. Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Comércio, 1898.
FREITAS, Antônio de Paula. A estrada de ferro Mauá e o Visconde de
Mauá. Rio de Janeiro: Leuzinger, 1904.
GOMES, Alfredo. O Visconde de Mauá. São Paulo: Melhoramentos,
1955.
LIMA, Heitor Ferreira. 3 industrialistas brasileiros: Mauá, Rui Barbosa, Roberto Simonsen. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976.
MEDEIROS, Gustavo Adolfo Gonçalves de. Vida e obra do grande
brasileiro Visconde de Mauá. Brasília: Senado Federal, 1977.
OCTAVIO FILHO, Rodrigo. Figuras do Império e da República. Rio
de Janeiro: Valverde, 1944.
RUIZ, Roberto. Mauá, o patrono do Ministério dos Transportes. Rio
de Janeiro: Ministério dos Transportes, 1972.
SOARES, Álvaro Teixeira. O gigante e o rio. Rio de Janeiro: Cia. Brasileira de Artes Gráficas, 1957.
MARCHANT, Anyda. A new portrait of Mauá, the banker; a man of
business in XIX century Brasil. In: The hispanic american historical review. Nov. 1950. p. 411/431.
CARNEIRO, Ennor de Almeida. Mauá. Rio de Janeiro: Departamento
administrativo do serviço público, 1956.
CUNHA, Arnaldo Pimenta da. Visconde de Mauá. Salvador: Imp. Oficial do Estado, 1940.
304
5. A ética saint-simoniana e o econômico.
O
industrialismo, como sistema filosófico, apresentava
a natureza como uma matriz, como um ser que podia
e precisava ser transformado em benefício do homem. Max
Scheler identificou o impulso para a ação, que caracterizava
a civilização industrial, como um fator motivador da conduta, ainda que inconsciente. Através do trabalho era possível
vencer a natureza e imprimir-lhe um caráter humanizado. O
que era para a concepção grega a idéia de uma razão ordenadora, tornou-se com o saint-simonismo uma razão operacional. Essa compreensão devemos ter para melhor situarmos a atuação de Mauá. A natureza, no arcabouço teórico
saint-simo-niano, desafiava o homem a alterá-la e a conhecê-la.
A extrema valorização do pensamento científico, mais
visível em Saint-Simon do que em Mauá, pode ser entendida
se atentarmos para o seguinte: na compreensão da realidade,
segundo o francês, as ciências desempenhavam um papel
definitivo e irrefutável na determinação da validade do conhecimento.
O senso prático de Mauá e a influência liberal lhe indicaram os riscos advindos daquela concepção de ciência e das
dificuldades de aplicar tal concepção a campos como o da
economia. Mesmo sendo flexível, o Visconde também manifestou a superioridade do pensamento científico sobre as outras formas de conhecer e, enfatizando o valor da experimentação. Mauá percebeu, contudo, que de uma ótica conceitual o econômico ainda não se firmara como ciência. A
adoção das idéias de Smith não era pacífica:
“A economia política, que pretende explicar esses
fenômenos, abrange em sua amplidão toda a esfera da atividade humana; é forçoso, entretanto, reconhecer que conforme o ponto de vista sob que
são estudados os fatos econômicos, encontram-se
305
problemas de solução difícil, ainda mesmo para
os espíritos mais refletidos, que procuram chegar
a conclusões seguras. É, com efeito, sabido que,
antes que uma teoria consiga firmar-se na sólida
base da ciência, tem de por à prova as suas conclusões, que devem ser invariáveis em todos os
países e em qualquer ocasião; de outro modo,
perde a teoria aquela base, vendo-se substituída
pelos ditames da força das circunstâncias, mesmo
eventuais, que aconselham a adoção de certas
medidas na vida financeira e econômica dos países em que o desvio de pretendidos axiomas econômicos torna-se de proveitosa aplicação prática”.382
O industrialismo elaborou uma epistemologia fundamentada na experiência, tomando por base o empirismo. O
mesmo roteiro fora seguido por Kant, que terminou, entretanto, por estabelecer uma distinção entre a realidade em si e
os fenômenos, aquilo que nos aparece. Na ética o saintsimonismo afastou-se do kantismo, que entendia que o progresso humano estava condicionado ao desenvolvimento das
liberdades através dos sistemas jurídicos. Outra foi a conclusão de Saint-Simon, que, partindo da experiência histórica julgou possível elaborar um ideal de progresso. De todo
modo a reflexão filosófica do momento consagrou a ciência
experimental, transformada na mais alta forma de pensar.
Um exemplo desta mentalidade estaria espelhada na crítica
que Mauá elaborou a algumas teses econômicas. Ele advertiu:
“Cumpre estar prevenido contra certas idéias apregoadas com dogmática severidade por parte
de doutrinários inflexíveis, as quais nem sempre
são aplicáveis a países onde as causas que determinam certos fenômenos são diversas, e, portanto,
382
SOUZA, Irineo Evangelista de. O meio circulante. Rio de Janeiro:
Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e C. 1878. p. 2.
306
o regime aconselhado como salvador de altos interesses para uns daria em resultado ficarem estes
seriamente comprometidos em outros, se o bom
senso nacional não repelisse o presente grego que
os chamados mestres da ciência lhe querem impor”.383
Mauá observara que o Estado Brasileiro não era dirigido
por industriais, como queria Saint-Simon, ou por economistas, como ele desejava, permitindo seguidamente que outros
interesses, que não aqueles derivados da racionalidade administrativa, influenciassem nas decisões. O saintsimonismo entendera ser o progresso um conceito que o
homem conseguira bem definir; ele se concretizava na evolução do conhecimento acumulado. Com o Novo Cristianismo, Saint-Simon demonstrou que esta idéia de progresso e
também a de fraternidade correspondiam a uma laicização
do ideal cristão que havia contaminado a cultura, mas precisava ser atualizado e adaptado ao novo momento. A racionalidade administrativa era fundamental para a implantação
desta nova ordem e o desperdício, algo que a todo custo devia ser evitado. É neste contexto que Mauá criticou o sistema tributário brasileiro, pretendendo aperfeiçoá-lo. Segundo
suas palavras, o controle racional da economia deveria ser
implantado, “a fim de não se darem os males que provêm da
má distribuição do imposto”.384 A metodologia científica
permitiu ao saint-simonismo concluir pela virtude da parcimônia e da simplicidade.
O saint-simonismo entendia que é só na ação sobre si e
sobre o mundo que o homem se realizaria. Esse projeto se
concretizaria no progresso e na busca da felicidade para to-
383
SOUZA, Irineo Evangelista de. O meio circulante. Rio de Janeiro:
Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e C. 1878. p. 2.
384
Idem, ibidem. O meio circulante. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de
J. Villeneuve e C. 1878. p. 3.
307
dos os indivíduos que trabalhavam. O progresso no domínio
da natureza começaria com o homem, se operacionalizaria
com o seu desejo de conhecer e com o seu trabalho. Mauá
tinha um plano para implementar essa idéia de progresso através do controle dos investimentos. Ele pretendia:
1º - Fazer uma crítica ao metalismo, pois;
“como é visto e sabido, os metais preciosos escolhidos de preferência para servirem de motor às
transações, são apenas mercadorias sobre a qual,
devido a essa aplicação especial, a lei econômica
da oferta e da demanda atua com maior intensidade, em circunstâncias dadas”.385
Nesse aspecto, sua crítica não se diferenciava daquela já
formulada por Smith.
2º - Permitir o desenvolvimento material utilizando papéis inconvertíveis mas de crédito na praça, subsidiar o desenvolvimento econômico, reunindo capital e colocando-o
nas mãos dos produtores, transformando um capital antes
improdutivo numa fonte de progresso. Utilizar a riqueza para dar ocupação aos homens. Tais idéias eram defendidas
pelos saint-si-monianos.
O historicismo saint-simoniano achava-se relacionado
com várias concepções precedentes, mas revelou sua identidade quando foi aplicado ao econômico. O historicismo tornou-se a base do progresso material e humano. Ricardo Vélez Rodrígues enxergou, nestes últimos, traços nítidos de um
panteísmo social. O saint-simonismo associou o progresso
material ao social, propondo para a sua realização o emprego de todo capital disponível no aumento da produção da riqueza. É neste espírito que Mauá faz uma crítica aos juros
altos. Ele escreveu, lembrando sua ação política:
385
SOUZA, Irineo Evangelista de. O meio circulante. Rio de Janeiro:
Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e C. 1878. p. 4.
308
“Acreditai, senhores, que a taxa elevada dos descontos é uma víbora faminta que devora as raízes
da produção”.386
A ênfase na remuneração do trabalho, o papel central dos
bancos e a baixa taxa de juros são variáveis que constituem
o cerne da doutrina econômica de Saint-Simon. A idéia de
expansão do progresso subjaz a este modelo econômico, que
se sustenta na crença de uma providência imanente e na evolução progressiva da humanidade, que superou diversas etapas na sua história. Devemos reconhecer, nesse aspecto, o
mérito de De Maistre, estudioso atento da Idade Média, que
preparou a revalorização da teoria do progresso. A atuação
da Casa Mauá nos países platinos não fugiu a este ideal de
progresso, conforme, nos afirmou Ferreira Lima:
“Ao propugnar pelas emissões do papel inconvertível, Mauá tinha em mira promover recursos para
o desenvolvimento através do incentivo ao aparecimento e expansão de empresas em nosso meio (e
não somente para as suas, como alguns lhe assacaram). Lembramos que unicamente entre 1857 e
1860, organizaram-se no Império mais de oitenta
companhias, quase todas com privilégios, subvenções e outros favores concedidos pelo governo”.387
No progresso pleiteado pelo saint-simonismo, assumiu
grande importância a idéia de que o mundo era a matériaprima para o trabalho humano. Através do trabalho, a humanidade elevava-se à condição de ser privilegiado, provocando, através da sua história, o aprimoramento da natureza. A
confiança na evolução da humanidade e seu caráter inevitá-
386
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C. 1878. p. 105.
387
LIMA, Heitor Ferreira. 3 industrialistas brasileiros: Mauá, Rui Barbosa, Roberto Simonsen. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976. p. 32.
309
vel foi a marca do século. A razão, utilizando-se da ciência,
promoveria uma interpretação da realidade considerada como um todo e possuidora de um substrato metafísico que a
mantinha unificada. O controle sobre a natureza seria mais
bem realizado pela riqueza acumulada, e esta, na percepção
de Mauá, já fornecera evidência suficiente dos resultados
decorrentes do uso do papel moeda. Mauá apresentou um relatório à comissão de inquérito sobre a crise de 1859, que
foi brilhantemente sintetizada por Ferreira Lima. Nesse relatório, ele combateu tal temor:
“Para atender às necessidades da produção não é
indispensável que os meios sejam ouro ou prata.
Estava convicto, em vista disso, de que a circulação de um papel bancário bem garantido, embora
inconvertível e emissão contida por certos limites
legais é um grande bem, e, havendo possibilidade
de realizá-lo em metal, converte-se na forma mais
perfeita do meio circulante. Qualquer abuso é prejudicial e condenável”.388
Ao fundar o Banco Mauá, Mac Gregor e Cia., o Visconde pretendia concretamente fornecer recursos a juros mais
baixos que os oferecidos pelos bancos londrinos. Do ponto
de vista ético, a pretensão era garantir a transformação da
natureza e permitir com isso a realização das potencialidades humanas. A modificação da natureza visava ao estabelecimento de um mundo mais fraterno, explicitando-se, assim,
o caráter filantrópico que era a marca da ética saintsimoniana. O banco organizado seria a mola do progresso
sonhado para as indústrias brasileiras, que não precisariam
recorrer ao capital internacional, mesmo porque ali os juros
elevados consumiriam recursos preciosos para a mudança da
realidade. Observe-se que os juros não estavam submetidos
388
LIMA, Heitor Ferreira. 3 industrialistas brasileiros: Mauá, Rui Barbosa, Roberto Simonsen. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976. p. 32.
310
ao mercado. Como ideal o agir com vistas a mudar o mundo
era uma obrigação, independente do fato dos esforços produzirem os fins desejados.
“...as empresas brasileiras, amparadas pelo crédito do governo imperial, não teriam por certo de
arrastar-se abatidas aos pés da usura desapiedada de maus elementos financeiros da praça de
Londres; 5% e não 7% seriam a base suficiente
para eu e meus agentes termos conseguido a coadjuvação do capital europeu para nossas empresas de viação, e quaisquer outros, de bem demonstrada para os capitais a empregar, encontrariam apoio fácil e eficaz, desde que a casa de
Mauá representasse na Europa um interesse brasileiro de primeira ordem”.389
A idéia de homem no saint-simonismo combinava a soma
de dois estratos: o natural e o histórico. O homem era condicionado em parte pela natureza e em parte pela história, como já observara Schelling. O conhecimento dessa situação
permite-nos desenvolver a consciência de nossa responsabilidade de organizarmos o mundo para nós próprios. Da
mesma forma que o homem é um ser mutável, deve ser dinâmica a sua ação no mundo. Tais idéias ultrapassavam o
ideal de progresso proposto pelo liberalismo.390 Em Mauá a
perseguição do progresso era um fim a ser perseguido mesmo quando as circunstâncias fossem desfavoráveis, porque
era dever.
A preocupação de Mauá com o desenvolvimento material
do País não encontrava correspondência nos altos dirigentes
do Império, notadamente o Imperador;
389
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C. 1878. p. 105.
390
Idem. O meio circulante. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e C. 1878. p. 7.
311
“se a mentalidade de D. Pedro II tivesse o vigor
construtivo da cerebração de Mauá, teríamos
constituído, na história dos povos, um caso de evolução interessantíssima”.391
A preocupação de Mauá com o desenvolvimento técnico
foi outro aspecto que o aproximou da ética saint-simoniana.
A sua insistência no desenvolvimento estava de acordo com
o esforço despendido pelos seguidores de Saint-Simon que
procuraram sempre demonstrar a unicidade dos momentos
históricos, tese que explicitava tratar-se cada parte do tempo
um evento único e permanente. Este aspecto, no qual insistiam os saint-simonianos, foi sem dúvida, uma das maiores
contribuições do historicismo elaborado a partir da tradição
cristã. Na tentativa de dinamizar o progresso, Mauá não media esforços, considerando que o tempo histórico estaria
maduro e não haveria de se repetir. As dificuldades eram
sintomas de uma crise nascida de atitudes espirituais antigas
que urgia substituir dando o poder aos industriais.
Explicando aos sócios comanditários da Casa Mauá Mac
Gregor e Cia. os motivos que o tinham levado a manter o
financiamento com um desembolso não previsto para a
Companhia da Estrada de Ferro Santos — Jundiaí, ele escreveu:
“1º - A Companhia, não podendo concluir desde
logo a estrada de ferro, arruinava-se e a realização das obras em época muito posterior exigiria
um dispêndio adicional de um milhão esterlino
pelo menos;
2º - O governo imperial teria de pagar por mais
cinco ou seis anos os juros garantidos, à razão de
$140.000 por ano;
3º - A província de São Paulo, durante o mesmo
período, teria de transportar a sua produção às
391
CARDOSO, Vicente Licínio. A margem da história do Brasil. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. p. 168.
312
costas de animais, custando-lhe o carreto 1$600
por arroba em vez de 440 réis que tem pago, o
que importaria um excesso de despesa de cerca de
quinze mil contos de réis”.392
Esse relato possibilita a verificação dos reais motivos
que moviam os financiamentos da Casa Mauá. Ele buscava
o de-senvolvimento do Brasil. Nesse desenvolvimento, os
fatos hu-manos e naturais justapõem-se na formação da idéia
de história. A esse conceito Saint-Simon acrescentou a unidade dialética do processo, que certamente buscara em Hegel. Nesta concepção de história, Mauá inscreveu idéias econômicas advindas do liberalismo:
“No estudo de que nos ocupamos e que nos leva a
defender o meio circulante que possuímos, não
poremos à margem os princípios econômicos, pois
reconhecemos que isso seria navegar sem bússola.
Temos em vista, porém, aplicá-los às circunstâncias especiais do nosso país, sendo para nós evidente que algumas de suas teorias ou não suportam a pressão dos fatos que nos são relativos, ou
têm estes de ser explicados de forma a introduzir
mais um anel na cadeia científica, cuja força é
impossível desconhecer”.393
Depois de apresentarmos as principais teses econômicas
de Mauá, resta considerar a atitude positiva que ele sempre
revelou frente ao trabalho. Essa atividade, além de produzir
uma humanização da natureza, estabelecia o rompimento da
tirania da razão sobre a sensibilidade. O saint-simonismo
enxergava no resultado do trabalho muito mais que um produto, via mesmo o resultado da expressão estética. O traba-
392
SOUZA, Irineo Evangelista de. Relatório da liquidação da extinta sociedade bancária Mauá Mc. Gregor e Cia. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e
Const. de J. Villeneuve e C. 1878. p. 7.
393
Idem. O meio circulante. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e C. 1878. p. 6.
313
lho possuía o papel de regenerador da humanidade, pois através dele era possível conciliar a razão e a sensibilidade.
Esse era o projeto de educação estética que Schiller propôs e
que o saint-simonismo incorporou. A paixão de Mauá pelo
trabalho revela que ele também enxergou nesta atividade um
caráter estético, objetivo a ser perseguido por todos e não
apenas pelos proprietários, segundo acreditou Immanuel
Kant.
6. A síntese de sua vida
A
o longo de toda sua vida, Mauá foi movido pela moral do altruísmo, cujas bases são o industrialismo saint-simoniano e o princípio de obrigação moral de Bentham. Este último pretendia estabelecer um quadro completo
para as ações humanas. A obra de Bentham permitiu o desenvolvimento de uma moral cujos elementos foram incorporados ao liberalismo político. Devemos recordar que o industrialismo inspirou-se no mesmo aspecto, mas evolucionou para uma ética do amor e do trabalho. Ética que, ao contrário dos limites da época, devia atingir a todos. É isso que
Faria julgou fundamentar a ética de Mauá:
“Não é só a desgraça que o sagra e lhe completa
a glória, segundo o sentimento literário do Desembargador Sá Pereira. É a lição que ficou de
um caráter que resistiu a todos os embates, de
uma probidade que passou incólume pelas provas
das maiores seduções, de uma coragem que serviria de brasão a uma raça”.394
O Saint-simonismo, propondo uma moral do altruísmo de
bases estritamente humanistas, estava de acordo com a tendência manifestada pelo pensamento moderno, que evolveu
394
FARIA, Alberto de. Mauá, Irineo Evangelista de Souza, Barão e Visconde de Mauá. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1933. p.
493.
314
no sentido da laicização. A ética saint-simoniana conseguiu,
num projeto próprio da modernidade, absorver o componente da ascese protestante. Em tal contexto, o sacrifício pessoal seria até desejável, na medida em que contribuísse para a
implantação da nova ordem. A renúncia à riqueza e o empobrecimento individual já não significavam a traição a uma
vocação, como no protestantismo, mas algo compreensível,
desde que vinculado à busca do progresso da sociedade. É o
que se constata nesta afirmação de Mauá:
“...acreditai que a dor pungente, que me dilacera
a alma, nasce de ter sido causa involuntária do
prejuízo que a liquidação pode acarretar-vos: minorar esse prejuízo é o único pensamento que me
preocupa, e modera a violência de meu sofrimento
moral a possibilidade de vos poder ser útil”.395
Mauá, do mesmo modo que os saint-simonianos, atribuiu
ao trabalho o papel de harmonizador do homem com a natureza. A nova ordem social, que surgiria com a implantação
do industrialismo, permitiria um aumento significativo da
produção, com dispêndio do menor esforço e do mínimo de
tempo. Não é preciso muita diligência para perceber que o
conceito de produtividade no industrialismo possuía caráter
estético, pois considerava o aumento da produção e o embelezamento do mundo, entendia este como um espaço para a
liberdade e para uma nova existência liberta das necessidades.
Indicamos, a seguir, trechos onde Mauá apresentou idéias
típicas da filosofia industrialista de Saint-Simon. Começamos pela maneira como ele avaliou o comportamento do seu
antigo patrão. Ele assim se expressou:
395
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C., 1878. p. 164.
315
“Um dos melhores tipos da Humanidade, representado em um negociante inglês que se distinguia
pela inteira probidade da velha escola de moralidade positiva,...”.396
A crença de que a moral podia fornecer, assim como
qualquer ciência, um roteiro inequívoco de comportamento,
foi uma característica típica do utilitarismo do século XIX,
que influenciou tanto o pensamento de James e John Stuart
Mill, como o de Saint-Simon. Da motivação da conduta ancorada na sensibilidade (prazer e dor), o saint-simonismo
derivou a moral do altruísmo, posteriormente retomada por
Augusto Comte. O que aparecia como dever no saintsimonismo era a obrigação de promover o progresso e melhorar a condição de vida da sociedade. Esta ética pragmática, influenciada pelo otimismo do período, tem suas bases
fundamentadas no princípio de autoconservação, que Telésio e Hobbes reintroduziram no pensamento moderno, porém combinada com a ética pragmática proposta no saintsimonismo, cuja síntese fora apresentada no Novo Cristianismo. Fica claro que a vida humana adquiria sentido com o
trabalho produtivo e que a riqueza deveria ser utilizada para
promover o bem-estar da maioria da sociedade, sendo ilegítimo o seu gozo individual. É esta concepção que Mauá
compartilhava, como se pode verificar no trecho que se segue:
“Já se vê que, ao engolfar-me em outra esfera de
atividade, possuía eu uma fortuna satisfatória,
que me convidava a desfrutá-la. Travou-se em
meu espírito, nesse momento, uma luta vivaz entre
o egoísmo que, em, maior ou menor dose habita o
coração humano, e as idéias generosas que, em
396
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C., 1878. p. 3.
316
grau elevado, me arrastavam a outros destinos,
sendo a idéia de vir a possuir uma grande fortuna, questão secundária em meu espírito, posso dizê-lo afoitamente, com a mão na consciência e os
olhos em Deus”.397
Os outros destinos a que Mauá se referia era o de tornarse um dos líderes da nova era de progresso. A responsabilidade do industrial tinha um componente axiológico, que torna possível investigar o sentido dos fatos históricos, considerados na sua unicidade. A maneira como conduziu suas
empresas no-la revela:
“As verbas que vou analisar constituem, pois,
uma parte de um grande ativo de fatos praticados
durante 32 anos, decorridos depois que eu tive a
fraqueza de deixar-me arrastar por idéias em que
o bem público ou o progresso do país tinham predomínio”.398
O historicismo de Hegel não dava valor ao particular,
pois o individual somente ganhava sentido na totalidade, que
o superava, que continha algo diverso e complementar ao
sujeito. O saint-simonismo buscou o equilíbrio, realçando a
importância da ação individual na construção da vida social.
O liberalismo deu ainda mais valor ao indivíduo. Todas essas correntes apostavam, entretanto, no progresso que o saint-simonismo supunha concretizar-se na implantação da indústria. É isso que se pode deduzir destas palavras de Mauá:
“Era precisamente o que eu contemplava como
uma das necessidades primárias para ver aparecer a indústria dita no meu país; por isso aceitei
gostoso o convite. Era já então, como é hoje ainda, minha opinião que o Brasil precisava de al-
397
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C., 1878. p. 4.
398
Idem, ibidem. p. 7.
317
guma indústria dessas que podem medrar sem
grandes auxílios, para que o mecanismo de sua
vida econômica possa funcionar com vantagens”.399
O saint-simonismo recebeu influência do idealismo,
sobretudo das formulações de Hegel e Schelling. Apesar
disso, o sistema de Saint-Simon procurou respeitar a
especificidade do indivíduo, o que era mais característico do
iluminismo kantiano. A valorização do indivíduo, a partir da
segunda metade do século passado, desembocou nas
chamadas filosofias da existência, mas isso é já uma outra
questão. A aplicação destas idéias em economia, no sentir
de Saint-Simon, se daria através do lucro controlado. O
lucro limitado pelo bem público era a justa paga pelo
trabalho. O lucro limitado era o resultado de busca de
equilíbrio entre o valor do indivíduo e da coletividade, dois
aspectos que o industrialismo procurou integrar,
redimensionando o significado de justiça. O saintsimonismo preocupou em estabelecer um ideal de justiça.
Essa era também a posição de Mauá, que procurou conciliar
o lucro com o bem “Entre
público.
as companhias que criei foi esta das que
mais prosperou: daí a guerra de costume. Desgraçadamente, entre nós entende-se que os empresários devem perder, para que o negócio seja
bom para o Estado, quando é justamente o contrário que melhor consulta os interesses do país”.400
O progresso material e o bem público não eram algo que
se devia procurar apenas no próprio País, mas era uma aspiração ampla, conforme pretendia Saint-Simon. Neste caso,
399
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C., 1878. p. 8.
400
Idem, ibidem. p. 12.
318
entendia-se o progresso como componente da história, tal
co-mo já aparecera na obra de Voltaire e Condorcet, mas
que ganharia a formulação definitiva no século XIX com o
industrialismo, quando assumiu o caráter de necessidade.
Mauá atuou fora do Brasil em muitos momentos, e sobre um
destes períodos comentou:
“Ao terminar a guerra, aderi-me comprometido
com uma soma assaz forte ao débito do governo
oriental, e o estado da república, que tive de apreciar nessa ocasião, representando um verdadeiro cadáver, causou-me sério receio de a perder; tive em seguida de entranhar-me nas veias
econômicas enfraquecidas dessa sociedade”.401
Por ocasião da inauguração do primeiro trecho da E. F.
de Petrópolis (vulgo Mauá), ele manifestou de maneira inequívoca a responsabilidade de promover o progresso do País. O que ele afirmou correspondia à crença saint-simoniana
de que a história evolvia pela alternância de períodos e que
naquele momento deveria o homem perceber-se como ser
histórico, responsável pelo seu destino. A defesa das ferrovias deve ser entendida como a defesa da tecnologia e da ciência, consideradas como a mais adequada resposta da razão
aos problemas humanos. O compromisso com o futuro fortalece os vínculos de obrigação entre os homens, origina uma
relação moral onde todos estão igualmente associados. Esse
compromisso não se dá entre as pessoas e as coisas, mas apenas entre as primeiras e destina-se a dirigir os esforços
numa mesma direção:
401
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C., 1878. p. 18.
319
“(...) esta estrada de ferro, que se abre hoje ao
trânsito público, é apenas o primeiro passo na realização de um pensamento grandioso”.402
Mauá manifestava contínua confiança no futuro, que se
instalaria pela seqüência dos fenômenos, através dos quais
desenvolve a marcha da espécie humana. Tal concepção fora
estabelecida por Fichte, e a mesma confiança no futuro seria
partilhada pelos saint-simonianos, que a empregavam como
idéia diretiva da ética social. Mauá, além dessa confiança,
foi movido pelo interesse público, colocando-o acima dos
riscos das operações. Ora, caso não estivesse o Visconde
inspirado por compromissos morais com o progresso, não
teria razão para arriscar aquilo que por direito era seu. Não
havia qualquer contestação de seus bens da parte dos dirigentes do estado:
“Foi sempre um dos defeitos radicais do meu modo de contemplar com energia, e mesmo entusiasmo, os serviços de que me encarregava sem dúvida no intuito de colher honesto proveito, porém
como ninguém pode desconhecer correndo risco
de perder assim o capital já adquirido, quando me
fiz empresário, como o bom nome que começava a
aparecer. Na criação dessas empresas não esqueci jamais o interesse público que o objeto da concessão representava”.403
Quando, já no final da sua vida, ele quis explicar a razão
de sua falência, invocou novamente o objetivo que sempre o
movera, a saber, o de promover o bem público e o progresso. Foi mais uma manifestação em favor dos valores propugnados pela ética saint-simoniana. Com a ciência moderna a natureza passou a ser objeto de estudo, de investigação,
402
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C., 1878. p. 24.
403
Idem, ibidem. p. 31.
320
de transformação e conseqüentemente de riqueza e progresso. O ideal passou a orientar a ética altruísta saintsimoniana, pois, segundo ela, as ações não podem ser separadas do progresso promovido. É assim que a ética saintsimoniana vincula-se no interior do sistema, com a filosofia
da história. O anseio de progresso e a responsabilidade pela
sua efetivação aparecem nestas palavras de Mauá:
“O público não tem a mínima idéia de que me
coubesse em partilha prestar algum serviço a esta
empresa, por que, acostumado eu a jamais fazer
valer os meus serviços, guardei silêncio. Hoje, porém, que nenhuma aspiração me pode ser atribuída, força à publicidade todos quantos, encerrando
interesse público, foram por mim ocultados ou sepultados no esquecimento”.404
O interesse público a que Mauá se referia revelava a sua
preocupação com os destinos da comunidade. Na vida social, desenvolver-se-iam muitos comportamentos que se solidificariam em hábitos. A vida social e econômica contribuiriam decisivamente na formação do homem, cujo comportamento se estabeleceria na história, isto é, cuja natureza se
configuraria plenamente com a experiência histórica. Descartes procurou estabelecer os fundamentos racionais de
uma nova organização, Kant apresentou uma nova concepção de mundo moral e Hegel revitalizou a perspectiva histórica. Eis aí as bases do progresso iluminista, que SaintSimon tanto proclamou. Mauá visaria fundamentalmente a
promover o progresso, do mesmo modo como tematizou Saint-Simon. Esse projeto apresentava-se diante do nosso industrial como um desafio moral. Ele se refere a isso nos seguintes termos, como o faria qualquer saint-simoniano:
404
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C., 1878. p. 64
321
“não éramos homem de partido, que, se esses senhores nos honravam com sua amizade, outros da
opinião política contrária nos tinham em igual
conceito, que havíamos feito voto de dedicar toda
a nossa vida aos melhoramentos materiais do
nosso país, fossem quais fossem os desgostos que
daí nos proviessem”.405
Outro ponto de aproximação com o saint-simonismo é a
aplicação da idéia de evolução na esfera econômica. Deriva,
também daí, a crença na capacidade humana de construir um
futuro melhor, através do diálogo, da superação de outras
épocas e da inauguração de uma nova maneira de produzir a
riqueza. Mauá afirmou:
“... o que já supõe um estado de civilização bastante adiantada, pois é evidente que, antes disso,
as necessidades da vida social por si só têm a vida
econômica como condição indispensável da sua
organização”.406
Em meados do século XIX, o ecletismo configurou-se
como o primeiro sistema filosófico plenamente estruturado
no Brasil. Atraindo a atenção da nossa intelectualidade para
o espiritualismo e sua proposta metafísica, o sistema eclético era sustentado pelo historicismo herdado da filosofia hegeliana e pelo método psicológico, cuja investigação pretendia superar o modelo psicológico proposto pelo empirismo
de Condillac.
O ecletismo abriu espaço para a evolução de uma sociedade livre de bases contratuais. Evidentemente a adoção
desse princípio organizador do estado civil não foi fácil e
apenas lentamente a idéia de um estado originado das forças
405
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C., 1878. p. 84
406
Idem, ibidem. 96.
322
sociais pode ser concebido. Mauá precisou as dificuldades
de se chegar a entender o significado da nova ordem política, revelando que o estado brasileiro tratava a sociedade
como uma criança ou um cidadão interditado:
“Clama-se que no Brasil tudo se espera do governo e que a iniciativa individual não existe! E como não há de ser assim se... esbarra-se logo de
frente com péssimas leis preventivas, e quando estas não bastam, a intervenção indébita do governo aparece na qualidade de tutor?”.407
Seguindo a tradição historicista da qual Hegel era o mais
próximo antecessor, o saint-simonismo traçou o objetivo
fundamental da sociedade humana como sendo o progresso.
Mas, ao contrário do hegelianismo, atribuiu aos indivíduos a
responsabilidade pela criação desta nova sociedade. O empenho de mudança advinha do entendimento saintsimoniano de que devia o homem assumir os rumos do seu
destino. A ética saint-simoniana adotou do iluminismo a
crença na saída do homem do estado de dependência, estado
em que se encontrava antes de tomar nas mãos o próprio
destino. É essa mesma visão que assumiu Mauá responsabilizando-se pelas mudanças que levariam os homens no caminho de sua emancipação.
“Só me resta fazer voto para que no meio século,
que se segue, encontre o meu país quem se ocupe
dos melhoramentos materiais da nossa terra com
a mesma fervorosa dedicação e desinteresse (digam o que quiserem os maldizentes) que acompanhou os meus atos durante um período não menos
longo,... E oxalá que nas reformas que se apregoam como necessárias ao bem-estar social de nossa Pátria, não se esqueçam os que se acharem à
407
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C., 1878. p. 100.
323
frente da governação do Estado, que o trabalho e
interesses econômicos do País são mais que muito
dignos da proteção e amparo a que têm direito”.408
Alicerçados, nesses pensamentos, julgamos ter mostrado
que existem no pensamento e nas ações de Mauá elementos
típicos da ética saint-simoniana, assim como os limites que
circunscrevem a referida influência em função de outras variáveis igualmente marcantes, entre as quais se destacam a
política liberal e o utilitarismo. O industrialismo de Saint-Simon embutiu no econômico uma preocupação com o progresso social. Em razão dessa influência, Mauá pode manifestar interesses que somente mais tarde os liberais introjetaram, ao propor a chamada democracia social. O que lhe ocupou não foi a herança ou valores passados, mas a criação
de uma nova ordem projetada no futuro dos homens.
408
SOUZA, Irineo Evangelista de. Exposição do Visconde de Mauá aos
credores de Mauá e C. e ao público. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.
de J. Villeneuve e C., 1878. p. 165.
324
CONCLUSÃO
Analisando esses textos, acreditamos que ficou demonstrada a influência das idéias saint-simonianas no pensamento de Mauá. O aspecto mais evidente relacionava-se ao compromisso moral com a transformação da humanidade. SaintSimon forneceu a justificativa para tal compromisso, orientando a vida para as ações sociais, que ele compreendia ser o
critério moral por excelência.
Os valores nucleares da doutrina saint-simoniana foram
adotados integralmente por Mauá. Assim, a idéia de progresso em Saint-Simon adquiriu novo sentido iluminado que
estava pelo monismo evolucionista. A proposta de uma sociedade dirigida por sábios e industriais deve ser entendida
como uma evolução da humanidade, considerada o ser fundamental, como o que dá sentido à organização social. Por
isso, Saint-Simon pregou a união de amor e de trabalho entre os produtores, isto é, todos os homens que trabalhavam e
que não viviam de rendas. A humanidade, que se tornou a
mola fundamental do processo evolutivo, tinha uma trilha de
desenvolvimento. Acreditamos que a concepção de progresso da sociedade ancorava-se naquela tradição cujos representantes mais destacados são Fiori, Vico e Hegel. Em todos
esses filósofos a história era uma marcha com objetivos bem
definidos.
O compromisso moral com o progresso pode ser encontrado subjacente às teses defendidas pelo Visconde, algumas
vezes em sua forma pura e outras combinadas com elemen-
325
tos utilitários, desde que fossem inspiradas pelo sonho iluminista do progresso.
O industrialismo entendeu que o processo de socialização dos bens era um objetivo essencial da história humana.
O utilitarismo aos poucos se abriu para a questão de progresso da maioria. Embora com fundamentos distintos, as
duas éticas traziam um ideal de progresso e liberdade cujas
conseqüências práticas conduziriam a uma proposta nova
para a organização sócio-econômica e política das sociedades. Naquele período as propostas não atingiam um grau de
antagonismo que as tornassem inconciliáveis.
Não existe evidência empírica de que o progresso de uma
cultura se constitua a partir de saltos abruptos. Cada grupo
humano possui uma hierarquização de valores que organiza
a vida. A ética utilitária, especialmente a partir do início da
industrialização, e a saint-simoniana correspondiam a uma
no-va sistematização dos valores. As duas éticas possuíam
ainda um outro aspecto em comum, a valorização da dimensão material estava associada à valorização da pessoa humana. Saint-Simon foi muito mais explícito nessa defesa, pois
o novo cristianismo representava a regeneração definitiva da
humanidade.
O industrialismo apontava certamente para a valorização
do trabalhador, do sujeito produtivo, ideal que o utilitarismo
iria incorporar. O ideal proposto no aforismo Não explorarás o trabalho alheio encontrou no idealismo alemão a sua
defesa. O empenho kantiano de propor uma justificativa racional para aquela máxima encerra uma idéia de homem que
era um fim em si mesmo e não podia ser usado como meio.
A referida concepção gerada na filosofia alemã servia tanto
ao industrialismo quanto ao utilitarismo, embora nesse último caso devesse ser sacramentado em acordos.
Acreditamos ter indicado que as duas éticas, apesar das
muitas diferenças, possuíam vários pontos de convergência,
326
e que, sobretudo, não eram antagônicas, permitindo, como
na síntese operada por Mauá, adesão a alguns princípios.
Pelo que foi dito do pensamento de Mauá e do próprio
Saint-Simon, seria absurdo pretender classificar o industrial
brasileiro como saint-simoniano. Entretanto, acreditamos ter
apresentado elementos suficientes para demonstrar que existiram valores propostos no pensamento saint-simoniano que
foram incorporados por Mauá e que se misturaram com outros advindos de influência diversa.
O estudo das idéias saint-simonianas exigiu um paciente
trabalho de análise que evidenciou os múltiplos aspectos ou
elementos daquela escola filosófica, que, apesar de sua diversificação temática, apresentava uma harmonia peculiar. É
óbvio que Saint-Simon foi um homem de sua época, assim
como sua axiologia, sua teoria da sociedade, suas idéias políticas, suas preferências, sua concepção histórica, a maneira
de abordar os problemas internacionais e as suas teses filosóficas. Um escritor que tivesse abordado uma tão ampla gama de assuntos, debatendo questões que tanto empolgaram o
século XIX, logicamente teria grande poder de influência. O
nosso trabalho foi o de identificar que elementos dessa teoria se fixaram no pensamento de Mauá, combinados com a
sua perspectiva de valores buscada em outra matriz.
O saint-simonismo herdou do iluminismo a confiança na
razão compreendida como grandeza básica, autônoma, capaz
de justificar-se a si própria. Nesta ótica, Kant foi um dos filósofos do iluminismo. A sua reflexão e a busca dos limites
e das possibilidades do conhecimento inscrevem-se neste
período, em que a razão se determina por si mesma. Ao estabelecer os limites da razão, Kant permitiu aos idealistas
buscarem uma contínua aproximação entre o pensamento e a
história. Esse aspecto foi tematizado por Hegel, que retomou, na perspectiva transcendental, a tradição historicista.
A partir dele, já não era mais possível fazer abstração da história. Estão apresentados, então, os outros dois grandes as-
327
pectos do sistema filosófico de Saint-Simon, que se articulam sobre a razão. O primeiro é a confiança na ciência, tido
como o único método para estabelecer um discurso válido
sobre a natureza; o segundo, a compreensão de que a razão,
libertando-se na história, haveria de promover uma nova ordem social. O industrialismo foi o sistema que procurou dar
respostas aos grandes problemas levantados pela filosofia da
época, além de possuir um forte compromisso ético com as
reformas sociais, o que foi uma marca típica da meditação
no século XIX. Com propósitos tão amplos, o saintsimonismo era capaz de fornecer um roteiro intelectual a industriais como Mauá.
Vejamos os pontos de convergência e afastamento entre
a ética de Mauá e a saint-simoniana:
a. Léon Brunschvicg e Henri Gouhier apontaram a filosofia positiva de Saint-Simon como o sustentáculo básico do
comtismo, e, através desse eixo, aproximaram a ética saintsimoniana da formulada por Proudhon e Marx. Para o objetivo desse trabalho, importou destacar principalmente a distinção entre as diferentes fases da história, que comportaram
momentos teológico, metafísico e positivo. Apesar de
Gurvitch não enxergar nesse processo uma dialética idealista, não temos como negar a idéia de evolução no acontecer
histórico, que seria marcado por crises que preparariam novas fases. Por isso procuramos indicar no pensamento ocidental, os momentos mais significativos da vinculação da ética aos rumos da história. Começamos o levantamento pelo
judaísmo e, em seguida, analisamos as teses sobre a história
de Agostinho de Hipona, Vico, Hegel, Condocert até chegar
a Saint-Simon. Essa crença no progresso está presente no
pensamento de Mauá e ela não encontra sustentáculo na ética utilitária.
b. O pensamento sociológico de Saint-Simon, mesmo enfatizando o estudo dos condicionamentos e leis que regiam a
sociedade, conservou no seu bojo o grande desejo de liber-
328
dade, preciosidade legada pelo cartesianismo. Ao defender a
liberdade dos indivíduos, Mauá situou-se entre os liberais,
mas preocupou-se com a redução da pobreza, abolição da
escravidão, integração política dos trabalhadores, compromissos éticos que o saint-simonismo ressaltou e que ainda
não haviam recebido um tratamento coerente no utilitarismo.
c. A ética saint-simoniana consistia num autêntico hino
ao trabalho, especialmente ao trabalho industrial. Dessa
forma, a teoria tornou-se uma defensora dos industriais,
incitando-os a assumir o poder, destronando as classes
ociosas que eram, a seu ver, a nobreza latifundiária, os
legistas, os metafísicos e os que viviam de renda. O saintsimonismo tornou-se uma teoria bem a gosto da burguesia
industrial que não havia desenvolvido um conjunto teórico
capaz de justificar o novo mo-mento. Mauá, apesar de
partidário da monarquia, preferia ver o país dirigido por
industriais, num projeto mais à feição da ética saintsimoniana, do que das discussões negociadas sugeridas pela
tradição
d. Saint-Simon
liberal. não era simples defensor da propriedade.
Defendia, entretanto, a propriedade industrial, que, independentemente da organização política (monarquia ou república), constituiria a base da organização social. Este novo tecido social viria conjuntamente com outro sistema filosófico, ao qual estaria correlacionado. Saint-Simon associava a
produção industrial à evolução da ciência positiva, Mauá foi
também um defensor da propriedade produtiva e da ciência
positiva.
e. A proposta de uma ordem social leiga empolgou Mauá. Nele percebemos também um desejo obsessivo de progresso e um compromisso com tal progresso. Essa crença
não se encontrava de forma explícita entre os liberais. Os saint-simo-nianos transformaram a humanidade no objeto central de atenção dos homens e apresentaram uma ética do tra-
329
balho, sem vinculá-la a Deus. A unidade da vida estava garantida por essa religião da humanidade.
f. Saint-Simon mostrava-se partidário da divisão entre o
mundo da natureza e o social. Os dois mundos atuariam um
sobre o outro, mas conservariam uma divisão que a nossa inteligência não seria capaz de delimitar. Com esse artifício,
conservou o valor da ciência e abriu perspectivas para que a
conduta moral fosse tratada sob outra ótica. Essa concepção
foi igualmente partilhada por Mauá. Foi Kant quem cindira
o campo do saber em conhecimento científico e moral. Até
aquele momento não fora demonstrada a fragilidade de semelhante modelo, o que somente foi realizado por Bergson,
quando a liberdade deixou de ficar confinada ao mundo da
coisa-em-si e, em seguida, pela crítica de Max Scheler, que
indicou tratar-se, a experiência ética, de uma experiência de
valores.
g. Saint-Simon acreditava que nos regimes industriais a
moralidade prendia-se ao trabalho e à produção. Apresentou,
então, os fundamentos de uma nova moral de caridade, fraternidade e amor, sustentadas por um humanismo panteísta
que acabava por atribuir aos dirigentes e produtores a tarefa
de amparar os fracos e desprotegidos. Tal proposta explica o
comportamento moral de Mauá, que supervalorizava o trabalho, mas cultivava a caridade. O saint-simonismo é a hipótese capaz de melhor explicar tais associações de valores, aliás desejadas pelos moralistas do pombalismo.
h. Mauá tornou-se banqueiro e esforçou-se para fazer o
capital escoar das mãos dos ociosos para as dos industriais.
Condenou assim a ociosidade com os argumentos saintsimo-nianos, a riqueza deve estar disponível aos comprometidos com a mudança do mundo.
i. Mauá estava muito próximo do projeto de desenvolvimento plurinacional dos saint-simonianos. A sua atuação
nos países platinos, notadamente no Uruguai, comprova
claramente esta proposição. Sua preocupação com o
330
ramente esta proposição. Sua preocupação com o Uruguai
era exemplo desse compromisso de transformar o mundo.
j. Mauá não compartilhava a idéia saint-simoniana de que
o estado cumpriu um papel indispensável no passado durante os regimes teológicos e metafísicos, mas, que, no momento, teria perdido o sentido. Os saint-simonianos pregavam
uma dissolução do estado, remontando a Fichte e tendo como continuadores Proudhon e Marx. Saint-Simon entendera
o estado como legitimador da dominação das classes ociosas
sobre as produtivas. Mauá concluíra ser outro o papel do estado, a saber, o de promover o desenvolvimento material,
auxiliando a iniciativa privada nos empreendimentos que exigissem grande soma de capitais. Saint-Simon atribuía,
contudo, a um grupo de industriais e de sábios, o papel de
condutores da humanidade, idéia aceita por Mauá. O industrial brasileiro entendia pertencer ao estado a tarefa que Saint-Simon atribuía aos Comitês de Newton.
l. A filosofia social de Saint-Simon encontrava-se impregnada pela crença na organização de uma sociedade sem
conflitos. Acreditava que a moral do amor e da caridade seriam suficientes para fazer desaparecer os interesses individuais, sem especificar como se resolveriam as tensões e os
conflitos. Insistiu em acreditar e difundir que o novo período
que se avizinhava seria de paz entre os homens. Ele entendia
que os industriais, tinham o compromisso de promover a felicidade e o bem-estar da classe mais pobre. Essa crença ingênua no progresso, ou não considera os conflitos de classe,
ou estabelece fórmulas simplistas de extirpar da sociedade
os referidos conflitos. Mauá situou-se entre os primeiros e
os marxistas entre os segundos. Os filósofos sociais que comentam a obra de Saint-Simon vêem nos marxistas os continuadores naturais do projeto saint-simoniano; entretanto, a
posição de Mauá e dos iluministas, como Condorcet, refletem bem o outro lado da moeda, isto é, a aproximação do saint-simonismo com não-marxistas.
331
m. Não se pode desconhecer a relação entre a teoria social e a filosofia historicista de Saint-Simon. A realidade social era sempre entendida como conseqüência de um saber
histórico. Gurvitch observou, com razão, que não se podia
limitar o historicismo saint-simoniano às influências de
Condorcet e Augustin Thierry. Ambos, certamente, influenciaram Saint-Simon, que foi, entretanto, um crítico severo
do primeiro e, por outro lado, já manifestava interesse em
relacionar a vida social com a história, antes de ter conhecido o segundo. Por isso, é razoável inseri-lo na tradição historicista, mas reconhecendo-se a originalidade de sua proposta de estudar a vida social dos povos a partir de pesquisas empíricas, combinadas com o saber histórico. Efetivamente, a filosofia da história saint-simoniana era bastante
limitada e apresentava muitos pontos deficientes, como, por
exemplo, o seu otimismo acrítico. De fato, a realidade social
consistia, a seu ver, numa harmonia espontânea da técnica e
do amor, da moral do trabalho e das relações fraternais entre
os homens. O grande problema foi que Saint-Simon transformou os estudos de sociologia em uma autêntica filosofia
social, equívoco que Mauá não cometeu. A ética saintsimoniana confiou muito na possibilidade de eliminar o egoísmo e a maldade, ilusão que Mauá não partilhou.
Finalmente, pode-se dizer que a obra de Saint-Simon foi
muito ampla, pois ele tocou em quase todos os problemas
que afligiriam os pensadores no século XIX e XX. Entretanto, muitas respostas que apresentou revelaram-se inseguras e
pouco consistentes diante daquelas que foram posteriormente formuladas. O saint-simonismo pretendeu ser um sistema
filosófico, mas apresentou fragilidade ao justapor aspectos
nem sempre conciliáveis. Muitos traços desse sistema sobreviveram e acabaram por influenciar diferentes movimentos. Isso ajuda a explicar por que encontramos vários elementos do saint-simonismo nas ações e valores defendidos
por Mauá.
332
O saint-simonismo, como doutrina, abordou os mais variados assuntos: partiu de uma sociologia e de uma ciência
do homem de índole claramente não teológica, estabeleceu o
projeto de um sistema industrial livre e concluiu com a apresentação de uma ética e estética que produziram uma moral
positiva. Esse conjunto de muitos sistemas em um sistema
indicava um pensamento multifacetado. Podemos, então,
compreender por que a teoria possui tantos pontos de convergência com a ética utilitária, consistindo, em alguns momentos, numa reflexão e aprofundamento de questões que o
pensamento liberal levantava, mas para os quais não conseguia estabelecer, até então, respostas satisfatórias. SaintSimon apresentou muitos aspectos que o aproximavam de
Maquiavel, Vico, Hegel, Condorcet, Proudhon, de Bonald,
de Maistre, do Século das Luzes e do romantismo. Esse espírito universal transformou o filósofo num ponto de referência para diferentes autores, pois o diálogo na filosofia
possibilita sempre muitas interpretações.
Durante o século XIX, a filosofia enfatizou a historicidade da razão. Em Hegel, realizou-se o encontro com a tradição racional na sua plenitude. O romantismo, apesar de sua
ênfase na paixão, conservou a confiança na racionalidade. O
positivismo saint-simoniano inteirou-se deste projeto de
uma razão apaixonada, mas acrescentou-lhe um elemento
dinâmico, próprio da filosofia moderna. Com o saintsimonismo o logos não apenas compreendia o ser e buscavalhe o sentido, mas estimulava sua realização em plenitude. A
humanidade elevada à categoria de grande ser, tornou-se o
alvo fundamental das mudanças, e por isso a teoria propôs
uma ética do trabalho para promover as mudanças na sociedade. Como teoria da indústria, o saint-simonismo empolgou
industriais de todo o mundo, inclusive Mauá, que, adotou
valores e argumentos saint-simonianos, mesmo sem abandonar os princípios de uma ética utilitária e liberal. A comple-
333
xidade dessa solução é mais um indicativo das dificuldades
deixadas pela ética pombalina.
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