Diálogos entre orfismo e filosofia antiga
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Diálogos entre orfismo e filosofia antiga
Diálogos entre orfismo e filosofia antiga _________________________________________ I. Uma tradição escrita Escrever sobre os órficos e o orfismo é sempre uma questão delicada, já que certezas são frágeis, fontes primárias, escassas, e testemunhos, conflitantes. Muitas vezes, fontes sobre órficos, pitagóricos, báquicos e eleusinos se confundem. Além de se tratar de um fenômeno remoto no tempo (acredita-se que floresceu entre os séculos VI e III a.C.), como religião de mistério, seus rituais e revelações eram ocultados com muito zelo e apenas depois de uma iniciação se poderia ter acesso a eles. Temos ainda outra dificuldade em apurar as fontes: por volta dos séculos V e VI a.C., muitas idéias eram ditas órficas para lhes conferir autoridade e antiguidade. Começou-se assim uma prolífica produção de poemas pseudo-epigráficos atribuídos a Orfeu, estendendo-se pelo início da era cristã, entre os neoplatônicos. Contudo, a pesquisa do orfismo tem um trunfo: trata-se de uma tradição predominantemente escrita, cujo corpo canônico compreenderia poemas teogônicos (geneologia dos deuses), cosmogônicos (narrativas sobre a formação do universo, que incluíam um mito de fundação da espécie humana) e escatológicos (revelações sobre o Hades e o percurso da alma depois da morte). Em outras religiões de mistério gregas, sabemos por testemunhos que os iniciantes teriam acesso aural aos textos sagrados em encenações dos mistérios, rituais ou em procissões. O orfismo, porém, teria se valido de poemas e suas interpretações transmitidas através da escrita. Conhecemos tanto testemunhos como fontes iconográficas que ressaltam o seu caráter literário. Na peça de Eurípides, Hipólito (v. 952-954), o personagem principal, “tendo Orfeu como senhor, é tomado por Baco, honrando o vapor azulado dos seus vários livros (grammata)”. Semelhantemente, na República 364b-365a, Platão menciona mendigos e videntes (orpheotelestaí) que carregam consigo uma profusão de livros de Orfeu ou Museu. Pausânias (I.37.4), quando alude à proibição e Deméter relativa a favas, diz que “quem quer que testemunhou uma iniciação em Elêusis ou leu os supostos escritos órficos, sabe disso”. Quanto à iconografia, em uma ânfora (séc. IV a.C.) encontra-se um homem idoso com um rolo de papiro na mão, enquanto Orfeu, dançando diante dele, toca a cítara. Ainda mais interessantes são os textos esotéricos preservados ao longo dos séculos (papiros e fórmulas mágicas gravadas em amuletos), que suspeitamos terem desempenhado uma parte em rituais e iniciações. A despeito do estado fragmentário em que se encontram, eles são a evidência direta do caráter literário do orfismo. (...) Segundo Brisson, o uso órfico da escrita na esfera religiosa (mitos, ritos, exegese) representa uma revolução na Grécia antiga, pois opera um deslocamento da autoridade religiosa, que deixa de ser civil (ligada à polis) e se torna mais secreta (seus sacerdotes não têm vínculos com uma cidade, são itinerantes). Através de textos e códigos de leitura, até mesmo uma auto-iniciação seria possível. O aspecto literário do orfismo foi provavelmente fundamental para se estabelecer um diálogo entre a religião de mistério e a filosofia. No período de formação de algumas de suas doutrinas (séc. VI-V a.C.), os mágoi tiveram como interlocutores textos de autores contemporâneos, a saber, os pré-socráticos. A recente descoberta do Papiro de Derveni nos apresenta interpretações de versos de uma primeira versão das Rapsódias órficas visivelmente contaminadas pelas teorias cosmogônicas de autores como Anaximandro, Crátilo, Diógenes de Apolônia, Eutifro e Heráclito. Ademais, o uso de um aparato físico como meio de iniciação permite que não se tenha um controle rígido da circulação dos textos órficos, pois um papiro poderia facilmente chegar às mãos de um não-iniciado. Com efeito, filósofos (não-iniciados) que conviveram temporalmente com o orfismo enquanto um fenômeno religioso, especialmente Empédocles, Platão, os pitagóricos e alguns autores estóicos, fizeram variadas referências à escatologia e aos poemas órficos. Supõe-se, então, que essas doutrinas foram, aos poucos, assimiladas pela cultura filosófica grega. Em última instância, vestígios de textos órficos sobreviveram ao orfismo como religião praticada. Portanto, paralelamente à transmissão indireta, através de descrições, testemunhos e citações em outros autores, textos esotéricos podem ter chegado a autores bem tardios (como aos filósofos neoplatônicos, que viveram na era imperial, entre seis e dez séculos após a extinção do orfismo, pelo qual manifestaram vivo interesse). O Papiro de Derveni é um exemplo extremo dessa possibilidade, pois se trata de um texto interno à tradição que foi descoberto no século XX (vinte e quatro séculos depois de ser escrito). ______________________________________________________________________ GAZZINELLI, Gabriela Guimarães (organização e tradução). Fragmentos órficos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. (Introdução: 11-14)