Page 1 Page 2 TEXTO DE ANTONIO GONCALVES FOTOS DE

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Page 1 Page 2 TEXTO DE ANTONIO GONCALVES FOTOS DE
Extractos do livro Angola
Anatomia de uma Tragédia, General Silva Cardoso
Pg.330/331
"A interpretação jurídica que o Dr. Almeida Santos deu a esta cláusula era que ela
obrigava «à consulta directa e universal das populações das colónias, na
salvaguarda dos seus interesses dentro de princípios democráticos». Durante
algum tempo e em quase todas as suas intervenções públicas, Almeida Santos e a
maioria dos novos políticos da época reiteravam este princípio como essencial na
definição da política ultramarina dentro da nova ordem democrática que se
pretendia não só instituir como consolidar. Ao povo soberano, através do voto,
ser-lhes-ia dada a possibilidade de decidir do seu futuro, salvaguardando os seus
interesses. Inclusivamente Mário Soares, numa entrevista que em meados de
Junho deu ao «Século», afirmou: «Portugal teria o respeito mais absoluto pela
vontade das populações livremente expressa, aceitando a independência como
uma das opções possíveis do direito dos povos à autodeterminação.»
Não me admirava que a grande massa do povo português de todos os continentes
aceitasse e compreendesse os princípios que iriam orientar a sua vida nos tempos
que se avizinhavam. No entanto, pessoalmente, estava bastante céptico quanto à
viabilidade prática da sua aplicação nos territórios ultramarinos. Reportando-me
apenas a Angola, onde conhecia bastante bem a situação no terreno, não tinha
quaisquer dúvidas sobre a impraticabilidade duma tal consulta, a curto ou médio
prazo, visto uma guerra que ali se arrastara durante treze anos ainda não estar
completamente debelada. Eu sabia, mas o
pior e mais preocupante, era que os senhores do MFA, também o sabiam e nada
fizeram para arranjar soluções alternativas sempre subordinadas aos interesses
das gentes desses territórios. Algo parecia pouco claro em toda esta formulação de
linhas de acção para resolver o problema da guerra que parecia ser um dos
grandes objectivos do movimento do 25 de Abril. Foi com esta e outras bandeiras
de liberdade, paz, democracia e progresso que mobilizaram e quase convenceram
a grande massa do povo português. No entanto, a aceleração que imprimiram ao
processo levaria à inevitável reacção e às dúvidas que se começaram a levantar
quanto aos verdadeiros objectivos da revolução.
As minhas preocupações, decorrentes da agitação que se vivia em todos os
sectores da vida nacional, conduziam à conclusão de que a questão do Ultramar,
do maior significado para todo o espaço nacional, não iria ser resolvida
democraticamente com se pretendia fazer crer mas, tão-somente, por via
revolucionária. Só estranhava que um homem com a larga experiência e
conhecimento de África como o Dr. Almeida Santos viesse convictamente a
defender nas suas intervenções públicas este princípio inquestionável da consulta
popular. Ele também devia saber ou ter a consciência de que esse processo era
impraticável no contexto social das Províncias Ultramarinas.
Já não me admirava com a demagogia do Dr. Mário Soares quanto às soluções
que defendia para o problema ultramarino que, em teoria, não se afastavam muito
dos princípios constantes do programa do MFA, mas que na prática não tomavam
em consideração os direitos da grande maioria das populações que nunca tinham
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estado envolvidas em qualquer tipo de conflito subversivo ou, tendo estado,
acabaram por aderir voluntariamente às forças da ordem. Em Angola, onde tinha
permanecido até Setembro de 1973, talvez mais de noventa por cento das suas
gentes nada tinham a ver com a guerra e, por isso, a interpretação que Almeida
Santos deu ao clausulado do programa relativo à política ultramarina me parecia
correcta embora inexequível em termos práticos. O conhecimento que Mário
Soares tinha de África, especialmente dos territórios sob administração
portuguesa, advinha certamente, aliás como afirmou, dos contactos que mantinha
com elementos ligados aos chamados movimentos de libertação, desertores e
refractários das nossas Forças Armadas durante os seus exílios pela Europa, que
condenavam a nossa presença naquela região do globo. Recordo a sua inoportuna
presença na mesa da conferência de imprensa que o padre Hastings deu em
Londres uma semana antes da visita oficial a Inglaterra de Marcelo Caetano sobre
a morte de civis inocentes ocorrido em Wiriyamu no distrito de Tete em
Moçambique. Mário Soares nunca tinha visitado Moçambique, nem tão pouco
Angola, não falara com nenhum dos protagonistas envolvidos na operação, mas
estava ali para avalizar algo que só conhecia através das informações do próprio
padre Hastings. Também este, por sua vez, não tinha estado no local e o seu
relato era fruto do que lhe tinha sido dito por dois
padres espanhóis duma missão de Tete. Estes também não eram testemunhas
oculares do alegado massacre nem lá se tinham deslocado e baseavam a sua
história em informações relatadas pelos sobreviventes que se dirigiram ao hospital
de Tete para receberem tratamento médico sem qualquer receio dos portugueses,
pois ali a situação era totalmente controlada pelas forças da ordem. Era esta
informação difusa e dispersa que constituía a razão de ser daquela conferência de
imprensa a que a presença de Mário Soares pretendia dar credibilidade".
Pg.333
"Infelizmente, ao nível da execução, devido a factores inopinados e que não foi
possível identificar, algo falhou e teve como consequência o incidente que logo na
altura e ao longo dos tempos tem vindo a ser empolado e explorado na
condenação dos métodos utilizados na forma como foi conduzida superiormente a
contra-suversão. É certamente de lastimar o ocorrido que se insere dentro dos
riscos inerentes à própria guerra, em especial quando a técnica do inimigo é
dissimular-se no meio da população. Mas é curioso e salutar constatar que
Portugal, conduzindo uma guerra em três frentes de combate num período de
onze a treze anos, apenas um incidente deste tipo tenha sido referenciado e
objecto de especulação política a que Mário Soares lamentavelmente se associou,
não respeitando Portugal e as centenas de milhares de portugueses que por lá
lutaram e alguns morreram. A sua presença naquela conferência de imprensa não
poderá deixar de ser vista como um gesto de protagonismo pessoal. Claro que
houve outras situações em que pessoas inocentes foram sacrificadas, mas tudo
isso se terá de inserir dentro dos «custos» dum qualquer conflito armado. A nós,
militares combatentes, apenas nos competia vencer a guerra no terreno para que
a solução política fosse possível em condições mais favoráveis e, para tal,
dispúnhamos de duas vertentes em que a nossa acção se teria de concentrar:
eliminar o inimigo armado ou forçá-lo à rendição e conquistar as populações. Estes
objectivos, por exemplo em Angola, foram plenamente atingidos. Mas que sabia o
Dr. Mário Soares da guerra ou da própria realidade africana? Da guerra, o seu
conhecimento só pode ser teórico e muito longe das condições em que centenas
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de milhares de portugueses se bateram com coragem e abnegação apesar de
todas as carências e dificuldades que tiveram de enfrentar e, na minha opinião,
não tinha um suficiente conhecimento de África que lhe permitisse fazer uni juízo
concreto e realista da vivência das suas populações. Mas sabia e sabe as razões
que o levaram a agir com tamanha destreza logo após o 25 de Abril.
Em 27 de Abril, Mário Soares regressou a Portugal do exílio, avista-se com Spínola
e logo em 29 reúne o Conselho Directivo do PS".
Pg.334
"Tudo isto sem que tenha sido ainda definido no Programa do Governo, conforme
previsto no do MFA, a política ultramarina. Será de pensar se as linhas-base desta
política não tinham sido já definidas em Paris, Praga ou em qualquer outro local da
Europa, entre Mário Soares, Cunhal e um ou dois elementos do MFA, onde
certamente não faltaria Melo Antunes, o verdadeiro cérebro da descolonização.
Importa lembrar que Mário Soares disse ser este o único dos «capitães de Abril»
que conhecera antes da revolução ter tido lugar, tendo-se encontrado com ele
várias vezes.(...)
Pg.355
"Até hoje não apareceram, embora outras fontes tenham vindo a fazer referências
a encontros secretos algures na Europa em que toda a estratégia revolucionária
teria sido estabelecida. Muitas vezes tenho-me perguntado qual a razão por que a
URSS, a partir de 1972 começou a reduzir o apoio ao MPLA, que acabaria por
cessar completamente em princípios de 1974.
Pg.366
"No entanto Mário Soares está determinado em prosseguir a sua missão. Logo
após o comício do 1.° de Maio, parte para uma digressão pelas principais capitais
da Europa, donde tinha vindo cinco dias antes, para explicar aos seus contactos
quais os objectivos do 25 de Abril, mesmo sem desempenhar qualquer função
estatal, sem possibilidades de já ter uma noção clara do que de facto está a
ocorrer e que está a fazer esta digressão a pedido de Spínola! E por mera
coincidência, simples acaso, logo no dia 2 de Maio encontra-se com Agostinho
Neto em Bruxelas. Passados quase vinte e cinco anos após o casual encontro,
ainda não revelou o teor da conversa então havida. Agostinho Neto, abandonado
pelos seus amigos da União Soviética, sem a sua força de combate mais
significativa que se unira em volta de Chipenda, restando-lhe apenas uma
escassas dezenas de homens no Congo-Brazzaville completamente desmotivados,
era um líder política e militarmente vencido mas o escolhido para se negociar a
paz em Angola! Na sequência da conversa havida com Mário Soares, declara ainda
em Bruxelas no dia seguinte, isto é, em 3 de Maio, que «a luta não cessaria em
Angola enquanto não fosse reconhecido o direito à autodeterminação e
independência». Terá sido este o tipo de mercadoria que Soares lhe vendeu? Se
alguns poderão ter dúvidas, pessoalmente reservo-me o direito de não as ter com
base na evolução dos acontecimentos que vivi intensamente durante todo o
processo da descolonização de Angola".
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E não podemos deixar de concluir que foi em 2 de Maio de 1974 que Mário Soares
deu o «pontapé de saída» para:
a descolonização que classificou, primeiro, como um incontestável sucesso, em
seguida, de exemplar e, depois de constatar o seu fracasso, de ter sido a possível;
o arranque para a reabilitação de Agostinho Neto, o grande derrotado na luta em
Angola e abandonado pelos quadros mais válidos do seu próprio movimento;
a tragédia que conduziu às mais dramáticas situações que se vivem hoje nos
países resultantes da dita descolonização e com a qual Palma Carlos não quis ser
conivente, demitindo-se das suas funções e declarando: «Não quero morrer como
traidor à Pátria»;
a aceleração da sua trajectória ascencional na política portuguesa.
Naturalmente que Mário Soares não esteve isolado em toda esta movimentação".
Pg.377
"Após ter sido empossado como ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares
incrementa a sua actividade no campo específico da descolonização. Para além dos
contactos com Agostinho Neto, encontra-se também com Aristides Pereira em
Londres e Samora Machel, que cumprimenta com um efusivo e grande abraço, em
Lusaka, ignorando tanto Savimbi da UNITA como Holden Roberto da FNLA".
Pg.348
"No dia seguinte, o chefe de gabinete informou-me de que seria oportuno avistarme com alguns elementos da Coordenadora do MFA e com uma delegação do
MPLA que, de Angola, se tinha deslocado a Lisboa a fim de apresentar
superiormente os problemas que estavam a afectar, duma forma desastrosa, a
vida naquele território. Já tinha conhecimento da presença desta delegação, à
frente da qual veio o Dr. Diógenes Boavida, embora a generalidade da imprensa
referisse, não uma delegação do MPLA, mas nacionalistas incluindo várias
tendências políticas. Não manifestei a minha estranheza, mas esta referência não
deixava de se inserir na estratégia de reabilitação do MPLA que era notória desde
o primeiro encontro de Mário Soares, no dia 2 de Maio, em Bruxelas com
Agostinho Neto.
Aliás esta estratégia foi perfeitamente confirmada por Iko Carreira, um dos
homens do Comité Central do MPLA, quando no seu livro O pensamento
estratégico de Agostinho Neto afirma: «O MFA (Movimento da Forças Armadas)
que tomou o poder em Portugal, através dum golpe de estado, que derrubou a
ditadura de Salazar e Caetano, tinha tendências esquerdistas. Esse facto,
fundamentalmente, levou-o a dar um maior apoio ao MPLA.»
No dia imediato, 18 de Julho, encontrei-me com a delegação do MPLA que era
chefiada pelo Dr. Diógenes Boavida, advogado formado em Coimbra e antigo
jogador da Académica, tendo-se deslocado na companhia de mais cinco
elementos. Ouvi-os atentamente, encontrando-se a sua conversa na enorme
agitação, com muita violência à mistura, que grassava em Angola e, muito
especialmente, em Luanda. Toda aquela confusão era consequência do assassinato
dum taxista, no dia 11 desse mês, e não se cingia a uma simples questão rácica,
que até nem tinha sido significativa".
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Pg.349
"O aparecimento de numerosas formações políticas de cariz altamente reaccionário
e que conduziam toda a sua actividade no sentido de provocarem a maior
instabilidade em todos os sectores em vez de, como seria natural, se preocuparem
com a luta política no campo das ideias. Havia vidas humanas que estavam a ser
sacrificadas e a guerrilha urbana parecia ter-se instalado sem que as autoridades
responsáveis tomassem as medidas adequadas para se acabar com a crise. Apesar
de todas as diligências levadas a cabo, parecia-lhes que a solução passava pela
substituição imediata do governador-geral e das chefias militares. Não
representavam apenas o MPLA, mas igualmente todas as formações políticas cujo
ideário era convergente com o daquele movimento que, pela sua maior e mais
significativa implementação em toda a Angola, estava em melhores condições para
negociar com o Governo português a independência do território. Acrescentaram
que lhes tinha constado a intenção do governador-geral de pretender oferecer ao
Dr. Jonas Savimbi um lugar no aparelho governativo colonial. Jonas Savimbi,
segundo eles, estava à frente dum movimento sem qualquer expressão, a UNITA,
e ate combatera na guerra ao lado dos portugueses contra os verdadeiros
nacionalistas. Desta forma o governador, em vez de procurar acalmar a situação,
parecia «lançar mais achas para a fogueira».
Disse-lhes desconhecer a política ultramarina do governo central e que apenas
tinha conhecimento de que essa política passaria por uma consulta às populações,
como aliás o Dr. Mário Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros, afirmara
recentemente numa entrevista ao «Século»; «Portugal teria o respeito mais
absoluto pela vontade das populações livremente expressa, aceitando a
independência como uma das opções possíveis do direito dos povos à
autodeterminação.»(...)
P362
(..)"Agora já não tinha dúvidas de que a constituição da Comissão de Inquérito
não passara de um mero expediente, concretizado à última hora, na sequência da
minha recusa para «tomar conta de Angola», para se prosseguir dentro de uma
linha de acção que visava, prioritariamente, a reabilitação da imagem do MPLA de
que o encontro entre Agostinho Neto e Mário Soares era um exemplo e a ida a
Lisboa da tal delegação chefiada por Diógenes Boavida, outro indicador bastante
claro.
Após o almoço, fomos informados de que, ao fim da tarde, teríamos uma reunião
com a coordenadora do MFA de Angola na fortaleza de S. Miguel onde estava
instalado o Comando-Chefe da Forças Armadas. Já durante o café, conversei com
o Pavão Machado que, como referi, exercia as funções de comandante da Região
Aérea. Comentando a situação afirmou que «Angola estava entregue à bicharada
mas nem por isso a Força Aérea deixava de cumprir as missões que lhe estavam
atribuídas com o mesmo empenho de antes do 25 de Abril.» Referiu-me que
tinham activado há uns dias atrás, no Totó a UTCI (Unidade Táctica de ContraInfiltração) pois haviam recebido notícias, através de mensagens interceptadas,
que alguns grupos de guerrilheiros da FNLA se preparavam para entrar em Angola
e reactivar a luta armada.(...)"
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P392
"Evidentemente que tudo isto era uma perfeita mistificação porque, no fundo,
quem realmente detinha o poder continuava a ser a tal antena da 5.a Divisão ou
do estado maior do senhor Kallenini principalmente através dos oficiais milicianos
altamente politizados nos anos 68/69 e introduzidos nas Forças Armadas com o
objectivo de as controlar e neutralizar. No fim eram estes senhores, coadjuvados
por activistas do MPLA e tendo por conselheiros elementos do PCUS, entretanto
infiltrados, que conduziam toda a estratégia, no interior de Angola, para entregar
o poder ao MPLA. Era, sem dúvida, um dos «jogadores» a pôr cm prática a sua
ordem de batalha para alargar a sua influência a este imenso e riquíssimo
território. Havia, no entanto, uma questão que ainda os preocupava e que era por
vezes abordada ao nível da Junta: a não resolução do problema da chefia do MPLA
onde o entendimento entre as três facções parecia difícil. O congresso agendado
para o dia 8 de Agosto nos subúrbios de Lusaka, passados dois dias, ainda não
tivera início e grossas nuvens pareciam pairar sobre a sua realização. A luta pelo
poder iria ser renhida e, teoricamente, só um vencedor seria aceite pelas
entidades que reconheciam ou davam apoio ao MPLA: Agostinho Neto. O próprio
Mário Soares, no seu livro, Portugal Amordaçado, dá como certa a nomeação do
Dr. Agostinho Neto chefe do Estado Angolano. Mas o congresso não arrancava e a
imprensa de Lusaka refere os acontecimentos de Angola, em especial, os
incidentes que decorreram nos muceques de Luanda da responsabilidade de
grupos afectos ao MPLA e à FNLA. Tratava-se não duma qualquer limpeza étnica,
mas tão-só da luta pela conquista da supremacia política em Luanda através da
acção do Poder Popular e duma comunicação social orientada para a defesa dos
princípios ideológicos da doutrina comunista.
Entretanto o congresso acaba por arrancar, mas no dia 25 de Agosto, Agostinho
Neto fica em minoria após a apreciação de um relatório onde constavam as suas
actividades durante a guerra de libertação e que conduziu a um total fracasso e à
suspensão de todos os apoios do exterior, principalmente da URSS.(...)
Pg.402
"Mas a esperança de ver nascer a companhia de Páraquedistas depressa se
transformou em profunda desilusão. Dos vinte e oito homens que tinham recebido
a boina verde, cerca de dois terços desertaram nos dias seguintes e todo o
projecto morria aqui. Perdia esta batalha, como muitas outras que já havia
perdido ao longo da minha vida e mais algumas que, no futuro, ainda haveria de
perder. Mas a vida é mesmo assim. Nem sempre se é vencedor e quando, por
qualquer razão, a derrota nos bate à porta, temos apenas que considerá-la como
um normal incidente de percurso e prosseguir. Os desertores acabaram por ir
engrossar o poderio militar do MPLA e os restantes foram passados à
disponibilidade, ignorando-se qual o destino que tiveram mas admitindo-se que
tenham sido aliciados a ingressar noutro movimento. Tudo tinha sido preparado
durante a fase de instrução e aqueles homens de Angola, contrariamente ao que
se pensava, não iriam contribuir para a paz e concórdia entre todos os angolanos,
mas fortalecer uma das partes em luta pelo poder.
Desta forma, o movimento de libertação MPLA que na altura do 25 de Abril tinha
caído ao seu nível mais baixo de sempre, parecia, a pouco e pouco, ressurgir do
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lodaçal onde estava atolado. Após duas tentativas frustradas em Lusaka para
resolver o problema da direcção, acaba por encontrar uma solução, já em meados
de Setembro, no Congo-Brazzaville quando neste país decorria uma conferência de
líderes africanos. Agostinho Neto saiu vencedor e Pinto de Andrade e Chipenda,
tornados vice-presidentes, depressa desapareceram da cena política. Resolvida
esta questão, era importante pensar na componente militar reduzida à sua mais
ínfima expressão. Primeiro conseguiram criar o chamado poder popular cuja acção
foi determinante para a obtenção da supremacia política dentro de Luanda. Em
seguida, com base nos efectivos angolanos que, integrados nas nossas Forças
Armadas, iam passando à disponibilidade começaram, com a ajuda de alguns
elementos do MFA, a entrar para as FAPLA (Forças Armadas Populares de
Libertação de Angola). Era a reabilitação do MPLA iniciada por Mário Soares a 2 de
Maio em Bruxelas no seu encontro com Agostinho Neto e que não mais tinha
cessado de crescer".(...)
Pg.404
"Entrava-se no mês de Setembro e a problemática da descolonização continuava
um mundo de contradições e indefinições. Ninguém responsável conseguira definir
a política ultramarina na sequência do 25 de Abril. Cada um agia de acordo com a
sua consciência, os seus interesses ou as directivas recebidas de quem detinha o
poder neste campo específico da vida nacional. No exterior, Mário Soares, Almeida
Santos, Melo Antunes e outras personalidades de menor relevo, movimentavam-se
intensamente para resolver o que consideravam ser o problema primeiro do País.
Pg.405
- Para libertar essses povos do jugo colonial?
- Numa manobra de puro protagonismo em busca duma reafirmação pessoal no
espaço nacional e internacional?
- No cumprimento de directivas dos verdadeiros e mais interessados promotores
do problema ultramarino com objectivos bem precisos?
Analise-se com cuidado o percurso de Mário Soares, desde o 25 de Abril até ao 11
de Março de 1975, ou mesmo antes, quando começou a tomar consciência de que
o «poder» que tanto ambicionava e pelo qual lutara tão arduamente durante tanto
tempo, parecia escapar-se-lhe e ameaçava cair nas mãos dos comunistas.
É, no mínimo, curioso verificar que Cunhal, talvez um dos principais interessados
em entregar à URSS a tutela dos territórios ultramarinos, nunca se envolveu
directamente no processo de descolonização, limitando-se a sua acção a meras
declarações de circunstância. Em quantos encontros desde Bruxelas, Londres,
Dakar, Argel, Lusaka e outros locais, onde se decidiu o futuro das colónias
portuguesas, participou o Dr. Álvaro Cunhal? Mas alguém, minimamente avisado,
acredita que o patrão dos comunistas portugueses, esteve inactivo nesta matéria
ou se limitou a simples espectador? Seria demasiado ingénuo pensar-se assim.
Não deu a cara, como aliás a maioria dos comunistas, para não criar um clima de
suspeição e até medo, mas não se limitou a ser um observador atento apesar de
as coisas lhe correrem de feição. A sua acção e dos seus correligionários directos
manteve-se oculta, mas altamente eficaz. Manobrava na sombra e sempre muito
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atento ao que se ia desenrolando em todos os quadrantes da vida nacional.
Conhecia perfeitamente os objectivos da descolonização (...)"
Pg.407/9
Pg.408
(...) "Depois entregou-se, de alma e coração, à luta pelo poder no pequeno
rectângulo com os apêndices das ilhas atlânticas. Haverá mais um protagonista da
descolonização bastante badalado que, na minha opinião, se limitou a apanhar o
comboio mas sem conhecer exactamente o destino desse comboio. Afirmou-se,
inicialmente, pela defesa de princípios genuinamente democráticos, mas depressa
compreendeu o desvario que parecia ter-se instalado no processo da
descolonização. Apesar de tudo, o seu envolvimento forçado pelas funções que
desempenhava — Ministro da Coordenação
Interterritorial — mostrou em muitas situações, particularmente difíceis, tentar
rumar contra a maré e encontrar as soluções mais adequadas naquela completa e
perfeita tragédia que caiu sobre aqueles povos e os arrastaria para o lodaçal onde
ainda hoje alguns sobrevivem e outros se arrastam para a morte. Trata-se,
naturalmente, de Almeida Santos"(...).
Ao rever o programa do movimento das Forças Armadas, ainda antes do 25 de
Abril, quando foi chamado a protagonizar o golpe militar, em nada alterou do que
nele constava a respeito da política ultramarina apesar de tal questão já ter sido
objecto de acesa polémica entre os «abrilistas» com várias versões, mas vencendo
a que deixava tudo em aberto e que não mereceu qualquer reparo do Gen. Spínola
até ao eclodir da revolução. Após a sua concretização vitoriosa e antes de se
divulgar o plano, o já Presidente da Junta de Salvação Nacional exige alterações
de fundo na definição da política ultramarina que conduziram a todo um conjunto
de cisões entre os revolucionários que acabaram por facilitar a missão aos
verdadeiros promotores da descolonização e seus agentes. Seria inimaginável
alterar os planos cuidadosamente elaborados pelos responsáveis do golpe em
matéria de política ultramarina. Recorde-se, que mesmo antes do programa se
tornar público, já Mário Soares se encontrara com Agostinho Neto em Bruxelas e
com Aristides Pereira em Dakar. Não foi certamente tratar de assuntos privados
mas, sem dúvida, preparar o terreno para o que viria a constituir uma das maiores
tragédias da história contemporânea de Portugal (...)"
Pg.430
"MPLA – Completamente destroçado militar e politicamente, sem força e com
graves problemas internos, inicia a sua recuperação logo a 2 de Maio no encontro
de Mário Soares com Agostinho Neto em Bruxelas e, dias depois, com o diplomata
Nunes Barata em Genebra. A partir daqui desconheço as diligências das nossas
autoridades para conseguirem o cessar-fogo. Apenas tive conhecimento das
dificuldades que o MPLA sentiu para encontrar um líder que só poderia ser
Agostinho Neto ao qual restavam umas dezenas de guerrilheiros estacionados no
conjunto fronteira de Cabinda.
Consegue, entretanto, criar o poder popular e instalar o caos e a insegurança em
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Luanda. Acaba por assinar um cessar-fogo nas «terras liberadas» da chana no
Leste de Angola que, para além de tudo mais, deixou a porta aberta para a
formação do seu exército (as famosas FAPLA) à base da maioria dos quadros e
soldados que passavam à disponibilidade com a extinção da quase totalidade das
unidades das nossas forças armadas do recrutamento local. Mais uma vez numa
clara posição de força, deu-se tudo - mais uma vitória do MFA com a prestimosa
colaboração de Mário Soares".
Pg463
(...) "É importante salientar que Mário Soares, tendo iniciado uma autêntica
maratona em prol da descolonização, logo após o 25 de Abril, e que teve como
ponto de partida Bruxelas, onde se encontrou com Agostinho Neto e depois, para
além de outros países europeus, se estendeu a África, nomeadamente Argélia,
Zâmbia, Zaire, Senegal, Tunísia, nunca considerou ser importante fazer uma visita
aos territórios que eram objecto de negociações visando a sua independência.
Naturalmente que isso seria o mínimo que se poderia esperar de qualquer dos
principais obreiros da descolonização se, de facto, eles estivessem preocupados
em defender os interesses de Portugal dos povos desses territórios. Pelos fins de
Novembro, já ninguém em Angola tinha dúvidas de que apenas os movimentos de
libertação seriam os únicos interlocutores nas negociações com Portugal. Para
além de outras vozes discordantes, a FUA reage através de um comunicado,
denunciando a traição de que estava a ser vítima a grande maioria do povo
angolano (...)"
Pg.466
(...)" Com este comunicado a FUA, de Fernando Falcão, parece ter acordado e
denuncia toda a traição que tem envolvido o processo e confirmada pelas falsas
declarações dos principais responsáveis quanto à participação de outras forças
políticas. Só agora, em princípios de Dezembro, o Eng.° Falcão tomou consciência
do logro em que tinha caído com as falsas promessas de Rosa Coutinho e Melo
Antunes. Mas esqueceu-se de Mário Soares que, mesmo antes do enunciado dos
princípios que deviam presidir à descolonização em Angola pela Junta de Salvação
Nacional, já afirmava que os únicos e legítimos representantes das suas
populações eram os movimentos de libertação.
Pg.468
(...) "A situação era nestes finais de Dezembro altamente complexa, parecendo
que os campos se extremavam e que iríamos ter os dois «jogadores» em
confronto no palco de Angola. Já não tinha dúvidas quanto à intenção do Rosa
Coutinho e da «rapaziada» da estrutura do MFA de Angola de que tudo deveria ser
conduzido de molde a dar o poder ao MPLA, como referira Mário Soares em
Portugal Amordaçado. O repórter do «London Observer» escreve de Luanda a 30
de Janeiro de 1975: «O Almirante Rosa Coutinho — então Alto-Comissário
português — e muitos outros oficiais portugueses aqui presentes manifestam
simpatia pelo MPLA e este facto levanta suspeitas, entre os outros dois grupos e
grande parte dos brancos de Angola, de que a administração planeia apoiar o
MPLA.» Muito posteriormente, em 1987, quando Rosa Coutinho participou no
programa canadiano «Novas Guerras de Libertação — Angola afirmou: «Eu sabia
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perfeitamente que não se poderia realizar naquela altura eleições, porque Angola
se encontrava ainda a viver um período de turbulência... Eu afirmava então que a
única saída seria reconhecer o MPLA como única força capaz de dirigir o território e
que Portugal devia fazer um acordo separado com o MPLA e transferir o poder
para aquele movimento na data fixada para a independência, 11 de Novembro de
1975.»(...)
Pg.473
(...)"A FUA luta desesperadamente para, conforme sucessivamente prometido, ter
um papel activo no processo de descolonização. Esqueceu-se Fernando Falcão,
curiosamente como secretário de Estado adjunto que, já em Maio, Mário Soares
considerava os movimentos de libertação os únicos e legítimos representantes dos
povos dos territórios colonizados e chegou a afirmar que só o MPLA e a FNLA
deviam ser considerados, o que não deixa de ser insensato uma vez que estes dois
movimentos tinham extremado as suas posições tornando impossível qualquer
tipo de consenso. Afinal representavam confessadamente interesses externos que
não se combatiam de armas na mão, conforme se deduz das palavras de
Kissinger, ao apoiar a FNLA para impedir o alastramento do comunismo soviético
em qualquer parte do mundo. Entretanto outras cartas são lançadas para o
baralho para mais complicarem o jogo já de si muito pouco claro e com «batota»
evidente da maioria dos jogadores (...)"
Pg.504/6
"11 de Janeiro de 1974, Hotel da Penina. (...) A peça teatral, sem qualquer ensaio
prévio, visava mascarar a traição ao povo angolano e iria ter com certeza o
aplauso duma parte do mundo. A farsa resultara em cheio, mas o drama
catastrófico viria depois e iria arrastar-se por longos e infindáveis anos até ao
holocausto final. E aquela grande parte do mundo que rejubilou na altura, hoje
nem tem consciência da tragédia que ajudou a promover. Ou talvez a tenha, mas
cobardemente opta por tudo branquear sem coragem para assumir a sua quotaparte de responsabilidade. Dois exemplos claros podem ser apresentados. Muito
recentemente, neste Verão de 1999, Melo Antunes considerou como tragédia a
descolonização da qual ele foi um dos principais condutores, enquanto o seu
parceiro de acção, Mário Soares, confiando na falta de memória do povo e no
oportunismo intelectual dos que sabem o que realmente se passou, cala e não tem
coragem para assumir a sua própria e grande irresponsabilidade, escondendo-se
por detrás de banalidades, falando da descolonização possível.
Pg. 540
"(Rosa Coutinho) Naturalmente não saiu satisfeito, sendo esta a primeira e a
última vez em que falámos a sós. Não encontrara em mim um Rosa Coutinho
disposto a apoiá-lo e a levá-lo ao poder. Entretanto também não podia contar com
o seu amigo Mário Soares que se tinha aposentado da descolonização, porque
outras questões mais importantes se perfilavam na sua frente como a subida ao
poder em Portugal (...)"
Cidade do Kuito completamente destruída. Eis o resultado da "descolonização
exemplar".
Perante este "excelente" currículo de Mário Soares referente à descolonização de
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Angola poderemos concluir que foi um dos grandes culpados pela tragédia que se
abateu sobre o povo de Angola, brancos, pretos e mestiços e que provocou a
destruição de um país, milhares de mortos e estropiados e que, de um país
próspero e rico que era em 1975, hoje é um dos países mais pobres que tem de
recorrer à ajuda internacional para subsistir porque a riqueza está nas mãos de
alguns camaradas, dos kuribecas e dos previligiados.
Por isso, o almirante vermelho Rosa Coutinho e Mário Soares são as pessoas mais
execradas pelos portugueses que nasceram e viveram em Angola !
Foram poucos os protagonistas na implementação desta estratégia mas muitos os
«usados», os «oportunistas» e os «ingénuos». O cérebro da chamada
descolonização foi materializado, no contexto nacional, por Melo Antunes,
utilizando Mário Soares como motor de arranque que não parou até ter entregue
nas mãos dos nacionalistas africanos ligados à URSS os destinos daqueles ricos e
estratégicos territórios. "Nelas participavam portugueses, nossos concidadãos,
traidores, que não enviando ultimatos, mas escondendo-se sob manto hipócrita
dos Direitos do Homem, aí decidiram a estratégia para acabar com o tal Portugal
pluricontinental e multi-racial. Mas contém essa carta de Norton de Matos um
último ponto da maior relevância: «Temos dentro da nossa casa o inimigo na
pessoa dos comunistas». Comunistas que foram, sistemática e
arduamente, combatidos pelo Estado Novo e, aparentemente, sem sucesso.
Obrigou-os a actuar na clandestinidade e causou-lhes alguns «incómodos». Mas
permaneceram, engrossaram, disseminaram-se e nos últimos tempos, graças a
uma boa fatia dos elementos do MFA e com Vasco Gonçalves na chefia do
Governo, quase foram capazes de controlar o País, dominando todos os sectores
da vida nacional. O polvo lançara os seus tentáculos, movendo-se com rapidez e
segurança para garantir os tais objectivos decididos algures na Europa com a
presença de compatriotas nossos e pouco tinha a ver com as tais «amplas
liberdades» e a almejada democracia (...)".
Poderá e deverá perguntar-se, porque corria Mário Soares? Mário Soares,
curiosamente o que menos conhecia da realidade dos territórios africanos ligados
a Portugal, era o mais activo. Mantivera, durante o exílio, alguns contactos com os
principais líderes dos movimentos de libertação que, movidos por interesses
raramente coincidentes com os das populações, lhe transmitiam uma imagem
parcial, distorcida e falseada que não podia servir de base à acção que vinha
desenvolvendo. Ao considerar os movimentos de libertação como os únicos
legítimos representantes dos povos desses territórios, não incluía a grande massa
de trabalhadores que nunca tinha pegado em armas mas que dera um contributo
altamente válido para o desenvolvimento e progresso dessas regiões".(...)
Mas Mário Soares não pára, emergindo como o grande condutor dos novos
destinos da Nação. Durante as comemorações do 1." de Maio ao lado de Álvaro
Cunhal declara, que o primeiro passo para acabar com a guerra «consistirá em
negociar com os movimentos de libertação», em sintonia com as palavras de
ordem do PCP que proclamam «pelo fim da guerra colonial, pela suspensão
imediata de todas as operações militares nas colónias, pela abertura de
negociações com o MPLA, PAIGC e FRELIMO». E curioso salientar a falta de
referências aos outros dois movimentos de Angola: UNITA e FNLA. Será altura de
se pôr a questão sobre o tipo de interesses que são defendidos pelos movimentos
de libertação: se duma qualquer superpotência, se a ambição pelo poder dos seus
líderes ou se a vontade da grande maioria das populações dos territórios onde
grassava a subversão e que não aderiram a esta subversão?"
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Junta Governativa de Angola. Da esquerda para a direita: Capião de Mar e Guerra
Leonel Cardoso, Brigadeiro Altino de Magalhães, Almirante Rosa Coutinho,
Cororel Pil. Av. Silva Cardoso e Major Emílio Silva .
(foto a Vertingem da Descolonização, Gereral Gonçalves Ribeiro)
MPLA - FNLA - UNITA
"Logo após ter iniciado o exercício das novas funções, uma das primeiras medidas
que tomei foi determinar ao SIM (Serviço de Informação Militar), onde uma boa
parte dos elementos da antiga DGS/PIDE se tinha integrado por ordem da Junta
de Salvação Nacional, que pretendia informações detalhadas sobre atitudes
inconvenientes que ocorressem em qualquer parte do território de Angola, levadas
a efeito por elementos afectos aos movimentos de libertação. Passei assim a
dispor de um relatório semanal onde constavam as prepotências e actos de
violência cometidos um pouco por toda a parte. E curioso notar, à semelhança do
que ocorria em Luanda, também pelo restante território, o movimento que mais
infracções cometia, superando mesmo os outros dois juntos, era o MPLA".
"Considerando que em 25 de Abril este movimento era o que se encontrava em
situação mais difícil, o rápido incremento da sua capacidade de intervenção deveuse essencialmente aos seguintes factores: à determinação, desde a primeira hora,
de alguns responsáveis políticos nacionais e elementos do MFA, reabilitar o MPLA,
à adesão às FAPLA dos militares africanos do nosso Exército que iam sendo
desmobilizados e ao apoio dado por toda a estrutura do MFA em Angola incluindo
a CCPA, (Comissão Coordenadora do Programa de Angola) onde a partir dos
primeiros dias de Fevereiro foi notória a presença das principais figuras do MPLA
em consecutivas reuniões. Estas atitudes, muitas delas conduzidas dentro do
palácio, provocaram uma reacção natural dos outros movimentos, afirmando que
o MFA continuava a dar apoio e protecção ao MPLA como no tempo do Rosa
Coutinho e, agora, mais abertamente. Fui obrigado a intervir e tive conhecimento
de que, embora esporadicamente, os outros dois movimentos também foram
convidados a reunir-se na CCPA para discutir problemas do processo de
descolonização. Mas enquanto a presença de elementos da FNLA ou da UNITA era
objecto dum convite expresso, os elementos do MPLA limitavam-se a aparecer e a
ficar por ali como se fizessem parte da própria CCPA. Esta foi uma das questões
que mais contribuiu para a cisão entre este órgão e o Alto-Comissário".
"Na tomada de posse do Governo de Transição, estranhei não ter visto Iko
Carreira que era um dos meus interlocutores favoritos no MPLA. Muito
discretamente indaguei o porquê deste ausência, tendo sido informado que, logo
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após a cimeira do Algarve, tinha seguido para Moscovo a fim de escolher e
seleccionar armamento para as FAPLA. Fiquei triste, primeiro porque se tinha
acabado de assinar um acordo de paz, depois porque este acto era mais um sinal
claro e evidente do futuro que esperava Angola. Passados uns dias encontrava-me
no aeroporto aguardando a chegada do avião de Moçambique onde viajava o
almirante Vítor Crespo, Alto-Comissário daquele Estado, para lhe apresentar
cumprimentos e trocar impressões sobre a situação naquele território. Durante
aquele período de espera, aproximou-se o Major Moreira Dias, comandante da
Polícia Militar, informando que tinha aterrado um avião Dakota proveniente de
Cabinda e que o pessoal do MPLA não deixava proceder à inspecção da carga,
como estava determinado. Contactado um dos responsáveis do movimento,
Hermínio Escórcio, garantiu que o avião só transportava fardamento e
medicamentos. Apenas lhe disse que ordens são ordens e voltando-me para o
Moreira Dias: «Mande proceder à inspecção da carga do avião.» Afinal as fardas e
aspirinas haviam-se transformado em armas pesadas, como canhões sem recuo,
morteiros, bazucas, entre outras. O avião foi de imediato selado, tendo o
armamento seguido no dia seguinte para o batalhão de Caçadores Pára-quedistas
onde ficou sob a sua custódia".
"Regressei a Luanda pilotando o B-26 que também já tinha o seu destino
marcado: a sucata. Não sei se ainda haveria outros B-26 em outras partes do
mundo. Tinha dúvidas.
Mas este episódio não foi mais que um parêntese, um momento de descontracção,
no dia-a-dia da vida dum Alto-Comissário que procurava, remar contra a maré,
salvar alguma coisa daquela terra, se ainda era possível salvar fosse o que fosse".
"Entretanto fui informado de que, na sequência da viagem do Iko Carreira a
Moscovo, cargueiros soviéticos tinham chegado ao porto de Ponta Negra no
Congo-Brazzaville onde descarregavam grandes quantidades de material de guerra
destinado ao MPLA.
Este material tinha começado a entrar em Angola muito especialmente por via
marítima e desembarcado nas praias desertas da imensa costa angolana, tanto a
norte como a sul de Luanda. Impedir estes desembarques, de que os outros
movimentos tinham conhecimento e conduziam a um clima de maior tensão, era
uma missão praticamente impossível por exigir um esforço de patrulhamento com
meios aéreos e navais que ultrapassavam em larga escala as nossas
disponibilidades. Assim o material de guerra ia entrando, dotando os novos
efectivos do MPLA com um potencial de combate que eles nunca tinham tido
durante toda a guerra isto conduziu a uma superioridade em relação aos outros
movimentos que provocaram reacções mais ou menos violentas, matando à
nascença toda e qualquer tentativa de cooperação. Mas não é só armamento que
chega do Leste, pois segundo o Cônsul norte-americano, que me pedira o máximo
de sigilo, também alguns conselheiros, especialmente da RDA (Alemanha do
Leste) tinham entrado em Angola para fazer «turismo» e que, a curto/médio
prazo, estariam previstas outras ajudas significativas quer em material quer em
pessoal. Naturalmente procurei saber se eles próprios, norte-americanos, estavam
a reagir a este assalto".
"É curioso e oportuno recordar que, uns anos mais tarde, nas funções de
comandante-chefe nos Açores em 1983, me encontrei com um general norte
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americano e ao falar-se de África e inevitavelmente de Angola, confidenciou-me
que nos princípios de 1975 pilotara um C-130 várias vezes para Kinshasa
integrado numa espécie de ponte aérea. Aterravam durante a noite e paravam ao
fundo da pista, apagando as luzes. Entretanto aproximavam-se viaturas pesadas
de carga para as quais era transferido o material que transportavam enquanto um
autotanque procedia ao reabastecimento do avião. Terminada a operação,
voltavam a alinhar na pista e descolavam. Frisou que tinha sido uma autêntica
ponte aérea para Kinshasa com muitas toneladas de armamento. Não revelou qual
o ponto de partida, admitindo que tivesse sido na Libéria. Na sua opinião este
material só poderia ter um destino: FNLA através de Mobutu. Não havia dúvidas,
as movimentações diplomáticas com a mudança de Cônsul em Luanda e de
Embaixador cm Lisboa e este apoio logístico só poderia ter um significado: tentar
evitar que a URSS estendesse a sua influência a Angola. E os dois «jogadores»,
através dos seus tentáculos, estavam novamente em plena actividade para
conseguirem o controlo daquela importantíssima parcela do território africano".
"A cimeira de Nakuru iria decorrer depois de o MPLA ter executado no terreno a
primeira parte do plano para ficar «rei e senhor» de Luanda até ao dia marcado
para a independência. Apesar da vantagem adquirida e da situação favorável de
que desfruta, o MPLA aceita participar na cimeira sendo o único movimento a
pretender que Portugal estivesse presente pois não deveria ser marginalizada em
tudo o que pudesse estar relacionado com a descolonização, até à transferência do
poder. Mas isto é mais complexo e tem as suas razões. Sem dúvida que a UNITA,
militarmente muito fraca por falta de armas, tem todo o interesse em resolver os
problemas que estão afectar o processo da descolonização através do diálogo e
dos compromissos de ordem política; a FNLA começa a reconhecer a sua
fragilidade por falta de estruturas de base em todos os campos, o que a leva à
dependência cm relação ao Zaire para manter o esforço militar contra o MPLA. A
grande maioria dos combatentes do ELNA só falava francês. Ou são mesmo
zairenses, ou angolanos que se refugiaram naquele país ainda muito jovens e que
naquele momento estavam a ser recrutados para as forças militares da FNLA.
Esses elementos, após terem recebido instrução em Kinkusu, ministrada por
chineses, são atirados para a «fogueira» sem qualquer motivação".
"Entretanto, face à ligação do MPLA às estruturas do MFA, a presença portuguesa
poderia conduzir a uma posição ainda mais reforçada do MPLA. Para além das
frequentes acusações da cooperação das FAP com as FAPLA, o que não deixa de
ser verdade em casos isolados, por vezes difíceis de discernir, a realidade era que
as acusações da FNLA não cessavam; a ligação da CPPA e estruturas do MFA, em
Angola, com os dirigentes do MPLA, era claramente evidente. Pessoalmente, não
tinha quaisquer dúvidas: as visitas de Agostinho Neto e outras figuras destacadas
do movimento a Lisboa e os contactos que mantinham com entidades oficiais eram
mais uma prova do posicionamento nacional em relação aos movimentos; a cópia
da carta onde o Bureau Político do MPLA pedia ao Alto-Comissário a prisão e
expulsão dos ex-elementos da PIDE/DGS, enviada directamente para o Conselho
da Revolução, era mais um testemunho do apoio que o Governo português
concedia a este movimento. Por estas e outras razões, nem a UN1TA, nem FNLA
pretendiam a presença portuguesa em Nakuru onde até poderiam introduzir
alterações ao Acordo do Alvor com reflexos nas responsabilidades de Portugal, em
todo o processo.
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As autoridades nacionais não revelavam qualquer interesse em participarem, na
medida em que sabiam que de Nakuru iria sair só mais um «papel» que a FNLA e
principalmente o MPLA iriam de imediato ignorar ou meter na gaveta".
"Entretanto as relações entre o Alto-Comissário e a CCPA agravaram-se
rapidamente pois quebrara-se a confiança que entre ambas as entidades deveria
existir. Em vez daquela coesão e unidade que se deveria verificar entre todos os
órgãos da representação portuguesa cm Angola, o MFA constituía a nota
dissonante em todo o processo, com a agravante de se considerar o «dono do
poder» nacional no território e, como tal, a entidade que pretendia definir as linhas
da nossa actuação em face do evoluir da situação. Um dia, em meados de Junho,
o Zé Valente telefonou-me e pediu para eu convocar de imediato o Leonel e o
Macedo, pois tinha uma comunicação muito urgente".
"Praticamente todas as questões acordadas já tinham sido objecto de decisões
anteriores e que não foram minimamente respeitadas quer pela FNLA quer pelo
MPLA. Ressaltam no entanto dois pontos que merecem uma maior atenção. Pela
primeira vez é abordada a necessidade da existência das Forças Armadas de
Angola, em especial, do Exército angolano. Esta tinha sido uma das minhas
primeiras preocupações logo após ter assumido as funções de membro da Junta
Governativa cm Julho de 1974, procurando formar uma companhia de páraquedistas não partidária e que pudesse vir a constituir o embrião do futuro
exército de Angola. Chegou-se até à cerimónia da imposição das boinas aos vinte
e oito elementos que iriam constituir os quadros dessa companhia. Mas depressa a
maioria desta gente, aliciada pelo MPLA com o apoio do MFA, desertou e foi
integrar-se nas FAPLA. Assim morria uma tentativa de criar um instrumento da
maior importância para a fase de transição que estávamos a viver, evitando-se a
existência de três «exércitos» partidários em vez de um único, nacional".
"Recordo as longas discussões durante os primeiros encontros com Savimbi nas
matas do Leste sobre as forças militares dos Praticamente todas as questões
acordadas já tinham sido objecto de decisões anteriores e que não foram
minimamente respeitadas quer pela FNLA quer pelo MPLA. Ressaltam no entanto
dois pontos que merecem uma maior atenção. Pela primeira vez é abordada a
necessidade da existência das Forças Armadas de Angola, em especial, do Exército
angolano. Esta tinha sido uma das minhas primeiras preocupações logo após ter
assumido as funções de membro da Junta Goovernativa cm Julho de 1974,
procurando formar uma companhia de pára-quedistas não partidária e que
pudesse vir a constituir o embrião do futuro exército de Angola. Chegou-se até à
cerimónia da imposição das boinas aos vinte e oito elementos que iriam constituir
os quadros dessa companhia. Mas depressa a maioria desta gente, aliciada pelo
MPLA com o apoio do MFA, desertou e foi integrar-se nas FAPLA. Assim morria
uma tentativa de criar um instrumento da maior importância para a fase de
transição que estávamos a viver, evitando-se a existência de três «exércitos»
partidários em vez de um único, nacional. Recordo as longas discussões durante
os primeiros encontros com Savimbi nas matas do Leste sobre as forças militares
dos movimentos durante as quais defendi a abolição total das armas dos
movimentos que deveriam limitar a luta ao nível político-ideológico".
"Fui mal-sucedido certamente porque o Presidente da UNITA não ignorava que os
seus rivais se preparavam para a tomada do poder pela força apoiados do
exterior. Posteriormente, quando consegui reunir os cabeças das delegações dos
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três movimentos presentes em Luanda no Comando da 2." Região Aérea, os
pontos discutidos envolviam a futura polícia de Angola, posteriormente designada
como Corpo de Polícia de Angola c um serviço de informações devidamente
estruturado. Tudo morreu no papel porque a concretização destes instrumentos
iria interferir com os planos dos dois principais movimentos com estratégias
impostas do exterior e que nada tinham a ver com os interesses do povo
angolano.
Ao tomar conhecimento das conclusões do acordo de Nakuru pensei como tudo
teria sido diferente se as iniciativas que tomei em tempo tivessem sido
concretizadas. Se em vez de três «exércitos» e dum embrião de Polícia sem
autoridade e objecto de saques e prepotências de toda a ordem por todos os
movimentos, Angola dispusesse de um único exército verdadeiramente angolano e
totalmente apartidário, dum Corpo de Polícia organizada e prestigiada e dum
serviço de informações bem estruturado e isento que permitisse conhecer, em
cada momento, a situação real do país. Estes tinham sido os meus sonhos que
infelizmente para Angola c para os angolanos não passaram de sonhos. Para isto
era necessário tempo e vontade política de todas as partes envolvidas, mas o MFA,
Mário Soares e outras figuras políticas surgidas durante a revolução acharam que
era urgente encontrar uma solução para a «vergonhosa» guerra colonial. E
naquela altura começava a desenhar-se uma das maiores tragédias para aqueles
povos porque a guerra fria entre as grandes potências passaria a quente quer em
Portugal quer em Angola, não passando todos nós de simples instrumentos da
política dos outros com a criminosa colaboração de algumas figuras que, espero, a
história um dia não deixará de julgar".
"Mas finda a cimeira, que não passou de mais uma manobra para enganar uma
parte do mundo e muito especialmente o povo angolano, em vez de se cumprirem
as questões acordadas, verificava-se:
• a entrada de reforços para o MPLA com a chegada a Luanda de elevado número
de efectivos e para a FNLA pela fronteira norte onde não encontrava qualquer
oposição e por Teixeira de Sousa onde esbarrara com as forças das FAPLA
originando conflitos de certa gravidade;
• mais dois cargueiros soviéticos atracaram em Ponta Negra transportando
material pesado para o MPLA;
• a situação hospitalar deteriorava-se em cada dia que passava, principalmente
em Luanda onde os hospitais de S. Paulo e Universitário continuavam encerrados
e o hospital de Maria Pia atingia o ponto de saturação, mas igualmente os de
Cabinda e Carmona estavam em riscos de encerrar com consequências
gravíssimas para o apoio sanitário daquelas áreas;
• o número de desalojados e deslocados aumentava sem cessar, não se dispondo
de quaisquer estruturas para a sua assistência sendo tudo improvisado;
• as atitudes inconvenientes dos movimentos não pararam, dando origem a uma
cada vez maior instabilidade e insegurança por todo a parte;
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• o êxodo da população europeia continuava, tendo as inscrições em meados de
Junho subido para um total estimado em 47. 000 famílias compreendendo um
número de pessoas superior a 140 000".
"Este era o panorama que se verificava na sequência do acordo de Nakuru que,
como todos os restantes, tudo fazia prever que se caminhava rapidamente para
uma situação de total rotura, onde o respeito pelos direitos e vidas dos cidadãos
seriam totalmente ignorados. Imperava a lei da serva em que só as armas tinham
voz e em que os únicos vencidos seriam as populações. Mas toda esta situação
não impediu que uma comissão mista composta por elementos do Ministério do
Interior e da justiça, oficiais dos Estados-Maiores do ELNA; FAPLA e FALA e por
membros do Comando Unificado da Polícia, se reunissem para estudar as medidas
para darem início ao cumprimento do acordo de Nakuru, tendo deliberado:
• Libertação imediata e incondicional de todos os detidos pelos ML.
No dia seguinte a situação agravou-se e o incêndio avançou até ao interior. A
população branca estava positivamente em pânico e só queria fugir tosse para
onde fosse. Organizaram-se colunas de viaturas com rumo ao Sul. Não tinham
tempo a perder. Os pretos afectos à FNLA tinham invadido a cidade do asfalto e
estavam concentrados por todo o lado, muito especialmente, em frente ao palácio
e junto ao Comando Naval. Uma mãe com o cadáver do filho nos braços pretendeu
entregá-lo ao Alto-Comissário, tendo sido impedida pelos pára-quedistas. Por
detrás duma das janelas ainda presenciei uma dessas cenas completamente
derrotado e vencido pela comoção. Não era fácil olhar aquele mar de gente em
desespero e nada poder fazer. Contactei o Leonel e disse-lhe, para com os navios
de guerra disponíveis, começar a transportar aquela gente, vítima da traição que
sobre o povo angolano caíra, para Sazaire onde dominava a FNLA. Assim se fez.
Mas não era o suficiente porque o «incêndio» era, naquela altura, perfeitamente
incontrolável e novos «focos» surgiam por toda a parte".
"Foi com este panorama que um sábado, pela manhã, entro no gabinete e passo
em revista os papéis que o Gonçalves Ribeiro tinha colocado sobre a secretária.
Naturalmente e, em primeiro lugar, peguei no relatório semanal dos SIM onde
estavam descriminadas as atitudes inconvenientes da responsabilidade dos ML. A
violência recrusdecera por toda a parte, tinham aparecido corpos de pessoas há
muito desaparecidas, mais saques, mais violações, mais gente raptada, todo um
rol de atrocidades que continuavam a passar impunes visto a ordem e a segurança
terem sido praticamente banidas de todo o território. Era o salve-se quem puder!
Fui depois informado que várias pessoas, cada uma com o seu problema e qual
deles o mais grave, pretendiam falar comigo. O Gonçalves Ribeiro, como
normalmente, lá as conseguiu despachar com as mesmas promessas de sempre:
«vamos fazer tudo o que for possível...» Através da janela podia ver os
deslocados, os fugitivos, os perseguidos, os inconformados que vagueavam em
frente do palácio, talvez por se sentirem ali mais seguros ou ainda esperarem uma
qualquer solução para os seus problemas".
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