A excêntrica família de Antônia
Transcrição
A excêntrica família de Antônia
LINO, Vitor Ferreira. Reflexões sobre ética e educação. Análise do filme A excêntrica família de Antonia ( Antonia’s Line). Programa Especial de Graduação (PEG 2010). Faculdade de Educação. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, maio de 2010. Orientação: Profa. Dra. Rosemar y Dore Heijmans. 1 Índice Resumo .................................................................................... . 3 Informações Técnicas ................................................................ 4 Contextualização ....................................................................... . 5 Moral e Ética: seus conceitos e implicações no campo educacional ................................................................................ 7 Do reconhecimento da moral à realização ética ......................... 14 1º Momento: Reconhecendo a moral vigente .............................. 15 2º Momento: O choque contra a moral ....................................... 17 3º Momento: Superação de valores engessados e a realização da atitude ética ........................................................................ 19 O campo delicado da ética e da moral ....................................... 23 Introdução à estética através de A excêntrica família de Antonia A arte no filme e através do filme ...................................................................... 34 Janelas, campos e criações visuais .......................................... 40 Conclusão ................................................................................ 43 Referências bibliográficas ........................................................ 44 Anexos ..................................................................................... 45 2 A Excêntrica Família de Antonia Resumo A Excêntrica Família de Antonia é um filme cujo foco é o questionamento de conceitos e comportamentos ultrapassados, que foram cristalizados socialmente. Logo após o fim da 2ª Guerra Mundial, Antonia, viúva, retorna à sua terra natal, após vinte anos, com sua filha Danielle. Quando chegam à cidade, Antonia e Danielle presenciam a morte “cômica e trágica” da mãe de Antonia. Mãe e filha se instalam na antiga casa da família, onde viverão suas vidas. Antonia se mostra como uma figura de “vanguarda moral” e desenvolve relações bastante fora do comum com algumas pessoas fora dos padrões do lugarejo, apóia sua filha em uma gravidez independente e também em sua homossexualidade, age de forma a derrubar a dominação ideológica religiosa do local, acolhe uma mãe solteira, um ex-padre, um deficiente mental e uma vizinha que foi estuprada. Os diferentes tipos de pessoas convivendo juntos no lar de Antonia é que possibilitarão o título brasileiro de “ A excêntrica família de Antonia”, excêntrica porque as personagens são muito diferentes entre si, e, cada um com suas particularidades bastante distintas do restante do lugarejo. O título original “Antonia’s line”, se ref ere à linha, ou linha familiar de Antonia, parecendo se remeter às gerações que sucedem Antonia. 3 A palavra line, que também pode ser traduzida como caminho, nos remete ao percurso que Antonia faz em sua vida, causando o impacto de sua proeminência por onde passa e com quem se relaciona. O tempo passa e a protagonista precisará tomar a decisão ética de não matar o estuprador de sua neta. O filme expõe ainda questões filosóficas concernentes ao tempo e à iminência da morte, mas o mais forte nele é a abordagem da moral e da ética, sobretudo relacionadas à presença massiva da religião católica no lugar onde se passa a história. De acordo com a moral religiosa, Antonia é uma pessoa subversiva, mas na interpretação prof unda da ética – que visa ao bem comum – podemos compreendê-la como o ser mais ético... O destaque das qualidades femininas também é forte no filme, pois a porção biológica da família de Antonia é toda constituída por mulheres, que mostram iniciativa, determinação e atitude diante da vida, fornecendo bases à análise do papel da mulher na sociedade contemporânea, além de abordar a questão do “amor”, ocorrendo de diferentes maneiras e entre vários “tipos” de pessoas. Informações Técnicas Outros Títulos: Antonia's Line (USA) Antonia et ses filles (França) L'albero di Antonia (Itália) Antonias Welt (Alemanha) Elenco W illeke van Ammelrooy .... Antonia Els Dottermans .... Danielle Dora van der Groen .... Allegonde Veerle van Overloop .... Therese Esther Vriesendorp .... Therese, com 13 anos Carolien Spoor .... Therese, com 6 anos Thyrza Revesteijn .... Sarah Mil Seghers .... Crooked Finger Jan Decleir .... Boer Bas Elsie de Brauw .... Lara Reinout Bussemaker .... Simon Marina de Graaf .... Deedee Jan Steen .... Loony Lips 4 Catherine ten Bruggencate .... Mad Madonna Paul Kooij .... O Protestante Fran W aller Zeper .... Olga Leo Hogenboom .... O Padre da Vila Flip Filz .... The Curate W imie W ilhelm .... Letta Dirk Zeelenberg .... Pier Ellen Dikker .... Muisje Jakob Beks .... Farmer Daan Truus te Selle .... Ma Ge Filip Peeters .... Pitte Michael Pas .... Janne Erik de Bruyn .... Arend Petra Laseur .... Mãe Theodora Ficha Técnica Produtor .... Gerard Cornelisse Produtor .... Hans De W eers Produtor .... Hans de W olf Música .... Ilona Sekacz Fotografia .... W illy Stassen Edição .... Marina Bodbijl Edição .... W im Louwrier Edição .... Michiel Reichwein Disgn de Produção....Harry Ammerlaan Direção de Arte .... Harry Ammerlaan Figurino .... Jany Temime Departamento de Arte .... Marco Rooth Efeitos Especiais .... Olivier de Laveleye Efeitos Especiais .... Steven van Couwelaar Produtoras Bard Entertainments Ltd. Dutch Co-Production Fund Dutch Cultural Broadcasting Eurimages European Co-production Fund Flemish Film Community Investco NV Nederlands Fonds voor de Film Nederlandse Programma Stichting Prime Time Stichting Bergen Contextualização Embora o filme “A Excêntrica Família de Antonia” seja uma co-produção entre Holanda, Bélgica e Reino Unido, segundo Pierre Heijmans, artista plástico e professor de artes nascido na Bélgica e residente no Brasil, a filmagem foi 5 certamente feita no sul da Bélgica, em função das paisagens mostradas. Por isso, abordaremos aqui um pouco da história desse país. Em junho de 1815, ocorreu em solo belga a última das Guerras Napoleônicas, a decisiva batalha de W aterloo, na qual Napoleão foi derrotado definitivamente pelos exércitos aliados. Pelos acordos de paz do Congresso de Viena (1814-1815), a Bélgica foi reunida à Holanda no novo Reino dos Países Baixos, onde foi nomeado rei o holandês Guilherme I, da Casa de Orange; esta união artificial provocou uma oposição religiosa, cultural e lingüística por parte dos belgas. Os católicos belgas não queriam um soberano protestante e exigiam maior autonomia. A dominação holandesa _ tentativa de impor o holandês como língua oficial e a orientação protestante no ensino _ provocou uma insurreição em Bruxelas em 1830. A revolução de 1830 levou à independência da Bélgica, que foi proclamada e aceita na Conferência de Londres em 1831, onde as grandes potências, lideradas pelo Reino Unido e pela França, promoveram a neutralidade perpétua do país. Já no século XX, a "guerra-relâmpago" empreendida pela Alemanha na frente ocidental da Segunda Guerra Mundial fez com que, em maio de 1940, a Bélgica fosse atacada uma segunda vez pelos alemães e ocupada até 1944. Após alguns dias de resistência, com a ajuda das tropas francesas e britânicas, as tropas aliadas foram derrotadas devido à superioridade das forças invasoras. Em 28 de maio o rei Leopoldo III capitulou e se entregou como prisioneiro aos alemães. O gabinete belga, exilado em Paris, se negou a reconhecer a derrota, destituindo o rei dos seus direitos de governo. Após a queda da França, o governo belga que estava no exílio transferiu-se para Londres. O "governo-no-exílio" em Londres continuou a guerra, organizando um forte movimento de resistência à ocupação alemã, que durou até o outono de 1944, quando as tropas aliadas chegaram à fronteira holandesa. Os alemães tentaram ainda, em dezembro daquele ano, uma grande contraofensiva nas Ardenas, com o objetivo de ocupar novamente Antuérpia, que se convertera em base aliada. O ataque foi contido em janeiro de 1945, livrando definitivamente o território belga da guerra, embora algumas cidades ainda 6 fossem bombardeadas por foguetes V-2 alemães. A libertação dos belgas pela Inglaterra e França, é indicada no início do filme, quando Antonia volta para sua cidade e em um dos muros estão expostas as bandeiras desses países, e uma frase que parece dizer “bem vindos os nossos libertadores”. Em 1952, a Bélgica foi membro constituinte da Comunidade Européia do Carvão e do Aço e contribuiu para a fundação, em 1957, da Comunidade Econômica Européia (hoje União Européia). A Bélgica ratificou o Tratado de Maastricht sobre a União Européia em 1992. Moral e Ética: seus conceitos e implicações no campo educacional Abrir espaço em nossa vida para a discussão da ética e da moral é abrir uma porta, ainda que baixa e estreita, para ressiguinificarmos as concepções de mundo que aprendemos até então. Assim, como às vezes alguns aprendizados que temos na vida são mais incômodos do que outros, falar desse tema pode ser igualmente incômodo, mas nada que uma dose de paciência, boa disposição e abertura da mente não ajude. Chauí (2002) nos diz que as diferentes culturas e sociedades instituem uma moral, entendida por ela como os “valores concernentes ao bem e ao mal, ao permitido e ao proibido, e à conduta correta, válidos para todos os seus membros.” (Chauí, 2002, p.339). A autora, contudo, considera que a simples existência da moral não significa a presença de uma ética, compreendida por ela como a “filosofia moral”, uma reflexão que “discuta, problematize e interprete o significado dos valores morais” (Idem). A autora retoma Sócrates, que questionou os valores dos atenienses e a falta de coerência entre esses valores e suas atitudes, mostrando as contradições e a forma confusa de pensar daquela sociedade, levando-a a irritação. 7 Segundo Chauí esses questionamentos causavam tal reação, pois forçavam os atenienses a indagar sobre as origens e essências do que eles consideravam virtudes. Assim a autora faz uma abordagem sobre os conceitos de ética e moral, mostrando que elas são correlacionadas. Os costumes, porque são anteriores ao nosso nascimento e formam o tecido da sociedade em que vivemos, são considerados inquestionáveis e quase sagrados (as religiões tendem a mostrá-los como tendo sido ordenados pelos deuses, na origem dos tempos). Ora, a palavra costume se diz, em grego, ethos _ donde, Ética_ e, em latim, mores _ donde moral. Em outras palavras, ética e moral referem-se ao conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade e que, como tais, são considerados valores e obrigações para a conduta de seus membros. Sócrates indagava o que eram, de onde vinham, o que valiam tais costumes. No entanto, a língua grega possui uma outra palavra que, infelizmente, precisa ser escrita, em português, com as mesmas letras que a palavra que significa costume: ethos. Em grego, existem duas vogais para pronunciar e grafar nossa vogal e: uma vogal breve chamada de e psilon, e uma vogal longa, chamada eta. significa caráter, índole, Ethos, escrita com a vogal breve, natural, temperamento, conjunto das disposições físicas e psíquicas de uma pessoa. Nesse segundo sentido, ethos se refere às características pessoais de cada um que determinam quais virtudes e quais vícios cada um é capaz de praticar. Referem-se, portanto, ao senso moral e à consciência ética individuais.” ( Chauí, 2002, p.340) Assim, ao retomar a etimologia das palavras ética e moral, Chauí nos mostra uma perspectiva em que essa duas palavras se referem à mesma coisa: aos valores e costumes de um grupo. Chauí também trabalha com dois conceitos 8 relativos ao campo da moral: “Senso moral” e “consciência moral”. A autora apresenta alguns exemplos que expressam o que seria o senso moral: “Muitas vezes, tomamos conhecimento de movimentos nacionais e internacionais de luta contra a fome. Ficamos sabendo que, em outros países e no nosso, milhares de pessoas, sobretudo crianças e velhos, morrem de penúria e inanição. Sentimos piedade. Sentimos indignação diante de tamanha injustiça (especialmente quando vemos o desperdício dos que não têm fome e vivem na abundância). Sentimos responsabilidade. Movidos pela solidariedade, participamos de campanhas contra a fome. Nossos sentimentos e nossas ações exprimem nosso senso moral.Quantas vezes, levados por algum impulso incontrolável ou por alguma emoção forte (medo, orgulho, ambição vaidade, covardia) fazemos alguma coisa de que, depois, sentimos vergonha, remorso, culpa. Gostaríamos de voltar atrás no tempo e agir de modo diferente. Esses sentimentos também exprimem nosso senso moral. (Chauí, 2002, p.334. Grifos da autora) Chauí também dá outros exemplos de situações conflituosas que poderiam acontecer conosco ou com os outros. Assim, ela menciona a situação em que é preciso decidir por manter um doente terminal ligado a máquinas ou desligálas, descreve a situação de um casal de jovens inexperientes que precisam decidir por manter uma gravidez ou interrompê-la e também cita o exemplo de um pai de família desempregado, que tem vários filhos pequenos e uma esposa doente e precisa decidir entre aceitar ou não a oferta de um emprego que exige que ele cometa irregularidades. Segundo a autora, as dúvidas advindas do que fazer em situações como essas colocam à prova nossa consciência moral, pois exigem que tomemos uma decisão sobre o que fazer, que justifiquemos para nós mesmos e para os outros as razões de nossos atos e assumamos as conseqüências dos atos, em função da responsabilidade 9 que temos sobre nossas opções. Em seguida, a autora conclui seu pensamento dizendo que os exemplos mencionados (...) indicam que o senso moral e a consciência moral referem-se a valores (justiça, honradez, espírito de sacrif ício, integridade, generosidade), a sentimentos provocados pelos valores (admiração, vergonha, culpa, remorso, contentamento, cólera, amor, dúvida, medo) e as decisões que conduzem a ações com conseqüências para nós e para os outros. (...) O senso e a consciência moral dizem respeito a valores, sentimentos, intenções, decisões e ações referidos ao bem e ao mal e ao desejo de felicidade. Dizem respeito às relações que mantemos com os outros e, portanto, nascem e existem como parte de nossa vida intersubjetiva. (Idem, p. 335) Ainda no campo da moral, a autora considera que existem dois tipos de juízo: O juízo de fato e o juízo de valor. O primeiro estaria associado a fatos que se realizaram concretamente. O segundo, por sua vez, estaria associado à atribuição de valor que se faz a um fato. Assim, um exemplo do primeiro conceito seria o fato de que uma determinada tempestade de granizo ocorreu. O exemplo do segundo conceito seria, por sua vez, a noção de que a tempestade foi boa ou ruim. Os juízos de valor, segundo Chauí, avaliam “coisas, pessoas, ações, experiências, acontecimentos, sentimentos, estados de espírito, intenções e decisões como bons ou maus, desejáveis ou indesejáveis.” (Chauí, 2002, p.336). Para a autora, os juízos éticos de valor trazem em si também uma normatividade, enunciando normas que determinam o “dever ser” dos nossos sentimentos, atos e comportamentos. Esses juízos enunciam obrigações e avaliam intenções e ações segundo o critério do correto e do incorreto. Assim, os juízos éticos de valor nos dizem o que são o bem, o mal e a felicidade. Já os juízos éticos normativos nos dizem que sentimentos, intenções, atos e comportamentos devemos ter para alcançar a felicidade. Chauí considera que a origem da diferença entre juízo de fato e 10 juízo de valor se dá em função da diferença entre a Natureza e a Cultura. A primeira é constituída por fatos necessários, que existem em si e por si mesmos. 1 A segunda, a Cultura, nasce pela forma como os seres se interpretam e como se dão suas relações com a Natureza, acrescentando-lhe novos sentidos, afetando-lhe por meio do trabalho e da técnica e dando-lhe valores. Concluindo seu raciocínio, a autora nos alerta para a natureza cultural dos valores éticos, do senso moral e da consciência moral e para o fato de que tendemos a naturalizar certos padrões em função da educação que recebemos. Esta educação visaria cumprir a esses padrões, se processando também dentro dos mesmos. “A naturalização da existência moral esconde, portanto, o mais importante da ética: o fato de ela ser criação histórico-cultural.” (ibdem) Assim, utilizando os conceitos e reflexões apresentados por Chauí, podemos compreender que no filme que estamos analisando, a moral religiosa em questão, fortemente conservadora e preconceituosa, não é atemporal. Ela é um desdobramento dos valores de uma cultura, produzida pelos próprios humanos, situada em uma época e local específicos. Dessa forma, do conjunto de valores advêm os juízos éticos de valor e de normatividade. A Igreja do vilarejo de Antonia diz a todos o que é o bem, o mal e a felicidade, e como conseqüência estipula normas (juízo normativo) de como as pessoas devem agir. O grande problema em toda essa teia de concepções e ações é o de que os conceitos de bem, mal e felicidade que as pessoas do lugarejo assimilam, ou fingem assimilar, já não condizem com as necessidades do presente que é mostrado na história. Ou seja, O amor, pregado de forma engessada e preconceituosa pela igreja, não é apenas aquele que une homem e mulher, mas também aquele que une mulher e mulher, no caso específico de Danielle e Lara. Tampouco esse amor se restringe aos casais ditos “normais”, 1 Aqui poderíamos explorar a questão de que atualmente muitos fatos da natureza, não ocorrem por motivos “naturais”, mas pelo impacto de nossas ações, o que abriria espaço para um juízo de valor desse impacto causado por nós, mas no momento, não é este o objetivo. 11 dentro do padrão de beleza, sucesso e inteligência, mas toca também seres “estranhos” como Dedee e Boca Mole. Da mesma forma, sobre a autoridade representada pelo púlpito da igreja, que coloca os devotos em posição de inferioridade, o padre diz o que é um ser mal e pecaminoso, uma “Jezebel”, associando esta figura bíblica à Antonia e sua filha, pelo fato desta ter resolvido gerar uma criança fora de um casamento. Como vimos Chauí considera que a ética é a reflexão, problematização e interpretação dos valores morais que uma sociedade expressa. Contudo, é importante ressaltar que os conceitos de moral e ética podem variar entre os filósofos, não havendo, portanto um conceito universal e estático. Pudemos compreender que as concepções de ética podem apresentar diferenças entre as várias sociedades, levando-se em conta as diferenças culturais. Contudo, há certos aspectos que precisam ser analisados profundamente, em função de um esclarecimento geral, e é neste ponto que se insere o que podemos chamar de ética universal, que busca a realização do bem comum, aquela que diz o que de certa forma não deve variar de cultura para cultura, sendo então um preceito geral, como exemplo, a preservação dos direitos humanos básicos 2. Assim, ampliando a concepção de Chauí, podemos compreender a ética, também como a realização do bem num sentido comum. Pensar em um “bem comum” pode gerar vários problemas teóricos e práticos, visto que “o bem, o bom e o belo” podem variar entre culturas e dentro das culturas de um 2 Criada após as atrocidades executadas durante o período da Segunda Guerra Mundial, que teve seu máximo expoente no regime nazista, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi concebida por líderes de diversos países em 1948. As ações que culminaram na criação da Declaração são iniciadas em 1946 por Eleanor Roosevelt, esposa de Franklin Roosevelt, presidente dos EUA àquela época. Mais tarde, mais membros de outros países como França, China e Líbano, comporiam a Comissão de Direitos Humanos. A Declaração foi então composta com um texto claro, simples e positivo, para ser acessível a todas as pessoas. Uma declaração tem um elevado caráter moral e significado político e possui mais “peso” que uma recomendação, contudo, tem importância de ordem menor que um tratado, que possui caráter de execução obrigatória entre diferentes países. Na Declaração em questão, há um avanço no que concerne à inclusão de artigos que se remetem à direitos econômicos, civis, políticos e culturais. Esses incorporavam os International Covenant on Civil and Political Rights and the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais). Embora a declaração tenha sido aprovada em dezembro de 1948, as duas alianças só foram ratificadas em 1966. Veja nos anexos o texto completo da Declaração. 12 mesmo grupo, supostamente comum. Contudo necessitamos pensar num conjunto de valores que seja norteado pela liberdade, igualdade e valorização da vida, valores esses proclamados desde 1789, através da revolução francesa e difundidos para vários países, como Brasil e outros países da América Latina, que ainda hoje demonstram dificuldades em renovar seus sistemas políticos relativamente imaturos. Admitir uma busca por uma “ética universal”, implica em compreender as diferenças e as proximidades, buscando uma política de unidade em meio à diversidade, questionando e compreendendo o que nos torna distantes e diferentes e o que nos torna próximos e comuns. Se nossa sociedade ao longo de dezenas de séculos vem construindo uma unidade ao afirmar o valor da vida, e cada um de nós tomando bem ou mal a esses valores, devemos pensar na coerência entre nossas ‘supostas’ crenças nesse valor à vida. Dessa forma, se valorizamos a vida, própria ou coletiva, precisamos desconstruir preconceitos, mesquinharias e as travas ao nos relacionarmos com os outros. A educação contemporânea pede isso. Não há mais lugar para um mestre endeusado, que tem sua cadeira como seu trono e uma “palmatória” como seu cetro. A educação e a docência atual pedem participação, colaboração, reflexão e atitudes precisas nos processos educativos junto aos educandos. Não há mais lugar para o saudosismo de uma época _ se é que ela realmente existiu_ em que os alunos, vinham “de berço”, alvos, limpos e cheirosos, e obedeciam estáticos às determinações dos docentes. Esse cenário dantesco mudou e hoje o que temos são famílias as mais diferentes possíveis, alunos multicores, multicheiros, multinecessidades, multisexualidades, multireligiões e multipensamentos, das situações mais desejáveis e propícias ao seu desenvolvimento às condições mais árduas e deshumanizantes... Assim resta-nos a “escolha” por uma transformação de uma moral conservadora no campo da educação, para uma ética emancipadora, que considere diferenças e proximidades. Essa posição 13 teórica, de respeito e convivência com as diversidades, muito citada por todos no meio acadêmico, precisa ser realmente praticada, saindo do hall das belas teorias. Adotar tal postura implica mais do que apenas citar essas teorias; implica em rever, revolver e administrar os próprios preconceitos. Significa posicionar um espelho, para se ver por dentro, e um cinzel, para esculpir novas formas de ser, num processo que não é simples e nem sempre prazeroso, mas, necessário. Do reconhecimento da moral à realização ética A excêntrica família de Antonia é um filme que se caracteriza principalmente por ações ou situações que representam ruptura com formas tradicionais em alguma instância _ social, familiar, sexual, religiosa _ e tal ruptura expressa por sua vez, a realização da ação livre. A liberdade é uma das dimensões da vida ética, pois, embora a atitude seja livre, ela deve respeitar os direitos individuais, expressos no conjunto de leis de uma sociedade, inserindo-se assim no campo ético; este pressupõe a existência do agente, consciente de si e dos outros, que reflita e reconheça a existência dos outros, seja dotado de vontade e responsabilidade, sendo aquele campo constituído então, pelo agente moral e os valores morais. (Chauí, 2002) Admitindo-se a noção de “relatividade” da ética e a liberdade inserida dentro do campo moral e ético, o filme pode ser dividido em momentos que trarão ruptura para com a moral vigente e realização da atitude ética, visando ao “bem comum”. A divisão aqui realizada possui fins didáticos, uma vez que o filme é permeado por acontecimentos simultâneos, sendo a linha divisória por demais tênue, logo, esta divisão não é rígida, mas uma proposta para análise. Desta forma, o filme foi dividido em três momentos: 14 Momento de reconhecimento da moral , no qual são explicitadas características do lugarejo para onde Antonia volta junto com sua filha. Neste momento é expressa a moral religiosa dominante, o machismo, que também é religioso, o preconceito e a hipocrisia que imperam no lugarejo. Momento de choque com a moral vigente: esta parte foi caracterizada por um dos fatos mais expressivos no concernente à análise da moral e da ética: o choque entre um dos padres do lugarejo e Antonia, gerado pelo discurso repressor e machista do padre acerca da atitude de Antonia e de sua filha de irem à cidade buscar um homem para conceber um filho com Danielle. Momento de superação da moral vigente e realização da atitude ética Neste momento, Antonia já superou a moral dominante do lugarejo, tendo várias atitudes que o comprovam, como a superação da relação conflitante com a religião, a afirmação do relacionamento nada convencional com o viúvo Bas e o acolhimento de vários indivíduos fora dos padrões socais. Podemos compreender tais atitudes como superação de uma moral arcaica, pois elas estabelecem um padrão novo de atitude que rompe com os valores opressores que dominam os comportamentos dos moradores. Uma das principais atitudes éticas neste momento ocorre quando Antonia decide não matar o estuprador de sua neta... 1º Momento: Reconhecendo a moral vigente ...“Os aldeões a aceitariam tanto quanto aceitavam uma colheita ruim, uma criança deformada, ou o manifesto da onipresença de Deus”... * 15 No filme, podemos estabelecer uma divisão de momentos concernentes à moral e à atitude ética. O primeiro momento pode ser considerado o momento de explicitação dos padrões morais que imperam no lugarejo de origem de Antonia. No filme, o padrão moral vigente é aquele instituído pela Igreja Católica. Apesar de existirem aspectos a serem cumpridos pelo pacto social, influenciado pela ideologia cristã, embasada no juízo ético de valor normativo (o dever) que diz o que é correto e incorreto, os aldeões não os seguem piamente, mas mantêm as aparências. Este primeiro momento expressa a contradição operante entre a norma vigente e a conduta realizada, o que poderíamos chamar de antiético, do ponto de vista do que é tido como ideal ético por tal sociedade. Ao chegar a sua cidade, Antonia participa do rito católico de extrema-unção de sua mãe, apresenta para Danielle o lugar e vai lhe dizendo como funcionam as coisas por lá. Um dos fazendeiros negocia a filha num Café como se fosse gado, e sobre essa situação, a narradora do filme diz que “Deedee vivia com os pais e os irmãos numa fazenda, onde as vozes dos homens sobrepunham o silêncio das mulheres”. No lugarejo também existem outras figuras enigmática como a “louca Madonna”, que uiva no apartamento sobre o do “protestante”; este revida batendo com o cabo da vassoura no teto; um fazendeiro que corteja Antonia, mesmo sendo casado, um padre que foge aos padrões morais da Igreja, andando de bicicleta e cantando alegremente, além de outro padre, que negou a extrema unção à uma família que foi morta numa emboscada alemã a um grupo de judeus e seus protetores. Esse mesmo padre também mantém uma relação sexual dentro do confessionário. Neste momento, Antonia já se mostra avessa aos ideais morais da comunidade, acolhendo “Boca Mole”, um deficiente mental que é agredido por crianças e negligenciado pelo pai. Acolhe Deeddee, garota submetida ao pai e estuprada pelo irmão, e aceita manter um relacionamento de “cooperação” com Bas, um viúvo com muitos filhos que também encontrava dificuldades no relacionamento com a comunidade, pelo fato de não ser natural do vilarejo. 16 2º Momento: O choque contra a moral “(...) o reino dos judeus caiu sobre Jezebel e sua filha amaldiçoada, e a maior vergonha é serem mulheres; deveriam ser exemplo de humildade e obediência e ensinar a castidade a suas filhas. Se arrependerão, pois queimarão no fogo do inferno no dia do julgamento.” * Até este momento a convivência de Antonia com a Igreja, representante da moral do lugarejo, é relativamente “pacífica”, contudo será abalada... Daniele presencia o estupro de Deedde e lança um garfo de grama no irmão da garota. No dia seguinte, na igreja, “todos sabiam de tudo, mas ninguém comentava nada”. Antonia acolhe a garota, que passa a morar junto a ela e se apaixona por Boca Mole. Danielle vai estudar arte fora do lugarejo e ao voltar, expressa o desejo de ter um filho, contudo não quer um marido. Antonia a apóia, mas diz que o pai não deve ser um dos aldeões em função da ignorância que lhes é característica. Assim Antonia e sua filha vão para a cidade, na busca de um homem para a cópula. Lá elas encontram um abrigo para mulheres grávidas desamparadas, onde conhecem Letta, uma mulher que adora ficar grávida. Letta indica seu irmão como possível genitor. Danielle tem relações sexuais com o irmão de Letta e, enquanto isso Antonia espera do lado de fora do hotel onde ocorria a relação sexual. Neste momento, fica expressa de forma um tanto marcante, a colocação da figura masculina num segundo plano, deslocada do posto de sabedoria, poder e dominação, para o lugar de mero reprodutor. Mãe filha voltam ao lugarejo, e entrarão em choque com a Igreja, pois, na missa, encontram uma represália moral por parte do padre, em função dos atos cometidos na cidade. Do alto do púlpito o padre repreende Antonia e Danielle com um sermão carregado de uma moral religiosa opressora, no qual 17 faz uso da manipulação de textos bíblicos e de sua oratória baseada no medo e na culpa. Antonia se revolta com o fato, saindo da igreja enquanto o padre continua a professar o sermão; Bas e seus filhos a seguem. Antonia e Bas concluem que o único modo de derrubar a hegemonia do padre, obtida através de sua dominação moral, ou, moralista, é chantageando-o. Desta forma, Bas e Antonia vigiam o padre e o seguem até a igreja, lá, o encontram no confessionário praticando sexo oral com uma moça; a partir disso é sugerido no filme que Antonia usará os meios da chantagem para que sua imagem seja retratada; Antonia usa da chantagem_ meio não ético _ para atingir um fim ético_ a preservação de seu direito e de sua filha de “ir e vir”, bem como a não difamação de sua imagem _. As atitudes de Antonia e seu companheiro se devem ao fato contraditórias, deles não reconhecerem éticas, pois este que as professa atitudes algo do que padre não são cumpre, fornecendo uma brecha ao questionamento e à desconstrução de um sistema moral que não encontrara em um dos seus mais expressivos representantes_ o padre_ uma coerência ética. Esta passagem nos permite também analisar o quanto há de dominação ideológica nas grandes instituições em que os seres humanos estão inseridos, Igreja, Estado e Família, sendo submetidos à sua manipulação, às exigências e julgamentos. 18 3º Momento: Superação de valores engessados e a realização da atitude ética ...“Temos que pensar em nossos pecados antes de julgarmos os outros. Devemos lembrar que a salvação veio através de uma mulher. Ninguém procura sua ajuda e proteção à toa. E não nos esqueçamos do que foi dito no banquete: Ela fala com sabedoria... E em sua língua está a lei da bondade. Ela cuida de sua morada e não se alimenta do pão da preguiça”.* Este momento é composto por um conjunto de situações que poderíamos definir como de “realização da ética”, ou da conduta ética. De acordo com Chauí, para que haja tal ação _ a conduta ética _ é necessária a existência do agente consciente, que “conhece a diferença entre bem e mal, certo e errado, permitido e proibido, virtude e vício.” (Chauí, 2002, p.337). Segundo a autora, a consciência moral supõe que o agente tenha consciência de sua capacidade de julgar o valor dos atos e das condutas e agir conforme os valores morais, sendo este sujeito responsável pelos seus sentimentos e ações. Se nos orientarmos por essa concepção de “conduta ética” da autora, Antonia não teria uma conduta ética, visto que age várias vezes em oposição à moral vigente no lugarejo. Contudo, se nos orientarmos por preceitos de uma “ética universal”, exposta em documentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que considera as diferenças e a garantia de direitos básicos a todas as pessoas, poderíamos concluir que Antonia poderia ser considerada uma das pessoas mais éticas do lugarejo. Antonia não exclui em função de diferenças socioeconômicas, raça, sexo, orientação sexual ou religião. Ela parece encontrar a medida exata para compreender as diferentes pessoas, suas qualidades e limitações. 19 Chauí diz que não é possível utilizar recursos não éticos para se alcançar à fins éticos. E quanto a utilizar fins “não morais”, no sentido de promover uma ruptura com os valores morais vigentes, para se alcançar à fins éticos? Se pensarmos, por exemplo, na chantagem que Antonia faz com o padre _ que manteve relações sexuais com uma jovem no confessionário_ em busca do resgate de sua honra e imagem perante aos fiéis da igreja, poderíamos dizer que Antonia agiu de forma ética, no que concerne ao retratamento da integridade de sua imagem e de sua filha perante o vilarejo, usando a chantagem como um meio de destruir a dominação imposta pelo padre. Após chantagear o padre, Antonia tem sua imagem retratada por ele. A matriarca não esconde sua satisfação diante do discurso professado pelo padre, que fala de auto-reflexão, honra e trabalho feminino, justificado através das realizações da “Virgem”. Neste momento Antonia é diretamente associada à imagem de bondade e honra da Virgem, na cena na qual Danielle ouve o sermão junto com sua mãe e vê a santa da igreja se movendo. Aqui podemos também discutir a escolha de Danielle em ter um filho sem um pai presente. Se, pelas concepções tradicionais às quais estamos condicionados, a decisão de gerar uma criança expressa nossa capacidade de amar e dar a chance a uma nova vida – apesar de que mais à frente no filme Dedo Torto considere isso uma insanidade, em função do caos humano – porque repreender Danielle pelos seus atos? Não seriam ideais éticos o amor e a crença numa nova vida? Ora! Alguém se torna mal porque deseja conceber e dar amor a uma criança? Para o padre sim, pois, o que importa é que a criança, ainda na barriga de Daniele, foi concebida e nascerá de um ato fora do casamento, e, portanto pecaminoso. Sobre essa questão, precisamos fazer mais uma reflexão: a mulher, na maioria das sociedades, sempre foi posta em um lugar diminuto e massacrado. De Pandora a Pagú, passando por Eva, a culpa por todo o mal existente na Terra é atribuído a elas, em função da tentação que representaram. A partir desse único exemplo, pequeno, mas 20 grande o suficiente para expressar a injustiça e o machismo secular sobre o qual o tratamento à mulher é baseado é que podemos tentar compreender as atitudes do padre em relação à Danielle e sua mãe. Assim, Danielle é considerada culpada, mas não apenas por gerar uma criança fora do casamento, mas implicitamente na situação, está o fato de ser mulher, e isso basta... Ser mulher já é miticamente uma culpab Se, anteriormente, a sociedade considerava impraticável a criação de uma criança afastada de um pai, hoje a realidade nos mostra que, embora existam dificuldades em conduzir uma situação como essa, o formato de família burguesa se modificou bastante, de f orma que surgem novas figuras capazes de assegurar a educação de uma criança. Da mesma forma, podemos considerar que a existência de uma família “tradicional” ou convencional não garante que seus filhos tornem-se éticos e honrados, situação que temos visto refletida no mau comportamento de muitos filhos da classe média brasileira. Logo, concluir que uma boa educação se faz apenas por uma família convencional, constituída por pai, mãe e irmãos_ um casal, no sonho burguês _ é um grande equívoco, e um fechamento completo para as mudanças que o mundo tem regurgitado. A família de Thereze, filha de Danielle, representa adequadamente essas mudanças ocorridas nos últimos cinqüenta anos, sendo composta pela presença forte de duas mães, sua avó e Dedo Torto. Essa família, atípica para os padrões morais da pequena comunidade, não impediu que Therese completasse seu processo educativo e se tornasse, por exemplo, uma boa profissional. Danielle tem sua filha e os anos se passam... Algumas notáveis atitudes éticas são realizadas neste momento, como o abandono da batina por um dos padres, e essa atitude é justificada pelo fato de ele “não poder aproveitar a vida com o prazer da Igreja pela morte”. Insatisfeito com as condições estabelecidas pela igreja, o padre a abandona, realizando assim uma conduta 21 ética, ao contrário do outro padre, que mesmo tendo atitudes pouco aceitáveis para sua condição,continua exercendo o sacerdócio. Antonia também realizará não uma, mas várias condutas éticas, começando pelo acolhimento do padre que acabara de renunciar ao sacerdócio, e o acolhimento que dá a Letta e aos seus filhos, conforme havia prometido que faria, caso ela precisasse. Apesar destes “feitos” o que mais expressa a conduta ética de Antonia, é sua decisão de não matar o estuprador de sua neta. Chauí (2002, p. 342) afirma que, na conduta ética, o agente sabe o que está e não está em seu poder. Isso inclui não se deixar motivar pelos instintos nem por uma vontade alheia, afirmando assim a independência e a autodeterminação. Antonia não concebeu o assassinato de Pitte como algo de sua competência, provavelmente baseada na concepção ética que diz que o direito pessoal termina onde começa o direito alheio, ou ainda sendo crente no respeito à vida, porém seu recurso foi “rogar uma praga”, que podemos interpretar de várias maneiras e não apenas religiosamente, pois ao rogar a praga em público, Antonia permitiu que o assunto viesse à tona, para que as outras pessoas decidissem o que fazer com o agressor. De certa forma, tal ação poderia ser considerada também como antiética, uma vez que Antonia, mesmo com motivos, expôs Pitte ao julgamento público dando abertura para que ocorresse seu linchamento. Aparentemente Antonia teria razão em matar Pitte? Poderíamos considerar que sim se a “Lei de Talião” (olho por olho e dente por dente) fosse a moral dominante; mas numa sociedade que considera o direito à vida, Antonia poderia ser julgada negativamente em função de um assassinato. Sua atitude, porém, insere-se no campo ético, pois é uma atitude dotada de consciência própria e do outro, relaciona-se ao controle da vontade e, assim, é virtuosa. Assim como em tempos idos, vemos no presente muitos crimes aos quais poderíamos julgar com a pena de morte. Contudo, que rumos teriam uma 22 sociedade que cria e mata seus próprios “monstros”? Para além de toda a discussão sobre uma índole natural, um caráter inato, podemos compreender que Pitte é uma reprodução dos costumes que imperam na sociedade: um machismo supremo, no qual o homem domina a tudo e a todos, “recebendo” aval de uma concepção religiosa para fazê-lo. Dessa forma, criar algo para depois matá-lo mostra uma grande contradição entre o que se preza socialmente e entre o que se faz. Tal brecha mostra que várias partes do sistema social estão em conflito, e certamente nossas ações ou omissões colaboram para isso. A respeito da “Lei de Talião” quem irá executá-la no filme será o irmão de Pitte, que o afoga num poço. O assassinato do irmão, embora seja compreensível, não é justificável, e se admitíssemos tais fatos do ponto de vista da “compreensão”, ou da relativização, certamente retornaríamos a um certo grau de barbárie, desconsiderando a construção valorativa que a humanidade promoveu através dos aspectos da moral e da ética. No dia seguinte ao assassinato, ninguém comenta o acontecido, mas estavam aliviados por não terem mais a ameaça de um sujeito tão perigoso quanto Pitte. Isso é um exemplo de como a discussão e julgamento sobre a moral e a ética não são uma área sólida e estática e estão abertas a questionamentos e mudanças. O campo delicado da ética e da moral A realidade é produto do ser humano, que a organiza através de suas relações intersubjetivas, e se transforma conforme vão se apresentando as necessidades humanas. Como a moral e a ética são componentes da realidade, elas também se transformam. A moral da sociedade se transforma 23 em função de alguns fatores como o trabalho, a religião e a busca da felicidade em linhas gerais. Se observarmos a construção histórica, veremos o quanto foram transformadas as concepções morais e éticas. A moral focalizada no filme que estamos analisando se caracteriza pela moral religiosa da Igreja Católica, mas uma determinada moral está presente em todas as religiões, na educação, nas relações trabalhistas, na saúde, e em várias outras instâncias, influenciando nossas vidas efetivamente. As religiões se construíram conforme se sucederam os valores sociais. Se observarmos o Cristianismo, teremos bem explícita essa noção. No ocidente, de acordo com o material acumulado historicamente, depois do “fenômeno” de difusão cristã, O Estado romano perde seu status e decai; paralelamente o cristianismo vai se consolidando e a religião católica é “forjada” como uma obra síntese de várias outras culturas, assumindo características de religiões como o paganismo grego, o judaísmo e outros. Na contemporaneidade, ela assume elementos da cultura afro-brasileira, como podemos observar no Brasil. No século XVI, ocorre a Reforma Protestante, fundadora de uma nova religião que, igualmente ao catolicismo, remodela suas origens de modo a que elas possam se adequar às suas concepções. A religião protestante também se transforma e dá origem a vários segmentos, sobretudo no Brasil, onde há várias igrejas e seguimentos diferentes dessa religião. Esses segmentos também não são unificados devido a alguns aspectos que mudam de um para o outro. Por fim, no âmbito das religiões cristãs, há a Doutrina Espírita, surgida no século XVIII, na Europa. Esta, por sua vez, busca uma síntese entre o cristianismo e alguns aspectos de religiões orientais, como o hinduísmo. De forma semelhante às outras, essa religião também se fragmenta em seguimentos diferentes. Um dos elementos que perpassa essas três concepções religiosas é a existência de um código moral, que pode sofrer transformações de acordo com interesses ou mudanças nas formas de compreender a realidade, e nesse caso, também a espiritualidade, relacionada às demandas sociais. Como exemplo, podemos compreender que se no catolicismo medieval o trabalho 24 era uma atividade indigna, com a reforma protestante ele não só é aceito como atividade digna, como também assume a função de redentor e cria bases para a propagação do capitalismo. Em A Excêntrica Família de Antonia, percebemos que o elemento moral que orienta a população do vilarejo é o da religião católica, numa perspectiva ainda calcada em valores medievais. Quando institucionalizada, da maneira que é mostrada no filme, a moral pode fomentar diversos tipos de dominação, e, no filme, percebemos como ela condiciona a população. Desta forma, a função que o padre do filme cumpre não é o de auxiliar na elevação da espiritualidade dos fiéis, mas sim, mantê-los na ignorância, difundindo preconceitos. Antonia percebe isso e, assim, não hesitará em romper com o que lhe oprime, expressando o ideal de liberdade e de superação de uma determinada moral, bem como as religiões, de “certa forma”, o fizeram. Contudo, é necessário ressaltar os aspectos da moral que continuam engessados. Se a construção histórica trouxe mudanças dentro das religiões cristãs, determinados aspectos continuam embutidos nelas. É necessário observarmos qual é a moral que conduz a realidade dos pobres, dos homossexuais, dos intelectuais, das mulheres, enfim, de todos os grupos que não são hegemônicos. É uma moral de superação ou uma moral de conservação das desigualdades? Os pobres são tratados de maneira que possam superar a pobreza – não só a pobreza financeira – ou são conduzidos de modo a manter sua condição de incompreensão diante da religião, da política, da educação e da economia? E os homossexuais? São reconhecidos como seres humanos, “dignos de amor divino”, ou são considerados seres pecaminosos, “propensos ao inferno”? Eles encontram espaço e esclarecimento para que não assumam comportamentos auto-destrutivos e estereotipados, e rompam com o status de marginalidade na qual a sociedade ainda os coloca? 25 E os intelectuais? Qual é a visão que a sociedade possui a respeito deles em função do que a religião diz? Apenas como lembrança, alguns dos maiores intelectuais foram queimados na fogueira, perseguidos, presos, exilados... E ainda hoje continuam sendo acusados de heresia e outros pecados... As instâncias menos esclarecidas da sociedade ainda continuam auferindo a essas pessoas o título de “doido”, e afirmam inclusive que “quem estuda muito acaba ficando louco”! Não só entre os “menos esclarecidos”, resguardadas todas as polêmicas desse termo, mas, dentro da própria Universidade, é cultivado o pensamento de que aqueles que se dedicam às causas filosóficas e artísticas são loucos. A abstração e a reflexão não são tão consideradas como as “coisas palpáveis” produzidas por certas áreas acadêmicas. Num panorama orientado por concepções equivocadas acerca da relação entre a teoria e a prática, as diferentes áreas do conhecimento _ exatas, humanas e biológicas, expressando contradições e fragmentações já nesses nomes que receberam ao longo dos séculos _ afirmam o desmembramento pelo qual passou a construção dos conhecimentos, pendendo às vezes para mera especulação acadêmica, sem buscar uma “utilidade social” para tais conhecimentos, mesmo diante do fato de a Universidade ser mantida com recursos públicos. Toda essa desagregação acaba por reproduzir nos estudantes esse pensamento disjuntivo e não reflexivo, essa separação quase visceral, que promove ações como os trotes violentos, as perseguições veladas e a reprodução de todo tipo de pensamento conservador, oriundo na moral arcaica que, por incrível que pareça, a Universidade ainda mantém. Friedich Nietzsche (18844-1900), foi um dos intelectuais que fez críticas à realidade humana, em função da moral vigente, tendo várias interpretações negativas de sua obra, pois suas concepções abalavam os valores incorporados pela sociedade européia, também difundidos pela América. Independentemente da polêmica que existe sobre o autor ser um conservador, simpatizante de idéias escravocratas e nazistas, ele constrói várias análises 26 que abalam o estado “ordenado” das coisas. Em “ Ecce Homo”, sua obra autobiográfica, localizada após sua morte, Nietzsche faz considerações a respeito de “Aurora”, iniciando seu texto dizendo que nesse livro ele inicia sua campanha contra a moral, mas diz que a moral não é atacada: apenas não é mais considerada. Ali, ele também reflete sobre o papel dos sacerdotes em manter as pessoas em “degeneração”, para que possam dominá-los – talvez o que acontece no filme – e conclui suas observações da seguinte forma: A perda do equilíbrio, a resistência contra os instintos naturais, em uma palavra, a “ausência-de-si” – tudo isso foi chamado de moral até agora... Com a “aurora” iniciei pela primeira vez, a luta contra a moral da renúncia de si mesmo. (Nietzsche, 2006, p.107) Assim, nessa passagem o autor nos leva a refletir sobre aspectos naturais que negligenciamos em nós, ao negar nossa individualidade, em função do cumprimento de certo código moral. Algo que, porém, não acontece à Antônia, que afirma sua personalidade, sem, no entanto, desrespeitar os direitos alheios. Se essa concepção de Nietzsche talvez nos pareça libertadora, e também caótica nos diversos campos nos quais a moral se efetiva, no campo da educação e em outras instâncias da vida, não podemos desconsiderar a moral, como o autor propõe, mas sim, pensar em “novos” valores que dêem conta de acompanhar as mudanças e a complexidade que a sociedade tem apresentado: sexuais, produção diferentes diferentes formatações concepções capitalista, diferentes familiares, acerca crenças das diferentes relações religiosas, de orientações trabalho diferentes e da perfis de estudantes. Enfim, seria preciso promover a construção de uma moral que buscasse valores de coesão social em meio às diferenças, a partir do 27 pensamento sistemático e profundo sobre questões que saltam à vista na contemporaneidade. Em “Aurora” obra anterior a Ecce Homo, Nietzsche (1999) apresenta um pensamento que remonta à relação entre o conceito de ética e moral e sua implicação na vida prática, delimitando no § 9 do Livro I dessa obra, o “conceito de eticidade do costume.” 3. O autor diz que àquela época os homens viviam em um tempo “muito não-ético”, que mostrava um quadro de assombroso enfraquecimento da potência do costume e de refinamento e transporte do sentimento de eticidade para as alturas, de forma que se poderia considerá-lo volatilizado. Por esse fato, diz o autor, que os nascidos tarde, (ou seus contemporâneos, como podemos depreender) encontram dificuldades nas concepções fundamentais sobre a gênese da moral, ou se as encontram elas “ficam presas à língua”, não querendo sair porque parecem grosseiras ou porque parecem difamar a eticidade: (...) eticidade não é nada outro (portanto, em especial, nada mais!) do que obediência a costumes, seja de que espécie forem; e costumes são o modo tradicional de agir e avaliar. Em coisas onde nenhuma tradição manda não há nenhuma eticidade; e quanto menos a vida é determinada por tradição, menor se torna o círculo da eticidade. O homem livre é não ético, porque em tudo quer depender de si e não de uma tradição: em todos os estados primitivos da humanidade, “mau” significa o mesmo que “individual”, “livre”, “arbitrário”, “inusitado”, “imprevisto”, “incalculável”. Sempre medido pela medida de tais estados: se uma ação é feita, não porque a tradição manda, mas por outros motivos (por exemplo, pela utilidade individual), até mesmo pelos próprios motivos que outrora fundamentaram a tradição, ela é dita não-ética e assim é sentida até mesmo por seu agente: pois não 3 Nas notas do tradutor ao pé da página onde se enconta esse conceito, aquele diz que Eticidade e moralidade, são “duas palavras que perderam a referência do significado original de costume, que tem por base (ethos em grego, mos em latim)” ( Torres Filho, 1999, p.141) 28 foi feita por obediência à tradição. (Nietzsche, 1999, p.141. Grifos do autor). O autor continua sua reflexão questionando o que é a tradição, e diz que esta é uma “autoridade superior”, e que a seguimos não porque ela nos é útil, mas porque ela “manda”. Segundo ele, esse sentimento difere do medo em geral, por ser um medo “diante de um intelecto superior que manda, diante de uma potência inconcebível, indeterminada, diante de algo mais que pessoal” (idem, p. 142.). Nietzsche considera que originalmente, toda a educação, cuidado com a saúde, o casamento, a arte de curar, a agricultura, a guerra, o falar e o calar e o relacionamento entre os humanos e destes para com os deuses eram parte do domínio da eticidade. Para que alguém se elevasse sobre o costume era preciso que fosse um legislador ou curandeiro, uma espécie de semi-deus, ou seja, precisava criar costumes, algo que o autor considera muito perigoso para a vida. Ele diz que o mais ético de todos, seria aquele que cumpre a lei com a máxima freqüência, tendo consciência dela em cada pequeno momento. Sobre esse cumprimento dos costumes, que exige a auto-superação, o autor diz: Que ninguém se iluda quanto ao motivo daquela moral que exige o cumprimento mais difícil do costume como signo de eticidade! A superação de si é exigida não pelas conseqüências úteis que tem para o indivíduo, mas para que o costume, a tradição, apareça dominando, a despeito de todo o apetite e proveito individual: o indivíduo deve sacrificar-se _ assim reclama a eticidade do costume. (Nietzsche, 1999, p.142. Grifos do autor). Segundo ele, existiria uma crença de que a punição pelo descumprimento de um costume recai antes de tudo, sobre a comunidade. Dessa forma a comunidade pode pressionar o indivíduo a reparar os danos advindos de seus atos, e mesmo puni-lo, tomando uma espécie de vingança, pela crença de que 29 os atos incompatíveis com os costumes provocariam a cólera de Deus. A comunidade por sua vez, toma parte da culpa do indivíduo para si e cada um considera que os costumes se tornaram frouxos. Assim o autor conclui seu raciocínio, fazendo uma reflexão sobre a negação da individualidade das pessoas, que compreendemos que por vezes entra em choque com as convenções sociais, dizendo que a individualidade foi sempre mal vista pela comunidade, de forma que “os espíritos mais raros, mais seletos, mais originais, em todo o decurso da história, tiveram de sofrer por serem sempre sentidos como os maus e perigosos, e mesmo por se sentirem assim eles próprios. Sob o domínio da eticidade do costume, a originalidade de toda espécie adquiriu má consciência; com isso até o presente instante, o céu dos melhores é ainda mais ensombrecido do que teria de ser.” (Nietzsche, 1999, p.143. Grifos do autor) Assim, Nietzsche apresenta a concepção de que a eticidade, ou a ética em nosso entender, seria a conformidade com a moral, com os costumes, a obediência a eles. Em seu entendimento, o homem livre seria não ético, pois depende apenas de si e não da tradição. Essa interpretação do autor nos possibilita pelo menos duas reflexões: a primeira é a de que em nossa sociedade há um quadro de “não eticidade” em função de valores que já consideramos, pelo menos em plano teórico, como indispensáveis e que não são validados, como a igualdade social, racial e sexual. Por outro lado, e aí chegamos à segunda reflexão, qual é a possibilidade de sermos livres num sentido pleno, num total cumprimento da vontade individual? Isso seria possível? Os indivíduos foram se agrupando em sociedade e isso trouxe ganhos e perdas. Se por um lado há uma certa colaboração entre indivíduos, instâncias sociais, instituições, advinda dessa “associação”, por outro lado esse 30 “compartilhamento” pede pequenos, ou grandes sacrifícios individuais e coletivos. Assim comportamento precisamos em cumprir determinados horários, locais, entre prazos outras e códigos coisas. de Contudo, precisamos avaliar esses “valores comuns” e pesarmos se eles não ferem demais a liberdade individual, ou se não estão agindo de forma a manter e afirmar desigualdades. Nietsche faz uma crítica à concepção de que o indivíduo mais ético é aquele que mais se sacrifica, dizendo que tal comportamento, na verdade, é executado em função da manutenção do costume, de sua supremacia. O autor diz então que todos aqueles que se distanciaram do costume foram vistos como maus e perigosos. Não é difícil encontrarmos presentes em A excêntrica família de Antonia alguns dos aspectos apontados por Nietzsche em suas reflexões sobre a eticidade. No lugarejo onde Antonia vive muitos dos costumes, como silenciamento o diante machismo dos fatos, e a são submissão uma feminina, convenção, ou uma mesmo o manutenção histórica da moral que veio “caminhando” e não foi ressiguinificada. Dessa maneira, como exemplo, a mulher “ideal” para os moradores do vilarejo, é vista como aquela que deve se sacrificar e silenciar, como a mãe de Dedee, ou mesmo, como a “mulher mercadoria”, que pode ser negociada de maneira semelhante a um cavalo. Podemos compreender que isso se dá não apenas para a manutenção da “instância superiora” do costume, mas também pela supremacia masculina, ou seja, por uma questão de afirmação do poder. Aqueles que ousam afirmar sua individualidade, destoando da regra, do costume, são julgados negativamente, como Antonia e sua filha, o foram. Nesse aspecto, é interessante ressaltar que o padre que faz o sermão sobre os “pecados” cometidos por Antonia e Danielle, associando-as negativamente à figura bíblica de Jezebel, encerra o papel de guardião dos costumes caducos, provendo sua manutenção “inquestionada”, trazendo degeneração e não esclarecimento aos fiéis. 31 Ora, mais uma vez, não se trata de abolirmos costumes e certos pactos sociais. Contudo, havemos de convir que dominação e a repressão ao que é diferente da norma não tem se mostrado uma solução inteligente para promover a coesão social. Dessa forma precisamos fazer um exercício cotidiano de questionamento da tal “eticidade”, apontada por Nietzsche, e compreendermos a historicidade dos costumes, desnaturalizando-os e percebendo-os como obras de convenções humanas, que, muitas vezes são orientadas por preconceitos ou manutenção do poder de uns sobre os outros. Essa desnaturalização deveria ser feita na busca por concepções mais inclusivas e libertadoras, que gerassem uma sociedade menos injusta e preconceituosa. Para realizar tal coisa, só um trabalho pessoal e gradual, buscando se estender à coletividade, e, que reveja os próprios preconceitos, limites de relação intersubjetiva, e reprodução irrefletida de idéias. Finalmente, retomando a questão que pusemos no início, sobre o tratamento da questão dos intelectuais, das mulheres, e dos homossexuais, podemos dizer que a situação das mulheres, passou por “revoluções”. Realmente, houve um “progresso”, se pensarmos que não são usados mais cintos de castidade para assegurar a fidelidade; que a mulher pode trabalhar, “decidir” sobre a possibilidade de se casar, sobre ter filhos ou não. Mas, analiticamente, qual a real situação das mulheres? Elas atingiram uma situação de equidade com o homem ou ainda são submetidas à cultura machista vigente? As mulheres realmente têm a suposta liberdade ideológica que está sendo inocentemente incorporada através de formadores de opinião, como as revistas femininas? Qual é exatamente este formato da “nova mulher” que esses meios estão vendendo? Ele condiz com a realidade de quais mulheres? Esta discussão tem a finalidade de nos tirar do comodismo social em que nos encontramos e que não possibilita enxergar as linhas invisíveis que orientam 32 nossos modos de pensar e agir. E isso ocorre principalmente por assimilarmos determinados valores dos quais não tomamos consciência sobre sua origem, intenção e sua repercussão. Não pretendemos apresentar um veredicto sobre pensamentos e ações, tampouco propor uma abolição da moral. Contudo, precisamos rever a moral estática, “disfarçada” em diferentes aspectos, que nos faz inocentes e preconceituosos, assim como os aldeões do filme. É preciso rever esses valores que ainda promovem linchamentos, perseguições e todo tipo de barbárie aos seres humanos, e o presente já esfrega essa necessidade em nossa face. 33 Introdução à estética através de A excêntrica família de Antonia A arte no filme e através do filme Que impulso tão sui-gêneris é esse que leva os seres humanos, desde tempos “primitivos” a representar-se e à vida social através de desenhos, pinturas, e outros recursos visuais? Dotados de olhos e percepção, nós organizamos o mundo principalmente pelas imagens, que estão amplamente presentes em todos os espaços pelos quais passamos. De acordo com Aranha e Martins (1993), a estética aparece ligada à noção de beleza. É justamente por isso que a arte tem um lugar privilegiado na discussão sobre estética, pois foi considerada, por muito tempo, que sua função era exprimir etimologicamente, significado de a a beleza palavra “faculdade de estética de modo vem sentir”, sensível. do grego “compreensão Para as autoras, aiesthesis, pelos com o sentidos”, “percepção totalizante”. Se a estética trata das questões sobre o que é o “belo” e o que é o “feio”, desenvolvendo um pouco essa concepção, podemos perceber que a estética, é também uma materialização da moral, ou da ética, visto que o que é considerado belo ou feio faz parte do grupo de valores de um determinado grupo. Três concepções principais são destacadas por Aranha e Martins sobre a estética. A primeira delas diz respeito à noção do “belo em si”, ou seja, da objetividade da beleza, do que seria o ideal de beleza, concepção esta defendida por Platão e pelos classicistas, que fundam a estética normativa, cercando quais seriam as normas para o fazer artístico. 34 A segunda concepção, da área dos empiristas, como Hume, relativiza a beleza de acordo com o gosto pessoal; a beleza não estaria mais no objeto e sim nas condições de recepção do indivíduo, relacionando-se, portanto à subjetividade. A terceira concepção é relacionada ao esforço de Kant em buscar superar a dualidade “objetividade-subjetividade”, afirmando que o belo é o que agrada universalmente, ainda que não se possa justificá-lo intelectualmente. O belo seria, então, uma qualidade que atribuímos aos objetos para exprimir características subjetivas, não podendo então haver uma única idéia de belo, nem regras para se produzi-lo. Para Hegel (1999), a noção de beleza muda através dos tempos, dependendo da cultura e dos valores vigentes. Podemos comprovar sua proposição quando observamos a mudança no padrão de beleza feminina através dos tempos. O autor considera também que a arte atenda a fins educativos e tem como objetivo elevar o espírito. A arte se faz “ver” e “ouvir” por formas de expressão como o desenho, a pintura, a escultura, a música, a dança, o teatro e o cinema, entre outras possíveis. Todas essas expressões da arte buscam comover nossa percepção sobre algum aspecto da vida e sobre o mundo, expressando alguma proposição, assim como a filosofia. Por nos maravilhar, encantar, e abalar, a arte pode ser educativa, tanto em seu fazer como em sua contemplação. Para Pierre Heijmans, pintor, escultor e poeta, a arte pode ser compreendida como uma linguagem natural. Nessa concepção, sua meta não deve ser “superlotar museus, enriquecer negociantes, obter aplausos”, mas promover “o crescimento através dos prazeres nobres, da qualidade da vida interior, da vida espiritual daqueles que a tocam, seja exercitando ou olhando-a.” (Heijmans, 2007, p.2) Segundo o autor, a arte é considerada inatingível, por um lado, e por outro, alguns cursos de arte ensinam técnicas “seguras e fáceis”, o que faz com que as pessoas pensem que finalmente produziram um 35 objeto de arte. Contudo, considera o autor, esses produtos parecem seguir uma forma preestabelecida, sem originalidade e os objetos resultantes dessas técnicas poderiam ser encontrados em qualquer lugar, sendo seus modelos até mesmo “utilizados de forma maciça pela indústria de plásticos.” (Idem) Para o autor, esse tipo de visão destrói os benefícios que a arte promove; esta, por sua vez, é considerada por ele como uma qualidade humana comum e uma linguagem livre em todos os estágios de desenvolvimento do indivíduo ou em períodos de decadência destes e das culturas. Heijmans fala sobre um tipo de educação orientada para criar um conformismo cultural com padrões estabelecidos e que destruiria o prazer da criação, uma vez que o sujeito é padronizado. Nessa perspectiva, quase que no primeiro dia de aula dos educandos os professores sugerem, ou mesmo impõem, suas idéias sobre a representação artística, e também como esta “deveria parecer para ser considerada bonita, em vez de ler o que o desenho oferece como informação do desenhista” Heijmans (2007, p.3) . Assim o autor considera que o importante é o fato de o desenho estar “vivo”, de acordo com as habilidades do desenhista, em seu nível de desenvolvimento e fala de uma série de aspectos positivos existentes na arte: A arte ajuda as pessoas a entender e serem entendidas. Se ela permite às pessoas se expressarem a si mesmas e a alcançar as outras, ela também as ajuda a verificar, a aumentar e a explorar o conhecimento do mundo que as circunda. A arte está aberta para um infinito melhoramento pessoal. (...) a arte é sempre o resultado da vontade. Do trabalho. O que mais conta é fazer o melhor. E cada um pode ser bem sucedido em fazer o melhor, seguindo um passo de cada vez. Isso permite sentir-se bem, mesmo insatisfeito e exausto. Uma satisfação rápida e obtida facilmente, ou mesmo sendo duradoura, paralisa o crescimento e o progresso. (Heijmans, ano, p.3-4) 36 Fazendo um relato de sua experiência de criança em fase escolar, Heijmans fala sobre uma situação na qual recebeu uma atividade cujo objetivo era preencher o desenho mimeografado de uma abóbora, com um lápis de cor laranja, sem ultrapassar a linha. Já nessa época, período em que a Alemanha ocupava territórios, inclusive o belga, local de origem do autor, este diz ter manifestado sua concepção de que “Colorir isso sem ultrapassar a linha não é desenhar” (Heijmans, 2007, p.5). Segundo o autor, esse tipo de orientação, que conforma a expressão das crianças, leva as crianças a se limitarem, fazendo com que elas tenham sentimento de culpa e desespero ao executar a tarefa. Esse tipo de situação, diz o autor, o fez durante muito tempo, desprezar a escola. (Idem) Assim, o autor propõe que, para encorajar o uso de linguagens artísticas, como o desenho, seja realizado um trabalho de sensibilização através da apresentação de obras de crianças, profissionais, e grandes artistas, através de slides. O objetivo dessa ação seria o de estimular a participação espontânea e a expressão de reações e reflexões “diante do que os alunos vêem, entendem ou já pensaram sobre o assunto” (Idem, p.7). Posteriormente a esse momento de sensibilização, realizar um desenho buscando progredir a partir do pouco que os alunos pensam que podem desenhar, e, finalmente, no âmbito da avaliação, não estabelecer níveis a serem atingidos e nem promover uma comparação entre trabalhos, mas sim entre os próprios trabalhos da pessoa, buscando acompanhar seu desenvolvimento. (Idem) No filme em questão o desenho tem grande importância para Danielle, filha de Antonia. A moça, que mostra seu apreço por representar pessoas, objetos e lugares à sua volta, demonstra interesse em estudar arte para aprimorar sua técnica, e assim, vai para a cidade realizar seu desejo. No filme, que começa cronologicamente mostrando os fatos do presente a partir da iminência da morte de Antonia, são mostradas na parede vermelho-queimado da casa da 37 protagonista os vários retratos das pessoas queridas com quem Antonia e Danielle conviveram ao longo dos anos, frutos das observações e momentos de entrega à representação artística vividos por esta última. Para Heijmans, o treinamento do olhar para perceber as informações que a natureza e a arte oferecem requer lições de observação objetiva. Isso, segundo ele, pode ser “feito, verificado e observado” pelo clássico treinamento em desenho da natureza, tendo esta sido considerada pelos tradicionais artistas como a melhor mestra. Contudo o autor faz uma ressalva sobre esse status da natureza como mestra no que se refere à atitude do professor: Ela somente não o é, se o professor, como muitos livros e cursos de arte tendem hoje a fazer, apresenta a resposta em vez de apontar as questões que os estudantes devem resolver. Os resultados precisam de tempo para aparecer. Artistas profissionais não estabelecem um limite para o tempo. Mas, como todas as coisas que praticamos, cada passo é válido quando nos põe no caminho que queremos seguir. (Heijmans, 2007, p.3) Assim, o autor nos mostra a dimensão temporal a qual o aperfeiçoamento artístico demanda, algo que vemos se processar com Daniele, assim como a importância de o professor apresentar questões para possibilitar esse aperfeiçoamento e não fornecer respostas. O filme A excêntrica família de Antonia, não apresenta sua relação com a estética, com o belo, ainda que um “belo” fora de certos padrões, apenas pela aspiração artística de Daniele. O filme transborda em deleites visuais, através de sua estética de cores “queimadas”, e também pela forma como os recursos visuais do filme são utilizados, como os diferentes tipos de janelas, presentes em vários momentos do filme, as imaginações de Daniele, e a mudança nas 38 paisagens do filme. Uma produção cinematográfica que não se circunscreva no campo das produções puramente comerciais, ou seja, que esteja voltada para questões ulteriores às da “bilheteria”, geralmente tem a preocupação de compor o filme como um todo no qual todos os momentos expressem um significado. Para isso, ela faz uso das artes para transmitir suas idéias. Literatura, imagem, interpretação e música são fundidas, produzindo o todo que é o cinema – o produto final, de um processo de expressão que faz uso da linguagem artística. No filme analisado, são usados vários recursos para expressar o mundo no qual Antonia e sua família estão inseridas. Visto isso, escolhemos determinados momentos do filme para explicitar a noção de arte como linguagem, como forma de expressão de significados. E o princípio é a luz... E ela varia conforme a posição do sol, fazendo o tom das cores mudarem e as coisas se moverem como dança; e, através da luz, surgem imagens seqüenciadas, enfileiradas com diferenças sutis de movimento de uma para a outra... Essas imagens se somam e formam a noção completa de seqüência. A isso, se unem interpretação, música e sentimentos os mais variados possíveis. E eis o cinema! Surgindo como forma “completa” de arte, que se faz linguagem, operando a graça suprema de nos tirar da acomodação cotidiana de nossas retinas... As imagens que um diretor insere num filme não são inocentes, mas estão diretamente relacionadas com suas escolhas, para expressar uma idéia acerca da qual a trama se desenvolve. Assim, num filme, segundo Cabrera (2006, 2007) os cenários, os personagens, os figurinos e mesmo todo o filme, são “conceitos-imagem” de algo. Assim, como exemplo, podemos dizer que “A excêntrica família de Antonia” é um filme “conceito-imagem” da superação de uma moral engessada, da realização da ética e da fraternidade. Cabrera considera que o que o filme traz de filosófico são as proposições por ele apresentadas, que afirmam algo sobre a realidade, assim como a filosofia o faz. Dessa maneira o filme em questão afirma que os costumes engessados 39 são potencialmente nocivos e que precisam ser superados na busca pela realização da ética. Essa seria então a “tese visual” do filme. Janelas, campos e criações visuais * Qual a utilidade ou a simbologia de uma janela? Uma janela normalmente serve para criar um recorte, uma aproximação entre o que há no interior de um espaço e o ambiente que lhe é externo. Ela permite que, mesmo dentro de tal espaço, façamos contato com o mundo externo. Ela implica interatividade. As janelas são mostradas várias vezes no filme: Antonia acorda em seu último dia de vida e, após se arrumar, vai à cozinha e observa o quintal. A janela serve para lhe mostrar o mundo exterior. Depois, Antonia está lá fora, interagindo com suas obrigações, alimentando seus animais. Num mesmo prédio, convivem conflituosamente a Louca Madonna e o Protestante, um morando sobre o outro. A Louca Madonna é mostrada através de uma janela, “reverenciando” a lua, interagindo com o espaço, com a natureza. Sua janela está aberta para o mundo... O Protestante também é visto através de uma janela, mas sua atividade é a de se remeter à sua vizinha do andar de cima, para reclamar do barulho de seu “uivo”, batendo no teto com o cabo de uma vassoura. Sua janela também está aberta. As janelas de ambos os vizinhos estão abertas. Contudo, eles não vêem um ao outro. Estão abertos ao mundo, mas não se encontram... Danielle pinta sua casa num dia frio de neve. Porque é frio, as janelas devem estar fechadas. Fechadas para o mundo, aguardando uma nova estação, para que ela possa sair e se dedicar à arte. * Texto elaborado a partir de uma discussão com o artista plástico Pierre Heijmans, acerca das concepções estéticas do filme. 40 Outro personagem que tem a janela como moldura é “Dedo Torto”, no momento de seu suicídio. As janelas têm pequenas divisões que remetem à idéia de uma grade de prisão; sua casa é a prisão na qual Dedo Torto se refugia da realidade caótica do mundo; essas mesmas janelas do cárcere emolduram o fim do filósofo pessimista. “Criações visuais” é o conceito pelo qual podemos classificar os momentos em que Danielle imagina estátuas religiosas se moverem e interagirem com ela ou então quando imagina Lara a professora de sua filha Therese figurando como a Vênus no quadro “o Nascimento de Vênus”, de Botticceli. Danielle é uma artista plástica e, por isso, é necessário que o filme mostre seu perfil criativo, imaginativo, poético, característico dos artistas. Para ilustrar isso, ela imagina a imagem de Jesus se movendo na cruz, o anjo do cemitério batendo com a asa no padre omisso, e ainda, a Virgem Maria fazendo uma expressão de satisfação diante do discurso de retratação da imagem dela e de sua mãe, feito pelo padre. Como já dissemos, um momento de muita força estética é aquele no qual Danielle imagina Lara, a professora de Thereze, fazendo a mesma pose da Vênus, no quadro o Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli, representando assim a percepção, ou nascimento de um amor puro de Danielle por Lara. A alusão à Vênus de Botticelli foi usada para representar o sentimento de Danielle pela professora Lara, tomando-a como ideal de beleza física, pois a compara à Vênus, além de retratar o momento de “nascimento” de um amor puro. O uso dessa figura no filme acaba por ressaltar a alma poética e a visão artística de Danielle sobre a realidade, pois ela é uma artista e suas impressões sobre a vida e o amor são perpassadas pela sua relação íntima com a arte. É importante também ressaltar o tipo de arte que Danielle produz. No início do filme, são mostradas na parede vários desenhos; são obras muito 41 expressivas, que retratam toda a “rudeza” dos aldeões daquele lugar. O estilo dessas obras seria segundo Pierre Heijmans, de cunho realista, no sentido de que elas expressam bem as características marcantes de cada personagem retratado. Outro elemento visual de grande força no filme é a própria natureza... Durante o filme, é mostrada por várias vezes a passagem do tempo e, para isso, fezse o uso de imagens da paisagem do local onde Antonia e seus amigos moravam. As árvores, os pastos e o céu mudam de cor, mostrando que a natureza continua seus ciclos, fazendo presente a dança das horas. A lua é uma grande alusão à passagem do tempo, pois semelhantemente a ele, ela é mutável em suas fases, sendo também perene em sua existência, como uma condição inevitável. A lua cheia também é um símbolo para os amantes. Ela serve de inspiração para a Louca Madonna, suscitando misticismo e saudosismo. Também possui grande força visual uma árvore que é mostrada em três momentos no filme: na primeira, Danielle aparece sentada sob sua copa, tentando desenhar Deedee e Boca Mole; na segunda, ela aparece caminhando junto a Lara e, na terceira, a árvore já está seca e, por isso, é cortada. Nesse momento, Antonia e sua bisneta, Sarah, uma representando a maturidade e a outra a infância, observam a árvore atentamente, mostrando que o tempo havia passado e ambas tinham consciência disso. Quando o diretor faz uso dessas imagens, certamente ele quer ressaltar a íntima ligação das personagens com a natureza, que carrega consigo a expressão da passagem do tempo. Algo que é inerente a todos os seres vivos... Para concluir esta reflexão sobre a arte no/do filme, é necessário destacar que as três gerações sucessoras de Antonia eram envolvidas com a arte. Danielle, como já foi explicitado, era uma artista de grande criatividade. Posteriormente, vemos Therese, que tem grandes habilidades com matemática, e irá canalizá-las para a área da música. E, por último, Sarah, a filha de Therese, mostra um grande interesse por literatura, sendo ela, inclusive, a narradora da história de sua bisavó. 42 Assim, as artes aparecem no filme de maneira bem enlaçada, tanto pelos aspectos técnicos que o filme utiliza (fotografia, efeitos visuais, música), como pela sua presença nas histórias de vida de alguns personagens do filme, como as mulheres da família biológica de Antônia. Diante desse panorama, podemos observar a abordagem das artes no filme de maneira integrada, mostrando que o cinema é um conjunto de diferentes expressões artísticas se movendo em consonância como objetivo de expressar idéias e significados. Conclusão Embora a crônica sobre a família de Antônia, nos diga que “nada se conclui”, terminamos este trabalho mostrando o quão se fazem necessárias a discussão e a reflexão a respeito do papel da moral e da ética em nossa sociedade, para que possamos superar concepções engessadas e excludentes. Para tal necessidade, arte, educação e trabalho se apresentam como formas possíveis para que seja promovido o ideal de ascensão dos grupos desfavorecidos, que muitas vezes se encontram em tal estado em função das “linhas invisíveis” que operam nossas vidas. É preciso que novos padrões éticos sejam promovidos por todos, seja em quaisquer instâncias, como família, igreja, economia, política, na busca por uma sociedade mais justa e menos excludente. Podemos observar que, ao longo da história, as experiências de segregação não resultaram em nada benéfico para a sociedade, ao contrário, só atrasaram seu desenvolvimento e geraram dor. Nesse processo de revisão e criação de novos padrões éticos o educador possui grande importância, visto que ele é capaz de manter ou renovar concepções e práticas. Uma das demandas de um educador comprometido com a complexidade atual é a de ter a responsabilidade de “desfazer a escuridão”, respeitando as diversidades, mas aspirando à realização da igualdade, buscando instrumentos para guiar os educandos por um caminho que possibilite a realização das potencialidades humanas e do ideal de uma sociedade mais justa e igualitária. 43 Referências bibliográficas ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando, introdução à filosofia. 2ª ed, São Paulo-SP, Editora Moderna LTDA,1993. CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Tradução de Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. _____. De Hitchcock a Greenaway pela história da Filosofia: novas reflexões sobre cinema e filosofia. São Paulo: Nankin, 2007. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo-SP: Editora Ática, 2002. CIVITA, Victor. Gênios da pintura. São Paul: Abril Cultural, 1973. CUMMING, Robert. Para entender a arte. São Paulo- SP: Editora Ática S. A., 1996. HEIJMANS, Pierre Marie. A arte como linguagem natural. Texto realizado pelo autor como professor visitante. Faculdade de Educação da UFMG. 2007. NIETZSCHE, Fiedrich W ilhelm, Ecce Homo. Coleção L&PM Pocket, vol.301. Porto Alegre- RS: L&PM Editores,2006. _____. Obras incompletas. São Ltda,1999(Coleção Os Pensadores). Paulo: Editora Nova Cultural SOARES, Rosemary Dore. Gramsci, o Estado e a escola . Editora UNIJUÍ, IjuíRS, 2000. Consulta eletrônica http://pt.wikipedia.or g/wiki/ Sandr o_Botticelli ( Acessado em 2007) http://pt.wikipedia.or g/wiki/categoria:hist ória_ da_ Bélgica (Acessado em 2007) http://www.universalrights.net/main/hist_f m.htm (Acessado em 22/03/2010) http://www.onu-brasil.org.br/documentos_dir eitoshumanos.php 22/03/2010) (Acessado em http://www.65anosdecinema.pro.br/1606A_EXCENTRICA_FAMILIA_DE_ANTONIA_( 1 995) (Acessado em junho 2010) 44 Anexos I Declaração dos Direitos Humanos Preâmbulo Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os todos gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum, Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão, Considerando ser essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações, Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades humanas fundamentais e a observância desses direitos e liberdades, 45 Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso, agora portanto, A Assembléia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição. Artigo I. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. Artigo II. 1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania. Artigo III. Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Artigo IV. Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas. Artigo V. Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. Artigo VI. Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei. Artigo VII. Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer 46 discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. Artigo VIII. Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei. Artigo IX. Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado. Artigo X. Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. Artigo XI. 1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. 2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso. Artigo XII. Ninguém será sujeito à interferência em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. Artigo XIII. 1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar. Artigo XIV. 1. Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países. 2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas. Artigo XV. 1. Todo homem tem direito a uma nacionalidade. 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade. Artigo XVI. 1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. 47 2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes. 3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado. Artigo XVII. 1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade. Artigo XVIII. Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular. Artigo XIX. Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. Artigo XX. 1. Todo ser humano tem direito à liberdade de reunião e associação pacífica. 2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação. Artigo XXI. 1. Todo ser humano tem o direito de fazer parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. 2. Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. 3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto. Artigo XXII. Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade. Artigo XXIII. 1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. 3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. 4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses. 48 Artigo XXIV. Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas. Artigo XXV. 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social. Artigo XXVI. 1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos. Artigo XXVII. 1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios. 2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor. Artigo XXVIII. Todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados. Artigo XXIX. 1. Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. 2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. 3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas. 49 Artigo XXX. Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos. II O Nascimento de Vênus é uma pintura de Sandro Botticelli. Atualmente, a obra está exposta na Galleria degli Uffizi, em Firenze (Florença), na Itália. A mesma foi pintada com uma mistura composta por clara de ovo, pigmentos e cola (têmpera), tem 1,72 metros de altura por 2,78 metros de largura. A pintura representa a deusa Vênus emergindo do mar como mulher adulta, conforme descrito na mitologia grega. Acredita-se que o pintor deste quadro tenha nascido no ano de 1445, pois, em 1447 seu pai, Mariano di Vanni Filipepi declara que seu filho Alessando tinha dois anos de idade. De acordo com Cumming (1996) Botticeli passou toda sua vida em Florença, conhecida por ser uma das maiores cidades com acervo do período renascentista. Segundo Cumming, a única viagem importante do pintor teria sido em 1481-82, quando este trabalhou na Capela Sistina. Segundo Civita (1973) o pintor tem uma série de pinturas com temas religiosos, incluindo-se entre elas Virgem com Menino e Oito Anjos, São Sebastião, Virgem de Romã, Natividade, Piedade, entre outros, além das obras de tema mitológico como Alegoria da Primavera, Marte e Vênus e O Nascimento de Vênus. Esta ultima obra retrata o mito do nascimento de Vênus, ou Afrodite, na mitologia grega. Segundo Cumming, em tal alegoria, Urano (o céu) e Gaia (a terra) se uniram para criar os primeiros seres humanos, os Titãs. Contudo, Chronos, ou Saturno (o Tempo), um dos filhos de Urano, castra seu pai e atira seus genitais ao mar. Assim, a espuma que é produzida gera a Deusa Vênus, representante do amor puro. 50 O Nascimento de Vênus, Sandro Botti celli, 1483. A simbologia do quadro é composta por quatro principais figuras: Vênus, ao centro do quadro, Zéfiro e Clóris à esquerda e uma Hora à direita de Vênus. Vênus está disposta numa posição casta _ semelhante a da escultura em mármore, “A Vênus de Médici”, que integrava a coleção dessa família _ como figura central, simbolizando o amor puro. À esquerda, Zéfiro, o Vento Oeste, filho de Aurora que é irmã de Apolo e deusa do amanhecer, sopra Vênus até a praia. Note-se que Zéfiro está abraçado a Clóris, ninfa que foi raptada por este deus e ao se apaixonar por ele foi elevada ao nível de deusa, tornandose Flora, regente das flores. Zéfiro e Clóris trazem consigo rosas, que segundo a mitologia, foram criadas no mesmo momento que Vênus, sendo 51 assim um símbolo do amor. À direita de Vênus, na praia, uma Hora, espera Vênus com seu manto primaveril. As Horas eram espíritos que personificavam as estações do ano, assim haveria mais três delas. 52