Por uma nova ordem

Transcrição

Por uma nova ordem
REDISCOVER ROME
CAIRO
EM SENTIDO HORÁRIO,
narguilé para degustar
tabacos aromáticos; nas
pirâmides de Giza, pouco
serviço para os camelos;
edições do Alcorão na
mesquita de Amr; e sítio
arqueológico de Imhotep
e Saqqara
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POR UMA
NOVA ORDEM
Na mira (com o perdão do trocadilho) da
imprensa internacional, o Egito depois da
Primavera Árabe pulsa de outro jeito. Além de
mudanças previsíveis, a revolucão propõe um
Cairo pós-Mubarak surpreendente
TEXTO JULIO CRUZ NETO | FOTOS ROBERTO SEBA
Enquanto os jovens
fazem a revolução, os
mais velhos apenas
observam e lamentam
a disparada no preço
dos alimentos
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CAIRO
POR TRÁS DA
DESORDEM,
A CHANCE DE
CONHECER O
NOVO CAIRO
ACIMA, barraca vende souvenires na Praça
Tahrir, novo point do Cairo. À ESQUERDA,
pirâmide de Quéops, a maior de todas,
que ainda mantém parte da cobertura
original no topo, já que o restante
desgastou-se com o tempo
M
agdy Rachad é um
homem
amargurado. Fuma
como uma
chaminé, tosse que
é uma beleza.
Mora em um país
onde sopram ventos de democracia e
mudança, mas isso não chega a
entusiasmá-lo, ainda que simpatize com a
ideia. Afinal, o trabalho anda escasso e a
conta do supermercado, cara como nunca.
Magdy vive do turismo. Cumpre seu
dever com simpatia, competência e
orgulho, que justifica facilmente com
respostas na ponta da língua: nasceu no
berço da civilização, uma nação
importante na saga bíblica com as mesmas
fronteiras há 5 mil anos, que lidera os
países árabes e cujos acontecimentos
repercutem mundo afora. Depois do
expediente, no entanto, deixa
transparecer que algo está fora da ordem.
O brilho some dos olhos, um tanto
acanhados em meio às olheiras.
Por trás dessa aparente desordem que
Magdy sente, esconde-se uma ótima
oportunidade de conhecer uma das
cidades mais fascinantes do Oriente
Médio, e de todo o planeta, de uma
maneira mais econômica. Com a
revolução iniciada em janeiro de 2011,
os turistas sumiram e o Cairo ficou
barato. Os preços das diárias dos hotéis
caíram, em média, 50%. Um viajante em
busca de luxo total hospeda-se no Four
Seasons, por exemplo, em um quarto
alto com vista para o Rio Nilo, com um
café da manhã de tirar o chapéu e mimos
diversos, por 120 dólares. Por 30 dólares,
pode dormir no Barceló, um quatro
estrelas mais do que honesto.
O mesmo patamar de deflação ocorreu
nos restaurantes ditos turísticos, nos
quais bufês oferecem menus neutros, com
sopa, salada, macarrão, arroz e mistura,
mais as tradicionais pastas de berinjela e
grão-de-bico, mas sem temperos que
possam desarranjar o resto do dia, por
10 dólares, sobremesa incluída.
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A quantidade de turistas, que beirou
os 15 milhões em 2010 no país, não
chegou a 2 milhões em 2011, segundo
Mohammed Mossad, dono da agência
Exotic, cujo faturamento caiu 35%.
“A expectativa é de a situação normalizar
ainda este ano”, diz o empresário.
A conta dele é a seguinte: após as eleições
presidenciais, marcadas para o fim de
maio, a situação política começa a se
normalizar e as pessoas voltam a
programar férias no país das pirâmides, o
que leva alguns meses para se
concretizar. “Ninguém viaja para o Egito
de um dia para o outro”, lembra Mossad.
Até lá, os preços devem continuar
convidativos. E os pontos turísticos,
menos concorridos. Os valores dos
ingressos não foram reduzidos, mas nas
famosas pirâmides de Giza, por exemplo,
visita obrigatória mesmo para os viajantes
mais alternativos, havia menos gente
que de costume quando estivemos lá,
no início deste ano.
O que é bom por um lado, também tem
aspectos negativos por outro, pois os
vendedores ambulantes de souvenires e
passeios de camelo, já petulantes por
natureza, ficaram ainda mais
inconvenientes. “Viramos boi de piranha”,
constata o turista Ricardo Feres. “Tem mais
vendedor que turista”, completa Magdy.
Ainda assim, a revolução trouxe à tona
lugares triviais que antes não chamavam a
atenção dos estrangeiros, como a praça
Tahrir, palco das manifestações que
derrubaram o governo de Hosni Mubarak.
É uma praça central e movimentada,
sem nada particularmente interessante,
mas que virou point e onde se instalaram
vendedores de comida e de lembranças
em geral. Há barracas de grupos exigindo
que os militares deixem o poder, além de
cartazes com fotos de manifestantes
mortos e faixas de protesto em locais
próximos à praça, como a estátua do
economista Talaat Harb, fundador do
Banco Misr, o primeiro do Egito.
Sítio de Imhotep e Saqqara, onde está a mais antiga das pirâmides (ao fundo, em manutenção).
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DEPOIS DAS
ELEIÇÕES,
A SITUAÇÃO
POLÍTICA
COMEÇA A SE
NORMALIZAR
À DIREITA, EM SENTIDO HORÁRIO,
Mohamed Mahmoud, na mesquita de Amr,
com a marca na testa que identifica os mais
fiéis; fim de tarde na metrópole; garçom do
Café Riche, um dos mais tradicionais do
Cairo; mulher usa o véu para segurar o
celular; cena corriqueira de rua; protesto
dos revolucionários na estátua do
economista Talaat Harb
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CAIRO
O prédio do partido governista, situado
ao lado do Museu do Cairo e transformado
em um imenso bloco chamuscado após ser
incendiado durante os protestos, também
virou alvo de câmeras e filmadoras. Apesar
das referências, digamos, belicistas, não
parece haver ameaça ao visitante. A vida
segue normalmente. A polícia,
desmoralizada perante a população por ter
reprimido protestos – e também por
atitudes corruptas, como cobrar propina de
até 3 dólares para deixar motoristas
estacionarem na rua –, cruzou os braços
durante praticamente 2011 inteiro. Mesmo
assim, nada particularmente caótico foi
registrado, segundo nos informaram.
Não estamos afirmando que é 100%
seguro visitar o Cairo hoje, pois os ânimos
ainda estão acirrados e novas insurreições
podem ocorrer, especialmente se os
militares hesitarem em largar o osso após a
eleição. Mas, mesmo nesse caso, evitar a
praça Tahrir e as multidões deve ser
suficiente para fazer uma viagem sem
sustos – existe mais chance de acontecer
algum inconveniente na Península do
Sinai, desértica, isolada e famosa pelos
balneários no Mar Vermelho e pelos centros
de peregrinação religiosa, como o mosteiro
de Santa Catarina (neste ano, já foram
registrados três sequestros-relâmpago, o
último deles envolvendo duas brasileiras).
No Cairo, os paradoxos saltam à vista,
ao menos para quem não se intimida com
o caos da metrópole barulhenta
e empoeirada, predominantemente cinza, e
consegue observar seus segredos e admirar
seu charme. A crise política em curso só
reforçou essas contradições.
O povo que se articulou para derrubar a
ditadura de Mubarak, com protestos
bastante organizados, com hora para
começar a terminar, é o mesmo que joga
lixo na rua e nos rios; dirige de tal forma
que faz o trânsito de São Paulo e do Rio de
Janeiro parecer um aconchego; permite
que o tuc-tuc, espécie de mototáxi para
dois passageiros à la indiana, seja pilotado
muitas vezes por garotos ainda
adolescentes; aceita propina de quem
deseja fotografar os sítios arqueológicos,
onde isso é proibido; reforma paredes
desses mesmos lugares com rejunte e faca
de cozinha, como quem tapa buraco
no quintal de casa – presenciamos
esse inusitado trabalho de manutenção,
mas ainda não tínhamos tido a ideia de
molhar a mão do fiscal.
Mulheres, algumas, claro, cobrem a
cabeça com lenço, respeitando o pudor
imposto pela religião, mas destacam as
linhas do corpo com calças apertadas e
roupas de grife. Muitas saem de casa
comportadas, para fazer média com os pais,
e se trocam no táxi para fazer bonito na
balada. O lenço, aliás, adquire várias
utilidades, como prender o celular para a
pessoa poder conversar sem usar as mãos.
Por outro lado, boa parte das casas não é
pintada por fora, pois está sempre em
OS PARADOXOS
SALTAM À VISTA,
MAS É POSSÍVEL
ADMIRAR OS
SEGREDOS DA
METRÓPOLE
ACIMA, tradições marcam a cultura e
a arquitetura do Cairo. À ESQUERDA,
estátua não concluída de Ramsés II
no sítio arqueológico de Memphis
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OS EGÍPCIOS
SÃO POUCO
AMBICIOSOS.
NÃO FALTANDO
COMIDA,
TUDO BEM
À ESQUERDA, EM SENTIDO HORÁRIO,
detalhe nas ruas do Cairo; habitante
e desenhos típicos da região; pinturas
rupestres no sítio de Imhotep e Saqqara;
e fiel lendo o Alcorão. À DIREITA, homem
dançando no barco-restaurante no Nilo
reforma, ganhando andar em cima de andar
para os filhos morarem próximos dos pais.
Os homens esbanjam simpatia longe das
atrações turísticas, sorrindo, pedindo para
ser fotografados sem reivindicar nada em
troca, interagindo com os turistas em árabe
mesmo, improvisando algumas palavras em
inglês, outras em mímica. Mas quando veem
a possibilidade de ganhar algum trocado,
não hesitam em levar vantagem. Garçons
alegam não ter troco e mais um arsenal de
desculpas até vencer pelo cansaço e
embolsar alguma gorjeta. Inclusive em
barcos-restaurante de luxo no Nilo.
Tradição versus ousadia, atraso versus
modernidade. Um pouco de estatística
talvez ajude a explicar tantos contrastes.
O mesmo país que tem quatro prêmios
Nobel, um deles o escritor Naguib
Mahfouz, primeiro em língua árabe a obter
tal distinção, em 1988, amarga uma taxa
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de analfabetismo perto dos 40%. É o
dobro do Maranhão. O Brasil, que nunca
levou o Nobel, tem 9% de analfabetos.
A estudante de Comunicação Menna
Farid diz amar a riqueza histórica do Egito
e se orgulhar da revolução em curso, porém
faz uma ressalva: “Tiramos o Mubarak, mas
as pessoas precisam mudar internamente,
ser mais limpas, felizes, sorridentes”.
O guia turístico Magdy Rachad, que já é
um senhor de idade, é mais complacente
com o povo egípcio, mesmo com aqueles
que enganam os turistas. Segundo ele,
muitos garçons vivem apenas de gorjeta,
pois não recebem salário. São vítimas da
ganância dos empresários, que se
aproveitam da taxa de desemprego de 22%,
ante 6% no Brasil, para explorá-los. “Tenho
pena das pessoas que têm quatro, cinco
bocas para alimentar”, diz, pensativo,
Magdy. A fome, no entender dele, foi a
causa da revolução, mais do que qualquer
ímpeto democrático. “Os egípcios são
pouco ambiciosos. Não faltando comida,
tudo bem.” A inflação mundial dos
alimentos, iniciada em 2008, elevou os
preços a um patamar que muitos deles
não podem pagar. “Eu mesmo passo
dificuldade hoje em dia. Uma compra que
eu fazia por 600 libras egípcias (cerca de
100 dólares) hoje custa 2 mil (perto de 330
dólares)”, compara o guia, que afirma ter
trabalhado apenas 10% do normal em 2011.
O Egito, cuja economia é baseada em
agricultura, petróleo, remessas, taxas do
Canal de Suez e, acima de tudo, turismo,
tem um histórico de crescimento
significativo e sustentado. Mas segundo o
Fundo Monetário Internacional (FMI), as
estimativas para 2011 e 2012 são de 1,2%
e 1,8%, respectivamente, com inflação de
11,1% e 11,3%. Nesse cenário, é natural
apelar para a generosidade dos
estrangeiros. E dos brasileiros em
particular, que formam um dos grupos
mais numerosos de visitantes. Não há
estatísticas confiáveis sobre isso no Egito,
mas é o que dizem pessoas que trabalham
nesse setor.
– One dollar?, pede o ambulante no sítio
arqueológico de Saqqara.
Ignorado pelo visitante, ele insiste.
– Maybe later?
Mais tarde, talvez?, resigna-se o pobre
coitado, para o qual qualquer moedinha
é lucro. Já os ilustrados, que não precisam
pedir esmolas e podem se dedicar a
estudar e imaginar um país de fato justo,
exigem mais, elaboram melhor suas
expectativas. É o caso do jovem Mohamed
Abdel Gafar, que vai às manifestações na
praça Tahrir, arrisca a vida por um país
igual e democrático e resume seus anseios
na seguinte frase: “Não queremos mais
faraós no Egito, nunca mais”. LP
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