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Match Point (2006) de Woody Allen
Os infortúnios da virtude sob as lentes do “pessimista alegre”.
Guilherme Massara Rocha
Psicanalista, prof. Departamento de Psicologia da UFMG
“Prefiro ter sorte do que ser bom”. Esse adágio, enunciado por Chris, o professor de
tênis, na seqüência inicial de Match Point, fornece a tônica da tragédia contemporânea
que W. Allen encena nesse inquietante thriller londrino. Quantos tenistas, poder-se-ia de
saída indagar, endossariam esse adágio? Chris, atormentado pelo fantasma de jamais
conseguir ser suficientemente bom, decide valer-se da sorte. Mas sem que isso signifique
tratar-se de alguém que deixa a vida lhe levar. Chris, ao contrário, assina os rumos de seu
devir, mesmo que ali se façam reconhecer os avatares da fatalidade trágica.
O crítico Peter Travers, da Rolling Stone Magazine, assevera que Match Point
engendra reflexões oriundas de uma atmosfera em que “a sorte desempenha papel maior
do que aquele que se espera de um Deus ausente” . Mas, talvez ao contrário do que pensa
Travers, a figura de um Outro não seja lá assim tão ausente. Trata-se, afinal, de uma
tragédia. Mas observe-se, primeiramente, que a sequência inicial com a bolinha e a rede
de tênis – forte candidata ao grupo das mais belas metáforas da história do cinema –
antecipa e dá visibilidade ao fenômeno da contingência, que Allen persegue de forma
emblemática nessa obra. A contingência, mais até do aquilo que se possa compreender
pela significação da palavra sorte, é o que o diretor pretende inserir no seio de uma
experiência trágica. Match Point é um filme sobre a contingência. Mais que isso, uma
narrativa que dá a ver as condições em que uma necessidade trágica – um “destino
funesto”, como diria E. Allan Poe – pode ser subitamente interceptada por algo que não se
poderia calcular. Allen nos dá a ver o impossível.
Woody Allen pretendeu que esse filme fosse menos “doutrinário e intelectual”, e que
explorasse mais as emoções e paixões de seus personagens. O tratamento dado às paixões
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é de fato notório, mesmo que o caráter intelectual do filme não tenha aí um lugar menor.
Ao contrário, o pensamento do qual a obra se faz veículo vibra junto com as paixões ali
encenadas. Essa amálgama – trágica – pode ser discernida a partir das manobras de Chris.
Um jovem leitor de Dostoievski, que se auto-intitula “antiquado”, “naturalmente
competitivo” e “auto-didata”. Um obsessivo, assolado pelo que há de irreconciliável entre
o fascínio da ascensão social, do prestígio e do poder e o descaminho que sua paixão
avassaladora por Nola impõe. Chris é a encarnação da própria figura do moralista. Uma
personalidade irremediavelmente oprimida pela clivagem entre a submissão ao Ideal e os
apelos transgressores consignados pela experiência do desejo.
A sorte lhe coloca diante do fascínio oferecido pelo ingresso na alta aristocracia
londrina. A conveniência de um casamento é o passaporte que carimba sua entrada num
universo frívolo, confortável e no interior do qual não há de faltar objeto qualquer que a
sanha de consumo possa ambicionar. Chris irá em breve assumir o lugar do sogro na
presidência de seus empreendimentos. E seu fascínio também ali se faz entrever, pela
sorte de suceder, no trono, àquele que lhe dispensa os cuidados de um Pai. Deus pode,
efetivamente, estar ausente quando aquilo de que se trata é fazer de si próprio um deus.
Um deus, contudo, entediado pelo curso irreparável e absolutamente previsível dos
acontecimentos que sucedem às suas decisões. Um deus tornado mortal pelo tédio. Mas
há ali uma exceção. Nola, uma estrangeira, que namora o cunhado de Chris e que, ao vêlo pela primeira vez, indaga, desafiadora, “quem é minha próxima vítima?”. E eis que a
sorte lhe reaparece, irresistivelmente sedutora, segurando, não por acaso, uma pequenina
raquete de tênis de mesa.
Por consistir na cisão entre o desejo e o Ideal, o drama do moralista tece a trama de
Match Point e faz figurar a tragédia a que sucumbe Chris em seus esforços de fazerem
coexistirem esses irreconciliáveis. Reiterando ad infinitum a Nola seus planos de ficar
com ela, Chris não escapa, contudo, do adiamento inexoravelmente decorrente do cogito
obsessivo: penso, logo desisto. A angústia que sucede a esse aprisionamento fantasmático
– pois o moralista não pode decepcionar o Outro – fertiliza, com o decorrer do tempo, o
solo do desespero. Atormentado pela vacilação que o desejo introduz em suas
identificações, Chris parece incapaz de olhar nos olhos da esposa, Chloe, quando diz
sentir-se “terrivelmente culpado” em não fazê-la feliz.
Noutra seqüência emblemática, o protagonista encontra um antigo conhecido e lhe
confidencia seu drama. A certa altura do diálogo, Chris se indaga sobre a diferença entre o
amor e a luxúria, tragicamente consciente de sua divisão. O amigo lhe sentencia: “você
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não ama Nola”, com isso ensejando indicar-lhe que ele não parece ser capaz de sustentar
as rupturas que o fato de desejá-la lhe exige. Mas se Chris, como sugere o amigo, não ama
a amante, tampouco ama a esposa, cujo acesso desejante lhe parece interditado. Incapaz
de desejá-la, resta-lhe fantasiar um amor cuja realidade é nutrida mais por aquilo que essa
mulher lhe descortina do que por sua presença propriamente dita. Aqui a culpa se duplica,
na medida em que todos os caminhos se revelam impossíveis.
E eis que o leitor de Dostoievski se vê às voltas com uma manobra curiosa, em que o
castigo antecede ao crime. Manobra elucidada por um outro leitor célebre do romancista
russo, Sigmund Freud. Em Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico,
Freud indica que a preexistência de um sentimento de culpa é um elemento decisivo no
desencadeamento de um impulso criminoso (FREUD, ESB XIV, p. 375). Nesse sentido
ele inverte os termos da opinião comum, que supõe que a culpa é um sentimento que
decorre de uma transgressão, de um crime, por exemplo. Aos olhos de Freud, ao
contrário, não são poucas as situações em que um terrível sentimento de culpa –
parcialmente inconsciente e ligado a complexos recalcados – só pode ser apaziguado
quando se estabelece sua ancoragem numa ação específica, expressa pela figura de um
crime. Aqui, efetivamente, o castigo – o sofrimento neurótico – antecede ao crime, esse
que vem para atenuar, sob a forma de uma realidade consumada, a força da imperiosidade
fantasmática que a culpa enseja. Freud sabia bem que os neuróticos são atormentados,
sobretudo, pelos pecados que não cometeram. Woody Allen, leitor de Dostoievski e de
Freud, faz figurar o crime que, na tragédia, decorre menos da ação das contingências do
que da necessidade imposta pela submissão de Chris às monolíticas convicções das quais
ele não se separa.
Allen revela novamente sua sabedoria trágica, no momento em que filma a decisão do
moralista de aniquilar a causa desejante que promove as rachaduras em sua fortaleza
egóica. Há uma cena, que se passa no interior da enorme galeria de arte Tate Modern em
Londres, em que se torna inequívoca para o espectador a decisão de Chris em assassinar
Nola. A câmera toma o semblante visivelmente atormentado de Chris em primeiro plano.
Ao fundo, distingue-se uma pintura. Um indivíduo é retratado ladeado por sua própria
imagem vazia, da qual só resta a vestimenta. Chris parece ali, ao decidir eliminar Nola de
sua vida, conceder a essa imagem vazia de subjetividade aquilo que ela lhe exige. Allen
retrata ali, nessa tomada, o moralista em toda a sua plenitude. Alguém reduzido à pura
condição daquilo que sustenta para o Outro. Um ser esvaziado de subjetividade e
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representado pelas vestes, por uma pura ação do semblant. A tragédia aqui assume
tonalidades shakesperianas. Para não ceder do cetro e da coroa, o assassinato.
Após o crime, e ao tentar livrar-se das provas que o poderiam incriminar, advém a
fantástica re-introdução da seqüência inicial, em que a balaustrada do Tâmisa e a aliança
de uma das vítimas materializam o instante em que, como na cena do lance de tênis, o
acaso intervém. Ao fundo, uma ária entoada por Enrico Caruso, consigna à cena a
plenitude trágica que lhe própria. Uma primeira intervenção da sorte sugere que o
criminoso não se livrará do castigo. Ao final do filme, outro golpe do indeterminado faz
reverter novamente o curso dos acontecimentos. O roteiro de Allen dota as contingências
de uma aura subversiva, convencendo o espectador que a fatalidade trágica não se curva
senão a incidências dessa natureza. Eis a pálida esperança que sua ética deixa entrever.
Mas as seqüências finais de Match Point não serão dedicadas a outra coisa que a
reafirmação de uma sentença, que o fato de não ser pronunciada não torna menos visível:
de nada valem as contingências na ausência de um sujeito que saiba delas servir-se.
Diante da Lei, Chris mal pode disfarçar a culpa que lhe poderia denunciar. O delegado
ironicamente lhe apazigua: “Investigamos um crime, não fazemos juízos morais”. Os
fantasmas das vítimas – Nola e uma velha senhora, a vizinha que a sorte presenteara com
o dissabor de estar na hora errada, no lugar errado – retornam, algozes, indagando o
criminoso quanto ao sentido de seus atos. Chris pondera: “seguir adiante, apesar da culpa,
ou ser soterrado por ela”. A desconfortável proximidade entre a neurose e a perversão é
aqui sugerida. Para não se deixar soterrar pela culpa, o sujeito irá se convencer maquiavelicamente, diga-se de passagem - do caráter instrumental de seus atos, solidários
de uma decisão em que, literalmente, os fins justificaram os meios. Mas se a perversão é
aqui explícita, eis a neurose a lhe oferecer seu “negativo” enraizamento, como atesta
Freud. A confissão de Chris aos fantasmas é surpreendente: ter sido preso daria lugar à
chance de realizar um sentido, senão para o crime, a essa altura para a própria existência.
Ter sido preso traria a lume o móbil recôndito desse crime passional, o desejo. Esse que –
mais radicalmente do que qualquer castigo – provê consistência a algum sentido para a
experiência humana. Chris é, como Hamlet, um morto-vivo. Goza da liberdade, mas não
pode dela servir-se. Allen torna explícito que o fato humano de deixar-se causar depende
de uma recusa aos ideais imaginários, supõe uma destituição do Outro e uma extração do
gozo moralista relativo ao ideal do sujeito virtuoso. Chris, após o crime, talvez só
encontrasse seu bem atrás das grades, consciente de ele não se enraíza no “bem-estar”
visado por suas decisões.
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No apogeu do drama da tragédia, Allen põe nos lábios de Chris a voz de Sófocles:
“nunca ter nascido é a maior dádiva de todas”. A realização incondicional do desejo do
Outro é a pior das tragédias. Revela, do homem, sua submissão arcaica à lei que lhe
confere acesso ao gozo, com a condição de interditar-lhe o direito à experiência do desejo.
Não por acaso, o filme termina com o nascimento do herdeiro, o filho de Chris. Para o
qual a família ergue um brinde que se confunde com uma saudação fatal: “para Terence, e
tudo que estiver em seu caminho”. Cai o pano.
F. Truffaut afirmara, a respeito de W. Allen, tratar-se de um “pessimista alegre”1. A
expressão não poderia ter sido melhor escolhida. Allen, de fato, é alguém que, em obras
como Match Point, não priva o espectador, como sugere Douglas Garcia Alves Jr., de
uma versão paródica do trágico, de uma “repetição que desarma por dentro”2. A fatalidade
trágica, suas paixões mortíferas e seu espectro destruidor não são, entretanto, menos
importantes sob as lentes de W. Allen do que as contingências, os verdadeiros objetos de
seus elogios. Se Chris é o herói que sucumbe à fatalidade trágica, não se pode, contudo,
esquecer dos personagens – protagonizados pelo próprio Allen em Poderosa Afrodite ou
Desconstruindo Harry – que, ao servirem-se de sua própria fragilidade, dão consistência à
expressão de uma felicidade que, insiste Alves Jr., não é “muito afim aos livros de autoajuda”3. Razão pela qual se faz aqui uníssono à afirmação desse autor de que “toda
felicidade é trágica”4, pois solidária de uma decisão do sujeito em servir-se do
imprevisível, do desejo, como causa para um destino algo diverso daquele no interior do
qual ele não desempenharia, para concluir, senão papéis. Allen quando, alem de dirigir,
protagoniza seus filmes, sugere retratar a si mesmo. Talvez para deixar entrever que o
verdadeiro desafio do ator não é outro, senão, deixar de sê-lo.
1
TRUFFAUT, O prazer dos olhos, p. 63.
ALVES JR. O trágico, a felicidade e a expressão, p. 121.
3
Ibid, p. 122.
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Idem ibid.
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