Capitulos vol-02.p65

Transcrição

Capitulos vol-02.p65
Capítulo LXXXVII
O julgamento
Às oito horas da manhã seguinte Albert despencou na casa de Beauchamp,
como um raio. O criado já fora prevenido da sua chegada, e introduziu Morcef no
quarto de seu patrão, que acabara de sair do banho.
E então! Exclamou Albert.
E então, meu pobre amigo, respondeu o jornalista, eu o aguardava.
Aqui estou. Nem preciso dizer que você, Beauchamp, é um amigo por demais
leal para ter falado sobre o assunto com qualquer outra pessoa; além disso, o recado
que você mandou demonstra a sua amizade e afeição. Assim, não percamos tempo
em preâmbulos, e diga, tem idéia de onde partiu este golpe?
Eu contarei tudo logo em seguida.
Sim, mas antes, meu amigo, antes você deve me contar, em todos os seus
detalhes, a história desta abominável traição.
E Beauchamp contou ao jovem homem, esmagado pela vergonha e dor, os
fatos que iremos narrar, em toda a sua simplicidade.
Na manhã do dia anterior, o artigo aparecera em outro jornal, além do
Imparcial, e o que denotava maior gravidade quanto ao assunto, num jornal muito
reputado por ser governista. Beauchamp tomava o café da manhã, quando a
pequena nota saltou diante de seus olhos; mandou chamar um coche de aluguel,
sem terminar o café, e correu à redação do jornal.
Embora professando sentimentos políticos completamente opostos aos do
gerente do jornal acusador, Beauchamp era seu amigo íntimo, o que algumas vezes
acontece, quando não freqüentemente.
Ao chegar na redação, o gerente tinha em mãos o próprio jornal do dia, e
parecia saborear uma notícia a respeito do açúcar de beterraba, que provavelmente
fora escrita por ele.
Ah! Que ótimo! Exclamou Beauchamp, já que você está com o seu jornal na
mão, não tenho necessidade de lhe dizer o que me traz aqui.
Por acaso o amigo seria aficionado do açúcar?
Indagou o gerente, sorrindo.
Não, respondeu Beauchamp, estou completamente por fora deste assunto;
acontece que vim para tratar de outra coisa.
E por que você veio?
Para falar a respeito da notícia sobre o Morcef.
Ah! Sim, realmente, não é mesmo curioso?
Tão curioso que você se aproxima da difamação, ao que me parece, e arrisca
sofrer um processo muito custoso.
De maneira alguma, respondeu o gerente; recebemos, junto com a nota, todos
os documentos comprovando o fato, e estamos perfeitamente convencidos de
que o senhor Morcef ficará muito quietinho; de qualquer maneira, acho que
prestamos um serviço ao país demonstrando as mazelas indignas de uma pessoa
em tão alto escalão.
Beauchamp ficou estarrecido.
Mas...quem informou o seu jornal de maneira tão completa? Indagou ele, isto
porque o meu jornal, após ter noticiado o assunto, foi forçado a manter silêncio,
em virtude da falta de provas, e no entanto, como você sabe, teríamos muito
maior interesse em revelar tal segredo; afinal, o senhor Morcef é um par de França,
e somos da oposição.
Oh! Meu Deus! É tudo muito simples; não corremos atrás do escândalo, ele
veio parar em nosso colo. Um homem, recém chegado de Janina, trouxe um
formidável dossiê, e como hesitássemos em dar a notícia, ele anunciou que a
notícia apareceria em outro jornal. Por minha fé, Beauchamp, você sabe quanto
a notícia é quente, importante, e não quisemos perder a oportunidade; é uma
verdadeira bomba, repercutirá em toda a Europa.
Beauchamp compreendeu que apenas poderia abaixar a cabeça, e saiu,
desesperado para encontrar quem levasse a notícia a Albert.
Todavia, o que ele não pudera escrever a Albert, porque as coisas a serem
narradas agora aconteceram posteriormente à partida do mensageiro, foi que, no
mesmo dia, na Câmara dos Pares, uma enorme agitação se manifestara, reinando
nos grupos, ordinariamente tão calmos da alta assembléia. Quase todos chegaram
antes da hora costumeira, aguardando o sinistro desenvolvimento que iria ocupar
a atenção pública a respeito de um dos mais ilustres e conhecidos membros da
corporação política.
Eram leituras em voz baixa da notícia, comentários e troca de rememorações,
que reavivavam ainda mais os fatos. O conde Morcef não era amado pelos seus
colegas. Como todos os novatos, tinha sido forçado a observar um excesso de
orgulho para se manter em pé de igualdade com os demais. Os grandes aristocratas
riam dele por trás; os talentosos o ignoravam; os cobertos de glórias instintivamente
o repudiavam. Assim, o conde estava na marca infamante da vitima a ser
sacrificada. Uma vez indicado pelo dedo do Senhor para o sacrifício, ninguém se
prontificaria a ajuda-lo.
Apenas o conde Morcef não sabia de nada. Ele não recebia em casa o jornal
onde fôra publicada a notícia difamatória, passara a manhã escrevendo algumas
cartas e depois foi dar um passeio a cavalo.
Portanto, chegou em sua hora costumeira, cabeça erguida, olhar orgulhoso,
fronte insolente; desceu da carruagem, passou pelos corredores e entrou no salão,
sem notar as hesitações dos serviçais e os curtos cumprimentos dos seus colegas.
Quando Morcef entrou, a sessão fôra aberta há mais de meia hora.
O conde, ignorando, como dissemos, tudo o que acontecera, nada mudara
em sua atitude; seu ar altaneiro e sua atitude desdenhosa pareceram a todos mais
orgulhosa do que de costume, e sua presença nesta ocasião pareceu tão agressiva
a esta assembléia ciumenta de sua honra, que todos viram nisto um inconveniente,
alguns uma bravata, e outros um insulto.
Estava evidente que a assembléia inteira ardia de desejo de discutir o assunto
abertamente.
Via-se o jornal acusador correndo de mão e mão; mas, como de costume,
cada um hesitava em tomar para si a responsabilidade do ataque inicial. Finalmente,
um dos honoráveis pares, inimigo declarado do conde, subiu à tribuna com uma
solenidade anunciadora de que o momento aguardado chegara.
O silêncio era assustador; apenas Morcef ignorava a causa da profunda atenção
prestada desta vez a um orador que jamais tivera a complacência dos outros políticos
presentes.
O conde deixou passar tranqüilamente o preâmbulo no qual o orador declarava
que iria falar sobre um assunto tão grave, tão sagrado, tão vital para a Câmara,
reclamando a total atenção de seus colegas.
Diante das primeiras palavras sobre Janina e o coronel Fernand, o conde de
Morcef empalideceu tão horrivelmente que um frêmito percorreu a assembléia,
todos os olhos convergindo para ele.
As feridas morais têm isto de particular: escondem-se, mas não se fecham
jamais; sempre dolorosas, sempre prontas a sangrar quando são tocadas, elas
permanecem vivas e pulsantes no coração.
A leitura da notícia terminou no meio deste mesmo silêncio, perturbado
apenas por algumas expressões horrorizadas, que cessaram quando o orador pareceu
disposto a continuar expondo seus motivos, seus escrúpulos, e o quanto tudo era
difícil de tratar; afinal, era a honra do senhor Morcef, era a honra da Câmara dos
Pares inteira que ele pretendia defender ao provocar um debate atacando questões
pessoais, sempre tão delicadas. Finalmente, concluiu pedindo uma investigação
rápida, para evitar que o tempo tornasse o assunto ainda mais grave, acabando
com a calúnia e restabelecendo a honra do senhor Morcef, na posição que a opinião
pública tinha dele há tanto tempo.
Morcef ficou tão acabrunhado, tão trêmulo diante da imensidão inesperada
desta calamidade, que apenas conseguiu balbuciar algumas palavras, fitando seus
pares com olhos esbugalhados. Esta timidez, que bem poderia ser confundida com
o espanto da inocência, mais do que com a vergonha do culpado, amealhou alguma
simpatia. Os homens verdadeiramente generosos sempre estão prontos a se tornar
piedosos quando a infelicidade de seu inimigo ultrapassa os limites de seu ódio.
O presidente da assembléia colocou o assunto em votação, e decidiu-se que
haveria uma investigação.
Indagaram ao conde quanto tempo necessitaria para preparar sua defesa.
A coragem voltara a Morcef desde que sentira o golpe terrível.
Senhores pares, disse ele, não é com o tempo que se afasta um ataque como
este, dirigido contra a minha pessoa por inimigos desconhecidos, escondidos com
toda a certeza na sombra da covardia; é na hora, é com um tiro de pistola que
devo responder a um golpe tão violento; que me seja permitido fazer isto, ao invés
de preparar uma defesa, para que eu possa provar aos meus colegas que sou digno
de estar em sua companhia.
Estas palavras deram uma impressão favorável ao acusado.
Assim, continuou ele, peço que a investigação seja a mais rápida possível, eu
mesmo fornecerei à Câmara todos os documentos necessários para sua rápida conclusão.
E quantos dias o senhor requer? Indagou o presidente.
Coloco-me, desde hoje, à disposição da Câmara, respondeu o conde.
O presidente agitou a sineta, indagando:
A Câmara concorda que esta investigação comece ainda hoje?
Sim! Foi a resposta unânime da assembléia.
Uma comissão de doze membros foi nomeada para examinar os documentos
a serem fornecidos por Morcef. A hora da primeira sessão desta comissão foi fixada
para as oito da noite, no salão anexo à Câmara. Se mais sessões fossem necessárias,
elas teriam lugar na mesma hora e local.
Tomada esta decisão, Morcef pediu licença para se retirar; ele necessitava
juntar as peças e documentos guardados desde longa data para fazer frente à presente
tempestade, prevista pelo seu cauteloso e indomável caráter.
Beauchamp contou tudo isto ao amigo, em detalhes; apenas a sua narração
teve sobre a nossa a vantagem da animação das coisas vivas, em relação à frieza
das coisas mortas.
Albert escutou-o, tremendo, tanto de esperança quanto de cólera, e algumas
vezes de vergonha; porque, pela confidência de Beauchamp, ele sabia que seu pai
era culpado, e indagava a si mesmo, porque sendo culpado, como poderia provar
sua inocência.
Chegado ao ponto onde estamos, o jornalista deteve-se.
Em seguida? Indagou Albert.
Em seguida? Repetiu Beauchamp, não entendendo a pergunta.
Sim, em seguida!
Meu amigo, estas palavras me arrastam para uma horrível necessidade. Quer
mesmo saber a seqüência dos acontecimentos?
É absolutamente necessário que eu saiba, meu amigo, prefiro ouvir de sua
boca do que de qualquer outra pessoa.
Tudo bem! Respondeu Beauchamp, prepare sua coragem, Albert, você nunca
precisou tanto dela!
Albert passou a mão pelo rosto, como que tentando se assegurar quanto à sua
coragem, como um homem preparando-se para defender sua vida experimenta seu
escudo, e afia a sua espada. Sentiu-se forte, pois achou que sua febre era a sua coragem.
Vamos, conte tudo! Pediu ele.
A noite chegou, atendeu Beauchamp. Toda Paris estava à espera do
acontecimento. Muitos afirmavam que seu pai não deveria comparecer,
desdenhando da acusação; outros afirmavam que ele não se apresentaria; alguns
chegaram a afirmar tê-lo visto partir para Bruxelas, outros chegando ao cúmulo
de irem até a policia para saber se era verdadeiro o boato de sua fuga.
Garanto-lhe que fiz todas as loucuras do mundo, continuou o jornalista, para
conseguir com um dos membros da comissão um lugar no salão de audiências. Às
sete horas, meu amigo veio me pegar em casa, antes dos outros chegarem para a
sessão, recomendou-me a um funcionário da Câmara, e o sujeito me escondeu
numa espécie de armário aberto. Fiquei escondido atrás de uma coluna, envolto
na mais completa escuridão; assim, eu poderia ver e escutar, do começo ao fim, a
terrível cena que iria acontecer.
Às oito horas em ponto, todos estavam presentes.
O senhor Morcef foi o último a entrar, quando soavam as badaladas do relógio.
Tinha em suas mãos alguns papeis, e seu semblante parecia calmo: contra seu
costume, suas roupas eram simples, sua atitude estudada e severa.
Sua presença produziu o melhor dos efeitos: a comissão estava longe de ser
inamistosa, e alguns dos membros vieram apertar a mão do conde.
Albert sentia que seu coração se arrebentava a cada detalhe, e, no entanto,
no meio de sua dor, surgia um sentimento de gratidão; gostaria de ter abraçado
estes homens que demonstravam ao seu pai uma consideração tão grande diante
de um embaraço horrível à sua honra.
Neste momento, continuou Beauchamp, um atendente entrou e entregou
uma carta ao presidente da comissão.
O senhor tem a palavra, disse o presidente ao conde, enquanto abria a carta.
O conde iniciou a sua apologia, e posso lhe afirmar, Albert, continuou
Beauchamp, ele foi de uma eloqüência e de uma habilidade extraordinárias.
Mostrou papéis que provavam que o vizir de Janina, até o último momento, o
honrara com sua confiança, pois o encarregara de uma negociação vital junto ao
próprio imperador. Mostrou aos presentes o anel, demonstração de poder, com o
qual Ali Pachá carimbava suas cartas, e que este lhe dera, para em seu retorno, a
qualquer hora do dia ou da noite, chegar à sua presença. Infelizmente, informou o
conde, a negociação fracassou, e quando retornou para defender seu benfeitor,
este já morrera. Mas, insistiu, ao morrer, Ali Pachá, tamanha era a sua confiança,
confiara sua concubina e a filha a ele.
Albert estremeceu diante destas palavras, porque à medida que Beauchamp
falava, toda a história de Haydée voltava ao seu espírito, e ele lembrava muito
bem do que a bela grega tinha contado a respeito desta mensagem, deste anel e o
modo como ela e a mãe foram vendidas e levadas como escravas.
E qual foi o efeito do discurso do meu pai? Indagou ansiosamente o jovem
homem.
Posso lhe garantir que ele comoveu a todos, e a mim também, respondeu o
jornalista.
Nesse meio tempo, o presidente lançou negligentemente o olhar sobre a carta
que acabavam de lhe trazer; no entanto, ao ler as primeiras linhas, sua atenção se
alterou: leu, releu a carta ainda uma vez, e depois, fixando o olhos em Morcef,
perguntou:
Senhor conde, acaba de nos informar que o vizir de Janina confiou-lhe sua
mulher e filha antes de morrer.
Sim, senhor, respondeu o conde; contudo, nisto, como no restante deste
assunto, não tive sorte. Quando retornei, a mulher, Vasiliki e sua filha Haydée
tinham desaparecido.
O senhor as conhece?
Minha intimidade com o pachá, e a suprema confiança que tinha em relação
à minha fidelidade permitiram-me vê-las no mínimo umas vinte vezes.
O senhor tem idéia do que aconteceu com ambas?
Sim, senhor. Ouvi dizer que elas sucumbiram aos seus sofrimentos, e talvez
mesmo à sua miséria. Eu não era rico, minha vida corria grande perigo, não pude
ir atrás delas, embora lamentasse muito.
O presidente franziu o cenho imperceptivelmente.
Senhores membros, disse ele, acabam de escutar as explicações do senhor
Morcef. Voltando-se para o acusado, indagou:
Senhor conde, em apoio aos seus argumentos, poderia apresentar alguma
testemunha?
Infelizmente, não, senhor, respondeu o conde; todos os que faziam parte da
corte do vizir, e que me conheceram, ou estão mortos ou perdidos no mundo; dos
meus compatriotas, acredito ser somente eu a sobreviver; tenho apenas cartas de
Ali-Tebelin, e estou mostrando-as agora aos senhores; além disso, guardei este
anel, prova da sua amizade; enfim, a prova mais convincente que eu poderia
fornecer diante de um ataque anônimo, além da ausência de qualquer testemunha
contra a minha honra e a pureza de toda a minha vida militar.
Um murmúrio de aprovação percorreu a assembléia; neste momento, Albert,
disse o jornalista, se não surgisse qualquer incidente, a causa do seu pai estaria ganha.
Assim, restava apenas contar os votos, quando o presidente pediu a palavra:
Senhores, senhor conde, todos não ficariam aborrecidos, se eu trouxesse, para
esclarecer de vez a questão, mesmo depois do que nos disse o acusado, uma
testemunha, que poderá inocentar de vez o nobre colega. Eis aqui uma carta,
acabei de recebe-la, desejam que eu a leia, ou que deixemos de lado, e vamos para
a votação?
O senhor Morcef empalideceu, crispando a mão em torno dos papeis que
segurava.
A resposta da comissão foi a de ouvir a leitura da carta; quanto ao conde,
ficou mudo, pensativo, e nada disse.
Assim, o presidente leu a seguinte carta:
"Senhor Presidente,
Posso fornecer à comissão de investigação, encarregada de examinar a conduta
no Épiro e na Macedônia do tenente coronel conde Morcef, as informações mais
positivas".
O presidente fez uma curta pausa.
O conde Morcef empalideceu; o presidente interrogou o auditório com o
olhar.
Continue! Exclamaram de todos os lados.
O presidente retomou a leitura:
"Eu estava no local da morte de Ali Pachá; assisti aos seus últimos momentos;
sei o que aconteceu com Vasiliki e Haydée; coloco-me à disposição da comissão,
e até mesmo reclamo a honra de ser ouvida. Estarei no vestíbulo da Câmara no
instante em que esta carta for entregue".
E qual seria esta testemunha, ou melhor, este inimigo, indagou o conde, num
tom de voz onde era fácil notar uma profunda alteração de sentimentos.
Nós iremos saber, senhor, respondeu o presidente. A comissão está de acordo
em ouvi-la?
Sim! Surgiram as vozes dos participantes.
Chamaram o porteiro, e o presidente ordenou:
Oficial, existe alguém esperando no vestíbulo?
Sim, senhor presidente.
E quem é esta pessoa?
Uma mulher, acompanhada de um criado.
Todos se entreolharam.
Faça entrar esta mulher, disse o presidente.
Cinco minutos depois o oficial de serviço apareceu; todos os olhos estavam
fixos na porta de entrada, e eu também estava muito ansioso.
Atrás do oficial caminhava uma mulher, envolta num grande véu, que a
escondia por inteiro. Adivinhava-se, pelas formas que surgiam por baixo do véu,
e pelo perfume exalando dela, a presença de uma mulher jovem e elegante.
O presidente pediu à desconhecida para tirar o véu, e todos puderam ver que
esta mulher estava vestida à moda grega; além disso, era de uma beleza suprema.
Ah! Exclamou Albert, era ela!
Como? Ela quem?
Sim, Haydée, confirmou Morcef.
E quem lhe disse isso? Indagou Beauchamp.
Infelizmente estou prevendo...mas...continue, amigo, peço-lhe. Veja, estou
calmo, tranqüilo, e, no entanto, estamos perto do fim.
É verdade, disse Beauchamp, continuando: o senhor Morcef olhava esta
mulher com um misto de surpresa e terror. Para ele, era a vida ou a morte que iria
surgir da boca desta encantadora jovem; para todos os outros presentes, era uma
aventura tão estranha, tão plena de curiosidade, que a saúde ou a perda do senhor
Morcef já entrava no acontecimento como um elemento secundário.
O presidente da comissão apontou com a mão uma cadeira para a jovem, mas
ela fez um sinal, dizendo que iria permanecer de pé. Quanto ao conde, voltou a
sentar pesadamente em sua poltrona, e era evidente que suas pernas recusavamse a sustenta-lo.
A senhora escreveu à comissão, começou o presidente, afirmando que poderia
nos trazer informações sobre o acontecido em Janina, tendo mesmo sido
testemunha ocular da tragédia.
Com efeito, fui mesmo, respondeu a desconhecida, com uma voz cheia de
encantadora tristeza, num tom onde transparecia a sonoridade particular aos
orientais.
Contudo, retrucou o presidente, permita-me lhe dizer que teria sido uma
testemunha muito jovem na ocasião.
Eu tinha quatro anos, mas como os acontecimentos tiveram para mim uma
importância vital, nenhum detalhe escapou da minha memória, nenhuma
particularidade fugiu do meu espírito!
Mas, afinal, indagou o presidente, que importância tiveram estes
acontecimentos, e quem é a senhorita, para afirmar que eles lhe causaram uma
tão profunda impressão?
Tratava-se da vida ou da morte do meu pai, respondeu a jovem, e eu me
chamo Haydée, filha de Ali Tebelin, pachá de Janina, e de Vasiliki, sua querida
mulher.
O rubor modesto e orgulhoso surgido no rosto da jovem, o fogo de seu olhar
intenso, a majestade de sua revelação, causaram sobre a assembléia um efeito
inexprimível.
Quanto ao conde, ele não poderia ficar mais abatido se um raio, atingindo-o,
tivesse aberto um abismo aos seus pés.
Senhorita, retrucou o presidente, após inclinar-se respeitosamente, permitame uma simples pergunta, pode provar a veracidade do que está dizendo?
Com toda a certeza, senhor! Exclamou Haydée, tirando de baixo do véu um
pequeno saco de seda perfumado, aqui está a minha certidão de nascimento,
redigida por meu pai, e assinada pelos seus principais conselheiros; aqui está a
minha certidão de batismo, porque meu pai consentiu que eu fosse criada de
acordo com a religião de minha mãe, certidão que o grande primaz da Macedônia
e do Épiro assinou e colocou o seu selo; finalmente (e isto é o mais importante,
sem dúvida), o ato de venda que foi realizado da minha pessoa e da minha mãe ao
mercador armênio El-Khobir pelo oficial francês, o qual, em seu infame comércio
com esse tipo de gente, reservou-se, no botim, a filha e a mulher do seu benfeitor;
ambas foram vendidas pela soma de mil bolsas, ou seja, perto de cem mil francos,
na moeda atual.
Uma palidez esverdeada invadiu o rosto do conde Morcef, seus olhos se
injetaram de sangue diante do anúncio destas imputações terríveis, acolhidas pela
comissão num lúgubre silêncio.
Haydée, sempre calma, mas cada vez mais ameaçadora em sua calma, estendeu
ao presidente o ato de venda, escrito em língua árabe.
Como a comissão previra, alguns documentos poderiam estar redigidos em
árabe, em turco ou aramaico. Assim, um intérprete fora convocado, e foi chamado
ao salão.
Um dos nobres pares, para quem a língua árabe não era desconhecida,
acompanhou a leitura feita pelo tradutor em voz alta:
"Eu, El-Kobir, mercador de escravos e fornecedor do harém de S. Alteza,
reconheço ter recebido, para remeter ao sublime imperador, do senhor francês,
conde de Monte Cristo, uma esmeralda avaliada em duas mil bolsas, pelo preço
de uma jovem escrava cristã, de onze anos de idade, de nome Haydée, filha
reconhecida do defunto senhor Ali-Tebelin, pachá de Janina, e de Vasiliki, sua
favorita, a qual me foi vendida, há sete anos, com sua mãe, ao chegar a
Constantinopla, por um coronel francês, a serviço de Ali Tebelin, chamado
Fernand Mondego.
A venda acima foi feita por conta de S. Alteza, de quem sou mandatário, de
pleno direito.
Recibo lavrado em Constantinopla, com a autorização de S. Alteza, no ano
de 1247 da Hégira.
Assinado, El-Kobir.".
"Em tempo: o presente ato, para ter validade, e toda a autenticidade, tem o
selo imperial, que o vendedor é obrigado a colocar no documento".
Junto da assinatura do mercador via-se, com efeito, o selo do sublime
imperador.
Diante desta leitura e diante deste documento, um silêncio terrível surgiu; o
conde não tinha mais olhar para ninguém a não ser Haydée, e este olhar, parecia
feito de chamas e sangue.
Senhorita, disse o presidente, poderíamos interrogar o conde de Monte Cristo?
Sabemos que mora com ele.
Senhor, respondeu Haydée, o conde de Monte Cristo, meu segundo pai, foi
para a Normandia há três dias.
Mas então, senhorita, respondeu o presidente da comissão, quem a
aconselhou a tomar esta atitude, atitude que a comissão de investigação agradece,
a qual é muito compreensível, tendo em vista o seu nascimento e os seus
sofrimentos.
Senhor, declarou Haydée, a minha atitude teve como conselheira o meu amor
próprio e a minha dor. Muito embora eu seja cristã, e que Deus me perdoe, sempre
sonhei em vingar meu ilustre pai. Ora, quando coloquei os pés na França, quando
soube que este traidor morava em Paris, meus olhos e meus ouvidos permaneceram
constantemente alertas. Vivo isolada, na casa do meu protetor, mas vivo assim
porque amo a solidão e o silêncio, que me permitem conviver com os meus
pensamentos e o meu recolhimento. Contudo, o nobre conde de Monte Cristo
me cerca de cuidados paternais, e nada do que se passa na vida mundana ele deixa
de me informar; eu apenas escuto as notícias, porém permaneço afastada. Assim,
leio todos os jornais, recebo todas as novidades em livros e partituras; foi assim
que eu soube, através dos jornais, a respeito desta investigação realizada na Câmara
dos Pares...resolvi escrever-lhes.
Desta maneira, indagou o presidente, a senhorita está querendo dizer que o
conde de Monte Cristo nada teve a ver com a sua vinda até aqui?
Ele ignora completamente o assunto, senhor presidente; aliás, eu tenho apenas
um receio, o de desgosta-lo quando souber da minha atitude; no entanto, hoje,
para mim, é um belo dia, dia de libertação, continuou a jovem, erguendo os olhos
para o céu, pois afinal encontrei a ocasião de vingar o meu pai!
O conde, durante todo este depoimento, não pronunciara uma só palavra;
seus colegas o fitavam, e sem dúvida lamentavam este destino desmantelado pelo
sopro perfumado de uma jovem mulher; sua infelicidade escrevia-se pouco a pouco
em traços sinistros no seu rosto.
Senhor Morcef, disse o presidente, reconhece nesta senhorita a filha de Ali
Tebelin, pachá de Janina?
Não, exclamou Morcef, fazendo um esforço para se levantar, é uma trama
urdida pelos meus inimigos!
Haydée, olhos fixos na porta de entrada, como se estivesse aguardando alguém,
voltou-se bruscamente, e vendo o conde de pé, soltou um grito terrível:
Você não me reconhece? Tudo bem, eu, felizmente, eu o reconheço! Você é
Fernand Mondego, o oficial francês que instruía as tropas de meu nobre pai. Foi
você quem entregou as fortificações e o castelo de Janina! Foi você, que enviado
a Constantinopla para discutir diretamente com o imperador sobre a vida ou a
morte do seu benfeitor, trouxe um acordo falso, que lhe concedia graça plena! Foi
você que, com este acordo na mão, obteve o anel do pachá, que estava com o
oficial Selim, e foi você quem apunhalou este guardião! Foi você quem nos vendeu,
eu e minha mãe, ao mercador El-Kobir! Assassino! Assassino! Assassino! Você
ainda tem na sua testa a marca de sangue de meu pai! Olhe direto para todos nós!
Estas palavras foram pronunciadas com um tal entusiasmo de sinceridade,
que todos os olhares se voltaram para o conde, e ele mesmo passou a mão pela
testa, como se tivesse sentido ali, ainda quente, o sangue de sua vítima.
Quer dizer que a senhorita reconhece positivamente o senhor Morcef como
o oficial Fernand Mondego?
Se eu o reconheço? Gritou Haydée. Oh! Minha mãe! Uma vez você me disse:
você era livre, tinha um pai que a amava, estava destinada a ser quase uma rainha!
Olhe bem este homem, foi ele quem a transformou numa escrava, foi ele quem
enterrou até o cabo uma lança na cabeça do seu pai, foi ele quem nos vendeu, foi
ele quem nos desgraçou! Olhe bem para a mão direita deste homem, veja aquela
enorme cicatriz; se você esquecer o seu rosto, ainda assim o reconhecerá no futuro
a mão que recebeu, uma a uma, as moedas de ouro do mercador El-Kobir! Se eu o
reconheço! Oh! Que ele mesmo diga que não me reconhece!
Cada palavra caia como um cutelo sobre Morcef, arrancando uma parcela de
sua energia; ao fim das últimas palavras da jovem, ele escondeu vivamente, por
instinto, a sua mão direita, com efeito mutilada por um ferimento, em seu peito,
voltando a cair em sua poltrona, abismado num morno desespero.
Esta cena fizera estremecer os espíritos dos membros da comissão, como vemos
as folhas secas destacadas das árvores no outono serem levadas pelo poderoso
vento da Justiça.
Senhor conde, disse o presidente, não se deixe abater, e responda: a justiça da
corte é suprema e igual para todos, como a justiça de Deus; ela não o abandonará,
não o deixará ser esmagado pelos seus inimigos, sem lhe dar a oportunidade de se
defender e combater. Pretende novas investigações? Gostaria que mandássemos
dois membros da comissão até Janina? Responda!
Morcef não respondeu.
Então todos os membros da comissão entreolharam-se, aterrorizados.
Conheciam o caráter enérgico e violento do conde. Sabiam ser necessária uma
terrível prostração para aniquilar as defesas deste homem; era preciso, portanto,
pensar que este silêncio, semelhante a um torpor, mais parecia a calma antecedendo
a tempestade.
E então, senhor? Insistiu o presidente, o que decide?
Nada! Respondeu o conde, em tom surdo, levantando-se de sua poltrona.
A filha de Ali Tebelin, afirmou o presidente, então declarou a verdade? Ela é
efetivamente a testemunha que aponta o acusado, sem que ele ouse responder
não? O senhor realmente cometeu todos estes atos indicados por ela em sua
acusação?
O conde lançou em torno de si um olhar cuja expressão desesperada teria
tocado tigres, mas não poderia desarmar os dos juizes; em seguida, ergueu os olhos
para o teto, voltando-os rapidamente para o chão, como se tivesse medo de que
este teto se abrisse, surgindo um novo tribunal, que se chama o céu, e outro juiz,
que se chama Deus.
Em seguida, com um movimento brusco, arrancou os botões de seu costume,
que o afogavam, saindo da sala, como uma alma penada; por instantes os seus
passos ecoaram sob o teto do corredor, logo após ouviu-se o ruído da carruagem
que o conduziu a galope através do pórtico do edifício em estilo florentino.
Senhores, concluiu o presidente, quando o silêncio foi restabelecido, o senhor
conde Morcef cometeu esta traição, esta felonia, estas indignidades?
Sim! Responderam em uníssono todos os membros da comissão de
investigação.
Haydée assistira até o fim a sessão; escutou a pronúncia da sentença contra o
conde, sem que sequer um traço de seu rosto exprimisse alegria ou piedade.
Depois, cobrindo com o véu o seu rosto, saudou majestosamente os
conselheiros, e saiu do salão, com os passos que Virgilio via caminhar as deusas.