contribuições políticas dos Julgamentos de Adolf - PPGHC
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contribuições políticas dos Julgamentos de Adolf - PPGHC
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Diego Fabião Gomes Moreira Leitão Julgamento e identidade nacional: contribuições políticas dos Julgamentos de Adolf Eichmann (1960-1962) e John “Ivan” Demjanjuk (1988-1993) para a construção da identidade israelense Rio de Janeiro 2013 1 Diego Fabião Gomes Moreira Leitão Julgamento e identidade nacional: contribuições políticas dos Julgamentos de Adolf Eichmann (1960-1962) e John “Ivan” Demjanjuk (1988-1993) para a construção da identidade israelense Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada (Poder e Discurso), Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História Comparada (Poder e Discurso). Orientador: Prof. Dr. Bruno Sciberras de Carvalho 2 Diego Fabião Gomes Moreira Leitão Julgamento e identidade nacional: contribuições políticas dos Julgamentos de Adolf Eichmann (1960-1962) e John “Ivan” Demjanjuk (1988-1993) para a construção da identidade israelense Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada (Poder e Discurso), Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História Comparada (Poder e Discurso). Aprovada por: _________________________________________ (Prof. Dr. Bruno Sciberras de Carvalho / Universidade Federal do Rio de Janeiro) ___________________________________________ (Prof. Dr. Cesar Kiraly/ Universidade Federal Fluminense) ____________________________________________ (Prof. Dr. Wagner Pinheiro/ Universidade Federal do Rio de Janeiro) 3 AGRADECIMENTOS Agradeço, em primeiro lugar, a Deus, pela oportunidade do estudo, e à minha mãe, Palmira Fabião Gomes Moreira Leitão, bem como ao meu pai, Joatan Moreira Leitão, à minha irmã, Danielle Fabião Gomes Moreira Leitão e à minha namorada, Helena de Souza e Mello Kremer, por estarem sempre ao meu lado. Agradeço ao Prof. Dr. Bruno Sciberras de Carvalho, meu orientador, pelas contribuições no decorrer da pesquisa, pela philía, pela paciência e pela minha formação e amadurecimento como pesquisador. Agradeço igualmente ao Prof. Dr. Cesar Kiraly e ao Prof. Dr. Wagner Pinheiro pela disponibilidade, atenção e paciência de lerem minha dissertação e participarem de minha banca. Assim como ao Prof. Dr Leopoldo Osório pelas contribuições bibliográficas. Agradeço aos meus amigos de faculdade, em especial Alexandre Enrique Leitão, André Pires Balga Rodrigues, Lucas Antunes, Felipe Bandeira e Raul Gomes. Agradeço à Universidade Federal do Rio de Janeiro, ao Instituto de História e ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada pela oportunidade que me foi dada de dar prosseguimento aos meus estudos num ambiente democrático e progressista. 4 FICHA CATALOGRÁFICA LEITÃO, Diego Fabião Gomes Moreira Julgamento e identidade nacional: contribuições políticas dos Julgamentos de Adolf Eichmann (1960-1962) e John “Ivan” Demjanjuk (1988-1993) para a construção da identidade israelense Rio de Janeiro: PPGHC/UFRJ, 2012. 130 p. Dissertação: Mestrado em História Comparada 1. História Política. 2. Nacionalismo. 3. Israel. 4. Holocausto. I. PPGHC – Dissertação de Mestrado II. Título. 5 RESUMO O objetivo central desta pesquisa consiste em comparar dois julgamentos de criminosos de guerra levados a cabo pelo Estado de Israel. Abordaremos, assim, o julgamento de Adolf Eichmann realizado entre os anos de 1961-1962 e de John Demjanjuk julgado no período 1986-1993. Nosso objetivo consiste em demonstrar como estes complexos eventos jurídicos desempenharam, em uma miríade de sentidos, aspectos auxiliares à construção da identidade nacional israelense, a partir da re-significação da Shoah, graças a estratégias discursivas usadas em ambas as cortes. Problematizaremos, portanto, como agentes políticos estatais distintos, em momentos históricos particulares, apropriaram-se de uma narrativa do Holocausto, a fim de cristalizar projetos políticos semelhantes de unificação cultural e de afirmação de uma identidade étnico-nacional transhistórica. 6 ABSTRACT The central goal of this research consists in comparing two war criminal trials conducted by the state of Israel. As such, we will approach the trial of Adolf Eichmann, which took place in the years 1961-1962, and of John Demjanjuk, trialed in the period 1986-1993. Our goal consists in demonstrating how these complex judicial events played, in a wide variety of meanings, auxiliary roles in the construction of the Israeli national identity, from the new meaning of the Shoah, thanks to discursive strategies used in both courts. We will problematize, therefore, how such distinct state politics agents, in particular historical moments, appropriated of a narrative of the Holocaust, in order to crystallize political projects similar to the cultural unification and of assertion of an ethnic-national transhistorical identity. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO......................................................................................10 PARTE I – O Julgamento de Adolf Eichmann..............................29 1 – Prenúncios de um grande julgamento........................................29 2 – Dimensões extraprocessuais da soberania..............................33 3 – Interesses do Estado.....................................40 3.1 – Sentidos internacionais do político..................................43 3.2 – Dimensões extraprocessuais do político: o antissemitismo como ponte histórica entre os inimigos do Estado.........................................46 4 – Precedentes: continuidades e rupturas...........................................49 5 – Procedimentos e estratégias...............................................................56 5.1 – A construção de uma coletividade étnica e do inimigo político..............60 5.1.1 – A imanência política do antissemitismo como determinação do inimigo e da identidade judaica.....................................................66 5.2 – Dimensões intraprocessuais da soberania.................................70 5.3 – Às buscas por uma linguagem analítica..................................73 8 5.4 – Conclusão da narrativa.........................................................76 PARTE II – O Julgamento de John Demjanjuk..................78 1 – Prenúncios de um novo e grande julgamento.........................84 2 – Trawniki e a Solução Final.......................................................87 3 – Semelhanças e diferenças: os aspectos morais, nacionais e processuais.........90 4 – Semelhanças e diferenças: os aspectos políticos, os de soberania e a figura do inimigo..................................................................98 5– Eixos narrativos: unidade étnica x unidade religiosa..................103 6–A figura do inimigo...............................................................105 7 – O desenvolvimento do caso...............................................109 Conclusão....................................................................................116 Bibliografia...................................................................................122 Fontes............................................................................................127 9 Introdução A relação entre a disciplina História e o estudo do Direito, mais especificamente na área constitucional, penal e internacional, tornou-se mais próxima no século XX, após os desdobramentos legais de condenação ao fenômeno político do Totalitarismo. Os julgamentos do pós Segunda Guerra desempenharam um papel importante de “re-escrita” da história, uma vez que “os processos legais de investigação e de julgamento não serviram somente para o propósito de processar perpetradores de genocídio, mas também para seguir o fim extrajudicial de presentificar a verdade e fortificar a memória do Holocausto e de outros crimes de genocídio”1. Sendo assim, a confluência entre a História e o Direito opera, de fato, a partir de um território comum. Enquanto Ciências Humanas elas são guiadas pela ideia de prova e de apreensão crítica das evidências e “ambos: juízes e historiadores, compartilham a tarefa de reconstrução dos eventos passados”2. Esses princípios gerais, todavia, escondem uma série de divergências epistemológicas específicas. “O juiz interessa-se pelo individual e por atos que ele seja capaz de provar sem dúvidas, ou vácuos, em ordem de ser capaz de punir; informações que não tem “significado”, ele as ignora”3. Historiadores e bacharéis em Direito diferem, também, quanto à avaliação e utilização das provas. “Os juristas usam evidências para provar demandas específicas nas cortes; historiadores usam evidências para analisar e interpretar eventos históricos específicos”4. Os objetivos em torno do manuseio das provas, assim como o modus operandi, são também distintos. Para um juiz o que conta são evidências específicas de um caso, já para um historiador qualquer evidência é capaz de tecer uma narrativa sobre o passado. “O horizonte de interesse de um historiador é amplo, abrangente, e ele é livre em sua avaliação e em sua sentença histórica, cujas linhas não respondem aos imperativos do Direito Penal, uma vez que ele 1 HABERER, E: “History and Justice: paradigms of the prosecution of Nazi crimes”. Holocaust and Genocide Studies. Volume 19, número 3, 2005 .p 488. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/holocaust_and_genocide_studies/summary/v019/19.3haberer.html >. Acesso em 03/12/2012. 2 FINGER, J; KELLER, S; WIRSCHING, A: “Einleitung”. In _______________ “Vom Recht zur Geschichte: Akten aus NS-Prozessen als Quellen der Zeitgeschichte”. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2009 .p 10. 3 FINGER, J; KELLER, S; WIRSCHING, A: “Einleitung”. In _______________ “Vom Recht zur Geschichte: Akten aus NS-Prozessen als Quellen der Zeitgeschichte”. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2009 . p 10. 4 HABERER, E: “History and Justice: paradigms of the prosecution of Nazi crimes”. Holocaust and Genocide Studies. Volume 19, número 3, 2005 .p 490. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/holocaust_and_genocide_studies/summary/v019/19.3haberer.html >. Acesso em 03/12/2012. 10 pode valer-se da plausibilidade enquanto forma de reconstrução dos eventos e não é ligado ao princípio do in dúbio pro reo”5 .O conceito de contexto marca outra especificidade entre as duas áreas. “Para os juízes, contexto é usado para avaliar as circunstâncias de um crime específico, que pode, ou não pode diminuir a culpabilidade do agente. Já para os historiadores o contexto é o Santo Graal da pesquisa histórica: ele determina a credibilidade de suas fontes e garante a verdade de sua representação do passado”6. Apesar dessas divergências o que percorre, de forma invisível, o terreno comum habitado pela História e pelo Direito nas Ciências Humanas é a interdependência entre as duas, no sentido de investigação e indiciamento dos crimes de genocídio. Dessa forma, o valor cognitivo do diálogo entre as duas áreas possibilita à narrativa uma individualização da história, ou seja, uma interseção entre o que os alemães intitulam: Weltgeschichte [História Universal] e Lebensgeschichte [História pessoal]. Segundo o historiador alemão Herbert Jäger: “ao focar na responsabilidade da individualidade em eventos específicos, os julgamentos contribuem para a inversão da ilusão óptica de que os crimes cometidos foram um fenômeno transpessoal em que o indivíduo foi capturado enquanto uma partícula insignificante”7. Obviamente nenhum dos criminosos já julgados pode ser responsabilizado por todo o processo de extermínio, no entanto, quando esse entendimento torna-se hegemônico, rapidamente compreendemos tratar-se de uma leitura política dos fatos. A análise microscópica do comportamento individual permite o indiciamento e o enquadramento da culpa particular em uma dimensão coletiva. “Basicamente somente através de julgamentos isso se tornou reconhecível. Assim, mesmo o terror coletivo não é simplesmente uma catástrofe natural, mas um mosaico composto de diferentes e particulares atos criminais”8. 5 FINGER, J; KELLER, S; WIRSCHING, A: “Einleitung”. In _______________ “Vom Recht zur Geschichte: Akten aus NS-Prozessen als Quellen der Zeitgeschichte”. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2009 .p 10. 6 HABERER, E: “History and Justice: paradigms of the prosecution of Nazi crimes”. Holocaust and Genocide Studies. Volume 19, número 3, 2005 .p 490. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/holocaust_and_genocide_studies/summary/v019/19.3haberer.html >. Acesso em 03/12/2012. 7 HABERER, E: “History and Justice: paradigms of the prosecution of Nazi crimes”. Holocaust and Genocide Studies. Volume 19, número 3, 2005 .p 504. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/holocaust_and_genocide_studies/summary/v019/19.3haberer.html >. Acesso em 03/12/2012. 8 HABERER, E: “History and Justice: paradigms of the prosecution of Nazi crimes”. Holocaust and Genocide Studies. Volume 19, número 3, 2005 .p 504. Disponível em: 11 A Nação Além da congruência entre o campo da História política e do Direito, outro importante eixo à discussão de nosso trabalho gravita em torno da nação. Vista como um fenômeno moderno, ela pertence a um campo de estudos que carece de um grande teórico e de uma teoria que possua critérios objetivos e universais. Apesar de algumas lacunas, os grandes estudiosos concordam acerca de dois grandes pontos: o primeiro; a nação não é algo primordial e sim uma construção; e o segundo, a nação enquanto comunidade imaginada pertence ao universo moderno. A historiografia clássica sobre o tema remonta a trabalhos como: Nações e Nacionalismo desde 1780, de Eric Hobsbawn, Comunidades Imaginadas, de Bennedict Anderson e Nações e Nacionalismo, do intelectual radicado britânico, Ernest Gellner. No caso da primeira obra, Hobsbawn critica de forma contundente as visões voluntaristas sobre o fenômeno nacional, ou seja, a percepção de que a fundação de uma nação está associada ao desejo dos indivíduos. Para Hobsbawn a nação possui uma definição abrangente e implica uma congruência entre a unidade política, com a formação de um espírito público, e a territorial. Ela, por sua vez, não é primordial, pois se trata, acima de tudo, de uma construção, logo: “o nacionalismo vem antes da nação”. Historicamente consiste de um fenômeno moderno, que surgiu após a revolução industrial. Em torno da ideia de nação, Hobsbawn chama a atenção também para as mudanças semânticas do termo. No século XIX, por exemplo, o sentido da nação era meramente político, reunindo cidadãos em torno de uma constituição, revelando um projeto comum que deveria prevalecer sobre o particular. Enquanto no século XX o caráter cultural adquire um papel fundamental na definição do nacional. Além desse panorama, Hobsbawn apresenta as visões ideológicas sobre a nação, em especial a importância do liberalismo na definição teórica desse fenômeno tipicamente moderno. Segundo os liberais a nação vincula-se ao livre comércio, a um sistema de mercados. Nesse sentido, a base territorial circunscrita é essencial, uma vez que por meio dela a nação alcança uma etapa mais avançada no desenvolvimento do capitalismo. Impulsionado pelas transformações na historiografia marxista decorrente do conflito entre a China, o Vietnã e o Camboja, três Estados ditos < http://muse.jhu.edu/journals/holocaust_and_genocide_studies/summary/v019/19.3haberer.html >. Acesso em 03/12/2012. 12 “socialistas”, Bennedict Anderson, em um trabalho clássico, delimita que a corrente marxista, crítica aos preceitos do liberalismo, acabou apegando-se ao nacionalismo. Assim, segundo o autor “a nacionalidade tornou-se o valor mais universalmente legítimo na vida política de nosso tempo”9. Anderson apresenta, ainda, a grande dificuldade da historiografia marxista de lidar com o nacionalismo e lança a seguinte tese: “a nacionalidade é um artefato cultural pertencente a uma classe particular” 10. A nação, portanto, é uma comunidade política imaginada, cujo funcionamento pauta-se na base de uma comunhão inerentemente limitada e soberana. O nacionalismo, por sua vez se alia aos grandes sistemas culturais, encontrando força na língua e na religião, elementos capazes de afirmarem uma identidade. A literatura e o vernáculo adquirem um papel de suma importância na tese elaborada por Anderson, pois por meio deles o conceito de simultaneidade é capaz de operar. Para finalizarmos nossa radiografia dos trabalhos clássicos sobre a nação resta ainda apresentarmos a contribuição de Ernest Gellner. Ao alocar o nascimento da nação na era industrial, o autor apresenta algumas variáveis à construção nacional, como, por exemplo, a ideia de construção de uma ordem, por parte de um grupo e como o mesmo é capaz de atingir um monopólio da educação. Por meio da bandeira educacional a burguesia combatia as velhas estruturas do Ancien Régime. A ascensão ao poder dessa classe resultou na ampliação das forças de produção. É nesse ponto que reside o eixo interpretativo de Gellner, que vislumbra no processo de industrialização o surgimento dos movimentos nacionais, uma vez que é graças à indústria que surge a necessidade de um sistema educacional. Deslocando nossa discussão da dimensão teórica para a histórica, enfim, podemos problematizar o surgimento do Estado Nação em Israel. Nesse sentido, a fundação do Estado de Israel em 1948, após um violento conflito com os seus vizinhos árabes, foi acompanhada por uma série de preocupações com os aspectos nacionais e políticos do novo Estado. A apreensão em relação a uma identidade coletiva e nacional que fugisse dos atributos negativos da diáspora já era buscada pelo sionismo desde o século XIX e sob seu prisma construiu-se uma imensa narrativa histórica sobre os judeus, da antiguidade ao presente, marcada por uma orientação teleológica que tinha na fundação de um Estado seu fim. Tanto o Holocausto quanto a fundação do próprio Estado de Israel acabaram, então, por afirmar, de certa maneira, a narrativa sionista. 9 ANDERSON, B: “Comunidades Imaginadas: reflexiones sobre el origen y La difusión Del nacionalismo”. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. p 19. 10 Idem, p 19. 13 Segundo a historiadora de estudos judaicos, Yael Zerubavel: “o estabelecimento do Estado judaico marcou o sucesso do sionismo em alterar a trajetória histórica em linha com uma narrativa progressista”11. Por meio do ethos sionista socialista, hegemônico no recente Estado, extraiu-se uma série de valores éticos e morais ligados ao mundo do trabalho que expressavam o avanço de uma nova concepção identitária, cuja lógica velada era pautada na necessidade de alteração da consciência histórica judaica, por meio do apelo a elementos espirituais que residiam em Sião, negando, assim, de forma categórica o exílio. O historiador polonês Isaac Deutscher apresenta que os judeus que chegavam à Eretz Yisrael [A Terra de Israel], logo se viam embriagados do desejo nacional de transformação, o que os fazia “esforçaram-se para esquecer o passado, para banir de suas lembranças as marcas da indignidade, todo estigma da vergonha, toda a mancha amarela que os seus inimigos neles enxergavam”12. O novo Estado nascia, portanto, divorciado de sua memória trágica européia, pois as discussões em relação à construção de um novo judeu expressavam os mais poderosos desejos do sionismo de dissociar os judeus da condição diaspórica. Nesse sentido, durante o momento de edificação do Estado nacional, a Shoah [catástrofe]13 serviu como um aspecto heurístico de prova absoluta do prognóstico sionista de que Israel era a única solução para o problema judaico. O sionismo imperante imputou um ethos anti-diaspórico, negacionista da condição anômala, o que gerou um estranhamento e uma ausência de simpatia pelas vítimas. O Holocausto era um tabu perigoso, uma antítese do sionismo. Todavia, na luta de independência um episódio da Shoah foi muito bem incorporado à nova mitologia nacional, adquirindo, inclusive, um patamar de verdadeira santificação: tratava-se do levante do Gueto de Varsóvia. O heroísmo dos combatentes do Gueto foi interconectado ao das tropas que lutavam pela sobrevivência do Estado. Acerca dessa questão, a historiadora de estudos judaicos da Universidade do Negev, Gulie Ne’eman Arad, 11 ZERUBAVEL, Y: “The “Mythological Sabra” and Jewish Past: Trauma, Memory, and contested identities”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 7, Número 2, 2002. p 116. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/is/summary/v007/7.2zerubavel.html>.Acesso em: 22/06/2012. 12 DEUTSCHER, I: “O Clima espiritual de Israel” In: ______________: “O judeu não judeu e outros ensaios”. Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 1970. p 85. 13 “Shoah é um termo considerado mais oportuno para definir as práticas racistas eliminacionistas postas em prática pelos nazistas. O termo Holocausto contém uma dimensão sacrifical que destoa completamente do evento histórico em si. Afinal, minorias consideradas inferiores foram eliminadas, inocentes foram executados em nome de uma ideologia para a qual a história do mundo era a história da luta das raças”. CUPERSCHMID, E: “Muito além das cinzas: narrativas de Auschwitz”. São Paulo: Blucher Selo Acadêmico - Doutorado, 2011. p 56. 14 define que “de acordo com a auto-imagem do sionismo militante, o Estado emergente teve o cuidado de incorporar em sua redentora narrativa nacional apenas os heróis aprovados da revolta, criando, assim, uma hierarquia de vítimas”14. A preocupação em confeccionar uma nova identidade coletiva e política era, deveras, uma questão importante ao recém fundado Estado. A figura de um “novo judeu” manifestava uma postura crítica em relação à vida no exílio e o elemento central preconizado pela narrativa sionista era o de ruptura com a passividade e a covardia. O “novo judeu”, ou Sabra, como ficou conhecido, era a antítese do judeu diaspórico. Robustos e ideologicamente comprometidos para defenderem seu povo até o fim, a figura dos Sabras funcionava como um tipo ideal que refletia o panorama cultural, os valores e as aspirações coletivas vivenciadas pelos “pais fundadores” europeus. Dessa forma, as figuras que melhor encarnavam historicamente as características ativas dos Sabras eram os pioneiros kibbutzniks, de um lado, e os combates do Gueto, do outro. O heroísmo tornou-se um elemento comum ao arcabouço nacional israelense nesse momento, configurando-se como o fundamento da nova identidade nacional. Aproximando o pioneiro do combatente, a primazia de construção da identidade nacional era prontamente reivindicada pelo Mapai, grupo político dominante desde 1930, que obteve quarenta e seis das cento e vinte cadeiras na Assembléia constituinte (que viria, mais tarde, a ser o primeiro Parlamento, ou Knesset). Ben Gurion e os trabalhistas apontavam à nação um caminho particular. Os judeus eram concebidos como “filhos de um povo com um destino diferente de todos os outros povos”15, por conta disso, viam-se “confrontados com uma tarefa que nunca foi imposta a trabalhadores de qualquer outro país”16: o de construir uma nação pautada sob os auspícios do trabalho. As influências ao nacionalismo israelense encontravam-se fortemente vinculados a uma gramática do mundo do trabalho, cuja premissa ética fundamental era a de igualdade social. A referência identitária prática ao “novo judeu”, era a contraposição “ao judeu da diáspora ligado às profissões da distribuição”17. A expressão do nacionalismo israelense ficou compreendida, nos primeiros anos, pela 14 ARAD,G: “Israel and the Shoah: a Tale of Multifarious Taboos”. New German Critique, No. 90, Autumn/2003. Disponível em: < http://www.jstor.org/stable/3211104 > . Acesso em 01/08/2011. p 8. 15 Idem, p 297. 16 Idem, p 297. 17 BIDUSSA, D: “A Religião da Política em Israel”. Estudos avançados: dossiê nação nacionalismo, São Paulo vol.22 no. 62, Jan./Apr.2008. < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010340142008000100007&script=sci_arttext> Acesso em 10/08/2011. 15 política do estatismo [Mamlakhtiut]18. Através dessa política o Estado apresentava-se como um importante agente econômico, social e cultural, cujo objetivo era o de difundir os valores do novo judeu. Um bom exemplo desse exercício do poder cultural do Estado está na Lei do Retorno. Os judeus que retornavam a Israel ficaram conhecidos como “Olim”, o que servia para distingui-los de outros imigrantes, os “Mehagrim”. Atribuir um novo nome aos que chegavam representava um verdadeiro ritual sionista de negação da vida pregressa, da vida diaspórica; no sentido de ruptura frente aos locais de origem. A historiadora Yael Zerubavel reforça essa ideia. Na sua concepção “a partida traumática dos recém chegados de suas terras no exílio, foi seguido por uma forte pressão encontrada em Israel para abandonar identidades anteriores, língua, memória e cultura”19 . O Holocausto nesse contexto foi associado com o extremo da vida diaspórica e a atitude superior em relação a tal episódio era reforçada pelos valores do “novo judeu”. Assim, a percepção, aos que morreram, consistia de “ovelhas”20 que caminharam pacificamente em direção ao extermínio. Essa imagem projetada pelo Estado, no entanto, a partir de fins da década de 50, já dava sinal de esgotamento. O grande número de sobreviventes que chegaram entre 1948-1950, uma estimativa de 400.000, que se somavam a outros 70.000 que já viviam em Israel e a conseqüente complexificação e diversificação da sociedade civil, decorrente da Lei do Retorno, juntamente com as discussões sobre o Holocausto, levantadas por episódios jurídicos e os constantes conflitos com os árabes contribuíram para o consumo da figura dos Sabras. 18 Segundo o professor israelense de Direito Nir Kedar, da Universidade Bar Ilan, a política de Ben Gurion de Mamlakhtiyut “trata-se de uma ideologia contemporânea que busca simultaneamente, à luz de forma e substância (...) uma expressão normativa de consciência estatal”. KEDAR, N: “Ben Gurion’s Mamlakhtiyut: etymological and theoretical roots”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 7, Número 3, 2002. p 117. Disponível em: <http://muse.jhu.edu/login?auth=0&type=summary&url=/journals/israel_studies/v007/7.3kedar.html>. Acesso em 26/06/2012. 19 ZERUBAVEL, Y: “The “Mythological Sabra” and Jewish Past: Trauma, Memory, and contested identities”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 7, Número 2, 2002. p 118. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/is/summary/v007/7.2zerubavel.html>.Acesso em: 22/06/2012. 20 A expressão: “como ovelhas ao matadouro” era uma expressão muito comum na época e ganhou mais notoriedade nas mãos de determinadas personalidades. Ela foi utilizada, por exemplo, algumas vezes, de forma irônica, por Hannah Arendt, em um sentido de crítica ao posicionamento da promotoria e do Estado de Israel frente às testemunhas e aos que pereceram. Em carta a Gershom Scholem a intelectual alemã apresenta sua posição defendida em “Eichmann em Jerusalém” de forma mais clara: “eu nunca perguntei o porquê dos judeus “let themselves be killed”. Pelo contrário, eu acusei Hausner de levantar estas questões perante testemunha, após testemunha. Não houve pessoa, ou grupo na Europa que reagiu de forma diferente sob a pressão imediata do terror”. ARENDT, H: “The Eichmann controversy”. In __________ : “The Jewish Writings”. New York: Shocken Books, 2007.p 468. 16 O que iremos desenvolver, portanto, ao longo deste trabalho consiste de uma problematização acerca da construção da nação israelense a partir de termos históricos, esboçando seus agentes políticos, os partidos envolvidos, as rupturas e as continuidades. O prisma usado para refletir em relação à nação serão dois julgamentos de criminosos de guerra. Ao selecioná-los buscaremos demonstrar como foi possível em Israel, em um determinado sentido, o auxílio prestado pelo poder judiciário na elaboração de um discurso ligado à identidade política nacional. Dessa forma, apresentaremos como cada um desses julgamentos, nas mãos de agentes e partidos distintos, produziram representações nacionais particulares ao mesmo tempo em que responderam, em termos de uma narrativa nacional, a problemas políticos específicos, tanto de ordem interna, quanto externa, a partir da articulação da Shoah. Outro objetivo nosso, então, é o de apresentar o papel desempenhado por estes dois julgamentos na composição da simbologia nacional da Shoah em Israel. Analisaremos e discutiremos de forma comparativa dois julgamentos, abordando suas similaridades, diferenças e conseqüentemente seus papéis políticos como importantes elementos de construção nacional. Abordaremos os julgamentos do alemão Adolf Eichmann, julgado em Jerusalém entre os anos de 1961-1962, e do ucraniano John “Ivan” Demjanjuk, também julgado em Jerusalém entre os anos de 1986-1993. Nosso foco é direcionado às práticas discursivas empreendidas pelo Estado Israelense, buscando demonstrar como o passado pode ter utilizações políticas específicas a partir de momentos históricos distintos. A - Adolf Eichmann Sendo assim, a fim de conhecer melhor nossos objetos faz-se necessário uma breve apresentação da vida e carreira dos dois indiciados. Começaremos primeiro com o austríaco Adolf Eichmann. Nascido em Solingen, Áustria, em 19 de março de 1906. Filho de Karl Adolf Eichmann e de Maria Schefferling. Aos 26 anos ingressou no NSDAP21 e nas SS22. Era um típico indivíduo de classe média que encontrou no Partido Nazista uma excelente oportunidade para o crescimento profissional e prestígio social. 21 “Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei” (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães). 22 Schutzstaffel, (Tropas de proteção). “Organização de elite dentro do Terceiro Reich que foi responsável pela Solução Final e outros atos de terror e destruição”. YAD VASHEM. SS. Disponível em: < http://www1.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%206038.pdf>. Acesso em 20/02/2012. 17 Ao ingressar no Partido foi alocado na repartição: Zentralstelle für Jüdische Auswanderung [Escritório Central de Emigração Judaica] onde conheceu homens como Dieter Wiscileny e Alois Brunner, indivíduos com quem desempenharia suas atividades nos anos subseqüentes. Segundo o historiador austríaco Hans Safrian, professor da Universidade de Viena e colaborador do Museu de Memória do Holocausto em Washington: Todos os austríacos do Zentralstelle tinham experimentado rupturas graves no desenvolvimento de suas carreiras durante a década de 30. Nenhum deles tinha conseguido construir uma vida estável na Áustria. Por uma série de motivos quase todos perderam o emprego no início da década e permaneceram desempregados exceto por breves períodos de trabalho. Durante ou depois do Anschluss nenhum deles trabalhou no ofício em que aprenderam. Todos buscaram novos empregos, seja no setor público, ou com o Partido Nazista23. A promoção de Eichmann dentro dos quadros das SS veio a partir da organização do “modelo de Viena”, no interior do Escritório de Emigração, logo após o Anschluss24. Safrian aponta que o objetivo de Eichmann era o de forçar a emigração de judeus da Áustria, a fim de torná-la Judenrein [ausente de judeus]. O “Modelo de Viena” tinha “o propósito de criar um sistema pelo qual o judeu que quisesse deixar a Áustria pudesse fazer todos os arranjos em um único local. A violenta atmosfera, combinada com a eliminação de empecilhos burocráticos, induziram uma parte dos judeus da Áustria a emigrar sem dinheiro em cerca de meio ano”25. Rapidamente promovido a Untersturmführer26, Eichmann dava mostra, em fins da década de 30, de grande habilidade de organização e negociação com os Judenrat27. Seu conhecimento “aprofundado” acerca da questão judaica lhe rendeu o título de “perito” junto a seus 23 SAFRIAN, H: “Eichmann’s Men”. New York: Cambridge university press, 2010. p 40 Anexação. Por esse nome que ficou conhecida a política alemã de incorporação da Áustria, em Março de 1938. 25 YAD VASHEM. Vienna. Disponível em: <http://www1.yadvashem.org/yv/en/righteous/stories/historical_background/vienna.asp>. Acesso em 20/02/2012. 26 Equivalente a patente de Segundo Tenente. 27 “Os Conselhos Judaicos montados no interior das comunidades judaicas da Europa ocupada pelos nazistas e às suas ordens tinha a responsabilidade de implementar as políticas nazistas em relação aos judeus. Estes conselhos judaicos freqüentemente buscavam um equilíbrio: de um lado, eles sentiram a responsabilidade de ajudar seus companheiros judeus tanto quanto possível; por outro lado eles deveriam executar as ordens das autoridades nazistas – muitas vezes às custas de seus companheiros judeus. O papel desempenhado pelos Judenräte é um dos aspectos mais controversos do período do Holocausto”. YAD VASHEM. Judenrat. Disponível em: < http://www1.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%206389.pdf>. Acesso em 20/02/2012. 24 18 companheiros. Em 1941, às vésperas da conferência de Wannsee28, recebeu sua última promoção: Obersturmführer29. Seu nome, de fato, tornou-se mais familiar, somente, após o Julgamento de Nuremberg, quando lhe foi atribuída uma importante participação dentro da máquina burocrática nazista. Como fora responsável pelas deportações, Eichmann se configurava como um Schreibtischtäter [assassino de gabinete], ou seja, um tecnocrata assassino. Por conta disso, fora tão fácil, ao Estado de Israel, imputar a Eichmann uma grande responsabilidade pelo desfecho Shoah e preencher sua figura como a de um grande inimigo do povo judeu. Devido à importância de Eichmann na máquina de destruição nazista, seu julgamento foi uma peça fundamental para a compreensão do nazismo, além de caracterizar-se como um dos eventos mais importantes da recente história do Estado de Israel. Nesse sentido, existe uma ampla bibliografia que trata do tema. O primeiro trabalho de peso, responsável pela definição de um ramo de interpretação historiográfica acerca da figura de Eichmann, foi o célebre título Eichmann em Jerusalém da alemã Hannah Arendt. A importância desse trabalho é crucial, uma vez que chama a atenção, primeiramente, para a mediocridade de Eichmann. Segundo a autora o réu que se apresentava diante dos juízes de Israel era um simples burocrata, um profissional da ascensão social que alcançou sucesso com a Solução Final, pois desejava, acima de tudo, uma brilhante carreira. Além disso, Arendt trabalha em cima das idéias de um Julgamento político que possuiu complexas noções de relacionamento com o passado, mas que teve como finalidade o fortalecimento da identidade e da mentalidade israelense. Outro ponto presente no trabalho é o relacionado à tenebrosa idéia da “Banalidade do Mal”, que consiste na incapacidade de auto-reflexão (“vazio de pensamento”) das ações empreendidas por Eichmann, o que representou toda uma derrocada moral da sociedade alemã e européia. A interpretação de Arendt acerca da figura de Eichmann, portanto, isenta o austríaco de uma parcela da carga política imputada a este por Israel, mais especificamente em relação ao profundo ódio aos judeus e seu desejo maníaco de extermínio desse povo. 28 “Reunião realizada em uma casa à beira do lago Wannsee, em Berlim em 20 de Janeiro de 1942, cujo propósito era o de discutir e coordenar a Solução Final do Problema Judaico – o assassínio em massa de todos os judeus europeus. A Conferência foi organizada por Reinhard Heydrich, Heinrich, chefe do Departamento de Segurança do Reich [Reichssicherheitshauptamt]” YAD VASHEM. Wannsee Conference. Disponível em: <http://www1.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%206487.pdf>. Acesso em 20/02/2012. 29 Equivalente a patente de Tenente-Coronel. 19 Hans Safrian no trabalho “Eichman’s Men”; o professor alemão Irmtrud Wofak, no trabalho: “Eichmann’s Memoirs: A Critical Essay” e o historiador inglês David Cesarani, no trabalho “Becoming Eichmann”, discordam da posição lançada por Arendt. Para os três autores Adolf Eichmann possuía um perfil calculista, impiedoso e anti-semita, cuja crença convergia à visão hitlerista de um “Judenreines Reich” [Império ausente de judeus]. A historiadora norte americana e professora da Universidade de Emory, Deborah Lipstadt, no trabalho: “The Eichmann Trial”, e a filosofa e historiadora alemã, Bettina Stangneth, em: “Eichmann vor Jerusalem”, apóiam a visão dos três historiadores acima, mas de diferentes maneiras. Segundo Stangneth o aparecimento de novos documentos sobre Eichmann, mais especificamente seu testamento, seus arquivos pessoais e a entrevista com William Sassen, mostram um Eichmann diferente do apresentado por Arendt em “Eichmann em Jerusalem”. O que mantém a força da banalidade do mal é a parcialidade da culpa de Eichmann, ou seja, suas ações dividiamse em responsabilidade com as vítimas e seus líderes. Bettina Stangneth emprega um enfoque muito específico, mas extremamente significativo, uma vez que investiga a vida de Eichmann após o fim da guerra até sua captura pelo Mossad. O grande referencial bibliográfico foram os Sassen Documents30. A interpretação extensiva de Stangneth resultou, segundo a autora, na prova absoluta de que Eichmann era um grande anti-semita. Já Lipstadt segue uma linha que percorre o pensamento de Arendt, abordando a habilidade de a lei render justiça frente à magnitude dos crimes cometidos. De acordo com a professora de Emory, se não fosse o caso Eichmann nós provavelmente nunca aprenderíamos a considerar as palavras dos sobreviventes, seus testemunhos, pensamentos e sensações. Em relação às representações da Shoah em Israel desdobradas a partir do caso, Lipstadt aponta que não houve uma alteração significativa, uma vez que o Holocausto já vinha sendo tratado desde a década de 50, por isso, a autora rebate a ideia de que o julgamento de Eichmann representou uma ruptura na barreira de silêncio que vigorava na sociedade israelense. Sobre a banalidade do mal e seu encaixe no procedimento em questão, a autora norte americana discorda da posição de Arendt, por mais que reconheça a importância teórica da reflexão em torno desse conceito. Lipstadt ainda segue no mesmo caminho da alemã, no sentido de crítica ao papel incumbido às testemunhas e à despretensão, por parte da promotoria, em 30 Trata-se de uma entrevista conduzida por Wilhelmus Sassen, antigo colaborador com o nazismo na Holanda, jornalista e ex-membro das Waffen SS, com Adolf Eichmann. O resultado final acabou sendo publicado na revista Life e a Corte em Israel debruçou-se sobre esta prova em algumas sessões. 20 apresentar provas jurídicas mais concretas. Ao final ela argumenta em torno do impacto causado pelos testemunhos na definição da identidade nacional israelense. Relacionados à perspectiva da identidade nacional, Tom Segev, no trabalho “The Seventh Million”, e Lawrence Douglas em: “The Memory of Judgment” apresentam visões semelhantes em relação aos usos da Shoah para a construção da identidade israelense. Ambos elaboram argumentos que pinçam os anos de fundação do Estado como um momento chave, pois foi neste intervalo temporal, 1948-1961, que as lideranças culturais e políticas direcionaram o foco de suas atenções para a criação da imagem do novo país, assim como do “novo judeu”. O recente protótipo judaico marcado pela força e pelo ativismo contrastava de forma categórica com o modelo diaspórico. Segundo os dois autores não houve um espaço para o trauma do Holocausto nos anos iniciais do Estado de Israel. Em relação ao julgamento de Eichmann tanto Segev, quanto Douglas reconhecem este evento enquanto uma peça significativa de ampliação da voz dos sobreviventes dentro da sociedade israelense. A divergência entre os dois autores situa-se em relação aos desdobramentos do caso. Para Douglas o julgamento foi uma verdadeira catarse nacional. Já para Segev, Eichmann “foi parte de uma politização e instrumentalização do Holocausto por vários fundadores estatais e políticos que desejavam mais fortalecer suas posições, que ensinar lições humanitárias sobre o Holocausto”31. O jornalista israelense Sergio Minerbi que trabalhou para a rádio e a televisão estatal italiana apresentou uma crônica do julgamento: “The Eichmann Diary”. Os dois pontos fortes do autor foram: a excelente introdução do julgamento e a capacidade de Minerbi de elaborar opiniões libertadas de outros autores. Apesar disso, o israelense não contribui muito para as discussões historiográficas em torno do tema. Minerbi, em relação à personalidade de Eichmann acaba discordando de Stangneth. A nova documentação sobre o austríaco acabou servindo, em sua opinião, para fortalecer a posição de Hausner: Eichmann era, de fato, um anti-semita convicto. Ursula Lodz e Thomas Wild em: “Hannah Arendt und Joachim Fest: Eichmann war von empörender Dummheit, Gespräche und Briefe” retornam com a controvérsia em torno da banalidade do mal. O livro é construído em torno de uma carta que Fest endereçou a Arendt levantando 20 possíveis tópicos de discussão em uma rádio alemã em memória a 31 SEGEV, T apud WITTMANN, R: “Eichmann revisited: the motivation of a mass murderer”. German Studies Review, Volume 35, Número 1, Fevereiro de 2012. p 5. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/german_studies_review/summary/v035/35.1.wittmann.html >. Acesso em: 03/12/2012. 21 Kristallnacht [Noite dos Cristais quebrados], em fins de Novembro de 1964. Dos pontos listados por Arendt, os dois mais importantes foram: “Nazi trials have any value in general” [Julgamentos de Nazistas possuem algum valor em geral] e “How does one overcome the problem of definition, should the Holocaust be described as “Genocide”, “as Crimes Against the Jews”, “as Crimes Against Humanity”, or as “bureaucratic mass murder”?”[Como se superar o problema de definição: deveria o Holocausto ser descrito como “Genocídio”, “Crimes Contra o Povo Judeu”, “Crimes Contra a Humanidade”, ou “Assassinato burocrático em massa?”]. A partir desse enfoque a alemã apresentou uma visão mais ampla acerca da personalidade de Eichmann. Nas palavras dela: Ele desejava participar. Ele gostaria de ser capaz de dizer “nós”, e esta participação, este desejo de dizer “nós” foi suficiente para o cometimento de um enorme crime. Esta sensação de poder que emerge do agir coletivo não é o mal absoluto, pelo contrário é completamente humano. Mas também não é o bem. Há uma atração definitiva para este tipo de ação conjunta... e eu sou capaz de dizer que a verdadeira perversão nesta participação é o ato do funcionamento e o desejo de ser um funcionário. Este desejo era o mais evidente em Eichmann32. Por meio desse panorama historiográfico relacionado às interpretações da personalidade de Eichmann e conseqüentemente sua importância para a Solução Final, matéria de suma importância, uma vez que tais concepções tiveram certa utilidade no embate entre a promotoria e a defesa, assim como nas apropriações políticas do caso realizadas por personalidades do Estado; percebemos o desdobramento de uma concepção macro historiográfica que orienta essas percepções. Consiste da dicotomia entre: intencionalistas e funcionalistas. Os primeiros, muito bem representados por historiadores como: Hans Mommse, „Die Realisierung des Utopischen: Die Endlösung der Judenfrage im Dritten Reich”, e Martin Broszat, definem como ponto central de suas interpretações a tese linear da “execução de um ponto de vista”, ou seja, Hitler e os nazistas desejavam empreender a Solução Final, o extermínio físico da comunidade judaica européia, desde o início. Já os funcionalistas orientam-se a partir da ideia de que os escritos iniciais de Hitler e os pronunciamentos políticos de extermínio físico dos judeus consistiam, na 32 ARENDT, H apud WITTMANN,R: “Eichmann revisited: the motivation of a mass murderer”. German Studies Review, Volume 35, Número 1, Fevereiro de 2012. p 7. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/german_studies_review/summary/v035/35.1.wittmann.html >. Acesso em: 03/12/2012.. 22 verdade, de mera agitação política. Nesse sentido, a Solução Final teria como gênese a Conferência de Wannsee em 1942, o que revela o percurso de um caminho sinuoso até a organização do maquinário da morte. B - Demjanjuk Diferentemente de Eichmann, as pesquisas históricas acerca do julgamento de John “Ivan” Demjanjuk são bem mais escassas e o ponto nevrálgico do caso foi bem mais complexo às partes. Todavia, antes de iniciarmos nosso percurso pelas veredas historiográficas do caso Demjanjuk, uma apresentação faz-se necessária, a fim de compreendermos melhor tal personagem. John Demjanjuk nasceu em 1920 na pequena cidade ucraniana de Dubovi Makharintsi. Em contraposição a Eichmann, oriundo da classe média austríaca, a família de Demjanjuk vivia no meio rural e passava por uma série de provações. Aos dezessete, John começou a trabalhar em um Kolkhoze. Iniciou-se no manejo do arado e posteriormente assumiu a função de auxiliar de motorista de trator. Graças a essa habilidade ele ingressou na Juventude Comunista (Komsomol) e destacado para ingressar no Exército Vermelho. A partir do ano de 1942 temos uma bifurcação na narrativa o que torna os eventos mais imprecisos. Temos, de um lado, a versão da promotoria e do outro a de Demjanjuk. Segundo as investigações conduzidas pelo Estado de Israel, em 18 de maio de 1942, após a Batalha de Kerch, Demjanjuk caiu prisioneiro em mãos alemãs. Permaneceu algumas semanas no campo de Prisioneiros de Rowno e em seguida foi deslocado para outro campo: Chelmn. Foi nesse Lager que Demjanjuk foi selecionado pelas SS para cumprir funções de Guarda. Realocado em Trawniki recebeu o treinamento completo aos recrutas das SS. No dia 22 de setembro de 1942 foi deslocado para Treblinka, onde trabalhou como operador e mecânico das câmaras de gás. A partir de fevereiro de 1943, em decorrência da desativação do maquinário da morte, Demjanjuk passou a ser empregado em trabalhos esporádicos. Voltando novamente para Trawniki, em 27 de março de 1943 foi despachado para Sobibor. Em agosto, após a revolta ocorrida em Treblinka, Demjanjuk mais uma vez retorna ao campo, a fim de operar as últimas câmaras e finalizar com os transportes finais. A versão dada por Demjanjuk o aloca, em 1942, nos meses de junho e julho no campo de Rowno e após algumas semanas é transferido para Chelmn. Do meio do verão de 1942 à primavera de 1944, ele permaneceu como prisioneiro em Chelmn, logo não 23 teria tomado consciência nem parte dos eventos envolvendo o extermínio em Treblinka. O campo foi desativado em setembro de 1943 e a versão da promotoria até o ano de 1945 denota que Demjanjuk foi destacado para Trieste. Ele portava consigo um visto que revelava que ele estivera em Pilau e no campo de concentração de Flossenburg, ao sul da Bavária. Na Alemanha tornou-se um membro ativo das Waffen-SS, momento em que recebeu a tatuagem de sangue da corporação. A versão de Demjanjuk, no entanto, fundamenta-se em sua estadia no campo de Chelmn até meados de 1944. Após isso, ele foi levado para Graz, onde recebeu a tatuagem de sangue das SS e seguiu para Heuberg, a fim de juntar-se ao Exército de Liberação Russo em fevereiro de 1945. Demjanjuk, então, foi conduzido a uma série de campos de prisioneiros de guerra antes do fim da guerra e foi registrado como pessoa deslocada [Displaced Person] em Landshut, na Alemanha. Esta versão entra em contradição direta com os formulários preenchidos por Demjanjuk no início do ano de 1948, dizendo que ele, durante o período da guerra, estivera em Chelmn, Sobibor, Pilau e Munique. Ao fim da guerra as narrativas convergem. Ele foi capturado pelos americanos e transferido para Munique e alocado em um campo para prisioneiros de guerra. Em 1945, Demjanjuk ingressou em um “Camp for Displaced Persons” e conheceu, após dois anos, sua esposa. Em fins de 1951, Demjanjuk solicitou o visto para entrada nos Estados Unidos, tendo chegado nesse país no início do ano seguinte. Lá ele encontrou emprego como mecânico para a Ford Company em Cleveland, Ohio. Semelhante à produção historiográfica sobre Eichmann, as pesquisas sobre John e seu julgamento também possuem um desdobramento dual. De um lado encontramos a posição apresentada pelos críticos do julgamento, que se caracteriza por uma denúncia à posição da Suprema Corte israelense pela absolvição de Demjanjuk, enquanto que os que reconhecem o resultado do Julgamento afirmam que as evidências eram, verdadeiramente, inconclusivas e insuficientes e que o aspecto da memória como valor fonte de evidências é falho. Nesse sentido, as referências historiográficas podem ser caracterizadas, primeiramente, pela grande contribuição de Tom Teicholz, em seu: “The Trial of Ivan the Terrible: The State of Israel Vs. John Demjanjuk”. A posição de Teicholz é de uma crítica aberta à decisão da suprema corte inocentando Demjanjuk. Para o autor, o julgamento de Demjanjuk alcança moralmente o mesmo nível que o de Adolf Eichmann e as evidências apresentadas à corte possuem um caráter evidente de validade. A argumentação da defesa, cuja fundamentação girava em torno da inconsistência das provas em torno da identidade de Demjanjuk, apresenta-se como 24 verdadeiramente falhas. Para o autor a situação jurídica desse caso é, portanto, profundamente problemático e a situação fica em uma verdadeira pendência, uma vez que a justiça não prevaleceu. A acusação foi incapaz de provar que Demjanjuk era culpado das queixas (segundo a interpretação da Suprema Corte) e a defesa, ao mesmo tempo, mostrou-se impossibilitada juridicamente de provar sua inocência. Além de Tom Teicholz, temos a cobertura jornalística do julgamento por Gitta Sereny, publicado recentemente em língua portuguesa em: “O Trauma Alemão”. A autora chama a atenção para os traços políticos desse julgamento e o aloca juntamente ao de Eichmann, como um dos grandes julgamentos realizados em Israel, caracterizando o nazismo, então, como Trauma Histórico à sociedade alemã. Sereny foca sua análise na fragilidade da memória enquanto fonte jurídica e relembra o caso de Frank Walus, acusado injustamente por Wiesenthal de ter sido um colaborador da Gestapo. A inocência de Walus foi provada e a ele foi paga uma reparação de cerca de U$ 34,000 dólares33, por parte do Estado americano. Segundo a autora os julgamentos de nazis na atualidade tornaram-se algo impreciso, já que “os supostos criminosos, os sobreviventes e as vítimas estão velhos demais”34. Além de Sereny, temos o trabalho de Charles Patrick e Joseph McCann: “Minds on Trial”, em que os autores exploram as deficiências da memória como evidências para um julgamento, indo, por sua vez, de encontro à posição de Sereny. Os autores exploram o aspecto psicológico dos tribunais, o que no sistema jurídico norte americano possui uma relevância respeitável. Seguindo na trilha de Teicholz, temos dois autores alemães próximos e um que se distancia um pouco. São eles: Heinrich Wefing [Der Fall Demjanjuk: Der letzte große NS-Prozess. Das Leben. Der Prozess. Das Urteil], Matthias Janson [Hitlers Hiwis Iwan Demjanjuk und die Trawniki-Männer. Personalakte] e Hans Peter Rullmann’s [ Der fall Demjanjuk. Unschuldiger oder Massenmörder?]. A contribuição historiográfica de Teicholz serve a esses autores como ferramenta para problematizar o caso Demjanjuk às luzes do novo julgamento que se desenrolou, recentemente, na Alemanha. De acordo com o primeiro autor, o caso Demjanjuk não se caracteriza como um processo normal: “é um evento memorial para as vítimas dos crimes nazistas, há uma disputa entre o judiciário alemão com seus próprios fracassos, desde 1945, e é uma 33 “O Departamento de Justiça largou o caso, desculpou-se e pagou a Walus uma indenização no valor de $34,000, mas Walus alega que gastou $120,000 para limpar seu nome” CHAPMAN,D: A life ruined by a Nazi Hunter. THE TORONTO STAR, April 13, 1983. Retrieved 200708-01. Disponível em: <http://www.nizkor.org/ftp.cgi/people/w/walus.frank/press/toronto-star.0483>. Acesso em 6/06/2011. 34 SERENY, G: “O Trauma Alemão”. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.p 407. 25 tentativa, por último, quase desesperada para garantir a justiça, enquanto, pelo menos, algumas das vítimas e perpetradores de genocídios ainda estão vivos”35. Já para Janson a questão central de seu trabalho caracteriza-se por uma apresentação do caso à sociedade alemã. O ponto mais alto é, sem sombra de dúvidas, a associação entre as competências jurídicas da Corte de Munique com as de Jerusalém. Seu trabalho é ausente de profundidade e não contribui muito aos debates acerca do julgamento de criminosos de guerra na atualidade. Por último temos Rullmann’s, cujo trabalho joga uma luz não somente no panorama o qual Demjanjuk cresceu, mas também na parte jurídica antes do processo em Israel. O trunfo de seu trabalho encontra-se na ênfase particular às tensões existentes entre judeus e ucranianos. A posição de Rullmann’s, todavia, afasta-se um pouco da de Teicholz, pois o autor expressa, abertamente, dúvidas sobre a versão oficial de Treblinka. C – Apontamentos críticos e metodológicos Acerca da produção bibliográfica relacionada à temática dos julgamentos do Holocausto, nosso trabalho diferencia-se por seguir uma vereda pouco explorada. Tratase da problematização de um sentido muito específico, ligado às questões nacionais, que poucas vezes emergem em um oceano de levantamentos morais, ou jurídicos. Estamos cientes de que tais episódios portam uma infinidade de reflexões possíveis a serem extraídas, todavia, seguir pelo caminho interpretativo das apropriações políticonacionais revela a riqueza e a importância dos estudos ligados ao fenômeno moderno intitulado nação. O ponto central, portanto, a ser apresentado ao longo deste trabalho será o de como eventos jurídicos permitiram a confecção de discursos capazes de reinterpretar a Shoah de acordo com os desígnios de determinados atores políticos, respondendo, por sua vez, a contextos históricos específicos. Pôr a nação em perspectiva e conseqüentemente a política não implica na anulação, de nossa parte, da natureza moral ou humanista presente nestes casos. Simplesmente caracteriza-se por uma questão pouco levantada até então e desse “silêncio” formulamos nossa pergunta: 35 “Es ist eine Gedenkveranstaltung für die Opfer der Naziverbrechen; es ist eine Auseinandersetzung der deutschen Justiz mit dem eigenen Versagen nach 1945 und es ist ein letzter, fast verzweifelter Versuch, für Gerechtigkeit zu sorgen, solange wenigstens einige Opfer und Täter des Völkermordes noch am Leben sind”.WEFING,H: “Der Fall Demjanjuk: Der letzte große NS-Prozess. Das Leben. Der Prozess. Das Urteil”. München: Beck OHG, 2011. p 29. 26 em que medida os julgamentos do holocausto auxiliaram na cristalização de uma narrativa política da Shoah nos anos sessenta, (momento de edificação do Estadonação), e nos anos oitenta, (período delicado de críticas internacionais às posturas nacionais israelenses). No que tange ao nosso direcionamento empírico, tomamos o método comparativo como grande ferramenta referencial, pois, por meio desse, encontramos uma via fecunda para o progresso do conhecimento nas ciências humanas e sociais. O trabalho comparativo permite uma abordagem plural dos problemas, assim como uma visualização mais objetiva de semelhanças e diferenças, rupturas e continuidades. Em nosso caso, por tratar-se de uma comparação diacrônica somos capazes de perceber, com mais precisão, os aspectos históricos usados e dispensados pelo Estado israelense, no sentido de construção de uma identidade política nacional, a partir do poder judiciário. A perspectiva comparada por incidir sobre um objeto que traz a tona questões “sensíveis”, uma vez que se relaciona a um dos eventos mais hediondos do século XX, suscita questionamentos relacionados à existência, ou não, de uma série de armadilhas a quem busca realizar tal comparação. Um dos problemas mais freqüentes é o de equivalência entre as modalidades de assassinato. O homicídio, tanto em modalidade qualificada, ou hediondo, ao genocídio arquitetado por trás de uma mesa. O primeiro elemento que salta aos olhos é, sem sombra de dúvidas, o número de vítimas. Apesar de não estar relacionado diretamente ao nosso trabalho, Jacques Sémelin, em uma passagem de seu trabalho [Purificar e Destruir], chama atenção para a comparação entre mortos, que é relevante para o desenvolvimento do presente pensamento: A publicação do Livro Negro do Comunismo claramente ampliou debates, muitas vezes apaixonados, com alguns defendendo a idéia de que, pelo número de mortos que se podem atribuir aos poderes comunistas, os crimes cometidos por esses regimes “valem” aqueles do nazismo, se é que não os ultrapassam. Essa idéia foi explicitamente formulada na introdução da obra, onde Stéphane Courtois escreveu: “a morte por fome do filho de cúlaque ucraniano, deliberadamente deixado à míngua pelo regime stalinista, vale a morte por fome de uma criança judia do Gueto de Varsóvia, deixada à míngua pelo regime nazista”36 Em vez de pensarmos em termos de vítimas, a relação acima e suas implicâncias éticas e científicas, podem ser transferidas para nossa lógica comparativa, em que pomos lado 36 SÉMELIN, J: “Purificar e Destruir: usos políticos dos massacres e dos genocídios”. Rio de Janeiro; DIFEL, 2009 .p529. 27 a lado indivíduos que cometeram atos simétricos (assassinatos) repletos de uma profunda carga emocional a um povo, ou a um determinado grupo. Evitar uma instrumentalização moral acerca da natureza criminosa, ou seja, caracterizar qual é o mais maligno, dentre outras caracterizações, é essencial, a fim de conseguirmos demonstrar, com sucesso, as diferentes naturezas de cada indivíduo, assim, como a implicância de cada evento, no interior de uma cosmovisão política e histórica. De forma prática estamos tratando de como cada julgamento foi recepcionado pela comunidade política e como cada um deles possuem elementos distintos que fizeram com que, em contextos históricos diferentes e a partir de agentes políticos diferentes, travassem-se relações particulares frente à narrativa histórica de um evento crucial à nação e à forma como o Estado apresentava-se frente a determinados grupos na sociedade civil. O mesmo vale para o oposto. Em outras palavras: estabelecer uma singularidade exacerbada, uma unicidade extrema a cada evento histórico, faz com que a abertura comparativa seja mínima. Uma determinada visão da Shoah encaixa-se nessa lógica. Por ela ser única ela é incomparável, mas a verdade é que cada evento na História é único. A Revolução Francesa é única, a Revolução Puritana é única, assim como a Revolução Americana. No entanto, isso não impediu Tocqueville de realizar uma comparação entre sistemas políticos tão diversos, ou mesmo Marc Bloch sobre estruturas tão distintas. Progredir no campo da comparação entre fenômenos jurídicos envolve a partida de um campo em comum: indivíduos enquadrados na mesma tipologia criminal, cujo respaldo jurídico e jurisprudencial existe, tanto em cenário nacional, quanto internacional. Nossa estratégia, portanto, ao longo desta dissertação será a de salientar os pontos de semelhança e os pontos de diferença dos casos estudados, uma vez que acreditamos que por meio desse expediente somos capazes de realçar as particularidades, sem, todavia, mascarar o que eles têm em comum. A ampliação do exercício comparativo possui como contexto heurístico a construção de um problema que perpassa os dois eventos, ou seja, como a esfera estatal apropriou-se, consciente, ou inconscientemente, da lógica discursiva presente em tais atividades desempenhadas pelo judiciário, com a finalidade de enaltecer um projeto particular de nação. Dessa forma, seguindo o aforismo metodológico de Sémelin: “problematizar para diferenciar”, nosso trabalho ganha fôlego para a construção de uma hipótese que gravita entre o singular e o plural, o universal e o particular, mas, sem perder de vista, a especificidade, unicidade e complexidade de cada evento tratado. 28 Parte I – O Julgamento de Adolf Eichmann O alvorecer da década de 60 foi acompanhado por uma nova redefinição no pacto sionista. O projeto nacional do Mapai: pautado em uma ideia de unidade da sociedade civil, de primazia do Estado e de sobrevivência política por meio do estabelecimento de eficientes Forças de Defesa e de um sólido e expressivo crescimento demográfico, passou a contemplar na Shoah uma ferramenta capaz de acelerar a conquista de seus objetivos político-nacionais, graças às potencialidades presentes em um exercício jurídico de grande magnitude. Sendo assim, o que buscaremos apresentar neste capítulo é como certos sentidos relacionados ao julgamento de Eichmann foram apropriados pelos agentes políticos estatais, ou seja, figuras ligadas ao Mapai, com o fim de fortalecer um determinado projeto político de construção da nacionalidade israelense. Apresentaremos as duas dimensões presentes no caso, tanto no seu aspecto interno, ligado aos trabalhos da corte, dando uma ênfase em especial ao promotor do caso, representante dos interesses políticos do Estado Vs os juízes, defensores de uma linguagem jurídica clara e objetiva; como também ao panorama externo em que as figuras do Estado buscaram apropriar-se e direcionar politicamente uma série de sentidos emanados pelo caso. Exploraremos, ao longo deste capítulo, portanto, alguns sentidos políticos, apresentando suas ambivalências e pluralidades, demonstrando como o Holocausto passou a ser definido como um evento importante da identidade coletiva israelense, ao mesmo tempo em que foi empregado como uma poderosa metáfora da vulnerabilidade judaica. 1– Prenúncios de um grande julgamento O dia 23 de maio de 1960 foi um momento ímpar na história de Israel. Às quatro horas da tarde o primeiro ministro de Israel, David Ben Gurion, anunciava a um Knesset inquieto a captura do criminoso de guerra Adolf Eichmann, figura importante dentro do RSHA37, que ainda se encontrava em liberdade. Em suas palavras: 37 Escritório Central de Segurança do Reich. Das Reichssicherheitshauptamt: “O RSHA foi em 27 de setembro de 1939, formado através da unificação da Polícia de Segurança (Sipo) com o Serviço de Segurança (SD) por Heinrich Himmler com o objetivo de criar uma instituição centralizada capaz de dirigir as forças de segurança da Alemanha Nazista”. Disponível em: < http://www.zukunft-brauchterinnerung.de/drittes-reich/herrschaftsinstrument-staat/190.html>. Acesso em 22/06/2012. 29 Forças de segurança israelense encontraram o grande criminoso de guerra, Adolf Eichmann, que esteve à frente, junto com a liderança nazista do que eles chamavam: “Solução Final do problema judaico”, significando – o extermínio de seis milhões da comunidade judaica européia. Adolf Eichmann já se encontra sob custódia em Israel e em breve será levado a julgamento de acordo com a Lei Punitiva de Nazistas e Colaboradores: lei 5710-195038. A reação da sociedade civil ante a captura de Eichmann foi jubilosa. No dia seguinte ao anúncio, a Agência Telegráfica Judaica estampou na capa de seu periódico que “a captura de Eichmann e seu prometido julgamento atinge Israel como um todo e desponta como um dos eventos mais sensacionais dos últimos anos”39 . No Knesset, como descreveu o escritor Moshe Pearlman, a reação foi: “por vários segundos, houve um silêncio atônito, então, de repente, o aplauso explodiu, tomando conta de todo o recinto”40. Ele se recorda que “poucas vezes houvera tal unanimidade no Knesset. Poucas vezes seus membros ficaram tão emocionados. Um assassino de seu povo fora capturado. Enfrentaria a justiça. A emoção do momento transcendia o mero desejo de vingança. Era o fortalecimento da fé na justiça suprema. O homem que personificava as forças das trevas, responsável pelo extermínio de milhões de judeus, agora seria julgado pelo devido processo da lei, pelos tribunais do Estado Judaico”41. O órgão do governo responsável pela localização, identificação e seqüestro de Adolf Eichmann foi o Mossad, o serviço secreto israelense, que o rastreou vivendo no subúrbio de Buenos Aires com a falsa identidade de Ricardo Klement. Dependente diretamente das ordens do primeiro ministro, a inteligência israelense somente pôde entrar em ação, assim que Ben Gurion emitiu a ordem de captura. Toda a operação foi coordenada e arquitetada pelo célebre diretor do Mossad, Isser Harel, que esteve à frente da agência entre os anos de 1952-1963. O sucesso da missão além de resultar na transferência clandestina de Eichmann da Argentina a Israel, também culminou na difusão da fama do serviço secreto israelense no cenário internacional e na celebração da eficiência das Forças de Defesa no plano interno. Haim Landau, líder do Herut, 38 KNESSET. The Eichmann Trial. Disponível em: <http://www.knesset.gov.il/lexicon/eng/aichman_eng.htm> Acesso em 12/08/2011. 39 JEWISH AGENCY TELEGRAPHIC. Eichmann, Hitler’s “expert” on Annihilation of Jews, Jailed in Israel. 24 de maio de 1960. Disponível em: < http://archive.jta.org/article/1960/05/24/3062799/eichmann-hitlers-expert-on-annihilation-of-jewsjailed-in-israel>. Consulta em 21/05/2012. 40 PEARLMAN, M apud GILBERT, M: “Historia de Israel”. São Paulo: edições 70, 2010. p 389. 41 PEARLMAN, M apud GILBERT, M: “Historia de Israel”. São Paulo: edições 70, 2010. p 389. 30 oposição ao Mapai no Knesset, chegou a parabenizar em público “os serviços de segurança em Israel por seu grande projeto, nacional e humano, em capturar o assassino em massa Adolf Eichmann”42. Os procedimentos pré-processuais para o julgamento foram ágeis e terminaram mergulhando o Estado em um grande esforço político, tanto no plano doméstico, quanto no internacional. Em relação ao primeiro ponto, o ato de seqüestrar Eichmann frente a outro Estado funcionou como um eficiente instrumento de representação do poder político estatal do Estado de Israel como o representante de todos os judeus, afirmando uma unidade frente à plural sociedade civil israelense. O jurista alemão Carl Schmitt nos lembra que “a representação não é nenhum processo normativo, não é nenhum procedimento, mas é algo existencial. Representar quer dizer tornar visível e presentificar um ser invisível através de um ser publicamente presente. A dialética do conceito está em que o que é invisível é pressuposto como ausente e, no entanto, é tornado presente”43. O que se desejava tornar lúcido era exatamente o direito, que em um sentido mais abstrato, é invisível à sociedade. Ele foi eleito pelos agentes estatais como a ferramenta paradigmática perfeita para tecer uma narrativa e expressar determinados sentidos ao nacional, pois, por meio dele seria possível, na compreensão do Mapai, atingir certos pontos dentro de seu projeto político, além de alcançar a ideia de unidade. De acordo com Schmitt, “a forma do direito é regida pela ideia do direito e pela necessidade de aplicar um pensamento de direito a um estado de coisas concreto, isto é, é regida pela efetivação do direito no mais amplo sentido. Como a ideia do direito não se pode efetivar a si mesma, ela precisa, em cada transposição para a efetividade, de uma configuração e de uma formação particular”44. Nesse sentido, dentro do ordenamento jurídico israelense, a lei que ganhou vida e que era capaz de atribuir ao Estado o poder de representação de todos os judeus consistia de uma legislação específica imbuída de um ethos pretérito. Tratava-se da Lei Punitiva de 1950, 42 LANDAU, H apud WEITZ, Y: “The Holocaust Trial: the Impact of the Kasztner and Eichmann Trials on Israeli Society”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 1, número 2, 1996. p 15. Disponível em < http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v001/1.2weitz.html>. Acesso em 15/05/2012. 43 SCHMITT, C apud DE SÁ, Alexandre: “Do Decisionismo à Teologia Política: Carl Schmitt e o conceito de soberania”. Luso Sofia, Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2009. p 17-18. Disponível em:<http://www.lusosofia.net/textos/sa_alexandre_franco_de_do_decisionismo_a_teologia_politica.pdf>. Acesso em 13/02/2012. 44 SCHMITT, C apud DE SÁ, Alexandre: “Do Decisionismo à Teologia Política: Carl Schmitt e o conceito de soberania”. Luso Sofia, Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2009. p 11. Disponível em:<http://www.lusosofia.net/textos/sa_alexandre_franco_de_do_decisionismo_a_teologia_politica.pdf>. Acesso em 13/02/2012. 31 redigida pelo ex-ministro da justiça, e membro do Partido Progressista, Pinchas Rosen. Ao tornar presente uma legislação ligada ao episódio mais sensível da história judaica contemporânea o Mapai tomava a Shoah como norte de seu projeto político. A compreensão do Holocausto a partir de uma bandeira sionista universal, ou seja, envolvendo todo o plural mundo judaico, tornou possível ao Mapai tomá-lo como referencial de uma possível unificação e solidez de uma sociedade tão diversa, além de costurar um rico passado a um presente incompleto, enriquecendo, assim, a simbologia nacional. O ato de atribuir vida ao Holocausto e de representá-lo na esfera pública, sob o prisma do direito, implicava em um exercício, em tese seguro, da autoridade estatal; e coube aos engenheiros políticos, tais como: o primeiro ministro David Ben Gurion, a ministra das relações exteriores Golda Meir e o promotor geral do Estado de Israel Gideon Hausner, explorar os sentidos possíveis e contribuir para o processo de edificação do projeto político nacional. Pelo ato de representação do poder político, o Estado tornava-se capaz de transmitir uma consciência política específica, estabelecendo um sentido do que era pertencer à nação. Dessa forma, os trabalhos internos de organização do caso eram fundamentais, uma vez que por meio deles se tornava possível a delimitação de certas estratégias políticas possíveis de serem alcançadas na corte. A organização jurídica do caso foi de competência da “polícia [israelense], [que] estabeleceu uma unidade especial, o Departamento 06, para interrogar Eichmann e coletar evidências contra ele”45. Os trabalhos desenvolveram-se durante nove meses. “As preparações também incluíam a escolha de testemunhas, e para este propósito a Polícia e o pessoal da Promotoria encontrou se com representantes do Yad Vashem e discutiu assuntos que deveriam ser levantados frente às testemunhas no tribunal”46. Já no cenário internacional o Estado de Israel travou uma verdadeira batalha diplomática com a República Argentina e ainda enfrentou uma vociferante oposição internacional, uma vez que “a abdução de Eichmann de um país soberano e sua transferência para Israel 45 ISRAEL. THE EICHMANN TRIAL: FIFTY YEARS AFTER. A Behind the Scenes View of the Arrest and Trial of Adolf Eichmann. Disponível em: <http://www.archives.gov.il/ArchiveGov_Eng/Publications/ElectronicPirsum/EichmanTrial/EichmanTria lIntroduction.htm>. Acesso em 15/01/2012. 46 ISRAEL. THE EICHMANN TRIAL: FIFTY YEARS AFTER. A Behind the Scenes View of the Arrest and Trial of Adolf Eichmann. Disponível em: <http://www.archives.gov.il/ArchiveGov_Eng/Publications/ElectronicPirsum/EichmanTrial/EichmanTria lIntroduction.htm>. Acesso em 15/01/2012. 32 levantou uma série de questionamentos em relação à legalidade do processo e a questão de Israel ter o direito de julgar Eichmann em seu solo”47. 2 – Dimensões extraprocessuais da Soberania Como pudemos perceber até então, de forma breve, a representação consiste de um, dos princípios da forma política. Ela “assume apesar de todas as formas de Estado, uma identidade estrutural pressuposta entre governantes e governados”48. A captura de Eichmann e sua anunciação à sociedade civil israelense, detonou um esforço político exatamente no sentido de tornar presente um “poder do qual se constitui uma unidade política pelo governo”49 e esse poder era tributário da Lei Punitiva, uma norma capaz de inúmeras possibilidades ao político. Uma delas, como vimos, era a supressão dos antagonismos, caracterizados pela presença de uma miríade de grupos, tais como: Seculares, Religiosos, Asquenazes, Sefarditas, além dos Mizrahim, os Judeus Orientais e os Árabes-israelenses. O fator unificador da grande diversidade de grupos era uma cultura especialmente israelense, no entanto, profundamente, frágil. Suas fontes se desenvolveram na Diáspora, mas sua força vinha da nova realidade, da nova sociedade que estava se consolidando em Israel. O aparelho escolar, o serviço militar obrigatório50, a língua hebraica e o ciclo anual de festividades, tais como: a Páscoa Judaica, o Ano Novo Judaico, o Yom Kippur, o Hanukah, e o Dia de Independência, serviam para unificar a nação. Mas foi por meio de uma expressão universal da Shoah, reivindicada pelo Estado, que uma identidade nacional mais ampla tornou-se uma ferramenta discursiva possível de unificação das diversas tendências do judaísmo e 47 ISRAEL. THE EICHMANN TRIAL: FIFTY YEARS AFTER. A Behind the Scenes View of the Arrest and Trial of Adolf Eichmann. Disponível em: <http://www.archives.gov.il/ArchiveGov_Eng/Publications/ElectronicPirsum/EichmanTrial/EichmanTria lIntroduction.htm>. Acesso em 15/01/2012 48 KELLY, D: “Carl Schmitt’s Political theory of Representation”. Journal of the History of Ideas, University of Pennsylvania Press, Vol 65, Número 1, 2004. p 121. Disponível em: < http://www.jstor.org/stable/3654285 >. Acesso em 15/05/2012. 49 Idem, p 121. 50 Além do historiador britânico Martin Gilbert, o professor de Direito Illan Peleg, do Lafayette College, também defende a posição de que as Forças de Defesa são um ponto importante na definição da identidade israelense. Segundo Peleg: “o Mapai diligentemente moldou a nova sociedade através de instituições como as Forças de Defesa”. PELEG, I: “Israel’s constitutional order and the Kulturkampf: the role of Ben Gurion”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 3, Número 1, 1998. p 232. Disponível em: <http://muse.jhu.edu/login?auth=0&type=summary&url=/journals/israel_studies/v003/3.1peleg.html>. Acesso em 26/06/2012. 33 ainda potencialmente capaz de avançar no processo de conexão entre o presente israelense e episódios do passado judaico. Todavia, o reconhecimento das potencialidades positivas da Shoah não veio com o procedimento contra Eichmann. Ele começou a ser mapeada em fins da década de 1950, por conta do enfraquecimento da figura dos pioneiros e do movimento Kibutzim. Dessa forma, o evento envolvendo o Julgamento de Eichmann, como afirmamos mais acima, auxiliou na aceleração do processo de incorporação do Holocausto às representações nacionais. Sendo assim, segundo o historiador Tom Teicholz: “em 1959, o Yom Hashoah – o Dia de Relembrar o Holocausto – foi oficialmente definido no calendário israelense, uma semana antes do Dia da Independência e no dia em que a Revolta do Gueto de Varsóvia ainda estaria em curso”51. Reafirmando hegemonicamente a força cultural dos judeus Asquenazes, ou seja, os judeus ocidentais, que “ocupam todas as posições de influência no serviço público, exército, educação, indústria, comércio e finanças”52, que se optou por uma representação do Holocausto, um episódio pertencente à história dos judeus europeus, como elemento unificador e de assimilação cultural às outras vertentes do judaísmo. A efetividade da norma israelense de punição aos nazistas e colaboradores convergiu à ideia de unidade política e a fundação dessa coesão encontrava-se no conceito jurídico de soberania. Além de representar a harmonia de um povo, a soberania remete também a um decisionismo cuja essência é o poder de distinção entre: amigo x inimigo. Em Israel o exercício do poder soberano jaz nas mãos do Knesset, o Parlamento israelense. Sua engenharia política, estabelecida desde 1948, não seguiu, no entanto, o modelo constitucionalista ocidental. O Knesset organizou-se a partir de uma dupla função. De um lado ele possui um caráter de Assembléia Constitucional permanente, já do outro uma função legislativa ordinária. Por meio dessa organização os “pais fundadores”, em grande parte políticos do Mapai, acreditavam que o Knesset possuiria uma maior margem de manobra para poder agir em momentos de emergência. Tendo em vista o contexto profundamente hostil ao Estado e a precária condição da segurança, ambos representaram fatores que facilitaram a cristalização do monopólio político de forma absoluta pelo Knesset, tornando mais fácil lidar com a desordem e com a exceção. Nesse sentido, o Parlamento israelense tornou-se ausente de uma 51 TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p20. 52 DEUTSCHER, I: “O Clima espiritual de Israel” In: ______________: “O judeu não judeu e outros ensaios”. Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 1970. p 97. 34 arquitetura que priorizasse um modelo de pesos e medidas, a fim de limitar o poder de decisão. A comunidade política israelense herdou de certa forma uma tradição presente no Yishuv53, quando a soberania não era um instrumento político utilizável. A resolução de contendas era pautada na cooperação e no interesse de evitar divisões nocivas. Dessa forma, a legitimidade partia da representação e da maioria democrática. Essa estrutura, que elevava a soberania parlamentar a grandes alturas, manteve-se com a fundação do Estado, a ponto de Israel conseguir construir uma democracia parlamentar funcional. A dinâmica do Knesset acaba por revelar, então, uma supremacia do político em Israel e essa preponderância era catapultada pelo projeto político do Mapai que endossava que em um contexto social marcadamente dividido, somente o Estado seria capaz de emergir como um fator unificador, na fabricação da nação e garantidor da coesão social. O Knesset além de ser o ponto de encontro de uma sociedade marcadamente plural, ele também foi soberano para decidir sobre a distinção, amigo x inimigo, uma “distinção especificamente política a que podem reportar-se as ações e os motivos políticos”54. A possibilidade que o caso Eichmann abriu foi o de tornar a soberania um instrumento político utilizável, algo capaz de gerar um sentimento de existência a um povo, além de propiciar, a partir do Estado, subsídios à construção de uma identidade nacional. Nesse sentido, “a soberania reside não na lei, mas na decisão que efetiva essa mesma lei, ou seja, no sujeito cujo poder tanto decide a lei, como pode decidir um estado de exceção que suspenda a sua aplicação”55. O que estava em jogo, na compreensão das lideranças estatais israelenses era a de uma efetivação política do povo judeu, a partir de uma lei presente em seu ordenamento jurídico, a Lei Punitiva, e a realização de uma justiça, cuja lógica passava por um reconhecimento dos que pereceram, como entes que outrora fizeram parte do corpo político nacional. Mas para o conceito de soberania tornar-se mais amplo era necessário que o princípio da identidade se afirmasse. Tal como a representação, esse princípio compõe a unidade do Estado. Sua dinâmica é pautada “nominalmente na presença de um povo consciente de si mesmo 53 “Comunidade judaica na Palestina”. YAD VASHEM. Yishuv. Disponível em: < http://www1.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%206375.pdf>. Acesso em 26/06/2012. 54 SCHMITT, C: “O Conceito de Político”. Tradução de Alvaro Valls. Petrópolis: editora Vozes, 1992. p 51. 55 DE SÁ, Alexandre: “Do Decisionismo à Teologia Política: Carl Schmitt e o conceito de soberania”. Luso Sofia, Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2009. p 21. Disponível em:<http://www.lusosofia.net/textos/sa_alexandre_franco_de_do_decisionismo_a_teologia_politica.pdf>. Acesso em 13/02/2012 35 enquanto unidade política”56. O poder derivado dessa condição garante além de uma consciência política, definidora da nação, uma vontade nacional capaz de distinguir entre amigo x inimigo. O primeiro estágio de operacionalização da fusão de identidades: a judaica com a israelense partiu da definição consciente de Eichmann como inimigo do povo judeu. O ato de confeccionar uma nova identidade política a partir do Estado acaba por caracterizar que ele é o ponto de partida para se pensar o político, pois “o conceito do Estado pressupõe o conceito do político”57. As ações empreendidas pelo Mapai consistiam, portanto, de uma cristalização do monopólio do político pelo Estado, ao mesmo tempo em que buscavam afirmar a própria unidade política enquanto soberana. Ao buscar justapor as duas identidades e ao definir o inimigo como um sujeito que desferiu um duro golpe ao corpo político, o Estado de Israel pôde abrir uma exceção à norma internacional e efetivar sua lei particular, a partir de uma decisão soberana. A violação das leis internacionais e o ato de realização da lei nacional, todavia, não vieram acompanhadas somente de elementos de ordem política, mas também morais, uma vez que se evocava o princípio de justiça. Em entrevista ao jornal norte americano The New York Times, Ben Gurion afirmou e reconheceu essa lógica: “eu sei que se cometeu uma quebra na lei, mas algumas vezes existem obrigações morais maiores que a lei formal”58. Apesar da captura do inimigo basear-se na força de imposição do estatal, a legitimidade de tal ação também emergiu de uma justificação puramente moral. Como bem define Martin Kriele: “a soberania do Estado depende de sua legitimidade e a legitimidade fundamenta sua soberania. Nesse sentido, o problema da legitimidade é o lado interno do problema da soberania”59. Apesar da decisão ser uma efetividade política, no que diz respeito à captura de Eichmann; a configuração de uma corte a julgá-lo remeteu tanto a uma “suprema validade moral”60 quanto a uma “força moral transcendente”61, uma vez que se levava à Justiça um assassino de um povo. Essa 56 SCHMITT, C apud KELLY, D: “Carl Schmitt’s Political theory of Representation”. Journal of the History of Ideas, University of Pennsylvania Press, Vol 65, Número 1, 2004. p 121. Disponível em: < http://www.jstor.org/stable/3654285 >. Acesso em 15/05/2012. 57 SCHMITT, C: “O Conceito de Político”. Tradução de Alvaro Valls. Petrópolis: editora Vozes, 1992. p43. 58 GURION, B. 18 de dezembro de 1960. “The Eichmann Case as seen by David Ben Gurion”. New York Times. Disponível em: <http://blockyourid.com/~gbpprorg/obama/nytimes_ww2/soapfactoryeichmann.pdf>.Acesso:23/06/2012. 59 KRIELE, M apud BÉRTIN, H; CORBETTA, J: “La noción de legitimidad en el concepto de lo político de Carl Schmitt”. Buenos Aires: Editorial Struhart & Cia, 1997. p 76. 60 GURION, B Apud LIVERPOOL. L: “The Trial of Adolf Eichmann”.London: Heinemann, 1962. P xiii. 61 GURION, B Apud LIVERPOOL. L: “The Trial of Adolf Eichmann”. London: Heinemann, 1962. P xiii. 36 dualidade político x moral desempenhou um papel chave na definição desse julgamento como um episódio singular na história de Israel. Em carta ao presidente argentino, o primeiro ministro israelense referia-se nos seguintes termos: “nunca, nem mesmo nos velhos anais de nosso martírio, houve tal demoníaca atrocidade [o Holocausto]. Não somente foram assassinados milhões – incluindo um milhão de crianças – mas o centro cultural e espiritual de nosso povo, que até a Segunda Guerra Mundial tinha suas raízes na Europa, foi extirpado”62. O representante argentino nas Nações Unidas não se ateve a justificativa israelense e requereu, por meio de uma carta, datada de 15 de junho de 1960, uma convocação urgente do Conselho de Segurança, para tratar da violação da soberania Argentina. Segundo o diplomata argentino a ação “era contrária às regras das leis internacionais e os objetivos e princípios da Carta das Nações Unidas, criando uma atmosfera de insegurança e incompatibilidade com a preservação da paz internacional”63.Como forma de reparação o governo argentino exigiu a repatriação de Eichmann e a punição aos responsáveis pela violação de sua soberania. Essa queixa, contudo, procedia de forma parcial. “Haveria uma obrigação legal de entregar os seqüestradores somente se existisse um tratado de extradição especificando o seqüestro como um crime extraditável entre os dois países em questão”64. Existia um tratado de extradição entre Israel e Argentina, mas ele não fora ratificado, então não possuía eficácia alguma. Sendo assim, para o Conselho a violação não infringiu a paz internacional, tampouco a segurança internacional. Isso não tirava, aos olhos dos membros permanentes, a singularidade do caso, tendo em vista o precedente que ele inaugurava. “Mas ao governo de Israel a violação isolada da lei argentina devia ser considerada à luz da excepcionalidade e singularidade dos crimes atribuídos a Eichmann, por um lado, e os motivos para a ação de meios não usuais, do outro”65. Ao final da disputa, o Conselho deu seu parecer a favor de Israel, no entanto, declarou que “o Governo de Israel realizasse as apropriadas reparações de acordo com a Carta das Nações Unidas e o 62 GURION, B Apud LIVERPOOL. L: “The Trial of Adolf Eichmann”.London: Heinemann, 1962. P xii. UNITED NATIONS. Complaint by Argentina (Eichmann Case) Initial Proceedings. p 159. Disponível em: <http://www.un.org/en/sc/repertoire/59-63/Chapter%208/59-63_08-7Complaint%20by%20Argentina.pdf>. Acesso em 22/06/2012. 64 GREEN, L: “The Eichmann Case”. The Modern Law Review. Volume 23, 1960. p 503. Disponível em: < http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1468-2230.1960.tb02770.x/abstract>. Acesso em 23/06/2012. 65 UNITED NATIONS. Complaint by Argentina (Eichmann Case) Initial Proceedings. p 161. Disponível em: <http://www.un.org/en/sc/repertoire/59-63/Chapter%208/59-63_08-7Complaint%20by%20Argentina.pdf>. Acesso em 22/06/2012. 63 37 regulamento das leis internacionais”66. Portanto, a decisão dos membros do Conselho de Segurança, em relação à queixa aberta pela Argentina contra Israel, não foi baseada em considerações legais, tendo em vista que o Conselho é um órgão político e não de justiça. A natureza da decisão dos membros permanentes foi puramente política, o que fortaleceu, de certa forma, a natureza política do caso. A intencionalidade do seqüestro de Eichmann e a organização de uma corte a julgá-lo expressavam alguns interesses, bem sintetizados na forma de “lições” valorosas ao mundo; primeiramente: “deve se ensinar a lição de que os judeus não são ovelhas a serem massacradas, mas um povo capaz de revidar, assim como os judeus fizeram na Guerra de Independência”67. Outro aspecto enaltecido por Ben Gurion foi o de um enquadramento de uma visão ampla da Shoah: “um dos nossos motivos em trazer Eichmann a julgamento é o de tornar claro em detalhes conhecidos à geração de israelenses que cresceram desde o Holocausto”68. O ultimo ponto passava pela definição de Eichmann como inimigo, a fim de garantir ao corpo político unidade e uma essência de existência. Nas palavras do promotor Gideon Hausner essa ideia torna-se mais clara: “houve apenas um homem que se preocupou exclusivamente com os judeus, cujo negócio tinha sido sua destruição, cujo lugar no estabelecimento do iníquo regime havia sido limitado a eles. Esse foi Adolf Eichmann”69. Já no plano moral a ação embasava se nos valores estruturantes do cenário internacional do pós II Guerra Mundial, como citado mais acima, que possuíam como grande paradigma a dignidade da pessoa humana. Como signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Israel demonstrava uma concordância plena e um compromisso com tais valores, mas frente à Convenção de Prevenção do Genocídio, reunida no mesmo ano, seu posicionamento era parcial. No preâmbulo da Declaração percebemos a força de conceitos referenciais ao mundo, como os de: dignidade humana, o de direito e equidade: 66 UNITED NATIONS. Complaint by Argentina (Eichmann Case) Initial Proceedings. p 159. Disponível em: <http://www.un.org/en/sc/repertoire/59-63/Chapter%208/59-63_08-7Complaint%20by%20Argentina.pdf>. Acesso em 22/06/2012. 67 GURION, B. 18 de dezembro de 1960. “The Eichmann Case as seen by David Ben Gurion”. New York Times. Disponível em: < http://blockyourid.com/~gbpprorg/obama/nytimes_ww2/soapfactoryeichmann.pdf>.Acesso:23/06/2012 68 GURION, B. 18 de dezembro de 1960. “The Eichmann Case as seen by David Ben Gurion”. New York Times. Disponível em: < http://blockyourid.com/~gbpprorg/obama/nytimes_ww2/soapfactoryeichmann.pdf>.Acesso:23/06/2012 69 HAUSNER, G Apud DOUGLAS, L: “The Memory of Judgment: making Law and History in the trials of Holocaust”. New Haven: Yale University Press, 2011. p 98. 38 Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis constitua o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo... Considerando que é essencial que os direitos do homem sejam protegidos por um regime de direito para que o homem não seja constrangido, como recurso extremo, a revolta contra a tirania e a opressão70. Já em relação à Convenção ratificada por Israel, no artigo sete, concordava-se que o crime de genocídio não é um crime político. Esse ponto foi o primeiro afastamento de Israel frente à moralidade do cenário internacional, pois se concebia o Holocausto à luz da Lei Punitiva como um crime contra o povo judeu especificamente. Pelo artigo seis os indivíduos acusados de genocídio deveriam ser julgados por um tribunal competente do Estado cujo território fora palco dos crimes, ou por um Tribunal Penal Internacional, algo que também não aconteceu. O eixo da moralidade levantada por Israel consistia do fato dos nazistas e mais especificamente Eichmann, afastarem-se permanentemente frente ao Direito, graças à natureza do regime instituído na Alemanha entre 1933-1945 e a seqüência de crimes perpetrados. Por meio do Direito Internacional e do Direito Penal, eles foram convertidos de inimigos a criminosos e julgá-los representava um compromisso de assegurar os valores de ação ético-sociais presentes no mundo. A captura do inimigo e a condução dele a um julgamento compreendeu, portanto, exatamente um sentido político, uma vez que se tratava do inimigo objetivo do povo judeu, como bem atribuído a partir de uma narrativa política e jurídica, e os agentes políticos visavam, também, um direcionamento político; mas foi ao mesmo tempo moral, pois os valores invocados diziam respeito à comunidade israelense e possuíam natureza absoluta, já que convergiam à moralidade do contexto político internacional e foram guiados pelo princípio normativo de justiça, contra um inimigo do mundo civilizado [hostes humanis generis]. Sendo assim, através do conceito político de inimigo, o Estado de Israel encontrou uma poderosa ferramenta de legitimação interna do processo. 70 UNITED NATIONS: “The Human Declaration of Human Rights”. Disponível em: <http://www.un.org/en/documents/udh/>. Acesso em 18/01/2012. 39 3 – Interesses do Estado A identificação dos nazistas como inimigos do mundo civilizado e a subseqüente compreensão da natureza dos crimes de Eichmann como algo que feria toda a humanidade, e não somente ao povo judeu, resultou no delineamento de uma série de questionamentos acerca da competência nacional de um Estado para julgá-lo e de denúncia, por parte de uma série de intelectuais, dos possíveis sentidos políticos e nacionais desejados pelo Estado de Israel. Segundo o jurista brasileiro Celso Lafer: Nas discussões doutrinárias sobre o processo Eichmann, as objeções à competência judicial da Corte israelense para julgá-lo foram de duas ordens: as ligadas às circunstâncias especiais que cercaram a captura do acusado que violaram a soberania da Argentina, e as vinculadas ao princípio de territorialidade – vale dizer, ao fato de Israel não ser o forum deliti comissi previsto pela Convenção para Prevenção do Genocídio71. Seguindo na esteira desses questionamentos, o filósofo alemão Max Horkheimer apontou que “salta a vista que as razões formais para o processo são insustentáveis. Nem Eichmann assassinou em Israel, nem pode Israel querer que se converta em regra a captura de criminosos políticos no exílio”72. Já para Karl Jaspers, outro importante intelectual alemão: “as bases legais deste julgamento são duvidosas e enfrentá-lo em termos jurídicos, é um erro”73. Hannah Arendt em correspondência com Karl Jaspers somou-se ao grupo de intelectuais críticos, apontando alguns interesses de Israel com o caso, algo que poderia comprometer o exercício da justiça. Para ela: “é uma certeza que haverá um esforço para mostrar à juventude de Israel (e pior ainda) de todo o mundo, algumas coisas. Entre outras coisas, que os judeus não israelenses acabaram em situações em que eles mesmos deixaram-se ser abatidos como ovelhas. Também que os árabes estiveram de mãos dadas com os nazistas”74. Na compreensão de 71 LAFER, C: “A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt”. São Paulo, Cia das Letras, 1988. p 173. 72 HORKHEIMER, M: “Sobre La captura de Eichmann” In_______. “Sociedad, razón y libertad”. Madrid: Editorial Trotta, 2005. p 127. 73 JASPERS, K apud DOUGLAS, L: “The Memory of Judgment: making Law and History in the trials of Holocaust”. New Haven: Yale University Press, 2011. p 175 74 ARENDT, H apud ZERTAL, I: “ From the People's Hall to the Wailing Wall: A Study in Memory, Fear, and War”. Representations, No. 69, Special Issue: Grounds for remembering .Winter, 2000. Disponível em : <http://www.jstor.org/stable/2902902 > . p 107. Acesso em 08/08/2011. 40 Arendt a natureza política do caso suscitava ainda “uma série de outras possibilidades de distorção”75. Mas para o Mapai: Eichmann era acusado de assassinar milhões de judeus. Um julgamento perante uma Corte Internacional era algo impensável aos políticos à frente do Estado, até porque, como explicitava a ministra das relações exteriores, Golda Meir: “nós estamos continuando, em Israel, a iniciativa de Nuremberg ”76. Meir Argov, outra importante figura do Mapai, declarou que a organização do julgamento devia-se exclusivamente “a existência de um Estado judaico”77, o que dava ao caso uma aura muito particular. Para Argov “era a primeira vez na história da perseguição ao povo judeu, na história do massacre de nosso povo, que um chefe açougueiro é posto em julgamento pelos próprios judeus”78. Esses elementos, na compreensão de muitas figuras do Mapai, além de atribuírem uma especificidade à corte, também a legitimavam em um plano político e moral, uma vez que afirmavam a potência do Estado judaico. Nas palavras do promotor do caso: “levar Eichmann a uma Corte Internacional! Qual tribunal internacional? O Tribunal Internacional de Haia lida com disputas entre Estados; ele não tem jurisdição penal sobre os indivíduos e o Tribunal Militar Internacional sediado em Nuremberg terminou seus trabalhos e não mais existe”79. A organização de uma corte nacional expressava um profundo sentimento de autonomia, força e soberania, o que acabou sendo usado pelos agentes estatais para auto afirmarem-se politicamente no cenário internacional, tendo em vista que o grande inimigo político do povo judeu fora capturado. Na capa do periódico Ma’Ariv, sob um título sugestivo: “Em direção ao Tribunal de Jerusalém”, o jornalista Yehoshua Gilboa expressava o que muitos israelenses pensavam acerca das competências nacionais. Segundo o jornalista: “se as mãos da providência depositaram essa histórica missão nas 75 ZERTAL, I: “ From the People's Hall to the Wailing Wall: A Study in Memory, Fear, and War”. Representations, No. 69, Special Issue: Grounds for remembering .Winter, 2000. Disponível em: < http://www.jstor.org/stable/2902902 > . p 107. Acesso em 08/08/2011. 76 ISRAEL. THE EICHMANN TRIAL: FIFTY YEARS AFTER. A Behind the Scenes View of the Arrest and Trial of Adolf Eichmann. Disponível em: <http://www.archives.gov.il/ArchiveGov_Eng/Publications/ElectronicPirsum/EichmanTrial/EichmanTria lIntroduction.htm>. Acesso em 15/01/2012. 77 ARGOV, M apud WEITZ, Y: “The Holocaust Trial: the Impact of the Kasztner and Eichmann Trials on Israeli Society”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 1, número 2, 1996. p 15. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v001/1.2weitz.html>. Acesso em 15/05/2012. 78 ARGOV, M apud WEITZ, Y: “The Holocaust Trial: the Impact of the Kasztner and Eichmann Trials on Israeli Society”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 1, número 2, 1996. p 15. Disponível em < http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v001/1.2weitz.html>. Acesso em 15/05/2012. 79 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: < http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-004-02.html>. Acesso em 25/03/2012. 41 mãos dos judeus, nas mãos dos israelenses – existe alguma justificação para remover o julgamento de suas mãos?”80. Na compreensão do Mapai julgar sob os auspícios do conceito jurídico internacional de “Crimes contra a Humanidade” representava a fraqueza de um povo incapaz de defender-se. Sendo assim, para Ben Gurion: “Israel não necessita da proteção moral de uma Corte Internacional”81. A compreensão histórica do primeiro ministro passava por uma percepção cuja marca era uma distinção de “que Hitler e seus seguidores mataram poloneses, russos e muitos outros povos. Mas Hitler em seu plano de dominar o mundo buscava subjugar essas pessoas, não exterminá-las. Ele nunca pretendeu assassinar um povo inteiro, exceto os judeus”82. Dessa forma, os nazistas eram, de fato, inimigos do povo judeu e caberia ao Estado de Israel, como representante da posição dos judeus no mundo, o direito especial de julgá-los. A crítica à posição que Israel representava todo o mundo judaico, a partir do direito e da narrativa política não foram atacadas somente por intelectuais próximos da comunidade judaica, como Arendt e Horkheimer. Nahum Goldmann, presidente do Congresso Judaico Mundial, também propôs uma Corte Internacional para julgar os crimes de Eichmann, o que ia contra os objetivos políticos do Estado de Israel. Em sua opinião “já que Eichmann e os nazistas exterminaram não somente judeus, seria interessante convidar os países envolvidos, muitos dos quais tiveram cidadãos assassinados, a enviar seus próprios juízes”83. Tal proposta, todavia, era politicamente inviável, pois, como fora expresso por Ben Gurion: os nazistas configuravam-se como inimigos históricos do povo judeu e não das demais nacionalidades. A posição contrária de uma figura tão importante quanto Goldmann caracterizava, segundo o primeiro ministro: “um grave e severo golpe aos sentimentos do povo de Israel e a honra do 80 GILBOA, Y apud WEITZ, Y: “The Holocaust Trial: the Impact of the Kasztner and Eichmann Trials on Israeli Society”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 1, número 2, 1996. p 16. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v001/1.2weitz.html>. Acesso em 15/05/2012. 81 GURION, B. 18 de dezembro de 1960. The Eichmann Case as seen by David Ben Gurion. New York Times.Disponível:<http://blockyourid.com/~gbpprorg/obama/nytimes_ww2/soapfactoryeichmann.pdf>. Acesso: 23/06/2012. 82 GURION, B. 18 de dezembro de 1960. The Eichmann Case as seen by David Ben Gurion. New York Times.Disponível:<http://blockyourid.com/~gbpprorg/obama/nytimes_ww2/soapfactoryeichmann.pdf>. Acesso: 23/06/2012. 83 GOLDMANN, N apud WEITZ, Y: “The Holocaust Trial: the Impact of the Kasztner and Eichmann Trials on Israeli Society”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 1, número 2, 1996. p 16. Disponível em < http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v001/1.2weitz.html>. Acesso em 15/05/2012. 42 Estado”84. A opinião do promotor do caso, Gideon Hausner, era categórica, no sentido da natureza do golpe desferido contra o mundo judaico: “o primeiro e mais específico crime, o mais hediondo e obvio deles, foi contra o povo judeu”85 . Nesse sentido, aos olhos dos israelenses, o ato de julgar Eichmann consistiu de uma justiça histórica. Somente um Estado judeu pode julgá-lo, a partir de um ponto de vista moral. Através da operacionalidade política do discurso jurídico e do discurso moral que os agentes estatais buscaram legitimar sua ação, ao mesmo tempo em que exploravam e manuseavam um sentido bem particular do caso: a percepção de que Israel era o único herdeiro dos judeus assassinados. Consistia no único Estado judeu existente e em segundo lugar uma argumentação puramente sionista e política: “se esses judeus estivessem vivos, eles deveriam estar aqui [Israel] porque a maioria deles desejaria vir morar em um Estado judaico”86. 3.1 – Sentidos internacionais do político Levantando uma bandeira política e histórica de responsabilidade nacional, competência e legitimidade internacional para julgar Eichmann, o Estado de Israel esbarrava em outras nações que também possuíam grande sensibilidade em relação a um julgamento do Holocausto, pois as leis internacionais, na ausência de tratados que expressem direitos individuais, somente reconhece o direito dos Estados. Um dos Estados que poderia reivindicar a tutela de Eichmann para julgá-lo era a Polônia. Em território polonês que a Endlösung [Solução Final]87 foi mais eficiente e os poloneses 84 GURION, B apud WEITZ, Y: “The Holocaust Trial: the Impact of the Kasztner and Eichmann Trials on Israeli Society”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 1, número 2, 1996. p 16. Disponível em < http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v001/1.2weitz.html>. Acesso em 15/05/2012. 85 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: < http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-004-02.html>. Acesso em 25/03/2012. 86 GURION, B. 18 de dezembro de 1960. The Eichmann Case as seen by David Ben Gurion. New York Times.Disponível:<http://blockyourid.com/~gbpprorg/obama/nytimes_ww2/soapfactoryeichmann.pdf>. Acesso: 23/06/2012. 87 “Codinome para o plano nazista de solucionar a “Questão Judaica” por assassinato de todos os judeus da Europa. A “Solução Final” foi a culminância, após muitos anos, de uma série de políticas nazistas – que começavam com os primeiros escritos de Hitler sobre a necessidade de uma solução para a Europa do problema judaico; seguido pela tentativa dos nazistas de induzir a emigração em massa durante a década de 1930 – através de um plano de exílio coletivo a um específico destino e finalmente em 1941,o extermínio em massa dos judeus”. YAD VASHEM. Final Solution.Disponível em: <http://www1.yadvashem.org/odot_pdf/microsoft%20word%20-%205851.pdf>. Acesso em 20/02/2012. 43 acabaram por demonstrar uma imensa insatisfação com as prerrogativas nacionais estabelecidas por Israel, a ponto de boicotarem os esforços diplomáticos israelenses, no sentido de obtenção de documentação sobre a Solução Final [Endlösung] e a Aktion Reinhardt88. A natureza política do caso possibilitou ao Estado de Israel aplicá-lo no contexto das relações internacionais no cenário do Oriente Médio. Tendo em vista os constantes atritos com os vizinhos árabes, em especial a Síria e o Egito, o julgamento, em sua dimensão exterior aos processos penais, forneceu uma série de ferramentas políticas ao Mapai para afirmar internacionalmente uma determinada ordem de sobrevivência. A possibilidade constante do conflito com esses dois Estados islâmicos, após a Campanha do Sinai, no caso do Egito, e as freqüentes escaramuças com a Síria, tornou-se algo mais concreto na virada do ano 1959-1960. A postura agressiva dos Árabes frente a Israel assegurou, no interior de uma retórica política, o Holocausto como um fenômeno puramente judaico, uma vez que se tornava o imperativo de sobrevivência de Israel como historicamente semelhante ao que fora vivenciado antes pelo povo judeu. O contexto de extermínio foi transplantado ao Oriente médio e essa relação foi costurada pelas acusações de haverem nazistas escondidos nos países árabes e pela conduta antisionista de suas lideranças. A relação de tensão e iminência do conflito, existente desde 1948, por parte de algumas lideranças árabes, nos lembra que: “se um povo teme os incômodos e o risco da existência política, então há de se encontrar justamente outro povo que lhe retire estes incômodos, assumindo para tanto sua proteção “contra o inimigo externo” e com isso também a dominação política; o protetor determina então o inimigo em virtude da eterna conexão de proteção e obediência”89. Essa dinâmica de equivalência entre as figuras dos inimigos serviu, aos olhos das lideranças do Mapai, como um elemento de coesão e manutenção de uma solidez do corpo político, garantindo, assim, a sobrevivência política. Para o sucesso da transposição política e histórica de um evento como o Holocausto à dinâmica internacional do Oriente Médio necessitava-se de fundamentos sólidos à equiparação dos dois inimigos: os nazistas e os árabes. Dentre os pilares dessa 88 “Codinome para a operação nazista de exterminar 2,284,000 judeus nos cinco distritos do Governo Geral: Varsóvia, Lublin, Radom ,Cracóvia e Lvov. Durante os últimos meses de 1942 a operação estendeu-se ao distrito de Bialystok, acrescentando mais 210,000 judeus. Nomeou-se Aktion Reinhard após o assassinato de Reinhard Heydrich, principal organizador da “Solução Final” na Europa, que fora assassinado por resistentes tchecos”. YAD VASHEM. Aktion Reinhardt. Disponível em: <http://www1.yadvashem.org/odot_pdf/microsoft%20word%20-%205724.pdf>. Acesso em 20/02/2012. 89 SCHMITT, C: “O Conceito de Político”. Tradução de Alvaro Valls. Petrópolis: editora Vozes, 1992. p 78. 44 operação encontramos a retórica subsidiada pelos trabalhos internos da corte. Ben Gurion conclamava que “não havia dúvidas de que a ditadura egípcia estava sendo instruída por um grande número de nazistas, que lá se encontram”90. Além da retórica, o político também auxiliou na equiparação dos inimigos. Dessa forma, para o Mapai “o julgamento de Eichmann poderia ajudar em demonstrar a conexão entre os nazistas e os líderes árabes”91.Golda Meir, a ministra das relações exteriores, defendeu frente ao primeiro ministro que a relação de equivalência entre os contextos históricos e os inimigos fosse estabelecida, a partir dos esforços internos do tribunal. Em sua compreensão deveria haver um esforço em “dar uma posição proeminente aos laços estabelecidos entre Eichmann e o Mufti de Jerusalém”92. Sendo assim, foi a eventualidade do conflito de Israel com seus vizinhos que terminou por ampliar todo o conhecimento da forma política estatal, que reconhecera na Shoah, em partes, um elemento importante de retórica e legitimação do agir, ao mesmo tempo em que afirmava a questão da defesa da soberania como cláusula pétrea. Isso porque, para Ben Gurion: O povo de Israel só poderá desempenhar sua grande missão histórica no reinado do espírito (...) se firmar sua posição política no plano internacional, se sua paz for baseada em sólidos fundamentos de segurança, apoiados na sua força independente. E por isso a política de Israel se orienta única e exclusivamente pelos problemas de segurança e da posição internacional 93. Os interesses políticos, como os de soberania e de geopolítica, puderam, portanto, ser explorados pelo Estado de Israel, graças à série de potencialidades políticas e enquadramentos de sentidos muito específicos. Eichmann deveria ser tratado como fonte de perigo e, portanto, como meio para intimidar outras pessoas. 90 GURION, B. 18 de dezembro de 1960. The Eichmann Case as seen by David Ben Gurion. New York Times.Disponível:<http://blockyourid.com/~gbpprorg/obama/nytimes_ww2/soapfactoryeichmann.pdf>. Acesso: 23/06/2012. 91 ISRAEL. THE EICHMANN TRIAL: FIFTY YEARS AFTER. A Behind the Scenes View of the Arrest and Trial of Adolf Eichmann. Disponível em: < http://www.archives.gov.il/ArchiveGov_Eng/Publications/ElectronicPirsum/EichmanTrial/EichmanTrialI ntroduction.html>. Acesso em: 14/02/2012. 92 ISRAEL. THE EICHMANN TRIAL: FIFTY YEARS AFTER. A Behind the Scenes View of the Arrest and Trial of Adolf Eichmann. Disponível em: <http://www.archives.gov.il/ArchiveGov_Eng/Publications/ElectronicPirsum/EichmanTrial/EichmanTria lIntroduction.htm>. Acesso em 14/02/2012. 93 GURION, B: “O Despertar de um Estado”. Rio de Janeiro, Editora Monte Scopus, 1957. p 96. 45 3.2 – Dimensões extraprocessuais do político: o antissemitismo como ponte histórica entre os inimigos do Estado Utilizando a figura extraprocessual de Eichmann como elemento de dissuasão frente aos inimigos contemporâneos do Estado, o Mapai pôs em equivalência os árabes, que ameaçavam a posição israelense, e os nazistas que buscaram o extermínio do povo judeu. Segundo o primeiro ministro israelense: “a partir do que ouvimos das rádios egípcias, existe uma propaganda egípcia que é conduzida puramente em linhas nazistas... Eles usualmente dizem “sionistas”, mas eles querem dizer que os judeus – dominam os Estados Unidos, os judeus dominam a Inglaterra, os judeus dominam a França e eles devem ser combatidos” 94. O denominador em comum imputado aos dois inimigos foi a postura anti-semita. Atribuindo politicamente um traço transhistórico a essa categoria, os agentes estatais puseram em equivalência espécies distintas de antissemitismo, tais como a postura anti-sionista das lideranças árabes e a política eliminacionista do governo nazista. O cientista político Renato Lessa chama atenção para uma diferenciação entre essas modalidades. Em suas palavras: O antissemitismo pós Auschwitz tem que ser pensado em uma chave distinta do antissemitismo anterior ao Holocausto. Este último, como sabemos, valia-se fundamentalmente de uma série de estereótipos, de preconceitos comuns na sociedade européia, desde os mais jocosos aos mais violentos, chegando até o limite do preconceito de caráter eliminacionista. Mas era um antissemitismo que tinha como referência, e não se envergonhava disso, o ódio explícito à pessoa individual e coletiva dos judeus. Estava associado diretamente a uma atitude de negação, de agressão, de repulsa ao que o judeu significava, física, política e culturalmente. Era indissociável, este antissemitismo, de uma manifestação direta de caráter preconceituoso e supremacista95. Todavia, nas palavras de Ben Gurion a equivalência se tornava clara: “nós queremos que as nações do mundo saibam que houve uma intenção de exterminar um povo. Que esta intenção possui suas raízes no antissemitismo. Eles deveriam saber que o antissemitismo é perigoso, e eles devem envergonhar-se disso”96. Dessa forma, “o 94 GURION, B. 18 de dezembro de 1960. The Eichmann Case as seen by David Ben Gurion. New York Times.Disponível:<http://blockyourid.com/~gbpprorg/obama/nytimes_ww2/soapfactoryeichmann.pdf>. Acesso: 23/06/2012. 95 LESSA, R: “Ser Anti-Semita depois de Auschwitz”. In FUKS, S: “Tribunal da História: Processos de Formação da Identidade Judaica e do Anti-Semitismo”. Rio de Janeiro: Imago. Vol II.2004 .p 300 96 GURION, B. 18 de dezembro de 1960. The Eichmann Case as seen by David Ben Gurion. New York Times.Disponível:<http://blockyourid.com/~gbpprorg/obama/nytimes_ww2/soapfactoryeichmann.pdf>. Acesso: 23/06/2012. 46 julgamento de Eichmann era o julgamento do povo judeu contra o eterno antissemitismo em todas as nações e através das gerações”97. O sentimento contrário aos judeus rotulado de forma política a encobrir suas especificidades escondia uma modalidade sui generis de antissemitismo: o anti-sionismo. O discurso árabe de negação ao Estado de Israel carregava consigo implicações sérias de combate à identidade, à tradição e à história judaica. Nesse sentido, a relação de equivalência estabelecida à custa do conceito de inimigo demonstrou uma bem executada manobra política na esfera do discurso que preencheu de substância a figura do inimigo, a partir de uma categoria “genérica”. Por mais que os nazistas não mais pudessem gozar de uma posição internacional capaz de pôr em perigo a existência política do Estado de Israel, os árabes podiam. Graças à possibilidade concreta do conflito com seus vizinhos “os conceitos de amigo, inimigo e luta, adquiriram seu real sentido pelo fato de terem mantido primordialmente uma relação com a possibilidade real de aniquilamento físico”98. A percepção de fenômenos tão díspares a partir da lógica simples do antissemitismo implicava em certa redutibilidade da Shoah. A retórica política acabava por resgatar uma visão muito cara ao sionismo, bem sintetizada nas palavras de Herlz, no célebre trabalho O Estado Judeu: Creio compreender o antissemitismo, que é um movimento muito complexo. Encaro este movimento na minha qualidade de judeu, mas sem ódio e sem medo. Creio reconhecer o que, no antissemitismo, é zombaria grosseira, vulgar, inveja do ofício, preconceito hereditário, mas também o que pode ser considerado como um efeito de legítima defesa. Não considero a questão judaica nem como uma questão social, nem como uma questão religiosa, qualquer que seja, aliás, o aspecto particular sob o qual ela se apresenta, conforme os tempos e lugares. É uma questão nacional, e para resolvê-la, é preciso antes de mais nada fazer dela uma questão de política universal, que deverá ser regulada nos conselhos dos povos civilizados99. O caso Eichmann, portanto, despontava como “o julgamento do povo judeu contra o eterno antissemitismo em todas as nações e através das gerações” . Por meio dele também se tornava possível explorar uma relação entre a edificação do Estado nacional e a Shoah. Essa relação operava por meio de um aspecto heurístico de prova absoluta do 97 ZERTAL, I: “ From the People's Hall to the Wailing Wall: A Study in Memory, Fear, and War”. Representations, No. 69, Special Issue: Grounds for remembering .Winter, 2000. Disponível em: < http://www.jstor.org/stable/2902902 > . p 100. Acesso em 08/08/2011. p 111. 98 SCHMITT, C: “O Conceito de Político”. Tradução de Alvaro Valls. Petrópolis: editora Vozes, 1992. p 59. 99 HERZL, T: “O Estado Judeu”. Tradução de David José Perez. Rio de Janeiro: editora Garamond, 1998. p 48. 47 prognóstico sionista de que Israel era a única solução para o problema judaico. Segundo Hannah Arendt “o sionismo europeu tem muitas vezes pensado e dito que o mal do antissemitismo foi necessário para o bem do povo judeu”100. Nesse sentido, “a destruição dos judeus europeus pelo regime nazista seria mais um capítulo nas tribulações do povo judeu, uma confirmação da necessidade de se fazer a nação”101. Outro aspecto ainda não explorado dentro da dimensão política foi o da esfera jurídica. A corte invocou os princípios: da personalidade passiva, da territorialidade e da competência universal como forma de legitimação jurídica do processo. Analisando primeiramente o último princípio, Israel recebeu dos dois Estados que poderiam requerer a extradição de Eichmann um salvo conduto. Tanto a Áustria, quanto a Alemanha Ocidental buscaram se afastar juridicamente do caso. O governo austríaco rapidamente desvinculou Eichmann de sua cidadania austríaca. O ministro do interior Josef Afritsch, um social democrata, pessoalmente transmitindo as demandas da República da Áustria explicitou: “O que nós precisamos (...) é de um relatório que prove que Eichmann é um cidadão alemão, caso ele seja pronunciado culpado como um austríaco, nos vamos 102 [Wiedergutmachtung]” acabar pagando até o nariz reparações de guerra . O receio da Áustria era o de que na concepção de Afritsch: “durante este julgamento um grande número de associações de vítimas se aproxime de nós com demandas”103. Por conta disso, o governo austríaco isentou-se de qualquer prerrogativa jurídica ao julgamento de Eichmann. Para a Alemanha Ocidental o caso trouxe a tona questões muito problemáticas. Havia um receio muito grande de que não fosse feita uma diferenciação histórica entre a Alemanha nazista e a República Federal. O Chanceler Konrad Adenauer rapidamente posicionou-se ao lado de Ben Gurion. No Bundestag [o parlamento alemão] ele afirmou que: “o povo alemão é absolutamente unânime na condenação e repulsa a Eichmann e seus crimes”104 . Adenauer e o primeiro ministro israelense possuíam uma boa relação, uma vez que a Alemanha pagava, desde a década de 50, reparações ao governo israelense. Temerosa de uma onda 100 ARENDT, H: “The Jewish Writings”. New York: Schocken Books, 2007. p 479. CARACIKI, L: “O monumento ao Gueto de Varsóvia de Nathan Rapoport em Varsóvia e Jerusalém: enquadramento ideológico e narrativas da Shoah (1948-1975)”. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro,2010. p 21. 102 SAFRIAN, H: “Eichmann’s Men”. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p 211. 103 AFRITSCH Apud SAFRIAN, H: “Eichmann’s Men”. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p 211. 104 JEWISH AGENCY TELEGRAPHIC.Adenauer Condemns Eichmann and His Crimes in German Parliament. 10 de Março de 1961. Disponível em: <http://archive.jta.org/article/1961/03/10/3065564/adenauer-condemns-eichmann-and-his-crimes-ingerman-parliament>. Acesso em 23/06/2012. 101 48 antigermânica, a Alemanha Ocidental detonou um esforço, após a captura de Eichmann, para poder julgar alguns dos responsáveis por crimes durante o período nazista105. “A República Federal recusou qualquer tipo de proteção diplomática a Eichmann e colaborou com as autoridades israelenses, ouvindo inclusive testemunhas do processo na Alemanha. Desta maneira, por aprovação e aquiescência a Alemanha Federal, de sua parte, sanou qualquer responsabilidade internacional de Israel no que tange à competência judicial da corte israelense que julgou Eichmann”106. Pelo fato de nenhum dos possíveis interessados jurídicos no caso demonstrarem interesse e pelo fato do Estado de Israel levantar uma bandeira universal, uma vez que os crimes de Eichmann afetavam a humanidade, “qualquer um que pusesse as mãos nele é competente para julgá-lo”107. 4 – Precedentes: continuidades e rupturas A jurisdição penal de Israel para julgar Eichmann necessitava de uma tênue operação política, pois, em primeiro lugar, os crimes cometidos não implicavam na presença do acusado no tempo em que tais ações foram desencadeadas; em segundo lugar, a nacionalidade das vítimas não era compatível com a do Estado de Israel, uma vez que essas foram despidas de seus direitos por um processo jurídico nacional; assim, a nacionalidade das vítimas não era a do Estado que exercia a jurisdição. Tampouco Eichmann gozava da nacionalidade israelense. Mas como vimos os países que poderiam reivindicar seu expatriamento não o fizeram. O eixo político do julgamento revelava-se exatamente em duas prerrogativas penais. Primeiramente, os efeitos do crime, como citado mais acima, foram sentidos dentro do Estado segundo a retórica política e sionista de Ben Gurion, o que resultou na diminuição de imigrantes a preencher as fileiras do Estado. Por último tratava-se da possibilidade de ligação do acusado, ou suas ofensas, com o Estado que desejava julgá-lo. Essa operação foi à seguida por Israel, que estendeu seu direito de julgar, a partir do reconhecimento jurídico dos que pereceram e 105 Em dezembro de 1963 fora realizado em Frankfurt um julgamento aos perpetradores de Auschwitz. LAFER, C: “A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt”. São Paulo, Cia das Letras, 1988. p 174. 107 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-004-01.html>. Acesso em 18/01/2012. 106 49 deu um passo político importante no processo de justaposição das identidades. Nesse sentido, “o direito de Israel de se ligar às vítimas dos crimes pode ser um pouco tênue em um sentido estrito da lei”108, mas a representação política que se desejava emitir era a de que “Israel tem o direito de representar os judeus que não possuem nacionalidade ou aqueles vítimas da opressão nazista”109 . O julgamento de Eichmann foi um caso marcado por uma complexidade política e jurídica, portador de uma série de possíveis sentidos políticos e morais. O que iremos explorar, de agora em diante, é exatamente a posição particular explorada pelos agentes estatais. A corte montada em Israel para julgar Adolf Eichmann foi uma corte que portava características nacionais evidentes, uma vez que o réu respondeu frente a leis e seguiu procedimentos de um Estado em particular e não segundo leis internacionais. No ordenamento jurídico israelense a lei que imputava a Eichmann a condição de inimigo/ criminoso, como já vimos, era a Lei 5710 de 1950. Seu conteúdo portava algumas definições jurídicas muito próximas às inovações apresentadas em Nuremberg; mas em outros aspectos apresentava elementos verdadeiramente novos. Primeiramente, o estatuto israelense eliminou as restrições temporais atribuídas ao conceito de “Crimes Contra a Humanidade”110, tornando crime os eventos ocorridos entre 1933-1939. A ampliação dos limites temporais111 serviu para romper com a subordinação jurídica desse tipo penal aos “Crimes Contra a Paz” e aos “Crimes de Guerra”, presentes em Nuremberg. Na concepção dos juristas presentes no Tribunal Internacional, o período histórico compreendido mais acima não apresentava provas satisfatórias de conexão com a guerra em si, tratava-se, por outro lado, de um momento de preparação, logo, não justiciável. Sendo assim: 108 GREEN, L: “The Eichmann Case”. The Modern Law Review. Volume 23, 1960. p 514. Disponível em: < http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1468-2230.1960.tb02770.x/abstract>. Acesso em 23/06/2012. 109 GREEN, L: “The Eichmann Case”. The Modern Law Review. Volume 23, 1960. p 514. Disponível em: < http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1468-2230.1960.tb02770.x/abstract>. Acesso em 23/06/2012. 110 Nuremberg Trial Proceedings Vol.1: Charter of the International Military Tribunal: (C) Crimes Contra a Humanidade: nominalmente, assassinato, extermínio, escravização, deportação e outros atos inumanos cometidos contra qualquer população civil, antes ou durante a guerra; ou perseguição política, racial, ou religiosa, em execução ou em conexão com qualquer crime dentro da jurisdição deste Tribunal, estando ou não violando as leis domésticas de um país em que um líder, organizações, instigadores e cúmplices em participação na formulação, ou execução de um plano comum, ou de conspiração para cometer crimes cujo qualquer dos crimes precedentes são responsáveis por todos os atos praticados por qualquer pessoa na execução de tal plano”. Disponível em: < http://avalon.law.yale.edu/imt/imtconst.asp>. Acesso em 08/06/2011. 111 As barreiras históricas presentes no conceito de Crimes Contra a Humanidade seguiam os princípios lançados em Nuremberg: 1939-1945. 50 Para constituir crimes contra a humanidade os atos cometidos antes do começo da guerra devem ter sido executados em conexão com outro crime de jurisdição do Tribunal. O Tribunal é da opinião de que, por mais horrível e rechaçável que muitos desses atos sejam não há sido provado satisfatoriamente que foram cometidos em execução ou em conexão com tais crimes. O Tribunal não pode, por ele, fazer uma declaração geral de que os atos anteriores a 1939 sejam crimes contra a humanidade no sentido da Carta, porque desde o começo da guerra em 1939 se cometeram crimes de guerra em grande escala, que são também crimes contra a humanidade.112 O respeito temporal ao estatuto de Nuremberg não foi seguido pelos israelenses, o que possibilitou uma ampliação política e histórica dos eventos anteriores a guerra. O regime nazista em sua totalidade fora incorporado politicamente e juridicamente como inimigo do povo judeu, subtraindo-se, por sua vez, suas políticas discriminatórias contra outros grupos. A atribuição de inimigo aparece na Lei Punitiva em seu final: “país inimigo significa: (a) Alemanha durante o período do regime nazista; (c) qualquer território, durante todo ou em parte do período do regime nazista, que estivesse de fato sob legislação alemã”113. Em segundo lugar, a legislação israelense confeccionou uma categoria muito mais restritiva, que funcionou como embasamento a uma compreensão profundamente particular da Shoah. Estamos falando dos “Crimes Contra o Povo Judeu”. No interior da Lei a seção referente a esses crimes adquiriu uma posição e valor superiores aos “Crimes Contra a Humanidade” e “Crimes de Guerra”. A preponderância do aspecto nacional foi tipificada, de forma muito semelhante à Carta dos Direitos do Homem, e da Convenção de Prevenção e Punição do Genocídio, ambas de 1948. Na Lei Punitiva enumeraram-se sete tópicos que se configuravam como crimes, são eles: “(1) matar judeus; (2) causar sérios danos físicos ou mentais aos judeus; (3) pôr os judeus em condições calculadas para trazer sua destruição física; (4) impor medidas destinadas a prevenir nascimentos entre os judeus; (5) transferir de forma forçada crianças judias a outros grupos nacionais, ou religiosos; (6) destruir ou profanar religiosos judeus, ou valores culturais; (7) incitar o ódio aos judeus”114. A narrativa jurídico-histórica tecida pela Lei Punitiva atribuía ao povo judeu uma particularidade de sofrimento, uma vez que se compreendiam os crimes cometidos 112 Gil, A apud DE SOUSA, F: “Tribunais de Guerra”. Belo Horizonte: editora Del Rey, 2005. p 48. ISRAEL. Nazis and Nazi Collaborators – Punishment- Law- 5710-1950. Disponível em: <http://www.mfa.gov.il/MFA/MFAArchive/1950_1959/Nazis+and+Nazi+Collaborators+-Punishment+Law-+571.htm >. Acesso em 15/01/2012. 114 ISRAEL. Nazis and Nazi Collaborators – Punishment- Law- 5710-1950. Disponível em: <http://www.mfa.gov.il/MFA/MFAArchive/1950_1959/Nazis+and+Nazi+Collaborators+-Punishment+Law-+571.htm >. Acesso em 15/01/2012. 113 51 pelos nazistas não como crimes cometidos contra a humanidade em geral, mas contra o povo judeu em particular. Os “Crimes Contra o Povo Judeu” não foram considerados como um substrato dos “Crimes Contra a Humanidade”, mas antes definidos como uma ofensa muito bem definida e particularmente extrema de um crime contra a humanidade. Existia, no entanto, um perigo a essa compreensão dos eventos. A imputação e a penalização através da norma: “Crimes Contra o Povo Judeu” abria um precedente, em um crime sem precedente, o que acabava por render uma percepção genérica da Shoah como a continuidade histórica de um ódio aos judeus. A jurisprudência aberta pelo Tribunal de Nuremberg, no sentido de fortalecimento de uma legislação internacional e de internacionalização dos direitos humanos, a partir da noção de crimes contra a humanidade, foi algo dispensado pelo Estado de Israel. O potencial universal fora supra-sumido, em quase sua totalidade, pelo sofrimento particular do povo judeu. Sendo assim, o Estado de Israel acabou por seguir, em certos sentidos, na contramão dos princípios lançados pelo Tribunal Internacional. A jurisprudência que entendia “o crime de genocídio como um crime internacional, podendo ser praticado em tempo de guerra ou de paz. A diferenciação dos crimes contra a humanidade do genocídio; ou seja, este como espécie e os outros gêneros, pois o primeiro exige um especial fim de agir, qual seja, de exterminar o grupo no todo ou em parte”115 e a soberania da legislação penal-nacional, acima da lei internacional, serviram para afirmar uma posição particular ao Estado de Israel. No entanto, uma série de princípios e elementos foram mantidos como pilares da Lei Punitiva, o que denotava certa continuidade. Em primeiro lugar a visão de mundo [Weltanschauung] intencionalista da Corte Internacional fora mantida, ou seja, na compreensão do redator da lei israelense, assim como da doutrina formada em Nuremberg, todos os atos contra o povo judeu e contra a humanidade já havia sido préplanejado e pré-arranjado desde a posse de Hitler. Em segundo lugar, manteve-se o entendimento de responsabilidade e punibilidade a atos individuais; em terceiro lugar, as pessoas jurídicas, compreendidas à luz da Lei Punitiva como organizações criminosas, continuavam, tal como em Nuremberg, como passíveis de sanção. A categoria de “Crimes contra a Humanidade” permaneceu quase inalterada a apresentada em Nuremberg. Definiu-se como: “assassinato, extermínio, escravização, morte por fome ou deportação e outros atos inumanos cometidos contra qualquer população civil, 115 DE SOUSA, F: “Tribunais de Guerra”. Belo Horizonte: editora Del Rey, 2005. p 59. 52 e perseguição política a grupos nacionais, raciais e religiosos”116. Tal caracterização era convergente a doutrina formada pelo Julgamento de Nuremberg. Segundo Donnedieu de Vabres, juiz francês representante da República da França no Tribunal Internacional, essa conceituação portava junto consigo uma grande responsabilidade: Os crimes contra a humanidade formam um gênero, dos quais os crimes de guerra constituem uma espécie adaptada as circunstâncias particulares que a guerra provoca, constituindo a base de sua inculpação, o castigo aos quais por fanatismo oprimem uma minoria nacional, racial, religiosa ou política, incumbindo tal tarefa à comunidade internacional, tanto em tempos de paz como de guerra117. A posição particular fora adotada, em detrimento da universal, pois na compreensão dos agentes a frente da organização do Julgamento de Eichmann, em Nuremberg já havia sido rendida justiça aos outros grupos. Nesse sentido, a catástrofe dos judeus passava a ocupar um lugar central nos trabalhos de uma corte nacional. Todos esses elementos funcionaram, de acordo com Ben Gurion, para configurar o caso Eichmann, não como um julgamento ordinário, mas “um evento cujo grande valor nacional e educacional não fosse duvidado por ninguém”118. O ato de tomar o caso Eichmann como ferramenta paradidática revelava uma percepção negativa dos agentes políticos frente ao Tribunal de Nuremberg. O que reforçou tal postura foi que no momento em que a Corte Internacional realizava seus trabalhos, o Yishuv refletia uma aura de simplicidade, uma consternação e ignorância frente aos fatos ocorridos durante a II Guerra Mundial. A isso se acrescentava, segundo a retórica do Mapai, que a questão principal levantada em Nuremberg era a de estabelecer os responsáveis pela guerra e identificar a origem da brutalidade nazista. Logo, a Shoah não foi uma questão levantada, o que comprovava politicamente a ideia de que somente uma corte judaica poderia render justiça aos judeus. Para a historiadora israelense Hanna Yablonka o que contribuiu para a baixa difusão das notícias relacionadas aos trabalhos jurídicos na Alemanha, diz respeito “ao contexto dramático de eventos em que emergia o Estado de Israel, por isso a mídia virtualmente ignorou a cobertura de outros julgamentos”119. 116 Nuremberg Trial Proceedings Vol.1: Charter of the International Military Tribunal. Disponível em: < http://avalon.law.yale.edu/imt/imtconst.asp>. Consulta em 08/06/2011. 117 VABRES, D apud DE SOUSA, F: “Tribunais de Guerra”. Belo Horizonte: editora Del Rey, 2005. p59. 118 ISRAEL. THE EICHMANN TRIAL: FIFTY YEARS AFTER A Behind the Scenes View of the Arrest and Trial of Adolf Eichmann. Disponível em: <http://www.archives.gov.il/ArchiveGov_Eng/Publications/ElectronicPirsum/EichmanTrial/EichmanTria lIntroduction.htm>. Acesso em 15/01/2012. 119 YABLONKA, H: “The Development of Holocaust Consciousness in Israel: the Nuremberg, Kapos, Kastner, and Eichmann Trials”. Israel Studies. Indiana University. Volume 8, número 3, 2003. p 7. 53 As fontes políticas e jurisprudenciais do caso Eichmann não partiram somente do Tribunal de Nuremberg, mas também de outros julgamentos envolvendo o Holocausto na década de 50 em Israel. Um desses casos, o mais importante antes de Eichmann, foi o de Israel Kastner. “Em junho de 1955, um sobrevivente do Holocausto, Malkiel Gruenwald, acusou um judeu húngaro seu compatriota, Israel Kastner, antigo presidente do Comitê de Salvação Sionista da Hungria, de ter feito um acordo com os nazistas em 1944”120. Foi, então, acionada a Lei Punitiva e “o advogado de Gruenwald, Shmuel Tamir, usou o julgamento para fazer com que Kastner fosse julgado por ter deixado os judeus da Hungria entregues à própria sorte”121.A polêmica do caso KastnerGruenwald foi considerável, até porque ele “detinha um alto cargo no Ministério da Indústria e Comércio israelense e fora candidato a uma cadeira do Mapai no Knesset”122. A importância do julgamento de Kastner como precedente legítimo do caso Eichmann e Demjanjuk é fundamental, no sentido político e jurisprudencial, para entendermos a posição política que esses julgamentos inserem-se na História do Estado de Israel. Por conta disso, uma breve comparação se faz necessária entre os aspectos gerais do Julgamento de Kastner e de Eichmann. Em primeiro lugar, os dois julgamentos foram importantes no sentido de ampliação da consciência da Shoah, mas é comparando-os em um plano político e processual que se destacam uma série de elementos esclarecedores acerca das propostas lançadas pelo Mapai na década de 60. O papel desempenhado pela promotoria pública nos dois casos foi o primeiro ponto, pois partiu dela, além do indiciamento dos dois réus, a atribuição do papel de promotores aos dois procuradores gerais envolvidos nos casos (Haim Cohn – Kastner e Gideon Hausner – Eichmann). Essa incumbência serviu como uma lição valorosa ao Mapai, uma vez que durante o primeiro procedimento, Haim Cohn assumiu o caso já em andamento, o que comprometeu a estratégia política de eliminar as potencialidades negativas emitidas na corte, em grande parte as relacionadas com o problema da colaboração dos Judenräte123 com oficiais nazistas e a Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v008/8.3yablonka02.html>. Acesso em 15/03/2012. 120 GILBERT, M: “Historia de Israel”. São Paulo: edições 70, 2010. p 354. 121 Idem, p 354. 122 Idem, p 354. 123 “Conselhos judaicos estabelecidos dentro das comunidades judaicas em territórios ocupados pelos alemães. Aos conselhos era concedida a responsabilidade para implementar as políticas nazistas em relação à população judaica”. YAD VASHEM. Judenrat. Disponível em: < http://www1.yadvashem.org.il/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%206389.pdf>. Acesso em 24/06/2012. 54 relação estabelecida por Tamir entre o Mapai e os colaboracionistas. Tomando o exemplo da promotoria do caso Kastner, fora incumbido a Hausner total controle acerca das acusações e um trabalho que remontava desde o início dos procedimentos. Em relação a isso ele lembrava: “eu mesmo estive completamente envolvido no julgamento desde o início”124. A importância política atribuída ao caso Eichmann explica a racionalização política empreendida pelos agentes estatais, no sentido de garantir algum benefício do caso. Outro ponto que aproxima os dois processos foi: ambos tiveram seus trabalhos desenvolvidos na Corte Distrital de Jerusalém. No que tange ao papel desempenhado pelo judiciário, três dos cinco juízes que participaram do julgamento de Eichmann estiveram envolvidos no caso Kastner, dentre eles Benjamin Halevi. O que acabou servindo como paradigma ao Mapai foi o fato do caso Kastner ter rendido uma divisão em relação ao que era discutido na corte. Isso se explica pelo fato do caso vir vinculado com problemas ético-morais de delineamento da culpa e participação de judeus na Shoah, uma vez que, os colaboradores encontravam-se vivos e dentro da própria comunidade. O caso Kastner acabou por mergulhar a sociedade israelense no “paradigma da zona cinza”125 e isso não poderia ser novamente repetido. Tendo em mente as dificuldades levantadas no julgamento de Kastner, o ministro dos transportes, Yitzhak Ben-Aharon, membro do Ahdut HaAvoda, Partido pertencente à coligação trabalhista, alertou em relação ao julgamento de Eichmann que “deveria ser evitado todos os terríveis tipos internos de corrupção moral”126, pois “não podemos falhar agora, uma vez que já falhamos antes”127.O sentimento de crise, de 124 HAUSNER, G apud WEITZ, Y: “In the Name of Six Million Accusers: Gideon Hausner as Attorney General and His place in the Eichmann Trial”. Israel Studies. Indiana University. Volume 14, número 2, 2009. p 32. Disponível em: <http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v014/14.2.weitz.html>. Acesso em 23/06/2012. 125 Trata-se de um paradigma de ambigüidade moral. Segundo Primo Levi “a zona cinzenta (...) impede que se precipite qualquer julgamento a priori ou que se incorra sobre juízos morais. (...) Antes de se avaliar a culpabilidade ou os motivos que levaram alguns prisioneiros a colaborar com o genocídio, deve se dirigir “a culpa máxima” à estrutura do Estado Totalitário. A despeito disso, não se deve excluir a imputabilidade penal dos colaboradores singulares, tampouco deixar de tentar apurar a medida de sua culpabilidade”. VILLAS BÔAS CASTELO BRANCO, P, H. Resenha do livro: “Os Afogados e os Sobreviventes: Os Delitos, os Castigos, as Penas, as Impunidades” de Primo Levi, (1990). Em publicação: Cadernos de Sociologia e Política, no. 9. IUPERJ, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro: Brasil, dezembro 2006 . Disponível em: < http://www.iuperj.br/publicacoes/forum/09.pdf>. Consulta em 20/02/2012. 126 AHARON, B apud WEITZ, Y: “In the Name of Six Million Accusers: Gideon Hausner as Attorney General and His place in the Eichmann Trial”. Israel Studies. Indiana University. Volume 14, número 2, 2009. p 31. Disponível em: <http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v014/14.2.weitz.html>. Acesso em 23/06/2012. 127 AHARON, B apud WEITZ, Y: “In the Name of Six Million Accusers: Gideon Hausner as Attorney General and His place in the Eichmann Trial”. Israel Studies. Indiana University. Volume 14, número 2, 55 conflito, de divisão e da falta de consenso, decorrente do caso Kastner, desdobrou-se no plano político na posição de contestação que partiu do Herut à direita e do Maki à esquerda. A divisão político e social serviu ao Mapai como prova heurística de que o Holocausto deveria ser tratado a partir de uma posição segura ao Estado, pois o quadro político e extralegal do Julgamento de Kastner, evocado a partir da sociedade civil revelava objetivos de outros grupos que ameaçavam o projeto político do Mapai, além de minar as fundações do regime, ao expor seus membros enquanto traidores e colaboradores. Os questionamentos e as apurações em relação à conduta dos membros da comunidade, durante o período da Shoah, carregavam consigo um risco irredutível. Julgar os sobreviventes e dividi-los em heróis e traidores, portanto, poderia implicar em um esfacelamento da sociedade civil, tendo em vista o fato de Kastner ter suscitado o primeiro assassinato político da história de Israel. Aos olhos do Mapai todos eram heróis e os que possuíam uma conduta questionável, segundo o historiador Tom Segev, foram enquadrados em um relativismo ético que caracterizava “um tipo de colaboração que merece louvor e que, em qualquer caso, se não for acompanhada de malícia, más intenções, não deve ser vista como uma falha moral”128. 5 – Procedimentos e estratégias Os procedimentos legais e o papel pedagógico, de demonstrar todo o sofrimento do povo judeu nas mãos dos nazistas, foram estratégias buscadas pelo Estado de Israel para alcançar o maior benefício político possível através do caso. Politicamente tratava-se de um Estado Judeu, que por meio de toda sua potência jurídica era capaz de julgar, punir e encarar, tanto a Shoah, quanto os inimigos históricos do judaísmo sob uma nova posição. Por meio do discurso jurídico que o julgamento de Eichmann pôde ser incorporado como um material político importante de construção da nacionalidade israelense e graças a essa característica que se fez necessário o abandono da postura universalista. O julgamento de Eichmann era um julgamento particular do 2009. p 31. Disponível em: <http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v014/14.2.weitz.html>. Acesso em 23/06/2012. 128 SEGEV, T apud DOUGLAS, L: “The Memory of Judgment: making Law and History in the trials of Holocaust”. New Haven: Yale University Press, 2011. p 155. 56 judaísmo, e um dos interesses do Mapai era bem claro: acelerar o processo de interconexão entre a identidade israelense e a identidade judaica. Para justapor a duas identidades, a partir da narrativa jurídica e política, fez-se necessário recorrer ao conceito de inimigo, como já vimos mais acima. O indiciamento de Eichmann pelo Estado de Israel o enquadrava em 15 pontos, sendo que desses quinze, os quatro primeiros consistiam de Crimes Contra o Povo Judeu, o que demonstrava uma clara superioridade do elemento nacional. Na seqüência hierárquica de acusação vinham os Crimes Contra a Humanidade e por último os Crimes de Guerra. No primeiro ponto: “o acusado, durante o período de 1939-1945, juntamente com outros, causou a morte de milhões de judeus e foi responsável pela implementação do plano nazista de exterminação física dos judeus, plano conhecido por seu título: Solução Final do Problema Judaico”129. Ele era acusado, pessoalmente, de causar a morte de milhões de judeus nos campos de extermínio de Auschwitz, Chelmn, Belzec, Sobibor, Treblinka e Majdanek. Ainda no primeiro ponto, Eichmann foi acusado de “cooperar com os quatro Einsatzgruppen, A, B, C e D, que na Rússia, entre Junho de 1941 e Novembro de 1942, exterminaram nada mais, nada menos que 363.000 judeus” 130. No segundo ponto, “o acusado, junto com outros, sujeitaram milhões de judeus a viver em condições que eram suscetíveis de provocar a sua destruição física, durante o período de 1939 a 1945, operando, para este fim, na Alemanha, em outros países do eixo e também nas áreas ocupadas. No referido período em virtude de suas funções mencionadas e a fim de implementar a “Solução Final do Problema Judaico”, ele atuou da seguinte maneira: 1 – escravizando-as em campos de trabalho forçado; 2 – colocando-as e confinando-as em guetos; 3 – dirigindo-as a campos de concentração; 4 – deportando-as e transportando-as em condições desumanas”131. No terceiro ponto constava o pertencimento a organizações criminosas e “a perseguição em massa de mais de 20.000 judeus na noite de 9-10 de novembro de 1938 e o boicote social econômico aos judeus na Alemanha, a aplicação das Leis de Nuremberg e as prisões em massa, seguidas por deportações a campos como Dachau e Buchenwald”132. Por último, no quarto ponto “começando pelo ano de 1942, o acusado, juntamente com outros, programou medidas 129 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-001-01.html>. Acesso em 12/01/2012. 130 LIVERPOOL. L: “The Trial of Adolf Eichmann”.London: Heinemann, 1962. p 5. 131 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-001-01.html> Acesso em: 12/01/2012. 132 LIVERPOOL. L: “The Trial of Adolf Eichmann”.London: Heinemann, 1962. p 5. 57 calculadas a impedir nascimento entre os judeus alemães e de outros países”133. Juridicamente os quatro primeiros pontos evocavam como tipo penal o verbo destruir, o que atribuía ao imputado e seus crimes um teor de alta periculosidade ao povo judeu. Do item cinco ao doze constavam os Crimes Contra a Humanidade, que englobaram, tal como na jurisprudência aberta pelo Tribunal de Nuremberg, o Crime de Genocídio. Já os três últimos eram referentes, portanto, a Crimes de Guerra. Somando os Crimes Contra o Povo Judeu e os Crimes Contra a Humanidade, ou seja, do item um ao doze a única pena possível era a pena capital. A superioridade e a abrangência dos Crimes Contra o Povo Judeu nos quatro primeiros pontos permitiam, por parte da promotoria, que o objetivo expresso por Ben Gurion, de que “o julgamento não fosse contra Eichmann sozinho, mas um julgamento que abordasse toda a história do Holocausto”134 fosse possível. A frente dessa tarefa esteve o promotor geral do estado israelense: Gideon Hausner, que sucedeu Haim Cohn, promotor geral durante o caso Kastner que fora indicado para a Suprema Corte de Justiça. Nascido na Polônia, Hausner emigrou para Israel em 1927. Cursou Direito na Escola de Direito de Jerusalém, no momento em que os Britânicos ainda controlavam a Palestina. Especialista em Direito Civil, sua carreira jurídica ganhou grande destaque quando serviu como promotor militar durante a Guerra de Independência, em 1948. Após isso foi presidente do Tribunal Militar do Estado de Israel. “Para ajudá-lo havia uma equipe de promotores, que incluíam o Dr. Jacob Robinson, que fora assistente do procurador chefe no Tribunal de Nuremberg, Gabriel Bach, Jacob Baror, procurador do Distrito de Tel aviv e Zvi Terlo assistente de procuradoria”135. A finalidade objetiva da promotoria nesse caso, ao representar juridicamente o Estado de Israel, foi de caracterizar o inimigo do Estado como um grande criminoso de guerra, ao mesmo tempo em que apresentava todo o sofrimento do povo judeu e as formas pelas quais esse povo se re-inventou a partir da fundação de seu próprio Estado. Representado os interesses da justiça estavam os três juízes: Moshe Landau, Benjamin Halevy e Yitzhak Raveh. O primeiro fora membro da Suprema Corte 133 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-001-01.html> Acesso em: 12/01/2012. 134 ISRAEL. THE EICHMANN TRIAL: FIFTY YEARS AFTER. A Behind the Scenes View of the Arrest and Trial of Adolf Eichmann. Disponível em: <http://www.archives.gov.il/ArchiveGov_Eng/Publications/ElectronicPirsum/EichmanTrial/EichmanTria lIntroduction.htm>. Acesso em 14/01/2012. 135 Holocaust Education & Archive Research Team: The Trial of Adolf Eichmann .Disponível em: <http://www.holocaustresearchproject.org/trials/eichmanntrial.html>. Acesso em 12/01/2012. 58 israelense, o segundo presidente da Corte Distrital de Jerusalém e juiz do caso Kastner e o último membro da Corte Distrital de Tel Aviv. Dos três juízes, os dois últimos nasceram e estudaram na Alemanha, mas todos os três dominavam o alemão com extrema fluência. Para a defesa de Eichmann ficou incumbido o alemão Dr. Servatius, cuja experiência com crimes de guerra provinha de sua participação como conselheiro de defesa nos Julgamentos de Nuremberg. “O governo israelense concordou em pagar a taxa de US $30,000 e Servatius chegou em outubro de 1960 para assistir Eichmann. Ele foi auxiliado por Dieter Wechtenbruch, um jovem advogado de Munique”136,que pouco participou do caso. Apesar da predominância de falantes do alemão, a língua usada pela corte foi o hebraico, o que reforçava, ainda mais, o caráter nacional do julgamento. No discurso inaugural de Gideon Hausner, a proposta política de justaposição das identidades logo tomou forma: Quando estou diante de vocês, juízes de Israel, para levar a julgamento Adolf Eichmann, eu não estou sozinho. Comigo estão seis milhões de acusadores. Mas eles não conseguem se erguer e apontar um dedo acusador na direção daquele que senta no banco dos réus e dizer: “Eu acuso”. Pois suas cinzas estão empilhadas nas colinas de Auschwitz e nos campos de Treblinka, espalhadas pelas florestas da Polônia. Os túmulos estão espalhados por toda a Europa. O sangue deles clama, mas sua voz não é ouvida 137. A impotência das seis milhões de vítimas foi prontamente abandonada e elas passaram a ganhar vozes, a partir da potência do Estado Judaico e do judiciário. Mas o brado dos milhares de judeus que adquiria ressonância, a partir das palavras de Hausner revelava traços específicos do presente. O princípio étnico costurado ao Estado, desde a Guerra de Independência pelo Mapai, desdobrou-se ante a representação das vítimas. Nesse sentido, “as vítimas as quais se objetivava dar voz, não eram indivíduos historicamente ou legalmente articulados, mas sim uma coletividade étnica composta ex post facto”138, o que demonstrava um poderoso desejo de atingir uma ideia de unidade. 136 Holocaust Education & Archive Research Team: The Trial of Adolf Eichmann .Disponível em: <http://www.holocaustresearchproject.org/trials/eichmanntrial.html>. Acesso em 12/01/2012 137 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-006-007-00801.html>. Acesso em 15/01/2012. 138 ROBINSON, B: “The Specialist on the Eichmann Precedent: Morality, Law, and Military Sovereignty”. Critical Inquiry. University of Chicago. Número 30,2003.p 65. Disponível em: <http://www.eyalsivan.info/medias/pdf/PDF_specialist/The_Specialist_on_the_Eichmann_Precedent_Mo rality_Law_and_Military_Sovereignty_Benjamin_Robinson_Critical_Inquiry.pdf>. Acesso em: 24/06/2012. 59 Ao buscar apresentar a tragédia dos judeus de forma central, a promotoria demonstrava sua proximidade com o executivo, uma vez que em Israel o procurador geral do Estado [HaYoetz HaMishpati LaMemshala ] possui autonomia, elemento esse abandonado por Hausner tendo em vista que sua estratégia foi guiada pelos interesses de Ben Gurion e do Mapai, em que: “o destino pessoal de Eichmann não é importante. É o desvelamento do programa de extermínio contra os judeus que importa”139. A posição de utilização política do caso pelo primeiro ministro fica mais clara ainda em um artigo escrito por ele: “As realizações e os objetivos de nossa geração” que abria o “Livro anual do Governo de Israel, 5722 [1961-1962]”. Vislumbrando o julgamento como um evento único, o desvelamento do programa de extermínio não era o que contava somente, mas sim “a importância do grande valor educacional”, já que “à nova geração de Israel... está sendo possível revelar a profunda tragédia do exílio, da dependência, da misericórdia dos outros, do abandono ao mal e do impulso intencional de tiranos”140. 5.1 – A construção de uma coletividade étnica e do inimigo político Para atingir os objetivos políticos e pedagógicos traçados pelas lideranças estatais, a promotoria explorou um sentido muito particular no interior da narrativa jurídica. O ato de atribuir um sentido coletivo à Shoah, por parte da acusação, possibilitou às lideranças estatais uma apropriação política que transmitia a ideia de uma unidade étnica ausente de divisões às representações históricas do Holocausto. A forma como se confeccionou uma caracterização coletiva e étnica foi alcançada graças ao esforço do promotor geral, Gideon Hausner, em tomar como paradigma normativo o foco nos testemunhos individuais, ou seja, nas vítimas. Por meio delas que se construiu uma ponte entre o mundo de cinzas e o presente. 139 JEWISH AGENCY TELEGRAPHIC. “Ben Gurion emphasizes significance of Eichmann trial to world”. 4 de Abril de 1961. Disponível em: < http://archive.jta.org/article/1961/04/04/3065975/bengurion-emphasizes-significance-of-eichmann-trialto-world>. Acesso em 24/06/2012. 140 GURION, B apud WEITZ, Y: “The Holocaust Trial: the Impact of the Kasztner and Eichmann Trials on Israeli Society”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 1, número 2, 1996. p 16. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v001/1.2weitz.html>. Acesso em 15/05/2012. 60 A promotoria e os juízes possuíam uma concepção distinta de justiça. Para Hausner “era necessário mais que uma convicção; nós precisamos de um registro vivo de um gigantesco desastre humano e nacional”141. Os efeitos dramáticos proporcionados pelos relatos individuais funcionavam politicamente como uma atribuição de sentido não somente à Shoah, mas também à representação do homem que sentava no banco dos réus, o que acabava por revelar a intenção da promotoria de construir politicamente a figura de Eichmann como inimigo do povo judeu. O ponto de partida de Hausner, na caracterização do acusado era, portanto, a de “um homem obcecado, com um perigoso e insaciável impulso de matar, uma personalidade pervertida e sádica”142. O esforço de construir politicamente Eichmann como inimigo estendeu-se ao longo dos trabalhos no tribunal. Mas, foi durante a sessão de número 55, quando a promotoria chamou para depor o professor e psicólogo Gustave Gilbert, presidente do Departamento de Psicologia da Universidade de Long Island em Nova York e participante dos trabalhos na prisão de Nuremberg como psicólogo militar, que o esforço do promotor encontrou seu zênite. A intenção de Hausner era a de apresentar uma exposição do caráter de Eichmann a partir de uma analogia extensiva de traços da personalidade de figuras como Alfred Rosenberg e Julius Streicher, ambos reconhecidos como fanáticos. Além disso, Hausner buscou também denotar, a partir de figuras chaves dentro da máquina burocrática, como Kaltenbrunner143, Rudolf Hoess144, Hans Frank145, dentre outros, a importância de Eichmann no desenvolvimento da “Solução Final”. Sendo assim, através do testemunho de Gilbert, Hausner com sucesso ampliou a representação da figura do inimigo. Nas palavras da testemunha: 141 HAUSNER, G apud DOUGLAS, L: “The Memory of Judgment: making Law and History in the trials of Holocaust”. New Haven: Yale University Press, 2011. p 106. 142 ARENDT, H: “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a Banalidade do mal”. 2ed. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. p 37. 143 “Após o assassinato de Reinhard Heydrich, em 1942, Kaltenbrunner o sucedeu como chefe do Departamento de Segurança do Reich (Reichssicherheitshauptamt, RSHA). Juntamente com o chefe das SS, Heinrich Himmler, Kaltenbrunner foi um dos grandes organizadores da Aktion Reinhard – a sistemática política de extermínio de judeus no Governo Geral da Polônia”. YAD VASHEM. Kaltenbrunner,Ernst. Disponível em:< http://www1.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20%206422.pdf>. Acesso em 25/06/2012. 144 “Do Verão de 1941 a Novembro de 1943, Hoess presidiu o assassinato de judeus da Alemanha, do Protetorado da Boêmia e Moravia, Polônia, França, Holanda, Bulgária, Eslováquia, Bélgica, Áustria, Iugoslávia, Itália, Noruega e Grécia. Ele foi um dos que decidiu sobre a utilização do gás Zyklon B para o propósito do extermínio. Deixou Auschwitz em 1943, mas retornou a chefia do extermínio dos judeus húngaros com a Aktion Hoess. Ele foi responsável pela morte de milhares de pessoas”. YAD VASHEM. Hoess, Rudolf (Hoss). Disponível em: <http://www1.yadvashem.org/odot_pdf/microsoft%20word%20%206418.pdf>. Acesso em 25/06/2012. 145 “Governador nazista do Generalgouverment entre 1939-1945”. YAD VASHEM. Frank, Hans. Disponível em: <http://www1.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%205859.pdf>. Acesso em: 25/06/2012. 61 Como eu disse antes, ele [Hoess] era um homem que estava automaticamente dizendo os fatos como ele os conhecia. Aparentemente não significava nada para ele que ele havia assassinado milhões de pessoas, ele não hesitou em descrever tudo em detalhes, e sem qualquer tentativa de dividir a culpa, ou para preparar uma defesa, ou qualquer outra coisa espontaneamente – certamente não com qualquer insistência de minha parte – o nome de Eichmann entrou em suas declarações freqüentemente, finalmente me dei conta de que esse homem era uma figura chave no programa de extermínio146. Com a decisão de número 59, emitida pelo Juiz Moshe Landau, Hausner obteve uma vitória relativa em relação ao direcionamento político do caso. A corte “admitiu provas da testemunha sobre as circunstâncias externas, em que ouviu as declarações dos prisioneiros em Nuremberg e também sobre a condição mental dos presos naquela época”147, mas ceifou os esforços de depreciação psicológica com a decisão 60, em que os juízes definiram “que não permitiriam evidências que mostrassem que o acusado era capaz, do ponto de vista de seu caráter, de cometer atos atribuídos a eles aqui indiciados, por seu pertencimento às SS”148. Se a primeira dimensão do inimigo foi sua autonomia, a segunda representava a compreensão da particularidade de seus crimes, a partir de uma radiografia psicológica de sua personalidade. Apresentando à corte um questionamento genérico, que evitasse uma generalização criminal por pertencimento a uma determinada instituição, Hausner dava mostras de que o elemento psicológico era um caminho importante na definição de Eichmann. Assim: “como pode ser que um homem nascido de uma mulher possa realizar tais atos? Como pode ser que uma pessoa possa chegar ao estágio de cometer tais atos que agora estão sendo revelados para nós dia a dia?”149. Seguindo a linha política da argumentação do promotor, o que ficava implícito era que algo fundamental faltava à personalidade de Eichmann. A desumanização do réu, como Schmitt nos lembra, parte de um profundo ódio humanitário, o que revela a presença de 146 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-055-04.html>. Acesso em 13/01/2012. 147 The Trial of Adolf Eichmann Volume III. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-055-03.html>. Acesso em 25/06/2012. 148 The Trial of Adolf Eichmann Volume III. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-055-04.html>. Acesso em 23/05/2012. 149 The Trial of Adolf Eichmann Volume III. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-055-04.html>. Acesso em 23/05/2012. 62 uma artéria moral que percorria todo o corpo do caso. Politicamente o inimigo não necessita apresentar-se como feio ou prejudicial. Ele é o outro, algo possível de conflito. No caso de Eichmann, graças ao embate político e moral presente no caso, ele passou a encarnar uma série de predicados que o elevavam para além das categorias do político tão somente, encarnando também atributos da moralidade. A dualidade de possibilidades, presente no embate entre inimicus150 e hostes revelava a resistência de elementos liberais e morais da justiça, frente à expressão política normativa da consciência estatal, comprovando que “indo para além do político, têm de, ao mesmo tempo, rebaixar o inimigo para categorias morais, e de torná-lo num monstro desumano, que não apenas tem de ser repelido, mas definitivamente aniquilado”151. No plano político, por mais que o inimigo não seja necessariamente, uma figura odiada, demonizada, ou combatida a partir de um ideal nacional ou humanitário, na corte israelense todos esses elementos adquiriram um papel necessário, pois através da hegemonia de um ódio nacional que se tornou possível forjar um sentimento empático frente aos sobreviventes e de unidade política. Nesse sentido, o papel atribuído ao réu na “Solução Final” foi sintomático. Segundo Hausner: Pela minha parte já posso dizer que Adolf Eichmann não era simplesmente uma pequena engrenagem na máquina, e nós vamos tentar comprovar à Corte, que ele iniciou, planejou, organizou e levou a cabo o extermínio do povo judeu na Europa. Concordo que este é um argumento factual e que no presente momento é uma questão de disputa entre o Conselho de Defesa e eu 152. Juntamente com o fenômeno de edificação da figura de Eichmann como inimigo tivemos de forma concomitante, a conversão dos relatos individuais das testemunhas em um grande paradigma didático, capaz de recuperar, tal como um mosaico, os eventos em torno da Shoah. Todavia, reconstruir o Holocausto por meio das narrativas individuais trazia alguns problemas. O primeiro deles era a visão negativa que se tinha dos sobreviventes e o conseqüente choque entre a identidade auto150 Inimigo privado, distinto do inimigo político (hostis). “A sociologia dos conceitos e a história dos conceitos: um diálogo entre Carl Schmitt e Reinhart Koselleck”. VILLAS BÔAS CASTELO BRANCO, P, H. Sociedade e Estado. Brasília. Volume 21, número 1, Jan./Abril.2006. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0102-69922006000100008&script=sci_arttext>. Acesso em 25/06/2012. 151 SCHMITT, C: “O Conceito de Político”. Tradução de Alvaro Valls. Petrópolis: editora Vozes, 1992. p 36. 152 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: < http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-003-03.html>. Acesso em 26/06/2012. 63 suficiente dos Sabras frente a dos judeus da Diáspora. O historiador israelense e professor da Universidade de Haifa, Yechiam Weitz, apresenta que no discurso inaugural de Hausner na essa tensão já se encontrava bem presente. Para Weitz: O “dedo acusador” está escondido na expressão como “ovelhas para o matadouro”, que era bem popular na época. A adição de insinuações de que milhões de judeus pereceram no Holocausto não se adequava à norma da “geração de 1948”... Esta impressão implica que se esses milhões não tivessem ido como “ovelhas para o matadouro”, seus destinos teriam sido diferentes e eles poderiam, ao menos, ter salvado algo da honra nacional que fora profanada e violada153. Apresentar uma coletividade étnica, harmônica e contínua no tempo, rendeu a Hausner um tremendo esforço de reconversão da figura dos sobreviventes. Foi através do heroísmo, o sentido mais político inerente a figura dos Sabras, que Hausner seguiu na conexão entre presente e passado. A opção pela figura dos combatentes, nesse sentido, foi natural. O promotor geral convocou à corte três proeminentes testemunhas que simbolizavam a coragem durante o Holocausto. Todos os três eram membros da esquerda sionista, o que, por sua vez, revelava a parcialidade da narrativa em sua busca pela unidade e pela ausência de divisões, o que culminou na eliminação de uma série de grupos de centro e da direita sionista do cenário político subterrâneo dos combatentes judeus na Polônia. O primeiro a subir ao banco das testemunhas foi Abba Kovner. Ele pertencera ao Kibutz Ein Hahoresh do movimento HaArtzi que lutou no subterrâneo do Gueto de Vilna. Os outros dois foram: Antek Zuckerman e Zivia Lubetkin, ambos membros do Kibutz Lochamei Ha’Getaot do movimento Ha-Meuhad e líderes da resistência no Gueto de Varsóvia. Segundo Hausner, eles “personificavam a tragédia dos judeus europeus e seu renascimento”154. Apesar da importância dessas três figuras para a apresentação do heroísmo judaico durante a Segunda Guerra, seus relatos não possuíam relevância jurídica alguma para a corte, uma vez que Eichmann não havia tomado qualquer participação nas ações de repressão aos combatentes. 153 YABLONKA, H apud WEITZ, Y: “The Holocaust Trial: the Impact of the Kasztner and Eichmann Trials on Israeli Society”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 1, número 2, 1996. p 3. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v001/1.2weitz.html>. Acesso em 15/05/2012. 154 HAUSNER, G apud WEITZ, Y: “In the Name of Six Million Accusers: Gideon Hausner as Attorney General and His place in the Eichmann Trial”. Israel Studies. Indiana University. Volume 14, número 2, 2009. p 38. Disponível em: <http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v014/14.2.weitz.html>. Acesso em 23/06/2012. 64 A bandeira política do heroísmo, contudo, não causou uma reação maior à linguagem analítica dos juízes, do que causou aos membros da direita israelense: o Herut e o Betar. Excluídos do compromisso político costurado pelo Mapai e excluídos também do panorama histórico, eles acabaram sendo omitidos da narrativa que Hausner visava tecer. De acordo com Chaya Lazar, uma partisan do Herut e correspondente para o jornal do partido, ela insistiu que no Gueto de Vilna “não houve alianças separadas entre os membros do HeHalutz, os membros do Betar, ou os movimentos de juventude não sionistas. Todos mantiveram-se juntos contra o inimigo, porque o inimigo lutava contra todos”155. Apoiando Lazar e em posição crítica aos três testemunhos, Isaac Remba, editor do jornal do Herut expressou a presença de um sentido político do Mapai na depreciação da luta da oposição durante a Segunda Guerra. Para Remba: “os membros do Betar lutaram como leões, assim como seus irmãos no He-Halutz e no HaNoar Ha-Zioni e também a juventude religiosa. Todos sacrificaram suas vidas como seus irmãos do Ha-Shomer Ha-Tzair... Enquanto o povo judeu dirigiu-se ao abatedouro, sua honra foi resgatada por sua juventude, meninos e meninas, e nenhum deles carregavam consigo um cartão de filiação partidária”156. Apesar dos protestos vindos de setores da sociedade civil, foi através da figura dos combatentes da esquerda sionista que o heroísmo despontou como um elemento fundamental para compreender, em termos de uma narrativa política, o renascimento da nação. A expressão: “como ovelhas em direção ao matadouro” foi resignificada. Em um famoso panfleto emitido em fins do julgamento de Eichmann, em 1962, o professor Shabtai Keshev apresentou como essa nova visão resignificada da Shoah e de suas vítimas difundiu-se pela sociedade civil. Intitulado: “Como ovelhas ao matadouro?”, Keshev sustentava o sucesso de Hausner em atribuir um novo sentido às vítimas e sobreviventes a partir do prisma do heroísmo, da empatia frente à figura dos sobreviventes e por meio da ideia de uma coletividade étnica. Para o professor: Eles e nós estamos unidos. Nós poderíamos ter estado lá fisicamente em vez deles, e se tivéssemos lá e eles aqui, então eles certamente teriam estabelecido o Yishuv e as Forças de Defesa de Israel. E se o 155 LAZAR, C apud WEITZ, Y: “In the Name of Six Million Accusers: Gideon Hausner as Attorney General and His place in the Eichmann Trial”. Israel Studies. Indiana University. Volume 14, número 2, 2009. p 39. Disponível em: <http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v014/14.2.weitz.html>. Acesso em 23/06/2012. 156 REMBA, I apud WEITZ, Y: “In the Name of Six Million Accusers: Gideon Hausner as Attorney General and His place in the Eichmann Trial”. Israel Studies. Indiana University. Volume 14, número 2, 2009. p 39. Disponível em: <http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v014/14.2.weitz.html>. Acesso em 23/06/2012. 65 destino tivesse sido cruel e nós estivéssemos lá, nosso destino provavelmente seria o mesmo do deles, e nosso heroísmo não menor. A diferença não jaz dentro da nação, mas no aqui e no lá157. 5.1.1 – A imanência política do antissemitismo como determinação do inimigo e da identidade judaica Por conta da existência de um sentido político internacional explorado pelas lideranças do Mapai em decorrência do caso Eichmann, Hausner buscou na descrição de um rico contexto histórico fornecer uma série de subsídios retóricos que auxiliassem nas disputas extraprocessuais travadas pelo Estado. O promotor buscou tecer uma longa narrativa que apresentasse o povo judeu como um povo perseguido pelo mal do antissemitismo e ao prosseguir na construção da figura do inimigo, Hausner esboçava que os limites da personalidade do inimigo não se restringiam a elementos deturpados de sua vida, mas também de um contexto cultural mais amplo. Tomando o antissemitismo como uma referência o promotor revelava uma concepção muito própria do sionismo secular, do qual o Mapai era tributário. Tratava-se do entendimento de que o antissemitismo desdobra-se em perseguição e somente um Estado judaico poderia eliminar essa condição. Em suas palavras: A história do povo judeu está marcada pelo sofrimento e pelas lágrimas. “No teu sangue, vive!” {Ezequiel 16:6}. Esse é o imperativo que tem confrontado esta nação desde mesmo a sua primeira aparição no palco da história. O Faraó no Egito decidiu “afligi-los com sua carga” e lançar seus filhos no rio; o decreto de Haman foi “destruir, matar, e fazê-los perecer”; Chmielnicki os exterminou às multidões; eles foram massacrados nos pogroms de Petlura. Mas, no entanto, nunca nesta estrada manchada de sangue percorrida por este povo, nunca mesmo, nem mesmo, nos seus primeiros dias de nacionalidade, surgiu algum homem que haja sucedido em desferir um golpe tão grave como o iníquo regime de Hitler, e Adolf Eichmann enquanto seu braço direito no extermínio do povo judeu. Em toda a história humana não há outro exemplo de um homem contra o qual seria possível elaborar uma lei de acusação tal como a que foi lida aqui. Os mais terríveis crimes, dos quais estas temidas figuras do barbarismo e sedentas de sangue, como 157 KESHEV, S apud YABLONKA, H: “The Development of Holocaust Consciousness in Israel: the Nuremberg, Kapos, Kastner, and Eichmann Trials”. Israel Studies. Indiana University. Volume 8, número 3, 2003. p 17. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v008/8.3yablonka02.html>. Acesso em 15/03/2012. 66 Genghis Khan, ou Ivan o Terrível, evocam a narração que coagula nosso sangue e faz com que nossos cabelos fiquem em pé com o horror de tais ações, tornando “proverbial e um escárnio” {Jeremias 24:9} e uma “aversão eterna” {Daniel 12:2} às nações - esses crimes quase empalidecem ao insignificante quando contrastado com as abominações, o horror assassínio, o qual será apresentado a vocês neste Tribunal158. A fim de explorar as potencialidades argumentativas em torno do sentimento anti-semita, a promotoria buscou reforçar na figura do inimigo o papel superestimado de sua posição para a ocorrência da Shoah. Segundo Hausner, “ele [Eichmann] era, de fato, o senhor e mestre dos judeus, aquele que deu ordens e determinava seus destinos”159. Nesses termos o réu portaria um alto grau de autonomia e “sua posição no RSHA era única. Ele poderia passar sobre seus superiores e dialogar diretamente com Himmler. Seu nominal e modesto status de chefe de um departamento subordinado não refletia em sua poderosa posição”160. Ao conjugar o preenchimento de substância do inimigo com uma narrativa particular da história judaica, ou seja, como uma história da perseguição e do antissemitismo, Hausner também reforçou outra tendência já em vigor no Estado, no que diz respeito à essência da identidade judaica. Consistia de uma crise identitária decorrente da “ ideia de que aqueles que não mais praticassem a religião perderiam a identidade judaica, mas desde que outros os perseguissem pelo fato de sua origem judaica, eles seriam forçados a aceitá-la”161. Nesse sentido, a figura do inimigo era fundamental, uma vez que por meio de suas ações o ethos sionista secular era capaz de manter os traços da identidade judaica, alheios aos elementos religiosos, ao mesmo tempo em que poderia afirmar sua identidade judaica. O réu possuía, aos olhos dos promotores, uma “iniciativa independente e uma ardente devoção a total destruição dos judeus” 162 . Os contornos políticos atribuídos à figura do inimigo além de permitir o reforço de traços identitários, possibilitava também 158 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: < http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-006-007-00801.html>. Acesso em 21/06/2012. 159 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-006-007-00804.html>. Acesso em 21/06/2012. 160 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-006-007-00804.html>. Acesso em 21/06/2012. 161 ORR, A: “Israel Politics, Myths and Identity Crises”. Londres: Pluto Press, 1994. p 48. 162 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-006-007-00804.html>. Acesso em 21/06/2012. 67 procedimentos ligados ao presente que se orientavam pelo contexto específico das relações internacionais no Oriente Médio em inícios da década de 60. Tomando o antissemitismo como medida referencial da forma do inimigo, a promotoria abria margem para incisões políticas que possibilitassem pôr em posição de equivalência os árabes, que ameaçavam a posição do Estado de Israel, e os nazistas que desferiram um doloroso golpe na comunidade judaica. Ainda por meio dele a promotoria pôde explorar uma vereda política que objetivava defender uma posição particular do conceito de segurança e soberania. Sendo assim, a representação histórica do inimigo, a partir do antissemitismo, tornou esse conceito propriamente político em uma ferramenta extremamente versátil. O julgamento pôde, dessa forma, fornecer um potente arsenal retórico aos agentes estatais, que visavam além da defesa do Estado, uma fonte de legitimidade internacional a suas ações e uma poderosa identidade nacional. Coube a ministra das relações exteriores, Golda Meir, o papel de destaque na operação de equivalência entre árabes e nazistas. Na concepção da ministra os Estados Árabes, que “em seu ódio em relação a Israel e todo o povo judeu, não param de alimentar esse veneno para seu próprio povo, inclusive aos mais novos”163. Ela defendeu que deveria ser explorada, no julgamento de Eichmann, a relação do réu com os árabes, a fim de ressaltar a posição do Estado no combate aos inimigos. Juridicamente essa operação ocorreu por meio de uma série de documentos que apresentavam a relação entre os árabes e os nazistas. Na sessão de número 63, uma das evidências apresentadas foi bem explícita no sentido da relação entre árabes e nazistas: Sua excelência, o Reichminister. Em nossas conversas com você, nós expressamos a confiança do povo árabe nas potências do eixo e em seus objetivos exaltados, tendo explicado os objetivos nacionais dos países árabes no Oriente Médio que no presente momento está sendo suprimido pelos britânicos. Nós temos declarado o desejo do povo árabe de fazer parte nesta guerra contra nosso inimigo comum até a vitória final. Nosso presente pedido é que o Governo Alemão declare sua prontidão a conceder aos Estados árabes, que sofrem com a opressão britânica neste momento, qualquer socorro possível em nossa guerra de libertação; reconhecimento da soberania e da independência dos países árabes no Oriente Médio, (...), e concordar com a unificação desses, se for desejado pelos interessados, e a liquidação do lar judaico na Palestina (....). Por favor, aceite, sua excelência, 163 JEWISH TELEGRAPHIC AGENCY. “Arab Delegate Condemned at U.N by Israel “vicious speech”. 19 de Outubro de 1961. Disponível em: < http://archive.jta.org/article/1961/10/19/3065077/arab-delegatecondemned-at-u-n-by-israel-for-vicious-speech>. Acesso em 25/06/2012. 68 Ministro das relações internacionais a garantia da minha mais estimada estima. Assinado: Amin AL-Husseini164. Amim AL-Husseini165, o Mufti de Jerusalém, foi a figura central usada pela promotoria para estabelecer a posição de equivalência apregoada pela ministra das relações exteriores. Revelando a conexão do Mufti com Eichmann, através de uma série de documentos, tais como o diário de AL-Husseini, em que constavam as seguintes informações: “na página com a data de nove de novembro de 1944, seis palavras aparecem, mas nós conseguimos decifrar com sucesso três delas. Elas estão em árabe. As três dizem: “o melhor dos amigos dos árabes” (...). No topo da coluna da direita do dia nove de novembro, quinta-feira, “o melhor dos amigos dos árabes”, debaixo dela, em caracteres latinos, “Eichmann”166. Dessa forma, a narrativa jurídica tecida na corte, alcançava com sucesso uma equivalência entre os inimigos, que possuíam como denominador em comum o antissemitismo e o desejo de aniquilação do povo judeu. Além de documentos a promotoria chamou a depor o oficial do Departamento de Investigação Criminal da Polícia de Israel, a fim de sedimentar a relação existente entre os nazistas e os árabes. Avraham Hagag que esteve a trabalho para o Departamento 06, responsável pela organização do julgamento, esclareceu à corte uma série de questões acerca da documentação que relacionava o Mufti a Eichmann. Trabalhando com o reconhecimento da caligrafia de Husseini, Hagag pôde apresentar à corte uma série de documentos traduzidos, como, por exemplo, um que revelava interesses em “bombardear Tel Aviv e o Mar Morto e também Rutenberg e Haifa, e as indústrias de guerra lá”167. Apresentando uma posição agressiva dos inimigos frente ao Estado como uma constante histórica, a narrativa que emanava dos esforços da promotoria reafirmavam a posição do Mapai de culto a segurança. Os freqüentes 164 The Trial of Adolf Eichmann Volume III. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-063-03.html>. Acesso em 20/02/2012. 165 “Grand Mufti de Jerusalém; proeminente líder árabe-palestino e colaborador nazista. Em sua posição como líder religioso dos muçulmanos, Husseini encorajou árabes na Palestina a amotinar-se e cometer outros atos de violência contra os judeus. No começo da II Guerra Mundial, Husseini escapou do Iraque, onde ele sustentou uma revolta pró-Alemanha Nazista. Após a repressão da revolta, ele esteve na Alemanha e na Itália. De Outubro de 1941 em diante, Husseini aliou-se com as potências do Eixo. Suas motivações eram a de conseguir apoio político aos objetivos nacionalistas dos árabes na Palestina, o que o fez suportar a Solução Final”. YAD VASHEM. Husseini, Hajj Amin Al. Disponível em : < http://www1.yadvashem.org/odot_pdf/microsoft%20word%20-%206432.pdf>. Acesso em 26/06/2012. 166 The Trial of Adolf Eichmann Volume III. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-063-03.html>. Acesso em 20/02/2012. 167 The Trial of Adolf Eichmann Volume III. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-074-01.html>. Acesso em 25/06/2012. 69 conflitos com os vizinhos resultaram ao Estado e suas lideranças políticas a formação de um sistema ágil e total de mobilização das forças de defesa e politicamente a guerra era, de fato, uma potencialidade factível, no cenário histórico de fins dos anos 50 início dos 60. O conflito convertera-se em um estado, cuja lógica de conceituação do inimigo continuava a operar mesmo quando as ações bélicas cessavam. Por conta desse estado permanente o julgamento de Eichmann adquiriu sentidos específicos ligados à construção da nacionalidade a partir do conceito extremo de inimigo. Apesar da aniquilação não ser individual, mas sim do Estado, ela tratava-se de uma possibilidade real, no contexto Pós-Guerra do Sinai. 5.2 – Dimensões intraprocessuais da soberania A conexão entre árabes e nazistas não serviu somente para afirmar uma posição de defesa do Estado, a partir do culto a segurança; de delimitação da existência política, através do conceito de inimigo e de operacionalização das identidades judaica e israelense; mas também auxiliou na defesa de uma conceituação muito particular de soberania nacional, elemento esse crucial para a sedimentação da nacionalidade e da identidade israelense. Dessa forma, a engenharia política de Ben Gurion para organizar uma corte nacional encontrou em Hausner um amplificador eficiente, capaz de tornar o espaço da corte em um ambiente de celebração do nacional. A exaltação da soberania israelense, portanto, por meio da captura de Eichmann e da organização de uma corte nacional a julgá-lo, foi outro caminho seguido, no sentido de extração do máximo de benefícios políticos do caso. Nas palavras do promotor geral: Eu quero mostrar que Israel não é o único país a ter feito isso, mas que hoje é a necessidade do tempo, em muitos diferentes países; que a fim de garantir a segurança do Estado junto com a segurança da população e a segurança de sua economia forneceram ao braço do Estado a possibilidade de infringir punição por atos cometidos fora de seus limites territoriais168. 168 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-006-007-00801.html>. Acesso em: 23/06/2012. 70 A materialização do conceito de soberania a partir do elemento decisório possibilitou ao Estado uma nova roupagem; uma personalização capaz de projetar uma coesão interna pautada no signo da etnicidade judaica e potente em designar o inimigo como uma figura externa ao corpo político, afastando, assim, qualquer mácula de colaboracionismo entre os próprios membros da coletividade e os nazistas. O sentido de soberania reivindicado pelos atores estatais fora do espaço de trabalho da corte pautava-se em uma compreensão de que “a norma constitutiva do direito não pode ser pensada senão a partir da sua efetivação, isto é, a partir da sua aplicação a uma situação existente e, conseqüentemente, a partir da sua articulação com o poder capaz de decidir esta mesma aplicação”169. Ao remeter a norma à autoridade do Estado, sendo mais específico, ao Knesset, afirmou-se que “a lei não pode ser pensada senão a partir da sua remissão à decisão do poder político que a determina: o jurídico não pode ser pensado senão a partir do político”170. Sendo assim, por Israel encontrarse, na concepção do Mapai, em um cenário hostil, repleto de inimigos, cuja lógica era o caráter concreto e iminente do conflito, a formulação acerca da soberania nacional engendrada durante toda a década de 50 e início da década de 60 acabou por expressar um profundo desejo de sobrevivência política, ao mesmo tempo em que afirmava uma vontade de potência. Em uma exposição na corte, Hausner sintetizou muito bem essa ideia: “o Holocausto pode reaparecer em outro lugar, temos que nos apegar a este país, preservar e apoiar cada pedra e rocha, uma vez que é nosso último refúgio” 171. Mas afirmar tão somente o papel do Estado enquanto ente soberano capaz de proteger a posição dos judeus no mundo não basta. Fez-se necessário, então, no sentido de celebração político-nacional desses elementos (a soberania e o Estado) na corte, o ato de relembrar o papel dos agentes que tornam possível a existência política e que movem o conceito de soberania. Estamos falando aqui das Forças de Defesa de Israel. A função dos soldados é a de evitar que novamente o povo judeu passe a encarnar o papel de 169 DE SÁ, Alexandre: “Do Decisionismo à Teologia Política: Carl Schmitt e o conceito de soberania”. Luso Sofia, Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2009. p 10. Disponível em:<http://www.lusosofia.net/textos/sa_alexandre_franco_de_do_decisionismo_a_teologia_politica.pdf>. Acesso em 13/02/2012. 170 DE SÁ, Alexandre: “Do Decisionismo à Teologia Política: Carl Schmitt e o conceito de soberania”. Luso Sofia, Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2009. p 30. Disponível em:<http://www.lusosofia.net/textos/sa_alexandre_franco_de_do_decisionismo_a_teologia_politica.pdf>. Acesso em 13/02/2012. 171 HAUSNER, G apud YABLONKA, H: “The Development of Holocaust Consciousness in Israel: the Nuremberg, Kapos, Kastner, and Eichmann Trials”. Israel Studies. Indiana University. Volume 8, número 3, 2003. p 10. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v008/8.3yablonka02.html>. Acesso em 15/03/2012. 71 vítima, nesse sentido, durante uma das sessões do julgamento, o juiz Moshe Landau interrompeu o réu para dedicar um breve tempo em memória aos combatentes das forças de defesa. Eichmann: O capitão da Polícia … contou-me que ele fizera tudo aqui hermeticamente fechado,... Uma vez que um motor de submarino russo estava sendo operado aqui... Juiz presidente: Por favor, pare agora. Nós teremos dois minutos de silêncio em memória daqueles que tombaram em nossas guerras [Silêncio]172. Ao lembrar-se do papel desempenhado pelas Forças de Defesa, o sentido de soberania, expresso nos trabalhos da corte, convergiu à agenda política do Mapai. A promotoria e os juízes personalizaram a soberania por meio da Shoah, re-afirmando ao Estado valorosas lições relacionadas à sua segurança. Dessas lições despontavam a busca por aliados no cenário internacional, a fim de evitar o isolamento de Israel, assim como o desejo de consolidar uma sólida política de segurança militar. “O Holocausto destacou quão vulnerável era a situação política e estratégica de Israel e continuará a ser, até certo ponto, um grau pendente para as suas próprias realizações”173. Estruturando o eixo político da soberania a partir do elemento étnico, do fático e do decisório, a expressão identitária afirmada pelos agentes estatais através dos procedimentos era deveras poderosa e ativa. A apropriação da imagem dos seis milhões de acusadores apresentada por Hausner no início do Julgamento adquiriu, aos olhos da liderança do Mapai, uma continuidade histórica inexorável, cuja “implicação do pedido do tribunal para representar todos os judeus da diáspora, como sujeitos a espera da justiça e no retorno simbólico da competência jurídica a Israel significava, em termos gerais, que as minorias étnicas dentro de Estados nações só poderiam em últimos termos terem sua segurança garantida por um Estado que pudesse reivindicar seus interesses como se fossem do próprio Estado, e, assim, responder qualquer infração a eles com o tradicional Jus Belli” 174. 172 LANDAU, M apud DOUGLAS, L: “The Memory of Judgment: making Law and History in the trials of Holocaust”. New Haven: Yale University Press, 2011. p 159. 173 ARONSON, S: “Israel’s Security and Holocaust: Lessons Learned, but existential Fears Continue”. Israel Studies. Indiana University.Volume 14, Número 1, 2009. p 88. Disponível em: <http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v014/14.1.aronson.html>. Acesso em 25/06/2012. 174 ROBINSON, B: “The Specialist on the Eichmann Precedent: Morality, Law, and Military Sovereignty”. Critical Inquiry. University of Chicago. Número 30,2003.p 75. Disponível em: <http://www.eyalsivan.info/medias/pdf/PDF_specialist/The_Specialist_on_the_Eichmann_Precedent_Mo rality_Law_and_Military_Sovereignty_Benjamin_Robinson_Critical_Inquiry.pdf>. Acesso em: 24/06/2012. 72 Em um determinado sentido, a reafirmação da soberania israelense por meio do julgamento de Eichmann legitimou politicamente a posição desejada pelo Estado de Israel como representante e porta voz do povo judeu, englobando tanto os vivos, quanto os mortos. A existência de um Estado dotado de poder possibilitou a sua conversão em um monumento à posição dos judeus no mundo. Da soma dos fatores apresentados os agentes estatais ainda puderam explorar outro sentido do caso: a afirmação do nacionalismo israelense. “Todo o caso Eichmann, ou seja, sua captura, as preparações para seu julgamento, e posteriormente os procedimentos em si, foram todos transformados em um símbolo”175. 5.3 – Ás buscas por uma linguagem analítica Contrapondo-se a linguagem política da promotoria estavam os juízes, portadores de uma linguagem analítica, cujo objetivo era apurar os fatos a partir de sua relevância jurídica, a fim de garantir um exercício objetivo e autônomo do judiciário. A dualidade moral x política, presente antes do julgamento, teve um desdobramento semelhante nos trabalhos internos da corte e o choque entre Hausner, portador dos interesses do Estado e o juiz Moshe Landau, portador dos interesses da justiça, exemplifica muito bem isso. A posição do juiz ao defender a utilização do alemão como ferramenta capaz de garantir uma maior celeridade aos trabalhos da corte foi o primeiro aspecto de colisão com as pretensões políticas organizadas pelo Mapai. A utilização do alemão em detrimento do hebraico e a busca pelo convencimento dos outros juízes, todos fluentes nessa língua, a utilizarem também o alemão no diálogo com Eichmann representava uma ruptura simbólica com os aspectos nacionais, uma vez que se recorria à língua nativa do réu e não a das vítimas. Além dessa querela lingüística, Landau buscou a todo custo ceifar a teatralidade presente na oratória de Hausner. Durante a sessão de número 27, em que testemunhou o poeta e combatente do Gueto de Vilna, Abba Kovner, essa postura ficou bem evidente. Juridicamente falando Eichmann não possuía nenhuma relação com a repressão aos combatentes, mas, tendo em vista que o objetivo de Hausner era o de apresentar a Shoah em sua totalidade, o pronunciamento dos 175 ZERTAL, I: “ From the People's Hall to the Wailing Wall: A Study in Memory, Fear, and War”. Representations, No. 69, Special Issue: Grounds for remembering .Winter, 2000. Disponível em: < http://www.jstor.org/stable/2902902 > . p 104. Acesso em 08/08/2011. 73 combatentes era politicamente fundamental, uma vez que revelava toda uma dimensão heróica da resistência judaica. Acerca desse ponto Hausner enfatizou que estava “chegando a um assunto muito importante e desejava paciência do tribunal”176. A resposta de Landau revelava os objetivos da justiça: “eu não acredito que você pode se queixar de uma falta de paciência por parte do tribunal”177. A irritação com a forma pela qual se conduziu a abordagem da testemunha em questão, fez com que Landau confrontasse abertamente Hausner. Ao fim do testemunho o juiz dirigiu-se ao poeta agradecendo-o e em seguida dirigiu-se ao promotor, “Senhor Hausner, ouvimos muitas coisas chocantes aqui, na linguagem de um poeta, mas eu sustento que em muitas partes desta evidência, nós nos desviamos dos objetivos deste julgamento”178. Para Landau, não deveria haver “qualquer possibilidade de interrupção de evidências como essas, enquanto elas estiverem sendo processadas, por respeito para com a testemunha por respeito às questões relativas a ela”179, uma vez que é tarefa do promotor geral “preparar a testemunha, explicar coisas a ela, e eliminar tudo o que não é relevante para o julgamento, de modo a não colocar o tribunal, mais uma vez – e esta não é a primeira vez – em tal situação. Eu lamento que tenho que fazer estas observações, após a conclusão de um testemunho como este”180. A disputa entre os dois personagens revelava, de fato, a busca pela hegemonia de uma das duas propostas em jogo: a justiça x o político. Segundo Landau, “a corte possui certa visão do julgamento, de acordo com a acusação, e já dissemos mais de uma vez – às vezes de forma sutil, algumas outras de forma mais clara, e a promotoria deve agir em concordância com o que escuta da corte”181. Longe da corte, em reunião no gabinete ministerial, em 7 de maio de 1961, Hausner relatou todos os avanços e 176 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-027-08.html>. Acesso em 21/06/2012. 177 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-027-08.html>. Acesso em 21/06/2012. 178 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-027-10.html>. Acesso em 21/06/2012. 179 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-027-10.html>. Acesso em 21/06/2012. 180 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-027-10.html>. Acesso em 21/06/2012. 181 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-027-10.html>. Acesso em 21/06/2012. 74 empecilhos no decorrer do caso a Ben Gurion e os demais ministros. Ele comunicou orgulhoso que “integrou no quadro processual, de acordo com a legalidade das evidências, questões que não se relacionavam diretamente ao caso, como o Levante do Gueto de Varsóvia e de Vilna e dos combates travados pelos partisans”182. Na busca pelo exercício da justiça os três juízes de Israel buscaram desarmar os elementos políticos imputados à figura do inimigo, a fim de render uma sentença correspondente a uma verdade legal e não a uma verdade política. Um dos elementos centrais que a promotoria atribuiu ao arquétipo do inimigo, no sentido de enaltecer sua periculosidade, foi o fato que o réu agiu de forma independente no desenvolvimento da “Solução Final”. Na leitura da sentença os juízes eliminaram tal sentido e fixaram-se no cumprimento de ordens, o que revelava implicitamente que Eichmann possuía um papel subalterno no interior da máquina burocrática. Nesse sentido, para os juízes: “descobrimos que o acusado agiu de acordo com uma identificação subjetiva às ordens que lhe foram dadas, assim como dotado de uma vontade feroz para alcançar seu objetivo criminal”183. O caso, no entanto, não terminou com o veredicto. Servatius ainda apelou à Suprema Corte para revisar a sentença, mas sua composição política, que passava por nomeação do presidente Yitzhak Ben Zvi, político do Mapai, acabou por resgatar os elementos da narrativa estabelecidos por Hausner. Segundo Hannah Arendt: O julgamento da Corte de Apelação foi, na verdade, uma revisão do julgamento da corte menor, embora não o dissesse. Em marcante contraste com o julgamento original, considerava-se agora que “o acusado não recebera nenhuma ordem superior”. Ele era seu próprio superior, e dava todas as ordens em questões que afetavam os problemas judeus; ele tinha, além disso, “eclipsado em importância todos os seus superiores inclusive Müller”184 Ao aceitar os argumentos da acusação, em relação à forma e a substância do inimigo, os elementos normativos e morais presentes no conceito de justiça foram contaminados pela supremacia do político. A utilização do procedimento jurídico para finalidades 182 HAUSNER, G apud WEITZ, Y: “In the Name of Six Million Accusers: Gideon Hausner as Attorney General and His place in the Eichmann Trial”. Israel Studies. Indiana University. Volume 14, número 2, 2009. p 38. Disponível em: <http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v014/14.2.weitz.html>. Acesso em 23/06/2012. 183 The Trial of Adolf Eichmann Volume V. Disponível em: < http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-121-01.html>. Acesso em 25/06/2012. 184 ARENDT, H: “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a Banalidade do mal”. 2ed. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. p 271. 75 políticas foi finalmente alcançada com a rejeição do apelo e com a recusa de clemência, por parte do presidente Yitzhak Ben Zvi. Ao relacionar a luta do sobrevivente, a partir dos relatos individuais, com a luta do Estado por autodeterminação, a promotoria tornou o julgamento, em um determinado sentido, uma expressão bem sucedida dos poderes nacionais e políticos. Com o julgamento de Eichmann despontou-se, então, um reconhecimento da Shoah como momento importante e político da própria nação, uma vez que permitiu a incorporação, a partir do presente, de um passado longínquo, esquecido e renegado. Para a historiadora israelense, Idith Zertal, o ato “dos pais fundadores de começar a história com eles mesmos, negando a vergonhosa memória de seus pais e mães, a vergonha do povo judeu e do exílio judaico que trouxe uma catástrofe sobre eles por não terem escolhido o caminho correto, o caminho do Sionismo... O processo de erradicação da vergonha foi ipso facto um catártico processo”185 proporcionado pelo Julgamento de Eichmann. 5.4 – Conclusão da narrativa A execução de Eichmann foi um consenso à sociedade civil. De acordo com o historiador israelense Yechiam Weitz “o público apoiou, de forma até mesmo entusiástica”186. Ao aplicar a pena capital encerrava-se, assim, uma narrativa histórica, aniquilando o inimigo objetivo e esboçando uma potência legal. O ato de enforcar Eichmann não representou somente a personificação de uma justiça humana, mas rendeu provas à soberania israelense, uma vez que “em seu estado soberano foi proporcionado ao povo judeu a possibilidade de capturar Eichmann, colocá-lo em julgamento frente a juízes israelenses, em concordância com os procedimentos legais e executá-lo após exaurir todos os procedimentos jurídicos”187. 185 ZERTAL, I apud YABLONKA, H: “The Development of Holocaust Consciousness in Israel: the Nuremberg, Kapos, Kastner, and Eichmann Trials”. Israel Studies. Indiana University. Volume 8, número 3, 2003. p 10. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v008/8.3yablonka02.html>. Acesso em 15/03/2012. 186 WEITZ, Y: “The Holocaust Trial: The Impact of the Kasztner and Eichmann Trials on Israeli Society”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 1, número 2, 1996. p 3. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/israel_studies/summary/v001/1.2weitz.html>. Acesso em 15/05/2012. 187 ISRAEL. THE EICHMANN TRIAL: FIFTY YEARS AFTER. A Behind the Scenes View of the Arrest and Trial of Adolf Eichmann. Disponível em: 76 Sendo assim, o julgamento de Eichmann obteve sucesso nos fins extralegais perseguidos pelo Estado, e por meio da política estatista do Mamlakhtiut, o caso Eichmann forneceu uma visão parcial do Holocausto que pôde ser enquadrada pelas lideranças estatais, de acordo com seus interesses específicos de unidade, soberania e auto-afirmação nacional. Ao inserir esta visão parcial da Shoah no panteão nacional, o Mapai obteve sucesso em extrair o máximo de força normativa do caso, no sentido de utilizá-lo politicamente como ferramenta paradidática em um momento muito delicado a Israel, o de transição da geração de 1948, para a geração nascida no Estado. A representação buscada de justaposição entre as identidades tomou o Holocausto como um evento fundamental à nação, ao mesmo tempo em que recrudesceu a força cultural dos Asquenazes frente às outras vertentes do judaísmo. Nesse sentido, a narrativa parcial da Shoah conjurada no julgamento de Eichmann deu força motriz ao processo de unificação e homogeneização da esfera civil israelense, a partir da matriz Asquenaze, alcançando, assim, o prognóstico de Isaac Deutscher, de que “os judeus europeus assimilarão os orientais”188, pois “eles representam uma civilização mais avançada que, comumente, “conquista” a mais atrasada; e essa conquista já se realiza através da Escola e do Exército, ambos fatores de decisiva importância na unificação dos costumes, cultura e língua de Israel”189. Por meio de Eichmann foi possível “Israel lamentar as mortes e passar à suas crianças a herança de valor”190e de renascimento de seu povo. A apropriação política do caso Eichmann, a partir da delimitação do inimigo e da afirmação da soberania israelense garantiu em um determinado sentido, o direito ao Estado à representação e titularidade frente a todos os judeus. Além disso, a apropriação pelo Estado da Shoah, como um fenômeno nacional, ainda permitiu um arsenal retórico ao Mapai de legitimidade pragmática a suas ações. <http://www.archives.gov.il/ArchiveGov_Eng/Publications/ElectronicPirsum/EichmanTrial/EichmanTria lIntroduction.htm>. Acesso em 21/06/2012. 188 DEUTSCHER, I: “O Clima espiritual de Israel” In: ______________: “O judeu não judeu e outros ensaios”. Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 1970. p 97. 189 Idem, p 97. 190 The Trial of Adolf Eichmann Volume I. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-006-007-00806a.html>. Acesso em 26/06/2012. 77 Parte II – O Julgamento de Demjanjuk A experiência relâmpago da guerra do Yom Kippur, em outubro de 1973, causou um impacto negativo à sociedade israelense. “O número de militares israelenses mortos em ambas as frentes na Guerra de Outubro, em terra e no ar, foi de dois mil, quinhentos e vinte e dois”191 e “quando o número real foi informado, uma mortalha caiu sobre a sociedade israelense”192. O trauma de ser pego de surpresa conjugado com as derrotas iniciais no conflito e o sentimento de isolamento contribuíram para esmagar de vez a identidade heróica dos Sabras [Judeus nascidos em Israel] e trocá-la por uma mentalidade de vítima. Em decorrência da Guerra de Outubro uma grande mudança foi operada no cenário político de Israel. Os trabalhistas começaram a perder espaço e o sentimento sionista passou por um recrudescimento. O período pós Yom Kippur, portanto, contribuiu para a sensação generalizada de que os trabalhistas já não tinham mais condições de governar. Menachem Begin, principal liderança do Likud, partido que congregava a direita conservadora, tornou-se um adversário potente no Knesset, atacando incessantemente os fracassos do Mapai. O sucesso da campanha de Begin refletiu-se no resultado das eleições para o nono parlamento realizadas em 17 de maio de 1977. O Likud emergiu como o vencedor das eleições, com quarenta e três cadeiras, o maior número que já conquistara, enquanto que o Mapai, devido ao estigma do Yom Kippur, amargou o pior resultado de sua história, conseguindo apenas trinta e duas cadeiras. Sendo assim, a vitória do Likud nas eleições de 1977, representou um marco importante na vida política de Israel. O partido conservador pôs fim a mais de trinta anos de hegemonia do partido trabalhista e instaurou-se por quinze anos no poder. Sob a liderança política do Likud o início da década de 80 foi seguido por uma série de conflitos e transformações. Primeiramente, houve um grande aumento dos assentamentos judaicos e das “trinta e oito colônias de 1980 quase todas ficavam do outro lado da linha verde da Cisjordânia e na Faixa de Gaza, algumas delas em áreas com densa população árabe”193. A orientação política do recente partido ao enfatizar o nacionalismo israelense e a ocupação dos territórios conquistados conclamava a quarta onda de imigrações, a fim de ampliar o número de colonos. Foi graças à quarta Aliyah que Israel configurou-se em um verdadeiro mosaico, a ponto de em 1985 “apenas 191 GILBERT, M: “Historia de Israel”. São Paulo: edições 70, 2010. P 526. Idem, p 526. 193 GILBERT, M: “Historia de Israel”. São Paulo: edições 70, 2010. p 567. 192 78 18,5% dos judeus serem israelenses natos. Imigrantes da Ásia, principalmente russos, constituíam 21,3% da população, da África 22%, da Europa e das Américas, 38,2%”194. Além das diferenças culturais provenientes das distintas nacionalidades que imigraram para Israel, o abismo social entre a elite Asquenaze e a população Sefardita persistia, assim como o embate entre os Haradim e os seculares. A nova realidade social que surgia revelava uma série de incertezas sobre o futuro a ser trilhado pelo Estado de Israel. A questão que perpassava pela mentalidade política apresentava-se ligada à essência identitária do Estado: “o que devemos ser? Um Estado judeu ou um Estado universal?”. A resposta dada pelo Likud à pergunta existencial presente no cenário político israelense colidia diretamente com seus vizinhos. Israel deveria manter-se um Estado judaico e para garantir isso, a agenda política nacional do Likud expressava um comportamento muito mais agressivo frente aos árabes que seu antecessor, o Mapai. Em 1982 eclodiu a Guerra contra o Líbano e esse conflito trouxe novamente ao âmbito do simbólico a utilização massiva de elementos da Shoah. Um telegrama enviado por Begin ao presidente norte americano, Ronald Reagan, exemplifica muito bem essa lógica: Agora posso lhe contar caro senhor presidente, como eu me sinto nestes dias quando eu me viro ao criador de minha alma em gratitude. Eu me sinto como um primeiro ministro habilitado a instruir um valente exército contra “Berlim”, onde, entre civis inocentes, Hitler e seus capangas escondem-se sob um Bunker bem além da superfície. Minha geração, caro Ron, jurou sob o altar de Deus que quem quer que demonstre a intenção de destruir o Estado judaico, ou o povo judeu, ou ambos, está selando seu destino195. Segundo o historiador americano Howard M. Sachar “nunca antes, uma guerra fora tão discutida em termos judaicos, não israelenses. Begin justificava a guerra e as mortes causadas numa população árabe civil, invocando repetidamente as imagens e lembranças da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, equiparando os membros da OLP aos nazistas”196. O questionamento à política do governo no Líbano foi grande e as analogias utilizadas serviram para desgastar a posição do Estado como “guardião 194 GILBERT, M: “Historia de Israel”. São Paulo: edições 70, 2010. p 593. BEGIN, M apud SHLAIM, A: “The Likud on Power: the Historiography of Revisionist Zionism”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 1, Número 2, 1996. p 285. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/login?auth=0&type=summary&url=/journals/israel_studies/v001/1.2shlaim.html > Acesso em 24/09/2012. 196 SACHAR, H apud GILBERT, M: “Historia de Israel”. São Paulo: edições 70, 2010. p 584. 195 79 oficial” da memória nacional. Uma carta aberta, endereçada a Begin, demonstrava bem a insatisfação crescente da sociedade civil: Eu remanescente de uma família de rabinos, filho único de meu pai, um sionista e socialista que teve a morte de herói no gueto de Varsóvia, sobrevivi ao Holocausto, me estabeleci em nosso país, servi no Exército, casei-me e tive um filho. Agora, meu amado filho está morto por causa da sua guerra. Desse modo, você quebrou uma corrente judaica de milenares gerações sofredoras, que nenhum perseguidor conseguira quebrar. A história de nosso povo antigo, sábio e atormentado o julgará e o punirá com chicotes e escorpiões, fará com que minha dor o persiga, estando você dormindo ou acordado, fará com que meu sofrimento seja a marca de Caim em sua testa, para sempre!197 A mudança de postura do Estado em relação aos árabes não foi a única alteração política promovida pelo Likud. No âmbito das representações da Shoah o partido de Menachem Begin começou a salientar pontos, que durante o governo do Mapai ficaram submersos na narrativa oficial. A visão inicial de interconexão das figuras do pioneiro, de um lado e do combatente do gueto, do outro, serviram muito bem ao Estado, em um sentido político-nacional, para a consolidação da jovem nação. Como bem lembra a historiadora Idith Gil: “a Shoah era vista como uma aparente manifestação do exílio e uma conseqüência do antissemitismo”198. Essa visão, todavia, alterou-se devido o impacto causado, no âmbito das narrativas nacionais, pelo julgamento de Eichmann. As apropriações políticas extrajudiciais deste caso foram usadas pelo Mapai para alterar a definição da Shoah dentro da simbologia nacional. A morte tornou-se a âncora do discurso político do Holocausto e o tópico da aniquilação passou a ser usado para fins de segurança, o que fez da Shoah uma referência de aprendizado histórico. Nesse sentido, o julgamento de Eichmann foi um divisor de águas. Seus usos políticos permitiram uma alteração do eixo de gravidade da Shoah; do heroísmo dos combatentes para o extermínio coletivo e esse deslocamento foi muito bem enquadrado dentro de um discurso político de unidade e homogeneidade étnica pregado pelo Estado. Nas mãos do Likud o foco político-nacional em relação à Shoah, não foi nem os combatentes, tampouco os seis milhões, mas os sobreviventes, que passaram a desempenhar o papel de mártires e heróis. Segundo Idit Gil, “sobrevivência e sobreviventes tornaram-se o foco do discurso público, servindo socialmente como 197 GILBERT, M: “Historia de Israel”. São Paulo: edições 70, 2010. p 584 GIL, I: “The Shoah in Israeli Collective Memory”. Modern Judaism, Oxford University Press, Volume32, Número 1. p 80. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/modern_judaism/summary/v032/32.1.gil.html> Acesso em 24/09/2012. 198 80 fontes de esperança à dividida sociedade israelense”199. Mas apesar das sensíveis diferenças entre os dois partidos em relação ao eixo do discurso nacional da Shoah, as apropriações políticas da memória foram usadas com a mesma finalidade: unir os cidadãos israelenses em torno de um evento particular, a fim de distinguí-los das outras nações. A grande diferença residia na intensidade dos usos da Shoah. O Mapai evitava um uso excessivo da memória do Holocausto no cenário político, enquanto o Likud tornou o ato de evocação das imagens da Shoah em algo constante. A alteração substancial das representações do Holocausto é bem detectada, a partir do aparelho educacional. Sob o governo do Likud foi inserido um novo currículo de História. A Shoah foi deslocada da temática da II Guerra Mundial e passou a ser identificada como um fenômeno judeu. As vítimas tornaram-se individualizadas e todo o estudante israelense deveria estudar: “Sobre a Consciência da Memória do Holocausto e do Heroísmo”. De acordo com o historiador Dan A. Porat: “esta nova legislação visava transformar a memória pessoal do estudante e converter o Holocausto em uma pedra angular da identidade do estudante”200. Para serem aprovados e se formarem os secundaristas ainda passariam por uma avaliação que testava a aptidão acerca do extermínio dos judeus. Para o Likud o Holocausto deixou de ser a luta dos judeus contra os alemães e passou a ser o genocídio de um povo indefeso. Essa “nova” percepção nacional, que passou a ser incutida na juventude israelense, a partir do aparelho escolar, reforçava a posição do sionismo e delimitava a vitimização como lócus identitário. As incessantes evocações das imagens da Shoah por parte do Estado, como fonte de legitimidade política e ferramenta retórica às suas ações, fez com que fosse detonada, a partir da sociedade civil, uma potente crítica a certos usos da memória do Holocausto. Do lado da esquerda, por exemplo, a segurança do Estado de Israel somente poderia ser mantida pelo uso excessivo da força ao preço de uma lastimosa degradação moral. Por conta do significado particular do Holocausto, uma ameaça pairaria sobre a sociedade israelense, pois se tornaria legítimo o uso em larga escala da violência contra as minorias étnicas. Um exemplo dessa leitura foram os trágicos eventos envolvendo a Primeira Intifada, o que fez com que os israelenses começassem a 199 GIL, I: “The Shoah in Israeli Collective Memory”. Modern Judaism, Oxford University Press, Volume32, Número 1. p 92. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/modern_judaism/summary/v032/32.1.gil.html>. Acesso em 24/09/2012 200 PORAT,D: “From the scandal to the Holocaust in Israeli Education”. Journal of Contemporary History, Vol. 39, No. 4, Special Issue: Collective Memory (Oct., 2004).Disponível em: < http://www.jstor.org/stable/4141413 > . Acesso em 19/09/2012. p 4. 81 questionar o papel e a sacralidade das Forças de Defesa. O saldo da Guerra do Líbano também auxiliou para abalar o respeito do exército, assim como o da própria Shoah enquanto parte essencial da identidade israelense, já que sua particularidade caia por terra, tendo em vista o que acontecia no conflito. O famoso texto do historiador e filosofo Yehuda Elkana, publicado em março de 1988 no periódico Ha’aretz, intitulado: “The need to forget”, exemplifica muito bem essa posição de denúncia a certos usos políticos da memória da Shoah. Em primeiro lugar, para Elkana, um sobrevivente do Holocausto, a Shoah pode acontecer a qualquer povo. Sua crítica foi construída a partir dos elementos simbólicos evocados pelo Likud no pós Yom Kippur, mais especificamente ligados ao “complexo de vítima” que se instaurou no imaginário coletivo israelense. Em sua compreensão: “o mais profundo fator político e social que motiva grande parte da sociedade israelense em sua relação com os palestinos não é a frustração pessoal, mas sim um profundo medo existencial alimentado por uma determinada interpretação das lições do Holocausto e de sua disponibilidade para acreditar que todo mundo está contra nós e que somos vítimas eternas”201. Sendo assim, os israelenses deveriam abdicar da evocação massiva de símbolos ligados ao Holocausto e posicionarem-se em favor da vida e à construção de um futuro pacífico. Além de Elkana, temos também o surgimento de uma crítica vinda de historiadores e cientistas políticos à historiografia oficial israelense. Chamados de pós-sionista, ou novos historiadores, estes intelectuais israelenses, dentre eles, Benny Morris, Adi Ophir, Idith Zertal, Yosef Gruzhinsky e Moshe Zukerman, passaram a apresentar um quadro de manipulação das representações da Shoah, a fim de fortalecer os interesses do sionismo. “A instrumentalização do Holocausto pelo establishment político israelense em ordem a justificar os abusos cometidos pela política israelense aos palestinos”202 passava na compreensão desses historiadores por um discurso de vitimização. Segundo Benny Morris, as novas questões, em relação à Shoah e as relações árabe-israelenses surgiram devido: O decurso dos anos 70 e 80 - como um resultado de um processo natural de amadurecimento político e social e uma série de levantes políticos e militares, incluindo a Guerra de Outubro de 1973, a 201 ELKANA, Y: “The Ned to forget”. Disponível em: <http://www.einsteinforum.de/fileadmin/einsteinforum/downloads/victims_elkana.pdf>. Acesso em 24/09/2012. p 2. 202 OFER, Dalia: “The Past that Does Not Pass: Israelis and Holocaust Memory”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 14, Número 1, 2009. p 22. Disponível em: <http://www.jstor.org/discover/10.2307/30245842?uid=3737664&uid=2129&uid=2&uid=70&uid=4&sid =21101245933317>. Acesso em 24/09/2012. 82 invasão do Líbano em 1982 e a Intifada de 1987-1991 – corações e mentes cresceram de forma mais amena a explorar as profundezas da história da iniciativa sionista e seus conflitos com o circundante mundo árabe203. A nova historiografia articulada com a evolução educacional contribuiu para um maior questionamento em relação aos ditames da elite Askenaze. Ainda no interior do grupo de críticos da esquerda, temos a ocorrência de uma série de debates intelectuais em ordem a extrair valorosas lições humanistas da Shoah com o objetivo de evitar novos genocídios. Do lado da direita, mais especificamente do Likud, a narrativa da Shoah deveria ser re-atualizada e subvertida. O revisionismo ganhou força e orientado politicamente pelo sionismo passou a rever pontos chaves da história israelense e legitimar a posição nacional contra os árabes. O heroísmo e a morte deveriam perder espaço, o que serviria ao planejamento de reforçar um paradigma de força do Estado caracterizado pelo aforismo: poder de sobrevivência. Nesse sentido, Israel deveria manter-se militarizada, a fim de garantir a segurança e sua existência política. De acordo com Menachem Begin a Shoah revelava e expressava de forma objetiva um nunca mais, por isso a postura do Estado deveria ser implacável. Na introdução do trabalho de Eliahu Bem Elisar: “The plot of extermination” percebemos esse sentido: O início da destruição foi a humilhação. Antes de tornar nosso povo em cinzas na sua morte, o inimigo fez do nosso povo poeira em vida. Humilharam nossos irmãos; pisotearam eles sob seus pés, separaramnos, traíram-nos, enganaram-nos e abusaram deles. Guarde a honra judaica de modo que você nunca mais seja humilhado por um soldado inimigo novamente204. A ascensão de Menachem Begin e do Likud ao poder foi marcada, portanto, por uma nova escala nos usos da Shoah, a ponto de Begin ficar conhecido, dentre os líderes de Israel, como o político que mais evocou a memória da catástrofe. A centralidade do Holocausto no panteão nacional foi uma estratégia política perseguida pelo Likud, a fim de solucionar a crise identitária que pairava sobre a sociedade israelense e garantir uma unidade política. Tal como o Mapai, o Likud buscava veredas seculares à construção identitária. O poder de coesão presente na memória da Shoah 203 MORRIS, B: “Introduction” In: ____________: “Making Israel”. Ann Harbor: University of Michigan, 2007. P 12. 204 BEGIN, M apud GIL, I: “The Shoah in Israeli Collective Memory”. Modern Judaism, Oxford University Press, Volume32, Número 1. p 79. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/journals/modern_judaism/summary/v032/32.1.gil.html>. Acesso em 24/09/2012 83 fornecia um elemento comum à identidade judaico e israelense que fugisse da caracterização religiosa, uma vez que as “identidades, a judaico e a israelense, distinguiam-se pela religião; pelo auto-entendimento do judaísmo do conceito de povo judeu e de compartilhamento de uma história em comum. Com a Shoah presenciamos uma quebra radical. O passado em comum, um dos pilares da ideia de “povo eleito”, foi alterado pelo princípio de vítima, que sofreram no Holocausto o clímax da tragédia. A Shoah e a vitimização foram momentos de reforço identitário usados repetidamente”205 e institucionalizados pelo governo do Likud com o objetivo de definição nacional e identitária. Além da ideia de coesão e singularidade a Shoah fornecia também uma potente arma retórica à política externa israelense. Expressava-se a partir dela uma concepção muito própria de soberania nacional que se conjugava a elementos discursivos de natureza religiosa, dando legitimidade ao Estado em suas políticas de expansão dos assentamentos nos territórios conquistados. O manifesto de 1977 redigido pelo Likud e lançado logo após sua vitória nas eleições apresenta muito bem essa medida que fundamentava uma soberania nacional inflexível: “o direito do povo judeu à terra de Israel é eterno e é parte integrante de seu direito de segurança e paz. Judéia e Samara não devem, portanto, serem abandonadas a um poder estrangeiro; entre o mar e o Rio Jordão deve haver somente a absoluta soberania judaica”206. Garantir a segurança e evitar uma nova catástrofe ao povo judaico reforçava, no final, a posição de uma “muralha de ferro” de poder bélico israelense o que rendeu uma série de questionamentos vindos da sociedade civil e da comunidade internacional às políticas do Estado de Israel. 1- Prenúncios de um novo e grande julgamento Foi do contexto turbulento da década de 80 que emergiu a necessidade de uma nova alteração no pacto sionista. Fez-se necessário, a fim de garantir a posição do Estado como monopólio do político que se afirmasse novamente um elemento capaz de 205 GLEINSER, Melanie: “Die Erinnerungskultur an die Shoah in der: „Jüdischen Allgemeinen“ anhand der Berichterstattung über den Israel-Libanonkrieg 2006 ”. DIPLOMARBEIT. Universität Wien, 28/07/2009. p24. Disponível em:< http://othes.univie.ac.at/8994/>Acesso em: 25/09/2012. 206 SHLAIM, A: “The Likud on Power: the Historiography of Revisionist Zionism”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 1, Número 2, 1996. p 282. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/login?auth=0&type=summary&url=/journals/israel_studies/v001/1.2shlaim.html > Acesso em 24/09/2012. 84 gerar um discurso de unificação e homogeneização frente à grande diversidade presente na sociedade civil. Diferentemente da década de 60, em que tínhamos a hegemonia absoluta do Mapai, em fins da década de 80 a política israelense mergulhou em um ambiente mais limitante. Menachem Begin renunciou em 1983 devido às críticas advindas da Guerra do Líbano e o Likud elegeu, então, Yitzhak Shamir para sucedê-lo. Para o professor de Relações Internacionais da Oxford University, Avi Shaim, “a diferença entre Begin e Shamir não era, de todo, grande. Ambos foram discípulos de Ze’ev Jabotinksy. Ambos dedicaram-se à terra de Israel. Ambos acreditavam na lacrimosa versão da história judaica, vendo-a como uma longa série de tribunais e tribulações que culminaram no Holocausto. Ambos eram desconfiados com os poderes internacionais, compartilhando a mesma mentalidade de bunker, e ambos eram fortes advogados da auto-suficiência israelense”207. O governo de Shamir acabou convivendo com o crescimento da oposição do Mapai no Knesset. Por conta disso, o primeiro ministro do Likud buscou implementar uma nova dinâmica política que lhe permitisse uma maior margem de manobra. Shamir desenvolveu um novo artefato à engenharia política de Israel: a rotação de primeiro ministro. Graças às eleições de 1984 que resultaram em um empate entre o Likud e o Mapai, os dois partidos aliaram-se e Shimon Peres governou no início do mandato, enquanto Shamir no fim. Segundo Avi Shaim, “a ampla coalizão e o estranho arranjo de rotação foram, eles próprios, uma receita para a paralisia política, pois cada partido gozava de um poder de veto sobre as políticas do outro”208. Desse contexto de fragmentação política que Israel aceitou o pedido vindo dos Estados Unidos para retomar os trabalhos contra criminosos de guerra após mais de 20 anos. Ao preservar as leis internacionais e conduzir a organização do julgamento de forma condizente ao tratado de extradição existente com os Estados Unidos, Israel demonstrava uma superação das críticas e do mal estar provocado pelo desrespeito à soberania argentina na captura de Eichmann. O legalismo presente nos bastidores do 207 SHLAIM, A: “The Likud on Power: the Historiography of Revisionist Zionism”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 1, Número 2, 1996. p 286. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/login?auth=0&type=summary&url=/journals/israel_studies/v001/1.2shlaim.html > Acesso em 24/09/2012. 208 SHLAIM, A: “The Likud on Power: the Historiography of Revisionist Zionism”. Israel Studies, Indiana University Press, Volume 1, Número 2, 1996. p 287. Disponível em: < http://muse.jhu.edu/login?auth=0&type=summary&url=/journals/israel_studies/v001/1.2shlaim.html > Acesso em 24/09/2012. 85 caso Demjanjuk é explicado pelo “crescente interesse no domínio da lei como parte importante do combate internacional ao terrorismo árabe”209. Sendo assim, o acusado, John “Ivan” Demjanjuk, não era nenhuma figura central dentro da Solução Final, tal como Eichmann. Ele fora “recrutado pelo exército soviético em 1940 e capturado como prisioneiro pelos alemães em 1942. Ele voluntariou-se para serviços no campo de treinamento das SS em Trawniki, e vários meses depois, foi posto em Treblinka, onde ele supervisionava as operações com a câmara de gás”210. Por conta da posição de Demjanjuk na máquina nazista a dinâmica política e jurídica de seu julgamento inseriram-se em um contexto bem distinto do de Eichmann. Enquanto o último pertencia ao RSHA o que lhe rendeu uma gerência internacional do assunto judaico, posição que foi muito bem explorada politicamente pela promotoria, no sentido de apresentar uma visão global do Holocausto; Demjanjuk era um simples voluntário, um Wachmann, que atuara em alguns campos de extermínio. Sua posição era muito mais subalterna e seu julgamento, em vez de suscitar questões políticas gerais sobre a Shoah, levantava um questionamento e uma investigação sobre a Aktion Reinhard e o papel desempenhado pela Ucrânia na Segunda Guerra Mundial e no Holocausto, assim como a forte presença de um sentimento anti-semita entre os ucranianos. O julgamento de Demjanjuk insere-se em um contexto de investigação dos horrores da II Guerra bem distinto do de Eichmann. Como exemplificado pela ministra do exterior Golda Meir, o caso Eichmann encontrava-se vinculado às questões deixadas sem resposta em Nuremberg e de acordo com as lideranças do Mapai, Eichmann era uma figura central no desenvolvimento da Solução Final, por isso, tratava-se de um Hauptschuldige211 de alta patente. Além do julgamento de Eichmann, entre 1963-1965 ocorreu na cidade alemã de Frankfurt uma série de processos contra oficiais de média e alta patente que desempenharam um papel chave no complexo de extermínio de Auschwitz-Birkenau. Nesse sentido, o que somos capazes de perceber é que durante os 209 LANDSMAN, S: “Crimes of the Holocaust: the Law confronts Hard Cases”. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2005. p 138. 210 YAD VASHEM. Demjanjuk Trial. Disponível em: < http://www1.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%206264.pdf>. Acesso em 20/02/2012. 211 A categoria jurídica Hauptschuldige pertence às classificações realizadas pelos aliados durante as políticas de desnazificação. Tal conceito pertence ao Grupo I de criminosos: “o grupo mais comprometido com as políticas nazistas, logo o mais culpado”. TIMMERMANN, W: “Incitement in International Criminal Law”.International Review of the Red Cross, Volume 88,Número 864, 2006. P 829. Disponível em: < http://www.icrc.org/eng/assets/files/other/irrc_864_timmermann.pdf> Acesso em: 24/09/2012. 86 anos 1945-1970, mais ou menos, houve um esforço, por parte de algumas nações cuja história recente passava pelos horrores do Holocausto, em julgar os principais responsáveis pelas atrocidades ocorridas entre 1939-1945. Em decorrência disso os indiciados eram em sua grande maioria alemães. Mas a partir da década de 80, com o desenvolvimento das pesquisas sobre o Holocausto, os historiadores e juristas passaram a contemplar uma nova variante: os nazistas não seriam capazes de programar a Solução Final do problema judaico se não tivessem tido o auxílio de outras forças não alemãs. O julgamento de Demjanjuk insere-se exatamente nesse contexto de transformação e ampliação cognitiva da Shoah. O foco dos indiciamentos deslocou-se dos perpetradores alemães e passou para seus auxiliares. Segundo o historiador norte americano, Peter Black, “nos anos 90, a documentação de arquivos do antigo bloco soviético e das recentes, mas relutantes desclassificações de arquivos da Europa Ocidental, reforçaram essa premissa básica”212. 2 - Trawniki e a Solução Final Para compreendermos as questões políticas e históricas em torno do julgamento de Demjanjuk, faz-se necessário passar pela história de Trawniki antes, a fim de compreendermos o cenário do qual emerge o personagem “Ivan o Terrível”. No campo de Trawniki mais de 5000 recrutas foram treinados durante seus três anos de existência, todos anônimos e “sem face”, a ponto das “vítimas do Holocausto referiremse a eles freqüentemente a partir de apelidos”213. Devido o número majoritário de indivíduos nacionais, tanto civis quanto militares, recrutados frente à União Soviética, a jurisdição para julgá-los ficou nas mãos dos tribunais desse país. Os acusados, cerca de 320.000 colaboradores, dentre eles os homens de Trawniki, foram todos indiciados por alta traição, o que rendeu ao aparelho judiciário soviético um exercício político de eliminação e expurgo de qualquer mácula de colaboracionismo e resistência durante a re-ocupação dos territórios tomados pelo Reich. No entendimento dos soviéticos, como bem esclareceu o historiador polonês Tadeusz Piotrowski, a colaboração em tempos de guerra é enquadrada como uma traição à nação e deve ser entendida como uma forma 212 BLACK, P: “Foot Soldiers of the Final Solution: The Trawniki Training Camp and Operation Reinhard”. Holocaust and Genocide Studies. Oxford University Press .Volume 25, Número1, 2011. p 1.Disponível em: < http://hgs.oxfordjournals.org/content/25/1/1.short?rss=1 > Acesso em: 25/09/2012. 213 BLACK, P: “Foot Soldiers of the Final Solution: The Trawniki Training Camp and Operation Reinhard”. Holocaust and Genocide Studies. Oxford University Press .Volume 25, Número1, 2011. p 32.Disponível em: < http://hgs.oxfordjournals.org/content/25/1/1.short?rss=1 > Acesso em: 25/09/2012. 87 de inimizade. Segundo Piotrowski, colaboração consiste de: “voluntariamente oferecer qualquer forma de serviço à Alemanha Nazista durante a guerra em detrimento da nação, ou de seus cidadãos. Os serviços incluem ações militares, paramilitares, de polícia, política, econômica, assim como qualquer forma de assistência dada na condução do genocídio”214. Sendo assim, pelo fato do comportamento de Demjanjuk ser enquadrado como colaboracionista, aos olhos dos soviéticos ele se caracterizava como um traidor e conseqüentemente um inimigo e esse elemento político desempenhou um papel importante nos desdobramentos do caso. O nome do campo de Trawniki onde Demjanjuk recebeu seu treinamento pelas SS referia-se a uma pequena cidade polonesa localizada a 40 km sudeste de Lublin. Ela foi incorporada ao Governo Geral da Polônia com a deflagração da guerra em 1939. Já o campo foi construído somente após 1941 e segundo a historiadora Kimberly Partie, do Departamento de Estudos do Holocausto da Clark University, os motivos de sua organização estão relacionados “ao impressionante sucesso da Operação Barbarossa, o que fez com que campo de Trawniki servisse como um centro de detenção para judeus e inimigos durante os meses de verão”215. Coube ao Obergruppenführer Odilo Globocnick216 a responsabilidade pelo estabelecimento das SS e das bases policiais nos territórios ocupados a leste, assim como a organização do campo de Trawniki enquanto centro de treinamento. Em 1941, Globocnick nomeou Karl Streibel como comandante do recém fundado campo. O objetivo do Obergruppenführer com o estabelecimento de Trawniki era o de “criar uma força nativa de suporte aos alemães nos territórios 214 PIOTROWSKI, T apud PARTEE, K: “Ukrainian Collaboration on Trial and the Trawniki Men Delivering Justice and Writing History”. International Research Seminar.p 12 .Disponível em: <http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=ukrainian%20collaboration%20on%20trial%20and%20th e%20trawniki%20men%20delivering%20justice%20and%20writing%20history&source=web&cd=1&ca d=rja&ved=0CCUQFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.ukrainianstudies.uottawa.ca%2Fpdf%2FP_Danyl iw2011_Partee.pdf&ei=v21gUPSvE4Wm8ASRiYGIAg&usg=AFQjCNFCFFAA9gq3390iCeYH6Gmcyt lwZQ>. Acesso em 24/09/2012. 215 PARTEE, K: “Ukrainian Collaboration on Trial and the Trawniki Men Delivering Justice and Writing History”. International Research Seminar.p 3 .Disponível em: <http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=ukrainian%20collaboration%20on%20trial%20and%20th e%20trawniki%20men%20delivering%20justice%20and%20writing%20history&source=web&cd=1&ca d=rja&ved=0CCUQFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.ukrainianstudies.uottawa.ca%2Fpdf%2FP_Danyl iw2011_Partee.pdf&ei=v21gUPSvE4Wm8ASRiYGIAg&usg=AFQjCNFCFFAA9gq3390iCeYH6Gmcyt lwZQ>. Acesso em 24/09/2012. 216 “Comandante sênior das SS que desempenhou um papel central na destruição dos judeus da Polônia. De descendência austro-croata juntou-se ao Partido Nazista na Áustria em 1931 e às SS em 1934 ”. YAD VASHEM. Globocnik, Odilo. Disponível em: < http://www1.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%206302.pdf > Acesso em: 24/09/2012. 88 soviéticos ocupados”217. O papel desempenhado, no entanto, não foi somente o de garantir a segurança nos territórios ocupados. “Os guardas de Trawniki foram instrumentos que permitiram às SS e ao aparato policial a implementação dos três primeiros objetivos da operação Reinhard”218, ou seja: o extermínio de judeus; a obtenção de mão de obra escrava para as fábricas alemãs e o fornecimento de mão de obra aos campos de extermínio de Belzec, Sobibor e Treblinka. Por meio do centro de treinamento de Trawniki, as ações de extermínio executadas pelos nazistas no Governo Geral da Polônia alcançaram um alto patamar de eficiência. Inicialmente os homens de Trawniki foram recrutados entre os prisioneiros de guerra soviéticos deslocados de Chelm, Zhytomyr e Rivine, todos os campos situados dentro da jurisdição do Reichskommissariat Ukraine219. A preferência por recrutas girava em torno dos alemães étnicos por conta da língua, no entanto, seu número era bem reduzido, o que acabou por incentivar, por volta dos meses finais de 1942, os alemães a buscarem o recrutamento de ucranianos locais. Os novatos, como bem lembra o réu Vassily Nikolaievitch Pankov, durante uma das sessões de seu julgamento na URSS, passavam por uma série de treinamentos. Segundo Vassily: “na escola para Wachmanns das SS eu estudei os seguintes itens: 1. Ordem de exercícios militares; 2. Uso de armas; 3. Regras para a detenção em campos de concentração”220. Durante os dias finais da guerra, os homens de Trawniki dispersaram-se e muitos acabaram parando em campos para pessoas deslocadas [Displaced Persons Camps]. Demjanjuk foi um desses homens. Entre 1947-1951, ele expressou um profundo desejo de emigrar para os Estados Unidos e ao preencher uma série de formulários necessários à emigração, 217 BLACK, P: “Foot Soldiers of the Final Solution: The Trawniki Training Camp and Operation Reinhard”. Holocaust and Genocide Studies. Oxford University Press .Volume 25, Número1, 2011. p 19. Disponível em: < http://hgs.oxfordjournals.org/content/25/1/1.short?rss=1 > Acesso em: 25/09/2012 218 BLACK, P: “Foot Soldiers of the Final Solution: The Trawniki Training Camp and Operation Reinhard”. Holocaust and Genocide Studies. Oxford University Press .Volume 25, Número1, 2011. p 32. Disponível em: < http://hgs.oxfordjournals.org/content/25/1/1.short?rss=1 > Acesso em: 25/09/2012 219 “Comissariado do Reich para a Ucrânia. Administração civil alemã na Ucrânia durante a Segunda Guerra Mundial. Em meados de 1941 os nazistas decidiram criar um Ministério para os territórios ocupados no Oriente, que também deveria controlar os territórios recém conquistados frente à União Soviética. Em Julho do mesmo ano eles decidiram dividir os territórios em dois: o Reichkommissariat Ostland e o Reichkommissariat Ukraine”. YAD VASHEM. Reichkommissariat Ukraine. Disponível em: < http://www1.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%205785.pdf > Acesso em: 24/09/2012. 220 PARTEE, K: “Ukrainian Collaboration on Trial and the Trawniki Men Delivering Justice and Writing History”. International Research Seminar.p 8 .Disponível em: <http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=ukrainian%20collaboration%20on%20trial%20and%20th e%20trawniki%20men%20delivering%20justice%20and%20writing%20history&source=web&cd=1&ca d=rja&ved=0CCUQFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.ukrainianstudies.uottawa.ca%2Fpdf%2FP_Danyl iw2011_Partee.pdf&ei=v21gUPSvE4Wm8ASRiYGIAg&usg=AFQjCNFCFFAA9gq3390iCeYH6Gmcyt lwZQ>. Acesso em 24/09/2012. 89 Demjanjuk foi obrigado a “fornecer informações sobre os membros de sua família e descrever as suas próprias ações durante a guerra. Ele mesmo justificou, por escrito, que antes e durante a guerra era um agricultor na Polônia, em um assentamento chamado Sobibor”221. Os problemas com o formulário de Demjanjuk só tiveram suas informações cruzadas, por causa de um problema político envolvendo suspeitos de participação na Solução Final. “Em outubro de 1975, apareceu em posse de certos membros do Senado dos Estados Unidos uma lista de criminosos de guerra nazistas vivos que residiam nos EUA”222. As informações contidas na lista derivavam de materiais recolhidos na União Soviética capturados durante a ocupação da Alemanha. “Um dos nomes que figuravam na lista foi o de John Demjanjuk – um residente dos Estados Unidos desde 1951 e um cidadão de Cleveland, Ohio, desde 1958”223. Um ano após o aparecimento dessa lista, um periódico de Cleveland, o Plain Dealer, “identificou” John como o guarda Ivan o terrível e buscou frente ao Departamento de Imigração informações sobre Demjanjuk. “Em busca de testemunhas, um grupo de investigação norte americano viajou para Israel, onde sete antigos prisioneiros de Treblinka “reconheceram” Demjanjuk, por foto, como o terrível Ivan de Treblinka”224. 3 - Semelhanças e diferenças: os aspectos morais, nacionais e processuais Em comparação ao julgamento de Eichmann percebemos no caso Demjanjuk dois patamares de semelhanças e diferenças, no que tange a importância dos dois processos como subsídios à construção da nacionalidade judaico-israelense. Em um primeiro patamar encontramos semelhanças e diferenças relacionadas ao campo moral, às simbologias nacionais e aspectos pontuais ligados à esfera processualjurisprudencial. Já em um segundo nível, somos capazes de perceber semelhanças e diferenças “estruturais” entre os dois casos. Sendo assim, na segunda dimensão 221 ISRAEL. The Demjanjuk case – Factual and Legal Details. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/d/demjanjuk-john/israeli-data/demjanjuk-s1-1.html> .Acesso em 24/09/2012. 222 ISRAEL. The Demjanjuk case – Factual and Legal Details. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/d/demjanjuk-john/israeli-data/demjanjuk-s1-1.html>. Acesso em 24/09/2012. 223 ISRAEL. The Demjanjuk case – Factual and Legal Details. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/d/demjanjuk-john/israeli-data/demjanjuk-s1-1.html>. Acesso em 24/09/2012. 224 MATTOGNO, C; GRAF, J: “Treblinka: Transit Camp or Extermination Camp?”. Washington: The Barnes Review, 2010. p 172. 90 encontramos os aspectos políticos, de soberania e os ligados à construção da figura do inimigo. Oficialmente o caso Demjanjuk iniciou-se em 1975 nos Estados Unidos. “Desde o início da década de 1970, membros do Congresso, de organizações judaicas e da mídia interpelaram o governo norte americano com urgência cada vez maior a respeito de criminosos de guerra refugiados nos Estados Unidos”225. O esforço político do governo norte americano desdobrou-se, então, em uma disputa jurídica travada contra Demjanjuk, a fim de desnaturalizá-lo. Nessa fase processual o papel desempenhado pela comunidade ucraniana foi essencial, uma vez que o apoio financeiro cedido deveu-se em grande parte à indignação sentida pelos ucranianos ao serem tachados de anti-semitas e colaboradores. O teor da caracterização histórica que delimitava a Ucrânia como lar de “traidores” remetia a força política da URSS no cenário político-internacional e o caso Demjanjuk representou, em determinado sentido, uma expressão das disputas políticas em torno das representações sobre a II Guerra Mundial entre a URSS e os EUA. A lógica bipolar de embate entre a União Soviética, de um lado e os Estados Unidos, do outro, serviu como o espírito político do caso, algo não presenciado durante os procedimentos do caso Eichmann, uma vez que a essência política desse julgamento referia-se a elementos históricos ligados exclusivamente à Shoah. Segundo Gitta Sereny, o referencial político ao caso Demjanjuk foi bem distante do de Eichmann, pois foi graças à pressão norte americana que os israelenses aceitaram realizar mais um julgamento. Nesse sentido: Por volta de 1984, o governo norte americano estava ansioso por justificar os enormes gastos gerados com 350 investigações e 50 julgamentos comuns, com outros 300 casos ainda em andamento. Eles tentaram primeiro, convencer os alemães ocidentais, e depois, os israelenses a aceitar submeter um deportado a um julgamento criminal. Os próprios alemães ocidentais, que, desde 1958, investigaram dezenas de milhares de casos e levaram várias dezenas a julgamento (entre esses julgamentos, estão os dos Einsatzgruppen, de Auschwitz, de Majdanek, de Sobibor, de Treblinka e de Trawniki, cada uns dos quais com duração de anos), ainda têm um grande número de casos pendentes226. Foram os altos custos com o julgamento nos EUA e a impossibilidade jurídica de dar um desfecho no caso que fizeram com que a responsabilidade caísse aos 225 226 SERENY, G: “O Trauma Alemão”. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.p 364. SERENY, G: “O Trauma Alemão”. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.p 364. 91 israelenses. Novamente um dos questionamentos vindos da comunidade internacional era o da possibilidade de realização de justiça: Uma das considerações que aponta a balança em favor da exposição de todo o julgamento ao público em Israel e o resto do mundo foram as queixas expressas em voz alta em relação a inabilidade do sistema judiciário em Israel de conduzir um julgamento apropriado contra um indivíduo suspeito de participação no Nazismo, uma vez que aqui é o Estado das “vítimas”227. Aos olhos de muitos israelenses os procedimentos jurídicos e as implicâncias nacionais decorrentes do processo contra o ucraniano assemelhavam-se em muito ao caso Eichmann, pois mais uma vez Israel levava a julgamento um não israelense. A primeira vista, realmente, muitas semelhanças apresentavam-se. Igualmente presenciado nos dois casos foi a força de uma simbologia nacional. Bandeiras israelenses decoraram ambos os locais, o que demonstrava, de fato, que se tratavam de tribunais nacionais. Tanto no julgamento de Eichmann, quanto nos procedimentos contra Demjanjuk o hebreu foi a língua utilizada e seguiu-se os procedimentos legais israelenses. Os próprios locais que serviram de sede aos dois procedimentos eram semelhantes. O julgamento de Eichmann desenrolou-se no imponente prédio chamado: Casa da Justiça [Beth Hamishpth], enquanto o julgamento de Demjanjuk foi alocado em um prédio que normalmente era usado como um teatro e centro de conferências, com lugar para 350 pessoas. Eichmann, assim como Demjanjuk, também permaneceram detidos na prisão de Ayalon em Ramla, destino freqüente de terroristas e inimigos do Estado de Israel. As diferenças também á primeira vista eram bem pontuais. A transmissão a rádio e o papel desempenhado pela imprensa foram fundamentais para que o julgamento de Eichmann atingisse toda a população israelense, mas durante o caso Demjanjuk os israelenses puderam usufruir de uma tecnologia mais apurada: a da televisão. Processualmente o ucraniano foi enquadrado pelos mesmos crimes que Eichmann: Crimes Contra o Povo Judeu, Crimes Contra a Humanidade, Crimes de Guerra e Crimes Contra Pessoas Perseguidas; todos os tipos pertencentes ao Estatuto Punitivo a Nazistas e Colaboradores de 1950: O suspeito apelidado de “Ivan o Terrível”, era um membro das SS e entre os anos de 1942-1943 operou câmaras de gás para o extermínio 227 ISRAEL. The Demjanjuk case factual and legal details. < http://www.mfa.gov.il/MFA/AntiSemitism%20and%20the%20Holocaust/Documents%20and%20communiques/THE%20DEMJANJUK% 20CASE-%20FACTUAL%20AND%20LEGAL%20DETAILS%20-%2028>. Acesso em 14/05/2011. 92 de prisioneiros no campo de concentração de Treblinka na área de Lublin, na Polônia, que foi ocupada pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. O suspeito assassinou milhares de judeus, bem como não judeus, matando-os, ferindo-os, causando-lhes sérios danos corporais e mentais, submetendo-os a condições de vida calculadas para trazer sua destruição física. O suspeito cometeu esses atos com a intenção de destruir o povo judeu e cometer crimes contra a humanidade. Parágrafo das acusações: parágrafo 1, 2,3 e 4 da Lei Punitiva 5710228. O elemento diferenciador entre os dois casos, no plano processual, residiu na acusação de assassinato, uma estratégia jurídica realizada pelos dois governos, a fim de manter a legalidade da extradição e os problemas político-nacionais começaram a surgir exatamente devido a esse legalismo: Os crimes contra o povo judeu não constam de forma alguma no Tratado de Extradição assinado por Israel e os Estados Unidos (14 U.S.T. 1708). A lista de crimes sujeitos a extradição sob o Artigo II do Tratado não apresentam nenhuma compreensão que abranja crimes de guerra, genocídio, crimes contra “pessoas perseguidas”,ou nacionalidades perseguidas. Os atos específicos e intenções devem ser demonstrados sob a lei de Israel, de modo a conferir jurisdição extraterritorial, no direito interno de Israel; e em vista de Israel, sob a lei internacional, eliminar automaticamente as acusações e os atos inclusos nessa, a partir da categoria legal de assassinato229. 228 UNITED STATES. United States District Court, N.D. Ohio, Eastern Division. In the Matter of the EXTRADITION OF John DEMJANJUK aka John Ivan Demjanjuk, aka John Ivan Demyanyuk. Misc. No. 83-349. April 15, 1985 As Amended April 30, 1985. Disponível em: <http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=612%20f.supp.%20544united%20states%20district%20co urt%2C%20n.d.%20ohio%2C%20eastern%20division.%20in%20the%20matter%20of%20the%20extradi tion%20of%20john%20demjanjuk%20aka%20john%20ivan%20demjanjuk%2C%20aka%20john%20iva n%20demyanyuk.%20misc.%20no.%2083349.%20april%2015%2C%201985%20as%20amended%20april%2030%2C%201985&source=web&cd= 1&ved=0CCUQFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.icrc.org%2Fihlnat.nsf%2F39a82e2ca42b52974125673e00508144%2F3df77e567c201ca6c1256d1800307981%2F%24FI LE%2FEXTRADITION%2520OF%2520John%2520DEMJANJUK.doc&ei=TVdoUPHnC42K8QSo7IG YBQ&usg=AFQjCNH8hvOwcuUNoPyuqbbxDjbqMRgHTg&cad=rja>. Acesso em: 30/09/2012. 229 UNITED STATES. United States District Court, N.D. Ohio, Eastern Division. In the Matter of the EXTRADITION OF John DEMJANJUK aka John Ivan Demjanjuk, aka John Ivan Demyanyuk. Misc. No. 83-349. April 15, 1985 As Amended April 30, 1985. Disponível em: <http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=612%20f.supp.%20544united%20states%20district%20co urt%2C%20n.d.%20ohio%2C%20eastern%20division.%20in%20the%20matter%20of%20the%20extradi tion%20of%20john%20demjanjuk%20aka%20john%20ivan%20demjanjuk%2C%20aka%20john%20iva n%20demyanyuk.%20misc.%20no.%2083349.%20april%2015%2C%201985%20as%20amended%20april%2030%2C%201985&source=web&cd= 1&ved=0CCUQFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.icrc.org%2Fihlnat.nsf%2F39a82e2ca42b52974125673e00508144%2F3df77e567c201ca6c1256d1800307981%2F%24FI LE%2FEXTRADITION%2520OF%2520John%2520DEMJANJUK.doc&ei=TVdoUPHnC42K8QSo7IG YBQ&usg=AFQjCNH8hvOwcuUNoPyuqbbxDjbqMRgHTg&cad=rja>. Acesso em: 30/09/2012. 93 Dessa forma, Demjanjuk acabou sendo extraditado dos Estados Unidos sob a queixa de assassinato, pois “o crime de homicídio previsto no Artigo II do Tratado excluiu os elementos do delito de genocídio ou de crimes de guerra”230. Devido a essa dinâmica “pré-processual”, inexistente no caso Eichmann, os elementos políticos, de soberania, os jurisprudenciais e os de caracterização da figura do inimigo tiveram um desenvolvimento muito distinto, uma vez que a corte norte americana “confirmou a validade da jurisdição israelense à luz do direito internacional – cuja base residia no princípio de jurisdição universal em relação a crimes de guerra e contra a humanidade”231, mas não em relação aos crimes contra o povo judeu. A abundância de documentação referente às atividades de Eichmann conjugada com a presença de inúmeras testemunhas contrastava com o julgamento de Demjanjuk que possuía um número reduzido de sobreviventes de Treblinka e rarefeita documentação da Aktion Reinhard. Por conta disso, como bem apontou a historiadora Gitta Sereny: “a falta de provas documentais sobre os campos de extermínio [fez com que] a validade do testemunho dos sobreviventes [fosse] a questão mais grave que os juízes israelenses defrontaram-se”232. O papel desempenhado pelas testemunhas nos dois procedimentos foi bem diferente. Enquanto que no julgamento de Eichmann elas tiveram uma funcionalidade instrumental, a fim de atingir objetivos extrajudiciais; no caso Demjanjuk a memória delas possuía uma dinâmica normativa, o que pôs os juízes desse caso em uma situação moral e jurídica extremamente delicada, pois se Demjanjuk fosse considerado inocente, seria o mesmo que dizer aos sobreviventes que eles mentiram. Nesse sentido, a presença de elementos pertencentes à ordem da moralidade foi mais um ponto que conectava os dois casos. Com Eichmann a natureza da artéria moral revelava-se a partir do questionamento: “é possível, por meio de uma instituição 230 UNITED STATES. United States District Court, N.D. Ohio, Eastern Division. In the Matter of the EXTRADITION OF John DEMJANJUK aka John Ivan Demjanjuk, aka John Ivan Demyanyuk. Misc. No. 83-349. April 15, 1985 As Amended April 30, 1985. Disponível em: <http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=612%20f.supp.%20544united%20states%20district%20co urt%2C%20n.d.%20ohio%2C%20eastern%20division.%20in%20the%20matter%20of%20the%20extradi tion%20of%20john%20demjanjuk%20aka%20john%20ivan%20demjanjuk%2C%20aka%20john%20iva n%20demyanyuk.%20misc.%20no.%2083349.%20april%2015%2C%201985%20as%20amended%20april%2030%2C%201985&source=web&cd= 1&ved=0CCUQFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.icrc.org%2Fihlnat.nsf%2F39a82e2ca42b52974125673e00508144%2F3df77e567c201ca6c1256d1800307981%2F%24FI LE%2FEXTRADITION%2520OF%2520John%2520DEMJANJUK.doc&ei=TVdoUPHnC42K8QSo7IG YBQ&usg=AFQjCNH8hvOwcuUNoPyuqbbxDjbqMRgHTg&cad=rja>. Acesso em: 30/09/2012. 231 WENIG, J: “Enforcing the Lessons of History: Israel Judges and the Holocaust”. In: McCORMACK, T; SIMPSON, G: “The Law of War Crimes. National and International Approaches”.Hague: Kluwer Law International, 1997. p 116. 232 SERENY, G: “O Trauma Alemão”. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.p 363. 94 humana, render justiça a seis milhões de mortos?” Já com Demjanjuk: “é possível que a memória atormentada de um sobrevivente falhe no reconhecimento de seu próprio carrasco?” A questão central que permeava jurisprudencialmente o processo contra o ucraniano era a da confiança na memória, enquanto o de Eichmann era a da documentação. Para o procurador geral, Yonah Blattman: “os sobreviventes que viveram sob os atos mais horríveis da História da Humanidade não esqueceram os nazistas e não podem esquecer o que os nazistas fizeram com eles”233. A memória dos sobreviventes que testemunharam no julgamento de Demjanjuk possuía um alto grau de legitimidade, pois como proferiu um dos juízes do caso, Dov Levin: “para provar algo precisamos de evidências, mas nós chegamos a um estágio em que nenhuma evidência foi produzida”234 salvo a memória. A posição da corte, portanto, foi categórica em relação ao valor fonte da memória: Nós estamos cientes da fraqueza humana e das possíveis falhas na memória humana. Mas nós aprendemos quão poderoso é o tormento impresso na alma dos sobreviventes, os quais foram arrebatados com marcas de queimadura daquele inferno... Suas memórias são memórias vivas: seus testemunhos – são testemunhos verdadeiros235. . Sendo assim, o esforço jurídico de Yonah Blattman foi o de ratificar a impossibilidade do esquecimento: Nós devemos nos perguntar: isso tudo é possível de esquecimento? As pessoas que vivenciaram os horrores do vale do massacre e seus horrores, que viveram em uma atmosfera de opressão, terror, medo e perseguição dentro de alguns limites estreitos do campo de extermínio; pessoas que viram, dia após dia, o assassinato, a humilhação, a brutalidade, o abuso cometido pelos opressores alemães e seus vassalos ucranianos no campo de Treblinka, é possível esquecer tudo isso?236. No campo jurisprudencial, portanto, o caminho seguido por Blattman foi o aberto por Hausner (“Não esquecer”). A jurisprudência formulada no caso Eichmann foi coerentemente bem seguida no julgamento de Demjanjuk. A lógica do “nunca mais” 233 BLATTMAN, Y apud TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p 99 234 LEVIN, D apud TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p 96 235 ISRAEL apud WENIG, J: “Enforcing the Lessons of History: Israel Judges and the Holocaust”. In: McCORMACK, T; SIMPSON, G: “The Law of War Crimes. National and International Approaches”.Hague: Kluwer Law International, 1997. p 116. 236 BLATMAN, Y Apud DOUGLAS, L: “The Memory of Judgment: making Law and History in the trials of Holocaust”. New Haven: Yale University Press, 2011. p 204 95 passava, necessariamente, pela impossibilidade de esquecer, tal como foi apregoada por Hausner: “enquanto viver um judeu, ele irá reter em seu coração a memória da vastidão do Holocausto e a angústia a qual aquele regime sedento de sangue causou ao povo judeu. Isso nunca será esquecido em nossos corações, nem nos corações de nossas crianças. Nós não devemos perdoar os assassinos até a última geração, porque muito sangue foi derramado; a ferida é muito profunda e os ferimentos muito dolorosos” 237. A composição da equipe de advogados também acabava por diferenciar os dois casos. A equipe de Demjanjuk não fora financiada pelo Estado israelense, tal como a de Eichmann e ainda gozava de uma grande inexperiência. O’Connor e posteriormente Sheftel nunca haviam trabalhado com criminosos de guerra, diferentemente de Servatius, no caso Eichmann. A inexperiência da defesa conjugada com o fato de um judeu, Sheftel, ter sido indicado a defender um acusado de pertencimento às SS causou um grande mal estar à sociedade israelense. A repulsa a tal situação teve seu clímax em primeiro de dezembro de 1988, quando Yisrael Yehezekeli, um sobrevivente do Holocausto, jogou uma solução ácida no rosto de Sheftel. Em entrevista a um programa israelense Yehezeleki justificou seu ato da seguinte maneira: “eu não queria matá-lo, eu queria marcá-lo. Eu queria que todos os judeus soubessem que entre eles vive um colaborador nazista que venderia sua mãe por dinheiro”238. Além de Sheftel tivemos a inclusão do controverso Juiz Dov Eitan, outro judeu, na equipe de defesa, o que contribuiu mais para o sentimento de desagregação. Convidado pela defesa por conta de suas atividades políticas o “Juiz Dov Eitan demitiu-se da Corte Distrital em 1983 após chocar-se contra as autoridades em decorrência de sua defesa pública acerca da retirada israelense dos territórios capturados”239. O ativismo do magistrado representava muito bem a posição da esquerda israelense, que se mantinha crítica a uma série de políticas encabeçadas pelo Estado de Israel, como, por exemplo: as questões dos territórios ocupados, dos usos retóricos da Shoah, a manutenção de um poderoso aparato bélico e a posição propagandística da mídia estatal em relação aos conflitos; o que rendeu, da 237 The Trial of Adolf Eichmann Volume V. Disponível em: <http://www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/Sessions/Session-120-02.html>. Acesso em 16/01/2012. 238 YOUTUBE. The first trial of John Demjanjuk.29 de outubro de 1992 .Ivan the less terrible?. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=dVQnb_ZtwKA&feature=BFa&list=PLADA46C7C5D1BD99A> Acesso em 29/09/2012. 239 JEWISH TELEGRAPHIC AGENCY. “Former Israeli judge joins Demjanjuk defense team”. 16 de setembro de 1988. Disponível em: < http://archive.jta.org/article/1988/09/16/2753228/former-israelijudge-joins-demjanjuk-defense-team>. Acesso em 25/06/2012. 96 parte de Eitan, severas críticas ao então ministro da justiça Moshe Nissim, alegando que: “dever-se-ia pôr abaixo o prédio da Israel Broadcasting Autority240”241. O ataque sofrido por Sheftel, da parte de um sobrevivente do Holocausto, revelava sentidos opostos aos conquistados pelo julgamento de Eichmann. Com a inclusão de Eitan ao time de defesa, tais sentidos foram intensificados a ponto de culminarem em um trágico episódio: o suicídio do juiz. Sheftel, em entrevista ao Ukrainian Weekly revelou que seu colega recebera uma série de ameaças, mas os motivos pelos quais o juiz suicidou-se era um total e completo mistério, inclusive para sua esposa. Segundo Sheftel: Não há dúvida alguma de que Dov Eitan não foi empurrado, fisicamente. O que pode ser é que ele chegou a esse ponto, por conta das ameaças. Ele foi ameaçado, definitivamente – mas talvez ele foi ameaçado de uma forma que, por um lado, ele estava com medo de perseguir seu papel como um advogado de defesa e, por outro lado, ele disse a si mesmo que era impossível retirar-se, a partir do ponto de vista moral. Por conta disso, talvez aí a solução pelo suicídio. Em outras palavras, talvez ele tenha sido empurrado mentalmente a cometer suicídio. Mas não há a menor dúvida em minha mente de que Dov Eitan não foi empurrado do décimo quinto andar. Ele pulou. Talvez foi forçado mentalmente, mas não fisicamente242. Uma das preocupações de Ben Gurion ao indicar um alemão para a defesa de Eichmann era exatamente a de não comprometer a incolumidade moral de qualquer judeu frente à comunidade israelense, preocupação essa que não ocorreu no caso Demjanjuk. Devido a esse fator nós somos capazes de identificar, no julgamento do ucraniano, a maior intensidade de elementos ligados ao campo da moralidade, o que, de certa forma, comprometeu a lógica política interna do processo e seus possíveis sentidos extrajudiciais. A composição e orientação da promotoria também foi um elemento distinto. No caso Demjanjuk, em auxílio ao procurador geral do Estado, Yonah Blattman, tivemos a participação de Michael Shaked, procurador do Distrito de Jerusalém, Dennis Goldman e Eli Gabay da Seção Internacional do Gabinete da Procuradoria do Estado. A maior presença de especialistas jurídicos no campo do 240 Rede estatal de mídia pertencente ao Estado de Israel. EITAN, D apud JEWISH TELEGRAPHIC AGENCY. “Former Israeli judge joins Demjanjuk defense team”. 16 de setembro de 1988. Disponível em: < http://archive.jta.org/article/1988/09/16/2753228/former-israeli-judge-joins-demjanjuk-defense-team>. Acesso em 25/06/2012. 241 242 SHEFTEL, Y. Interview Yoram Sheftel, Israeli defender of John Demjanjuk. Entrevista. [21 de Julho de 1996], número 29, volume LXIV. Entrevista concedida a Roma Hadzewycz. Disponível em: < http://www.ukrweekly.com/old/archive/1996/299607.shtml>. Acesso em 19/12/2012. 97 Direito Internacional foi, de fato, um reflexo da concordância do Estado de Israel com as normas internacionais, o que contrastava com a equipe de acusação do caso Eichmann, em que tínhamos a predominância de especialistas no campo do Direito Civil e Penal. Já a composição dos juízes seguiu uma orientação mais próxima do julgamento de Eichmann. Tanto o juiz Dov Levin quanto a juíza Dalia Dorner e Zvi Tal gozavam de ampla experiência com tribunais militares. 4 - Semelhanças e diferenças: os aspectos políticos, os de soberania e a figura do inimigo Segundo a historiadora austríaca, Gitta Sereny, dois grandes pontos políticos definiram de forma categorial o julgamento de Demjanjuk como um evento bem distinto do caso Eichmann. O primeiro deles diz respeito à tensão entre os Estados Unidos e a União Soviética e o segundo ponto diz respeito a interesses políticos alheios a Israel. “O Departamento de Justiça norte-americano, impossibilitado por lei de realizar julgamentos de casos desse tipo e necessitando de mais apoio do Congresso para manter sua OSI – Office for Special Investigations (Agência de Investigações especiais) -, precisava submeter um caso como esse a um julgamento espetacular no exterior para justificar os dispendiosos processos de desnaturalização da OSI”243. Esses dois elementos contrastavam com a expressão de soberania israelense presente no caso Eichmann, bem sucedida, a partir de Ben Gurion e do Mapai, em afirmar ao Estado duas formas essenciais do político: a representação e a identidade; ferramentas que não tiveram a mesma dinâmica no caso Demjanjuk, devido, de um lado, à existência de uma fase “pré-processual”, desempenhada nos Estados Unidos e a ausência de uma decisão soberana, do outro. A expressão discursiva de unidade política obtida no caso Eichmann não possuiu a mesma intensidade que a desempenhada pelo julgamento de Demjanjuk. Soberania, decisão e exceção não foram pontos norteadores para a realização do julgamento do ucraniano. A ausência desses conceitos, somando-se a outros fatores, que 243 SERENY, G: “O Trauma Alemão”. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.p 363. 98 fizeram, portanto, com que politicamente falando, a narrativa tecida na corte não se expressasse na mesma intensidade presenciada durante o julgamento do austríaco. Diferentemente do julgamento de Eichmann que foi bem sucedido, em um de seus vários sentidos, em afirmar duas formas do político: a identidade e a representação, graças a uma decisão soberana, capaz discursivamente de solidificar a identidade étnica e nacional, a partir da ideia de unidade de um povo, presente na Lei 5710; o julgamento de Demjanjuk esbarrou em uma série de obstáculos. Em primeiro lugar: a harmonia existente na política durante o caso Eichmann entre decisão e representação não foi alcançada politicamente pelo julgamento de Demjanjuk. O fracionamento político, compreendido pela rotação de primeiros ministros entre o Likud e o Mapai e a conseqüente fragilização do Knesset não permitiram que o governo de coalizão representasse a ideia de unidade de um povo em sua plenitude e transcendência. A incapacidade do governo em representar a ideia de unidade implicou em uma fragilidade na afirmação da identidade coletiva, pois os parâmetros legais internacionais presentes no formulário de deportação de Demjanjuk equiparavam homicídio à Lei 5710. Ao posicionar juridicamente a Shoah ao crime de assassinato, devido à pressão norte americana, o esforço nacional de celebração da Shoah esbarrou no legalismo internacional e na ausência de soberania de Israel em decidir, de fato, sobre seu desejo de realização do julgamento. A força dos Estados Unidos na preparação do caso Demjanjuk ceifou de Israel a possibilidade de decisão soberana, o que limitou a afirmação do princípio da identidade, pois ao seguirem as normas legais, os juristas norte americanos equipararam e subtraíram a importância nacional atribuída ao Holocausto no tipo penal homicídio. Ao mesmo tempo o princípio de representação não foi bem sucedido em afirmar-se discursivamente em decorrência do obstáculo legal que limitou o princípio identitário. Tendo em vista que “a ideia de representação se baseia no fato de que um povo que existe como unidade política possui uma espécie de ser mais alta e elevada, mais intensa em face da existência natural de qualquer outro grupo humano”244. Ao Estado de Israel essa condição não pôde afirmar-se na mesma intensidade alcançada no julgamento de Eichmann, pois a soberania nacional, que pode ser entendida como o monopólio da decisão, não foi capaz de se expressar plenamente no caso Demjanjuk. A dualidade presente no caso Eichmann, entre os interesses do Estado, em contraposição aos interesses da justiça, não obteve o mesmo grau no cenário 244 SCHMITT, C apud FERREIRA, B: “Schmitt Representação e Forma Política”. Lua Nova, número 61, 2004. P 49. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ln/n61/a03n61.pdf>. Acesso em: 29/09/2012. 99 político israelense de fins da década de 80. A maior preocupação do Estado era, de fato, a de que tivessem pegado o homem certo. Nas palavras de Benjamin Netanyahu, um político do Likud, essa preocupação ficou bem expressa: “nosso país realizou uma grande tarefa em capturar criminosos de guerra. Eu acredito que é responsabilidade de nosso povo em trazer justiça ao mundo. Não podemos deixar os assassinos de milhões saírem impunes. Temos também a responsabilidade de buscar a verdade porque justiça e verdade estão conectadas. Não queremos julgar o homem errado, queremos julgar e punir o homem certo”245. Um fator de instabilidade política que se acrescentou neste cenário foi a eclosão da Primeira Intifada. Das principais sessões realizadas pelo Knesset durante o período: 26 de novembro de 1986 a 18 de abril de 1988, constam como pontos centrais de discussão os problemas ligados aos árabes. O Knesset debateu com mais intensidade o estado de segurança na Cisjordânia, na Faixa de Gaza e o crescimento do número de atentados terroristas, assim como os tumultos causados pela Intifada. O acirramento da relação com os árabes acabou por desviar a atenção do Knesset para a iminência do conflito, o que rendeu ao judiciário e à Procuradoria do Estado uma maior autonomia para resolver as questões ligadas ao caso Demjanjuk. As críticas oriundas de uma parcela da sociedade civil, decorrente da relação de Israel frente aos árabes, volatilizaram mais a situação política, pois ao levar um questionamento sobre a essência da Shoah, a esquerda israelense prontificou-se em uma posição de denúncia a possíveis usos políticos do caso. A rachadura no edifício político israelense durante o tribunal de Demjanjuk tornou mais embaçada a visão dos representados, no âmbito de reconhecimento de sua própria unidade, uma vez que o ato de representar passa por uma personificação da ação do representante. Outra diferença política entre os dois casos foi a recepção da sociedade civil aos julgamentos. Eichmann provocou um consenso que alcançou altos patamares na esfera política. Já o julgamento de Demjanjuk foi recebido de forma dúbia. No dia em que o ucraniano chegou a Israel, em 28 de fevereiro de 1986, o Jerusalem Post evidenciou toda a frieza diante da corte que estava a ser formada: Verdade a ser contada. Haverá pouca satisfação aos israelenses no julgamento de Ivan Demjanjuk... O tribunal não será uma experiência educacional: desde Eichmann, a consciência do Holocausto, da 245 YOUTUBE. The first trial of John Demjanjuk.29 de Outubro de 1992 .Ivan the less terrible?. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=dVQnb_ZtwKA&feature=BFa&list=PLADA46C7C5D1BD99A> Acesso em 29/09/2012. 100 geração pós-Holocausto não necessita de mais incentivos; enquanto que pessoas de fora ainda neguem o Holocausto, essas mesmas pessoas continuarão a negar, mesmo após o veredicto. Então o resultado legal não produzirá nenhum efeito intimidador. Qual é então o ponto deste julgamento? O ponto é, muito simplesmente falando, que Israel não possui escolha246. Para a Agência Telegráfica Judaica, o cenário não era muito diferente: “o julgamento foi iniciado segunda feira em um antigo cinema, mas a sala com 300 lugares não ficou completa; informou o poeta israelense: Haim Guri, na terça feira em Davar. Ele observou nisso um grande contraste com o julgamento de Eichmann”247. Todavia, assim como o caso Eichmann: “um propósito declarado do julgamento é o de familiarizar a nova geração de israelenses com a realidade terrível do Holocausto. As Forças de Defesa de Israel e o Ministério da Educação planejam levar soldados e estudantes de ensino médio para participarem das sessões que serão realizadas durante quatro dias por semana”248. A atitude da esfera política, em relação à importância do evento aproximava o caso Eichmann do julgamento de Demjanjuk, uma vez que esse também apresentava uma posição importante como peça da memória coletiva. As potencialidades pedagógicas implícitas no caso Demjanjuk, no entanto, não foram capazes de suprir o mesmo sentido de conscientização do Holocausto proporcionado por Eichmann. O julgamento do austríaco foi muito bem sucedido na dosagem, por parte das principais figuras políticas do Estado, de uma nova consciência da Shoah, o que tornou o caso uma verdadeira catarse nacional. O julgamento de Demjanjuk não pôde desempenhar o mesmo aspecto emocional, uma vez que os jovens israelenses possuíam outras possibilidades de aprender sobre o Holocausto, como por exemplo, a partir do Yad Vashem e das chamadas “marchas da vida”, em que os jovens visitavam uma série de campos de extermínio na Polônia. Apesar de existirem outras estratégias pedagógicas, o caso Demjanjuk também atraiu estudantes, mas não na mesma escala que o julgamento de Eichmann. O repórter David Landau da Agência Telegráfica judaica retratou uma cena que revelava a participação de estudantes israelenses nos procedimentos contra o ucraniano. Nas palavras do repórter: 246 TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p 81 247 JEWISH AGENCY TELEGRAPHIC. Demjanjuk Trial continuous. 18 de fevereiro de1987. Disponível em:< http://archive.jta.org/article/1987/02/18/3005675/demjanjuk-trial-continues>. Acesso em 29/09/2012. 248 JEWISH AGENCY TELEGRAPHIC. Demjanjuk Trial begins. 16 de Fevereiro de1987. Disponível em:<http://www.archive.jta.org/article/1987/02/17/3005668/demjanjuk-trial-begins-in-jerusalem>. Acesso em 29/09/2012. 101 Duas meninas de 14 anos de idade enfrentaram o inverno de Jerusalém e a ira de sua professora na semana passada para esperar na fila, de seis horas, para lugares no julgamento de Demjanjuk. As duas descobriram, no entanto, que longe de provocar a ira da professora, ela usou as experiências das duas como bases de discussões em classe no dia seguinte. A professora acabou reservando assentos para a classe presenciar as audiências em seis semanas249. No cenário internacional o caso Demjanjuk acabou recebendo menos atenção que o caso Eichmann. Isso se deveu ao fato de concomitantemente o Hauptstürmführer250 Klaus Barbie estar sendo julgado em Lyon, o que fez com que a corte estabelecesse, inclusive, algumas comparações251. Em consonância ao caso Eichmann, a questão política do esquecimento foi um ponto de retórica usado novamente, a fim de legitimar os procedimentos no julgamento de Demjanjuk. A diferença foi que durante o julgamento do ucraniano a retórica do esquecimento aplicou-se no plano doméstico e não ao internacional. De acordo com Yonah Blatman, o promotor do caso: “o Holocausto parece esquecido da memória coletiva (...) aqui em Israel (...) as pessoas tendem a empurrar para fora de sua consciência o que não é para ser encontrado na realidade do dia a dia. No entanto, isso é alimentado por um fenômeno que deve ser totalmente condenado: a negação do Holocausto” 252 . Se o julgamento de Eichmann visava ensinar a um mundo indiferente sobre os horrores da Endlösung, o segundo foi justificado como um repúdio aos odiosos argumentos dos negacionistas do Holocausto, algo que ficou bem expresso nas palavras de Blatman: Existem aqueles que desejariam reescrever a história e aliviar a consciência de certas pessoas e tornar possível a elas viver seus dias de forma quieta. Mas o mundo rejeitou essa abordagem. Desde a guerra, os aliados concordaram em perseguir os criminosos de guerra nazista; por esse motivo, em Israel, não existe um estatuto de limitação, logo criminosos como Eichmann e Demjanjuk são levados à justiça253. 249 JEWISH AGENCY TELEGRAPHIC. Behind the Headlines: the impact of the Demjanjuk Trial. 17 de Março de1987. Disponível em:< http://archive.jta.org/article/1987/03/17/3006175/behind-the-headlinesthe-impact-of-the-demjanjuk-trial >. Acesso em 29/09/2012. 250 Equivalente à patente de Capitão. 251 LEVIN Apud DOUGLAS, L: “The Memory of Judgment: making Law and History in the trials of Holocaust”. New Haven: Yale University Press, 2011; “Seremos lembrados de forma lendária por nossa paciência pelo resto do mundo. Seremos motivo de chacota pelo mundo. O julgamento de Klaus Barbie terminou há muito tempo, mas continuamos a pisar m águas profundas, sem fim à vista” SHEFTEL Apud DOUGLAS, L: “The Memory of Judgment: making Law and History in the trials of Holocaust”. New Haven: Yale University Press, 2011. p 203. 252 BLATMAN, Y Apud DOUGLAS, L: “The Memory of Judgment: making Law and History in the trials of Holocaust”. New Haven: Yale University Press, 2011. p 187. 253 BLATMAN, Y Apud TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p 269. 102 Semelhantemente ao que ocorrera com Eichmann o Estado buscou apresentar-se como um guardião, capaz de amparar a experiência das vítimas, o que demonstra o quanto os julgamentos do Holocausto forneceram elementos políticos importantes à construção da identidade nacional israelense. A presença de importantes personalidades políticas no caso Demjanjuk demonstrou ainda a importância desse julgamento para o cenário político israelense. “O primeiro ministro Yitzhak Shamir participou de uma sessão à tarde e o general Yossi Peled, Comandante da Frente Norte, sentou-se também junto aos expectadores e mal escondendo as emoções, como ele bem declarou: lembrava-se do som das botas dos soldados da Gestapo sobre a adega em que ele se escondia na Polônia, quando tinha quatro anos”254. 5 - Eixos narrativos: unidade étnica x unidade religiosa Diferentemente do caso Eichmann em que tivemos uma narrativa que visava apresentar a Shoah em todos os seus detalhes, mas com um foco em especial à questão do extermínio dos seis milhões, a elementos de heroísmo e reconstrução de um povo; no julgamento de Demjanjuk a promotoria restringiu seus esforços aos campos de Treblinka e Sobibor devido questões jurídicas presentes no formulário de deportação de Demjanjuk. Tal como pronunciado pela corte: “Treblinka encarnava a terrível tragédia” e representava “o fim de um longo, amargo e tortuoso caminho de extermínio do povo judeu e das comunidades judaicas por toda a Europa”255. O sentido atribuído pela promotoria à narrativa que era tecida na corte em muitos aspectos era próximo do que foi realizado por Hausner. A morte, o extermínio, o heroísmo; todos foram elementos bem presentes. Todavia, um “novo” elemento apareceu com certa freqüência no caso Demjanjuk. Tratava-se de símbolos e simbologias ligados ao campo religioso. Referências como: “a entrada da nova câmara ostentava uma Estrela de David, tal como 254 JEWISH AGENCY TELEGRAPHIC. Behind the Headlines: the impact of the Demjanjuk Trial. 17 de Março de1987. Disponível em:< http://archive.jta.org/article/1987/03/17/3006175/behind-the-headlinesthe-impact-of-the-demjanjuk-trial >. Acesso em 29/09/2012. 255 BLATMAN, Y Apud TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p 5. 103 na lenda hebraica: “este é o portão pelo qual os justos passarão”256, ou em relação à revolta ocorrida em Sobibor: Durante os meses de junho e julho, o calor do verão tornou-se incrivelmente insuportável. A liderança para a revolta estava no campo 1. Eles tentaram encontrar um plano de alcançar às armas. O tempo estava correndo. Eles dividiram o plano. Após outro adiamento, a revolta foi programada para 2 de Agosto. Os judeus não poderiam dormir antecipadamente. “O dia do julgamento” estava às suas mãos257. Evocando figuras de conotação religiosa o caráter sacro da Shoah foi costurado à política. Na ideia bíblica de julgamento, apresentada mais acima, percebemos como o religioso apareceu com força próximo ao político. Mas Blatman não restringiu sua estratégia discursiva somente a evocar elementos de natureza religiosa. Ao alocar os que pereceram em Treblinka como justos, os milhões assassinados tornavam-se, de fato, sagrados [Kedoshin] e os sobreviventes mártires [Geborin], enquanto ambos transformavam-se em Tsadikim [imortais] dentro da memória nacional, posição distinta da que ocorrera no caso Eichmann, em que os mortos foram caracterizados a partir da ideia de unidade étnica. A força dos elementos sacros que apareciam na corte, a partir da acusação, também encontrava emissores do lado da defesa. O’Connor e posteriormente Sheftel contribuíram na construção de figuras místicas em torno do caso, o que denotava um embate entre preceitos ético-morais de bem e mal, justapostos por principios de justiça e injustiça. A anteposição de outras figuras que não a de amigo inimigo demonstram o quanto foi difícil à promotoria conduzir os procedimentos de forma puramente política, tendo em vista o ônus de se provar a identidade de John como inimigo do povo judeu. Nas palavras de O’Connor, o caso Demjanjuk representava: A segundo vez na história, no que diz respeito ao Estado de Israel, o jovem Estado de Israel, que a espada de São Miguel foi tomada a uso pelo longo braço da jurisdição para trazer em direção à casa de Sião um criminoso internacional, um criminoso cujos crimes ofendem toda a humanidade, se, de fato, a segunda vez por aqui nós temos uma situação em que não existe uma racionalidade apropriada, não há bases adequadas a este caso, e nós não temos absolvição, o que faz 256 BLATMAN, Y Apud TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p 5. 257 BLATMAN, Y Apud TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p 13. 104 então o mundo com os precedentes que foram estabelecidos por este tribunal, por este sinédrio legal 258. Esses traços religiosos que apareceram no caso Demjanjuk revelam certo grau de alteração nas representações políticas da Shoah devido a força do campo moral, uma vez que elementos binários como sagrado e maligno aproximaram-se das categorias essencialmente políticas: amigo-inimigo. Nas palavras de Blatman, este caráter religioso e de sobrevivência novamente ficam bem caracterizados: Nós devemos erguer em nosso julgamento, de acordo com a totalidade de evidências apresentada, um monumento às suas almas, à sagrada congregação que foi perdida e não mais é; àqueles que foram aniquilados e não receberam o privilégio de um enterro judaico porque dificilmente algum vestígio remanesceu; àqueles que foram queimados nas piras e cujos esqueletos tornaram-se cinzas e poeira, usada para fertilizar os campos da Polônia259. A representação jurídica à alma dos mortos e a sagrada congregação judaica evocada demonstravam o papel desempenhado pelo santo na narrativa jurídica. No entanto, esses elementos contribuíram, de fato, para tornar a discriminação amigo-inimigo, mais nebulosa e distorcida. 6 - A figura do inimigo Em sua ontologia política Carl Schmitt define que o antagonismo amigo/ inimigo é a distinção especificamente política a qual se reportam as ações e os motivos ligados ao político. “Para Schmitt a distinção amigo/inimigo é útil como ferramenta capaz de fornecer um ponto focal para a descarga de vontade política” 260. No capítulo anterior vimos que o caso Eichmann foi bem sucedido em expressar uma vontade política soberana efetivada por uma decisão que foi capaz de instaurar uma exceção à norma internacional. Já a organização do julgamento de Demjanjuk não obteve 258 O’CONNOR Apud TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p 95. 259 BLATMAN, Y Apud DOUGLAS, L: “The Memory of Judgment: making Law and History in the trials of Holocaust”. New Haven: Yale University Press, 2011. p 187. 260 VALK, F: “Decisions, Decisions Carl Schmitt on Friends and Political Will”. Rockfeller College Review, Volume 1, Número 2. p 44. Disponível em: <http://www.preterhuman.net/texts/politics/Vander%20Valk%20F.%20%20Carl%20Schmitt%20on%20Friends%20and%20Political%20Will.pdf> Acesso em 27/09/2012. 105 desdobramentos de uma vontade política soberana devido à imposição de outra nação. A ausência de uma vontade política e soberana capaz de instaurar a distinção especificamente política de amigo/inimigo acabou por desempenhar um papel chave na frágil definição de inimigo atribuída a Demjanjuk, pois como caracteriza Schmitt: “o instinto político e o pensamento político provam-se teoricamente e praticamente na habilidade de distinguir amigos de inimigos. O ponto alto do político é simultaneamente o momento em que o inimigo é, em clareza concreta, reconhecido como inimigo” 261. O reconhecimento do inimigo não pode partir de outra dimensão que não seja a da vontade política, uma vez que parte-se de uma “decisão em relação a um conteúdo particular relacionado à distinção de grupo amigo/inimigo que a política encontra seu momento mais alto”262. Apesar dessas complicações política, assim como Eichmann, Demjanjuk também fora caracterizado discursivamente e legalmente como um inimigo do povo judaico. Por mais que a posição hierárquica desse dentro da máquina nazista fosse inferior a de Eichmann, a plataforma política provida pelo conceito de inimigo os ligava. Nesse sentido, não importava qual o papel, ou a relevância do inimigo dentro da Shoah, pois o vazio instaurado, por conta da posição hierárquica de Demjanjuk, foi preenchido pelo Estado a partir da imputação de crimes de natureza brutal. Blatman quem se esforçou em termos políticos e jurídicos para articular o binômio nazistainimigo, tal como Hausner fizera: Mesmo uma peça no maquinário, um motorista, podem ser parte do crime... E mesmo quando se relaciona com a hierarquia do maquinário nazista, o acusado pode, de fato, ser visto como uma pequena engrenagem no inferno... No entanto, quando alguém examina e revisa as ações reais por ele realizadas, vê-se que ele não era apenas um guarda... Nem mesmo desempenhou um papel marginal... Ele era, de fato, um parceiro ativo no próprio ato de realizar um dos maiores atos de assassinato da história263. 261 SCHMITT apud VALK, F: “Decisions, Decisions Carl Schmitt on Friends and Political Will”. Rockfeller College Review, Volume 1, Número 2. p 44. Disponível em: <http://www.preterhuman.net/texts/politics/Vander%20Valk%20F.%20%20Carl%20Schmitt%20on%20Friends%20and%20Political%20Will.pdf> Acesso em 27/09/2012. 262 SCHMITT apud VALK, F: “Decisions, Decisions Carl Schmitt on Friends and Political Will”. Rockfeller College Review, Volume 1, Número 2. p 46. Disponível em: <http://www.preterhuman.net/texts/politics/Vander%20Valk%20F.%20%20Carl%20Schmitt%20on%20Friends%20and%20Political%20Will.pdf> Acesso em 27/09/2012. 263 BLATMAN, Y apud TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p 268. 106 Ampliando um pouco o leque de discussão sobre o conceito de inimigo tomamos o trabalho de Michael Mann: “The Dark Side of Democracy” como importante interlocutor. Dentre as nove definições264 de perpetradores apresentados por Mann, Eichmann encarnava três categorias, de acordo com as estratégias retóricas da promotoria. O acusado tratava-se de um inimigo ideologicamente comprometido à causa do extermínio judaico, um burocrata, responsável pela organização de um sistema extremamente eficiente de deportação de suas vítimas para os campos de extermínios e um carreirista. Por conta dessas três categorias, Eichmann foi concebido como o grande inimigo do povo judeu, o que gerou um consenso acerca de sua culpa e da sentença desferida. Demjanjuk por sua vez carregava consigo uma série de dificuldades ao político. A dualidade identitária presente: “Demjanjuk” x “Ivan” tornou a tarefa da promotoria em construir o inimigo um trabalho hercúleo. A estratégia da promotoria foi a de enquadrar “Ivan” nas categorias de violento e fanático graças aos relatos chocantes das testemunhas. No núcleo do primeiro tipo aparecem indivíduos que identificam na violência uma forma legítima de solução dos problemas. Já no segundo ponto encontramos sujeitos impulsionados por preconceitos históricos e sociais, que se orientam, a partir de forte reação emocional. A essência da figura do inimigo, nesse sentido, revelava rumos bem distintos: Eichmann era o genocida de um povo; já “Ivan” um assassino a sangue frio. Essa realidade antagônica foi inclusive objeto de contestação por parte de Demjanjuk, o que acabou causando uma grande desconfiança aos juízes, uma vez que o acusado disse: “porque vocês estão fazendo tanto caso de 264 O primeiro tipo apresentado por Mann consiste: ideological killers. Segundo o autor esse tipo “acredita na justiça da limpeza assassina. Encontrados especialmente nas altas patentes, eles perseguem os valores de racionalidade apresentados por Weber – meios assassinos são justificados por objetivos superiores”. O segundo tipo é intitulado: Bigoted Killers. “Inspirados pelas ideologias mais mundanas. Inseridos especialmente entre perpetradores de patente baixa, compartilham os preconceitos casuais de seu tempo e lugar e assim se envolvem, no que Weber chamou de ação afetiva (emociona)”. Em seguida temos os Violent Killers. “Assassinos atraídos pelo assassinato em si”. Em quarto temos os Fearful Killers. “Eles sentem-se ameaçados, amedrontados em serem machucados caso não matem. Esses são fisicamente coagidos; algumas vezes são assassinos relutantes”. Na quinta posição aparecem os Careerist Killers. Esses percebem o ato de extermínio “como algo materialmente vantajoso, que pode levá-los a um crescimento profissional”. Em seguida temos os Materialist Killers. São assassinos que agem a partir do prospecto de ganhos materiais. Seus interesses podem ser variados: desde propriedades até mesmo emprego das vítimas. Em sétimo aparecem os Disciplined Killers. Engaiolados em legítimas cadeias hierárquicas pautadas na autoridade, identificam que qualquer descumprimento com as ordens é uma forma de desvio. Esse tipo pode tornar-se assassinos habituais, independentemente de questões de tempo, ou de espaço. Na oitava posição temos os Comradely. Consistem de “assassinos presos à conformidade e pressão de grupos de pares, agem especialmente por medo de que o grupo retire o suporte emocional”. Por último figuram os Bureaucratic Killers. São assassinos inseridos na lógica da moderna burocracia. MANN, M: “The Dark Side of Democracy: explaining ethnic cleansings”. New York: Cambridge University Press, 2005. p 28- 29. 107 mim? Eichmann era grande e Ivan pequeno. Além disso, eu não sou Ivan. Há um erro de identidade”265. Uma série de testemunhas subiram à corte e auxiliaram o promotor geral, no trabalho de edificação da figura de Ivan como um indivíduo fanático e violento. Eliahu Rosenberg, um dos sobreviventes que testemunharam à corte, foi o mais enfático na definição de Ivan. Nas palavras de Rosenberg: “eu posso afirmar com toda certeza, que tais crueldades e assassinatos cometidos de forma sádica que ele perpetrou, durante todos os dias, foram, certamente, não realizados a partir de ordens”266. Sonia Lewkowicz, outra sobrevivente, ao ser questionada em relação à identidade de Demjanjuk e sobre suas memórias do período de Treblinka disse: “ele estava sempre ocupado correndo e gritando. Ele adotou o estilo dos alemães, sempre batendo muito e espalhando o medo a todos”267. Pinhas Epstein, outro sobrevivente, narrou momentos horríveis relacionados ao indiciado: Sr Juiz, eu me lembro de outro episódio e eu tenho pesadelos com ele até os dias de hoje. Um dia uma pequena e vivida garota conseguiu sair da câmara de gás. Ela estava viva. Ela estava falando. Uma garota em torno de 12 a 14 anos. Pessoas que tiravam os corpos da câmara de gás fizeram ela sentar-se e a pequena garota, suas palavras ainda ecoam em meus ouvidos. Ela disse: “eu quero minha mãe”. Após todos os corpos terem sido tirados e postos do lado de fora, nós fomos comandados a sentarmos como sempre. Ivan selecionou um jovem rapaz entre nós, cujo nome era Jubas. Ele o golpeou brutalmente com seu chicote e rindo dele ordenou que ele tirasse as calças... Ele golpeou Jubas e ordenou que ele tirasse as calças e davay ye batch: “venha fuder” e Jubas inclinou-se sobre a pequena garota e este ato, como eu o entendo, não chegou a acontecer. Ele inclinou-se sobre a criança – foi um ato de obscenidade contra aquela criança268. Yehiel Meir Reichman caracterizou Ivan como o “super demônio de Treblinka”269 e segundo a testemunha a figura do guarda “está cravada na memória, dia e noite, e eu 265 DEMJANJUK, J apud TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p 84. 266 ROSENBERG, E apud TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p 30. 267 LEWKOWICZ apud TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p 67. 268 EPSTEIN, P apud TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p 67. 269 REICHMANN, Y apud TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p 153. 108 nunca terei paz”270. Por meio dos relatos individuais, portanto, a promotoria foi capaz de enquadrar a figura de Demjanjuk entre os dois tipos de perpetradores. A presença de um elemento alheio à unidade política, tal como a memória na definição do inimigo, assim como a brecha jurídica que enquadrava John no crime de homicídio serviram para comprometer a caracterização de Demjanjuk como Hostis [inimigo]. Com Eichmann um dos fundamentos políticos usados pelo Mapai foi o conceito de “Hostis Humanis Generis” o que legitimava, de certa forma a atuação da corte, pois se apelava a elementos de jurisdição universal. Pelo fato da extradição de Demjanjuk seguir no campo legal e constar ainda violações às normas penais, sua figura era mais próxima a de criminoso que de inimigo, por mais que o discurso jurídico oficial o encaixasse, primeiramente, como inimigo do povo judeu devido os crimes cometidos em Treblinka e Sobibor. A indiferença de uma parcela expressiva da sociedade civil conjugada a maior preocupação por parte dos sobreviventes funcionou como elemento de fortalecimento da figura de inimicus e não a de hostis. Schmitt nos lembra que “os conceitos de amigo x inimigo devem ser entendidos em seu senso concreto e existencial, não como símbolos, ou metáforas; não misturados ao econômico, ao moral, ou outras concepções, menos ainda em um sentido privado-individualista tal como uma expressão privada e psicológica de emoções e outras tendências”271. 7 - O desenvolvimento do caso Tal como havia acontecido com Eichmann, um sentido possível ao interesse israelense em julgar o caso era o de mais uma vez afirmar uma determinação enfática: unificar o povo judeu e trazer justiça as vítimas. “Nas vinte primeiras sessões (1 de fevereiro a 20 de março de 1987) foram dedicadas aos problemas dos crimes de Demjanjuk no campo de extermínio de Treblinka” 272. Contudo, a incerteza em torno da 270 REICHMANN, Y apud TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p 153. 271 SCHMITT apud VALK, F: “Decisions, Decisions Carl Schmitt on Friends and Political Will”. Rockfeller College Review, Volume 1, Número 2. p 43. Disponível em: <http://www.preterhuman.net/texts/politics/Vander%20Valk%20F.%20%20Carl%20Schmitt%20on%20Friends%20and%20Political%20Will.pdf> Acesso em 27/09/2012. 272 ISRAEL. The Demjanjuk case factual and legal details. Disponível em: < http://www.mfa.gov.il/MFA/AntiSemitism%20and%20the%20Holocaust/Documents%20and%20communiques/THE%20DEMJANJUK% 20CASE-%20FACTUAL%20AND%20LEGAL%20DETAILS%20-%2028> Acesso em 14/05/2011. 109 identidade de Demjanjuk que fazia com que a defesa convergisse sua argumentação na tese de que talvez o verdadeiro John estivesse morto: Em sua defesa, Demjanjuk sustentou não só que as testemunhas de acusação enganaram-se em relação a sua identificação, mas também que durante o período em que Ivan estava cometendo seus crimes horríveis em Treblinka, ele, Demjanjuk, era um prisioneiro de guerra alemão na Polônia. De acordo com Demjanjuk, em 1942, durante seu serviço no exército soviético, ele foi capturado pelos alemães na Batalha de Kerch. Após ficar detido por várias semanas em acampamentos temporários na península da Criméia e em Rovno. Demjanjuk alegou que ele foi transferido para o campo de Chelm na Polônia. Segundo Demjanjuk lá ele permaneceu por cerca de 18 meses, trabalhando na construção de bairros residenciais, descarregando carvão. Em 1944, após 18 meses de trabalho ele foi levado com outros presos a um local utilizado pelo Exército de Libertação Nacional na Áustria e depois par um campo próximo da fronteira Suíça273 De abril de 1987 a julho, a acusação esforçou-se em dois pontos: provar que Demjanjuk havia sido voluntário para servir nos campos de Sobibor e Trawniki e refutar o álibi de que existisse outro “Ivan o terrível”. No que diz respeito ao primeiro ponto, a acusação estava em posse do “Trawniki Certificate” que se atribuía a John. Esse documento possui uma fotografia, um número de serviço e constam gravados dois lugares que seu titular havia servido durante a guerra: Okshov e Sobibor. Tratava-se da principal prova em jogo e foi disponibilizada pelo governo soviético que a tinha nos arquivos capturados em 1944 pelo Exército Vermelho. A partir dessa prova a promotoria afirmava “que essa era uma evidência inequívoca preponderante de Demjanjuk ser um soldado das SS, que esteve em treinamento e preparo no campo de Trawniki, o que determina seu estado geral. Não um homem inocente como ele alega, mas um criminoso nazista da pior espécie”274. Por isso, um dos pontos centrais do julgamento também 273 PIZZO, L: “Not Guilty – But not innocent: An Analysis of the Acquittal of John Demjanjuk and its Impact on the Future of Nazi War Crimes Trials”. Boston College International and Comparative Law Review. Volume 18, Número , 1995. p 156. Disponível em: <http://lawdigitalcommons.bc.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1290&context=iclr&seiredir=1&referer=http%3A%2F%2Fwww.google.com.br%2Furl%3Fsa%3Dt%26rct%3Dj%26q%3Ddemj anjuk%2520jerusalem%2520trial%2520political%2520meaning%26source%3Dweb%26cd%3D8%26ve d%3D0CGIQFjAH%26url%3Dhttp%253A%252F%252Flawdigitalcommons.bc.edu%252Fcgi%252Fvie wcontent.cgi%253Farticle%253D1290%2526context%253Diclr%26ei%3D0h9OUNzPLoTq8gTki4HoD w%26usg%3DAFQjCNE8oPRJaBGKzFm8qTYMOC4J10kiw#search=%22demjanjuk%20jerusalem%20trial%20political%20meaning%22> Acesso em: 27/09/2012. 274 ISRAEL. The Demjanjuk case factual and legal details. Disponível em: < http://www.mfa.gov.il/MFA/AntiSemitism%20and%20the%20Holocaust/Documents%20and%20communiques/THE%20DEMJANJUK% 20CASE-%20FACTUAL%20AND%20LEGAL%20DETAILS%20-%2028>. Acesso em 14/05/2011. 110 passava pela afirmação da autenticidade do documento. Para a defesa a questão do certificado consistia de uma fraude da KGB, que havia enviado esse documento como parte de uma estratégia para incriminar Demjanjuk aos olhos das autoridades americanas. A presença de três testemunhas alemãs: Grabitz, Sheffler e Altmann foram também marcantes no desenvolvimento do caso Demjanjuk. Segundo Tom Teicholz, “a postura delas simbolizam como a relação entre Israel e a Alemanha Ocidental mudou em quarenta anos desde que Israel foi estabelecido e até mesmo nos vinte e cinco anos desde o julgamento de Eichmann” 275. O amadurecimento das relações entre a Alemanha Ocidental e Israel, desde o período Ben Gurion, possibilitou, então, que fossem utilizados uma série de documentos que foram vitais para o caso Demjanjuk. Graças a essa aproximação que a corte pôde viajar a Berlim para tomar nota do testemunho de dois guardas sobreviventes de Trawniki: Otto Horn e Leonhardt. O julgamento de Demjanjuk possuiu um esforço histórico276 e forense277 muito superior ao de Eichmann, uma vez que todo o procedimento legal desse caso concentrou-se em uma ampliação factual da consciência da Shoah. Para a defesa a idéia era fortalecer o argumento de álibi, por conta disso, ela buscou na URSS novos documentos que buscassem inocentar John e jogasse a Ivan Marchenko a identidade de “Ivan o terrível”. Apesar do esforço da defesa, a posição da corte foi: O veredicto termina com a conclusão de que não restam dúvidas aos membros da corte em relação ao fato de Demjanjuk ter sido um Wachman aos serviços das SS, que foi treinado para o trabalho de assassinato em Trawniki, operar as câmaras de gás em Treblinka e lá 275 Idem, p 186. “O que foi analisado com a ajuda de especialistas da Alemanha de uma perspectiva e experiência histórica, de um lado, e testemunhas alemãs terem servido nas SS em Trawniki nos anos relevantes ao caso, por outro lado, com tudo documentado no certificado, incluindo selos, assinaturas, patente e etc, de modo a provar que eles eram consistentes com os fatos tal como eles realmente aconteceram” ISRAEL. The Demjanjuk case factual and legal details. Disponível em: < http://www.mfa.gov.il/MFA/AntiSemitism%20and%20the%20Holocaust/Documents%20and%20communiques/THE%20DEMJANJUK% 20CASE-%20FACTUAL%20AND%20LEGAL%20DETAILS%20-%2028>. Acesso em 14/05/2011. 277 “Um conjunto forense: provada com a ajuda de especialistas locais e estrangeiros a autenticidade de cada elemento encontrado no certificado e que foi verificável: ou por mio da análise do documento e as assinaturas e examinando-as por meio de comparação de documentos, ou por análise química e outros do papel em que o certificado foi escrito, fonte de tinta de caneta, tinta da fita de máquina de escrever, a tinta dos selos sobre o certificado, as letras impressas, as letras digitadas, o papel fotográfico da fotografia de Demjanjuk no certificado, cola e outras manchas sobre ela, as marcas de desgaste, sulco, rugas ....” ISRAEL. The Demjanjuk case factual and legal details. Disponível em: < http://www.mfa.gov.il/MFA/AntiSemitism%20and%20the%20Holocaust/Documents%20and%20communiques/THE%20DEMJANJUK% 20CASE-%20FACTUAL%20AND%20LEGAL%20DETAILS%20-%2028>. Acesso em 14/05/2011. 276 111 adquiriu o apelido de “Ivan o Terrível”, e também posteriormente serviu como um Wachman no campo de extermínio de Sobibor278. “Em 18 de abril de 1988, após 14 meses de julgamento, a Corte Distrital de Jerusalém condenou Demjanjuk pela queixa dele ser Ivan o terrível e o sentenciou à morte por enforcamento”279. Ao condenar o inimigo, o julgamento de Demjanjuk parecia convergir ao de Eichmann em um sentido político e jurisprudencial, apesar do grau de periculosidade do primeiro obviamente não ser comparável, em termos políticos, ao do segundo. Ambos foram caracterizados como inimigos do povo judeu, logo eles não apresentavam qualquer forma de remorso ou arrependimento. Em relação a Demjanjuk isso ainda parecia mais tenebroso, uma vez que seus atos, de extrema brutalidade, foram apresentados pelas testemunhas como algo que beirava o sadismo. Nesse sentido, a solução encontrada pela corte foi a de realizar justiça aniquilando o perigo. Ao proferir a sentença, o juiz Zvi Tal salientou bem esta característica: “os crimes que ele cometeu [Demjanjuk] não podem ser esquecidos nem na letra da lei, tampouco no coração dos homens”280 .Blatman reiterou a posição de Tal ao apontar a gama de evidências levadas à corte que incriminavam John: “aqui na corte, evidências decisivas foram produzidas que demonstram inequivocamente que o acusado é Ivan o Terrível, que matou dezenas de milhares de homens, mulheres, e crianças, demonstrando extrema bestialidade e torturando suas vítimas” 281. Em 1991, após o colapso da União Soviética, os líderes russos liberaram evidências dos arquivos soviéticos que identificavam outro homem, Ivan Marchenko, como o operador da Câmara de gás conhecido como Ivan o terrível. A Corte Suprema 278 ISRAEL. The Demjanjuk case factual and legal details. Disponível em: < http://www.mfa.gov.il/MFA/AntiSemitism%20and%20the%20Holocaust/Documents%20and%20communiques/THE%20DEMJANJUK% 20CASE-%20FACTUAL%20AND%20LEGAL%20DETAILS%20-%2028>. Acesso em 14/05/2011. 279 PIZZO, L: “Not Guilty – But not innocent: An Analysis of the Acquittal of John Demjanjuk and its Impact on the Future of Nazi War Crimes Trials”. Boston College International and Comparative Law Review. Volume 18, Número , 1995. p 158. Disponível em: <http://lawdigitalcommons.bc.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1290&context=iclr&seiredir=1&referer=http%3A%2F%2Fwww.google.com.br%2Furl%3Fsa%3Dt%26rct%3Dj%26q%3Ddemj anjuk%2520jerusalem%2520trial%2520political%2520meaning%26source%3Dweb%26cd%3D8%26ve d%3D0CGIQFjAH%26url%3Dhttp%253A%252F%252Flawdigitalcommons.bc.edu%252Fcgi%252Fvie wcontent.cgi%253Farticle%253D1290%2526context%253Diclr%26ei%3D0h9OUNzPLoTq8gTki4HoD w%26usg%3DAFQjCNE8oPRJaBGKzFm8qTYMOC4J10kiw#search=%22demjanjuk%20jerusalem%20trial%20political%20meaning%22> Acesso em: 27/09/2012. 280 TAL ZVI Apud WOLFBERG, A: “Israel v. Ivan (John) Demjanjuk; Wachmann Demjanjuk Allowed to go free”. L.A. Int'l & Comp. L.Rev. 445, 1995. Disponível em: <http://digitalcommons.lmu.edu/ilr/vol17/iss2/5>. Acesso em 20/02/2012. 281 BLATMAN, Y Apud TEICHOLZ, T: “The Trial of Ivan the Terrible: State of Israel Vs. John Demjanjuk”. New York: ST.Martin’s Press, 1990. p 269. 112 israelense admitiu como documentos legítimos as novas evidências. No final, em 29 de Julho de 1993 a Suprema Corte do Estado de Israel acabou por absolver John Demjanjuk da acusação de ser o famigerado guarda de Treblinka: O guarda Demjanjuk foi absolvido por nós, por causa da dúvida, em relação às terríveis acusações atribuídas a Ivan de Treblinka. Este foi o rumo correto para juízes que não podem examinar o coração e a mente, que possuem somente olhos para ver e ler. O assunto está fechado, mas não completo. A verdade completa não é prerrogativa da compreensão humana282. O esforço da defesa e a inconsistência da promotoria acabaram por encobrir uma discriminação política com elementos de natureza moral e religiosa o que arrastou a sentença da realidade concreta para o mundo metafísico. No final “a absolvição de Demjanjuk veio após 16 anos de batalhas jurídicas, que haviam começado nos Estados Unidos em 1977, quando o governo norte americano instaurou um processo de desnaturalização contra Demjanjuk devido deturpações no seu formulário de imigração”283. Todavia, a Suprema Corte admitiu que Demjanjuk servira em Trawniki e que auxiliara nas ações de extermínio que ocorreram em Sobibor, mas pelo “princípio da especialidade”, presente no tratado de extradição assinado entre os Estados Unidos e Israel, “um país que pede a extradição de uma pessoa não pode processar essa pessoa por outra ofensa listada no tratado”284. Como a participação de Demjanjuk em Trawniki 282 ISRAEL apud PIZZO, L: “Not Guilty – But not innocent: An Analysis of the Acquittal of John Demjanjuk and its Impact on the Future of Nazi War Crimes Trials”. Boston College International and Comparative Law Review. Volume 18, Número , 1995. p 168. Disponível em: <http://lawdigitalcommons.bc.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1290&context=iclr&seiredir=1&referer=http%3A%2F%2Fwww.google.com.br%2Furl%3Fsa%3Dt%26rct%3Dj%26q%3Ddemj anjuk%2520jerusalem%2520trial%2520political%2520meaning%26source%3Dweb%26cd%3D8%26ve d%3D0CGIQFjAH%26url%3Dhttp%253A%252F%252Flawdigitalcommons.bc.edu%252Fcgi%252Fvie wcontent.cgi%253Farticle%253D1290%2526context%253Diclr%26ei%3D0h9OUNzPLoTq8gTki4HoD w%26usg%3DAFQjCNE8oPRJaBGKzFm8qTYMOC4J10kiw#search=%22demjanjuk%20jerusalem%20trial%20political%20meaning%22> Acesso em: 27/09/2012. 283 PIZZO, L: “Not Guilty – But not innocent: An Analysis of the Acquittal of John Demjanjuk and its Impact on the Future of Nazi War Crimes Trials”. Boston College International and Comparative Law Review. Volume 18, Número , 1995. p 163. Disponível em: <http://lawdigitalcommons.bc.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1290&context=iclr&seiredir=1&referer=http%3A%2F%2Fwww.google.com.br%2Furl%3Fsa%3Dt%26rct%3Dj%26q%3Ddemj anjuk%2520jerusalem%2520trial%2520political%2520meaning%26source%3Dweb%26cd%3D8%26ve d%3D0CGIQFjAH%26url%3Dhttp%253A%252F%252Flawdigitalcommons.bc.edu%252Fcgi%252Fvie wcontent.cgi%253Farticle%253D1290%2526context%253Diclr%26ei%3D0h9OUNzPLoTq8gTki4HoD w%26usg%3DAFQjCNE8oPRJaBGKzFm8qTYMOC4J10kiw#search=%22demjanjuk%20jerusalem%20trial%20political%20meaning%22> Acesso em: 27/09/2012. 284 PIZZO, L: “Not Guilty – But not innocent: An Analysis of the Acquittal of John Demjanjuk and its Impact on the Future of Nazi War Crimes Trials”. Boston College International and Comparative Law Review. Volume 18, Número , 1995. p 163. Disponível em: <http://lawdigitalcommons.bc.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1290&context=iclr&sei- 113 configurava-se outra ofensa, a corte acabou desistindo de prolongar o caso. Dessa forma, a narrativa tecida na Corte Distrital foi desfeita e o Estado de Israel, por meio de seu promotor geral, abdicou também de levar o caso adiante. A importância do caso Demjanjuk veio, portanto, da volatilização da memória, o que demonstrou que a memória dos sobreviventes vivos continua a constituir a última defesa contra os negacionistas. No plano político o fracionamento do poder do Estado, compreendido pela rotação de primeiros-ministros e a ocorrência da Primeira Intifada, serviram para enfraquecer a atuação estatal no sentido de apropriação de possíveis discursos nacionais emanados do caso. Por conta ainda de outros fatores como: a debilidade do poder político na organização do julgamento, a ausência de uma decisão soberana definidora da figura do inimigo e a incapacidade de afirmação de princípios do político, tais como: representação e identidade, a partir da Lei 5710; a vontade popular não alcançou o mesmo grau de consenso presente no caso Eichmann e, assim, o julgamento de Demjanjuk não pôde desempenhar um papel político na mesma intensidade que o de Eichmann, no sentido de contribuições políticas discursivas à construção da identidade nacional israelense. Nesse sentido, a expressão de soberania nacional presente no caso Eichmann possibilitou que a Lei Punitiva a Nazistas e Colaboradores ampliasse o escopo das representações nacionais, graças à afirmação de uma série de sentidos discursivos pautados em uma retórica histórica e política. Israel, portanto, possuía jurisdição extraterritorial para perseguir seus inimigos, uma vez que, “nossa competência para julgar o caso é baseado na Lei Punitiva, uma lei ordinária portadora de disposições que são inequívocas. O Tribunal tem de dar efeito para a lei do Knesset não podemos entreter a afirmação de que tal lei entra em conflito com os princípios do Direito Internacional”285. O poder político extraordinário presente na Lei redir=1&referer=http%3A%2F%2Fwww.google.com.br%2Furl%3Fsa%3Dt%26rct%3Dj%26q%3Ddemj anjuk%2520jerusalem%2520trial%2520political%2520meaning%26source%3Dweb%26cd%3D8%26ve d%3D0CGIQFjAH%26url%3Dhttp%253A%252F%252Flawdigitalcommons.bc.edu%252Fcgi%252Fvie wcontent.cgi%253Farticle%253D1290%2526context%253Diclr%26ei%3D0h9OUNzPLoTq8gTki4HoD w%26usg%3DAFQjCNE8oPRJaBGKzFm8qTYMOC4J10kiw#search=%22demjanjuk%20jerusalem%20trial%20political%20meaning%22> Acesso em: 27/09/2012. 285 ISRAEL apud PIZZO, L: “Not Guilty – But not innocent: An Analysis of the Acquittal of John Demjanjuk and its Impact on the Future of Nazi War Crimes Trials”. Boston College International and Comparative Law Review. Volume 18, Número , 1995. p 150. Disponível em: <http://lawdigitalcommons.bc.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1290&context=iclr&seiredir=1&referer=http%3A%2F%2Fwww.google.com.br%2Furl%3Fsa%3Dt%26rct%3Dj%26q%3Ddemj anjuk%2520jerusalem%2520trial%2520political%2520meaning%26source%3Dweb%26cd%3D8%26ve d%3D0CGIQFjAH%26url%3Dhttp%253A%252F%252Flawdigitalcommons.bc.edu%252Fcgi%252Fvie wcontent.cgi%253Farticle%253D1290%2526context%253Diclr%26ei%3D0h9OUNzPLoTq8gTki4HoD 114 5710, para poder render frutos ao nacional requer como necessário a existência de uma decisão soberana, a fim de lidar com um evento extraordinário ligado a essência do político: a distinção amigo/inimigo. Tal discriminação não alcançou a mesma intensidade no julgamento de Demjanjuk, o que, no entanto, não tira a importância desse caso em relação às suas possibilidades aos agentes políticos. Tendo em mente que a unidade política que constitui e preserva a si mesma, suspendendo tensões, antagonismos e conflitos de interesses de forma a relativizar e integrar o povo; esta dimensão presente no caso Demjanjuk, não se igualou ao caso Eichmann, pois falhou em organizar de forma clara o próprio grupo de amigos. Segundo Schmitt a distinção amigo/inimigo também define o agrupamento de iguais, ao mesmo tempo em que define sua alteridade, ou seja, o inimigo. “O agrupamento também testa as convicções existenciais dos indivíduos enquanto indivíduos inseridos em um complexo contexto de relação de amizade”286. Sendo assim, o julgamento de Demjanjuk, devido fatores de natureza política e de soberania não alcançou, de fato, o mesmo consenso presente na captura e condenação de Eichmann, consenso este capaz de definir uma unidade à dividida sociedade israelense e possibilitar sentidos políticos mais vigorosos à construção da nação. w%26usg%3DAFQjCNE8oPRJaBGKzFm8qTYMOC4J10kiw#search=%22demjanjuk%20jerusalem%20trial%20political%20meaning%22> Acesso em: 27/09/2012. 286 VALK, F: “Decisions, Decisions Carl Schmitt on Friends and Political Will”. Rockfeller College Review, Volume 1, Número 2. p50. Disponível em: <http://www.preterhuman.net/texts/politics/Vander%20Valk%20F.%20%20Carl%20Schmitt%20on%20Friends%20and%20Political%20Will.pdf> Acesso em 27/09/2012. 115 Conclusão Ao longo desta dissertação buscamos apresentar, de forma comparativa, como eventos complexos e repletos de sentidos políticos foram capazes de desempenhar, em uma determinada interpretação, uma contribuição importante à construção da identidade nacional israelense. Isso a partir de significações e re-significações de uma narrativa da Shoah. Fomos capazes de perceber também como atores políticos distintos em momentos históricos distintos forneceram, por meio de dois exercícios jurídicos, amostras de projetos nacionais singulares, que se atraiam em certos momentos e se repeliam em outros. Nesse sentido, em relação ao julgamento de Adolf Eichmann contemplamos duas dimensões muito bem delineadas: a interna representada pelas ações do promotor geral: Gideon Hausner e a externa relacionada às figuras do primeiro ministro, David Ben Gurion, e da ministra das relações exteriores, Golda Meir. Apresentamos como os dois campos dialogavam intensamente, no sentido de extração de benefícios políticos e nacionais do caso. A reação positiva da sociedade civil e a unidade conquistada no cenário político revelaram um desses benefícios ao Mapai. Acompanhamos a escolha do Direito como principal instrumento de representação política, uma vez que por meio desse, os agentes estatais vislumbraram uma série de potencialidades narrativas presentes em uma lei [Lei Punitiva, 5710], cujo eixo jurídico era extremamente complexo, plural e capaz de afirmar a preponderância de Israel como o grande representante e monumento ao povo judeu. A importância do julgamento de Eichmann ao Estado também pôde ser visualizada nos preparativos e nas disputas jurídicas travadas por Israel no cenário internacional. Internamente tivemos nove meses de preparativos para o caso o que culminou com a criação de um Departamento exclusivo para o auxílio e celeridade do julgamento. Já internacionalmente as disputas com a república argentina revelaram um esforço tremendo do Ministério das Relações Exteriores, a fim de solucionar questões de desrespeito à soberania de outra nação. Culturalmente o julgamento desempenhou segundo nossa interpretação a afirmação de uma cultura propriamente israelense. Além do aparelho escolar, do serviço militar obrigatório, dos feriados religiosos e do dia da independência, o caso Eichmann contribuiu para a cristalização da Shoah enquanto evento nacional pertencente à realidade israelense. Dessa forma, tivemos o recrudescimento da posição cultural 116 hegemônica da vertente Asquenaze sobre as demais variantes do judaísmo presentes em Israel. Na dimensão política, o caso pôde gozar de um exercício autônomo de soberania, uma vez que o papel desempenhado pelo Knesset e por outras instituições e poderes foram capazes de afirmar a potência de Israel para a organização e resolução de questões tangentes ao universo nacional. A moralidade presente tanto no cenário nacional, quanto internacional serviu como apoio e uma forma de legitimidade ao caso. Por conta disso, presenciamos a infiltração de aspectos presentes à moralidade no salão da justiça. Em relação ao posicionamento do mundo judaico frente ao ato de captura e a organização do tribunal, uma parcela da intelectualidade judaica opôs-se e desferiu uma série de críticas aos possíveis sentidos apropriativos executados pelo Estado. O grande receio desse segmento era o comprometimento do conceito de justiça, graças aos contornos políticos traçados pelas lideranças estatais. Um dos pontos políticos acentuados pelas figuras ligadas ao Mapai foi o de cristalização do conceito de inimigo. Assim, os nazistas passaram a ser concebidos como inimigos históricos do povo judeu. O caráter iminente de conflitos com o mundo árabe serviu para a afirmação de certos enunciados de sobrevivência estatal, por meio da interconexão histórica entre uma narrativa da Shoah e o presente. Graças a um uso retórico do Holocausto o Mapai pôs em equivalência: árabes e nazistas287, ambos inimigos que ameaçavam a posição dos judeus no mundo. O antissemitismo foi a ponte traçada entre os inimigos, o que serviu para fortalecer a posição desse arquétipo. O julgamento também serviu como afirmação do nacional. Os usos da língua hebraica, de procedimentos e leis israelenses serviram para celebrar o nacional na corte. Processualmente vimos como a preparação para o julgamento, com sucesso, conseguiu superar problemas relacionados com outros indiciamentos, tais como o caso Kastner. Já no âmbito narrativo a construção de uma coletividade étnica ex post fact, a partir da imagem das seis milhões de vítimas permitiu a afirmação de um sentido coletivo e nacional à Shoah, ao mesmo tempo em que afirmava uma identidade unitária e contínua no tempo, ou seja: “eles” são “nós”. O preenchimento discursivo de sentido, significado e periculosidade à figura do inimigo serviram para o engrandecimento político do caso e 287 De acordo com o primeiro ministro israelense, David Ben Gurion, o julgamento de Eichmann “poderia revelar as relações existentes entre nazistas e alguns líderes árabes”. GURION, B. 18 de dezembro de 1960. The Eichmann Case as seen by David Ben Gurion. New York Times.Disponível:<http://blockyourid.com/~gbpprorg/obama/nytimes_ww2/soapfactoryeichmann.pdf>. Acesso: 23/06/2012. 117 de unificação da sociedade civil e política. Todavia, o caso não apresentou exclusivamente aspectos políticos, ele carregou consigo particularidades morais percebidas a partir dos excessos do promotor na desumanização da figura de Eichmann, o que revelava a presença de um profundo ódio humanitário no caso. A narrativa tecida por Hausner foi bem sucedida em afirmar a posição de defesa do Estado e de glorificação da esquerda sionista, uma vez que os partidos alheios à coligação trabalhista, o Herut e o Maki, por exemplo, ficaram excluídos das representações nacionais. A re-significação das vítimas, a partir da lógica coletiva e étnica, e o espetáculo empreendido pela narrativa de Hausner resultaram em uma inflexão em relação às vitimas. Essas passaram a ser compreendidas sob um signo empático, o que possibilitou ao Estado, em um sentido nacional, operacionalizar discursivamente a interconexão entre a identidade judaica e a israelense. No que diz respeito aos interesses do Estado presenciamos a força antagônica da Justiça. Ambos portaram linguagens distintas e buscamos apresentar o choque entre Landau, defensor de critérios analíticos e Hausner, portador de signos políticos. O esforço do juiz ficou bem caracterizado na eliminação de tópicos políticos ligados à construção da figura do inimigo no veredicto da corte. No entanto, como o caso chegou à Suprema Corte vislumbramos como essa reincorporou todos os aspectos ceifados pelo juiz. Ao final, portanto, apontamos como o Estado foi bem sucedido, em um determinado sentido, em alcançar fins extralegais perseguidos por suas lideranças, o que culminou na exaltação da soberania, da unidade e da auto-afirmação nacional. Em relação ao caso Demjanjuk o contexto pós Yom Kippur nos chamou a atenção para uma série de mudanças operadas no cenário político israelense. Por conta do desfecho do conflito, acompanhamos o exaurimento da figura dos Sabras e sua substituição por um complexo de vítima e isolamento. Decorrente ainda do conflito os trabalhistas saíram de cena e os conservadores, representados pelo Likud, instauraramse por 15 anos no poder, dignificando um marco político importante à História de Israel. A década de 80 foi seguida por uma grande transformação demográfica e política. Em 1982 eclodiu a guerra do Líbano o que enfraqueceu politicamente a posição dos conservadores, uma vez que a campanha nesse país rendeu uma série de críticas por parte da esquerda israelense. Além disso, a possibilidade presente na organização de um 118 julgamento do Holocausto poderia “gerar benefícios ao relembrar ao mundo do sofrimento judaico e criar um desvio de atenção da Cisjordânia e de Gaza” 288 A representação da Shoah passou por mudanças significativas. O foco deslocou-se da morte, do heroísmo e da re-invenção de um povo para os sobreviventes, o que reforçava a posição do Likud de poder de sobrevivência. Sendo assim, o eixo de gravidade do Holocausto permitiu uma maior brecha ao religioso, elemento esse que desempenharia um papel relevante no julgamento de Demjanjuk. Os fins perseguidos, a partir da narrativa em torno da Shoah mantiveram-se intactos: unificação da sociedade. Nesses termos, o Likud e o Mapai não apresentaram discrepâncias políticas. Todavia, os usos excessivos pelo Partido Conservador da memória do extermínio fizeram com que a sociedade civil, mais especificamente à esquerda, atacasse incessantemente certas apropriações. Apesar das críticas, nas mãos do Likud a identidade emanada da Shoah assentou-se em um lócus puramente de vítima. Diferentemente dos anos sessenta, em que acompanhamos a consolidação do poder estatal, graças à hegemonia de um partido, na década de oitenta a realidade era mais complexa. A renúncia de Menachem Begin resultou em uma crise política solucionada com a instauração de um novo expediente político: a rotação de primeiro ministro. Likud e Mapai alternaram-se no poder, o que, por sua vez, revelou um fracionamento e uma rachadura no edifício político israelense. Desse contexto emergiu um novo julgamento. O novo personagem enquadrado na Lei Punitiva não foi nenhum mestre da Solução Final, tal como Eichmann. Pelo contrário, tratava-se de um Wachmann, um guarda, um indivíduo de baixa patente. Seu julgamento, assim como o de Eichmann, representou uma ampliação cognitiva dos sentidos da Shoah. Enquanto o primeiro relacionou-se ao entendimento do labirinto burocrático do extermínio, o segundo trouxe a tona a crua realidade dos auxiliares dos alemães no desenvolvimento do Holocausto. O caso, em si, portou como apresentamos dois patamares de semelhanças e diferenças. A primeira ligada aos aspectos de natureza moral, às simbologias nacionais e à dimensão processual-jurisprudencial. Já no segundo patamar presenciamos as diferenças referentes aos aspectos de soberania e à construção da figura do inimigo. Internacionalmente vimos o poder dos Estados Unidos na definição do caso, participação inexistente no caso Eichmann. Por conta da participação ativa dos norte 288 LANDSMAN, S: “Crimes of the Holocaust: the Law confronts Hard Cases”. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2005. p 139. 119 americanos acompanhamos uma diferença processual importante: a diluição da especificidade jurídico-nacional atribuída à Shoah no tipo penal homicídio. O respeito aos parâmetros legais, a ingerência norte americana e o expediente jurídico, presente na cláusula de extradição de Demjanjuk que equiparava a Lei 5710 a assassinato minaram, portanto, maiores potenciais políticos e paradidáticos do caso, o que acabou definindo o julgamento de Demjanjuk de forma distinta ao de Eichmann. A forte presença de elementos pertencentes ao campo da moralidade, uma vez que as testemunhas desempenharam um papel fundamental na incriminação de Demjanjuk, fez com que, jurisprudencialmente, Blatman, procurador geral na época do julgamento, seguisse fielmente as trilhas abertas do Hausner. A lógica do não esquecer encontrou-se gravada em bronze nos pilares da casa da justiça. Mas a força em torno da memória, de fato, fez com que a moralidade se apresentasse com mais força no caso Demjanjuk, que no julgamento de Eichmann. Por conta de todos esses fatores: desde os ligados ao cenário político nacional, passando pelos associados ao plano internacional, mais os elementos vinculados à dinâmica processual impregnados de signos morais, fizeram com que o julgamento de Demjanjuk não alcançasse a mesma intensidade do de Eichmann, no sentido de subsídio à construção da identidade nacional. O aumento da tensão com os árabes, em decorrência da convocação da Primeira Intifada auxiliou também para que os esforços políticos ficassem divididos. Ainda presenciamos o caráter dúbio da sociedade civil, em relação à recepção do caso, o que minou os esforços políticos do Estado. Todavia, o papel desempenhado pela promotoria angariou esforços forenses e históricos muito superiores ao caso Eichmann. Mas por conta de tantos obstáculos, o julgamento de Demjanjuk não foi capaz de alcançar o mesmo patamar que o de Eichmann, no sentido de operacionalização de um discurso político-nacional capaz de gerar um consenso à sociedade política e civil, a partir da afirmação identitária presente na alteridade do inimigo. Soberania, decisão foram elementos que não alcançaram plenitude, o que somado à nossa equação: alcançamos um resultado, deveras menos intenso, mas não menos importante. O historiador Jonathan Wenig resume muito bem a relação existente entre os dois episódios: O julgamento de Demjanjuk foi, para o sistema legal israelense, uma experiência diferente ao que foi presenciado pelo caso Eichmann. Enquanto o julgamento de Eichmann se destacou como um momento na história, o caso Demjanjuk fechou um capítulo deste período da história, e resolutamente alterou o foco de atenção da história para as 120 evidências; da justiça dispensada por uma nação vítima, à exigência da lei e do nível da dúvida razoável289 Não obstante a menor visibilidade do segundo julgamento, em ambos os eventos jurídicos estudados ao longo desta dissertação encontramos contribuições importantes à construção da identidade nacional israelense. O aspecto referencial atribuído à Shoah, a partir de um exercício discursivo eficiente elaborado por personalidades estatais, permitiu, em um sentido nacional, uma gama variada de possibilidades ao político. Da edificação de uma comunidade étnica unitária passando por uma identidade transhistórica que se alterava em valores ao longo do tempo, a incorporação da Shoah à história de Israel enriqueceu em muito a cultura e a política dessa recente nação. Tal fato como pudemos constatar é de certa forma tributário aos julgamentos do Holocausto executados em Israel. Ao fim deste trabalho concluímos apontando ao poder judiciário, capaz de tecer narrativas, ou produzir discursos simbólicos referentes à nação. Algo que revela a importância dos estudos e pesquisas referentes a este fenômeno tipicamente moderno. 289 WENIG, J: “Enforcing the Lessons of History: Israel Judges and the Holocaust”. In: McCORMACK, T; SIMPSON, G: “The Law of War Crimes. National and International Approaches”.Hague: Kluwer Law International, 1997. p 115. 121 Bibliografia ARAD, G. Israel and the Shoah: a Tale of Multifarious Taboos. New German Critique, No. 90, Autumn/2003. Disponível em: < http://www.jstor.org/stable/3211104 > . ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a Banalidade do mal. 2ed. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. __________. The Jewish Writings. New York: Shocken Books, 2007. ARONSON, S. 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