Era como se houvesse um muro
Transcrição
Era como se houvesse um muro
Caso Clínico / Clinical Case “ Era como se houvesse um muro...” Ou a história da compreensão de M Empathic understanding of M “Se fosse preciso escrever a única história significativa do pensamento humano, seria necessário fazer a dos seus arrependimentos sucessivos e das suas impotências” Camus 1. Introdução Manuel Machado Psicólogo Clínico Rogério Pastor-Fernandes Psicólogo Clínico Assistente do Curso de Psicologia Clínica do Instituto Superior de Ciências da Saúde-Norte Correspondência: Manuel Machado [email protected] Abordaremos este processo de consulta psicológica como um “percurso”,“caminhada” que será dividida por fases. Fases que resultam de uma tentativa de ordenação das consultas e de todo o processo, organizadas tendo em conta principalmente a evolução sentida por nós (equipa técnica), do M. na relação psicólogo-cliente, nos conteúdos discursivos e na abordagem aos mesmos, o reflectido no pós-sessões e no processo de construção deste texto. Será “caminhada”,“percurso”, porque tentaremos que as fases alternem de umas para as outras num contínuo, sobrepondo-se por vezes, sem que haja claramente uma linha divisória entre elas. Durante este acompanhamento psicológico, subscrevemos a postura fenomenológica que “para entender o doente (ou outra qualquer pessoa) não importa tanto a realidade objectiva, as coisas em si que ele vive ou percebe, mas o modo como ele as vivencia, a sua vivência das coisas, a sua verdade sobre o mundo” (Abreu, 1997, p.15). É esta a concepção principal subjacente à postura adoptada por nós, relativamente a toda a prática da Psicologia Clínica. Foi este o nosso foco principal de atenção: “as experiências subjectivas do sujeito” (Kircher,Torres e Forns, 1996, p.103). Partimos então do pressuposto de que a observação do comportamento humano e consequente análise, não se processa de uma forma neutra e objectiva, sendo sempre, antes, algo subjectivo - uma interpretação (compreensão). Desse modo, o sentir-se mal e a consequente exploração psicopatológica, será sempre uma construção, que poderá ser nossa do que o outro nos relata, ou, segundo o ponto de vista do modelo interaccional (Marques-Teixeira, in Marques-Teixeira e Antunes, 2000), uma coconstrução psicólogo-cliente, na qual cada um dos intervenientes expressa a sua compreensão no espaço da consulta, de forma a chegarem a um consenso. Consenso este que implicará muitas vezes uma cedência, por parte do psicólogo, das suas percepções do caso, porque “quaisquer que sejam os jogos de palavras e as acrobacias da lógica, compreender é, antes de tudo, verificar.” (Camus, 2002, p.26). 29 VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003 Caso Clínico / Clinical Case 2. Pedido de consulta 30 “O utente M., de 35 anos de idade, recorreu a este serviço com agitação psicomotora, angústia, e ansiedade marcada. Refere ter ideias suicídas e grande isolamento social. Refere também exclusão familiar.” - excerto da carta recebia; enviada por um enfermeiro ao Serviço de Psicologia. Este caso foi encaminhado para uma psicóloga, que marcou a consulta através de um postal de marcação de consultas, uma vez que o utente não possuía telefone. No dia da consulta compareceu com uma hora de atraso, dizendo que nos tínhamos enganado, pois ele tinha pedido um psicólogo e não uma psicóloga. Uma segunda consulta foi marcada desta vez com um psicólogo do sexo masculino. De estatura baixa, de cabelo rapado, com uns olhos “esbugalhados” verdes claros, de nível socio-económico médio-baixo, M. comparece à consulta visivelmente intranquilo, com uma postura rígida, com gestos firmes e angulares, ansiosos e, ao mesmo tempo, também um pouco hesitantes. Olha fixamente e numa atitude de “fuga para a frente”, procura surpreender com a sua figura: com um discurso confuso, directo e rápido, apresenta o problema de uma forma que talvez procurasse o choque. Apresenta-se: “ Sabe Sr. Dr., eu sou médium, astrólogo e vidente, e portanto também percebo alguma coisa de Psicologia, portanto eu venho cá por um problema de erecção. Eu já andei com mulheres, já tive relações sexuais com elas, mas às vezes também gosto de homens. O que é que acha que eu tenho Sr. Dr.?” O seu tom de voz era monocórdico e baixo. Sem perder os olhos do psicólogo dos seus, falava quase ininterruptamente por vezes articulando mal as palavras. Os conteúdos discursivos alternavam, sem qualquer pausa prévia, de uma forma fugaz e rápida; ao escutante, o discurso aparecia assim aparentemente desconexo. Após 50 minutos de consulta, tentou-se que ele ordenasse o motivo: M. vem à consulta porque se sente mal, não consegue ejacular, sonha com homens e isso perturba-o; tem muito medo de vir a ter doenças graves, como cancro ou cirrose; tem medo de morrer mas, por outro lado, por vezes também lhe apetece morrer. Gostava que na consulta o ajudassem a ser feliz, casar e ter filhos como “as pessoas normais”. Os conteúdos eram abordados dessa forma e muitas vezes, confrontando afirmações anteriores com outras ditas posteriormente, num sentido contraditório: ignorando ou negando a versão anterior mudava de assunto e muitas vezes recorreria a uma “chuva de perguntas” (querendo com isto dizer que falava ininterruptamente em forma de interrogações). Falou da sua solidão, do medo que tinha em vir a perder pessoas que gosta, dos “sonhos molhados” que dizia ter quando por vezes sonha com homens e da dúvida quanto à normalidade desse acontecimento. Por fim, nesta primeira fase (na qual se inclui as 4 primeiras consultas), e dominando normalmente quase metade do tempo das sessões, abordava o tema das doenças, sempre num registo médico, objectivo – perguntando por exemplo o que era a cirrose, se a cirrose era um cancro ou qual era pior, a cirrose ou o cancro, etc. M. nesta fase já tinha consciência de que estava mal, de que estava em sofrimento, e por isso tinha procurado ajuda, embora toda a causalidade fosse atribuída a factores externos, apresentando por isso uma egodistonia em relação ao seu mal estar; dizendo muitas vezes que a irmã e a mãe tinham sido as causadoras de alguns “males” que lhe aconteceram. Outro dado digno de ser realçado, surgiu logo na primeira consulta e foi-se prolongando até à quarta: M. fazia questão de oferecer presentes. Primeiro, logo na primeira consulta, uns bombons, que não foi aceite mas que ele deixou em cima da secretária; depois, no início da segunda sessão, entrega - oferecendo - um saco plástico com algo lá dentro. Diz ser um presente de Natal (seria a última consulta antes dessa data). O saco, que continha três pares de meias, permaneceu toda a consulta no mesmo local (em cima da secretária), e “se quiser o Sr. Dr. deite ao lixo quando me for embora” - como alegações finais de M. Nestas primeiras consultas, fugia a falar dos seus medos, das suas angústias1, defendendo-se destes conteúdos (e provavelmente da relação particular que se estava a tentar criar, onde conteúdos angustiantes tivessem espaço para emergir e onde o M. pudesse começar a abordar assuntos mais próximos da sua experiência organísmica2) de uma forma violenta, rígida. Comunicação que se 3. Percurso avaliativo / terapêutico O percurso inicia-se com uma chuva de perguntas de M.. Perguntas acerca da sua identidade sexual, perguntas de carácter médico, objectivo, questões acerca da vida pessoal do psicólogo. Sem deixar qualquer espaço e tempo para abordar a sua vida, propõe-se jogar - pois foi a um jogo que pareceu se assemelhar - “ao ataque”. O seu discurso, como já foi referido, apresentava-se de uma forma confusa e superficial, num tom de voz demasiado baixo e rápido. VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003 1 “Angústia é uma emoção primária originada por uma separação; o corte que tal separação representa no decurso vivencial deixa sempre o indivíduo, em grau mais ou menos elevado, numa situação de dúvida acerca do que irá acontecer na sequência da mudança que fatalmente terá a sua existência”. (Rodrigues, MarquesTeixeira e Gomes, 1989, p.85). 2 Este conceito refere-se a tudo o que se passa no organismo em qualquer momento, e engloba tanto os acontecimentos conscientes como os fenómenos inconscientes (Rogers e Kinget, 1975). Caso Clínico / Clinical Case percepcionava como demasiado primitiva, quase infantil. Arriscamos, portanto, a afirmar que a sua postura para com o psicólogo apresentava-se como uma defesa à sua “deficiência”3 (Maslow, 2000): O seu discurso demasiado rápido, confuso e superficial - algo que ao longo do processo se modificou -, tornavam-no, muitas vezes, quase incompreensível, para o escutante, mas também se calhar para ele, mantendo-o afastado da sua experiência organísmica, deste modo protegendo-o, talvez, da complexidade e da profundidade de sentimentos (que naturalmente lhe traziam angústia), por falta de estrutura; Todo o exibicionismo presente, querendo mostrar as suas qualidades, querendo, provavelmente, ao dizer que era vidente, por exemplo, mostrar-me que era alguém superior “ao comum” de nós, alguém quase omnipotente (conseguindo efectivamente com isto intimidarme). No entanto, cada vez mais, para nós, esta atitude se mostrava como uma “pele” de algo mais profundo e angustiante, quase como algo denunciador da necessidade de se apresentar como um contrário do que era4, tentando, desse modo, esconder um medo, uma insegurança, que nos faziam adivinhar uma valência negativa no conceito que possuía de si, no seu “modo de estar”, e uma não aceitação de uma parte do seu self5; A sua forma - que chegava a ser ofensiva - de ignorar as intervenções do psicólogo, ou de as negar, fugindo ao tema que estava ser abordado, era algo que não deixa de nos parecer muito primitivo, muito infantil (como aliás já referimos); No que respeita às questões formuladas, subscrevemos Rogers (1974a) quando este diz “que uma pergunta desse género é feita, quer na esperança de levar o conselheiro a pôr-se do lado do paciente e a dar-lhe a resposta que ele já desejava aceitar, quer para utilizar o conselheiro como um símbolo da sua agressividade, no caso de ser dada uma resposta inaceitável do ponto de vista afectivo”. 3 Fazendo referência à teoria de Maslow (2000), abordada no capitulo teórico correspondente em que Maslow dividia as motivações humanas em duas categorias, aquelas que se visavam ao crescimento (motivações de desenvolvimento) e aquelas que visavam a sobrevivência (motivações por deficiência). 4 Maslow (2000) defende que desde o instante em que uma pessoa renuncia a si mesmo e na mesma medida que o faz, começa inconscientemente a criar e a manter um “pseudo-eu”. Embora se trata de uma pura conveniência, não é mais que um self sem desejos. Este será amado (ou temido) onde é depreciado, forte onde ele é débil; reagirá dessa forma não por diversão ou prazer mas por sobrevivência. “Essa necessidade não é vida, não é a sua vida, é um mecanismo de defesa contra a morte” (Maslow, 2000, p.83). 5 O “self” é um constructo central na formação da personalidade, na determinação do comportamento e na adaptação ao meio. (Antunes, in Marques-Teixeira e Antunes, 2000). Surge-nos a questão de o facto de ele tentar oferecer presentes, ter subjacente alguma intenção de, alguma forma, “comprar” e assim procurar a intimidação. Na quarta consulta, tenta oferecer uma camisa - atitude não surpreendente, pelo decorrer das sessões anteriores. Elaborando uma reflexão expôs-se o que pensávamos. No final da consulta o psicólogo escreve na reflexão pessoal: “De qualquer maneira, e como comecei esta reflexão, creio estarmos a dar passos evolutivos. Perante a minha explicação da recusa, M. tolerou mal esta pequena frustração - o que poderá ser significativo para tentarmos explicar outros comportamentos dele. Existe a consciência que se quebrou um ciclo que o M. queria impor, e isso de certa maneira afectou-nos. Eu passei a posicionar-me com mais segurança, e o M. mostrou-se menos bizarro, menos desconexo e mais neurótico.” Numa tentativa de organizar mais o caso e ao mesmo tempo conseguir estabelecer uma espécie de fio condutor do que relatava, procurou-se fornecer-lhe um ambiente de calma e construir com ele uma história clínica, que ocuparam a terceira e a quarta consultas. Os dados recolhidos mostraram-se baralhados, confusos, pelo que foi tarefa árdua a de os ordenar e sintetizar no relato abaixo exposto. Deste modo terminamos o que designamos como primeira fase. História Clínica ou a necessidade de sistematização Cresceu - desde que nasceu - na casa de uns tios paternos, que o adoptaram e que ele chama de pai e mãe.Aos seus pais biológicos, que só mais tarde os conheceu, trata-os por madrinha e pai biológico. Na casa dos pais (de criação) viviam mais oito irmãos, também eles de criação. Ele era o segundo mais novo. Desses oito irmãos, seis eram raparigas e dois eram rapazes, estes bastante mais velhos e que por isso não conviveram muito tempo com ele (cerca de 6 anos o mais novo). O pai (de criação), uma figura, segundo ele autoritária, dura, que impunha respeito na família – batia na mulher mas para impor respeito -, morreu quando ele tinha 12 anos. A sua morte, já esperada, pois ele já tinha uma certa idade, foi para M, um momento de mudança, pois por um lado, o recorda como alguém, talvez a única pessoa, que gostava dele na família, e por outro, a partir dessa data, passou a conviver primordialmente com mulheres e isso talvez o tenha tornado “caseiro demais” para o que as pessoas esperam de um homem. Na escola primária reprova dois anos; é então posto numa escola de ensino especial. Este acontecimento parece-nos ter sido bastante marcante não pela sua recorrência nas consultas ser significativo mas também pelo VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003 31 Caso Clínico / Clinical Case 32 facto de se referir a ele como sendo uma época em que lhe chamavam de débil mental. Relativamente à sua adolescência, falounos de um amigo, com quem teve uma relação de amizade muito especial. Andavam sempre juntos e M. gostava dele; mas as pessoas começaram a falar coisas, a chamarem-lhes de “paneleiros”, e a sua relação terminou. Soube que ele casou, que teve dois filhos e que tinha morrido de um acidente de mota. “Eu bem lhe tinha avisado que ele devia andar com cuidado na rua”, diz-me M na quarta consulta Aos 16 anos vai trabalhar. O seu primeiro emprego foi como estafeta de escritório. Daí seguiram-se uma variedade de empregos que foram desde o trabalho num escritório ao trabalho numa empresa de segurança. Actualmente está desempregado, mas ao mesmo tempo encontra-se de baixa médica do seu ultimo trabalho: trabalhava no tribunal de Matosinhos. Guarda muita magoa de alguns trabalhos em que segundo ele, o maltratavam, falavam dele nas costas, e tentavam indicia-lo pelos maus caminhos. Cumpriu uma semana de serviço militar. Isto porque, na altura pediu, por um lado, visto a sua mãe (de criação) se encontrar doente, dispensa para tomar conta dela, e por outro, como ele na altura andava, segundo ele, muito mal: só chorava sem ter razões e não lhe apetecia sair de casa, pediu a um psiquiatra que lhe escrevesse uma carta para que ele ficasse dispensado. O problema é que estes dois pedidos não chegaram a tempo e ele teve que se apresentar ao serviço para que não fosse dado como desertor. Lá no quartel só chorava, refere-nos. Até que o pedido de dispensa é aceite e ele volta para casa. Este acontecimento representou mais um motivo de mágoa para com a sua família, pois estes não queriam que ele desistisse, o seu irmão mais velho chegou mesmo a oferecer-lhe dinheiro para ele ficar pois acreditava que a experiência lhe faria bem. Quando ele o fez, ou seja quando ele voltou para casa, a família recebeu-o mal, atirando-lhe á cara que ele tinha sido dado como incapaz. Passado pouco tempo, não aguenta mais permanecer em casa da mãe (de criação), onde agora já se encontrava a irmã (tinha voltado após ter ficado sem casa) – com qual tem um processo por lhe ter batido -, e aluga um quarto na casa de uma “velhota” que lhe dava de comer e lhe tratava da roupa. Fica lá pouco tempo mais de um mês pois entretanto conhece um colega de trabalho que se tinha recentemente divorciado e estava à procura de um companheiro com quem pudesse compartilhar a casa. Passa a compartilhar a casa com esse colega. Mas as coisas também não correram muito bem nessa altura, pois o colega, segundo ele, era de “índole demoníaca”: metia-se no jogo, pedia-lhe muitas vezes dinheiro emprestado, constava que era homossexual, e tinha como religião a Igreja Universal do Reino de Deus. Foi com ele a umas sessões, mas depois de ter saído de sua casa, voltou para a religião VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003 católica, mas uma pessoa que era dessa religião, quando o encontrou na rua, disse que ele iria arder no inferno, e que tinha uma praga rogada para o resto da sua vida (o que o fez ficar com medo sempre que pensa nisso). Voltou para a casa da mãe (de criação) onde viveu até ela morrer. Desse tempo, guarda muitas más recordações: a mãe e ele não se davam nada bem, insultavam-se mutuamente, ele por vezes batialhe e foi também nesses anos que foi internado num hospital psiquiátrico durante 15 dias. Estava outra vez mal, apetecia-lhe morrer, queria ter cancro e andava constantemente com raiva. Actualmente M. vive sozinho numa casa herdada, está de baixa médica, cria galinhas e tem uma cadela. Quando o acompanhamento psicológico terminou o M. dizia encontrar-se calmo, mas sozinho. Toma um ansiolítico cujo princípio activo é o lorazepam, para dormir, que o médico de família receitou. Possui aquelas preocupações (já referidas) acerca das doenças e do mundo (que mais adiante analisaremos), mas já não sente vontade de morrer; gostaria que as pessoas não falassem tanto dele, e não lhe apontassem o dedo por ele ser isto ou aquilo. Se arranjasse uma mulher, era bom, se tivesse um filho óptimo, senão quer viver como agora vive e continuar afastado da família (a necessidade do seu afastamento da família foi um tema abordado nas consultas) se conseguisse arranjar um emprego calmo. Ainda o percurso avaliativo/ terapêutico Seguidamente, a evolução, nesta segunda fase (englobando desde a quinta à décima consulta) adquire contornos mais pessoais: começa-se a sentir mais implicação - mais sentimento - no comportamento do M. na consulta. As problemáticas que nesta fase relata, são uma exploração, uma concretização daquelas abordadas nas primeiras consultas, mas agora elas são mais “ele”, são mais definidoras da sua pessoa. Pretende-se descrever mais concretamente esta mudança, mas não se consegue, foi algo que foi sentido nas sessões, porém a impressora só imprime palavras. Cremos ser algo subjectivo ou como diz Andrade-Ribeiro (2000), algo que pertence ao “tempo subjectivo” da terapia e consequentemente da relação terapêutica. Esta, segundo este autor, dá-se num contínuo, no qual no nível mais baixo os sentimentos são descritos como estando afastados, impessoais e não presentes, e à medida que se vai subindo de nível, um incessante fluído de sentimentos começa progressivamente a caracterizar o indivíduo. Tentamos assim estabelecer, num tempo subjectivo (próprio), uma evolução, uma mudança, do/no M. e na relação, que caracterizará esta segunda fase. O seu discurso começa progressivamente a parecer menos confuso, os conteúdos discursivos começam a possuir mais encadeamento e mais ligação. Caso Clínico / Clinical Case Explora a problemática respeitante à sua sexualidade e de uma forma mais geral respeitante à sua identidade sexual. Manifesta um medo, aliás, uma incapacidade de se conceber como homossexual, mas ao mesmo tempo procura desesperadamente - nas consultas - encontrar uma resposta para a sua “indefinição sexual”: sonha com homens e ejacula; diz sentir-se bem, por exemplo, no autocarro entre homens; fala da sua incapacidade de ter relações sexuais com mulheres - só teve relações sexuais com uma, e “era como se tivéssemos aqui a conversar”, diz. Sempre rodeado de muitos preconceitos, aos quais dá muita importância, traz nesta fase boatos, opiniões, modos de viver dos outros, conteúdos que ele elevava a um plano absolutista e em relação aos quais não se consegue opor. Começa a manifestar insegurança no seu “modo de estar no mundo”, perguntando ao psicólogo muitas vezes se ele o considerava “maluco”,“incompreensível”, “estranho” ou “mongolóide” - dizendo que foram nomes que já lhe colocaram muitas vezes e que se começa a aperceber ter medo de corresponderem à realidade. Aborda também, e pela primeira vez, o desejo de “ser mais”, de alcançar sempre mais e da angústia associada à insatisfação que sente: 34 P – Mas então sente que lhe falta alguma coisa? C – Sim, sinto que queria ser muitas coisas mas que não consigo ser todas e fico nervoso com isso... P – Sente que precisava de abraçar o mundo inteiro? C – Sim, é como tudo o que faço nunca chegasse, queria estudar mais, ser professor, médico, ajudar pessoas, não queria muito dinheiro, eu não ligo muito ao dinheiro, queria pôr justiça no mundo, tal como S. Francisco de Assis, ele também era uma pessoa que queria mudar o mundo. (Extracto da sessão nove) P- Psicólogo, C - Cliente Com o desejo de ser “superior”, e assim provavelmente esconder ou colmatar o seu sentimento de se conceber inferior, ele deseja possuir o poder de pôr justiça no mundo, possuir dons sobrenaturais, e assim elevar-se do plano de mortal (como S. Francisco de Assis, diz), alcançar a omnipotência. Também nesta fase M. exprime uma angústia mais “desmascarada”; o espaço terapêutico começa a dar-lhe espaço para que ele exponha de uma forma violenta (por palavras), o seu enorme ressentimento, a sua raiva e a sua mágoa. M. possuía problemas com a justiça por ter batido à irmã. Na tentativa de explicar esta raiva, este ressentimento e a angústia expressa, expomos um extracto da sétima sessão: C- Estou chateado, assim porque penso na vida, no que fiz, VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003 no que me fizeram, e fico chateado. P- No que lhe fizeram? C – Sim porque não adianta vir falar para aqui da cirrose e tudo mais porque sei que as coisas já aconteceram e não há mais nada a fazer, pois não? P – O que é que o M. acha? C – Então não, não é, não se pode andar para trás 36 anos. P – Aconteceu muita coisa na sua vida que gostava que não tivessem acontecido?! C – Sim, aquilo que sofri, com os meus pais de criação e tudo, e sei que agora não posso voltar atrás. Pois não? P – Naquilo que sofreu!? C – Sim naquilo que vivi e que não deveria ter vivido (aumentando o tom de voz, embora com a voz a fraquejar). Gostava de ir para a universidade mas estou muito longe, não estou? Assim ando sem vontade de viver porque sei que o tempo não volta para trás. Porque vivi muita coisa que não deveria ter vivido, fizeram-me viver muita coisa que não deveria viver. Fico com raiva (pondo agressividade no discurso) pelos meus pais que não me criaram, pela minha madrinha de baptismo que foi a que me deu à luz, e que nunca me apadrinhou, pelos meus pais de criação que sempre me esconderam coisas, pelo meu pai que ainda é vivo e nunca me ligou, por tudo.” Nesta sessão na qual apresenta um humor deprimido6, ao dizer “naquilo que vivi e que não deveria ter vivido”, ele utiliza a primeira pessoa, assume pela primeira vez no processo (nesta sétima sessão), os problemas - e num plano mais profundo as angústias - como fazendo parte da sua existência7, como algo que está dentro de si e que ninguém (não se incluindo ainda no processo de mudança) poderá retirar, pois foram vividos e só “os deuses, alteram o tempo e o espaço”. Arrepende-se do que já passou e queima a réstia de esperança que o psicólogo possa ter uma “poção milagrosa” que o faça esquecer todo o seu ressentimento. E começa a construí-lo (o seu psicólogo) como um ser com “santificação” (querendo dizer com isto que era um “ser bom por natureza, que não tinha mal dentro”), como alguém que é perfeito 6 Segundo Abreu (1997), de uma forma muito sintética, humor deprimido designa os sentimentos anímicos que em forma de fundo ou transfundo, se apresentam ao sujeito, na vida normal deste, nas perturbações da personalidade ou nas depressões reactivas. 7 Para Kierkegaard (in Mora, 1974) existência refere-se àqueles cujo ser consiste na subjectividade, isto é, na pura liberdade de eleição. Caso Clínico / Clinical Case para ser seu terapeuta. Ao mesmo tempo que o idealiza e idealiza a sua relação com ele, bajulando-o, começa a manifestar igualmente um medo de o perder – chegando-lhe a oferecer um panfleto religioso dizendo que era para o proteger, pois se lhe acontecesse (ao seu psicólogo) alguma coisa ele não quereria outro –, e procura “tê-lo mais” (para além do tempo da consulta) atingindo o extremo de procurar identificar-se com ele: dizendo por exemplo, que tinha muita coisa em comum, evocando o facto do psicólogo ter problemas de alergia (facto notório já que numa das sessões espirrou bastante), e ele também. Este medo, que transbordará de uma possibilidade de perda/abandono, com uma bajulação que procura um agrado, uma compra, talvez existisse ainda por falta de segurança (aliás, na personalidade em que M. se enquadra, à frente descrita, a angústia de perda é caracterizadora deste modo de estar no mundo) que o M. ainda sentisse na relação – aliás como nos pareceu sentir em todas (as relações). Assim como, em última análise, falta de segurança no seu psicólogo, que provavelmente traria como consequência uma inibição em manifestar as suas “loucuras”, ou as suas constantes perguntas acerca da sua compreensabilidade e “bizarria” – uma incapacidade parcial de “ouvir os sentimentos que lhe surgiram como tão terríveis, tão desordenados, tão anormais, tão vergonhosos, que ele nunca seria capaz de reconhecer em si a sua existência.” (Rogers, 1985, pag 65). Na décima consulta a sua verborreia parece começar a esgotarse, iniciando a sessão a querer um diagnóstico e uma forma de ser tratado, quase como se sentisse que já tinha exposto tudo o necessário para tal. Sente-se a repetir o mesmo, consulta após consulta, mas ao mesmo tempo a faltar-lhe algo (se calhar o mais importante) para que nós o pudéssemos compreender: C – Mas, como é que me pode tratar? P – Mas o que é que quer tratar? C – A minha questão sexual, a questão de me sentir bem entre dois homens. Também a questão da minha altura, que quando vejo uma pessoa mais alta que eu, fico lixado. Mais... há a questão de eu andar sempre nervoso, não sei, eu quero ser medico, ajudar pessoas, mais.... Eu para a próxima vou escrever tudo que quero falar com o sr. Dr. para depois não chegar aqui e não saber o que dizer. perturba o presente? C – Sim, claro todos os traumas que tive. P – O que é que quer dizer quando utiliza a palavra trauma? C – Então, trauma é, uma lesão no organismo provocada por um agente exterior P – Decorou isso do... C – do dicionário, sim mas não percebi o que quer dizer a palavra agente, o que significa a palavra agente? P – Agente exterior é alguma coisa, algum factor que seja exterior a nós.” Os agentes exteriores em relação aos quais começa a sentir-se influenciado e dos quais procura afastar-se, caracterizam o processo que engloba a terceira fase (incluindo desde a 11ª até à 15ª sessão). A sociedade, a família passam a ser forças até agora desconhecidas, que exercem poder de controlo sobre ele. Começa a conceberse como uma pessoa muito influenciável pelos outros e dependente da opinião destes. Esta influência traduz-se muitas vezes em exigências; que o fazem desesperar – diz. Na décima segunda consulta, e apresentando novamente um humor depressivo, refere “não ter capacidade”. E reafirma que não tem capacidade. Capacidade para aguentar as pressões exigidas pelo outros, que sempre lhe sugeriram – (a sociedade) que se casasse, que tivesse filhos, que tirasse a carta de condução, que fosse para a tropa, que não andasse tanto com homens, ... –, que lhe limitam a vida, e que agora o fazem sentir “claustrofóbico”. Decide afastar-se e manifesta o desejo de se tornar mais autónomo - não querer saber se lhe chamam “isto ou aquilo” –, sentindo nas suas palavras como que um alívio, e um certo prazer de se proclamar como um desistente, de poder dizer que na boca dos outros ele agora poderá ser tudo, que já não quer saber: a “liberdade condicional da identidade”8. C – Estou conformado, não quero procurar mais emprego, não tenho capacidade, não tenho CAPACIDADE. Prontos. É assim, não há nada a fazer. Não tenho capacidade para tirar a carta, para casar, não quero casar, não tenho capacidade para ter um filho, uma família, não tenho capacidade. Pronto sou assim da cabeça, e já não quero saber. Já tenho 36 anos e agora já é tarde para fazer uma vida normal. Já sofri muito Também nesta sessão aplica pela primeira vez a palavra “trauma”; palavra que faz questão de aplicar ao definir a sua “marcada” vida: P – Acha que não há mais nada a fazer? C – Acho que não, o sr. Dr. não vai fazer a vida andar para trás, pois não, pois não? P – Isso não, mas sente que há muito na sua vida, que lhe 8 Expressão elaborada por nós, procurando com esta exprimir o pensamento controverso da liberdade, reflectido no artigo de Andrade-Ribeiro (2000): dentro da condição de humano (com todas as limitações genéticas e ambientais existentes) o homem é livre na sua existência. VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003 35 Caso Clínico / Clinical Case 38 e não quero estar com gente, não quero mais que eles falem de mim. Que digam coisas, não quero saber. Pronto sou assim, não há nada a fazer. As coisas que passei já ninguém as pode tirar. Já não me importa que digam que sou homossexual, que não faço as coisas direito porque agora quero viver a minha vida. P – Sente-se cansado com a exigência da sociedade e agora apetece-lhe procurar paz, é isso? C – Sim é isso, quero paz, paz, não quero mais que me chateiem, quero viver a minha vida, tranquilamente, tratar da minha casa, vir aqui á consulta enquanto o Sr. Dr. me quiser, dar uns passeios pelo parque da cidade, e prontos mais nada. Com a minha família não quero mais nada. Nada. Não quero que ninguém me chateie. P – Procura afastar-se das pessoas!? C – Sim, a minha cabeça não dá para viver assim, não tenho ninguém comigo. Mas agora também não quero. Não quero mais nada com a minha família, não me quero dar com colegas de trabalho, não quero mais nada. P – Quer-se afastar de pessoas que lhe fazem mal, que não o compreendem. C – Sim é isso, a verdade é que não tenho ninguém comigo. Estou sozinho, só tenho o Sr. Dr., que é meu amigo, que me compreende e me aceita, de resto, como já disse não quero confusões, quero levar a minha vida direitinha, sem complicações sem nada. Se vou por um lado da rua e nesse lado vão muitas pessoas eu vou para o outro lado. P – Pensa que se sentirá melhor assim? C – Sim, não adianta Sr. Dr. eu não consigo ser feliz. Os seus olhos enchem-se de lágrimas.Toma consciência da limitação da sua vida e isso põe-no outra vez num estado de humor deprimido. Esta consciência leva-nos ao problema da discrepância entre as aspirações e as limitações9 que M. sente acerca de si. A descoberta de um passado angustiante como pertencente a si e como irremediável, a emergência de forças angustiantes, controladoras (não só exteriores como interiores) que o fazem sentir preso, limitado (em todo o processo, este talvez tenha sido o momento mais doloroso para M.) e que por momentos lhe tenham desorganizado 9 Tema particularmente reflectido pelos existencialistas europeus (Maslow, 2000) a dupla natureza do Homem: o problema da brecha existente entre as aspirações e as limitações do Homem, o problema da tomada de consciência da eterna insolubilidade de alguns problemas. VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003 um conceito de si omnipotente, controlador, quase sobre-humano, que ele possuía para esconder um outro lado seu desvalorizado, pessimista, negativista; transformam-no num ser mais frágil, com menos ferramentas defensivas de enfrentar a realidade e mais dependente do terapeuta. Neste estado de desorganização, ele possivelmente procura refugiar-se numa solução mais confortável: foge e procura o isolamento da sociedade. Esta tentativa de isolamento poderá ser interpretada como mais uma defesa contra a dor provocada pela nova realidade que ainda se mostra demasiado ameaçadora: procura assim fugir dela para não a ter de enfrentar. Este desejo de fugir - que M. leva ao extremo ao querer regredir até ao estado de criança, está bem patente no excerto da décima segunda sessão: P – Vejo que está com grande mágoa do mundo. C – Sim estou, isto dói muito. P – Estou a sentir... C – Não quero mais aturar as pessoas, não tenho capacidade, não quero mais responsabilidades, queria voltar a ter 5, 4, 3 anos... P – Queria voltar a ser criança. C – Sim, sem responsabilidades. É que eu não me sinto com responsabilidades, e agora não adianta, eu já sou velho demais, já estou cheio de traumas, nunca tive uma mãe em condições, nem um pai, já andei numa escola especial, já fui internado no Magalhães Lemos, já vivi com um homem, e pronto agora já não adianta já não há nada a fazer. Nesta fase ele acentua o medo de perder o psicólogo (no futuro). Medo do futuro é a problemática que agora domina as consultas (décima terceira e décima quarta). Dizendo que agora não está mal (embora não se considere bem), descobre um medo, uma angústia10 de voltar a estar mal no futuro, e voltar a estar triste, e voltar a ser agressivo. Na décima quinta consulta apercebe-se que tem um modo de reagir às situações (embora admita que estas assim desencadeiam) de forma impulsiva, e que todo o seu comportamento é muito instável, sentindo-se mais uma vez impotente para o controlar. Por isso, pergunta ao psicólogo se 10 “Do ponto de vista existencial a angustia aparece em relação com o sentimento de ter sido lançado no mundo e sentir-se obrigado a fazer escolhas, nomeadamente em relação às quais nem sempre se conhecem antecipadamente todas as consequências. É essencialmente angustia que aparece diante da necessidade de escolher.” (Teixeira, 1997, p.195). Caso Clínico / Clinical Case poderá “ficar com ele” até aos sessenta anos. Ao refazer o processo de consulta com o M., reparamos nos conteúdos abordados até esta fase: estes começam a implicar mais humildade – e se calhar sinceridade – do cliente e ao mesmo tempo, eles são mais existenciais.11 O que queremos dizer é que nos parece que agora se discute mais e a um nível mais profundo, problemas que dizem respeito à sua vida, à sua existência; são as “ferramentas” da sua personalidade que ele agora põe em causa. Já não são tanto problemas exteriores que o afectam os abordados, mas mais os problemas respeitantes a si mesmo, são os que são ele mesmo, e que começa a colocálos como a origem de toda a sua problemática, da sua incongruência com o mundo e consigo. De seguida, entramos no que classificamos como quarta fase (englobando as consultas 16, 17 ,18, 19). Esta fase é caracterizada pela percepção que cremos que M. adquiriu, de si como agente activo da sua vida e na mudança da mesma. Sente-se mais patente do que nunca a confusão, a ambiguidade interna de M. no que respeita à sua vida e à condução dela. Da confusão emerge uma pequena desconstrução das explicações místicas que possuía (feitiços, venenos, etc.), e assume que existem conteúdos (problemas) dos quais ele não encontra explicação, nem pressões para as arranjar. Esta ambivalência resulta numa ambivalência de discurso, dizendo por vezes que “sou eu que não me sinto capaz” (de viver a vida como gostaria) (decima oitava consulta), mas contrapondo logo, “E depois a vida que tive, o ambiente familiar que eu tive, não ser ajudado, não ser compreendido, não ser criado como devia” (decima oitava consulta). Nesta fase começa a expressar-se também mais com o corpo, expressando-se por exemplo desta forma: “E às vezes apetece-me arrebentar com tudo.Vrhhhhh (cerrando os pulsos e os olhos, encurvando-se, contraindo os músculos da cara e do resto do corpo) explodir.” (decima sétima sessão). Diz sentirse como que parado no tempo, parado no tempo a viver os problemas dos outros: P116 – Porque viveu... C116 – Os problemas dos outros. Porque parei no tempo. P117 – Parou no tempo?! C117 – Exacto. P118 – Explique-me o que é que quer dizer com isso? C118 – Parar, quer dizer ficar assim parado, dizer assim... estar à espera que apareça uma mulher, que tirem a carta de condução por ti, ou tar a espera que trabalhem por mim, ou estar a espera disto ou estar à espera daquilo. Ter parado no tempo, e não se sentir a viver a sua vida de uma forma autónoma, a ser o “autor” da sua narrativa de vida. Mas ao mesmo tempo sente-se sozinho - agora de uma forma mais sentida - porque apercebe-se que os outros, não podem fazer as coisas por ele. Continua, por vezes a falar de doenças e do medo que possui de as ter. Na décima sétima consulta, M. procura explicar como eles surgem: “Vou começar a fazer uma corrida e desisto da meta, e depois começo ufff uffff. O coração fica ufff ufff ufff ufff uffff” (décima sétima consulta). Utilizando a metáfora de uma corrida, ele procura explicar a sua constante desistência das coisas e de como isso lhe afecta o corpo. Na décima oitava consulta, fala pela primeira vez de como gostaria que houvesse transplantes cerebrais, onde ele pudesse deitar o seu cérebro fora, pois só encontra “desistência”, “incapacidade para fazer coisas”, falta de fé: “Eu não tenho fé praticamente, acredito em Deus quando quero. Porque eu não tenho fé nenhuma, porque eu não acredito em nada. Posso ir a um vidente e tudo isso mas não tenho fé. Porque eu ainda ando à procura de transplantes. De uma vida, que não tive. De uma vida de tornar a nascer e viver. É isso que eu quero uma vida dessas. Mas não existe transplantes cerebrais. Eu era capaz de ir para uma operação, e tirarem-me este cérebro e pôr outro. Mas não existe, isso é impossível não é Sr. Dr.?” (decima oitava consulta). Também nesta fase, por já avistar o fim do nosso trabalho no centro de saúde, que inviabilizaria a continuação do acompanhamento, recomeçamos um processo de encaminhamento, tentadoo fazer aperceber-se que ele, necessitaria, e beneficiaria muito de um acompanhamento psiquiátrico a par de uma psicoterapia estruturada. Procura-se assim encaminhá-lo para uma instituição psiquiátrica, com a crença que seria melhor acompanhado. Mais adiante é justificada a necessidade de acompanhamento psiquiátrico. Ao finalizar a consulta diz algo que nos parece que resume a confusão, a percepção que M. tem de si, e da sua percepção acerca da sua incongruência: “eu estou muito baralhado muito confuso, muito magoado, existe rancores, ódios dentro de mim, e isso talvez me afecte um bocadinho da minha vida lá fora. É não gostar daquilo que sou e daquilo que sinto.” 4. Planos de evolução 11 Começamos assim a subscrever Maslow (2000) (na percepção prática) quando este diz que os conteúdos expressos são cada vez mais existenciais, à medida que o processo terapêutico evolui. O caso contou com 20 sessões. No capítulo anterior resumimos 19; quedou-nos a última que resultou numa despedida. Não foi programada, pelo menos conscientemente, em termos dos objectivos VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003 39 Caso Clínico / Clinical Case a que nos propúnhamos. Mas perguntamo-nos: quais os objectivos a atingir? Será que haveria objectivos, ou reorganizações no pensar e no sentir? A necessidade de uma terapia profunda coloca-se num tempo em que o próprio tempo é limitado e por isso impossível de se tornar profundo. Rogers (1985) defende que num processo de relação de ajuda não se devem propor objectivos mas mais estudar os pontos de chegada. Não deixa de nos assustar a violência com que o processo terminou, mas analisemos o conseguido. Comparando as primeiras consultas com as últimas, quais as diferenças? De um discurso confuso e superficial, omnipotente, chegou-se a uma maior percepção dessa confusão? De uma agressividade e impulsividade não conscientes, chegou-se a uma capacidade de consciência desse descontrolo, que o faz ter medo de si para si, como de si para os outros? Talvez também, se tenha desenvolvido a capacidade de percepção da influência que os seus comportamentos têm no seu mundo social. Mas como aspecto principal, ele ter-se-á expressado relativamente ao facto de não gostar daquilo que é, daquilo que sente e que talvez isso esteja na origem dos seus problemas? Sabemos que o M. se “deu” em certos momentos, sentimos que ele sentiu prazer por essa entrega, daquele material que estava guardado para o mundo e se calhar para ele. Aprendeu, por pouco que seja, a percepcionar o que experienciava, a aprender que o que sentia com o corpo também podia ser posto em palavras. Recorrendo às três fases terapêuticas de Antunes (2000, p.95), tememos que ele possa ter ficado na primeira, intitulada de Auto-Descoberta, “que se traduz por um progressivo contacto consigo próprio, com as suas angústias, com as suas emoções e com a dificuldade em se aceitar como é. Implica não só a descoberta da incongruência entre a experiência e conceito de si, mas também o contacto com os sentimentos até então deformados ou negados”. Mas de certa forma o conseguido foi o projectado. Sabíamos que não poderiamos ter continuado com ele - por contingências do local de trabalho e do tempo (já expostas anteriormente) -, o nosso papel seria quase como que de uma preparação para uma terapia mais profunda, quer a nível psicológico, quer a nível farmacológico. Procuravamos, de uma forma mais ou menos estruturada, que o cliente adquirisse uma maior percepção de si e da sua incongruência. Percepção essa que lhe permitisse elaborar de uma forma mais consciente e mais sentida (visto nós no início o termos metaforizado, numa reflexão, como um “conjunto de angústias por ordenar”) o pedido de ajuda, e desse modo quisesse, por sua própria vontade - ao se percepcionar como agente fundamental dos seus estados de saúde e de doença - recorrer a uma psicoterapia mais profunda e estruturada - visto essa ser uma ideia desde logo negada por ele. Tínhamos assim, consciência de que o nosso papel seria então o de realizar quase uma espécie de “pré-terapia”, que Pinto (1998) define como o processo, mais ou menos longo, que possibilita ao “potencial” cliente a elaboração do seu próprio pedido. A última consulta e prognóstico são expostos de seguida. A vigésima consulta, é iniciada por ele dizendo que esteve a pensar, e que achava melhor não vir mais às consultas, pois já não andava a fazer nada lá, achando, por isso, melhor desistir. Não andava lá a fazer nada, porque o que ele queria era um transplante cerebral, era ser outro e isso tinha-se apercebido que o psicólogo não o poderia fazer, nem ninguém poderia fazê-lo. Nem mesmo ele próprio poderia fazê-lo, pois não se achava com capacidade, nem força para tal. Não iria procurar mais nenhum técnico porque não acreditava que eles pudessem fazer alguma coisa, pois já os tinha “corrido todos”. Mas também não iria procurar mais videntes porque elas não o poderiam ajudar. Sabia que só poderia contar com ele, mas ao mesmo tempo, sentia-se sem capacidade para tal. Por isso não queria viver mas também não queria morrer, e sentiase vazio, sem crenças, sem nada. Foi-se embora. Ficamos com a sensação de impotência entre as mãos, mas ao mesmo tempo invadia-nos uma enorme frustração, que nos fazia questionar M.: por ele ter desistido como sempre desistiu (assunto abordado por ele na consulta dizendo especificamente: “sim, desisto como sempre desisti”) - mas que agora não deixa de nos parecer uma violenta não aceitação do seu processo de crescimento. Em que estado abandonou o acompanhamento? Pouco mais poderiamos fazer, é certo, mas se calhar faltava o mais importante. Saiu numa fase em que tinha abandonado parcialmente as defesas, em que se sentia triste, e que por isso provavelmente mais frágil. Sabiamos que nesta fase seria crucial não parar com o acompanhamento psicológico, para que não ocorresse uma regressão, que na pior das hipóteses, devido à fragilidade em que se encontrava, o faria adoptar defesas primitivas associadas a uma distorção da realidade e do conceito de si (self) mais acentuada. Poderia ser também que ele ao sentir-se desse modo, fosse “um motor” para a procura de ajuda nos locais que sugerimos... O seu “estar” no mundo A avaliação ou análise compreensiva relativas a M., foram construídas e aperfeiçoadas ao longo das vinte sessões. Não se recorreu a nenhum meio auxiliar de diagnóstico, por se considerar que não havia a necessidade de o fazer já que o conteúdo das sessões continham em si, o necessário para a elaboração de uma compreensão do cliente e dispunham material para o desenrolar do processo. Isto porque, por um lado, os referidos meios auxiliares VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003 41 Caso Clínico / Clinical Case 42 de diagnóstico são encarados por nós como isto mesmo, ou seja, como auxiliares no processo de confirmação de hipóteses, o que neste caso específico se deu no decorrer das sessões. Por outro lado, pensamos que a aplicação de testes ou instrumentos avaliativos poderia demonstrar-se prejudicial para M. por diversas razões, nomeadamente pelo facto de durante a sua vida ele sempre se ter sentido avaliado, e dependente dessas avaliações. Da sua estória, da sua relação com o psicólogo que o acompanhou, ao longo das 20 sessões, retiremos o “sumo”. Chega-nos com um pedido de ajuda para conseguir ter um filho. Algo muito técnico, era só dizer-lhe o porquê de sonhar com homens e o assunto estava resolvido. Foi directo ao assunto, pois “percebia de psicologia”, provavelmente lia a mente, e por isso sabia exactamente o que queria: nada que mexesse com as suas frágeis explicações do mundo. E foi intimidando com as suas certezas. O mundo foi aparecendo mais complexo; afinal não só não conseguia fazer um filho como também não sentia prazer com as mulheres - só teve relações sexuais com uma mulher e “era como se estivéssemos aqui a conversar” - disse a propósito dessa experiência. Mas sentia-se bem entre os homens (nos autocarros escolhe quando pode o lugar intermédio entre dois homens, sentindo-se confortável, deste modo), (a sua mãe dizia-lhe que “mulheres devem estar com as mulheres e os homens com os homens, sempre frente a frente, pénis com pénis”). Também explica que esta quase repulsa pelas mulheres será, provavelmente, devido ao facto de ter vivido tempo demais com elas, e estas lhe terem causado muitos “traumas” (trauma: “lesão causada por agente exterior”). Esta problemática, que não deixa de ser ingénua, pois mobiliza-nos para o período da formação da identidade sexual, que normalmente se dá na adolescência, (Hoffman, Paris e Hall, 1996) é motivo de grandes preocupações e angústias por parte de M.. Esta homofobia internalizada é antiga, remonta a esses tempos da adolescência, com todos os seus mitos implícitos, e com a sua mãe a ser muito ignorante e a sociedade a falar demais - diz. Este medo, ao qual outros se juntaram, insere-se numa forma de estar, que mais tarde tentaremos analisar, porque fazem parte de um núcleo que dirige a sua vida, que se insere no seu mecanismo base de funcionamento. É um medo poderoso, no qual a pergunta é incapaz de se formulada: ao pedir uma resposta, não oferece como alternativa o ser homossexual, unicamente “normal” ou bissexual (este último já não tão angustiante, como o ser homossexual). Coloca-se então a questão, de como reflectir acerca da sua orientação sexual se ele transforma o social em imperativos na sua personalidade e na sua identidade e não se deixa questionar? A identidade sexual poderá estar assim comprometida, por uma inclinação que terá a sua origem social e que o afunda na confusão e na indefinição. VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003 Mas existem também os medos de vir a contrair doenças. Este temor, que em muitas das situações nos parece pouco realista, e que por isso (por ser constituído por um medo intenso mas pouco realista de vir a contrair doenças) se pode designar por uma “preocupação hipocondríaca” segundo Valdés (1998a), terá sido provavelmente a problemática mais abordada nas consultas. A sua recorrência na consulta - visto ela, na maior parte dos casos ser introduzida em forma de pergunta ao psicólogo, em questões concretas, muitas vezes de carácter médico, e por isso objectivas e inertes do ponto de vista emocional -, pareceu-nos inicialmente poder-se relacionar com duas razões distintas. Poderia então ter a função de defesa contra o apelo que a relação faz ao favorecimento da expressão de sentimentos e consequentemente da expressão de angústias (já que desse modo cortava a conversa, e “atacava” o psicólogo - ao formular uma questão que sabia que ele não lhe iria responder). Mas por outro lado, fomo-nos apercebendo que este tema, constitui uma verdadeira problemática para o M.; é algo que está presente em muitas das suas acções do seu dia a dia e onde há um forte investimento cognitivo, e obviamente (embora isso não consiga ser tão óbvio), emocional também – o que de certa forma se relaciona, segundo Matos (2002), com o acting-in da patologia psicossomática. São pensamentos irracionais para os quais ele não consegue encontrar explicação: vêm-lhe “à cabeça” e angustia-se. Possui muito medo do futuro também. Angustia-se com a incerteza da vida e por vezes desespera: que será quando tiver 60 anos? Terá casa, terá emprego? Ainda em relação a medos, eles são no M. por vezes mais gerais, e que se traduzem na sua relação com a sociedade e com o mundo. Tem muito medo que as pessoas lhe façam mal, que lhe façam feitiços – e que se aproximam do que Abreu (1997) chama de crenças erróneas, de tipo persecutório12, ao associar esses feitiços à sua infância e assim tentar explicar o que não encontra explicação e isso lhe causar angustia: o porquê de ter andado numa escola especial, etc.. Começou a aperceber-se que tem assim medo não só do exterior, da sua realidade, como também do interior (do próprio corpo e da sua mente).Toda a sua existência está povoada de medo, de angústia, que o transforma num personagem vulnerável não só para si, como para os “agentes exteriores”. 12 Crenças, segundo este autor, são ideias mais próximas dos sentimentos, ligadas à nossa relação com o mundo e connosco próprios, e geralmente dirigidas ao futuro ou ao passado longínquos. Exercem um papel importante na estruturação da vida, suportam-nos e tornam-se necessárias. Persecutório porque envolve um tema persecutório. Caso Clínico / Clinical Case Este “mal-estar” interior, que ele depois diz transformar-se em preocupações e medos, é definido por ele como não tendo explicação directa fazendo-o sentir-se confuso e diferente dos outros. Outra das formas que o M. utiliza para se relacionar com o mundo, será aquela conduta motivada pelo sentimento de posse no abstracto. O sentimento de omnipotência, de controlo talvez. Assimilar as características dos outros e ser como eles e assim não ter de entrar em incongruência consigo e com o seu corpo. Este modo de viver, povoado de angústia, de uma insegurança sempre inerente tanto de si para os outros, como de si para si, influencia e é influenciado, provavelmente a que os seus comportamentos dependam da opinião dos outros e principalmente do agrado dos outros. O seu bem estar não depende de si e por isso procura a opinião dos outros, para os assumir, para os adoptar e assim fugir à angústia do desamparo - tenta-se explicar assim a sua necessidade de arrancar opiniões com as suas constantes perguntas e também a relação de dependência e de tentativa constante de identificação que cremos ter assumido com o seu psicólogo. Qualquer contradição poderá ser explicada por traumas criados por agentes exteriores. Este seu conceito de self (Self-concept13) demasiado dependente das avaliações dos outros, não o deixa assumir e viver as necessidades do organismo; rigidifica e defende-se, quer negando, quer atacando, quer talvez seduzindo (comprando) ou idealizando (mais à frente explorado). Esta rigidificação, traduz-se numa negação ou distorção da experiência (aquela que se apresenta como ameaçadora para o conceito de Self) (Rogers e Kinget, 1975), pois o seu self-concept, dependente da opiniões dos outros para manter a consideração positiva do self (positive self-regard14), não tolera a autonomia e deixa pouco espaço para experiências novas - daí talvez os seus medos constantes. Mas esta busca de opiniões dos outros, parecenos que não explica completamente o seu comportamento, pois ao contrário de um modo de estar tipicamente neurótico (Swildens, 1990); M. parece-nos não ter um conceito de si coeso, estável. Ou 13 Para Rogers, o Self Concept pode ser visto “como uma configuração organizada de percepções do Self. É composto por elementos tais como as percepções das capacidades e características de um indivíduo; o objecto de percepção e conceito de self relativamente aos outros e meio ambiente; as qualidades valorativas que são percepcionadas como associadas a experiências e objectos; e os objectivos ideais que são percepcionados como possuindo valência positiva ou negativa” (Rogers, in Antunes, 2000). 14 Segundo Rogers (Rogers e Kinget, 1975), todo o ser humano possui uma necessidade de obter considerações positivas dos outros. Considerações essas, que por vezes demonstram serem mais fortes na determinação do comportamento que a necessidade do organismo. seja, ele não se encontra “eficazmente” rigidificado, protegido ao fazer depender, a sua conduta, das opiniões dos outros, não conseguindo, por isto, satisfazer a sua necessidade de autoconsideração positiva (positive self regard). Ele possui um sentimento de “vazio” (palavra proferida por ele), não se conseguindo compensar totalmente com as avaliações dos outros (porque nunca as teve provavelmente, de uma forma estável, não ambivalente) e assim não conseguindo esconder o sentimento de inferioridade que possui, encontrando-se num estado permanente de desconfiança. Ou seja, parece-nos que, por um lado, ele necessita dessas opiniões para compensar o seu fraco auto-conceito, mas por outro, não as consegue adoptar totalmente, defendendo-se delas. Sente-se então vazio, em desespero de procura de uma identidade (explicado mais à frente) porque esta (a identidade) aparece sob a forma de mosaico (Matos, 2002), de diversas formas e por isso difusa. Para colmatar este vazio, este negativismo, ele concebe-se (conceito de Self) simultaneamente numa “megalomania”, onde se apresenta como vidente, bruxo e parecido com S. Francisco de Assis; assumindo esse papel e tentando colocar-se acima do mundo que o rodeia e escamotear o presente com a sua nova imagem. Possui assim uma falta de estrutura no seu conceito do Self – resultando este em ambivalente, não coeso e pouco protegido (Swildens, 1990)–, e uma inconsistência e inconstância de actuação social (mudando muitas vezes de emprego, de interacção social nomeadamente na variedade de grandes amigos que teve e que depois se zangou), onde o caso de mais relevo será a sua instabilidade afectiva, que resulta de facto numa difusão da identidade – “tem aqui, nesta dificuldade de persistir nos investimentos, uma das suas mais importantes raízes” (Matos, 2002, p.412) – e numa imprevisibilidade no futuro – mostrando medo de voltar a estar agressivo amanhã. Por isso ele apresenta um padrão impulsivo, pois não consegue projectar para o futuro uma estabilidade. Aliás o aspecto da instabilidade afectiva, é de facto um aspecto da sua personalidade, que se tem mantido relativamente estável: os amigos que teve, as pessoas com quem contactou, de alguma forma as deixou porque ficou magoado com elas, elas fizeram-lhe mal ou traíram a sua amizade, com a introdução de outra pessoa significativa para ela. Recorrendo a Swildens (1990) parece que o seu Self está em guerra, mas a frente de batalha não está bem definida, logo o inimigo está em todo o lado. Na sua luta - que chamamos no início de “jogo”, antes do conhecimento desta metáfora - é necessário um estado permanente de alerta, e desconfiança, onde perante qualquer mínima tentativa de exploração da sua personalidade, sentindo em risco o seu frágil self concept, ele se retraia, negue, distorça, idealize ou projecte a realidade (Swildens,1990) - defesas à integridade do seu conceito de Self. Neste estado de alerta permanente, não tolera a frustração e “ataca o inimigo” (que VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003 43 Caso Clínico / Clinical Case 44 poderá ser o psicólogo). Porque nesta realidade ameaçadora e insuportável, torna-se necessário clivar os “inimigos” dos “aliados”. Não podendo viver com o perigo constante, ele designa os bons, idealizando-os, e “santificando-os” (palavra utilizada para adjectivar o psicólogo), e os maus, objectos causadores dos seus traumas (a irmã, os policias, etc.). Move-se assim para sobreviver e não para se auto-realizar, porque como refere Maslow (2000) “as necessidades de segurança são mais poderosas que as de desenvolvimento” (p.79) sendo, aliás, um requisito prévio da primeira, porque se trata de uma necessidade básica (Maslow, 2000) que lhe traz medo e que não o deixa avançar para “estados de maior complexidade” (p.71) e “onde possa retirar prazer das novas experiências” (p.71). O que nos remete para outra das suas problemáticas, a sua constante incapacidade de realização que dependendo do estado de humor o leva a reagir de maneira diferente, ora numa perspectiva de desistência, ora numa perspectiva de tentativa de alcance: “Era como se houvesse um muro que estivesse sempre à minha frente, e eu a tentar alcança-lo e ele sempre à frente” – diz ele a certa altura do processo. Esta permanente insatisfação, causa-lhe por vezes desespero (angústia mais uma vez). Este afastamento de um ideal (ideal do self15) em relação ao conceito que tem de si (self concept), também ele irreal, leva a que não consiga viver a sua vida de uma forma satisfatória (Roger e Kinget, 1975) pois encontrase permanentemente numa procura: a procura da aceitação - os outros mais uma vez. O M. não consegue viver com a crítica do exterior que depois interioriza, negativizando o seu self concept e afastando-o do “ideal do self” (que ao estar inserido noutra realidade se afasta igualmente). Mas esta negatividade do conceito do Self que M. possui, associada com a fragilidade do mesmo, faz também com que ele não possua nenhum Self trust (Bohart, 1990), ou seja, que não acredite na sua habilidade de responder às demandas sociais de uma forma assertiva (Bohart, 1990). Talvez, também por isso, ele diga que não tem capacidade, que sinta que o que o social lhe pede, requer uma responsabilidade que ele não possui, e se sinta a desistir, recorrendo à externalização para guiar e responsabilizar a sua vida. Este self concept, para se desenvolver positivamente necessita, ao longo do desenvolvimento de positive self regard (Rogers e Kinget, 1975), (que o M. não sentiu seguramente quando lhe chamavam de “maricas”, “paneleiro”, e “mongolóide”). Assim, provavelmente se define a incongruência do M. 15 O ideal do Self, refere-se “ao conjunto das características que o indivíduo desejaria poder reclamar como descritivas de si mesmo” (Rogers e Kinget, 1975, p.165) VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003 Sintetizando, M. possui, assim, uma ansiedade que caracteriza a sua conduta. Segundo Ruiloba (1998), esta angústia quase permanente dos medos, das preocupações hipocondríacas, da incerteza do futuro; a não aceitação de si, a posse de um sentimento de inferioridade e a permanente insatisfação pela não realização dos seus desejos internos (organísmicos) por uma imposição e estrutura social; a insegurança do seu ser a traduzir-se na pouca naturalidade de interacção - a rigidez que diz sentir - definiriam um modo específico de estar no mundo. Personalidade a que Swildens (1990) acrescentaria a insatisfação do conceito que tem de si, que o faz procurar um ideal sempre mais longínquo, como a necessidade das considerações positivas dos outros para a manutenção da sua auto-consideração positiva. O modo de relação de aceitação e de aproximação que ele realizava relativamente a certa pessoas (inclusivé ao psicólogo), à custa de uma idealização destas, e o ignorar dos aspectos que não lhe agradavam, aspectos estes talvez colocados, muitas vezes, quer noutras pessoas, quer nele próprio, segundo Matos (2002) seria também um aspecto a ter em conta na definição desta personalidade. Estes critérios agrupados, seriam os necessários para que eu o associasse a uma personalidade neurótica, enquanto o “seu modo de estar no mundo”. Mas como já foi referido anteriormente, o M. para além destas características, possui também, referenciando-nos a Valdês (1998b), uma incapacidade de se adaptar de uma forma satisfatória às normas sociais e às relações interpessoais. Possuí uma solidão bastante marcada, bem como uma incapacidade de manter um emprego fixo; tal como me disse, as pessoas acham-no “estranho”, tem problemas com a justiça, e zanga-se facilmente. Caracterizase, ainda, e retirando de Swildens (1990), uma grande impulsividade e uma forma exageradamente agressiva de responder a certas realidades. Todos estas características, associadas com o modo de se relacionar com o psicólogo, que implicou um uso da manipulação, uma idealização deste (a relação estabelecida construiu-se de uma forma intensa, alternando ataques, com bajulação ou desespero do desamparo, constituiu-se de opostos, de tudo ou nada), assim como a relação que ele mantém com o mundo (dos objectos) ambitendente - onde um dos lados possui características neuróticas (parte psiconeurótica), mas a outra que se caracteriza, por “uma relação de rejeição – perseguição, em que o objecto é sentido como rejeitante e/ou persecutório” (Matos, 2002, p.361), resultam numa porção tipicamente psicótica. Ao tentar estabelecer uma organização da sua personalidade, ao tentar defini-lo nesta sua ambiguidade, encontramo-nos nas franjas de duas estruturas nosológicas clássicas: a neurose e a psicose. Possui assim um “estar no mundo” com ferramentas neuróticas e psicóticas, ferramentas essas, que englobadas poderão definir uma outra personalidade (acima exposto por Ruiloba (1998),Valdês (1998b), Matos (2002), Caso Clínico / Clinical Case Swildens (1990) e Bohart (1990)). Recorremos então à designação de “estado limite” (Matos, 2002) (designando algo que se encontra na fronteira), ou personalidade borderline para enquadrar o M. e a sua personalidade. A psicose “major” (visto alguns autores caracterizarem esta organização limite como uma psicose menor (Matos, 2002)), distingue-se da personalidade borderline, porque esta última, segundo Matos (2002), “mantém o investimento no mundo exterior - continua a interessar-se pelas pessoas em geral, as coisas do mundo e a vida.” (p.412), caracterizando-se, ainda, por um desinvestimento (afectivo) circunstancial perante a realidade, dirigindo-se a uma pessoa ou a um conjunto restrito de pessoas, a uma situação ou a um número restrito de situações (e não ao resto do universo como acontece no desinvestimento psicótico). Percebe-se, com o exposto, porque associo, então, M. a uma personalidade de tipo borderline. A estória acaba. A dor mais significativa “escorreu-nos por entre os dedos” restando unicamente uma sedução que mostra as escamas mais externas do que tínhamos para contar. Encontramos verdades (porque também a linguagem não nos permitiu maior complexidade), e daí talvez esta sensação de contradição, de anti fluido, da não existência. Porque sentimo-nos no dever de reafirmar nesta parte final, que para além de toda a teorização realizada, a terapia, formou-se como uma “co-construção de conhecimento” (Schimd, 2002), contrariando por isso a designação de “expertism” atribuída ao terapeuta, em que a sua descrição se situa exactamente na habilidade de resistir à tentação de actuar/comportar, como um tradicional “expert” (que classicamente se designava como conhecedor dos problemas dos outros - mesmo contra os desejos do cliente), que resolve os problemas com a ajuda de técnicas em vez de os perspectivar enquanto pessoas (Schimd, 2002). No M., mais do que uma preocupação com a rotulação da sua personalidade, que para nós que nos sentimos imersos no seu processo de desenvolvimento nos aparece teórica, superficial, e como já foi referido, inexistente do ponto de vista do relacionamento estabelecido com o psicólogo, a centralidade colocou-se no “way of being with the client”, no modo particular de resposta ao sofrimento daquele “ser” (procurando não o problema, mas a pessoa como um ser global), nas atitudes do terapeuta e no modo de relacionamento, que proporcionariam a melhor realidade para que potencialidade se tornasse actualidade. Terminamos assim com uma citação de Rogers (1980): “Person-Centered Psycotherapy is the practice of an image of the human being witch understand the human being as a person and thus encounters him or her personally acknowledging him or her as the other instead of objectifying him or her by trying to know him or her, to get knowledge.” BIBLIOGRAFIA Abreu, J .L. P.(1997). Introdução à Psicopatologia Compreensiva. 2ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Abreu, J. L. P (2000). O Tempo Aprisionado Ensaios não Espiritualistas sobre o Espírito Humano. Coimbra: Quarteto Editora. Andrade-Ribeiro, J. (2000). Psychotherapeutic process: autopoiethic perspective. In J. Marques-Teixeira e S. Antunes, (Eds), Client Centered and Experiential Psychotherapy. Lisboa:Vale & Vale editores, Lda. Antunes, S. (2000). Self Concept and Client-Centered Therapy. In J. Marques-Teixeira e S. Antunes, (Eds), Client Centered and Experiential Psychotherapy. Lisboa: Vale & Vale editores, Lda. Bohart, A. e Hills, D. (1990). A cognitive Client-Centered Perspective on Borderline Personality Development. In G. Lieter, J. Rombauts and R. Van Ballen, (Eds.), ClientCentered and Experiental Psychotherapy in the Nineties. Leuven: Leuven University Press. Camus, A. (2002). O Mito de Sísifo Ensaio sobre o absurdo. Lisboa: Livros do Brasil. Hoffman, L., Paris, S. e Hall, E. (1996). Psicología del Desarrollo Hoy. Vol.2. 6ª edição. Madrid: McGraw-Hill. Kircher, T., Torres, M. e Forns, M. (1996). Aportaciones Conceptuales y Metodológicas a la Evaluación Psicológica. Barcelona: Copy-Grácia. Maslow, A. (2000). El Hombre Autorrealizado, 13ª edición. Barcelona: Kairós. Marques-Teixeira (2000). Psychopathology and Client-Centered Therapy. In J. MarquesTeixeira e S. Antunes, (Eds), Client Centered and Experiential Psychotherapy. Lisboa:Vale & Vale editores, Lda. Matos, A. C. (2002). O Desespero. Lisboa: Climepsi Editores. Mora, J. F. (1974). Dicionário de Filosofia. Lisboa: Dom Quixote. Pinto, A. C. (1998). A experiência do Psicólogo num Centro de Saúde: uma abordagem Centrada na Pessoa. A Pessoa como Centro, 1 (I): 59-63. Rodrigues, C., Teixeira, M. e Gomes, F. (1989). Afectividade. Porto: Contraponto. Rogers, C. R. (1974a). Psicoterapia e Consulta Psicológica. Lisboa: Morais Editores. Rogers, C. R. (1980). Client-centered-psychotherapy. In H. I. Kaplan, B. J. Sadock and A. M. Freedman, (Eds.) Comprehensive Textbook of Psychiatry, III. Baltimore, MD:Williams and Wilkins. Rogers, C. R. e Kinget, G. M. (1975). Psicoterapia e Relações Humanas Vol I. Belo Horizonte: Interlivros. Rogers, C. R. (1985). Tornar-se Pessoa. 7ª edição. Lisboa: Morais Editores. Ruiloba, J. V. (1998). Neurosis: generalidades. In J. V. Ruiloba (ed). Introduccion a la Psicopatologia y la Psiquiatria. 4ª edición. Barcelona: Masson. Schmid, P. F. (2002).The Necessary and Sufficient Conditions of Being Person-Centered: On Identity, Integrity, Integration and Differentiation of the Paradigm. In J. C. Watson, R. N. Goldman and M. S. Warner, (Eds). Client-Centered and Experiential Psychotherapy in the 21st Century: Advances in theory, research and practice. Ross-on-Wye: PCCS Books. Swildens, H. (1990). Client-Centered Psychotherapy for Patients with Boderline Symptoms. In G. Lieter, J. Rombauts and R. Van Ballen, (Eds.), Client-Centered and Experiental Psychotherapy in the Nineties. Leuven: Leuven University Press. Teixeira, J. A. C. (1997). Introdução às abordagens fenomenológica e existencial em psicopatologia (II): as abordagens existenciais. Análise Psicológica, 2 (XV): 195-205. Valdês, M. (1998a). Otros transtornos neuróticos y psicosomáticos. In J. V. Ruiloba (Ed). Introduccion a la Psicopatologia y la Psiquiatria. 4ª edición. Barcelona: Masson. Valdés, M. (1998b). Transtornos de personalidad. In J. V. Ruiloba (Ed). Introduccion a la Psicopatologia y la Psiquiatria. 4ª edición. Barcelona: Masson. VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003 45