Era como se houvesse um muro

Transcrição

Era como se houvesse um muro
Caso Clínico / Clinical Case
“ Era como se houvesse um muro...”
Ou a história da compreensão de M
Empathic understanding of M
“Se fosse preciso escrever a única história significativa do pensamento humano,
seria necessário fazer a dos seus arrependimentos sucessivos e das suas impotências”
Camus
1. Introdução
Manuel Machado
Psicólogo Clínico
Rogério Pastor-Fernandes
Psicólogo Clínico
Assistente do Curso de
Psicologia Clínica do
Instituto Superior de
Ciências da Saúde-Norte
Correspondência:
Manuel Machado
[email protected]
Abordaremos este processo de consulta psicológica como um
“percurso”,“caminhada” que será dividida por fases. Fases que resultam
de uma tentativa de ordenação das consultas e de todo o processo,
organizadas tendo em conta principalmente a evolução sentida por
nós (equipa técnica), do M. na relação psicólogo-cliente, nos conteúdos
discursivos e na abordagem aos mesmos, o reflectido no pós-sessões
e no processo de construção deste texto. Será “caminhada”,“percurso”,
porque tentaremos que as fases alternem de umas para as outras
num contínuo, sobrepondo-se por vezes, sem que haja claramente
uma linha divisória entre elas.
Durante este acompanhamento psicológico, subscrevemos a postura
fenomenológica que “para entender o doente (ou outra qualquer
pessoa) não importa tanto a realidade objectiva, as coisas em si que
ele vive ou percebe, mas o modo como ele as vivencia, a sua vivência
das coisas, a sua verdade sobre o mundo” (Abreu, 1997, p.15). É esta
a concepção principal subjacente à postura adoptada por nós,
relativamente a toda a prática da Psicologia Clínica. Foi este o nosso
foco principal de atenção: “as experiências subjectivas do sujeito”
(Kircher,Torres e Forns, 1996, p.103). Partimos então do pressuposto
de que a observação do comportamento humano e consequente
análise, não se processa de uma forma neutra e objectiva, sendo
sempre, antes, algo subjectivo - uma interpretação (compreensão).
Desse modo, o sentir-se mal e a consequente exploração psicopatológica, será sempre uma construção, que poderá ser nossa do que o
outro nos relata, ou, segundo o ponto de vista do modelo interaccional
(Marques-Teixeira, in Marques-Teixeira e Antunes, 2000), uma coconstrução psicólogo-cliente, na qual cada um dos intervenientes
expressa a sua compreensão no espaço da consulta, de forma a chegarem a um consenso. Consenso este que implicará muitas vezes uma
cedência, por parte do psicólogo, das suas percepções do caso, porque
“quaisquer que sejam os jogos de palavras e as acrobacias da lógica,
compreender é, antes de tudo, verificar.” (Camus, 2002, p.26).
29
VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003
Caso Clínico / Clinical Case
2. Pedido de consulta
30
“O utente M., de 35 anos de idade, recorreu a este serviço com agitação
psicomotora, angústia, e ansiedade marcada. Refere ter ideias suicídas
e grande isolamento social. Refere também exclusão familiar.” - excerto
da carta recebia; enviada por um enfermeiro ao Serviço de Psicologia.
Este caso foi encaminhado para uma psicóloga, que marcou a
consulta através de um postal de marcação de consultas, uma vez
que o utente não possuía telefone. No dia da consulta compareceu
com uma hora de atraso, dizendo que nos tínhamos enganado, pois
ele tinha pedido um psicólogo e não uma psicóloga. Uma segunda
consulta foi marcada desta vez com um psicólogo do sexo masculino.
De estatura baixa, de cabelo rapado, com uns olhos “esbugalhados”
verdes claros, de nível socio-económico médio-baixo, M. comparece
à consulta visivelmente intranquilo, com uma postura rígida, com
gestos firmes e angulares, ansiosos e, ao mesmo tempo, também
um pouco hesitantes. Olha fixamente e numa atitude de “fuga para
a frente”, procura surpreender com a sua figura: com um discurso
confuso, directo e rápido, apresenta o problema de uma forma
que talvez procurasse o choque. Apresenta-se: “ Sabe Sr. Dr., eu
sou médium, astrólogo e vidente, e portanto também percebo
alguma coisa de Psicologia, portanto eu venho cá por um problema
de erecção. Eu já andei com mulheres, já tive relações sexuais com
elas, mas às vezes também gosto de homens. O que é que acha
que eu tenho Sr. Dr.?”
O seu tom de voz era monocórdico e baixo. Sem perder os olhos
do psicólogo dos seus, falava quase ininterruptamente por vezes
articulando mal as palavras. Os conteúdos discursivos alternavam,
sem qualquer pausa prévia, de uma forma fugaz e rápida; ao
escutante, o discurso aparecia assim aparentemente desconexo.
Após 50 minutos de consulta, tentou-se que ele ordenasse o
motivo: M. vem à consulta porque se sente mal, não consegue
ejacular, sonha com homens e isso perturba-o; tem muito medo
de vir a ter doenças graves, como cancro ou cirrose; tem medo
de morrer mas, por outro lado, por vezes também lhe apetece
morrer. Gostava que na consulta o ajudassem a ser feliz, casar e
ter filhos como “as pessoas normais”.
Os conteúdos eram abordados dessa forma e muitas vezes,
confrontando afirmações anteriores com outras ditas posteriormente, num sentido contraditório: ignorando ou negando a versão
anterior mudava de assunto e muitas vezes recorreria a uma “chuva
de perguntas” (querendo com isto dizer que falava ininterruptamente
em forma de interrogações). Falou da sua solidão, do medo que
tinha em vir a perder pessoas que gosta, dos “sonhos molhados”
que dizia ter quando por vezes sonha com homens e da dúvida
quanto à normalidade desse acontecimento. Por fim, nesta primeira
fase (na qual se inclui as 4 primeiras consultas), e dominando
normalmente quase metade do tempo das sessões, abordava o
tema das doenças, sempre num registo médico, objectivo –
perguntando por exemplo o que era a cirrose, se a cirrose era
um cancro ou qual era pior, a cirrose ou o cancro, etc.
M. nesta fase já tinha consciência de que estava mal, de que estava
em sofrimento, e por isso tinha procurado ajuda, embora toda a
causalidade fosse atribuída a factores externos, apresentando por
isso uma egodistonia em relação ao seu mal estar; dizendo muitas
vezes que a irmã e a mãe tinham sido as causadoras de alguns
“males” que lhe aconteceram.
Outro dado digno de ser realçado, surgiu logo na primeira consulta
e foi-se prolongando até à quarta: M. fazia questão de oferecer
presentes. Primeiro, logo na primeira consulta, uns bombons, que
não foi aceite mas que ele deixou em cima da secretária; depois,
no início da segunda sessão, entrega - oferecendo - um saco plástico
com algo lá dentro. Diz ser um presente de Natal (seria a última
consulta antes dessa data). O saco, que continha três pares de
meias, permaneceu toda a consulta no mesmo local (em cima da
secretária), e “se quiser o Sr. Dr. deite ao lixo quando me for
embora” - como alegações finais de M.
Nestas primeiras consultas, fugia a falar dos seus medos, das suas
angústias1, defendendo-se destes conteúdos (e provavelmente da
relação particular que se estava a tentar criar, onde conteúdos
angustiantes tivessem espaço para emergir e onde o M. pudesse
começar a abordar assuntos mais próximos da sua experiência
organísmica2) de uma forma violenta, rígida. Comunicação que se
3. Percurso avaliativo / terapêutico
O percurso inicia-se com uma chuva de perguntas de M.. Perguntas
acerca da sua identidade sexual, perguntas de carácter médico,
objectivo, questões acerca da vida pessoal do psicólogo. Sem deixar
qualquer espaço e tempo para abordar a sua vida, propõe-se jogar
- pois foi a um jogo que pareceu se assemelhar - “ao ataque”. O
seu discurso, como já foi referido, apresentava-se de uma forma
confusa e superficial, num tom de voz demasiado baixo e rápido.
VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003
1 “Angústia é uma emoção primária originada por uma separação; o corte que tal
separação representa no decurso vivencial deixa sempre o indivíduo, em grau mais
ou menos elevado, numa situação de dúvida acerca do que irá acontecer na
sequência da mudança que fatalmente terá a sua existência”. (Rodrigues, MarquesTeixeira e Gomes, 1989, p.85).
2 Este conceito refere-se a tudo o que se passa no organismo em qualquer momento,
e engloba tanto os acontecimentos conscientes como os fenómenos inconscientes
(Rogers e Kinget, 1975).
Caso Clínico / Clinical Case
percepcionava como demasiado primitiva, quase infantil.
Arriscamos, portanto, a afirmar que a sua postura para com o
psicólogo apresentava-se como uma defesa à sua “deficiência”3
(Maslow, 2000):
O seu discurso demasiado rápido, confuso e superficial - algo que
ao longo do processo se modificou -, tornavam-no, muitas vezes,
quase incompreensível, para o escutante, mas também se calhar
para ele, mantendo-o afastado da sua experiência organísmica,
deste modo protegendo-o, talvez, da complexidade e da profundidade
de sentimentos (que naturalmente lhe traziam angústia), por falta
de estrutura;
Todo o exibicionismo presente, querendo mostrar as suas qualidades,
querendo, provavelmente, ao dizer que era vidente, por exemplo,
mostrar-me que era alguém superior “ao comum” de nós, alguém
quase omnipotente (conseguindo efectivamente com isto intimidarme). No entanto, cada vez mais, para nós, esta atitude se mostrava
como uma “pele” de algo mais profundo e angustiante, quase como
algo denunciador da necessidade de se apresentar como um
contrário do que era4, tentando, desse modo, esconder um medo,
uma insegurança, que nos faziam adivinhar uma valência negativa
no conceito que possuía de si, no seu “modo de estar”, e uma não
aceitação de uma parte do seu self5;
A sua forma - que chegava a ser ofensiva - de ignorar as intervenções
do psicólogo, ou de as negar, fugindo ao tema que estava ser
abordado, era algo que não deixa de nos parecer muito primitivo,
muito infantil (como aliás já referimos);
No que respeita às questões formuladas, subscrevemos Rogers
(1974a) quando este diz “que uma pergunta desse género é feita,
quer na esperança de levar o conselheiro a pôr-se do lado do
paciente e a dar-lhe a resposta que ele já desejava aceitar, quer
para utilizar o conselheiro como um símbolo da sua agressividade,
no caso de ser dada uma resposta inaceitável do ponto de vista
afectivo”.
3 Fazendo referência à teoria de Maslow (2000), abordada no capitulo teórico correspondente em que Maslow dividia as motivações humanas em duas categorias, aquelas
que se visavam ao crescimento (motivações de desenvolvimento) e aquelas que
visavam a sobrevivência (motivações por deficiência).
4 Maslow (2000) defende que desde o instante em que uma pessoa renuncia a si mesmo
e na mesma medida que o faz, começa inconscientemente a criar e a manter um “pseudo-eu”. Embora se trata de uma pura conveniência, não é mais que um self sem desejos.
Este será amado (ou temido) onde é depreciado, forte onde ele é débil; reagirá dessa
forma não por diversão ou prazer mas por sobrevivência. “Essa necessidade não é vida,
não é a sua vida, é um mecanismo de defesa contra a morte” (Maslow, 2000, p.83).
5 O “self” é um constructo central na formação da personalidade, na determinação do
comportamento e na adaptação ao meio. (Antunes, in Marques-Teixeira e Antunes, 2000).
Surge-nos a questão de o facto de ele tentar oferecer presentes,
ter subjacente alguma intenção de, alguma forma, “comprar” e
assim procurar a intimidação. Na quarta consulta, tenta oferecer
uma camisa - atitude não surpreendente, pelo decorrer das sessões
anteriores. Elaborando uma reflexão expôs-se o que pensávamos.
No final da consulta o psicólogo escreve na reflexão pessoal:
“De qualquer maneira, e como comecei esta reflexão, creio
estarmos a dar passos evolutivos. Perante a minha explicação
da recusa, M. tolerou mal esta pequena frustração - o que poderá
ser significativo para tentarmos explicar outros comportamentos
dele. Existe a consciência que se quebrou um ciclo que o M.
queria impor, e isso de certa maneira afectou-nos. Eu passei a
posicionar-me com mais segurança, e o M. mostrou-se menos
bizarro, menos desconexo e mais neurótico.”
Numa tentativa de organizar mais o caso e ao mesmo tempo conseguir estabelecer uma espécie de fio condutor do que relatava,
procurou-se fornecer-lhe um ambiente de calma e construir com
ele uma história clínica, que ocuparam a terceira e a quarta consultas. Os dados recolhidos mostraram-se baralhados, confusos, pelo
que foi tarefa árdua a de os ordenar e sintetizar no relato abaixo
exposto.
Deste modo terminamos o que designamos como primeira fase.
História Clínica ou a necessidade de sistematização
Cresceu - desde que nasceu - na casa de uns tios paternos, que
o adoptaram e que ele chama de pai e mãe.Aos seus pais biológicos,
que só mais tarde os conheceu, trata-os por madrinha e pai
biológico.
Na casa dos pais (de criação) viviam mais oito irmãos, também
eles de criação. Ele era o segundo mais novo. Desses oito irmãos,
seis eram raparigas e dois eram rapazes, estes bastante mais velhos
e que por isso não conviveram muito tempo com ele (cerca de
6 anos o mais novo). O pai (de criação), uma figura, segundo ele
autoritária, dura, que impunha respeito na família – batia na mulher
mas para impor respeito -, morreu quando ele tinha 12 anos. A
sua morte, já esperada, pois ele já tinha uma certa idade, foi para
M, um momento de mudança, pois por um lado, o recorda como
alguém, talvez a única pessoa, que gostava dele na família, e por
outro, a partir dessa data, passou a conviver primordialmente com
mulheres e isso talvez o tenha tornado “caseiro demais” para o
que as pessoas esperam de um homem. Na escola primária reprova
dois anos; é então posto numa escola de ensino especial. Este
acontecimento parece-nos ter sido bastante marcante não pela
sua recorrência nas consultas ser significativo mas também pelo
VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003
31
Caso Clínico / Clinical Case
32
facto de se referir a ele como sendo uma época em que lhe
chamavam de débil mental. Relativamente à sua adolescência, falounos de um amigo, com quem teve uma relação de amizade muito
especial. Andavam sempre juntos e M. gostava dele; mas as pessoas
começaram a falar coisas, a chamarem-lhes de “paneleiros”, e a
sua relação terminou. Soube que ele casou, que teve dois filhos e
que tinha morrido de um acidente de mota. “Eu bem lhe tinha
avisado que ele devia andar com cuidado na rua”, diz-me M na
quarta consulta
Aos 16 anos vai trabalhar. O seu primeiro emprego foi como
estafeta de escritório. Daí seguiram-se uma variedade de empregos
que foram desde o trabalho num escritório ao trabalho numa
empresa de segurança. Actualmente está desempregado, mas ao
mesmo tempo encontra-se de baixa médica do seu ultimo trabalho:
trabalhava no tribunal de Matosinhos. Guarda muita magoa de
alguns trabalhos em que segundo ele, o maltratavam, falavam dele
nas costas, e tentavam indicia-lo pelos maus caminhos.
Cumpriu uma semana de serviço militar. Isto porque, na altura
pediu, por um lado, visto a sua mãe (de criação) se encontrar
doente, dispensa para tomar conta dela, e por outro, como ele na
altura andava, segundo ele, muito mal: só chorava sem ter razões
e não lhe apetecia sair de casa, pediu a um psiquiatra que lhe
escrevesse uma carta para que ele ficasse dispensado. O problema
é que estes dois pedidos não chegaram a tempo e ele teve que
se apresentar ao serviço para que não fosse dado como desertor.
Lá no quartel só chorava, refere-nos. Até que o pedido de dispensa
é aceite e ele volta para casa. Este acontecimento representou
mais um motivo de mágoa para com a sua família, pois estes não
queriam que ele desistisse, o seu irmão mais velho chegou mesmo
a oferecer-lhe dinheiro para ele ficar pois acreditava que a experiência
lhe faria bem. Quando ele o fez, ou seja quando ele voltou para
casa, a família recebeu-o mal, atirando-lhe á cara que ele tinha sido
dado como incapaz.
Passado pouco tempo, não aguenta mais permanecer em casa da
mãe (de criação), onde agora já se encontrava a irmã (tinha voltado
após ter ficado sem casa) – com qual tem um processo por lhe
ter batido -, e aluga um quarto na casa de uma “velhota” que lhe
dava de comer e lhe tratava da roupa. Fica lá pouco tempo mais
de um mês pois entretanto conhece um colega de trabalho que
se tinha recentemente divorciado e estava à procura de um
companheiro com quem pudesse compartilhar a casa. Passa a
compartilhar a casa com esse colega. Mas as coisas também não
correram muito bem nessa altura, pois o colega, segundo ele, era
de “índole demoníaca”: metia-se no jogo, pedia-lhe muitas vezes
dinheiro emprestado, constava que era homossexual, e tinha como
religião a Igreja Universal do Reino de Deus. Foi com ele a umas
sessões, mas depois de ter saído de sua casa, voltou para a religião
VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003
católica, mas uma pessoa que era dessa religião, quando o encontrou
na rua, disse que ele iria arder no inferno, e que tinha uma praga
rogada para o resto da sua vida (o que o fez ficar com medo
sempre que pensa nisso).
Voltou para a casa da mãe (de criação) onde viveu até ela morrer.
Desse tempo, guarda muitas más recordações: a mãe e ele não se
davam nada bem, insultavam-se mutuamente, ele por vezes batialhe e foi também nesses anos que foi internado num hospital
psiquiátrico durante 15 dias. Estava outra vez mal, apetecia-lhe
morrer, queria ter cancro e andava constantemente com raiva.
Actualmente M. vive sozinho numa casa herdada, está de baixa
médica, cria galinhas e tem uma cadela. Quando o acompanhamento
psicológico terminou o M. dizia encontrar-se calmo, mas sozinho.
Toma um ansiolítico cujo princípio activo é o lorazepam, para
dormir, que o médico de família receitou. Possui aquelas
preocupações (já referidas) acerca das doenças e do mundo (que
mais adiante analisaremos), mas já não sente vontade de morrer;
gostaria que as pessoas não falassem tanto dele, e não lhe apontassem
o dedo por ele ser isto ou aquilo. Se arranjasse uma mulher, era
bom, se tivesse um filho óptimo, senão quer viver como agora vive
e continuar afastado da família (a necessidade do seu afastamento
da família foi um tema abordado nas consultas) se conseguisse
arranjar um emprego calmo.
Ainda o percurso avaliativo/ terapêutico
Seguidamente, a evolução, nesta segunda fase (englobando desde
a quinta à décima consulta) adquire contornos mais pessoais:
começa-se a sentir mais implicação - mais sentimento - no
comportamento do M. na consulta. As problemáticas que nesta
fase relata, são uma exploração, uma concretização daquelas
abordadas nas primeiras consultas, mas agora elas são mais “ele”,
são mais definidoras da sua pessoa. Pretende-se descrever mais
concretamente esta mudança, mas não se consegue, foi algo que
foi sentido nas sessões, porém a impressora só imprime palavras.
Cremos ser algo subjectivo ou como diz Andrade-Ribeiro (2000),
algo que pertence ao “tempo subjectivo” da terapia e consequentemente da relação terapêutica. Esta, segundo este autor, dá-se
num contínuo, no qual no nível mais baixo os sentimentos são
descritos como estando afastados, impessoais e não presentes, e
à medida que se vai subindo de nível, um incessante fluído de
sentimentos começa progressivamente a caracterizar o indivíduo.
Tentamos assim estabelecer, num tempo subjectivo (próprio), uma
evolução, uma mudança, do/no M. e na relação, que caracterizará
esta segunda fase. O seu discurso começa progressivamente a
parecer menos confuso, os conteúdos discursivos começam a
possuir mais encadeamento e mais ligação.
Caso Clínico / Clinical Case
Explora a problemática respeitante à sua sexualidade e de uma
forma mais geral respeitante à sua identidade sexual. Manifesta um
medo, aliás, uma incapacidade de se conceber como homossexual,
mas ao mesmo tempo procura desesperadamente - nas consultas
- encontrar uma resposta para a sua “indefinição sexual”: sonha
com homens e ejacula; diz sentir-se bem, por exemplo, no autocarro
entre homens; fala da sua incapacidade de ter relações sexuais
com mulheres - só teve relações sexuais com uma, e “era como
se tivéssemos aqui a conversar”, diz.
Sempre rodeado de muitos preconceitos, aos quais dá muita
importância, traz nesta fase boatos, opiniões, modos de viver dos
outros, conteúdos que ele elevava a um plano absolutista e em
relação aos quais não se consegue opor. Começa a manifestar
insegurança no seu “modo de estar no mundo”, perguntando ao
psicólogo muitas vezes se ele o considerava “maluco”,“incompreensível”, “estranho” ou “mongolóide” - dizendo que foram nomes
que já lhe colocaram muitas vezes e que se começa a aperceber
ter medo de corresponderem à realidade. Aborda também, e pela
primeira vez, o desejo de “ser mais”, de alcançar sempre mais e
da angústia associada à insatisfação que sente:
34
P – Mas então sente que lhe falta alguma coisa?
C – Sim, sinto que queria ser muitas coisas mas que não
consigo ser todas e fico nervoso com isso...
P – Sente que precisava de abraçar o mundo inteiro?
C – Sim, é como tudo o que faço nunca chegasse, queria
estudar mais, ser professor, médico, ajudar pessoas, não
queria muito dinheiro, eu não ligo muito ao dinheiro, queria
pôr justiça no mundo, tal como S. Francisco de Assis, ele
também era uma pessoa que queria mudar o mundo. (Extracto
da sessão nove)
P- Psicólogo, C - Cliente
Com o desejo de ser “superior”, e assim provavelmente esconder
ou colmatar o seu sentimento de se conceber inferior, ele deseja
possuir o poder de pôr justiça no mundo, possuir dons sobrenaturais,
e assim elevar-se do plano de mortal (como S. Francisco de Assis,
diz), alcançar a omnipotência.
Também nesta fase M. exprime uma angústia mais “desmascarada”;
o espaço terapêutico começa a dar-lhe espaço para que ele exponha
de uma forma violenta (por palavras), o seu enorme ressentimento,
a sua raiva e a sua mágoa. M. possuía problemas com a justiça por
ter batido à irmã. Na tentativa de explicar esta raiva, este ressentimento e a angústia expressa, expomos um extracto da sétima
sessão:
C- Estou chateado, assim porque penso na vida, no que fiz,
VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003
no que me fizeram, e fico chateado.
P- No que lhe fizeram?
C – Sim porque não adianta vir falar para aqui da cirrose e
tudo mais porque sei que as coisas já aconteceram e não
há mais nada a fazer, pois não?
P – O que é que o M. acha?
C – Então não, não é, não se pode andar para trás 36 anos.
P – Aconteceu muita coisa na sua vida que gostava que não
tivessem acontecido?!
C – Sim, aquilo que sofri, com os meus pais de criação e
tudo, e sei que agora não posso voltar atrás. Pois não?
P – Naquilo que sofreu!?
C – Sim naquilo que vivi e que não deveria ter vivido (aumentando o tom de voz, embora com a voz a fraquejar). Gostava
de ir para a universidade mas estou muito longe, não estou?
Assim ando sem vontade de viver porque sei que o tempo
não volta para trás. Porque vivi muita coisa que não deveria
ter vivido, fizeram-me viver muita coisa que não deveria
viver. Fico com raiva (pondo agressividade no discurso) pelos
meus pais que não me criaram, pela minha madrinha de
baptismo que foi a que me deu à luz, e que nunca me apadrinhou, pelos meus pais de criação que sempre me esconderam
coisas, pelo meu pai que ainda é vivo e nunca me ligou, por
tudo.”
Nesta sessão na qual apresenta um humor deprimido6, ao dizer
“naquilo que vivi e que não deveria ter vivido”, ele utiliza a primeira
pessoa, assume pela primeira vez no processo (nesta sétima sessão),
os problemas - e num plano mais profundo as angústias - como
fazendo parte da sua existência7, como algo que está dentro de
si e que ninguém (não se incluindo ainda no processo de mudança)
poderá retirar, pois foram vividos e só “os deuses, alteram o tempo
e o espaço”. Arrepende-se do que já passou e queima a réstia de
esperança que o psicólogo possa ter uma “poção milagrosa” que
o faça esquecer todo o seu ressentimento.
E começa a construí-lo (o seu psicólogo) como um ser com
“santificação” (querendo dizer com isto que era um “ser bom por
natureza, que não tinha mal dentro”), como alguém que é perfeito
6 Segundo Abreu (1997), de uma forma muito sintética, humor deprimido designa
os sentimentos anímicos que em forma de fundo ou transfundo, se apresentam ao
sujeito, na vida normal deste, nas perturbações da personalidade ou nas depressões
reactivas.
7 Para Kierkegaard (in Mora, 1974) existência refere-se àqueles cujo ser consiste na
subjectividade, isto é, na pura liberdade de eleição.
Caso Clínico / Clinical Case
para ser seu terapeuta. Ao mesmo tempo que o idealiza e idealiza
a sua relação com ele, bajulando-o, começa a manifestar igualmente
um medo de o perder – chegando-lhe a oferecer um panfleto
religioso dizendo que era para o proteger, pois se lhe acontecesse
(ao seu psicólogo) alguma coisa ele não quereria outro –, e procura
“tê-lo mais” (para além do tempo da consulta) atingindo o extremo
de procurar identificar-se com ele: dizendo por exemplo, que tinha
muita coisa em comum, evocando o facto do psicólogo ter problemas
de alergia (facto notório já que numa das sessões espirrou bastante),
e ele também. Este medo, que transbordará de uma possibilidade
de perda/abandono, com uma bajulação que procura um agrado,
uma compra, talvez existisse ainda por falta de segurança (aliás,
na personalidade em que M. se enquadra, à frente descrita, a
angústia de perda é caracterizadora deste modo de estar no
mundo) que o M. ainda sentisse na relação – aliás como nos pareceu
sentir em todas (as relações). Assim como, em última análise, falta
de segurança no seu psicólogo, que provavelmente traria como
consequência uma inibição em manifestar as suas “loucuras”, ou
as suas constantes perguntas acerca da sua compreensabilidade
e “bizarria” – uma incapacidade parcial de “ouvir os sentimentos
que lhe surgiram como tão terríveis, tão desordenados, tão
anormais, tão vergonhosos, que ele nunca seria capaz de reconhecer
em si a sua existência.” (Rogers, 1985, pag 65).
Na décima consulta a sua verborreia parece começar a esgotarse, iniciando a sessão a querer um diagnóstico e uma forma de ser
tratado, quase como se sentisse que já tinha exposto tudo o
necessário para tal. Sente-se a repetir o mesmo, consulta após
consulta, mas ao mesmo tempo a faltar-lhe algo (se calhar o mais
importante) para que nós o pudéssemos compreender:
C – Mas, como é que me pode tratar?
P – Mas o que é que quer tratar?
C – A minha questão sexual, a questão de me sentir bem
entre dois homens. Também a questão da minha altura, que
quando vejo uma pessoa mais alta que eu, fico lixado. Mais...
há a questão de eu andar sempre nervoso, não sei, eu quero
ser medico, ajudar pessoas, mais.... Eu para a próxima vou
escrever tudo que quero falar com o sr. Dr. para depois não
chegar aqui e não saber o que dizer.
perturba o presente?
C – Sim, claro todos os traumas que tive.
P – O que é que quer dizer quando utiliza a palavra trauma?
C – Então, trauma é, uma lesão no organismo provocada
por um agente exterior
P – Decorou isso do...
C – do dicionário, sim mas não percebi o que quer dizer a
palavra agente, o que significa a palavra agente?
P – Agente exterior é alguma coisa, algum factor que seja
exterior a nós.”
Os agentes exteriores em relação aos quais começa a sentir-se
influenciado e dos quais procura afastar-se, caracterizam o processo
que engloba a terceira fase (incluindo desde a 11ª até à 15ª sessão).
A sociedade, a família passam a ser forças até agora desconhecidas,
que exercem poder de controlo sobre ele. Começa a conceberse como uma pessoa muito influenciável pelos outros e dependente
da opinião destes. Esta influência traduz-se muitas vezes em
exigências; que o fazem desesperar – diz. Na décima segunda
consulta, e apresentando novamente um humor depressivo, refere
“não ter capacidade”. E reafirma que não tem capacidade. Capacidade
para aguentar as pressões exigidas pelo outros, que sempre lhe
sugeriram – (a sociedade) que se casasse, que tivesse filhos, que
tirasse a carta de condução, que fosse para a tropa, que não andasse
tanto com homens, ... –, que lhe limitam a vida, e que agora o fazem
sentir “claustrofóbico”. Decide afastar-se e manifesta o desejo de
se tornar mais autónomo - não querer saber se lhe chamam “isto
ou aquilo” –, sentindo nas suas palavras como que um alívio, e um
certo prazer de se proclamar como um desistente, de poder dizer
que na boca dos outros ele agora poderá ser tudo, que já não
quer saber: a “liberdade condicional da identidade”8.
C – Estou conformado, não quero procurar mais emprego,
não tenho capacidade, não tenho CAPACIDADE. Prontos.
É assim, não há nada a fazer. Não tenho capacidade para
tirar a carta, para casar, não quero casar, não tenho capacidade
para ter um filho, uma família, não tenho capacidade. Pronto
sou assim da cabeça, e já não quero saber. Já tenho 36 anos
e agora já é tarde para fazer uma vida normal. Já sofri muito
Também nesta sessão aplica pela primeira vez a palavra “trauma”;
palavra que faz questão de aplicar ao definir a sua “marcada” vida:
P – Acha que não há mais nada a fazer?
C – Acho que não, o sr. Dr. não vai fazer a vida andar para
trás, pois não, pois não?
P – Isso não, mas sente que há muito na sua vida, que lhe
8 Expressão elaborada por nós, procurando com esta exprimir o pensamento
controverso da liberdade, reflectido no artigo de Andrade-Ribeiro (2000): dentro da
condição de humano (com todas as limitações genéticas e ambientais existentes) o
homem é livre na sua existência.
VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003
35
Caso Clínico / Clinical Case
38
e não quero estar com gente, não quero mais que eles falem
de mim. Que digam coisas, não quero saber. Pronto sou
assim, não há nada a fazer. As coisas que passei já ninguém
as pode tirar. Já não me importa que digam que sou
homossexual, que não faço as coisas direito porque agora
quero viver a minha vida.
P – Sente-se cansado com a exigência da sociedade e agora
apetece-lhe procurar paz, é isso?
C – Sim é isso, quero paz, paz, não quero mais que me
chateiem, quero viver a minha vida, tranquilamente, tratar
da minha casa, vir aqui á consulta enquanto o Sr. Dr. me
quiser, dar uns passeios pelo parque da cidade, e prontos
mais nada. Com a minha família não quero mais nada. Nada.
Não quero que ninguém me chateie.
P – Procura afastar-se das pessoas!?
C – Sim, a minha cabeça não dá para viver assim, não tenho
ninguém comigo. Mas agora também não quero. Não quero
mais nada com a minha família, não me quero dar com
colegas de trabalho, não quero mais nada.
P – Quer-se afastar de pessoas que lhe fazem mal, que não
o compreendem.
C – Sim é isso, a verdade é que não tenho ninguém comigo.
Estou sozinho, só tenho o Sr. Dr., que é meu amigo, que me
compreende e me aceita, de resto, como já disse não quero
confusões, quero levar a minha vida direitinha, sem
complicações sem nada. Se vou por um lado da rua e nesse
lado vão muitas pessoas eu vou para o outro lado.
P – Pensa que se sentirá melhor assim?
C – Sim, não adianta Sr. Dr. eu não consigo ser feliz.
Os seus olhos enchem-se de lágrimas.Toma consciência da limitação
da sua vida e isso põe-no outra vez num estado de humor deprimido.
Esta consciência leva-nos ao problema da discrepância entre as
aspirações e as limitações9 que M. sente acerca de si. A descoberta
de um passado angustiante como pertencente a si e como irremediável, a emergência de forças angustiantes, controladoras (não
só exteriores como interiores) que o fazem sentir preso, limitado
(em todo o processo, este talvez tenha sido o momento mais
doloroso para M.) e que por momentos lhe tenham desorganizado
9 Tema particularmente reflectido pelos existencialistas europeus (Maslow, 2000) a dupla natureza do Homem: o problema da brecha existente entre as aspirações e
as limitações do Homem, o problema da tomada de consciência da eterna insolubilidade
de alguns problemas.
VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003
um conceito de si omnipotente, controlador, quase sobre-humano,
que ele possuía para esconder um outro lado seu desvalorizado,
pessimista, negativista; transformam-no num ser mais frágil, com
menos ferramentas defensivas de enfrentar a realidade e mais
dependente do terapeuta. Neste estado de desorganização, ele
possivelmente procura refugiar-se numa solução mais confortável:
foge e procura o isolamento da sociedade. Esta tentativa de
isolamento poderá ser interpretada como mais uma defesa contra
a dor provocada pela nova realidade que ainda se mostra demasiado
ameaçadora: procura assim fugir dela para não a ter de enfrentar.
Este desejo de fugir - que M. leva ao extremo ao querer regredir
até ao estado de criança, está bem patente no excerto da décima
segunda sessão:
P – Vejo que está com grande mágoa do mundo.
C – Sim estou, isto dói muito.
P – Estou a sentir...
C – Não quero mais aturar as pessoas, não tenho capacidade,
não quero mais responsabilidades, queria voltar a ter 5, 4,
3 anos...
P – Queria voltar a ser criança.
C – Sim, sem responsabilidades. É que eu não me sinto com
responsabilidades, e agora não adianta, eu já sou velho demais,
já estou cheio de traumas, nunca tive uma mãe em condições,
nem um pai, já andei numa escola especial, já fui internado
no Magalhães Lemos, já vivi com um homem, e pronto agora
já não adianta já não há nada a fazer.
Nesta fase ele acentua o medo de perder o psicólogo (no futuro).
Medo do futuro é a problemática que agora domina as consultas
(décima terceira e décima quarta). Dizendo que agora não está
mal (embora não se considere bem), descobre um medo, uma
angústia10 de voltar a estar mal no futuro, e voltar a estar triste,
e voltar a ser agressivo. Na décima quinta consulta apercebe-se
que tem um modo de reagir às situações (embora admita que
estas assim desencadeiam) de forma impulsiva, e que todo o seu
comportamento é muito instável, sentindo-se mais uma vez
impotente para o controlar. Por isso, pergunta ao psicólogo se
10 “Do ponto de vista existencial a angustia aparece em relação com o sentimento
de ter sido lançado no mundo e sentir-se obrigado a fazer escolhas, nomeadamente
em relação às quais nem sempre se conhecem antecipadamente todas as consequências.
É essencialmente angustia que aparece diante da necessidade de escolher.” (Teixeira,
1997, p.195).
Caso Clínico / Clinical Case
poderá “ficar com ele” até aos sessenta anos.
Ao refazer o processo de consulta com o M., reparamos nos
conteúdos abordados até esta fase: estes começam a implicar mais
humildade – e se calhar sinceridade – do cliente e ao mesmo
tempo, eles são mais existenciais.11
O que queremos dizer é que nos parece que agora se discute
mais e a um nível mais profundo, problemas que dizem respeito
à sua vida, à sua existência; são as “ferramentas” da sua personalidade
que ele agora põe em causa. Já não são tanto problemas exteriores
que o afectam os abordados, mas mais os problemas respeitantes
a si mesmo, são os que são ele mesmo, e que começa a colocálos como a origem de toda a sua problemática, da sua incongruência
com o mundo e consigo.
De seguida, entramos no que classificamos como quarta fase
(englobando as consultas 16, 17 ,18, 19). Esta fase é caracterizada
pela percepção que cremos que M. adquiriu, de si como agente
activo da sua vida e na mudança da mesma. Sente-se mais patente
do que nunca a confusão, a ambiguidade interna de M. no que
respeita à sua vida e à condução dela. Da confusão emerge uma
pequena desconstrução das explicações místicas que possuía
(feitiços, venenos, etc.), e assume que existem conteúdos (problemas)
dos quais ele não encontra explicação, nem pressões para as
arranjar. Esta ambivalência resulta numa ambivalência de discurso,
dizendo por vezes que “sou eu que não me sinto capaz” (de viver
a vida como gostaria) (decima oitava consulta), mas contrapondo
logo, “E depois a vida que tive, o ambiente familiar que eu tive, não
ser ajudado, não ser compreendido, não ser criado como devia”
(decima oitava consulta). Nesta fase começa a expressar-se também
mais com o corpo, expressando-se por exemplo desta forma: “E
às vezes apetece-me arrebentar com tudo.Vrhhhhh (cerrando os
pulsos e os olhos, encurvando-se, contraindo os músculos da cara
e do resto do corpo) explodir.” (decima sétima sessão). Diz sentirse como que parado no tempo, parado no tempo a viver os
problemas dos outros:
P116 – Porque viveu...
C116 – Os problemas dos outros. Porque parei no tempo.
P117 – Parou no tempo?!
C117 – Exacto.
P118 – Explique-me o que é que quer dizer com isso?
C118 – Parar, quer dizer ficar assim parado, dizer assim...
estar à espera que apareça uma mulher, que tirem a carta
de condução por ti, ou tar a espera que trabalhem por mim,
ou estar a espera disto ou estar à espera daquilo.
Ter parado no tempo, e não se sentir a viver a sua vida de uma
forma autónoma, a ser o “autor” da sua narrativa de vida. Mas ao
mesmo tempo sente-se sozinho - agora de uma forma mais sentida
- porque apercebe-se que os outros, não podem fazer as coisas
por ele. Continua, por vezes a falar de doenças e do medo que
possui de as ter. Na décima sétima consulta, M. procura explicar
como eles surgem: “Vou começar a fazer uma corrida e desisto
da meta, e depois começo ufff uffff. O coração fica ufff ufff ufff ufff
uffff” (décima sétima consulta). Utilizando a metáfora de uma
corrida, ele procura explicar a sua constante desistência das coisas
e de como isso lhe afecta o corpo.
Na décima oitava consulta, fala pela primeira vez de como gostaria
que houvesse transplantes cerebrais, onde ele pudesse deitar o
seu cérebro fora, pois só encontra “desistência”, “incapacidade
para fazer coisas”, falta de fé: “Eu não tenho fé praticamente,
acredito em Deus quando quero. Porque eu não tenho fé nenhuma,
porque eu não acredito em nada. Posso ir a um vidente e tudo
isso mas não tenho fé. Porque eu ainda ando à procura de
transplantes. De uma vida, que não tive. De uma vida de tornar a
nascer e viver. É isso que eu quero uma vida dessas. Mas não existe
transplantes cerebrais. Eu era capaz de ir para uma operação, e
tirarem-me este cérebro e pôr outro. Mas não existe, isso é
impossível não é Sr. Dr.?” (decima oitava consulta).
Também nesta fase, por já avistar o fim do nosso trabalho no
centro de saúde, que inviabilizaria a continuação do acompanhamento, recomeçamos um processo de encaminhamento, tentadoo fazer aperceber-se que ele, necessitaria, e beneficiaria muito de
um acompanhamento psiquiátrico a par de uma psicoterapia
estruturada. Procura-se assim encaminhá-lo para uma instituição
psiquiátrica, com a crença que seria melhor acompanhado. Mais
adiante é justificada a necessidade de acompanhamento psiquiátrico.
Ao finalizar a consulta diz algo que nos parece que resume a
confusão, a percepção que M. tem de si, e da sua percepção acerca
da sua incongruência: “eu estou muito baralhado muito confuso,
muito magoado, existe rancores, ódios dentro de mim, e isso talvez
me afecte um bocadinho da minha vida lá fora. É não gostar daquilo
que sou e daquilo que sinto.”
4. Planos de evolução
11 Começamos assim a subscrever Maslow (2000) (na percepção prática) quando
este diz que os conteúdos expressos são cada vez mais existenciais, à medida que
o processo terapêutico evolui.
O caso contou com 20 sessões. No capítulo anterior resumimos
19; quedou-nos a última que resultou numa despedida. Não foi
programada, pelo menos conscientemente, em termos dos objectivos
VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003
39
Caso Clínico / Clinical Case
a que nos propúnhamos.
Mas perguntamo-nos: quais os objectivos a atingir? Será que haveria
objectivos, ou reorganizações no pensar e no sentir? A necessidade
de uma terapia profunda coloca-se num tempo em que o próprio
tempo é limitado e por isso impossível de se tornar profundo.
Rogers (1985) defende que num processo de relação de ajuda não
se devem propor objectivos mas mais estudar os pontos de
chegada. Não deixa de nos assustar a violência com que o processo
terminou, mas analisemos o conseguido.
Comparando as primeiras consultas com as últimas, quais as
diferenças? De um discurso confuso e superficial, omnipotente,
chegou-se a uma maior percepção dessa confusão? De uma
agressividade e impulsividade não conscientes, chegou-se a uma
capacidade de consciência desse descontrolo, que o faz ter medo
de si para si, como de si para os outros? Talvez também, se tenha
desenvolvido a capacidade de percepção da influência que os seus
comportamentos têm no seu mundo social. Mas como aspecto
principal, ele ter-se-á expressado relativamente ao facto de não
gostar daquilo que é, daquilo que sente e que talvez isso esteja na
origem dos seus problemas? Sabemos que o M. se “deu” em certos
momentos, sentimos que ele sentiu prazer por essa entrega,
daquele material que estava guardado para o mundo e se calhar
para ele. Aprendeu, por pouco que seja, a percepcionar o que
experienciava, a aprender que o que sentia com o corpo também
podia ser posto em palavras. Recorrendo às três fases terapêuticas
de Antunes (2000, p.95), tememos que ele possa ter ficado na
primeira, intitulada de Auto-Descoberta, “que se traduz por um
progressivo contacto consigo próprio, com as suas angústias, com
as suas emoções e com a dificuldade em se aceitar como é. Implica
não só a descoberta da incongruência entre a experiência e
conceito de si, mas também o contacto com os sentimentos até
então deformados ou negados”.
Mas de certa forma o conseguido foi o projectado. Sabíamos que
não poderiamos ter continuado com ele - por contingências do
local de trabalho e do tempo (já expostas anteriormente) -, o
nosso papel seria quase como que de uma preparação para uma
terapia mais profunda, quer a nível psicológico, quer a nível
farmacológico. Procuravamos, de uma forma mais ou menos
estruturada, que o cliente adquirisse uma maior percepção de si
e da sua incongruência. Percepção essa que lhe permitisse elaborar
de uma forma mais consciente e mais sentida (visto nós no início
o termos metaforizado, numa reflexão, como um “conjunto de
angústias por ordenar”) o pedido de ajuda, e desse modo quisesse,
por sua própria vontade - ao se percepcionar como agente
fundamental dos seus estados de saúde e de doença - recorrer a
uma psicoterapia mais profunda e estruturada - visto essa ser uma
ideia desde logo negada por ele. Tínhamos assim, consciência de
que o nosso papel seria então o de realizar quase uma espécie de
“pré-terapia”, que Pinto (1998) define como o processo, mais ou
menos longo, que possibilita ao “potencial” cliente a elaboração
do seu próprio pedido. A última consulta e prognóstico são
expostos de seguida.
A vigésima consulta, é iniciada por ele dizendo que esteve a pensar,
e que achava melhor não vir mais às consultas, pois já não andava
a fazer nada lá, achando, por isso, melhor desistir. Não andava lá
a fazer nada, porque o que ele queria era um transplante cerebral,
era ser outro e isso tinha-se apercebido que o psicólogo não o
poderia fazer, nem ninguém poderia fazê-lo. Nem mesmo ele
próprio poderia fazê-lo, pois não se achava com capacidade, nem
força para tal. Não iria procurar mais nenhum técnico porque não
acreditava que eles pudessem fazer alguma coisa, pois já os tinha
“corrido todos”. Mas também não iria procurar mais videntes
porque elas não o poderiam ajudar. Sabia que só poderia contar
com ele, mas ao mesmo tempo, sentia-se sem capacidade para tal.
Por isso não queria viver mas também não queria morrer, e sentiase vazio, sem crenças, sem nada.
Foi-se embora. Ficamos com a sensação de impotência entre as
mãos, mas ao mesmo tempo invadia-nos uma enorme frustração,
que nos fazia questionar M.: por ele ter desistido como sempre
desistiu (assunto abordado por ele na consulta dizendo
especificamente: “sim, desisto como sempre desisti”) - mas que
agora não deixa de nos parecer uma violenta não aceitação do
seu processo de crescimento.
Em que estado abandonou o acompanhamento? Pouco mais
poderiamos fazer, é certo, mas se calhar faltava o mais importante.
Saiu numa fase em que tinha abandonado parcialmente as defesas,
em que se sentia triste, e que por isso provavelmente mais frágil.
Sabiamos que nesta fase seria crucial não parar com o acompanhamento psicológico, para que não ocorresse uma regressão, que
na pior das hipóteses, devido à fragilidade em que se encontrava,
o faria adoptar defesas primitivas associadas a uma distorção da
realidade e do conceito de si (self) mais acentuada. Poderia ser
também que ele ao sentir-se desse modo, fosse “um motor” para
a procura de ajuda nos locais que sugerimos...
O seu “estar” no mundo
A avaliação ou análise compreensiva relativas a M., foram construídas
e aperfeiçoadas ao longo das vinte sessões. Não se recorreu a
nenhum meio auxiliar de diagnóstico, por se considerar que não
havia a necessidade de o fazer já que o conteúdo das sessões
continham em si, o necessário para a elaboração de uma compreensão do cliente e dispunham material para o desenrolar do
processo. Isto porque, por um lado, os referidos meios auxiliares
VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003
41
Caso Clínico / Clinical Case
42
de diagnóstico são encarados por nós como isto mesmo, ou seja,
como auxiliares no processo de confirmação de hipóteses, o que
neste caso específico se deu no decorrer das sessões. Por outro
lado, pensamos que a aplicação de testes ou instrumentos avaliativos
poderia demonstrar-se prejudicial para M. por diversas razões,
nomeadamente pelo facto de durante a sua vida ele sempre se ter
sentido avaliado, e dependente dessas avaliações.
Da sua estória, da sua relação com o psicólogo que o acompanhou,
ao longo das 20 sessões, retiremos o “sumo”.
Chega-nos com um pedido de ajuda para conseguir ter um filho.
Algo muito técnico, era só dizer-lhe o porquê de sonhar com
homens e o assunto estava resolvido. Foi directo ao assunto, pois
“percebia de psicologia”, provavelmente lia a mente, e por isso
sabia exactamente o que queria: nada que mexesse com as suas
frágeis explicações do mundo. E foi intimidando com as suas
certezas.
O mundo foi aparecendo mais complexo; afinal não só não conseguia
fazer um filho como também não sentia prazer com as mulheres
- só teve relações sexuais com uma mulher e “era como se
estivéssemos aqui a conversar” - disse a propósito dessa experiência.
Mas sentia-se bem entre os homens (nos autocarros escolhe
quando pode o lugar intermédio entre dois homens, sentindo-se
confortável, deste modo), (a sua mãe dizia-lhe que “mulheres devem
estar com as mulheres e os homens com os homens, sempre
frente a frente, pénis com pénis”). Também explica que esta quase
repulsa pelas mulheres será, provavelmente, devido ao facto de
ter vivido tempo demais com elas, e estas lhe terem causado
muitos “traumas” (trauma: “lesão causada por agente exterior”).
Esta problemática, que não deixa de ser ingénua, pois mobiliza-nos
para o período da formação da identidade sexual, que normalmente
se dá na adolescência, (Hoffman, Paris e Hall, 1996) é motivo de
grandes preocupações e angústias por parte de M.. Esta homofobia
internalizada é antiga, remonta a esses tempos da adolescência,
com todos os seus mitos implícitos, e com a sua mãe a ser muito
ignorante e a sociedade a falar demais - diz. Este medo, ao qual
outros se juntaram, insere-se numa forma de estar, que mais tarde
tentaremos analisar, porque fazem parte de um núcleo que dirige
a sua vida, que se insere no seu mecanismo base de funcionamento.
É um medo poderoso, no qual a pergunta é incapaz de se formulada:
ao pedir uma resposta, não oferece como alternativa o ser
homossexual, unicamente “normal” ou bissexual (este último já
não tão angustiante, como o ser homossexual). Coloca-se então
a questão, de como reflectir acerca da sua orientação sexual se
ele transforma o social em imperativos na sua personalidade e na
sua identidade e não se deixa questionar? A identidade sexual
poderá estar assim comprometida, por uma inclinação que terá
a sua origem social e que o afunda na confusão e na indefinição.
VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003
Mas existem também os medos de vir a contrair doenças. Este
temor, que em muitas das situações nos parece pouco realista, e
que por isso (por ser constituído por um medo intenso mas pouco
realista de vir a contrair doenças) se pode designar por uma
“preocupação hipocondríaca” segundo Valdés (1998a), terá sido
provavelmente a problemática mais abordada nas consultas. A sua
recorrência na consulta - visto ela, na maior parte dos casos ser
introduzida em forma de pergunta ao psicólogo, em questões
concretas, muitas vezes de carácter médico, e por isso objectivas
e inertes do ponto de vista emocional -, pareceu-nos inicialmente
poder-se relacionar com duas razões distintas. Poderia então ter
a função de defesa contra o apelo que a relação faz ao favorecimento
da expressão de sentimentos e consequentemente da expressão
de angústias (já que desse modo cortava a conversa, e “atacava”
o psicólogo - ao formular uma questão que sabia que ele não lhe
iria responder). Mas por outro lado, fomo-nos apercebendo que
este tema, constitui uma verdadeira problemática para o M.; é algo
que está presente em muitas das suas acções do seu dia a dia e
onde há um forte investimento cognitivo, e obviamente (embora
isso não consiga ser tão óbvio), emocional também – o que de
certa forma se relaciona, segundo Matos (2002), com o acting-in
da patologia psicossomática. São pensamentos irracionais para os
quais ele não consegue encontrar explicação: vêm-lhe “à cabeça”
e angustia-se.
Possui muito medo do futuro também. Angustia-se com a incerteza
da vida e por vezes desespera: que será quando tiver 60 anos? Terá
casa, terá emprego?
Ainda em relação a medos, eles são no M. por vezes mais gerais,
e que se traduzem na sua relação com a sociedade e com o mundo.
Tem muito medo que as pessoas lhe façam mal, que lhe façam
feitiços – e que se aproximam do que Abreu (1997) chama de
crenças erróneas, de tipo persecutório12, ao associar esses feitiços
à sua infância e assim tentar explicar o que não encontra explicação
e isso lhe causar angustia: o porquê de ter andado numa escola
especial, etc.. Começou a aperceber-se que tem assim medo não
só do exterior, da sua realidade, como também do interior (do
próprio corpo e da sua mente).Toda a sua existência está povoada
de medo, de angústia, que o transforma num personagem vulnerável
não só para si, como para os “agentes exteriores”.
12 Crenças, segundo este autor, são ideias mais próximas dos sentimentos, ligadas
à nossa relação com o mundo e connosco próprios, e geralmente dirigidas ao futuro
ou ao passado longínquos. Exercem um papel importante na estruturação da vida,
suportam-nos e tornam-se necessárias. Persecutório porque envolve um tema
persecutório.
Caso Clínico / Clinical Case
Este “mal-estar” interior, que ele depois diz transformar-se em
preocupações e medos, é definido por ele como não tendo
explicação directa fazendo-o sentir-se confuso e diferente dos
outros.
Outra das formas que o M. utiliza para se relacionar com o mundo,
será aquela conduta motivada pelo sentimento de posse no
abstracto. O sentimento de omnipotência, de controlo talvez.
Assimilar as características dos outros e ser como eles e assim
não ter de entrar em incongruência consigo e com o seu corpo.
Este modo de viver, povoado de angústia, de uma insegurança
sempre inerente tanto de si para os outros, como de si para si,
influencia e é influenciado, provavelmente a que os seus comportamentos dependam da opinião dos outros e principalmente do
agrado dos outros. O seu bem estar não depende de si e por isso
procura a opinião dos outros, para os assumir, para os adoptar e
assim fugir à angústia do desamparo - tenta-se explicar assim a
sua necessidade de arrancar opiniões com as suas constantes
perguntas e também a relação de dependência e de tentativa
constante de identificação que cremos ter assumido com o seu
psicólogo. Qualquer contradição poderá ser explicada por traumas
criados por agentes exteriores.
Este seu conceito de self (Self-concept13) demasiado dependente
das avaliações dos outros, não o deixa assumir e viver as necessidades
do organismo; rigidifica e defende-se, quer negando, quer atacando,
quer talvez seduzindo (comprando) ou idealizando (mais à frente
explorado). Esta rigidificação, traduz-se numa negação ou distorção
da experiência (aquela que se apresenta como ameaçadora para
o conceito de Self) (Rogers e Kinget, 1975), pois o seu self-concept,
dependente da opiniões dos outros para manter a consideração
positiva do self (positive self-regard14), não tolera a autonomia e
deixa pouco espaço para experiências novas - daí talvez os seus
medos constantes. Mas esta busca de opiniões dos outros, parecenos que não explica completamente o seu comportamento, pois
ao contrário de um modo de estar tipicamente neurótico (Swildens,
1990); M. parece-nos não ter um conceito de si coeso, estável. Ou
13 Para Rogers, o Self Concept pode ser visto “como uma configuração organizada
de percepções do Self. É composto por elementos tais como as percepções das capacidades e características de um indivíduo; o objecto de percepção e conceito de self
relativamente aos outros e meio ambiente; as qualidades valorativas que são percepcionadas como associadas a experiências e objectos; e os objectivos ideais que são percepcionados como possuindo valência positiva ou negativa” (Rogers, in Antunes, 2000).
14 Segundo Rogers (Rogers e Kinget, 1975), todo o ser humano possui uma necessidade de obter considerações positivas dos outros. Considerações essas, que por vezes
demonstram serem mais fortes na determinação do comportamento que a necessidade
do organismo.
seja, ele não se encontra “eficazmente” rigidificado, protegido ao
fazer depender, a sua conduta, das opiniões dos outros, não
conseguindo, por isto, satisfazer a sua necessidade de autoconsideração positiva (positive self regard). Ele possui um sentimento
de “vazio” (palavra proferida por ele), não se conseguindo compensar
totalmente com as avaliações dos outros (porque nunca as teve
provavelmente, de uma forma estável, não ambivalente) e assim
não conseguindo esconder o sentimento de inferioridade que
possui, encontrando-se num estado permanente de desconfiança.
Ou seja, parece-nos que, por um lado, ele necessita dessas opiniões
para compensar o seu fraco auto-conceito, mas por outro, não as
consegue adoptar totalmente, defendendo-se delas. Sente-se então
vazio, em desespero de procura de uma identidade (explicado mais
à frente) porque esta (a identidade) aparece sob a forma de mosaico
(Matos, 2002), de diversas formas e por isso difusa. Para colmatar
este vazio, este negativismo, ele concebe-se (conceito de Self)
simultaneamente numa “megalomania”, onde se apresenta como
vidente, bruxo e parecido com S. Francisco de Assis; assumindo
esse papel e tentando colocar-se acima do mundo que o rodeia
e escamotear o presente com a sua nova imagem. Possui assim
uma falta de estrutura no seu conceito do Self – resultando este
em ambivalente, não coeso e pouco protegido (Swildens, 1990)–,
e uma inconsistência e inconstância de actuação social (mudando
muitas vezes de emprego, de interacção social nomeadamente na
variedade de grandes amigos que teve e que depois se zangou),
onde o caso de mais relevo será a sua instabilidade afectiva, que
resulta de facto numa difusão da identidade – “tem aqui, nesta
dificuldade de persistir nos investimentos, uma das suas mais
importantes raízes” (Matos, 2002, p.412) – e numa imprevisibilidade
no futuro – mostrando medo de voltar a estar agressivo amanhã.
Por isso ele apresenta um padrão impulsivo, pois não consegue
projectar para o futuro uma estabilidade. Aliás o aspecto da
instabilidade afectiva, é de facto um aspecto da sua personalidade,
que se tem mantido relativamente estável: os amigos que teve, as
pessoas com quem contactou, de alguma forma as deixou porque
ficou magoado com elas, elas fizeram-lhe mal ou traíram a sua
amizade, com a introdução de outra pessoa significativa para ela.
Recorrendo a Swildens (1990) parece que o seu Self está em
guerra, mas a frente de batalha não está bem definida, logo o
inimigo está em todo o lado. Na sua luta - que chamamos no início
de “jogo”, antes do conhecimento desta metáfora - é necessário
um estado permanente de alerta, e desconfiança, onde perante
qualquer mínima tentativa de exploração da sua personalidade,
sentindo em risco o seu frágil self concept, ele se retraia, negue,
distorça, idealize ou projecte a realidade (Swildens,1990) - defesas
à integridade do seu conceito de Self. Neste estado de alerta
permanente, não tolera a frustração e “ataca o inimigo” (que
VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003
43
Caso Clínico / Clinical Case
44
poderá ser o psicólogo). Porque nesta realidade ameaçadora e
insuportável, torna-se necessário clivar os “inimigos” dos “aliados”.
Não podendo viver com o perigo constante, ele designa os bons,
idealizando-os, e “santificando-os” (palavra utilizada para adjectivar
o psicólogo), e os maus, objectos causadores dos seus traumas (a
irmã, os policias, etc.). Move-se assim para sobreviver e não para
se auto-realizar, porque como refere Maslow (2000) “as necessidades
de segurança são mais poderosas que as de desenvolvimento”
(p.79) sendo, aliás, um requisito prévio da primeira, porque se trata
de uma necessidade básica (Maslow, 2000) que lhe traz medo e
que não o deixa avançar para “estados de maior complexidade”
(p.71) e “onde possa retirar prazer das novas experiências” (p.71).
O que nos remete para outra das suas problemáticas, a sua
constante incapacidade de realização que dependendo do estado
de humor o leva a reagir de maneira diferente, ora numa perspectiva
de desistência, ora numa perspectiva de tentativa de alcance: “Era
como se houvesse um muro que estivesse sempre à minha frente,
e eu a tentar alcança-lo e ele sempre à frente” – diz ele a certa
altura do processo. Esta permanente insatisfação, causa-lhe por
vezes desespero (angústia mais uma vez). Este afastamento de um
ideal (ideal do self15) em relação ao conceito que tem de si (self
concept), também ele irreal, leva a que não consiga viver a sua vida
de uma forma satisfatória (Roger e Kinget, 1975) pois encontrase permanentemente numa procura: a procura da aceitação - os
outros mais uma vez. O M. não consegue viver com a crítica do
exterior que depois interioriza, negativizando o seu self concept
e afastando-o do “ideal do self” (que ao estar inserido noutra
realidade se afasta igualmente).
Mas esta negatividade do conceito do Self que M. possui, associada
com a fragilidade do mesmo, faz também com que ele não possua
nenhum Self trust (Bohart, 1990), ou seja, que não acredite na sua
habilidade de responder às demandas sociais de uma forma assertiva
(Bohart, 1990). Talvez, também por isso, ele diga que não tem
capacidade, que sinta que o que o social lhe pede, requer uma
responsabilidade que ele não possui, e se sinta a desistir, recorrendo
à externalização para guiar e responsabilizar a sua vida.
Este self concept, para se desenvolver positivamente necessita, ao
longo do desenvolvimento de positive self regard (Rogers e Kinget,
1975), (que o M. não sentiu seguramente quando lhe chamavam
de “maricas”, “paneleiro”, e “mongolóide”). Assim, provavelmente
se define a incongruência do M.
15 O ideal do Self, refere-se “ao conjunto das características que o indivíduo desejaria
poder reclamar como descritivas de si mesmo” (Rogers e Kinget, 1975, p.165)
VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003
Sintetizando, M. possui, assim, uma ansiedade que caracteriza a sua
conduta. Segundo Ruiloba (1998), esta angústia quase permanente
dos medos, das preocupações hipocondríacas, da incerteza do
futuro; a não aceitação de si, a posse de um sentimento de
inferioridade e a permanente insatisfação pela não realização dos
seus desejos internos (organísmicos) por uma imposição e estrutura
social; a insegurança do seu ser a traduzir-se na pouca naturalidade
de interacção - a rigidez que diz sentir - definiriam um modo
específico de estar no mundo. Personalidade a que Swildens (1990)
acrescentaria a insatisfação do conceito que tem de si, que o faz
procurar um ideal sempre mais longínquo, como a necessidade
das considerações positivas dos outros para a manutenção da sua
auto-consideração positiva. O modo de relação de aceitação e de
aproximação que ele realizava relativamente a certa pessoas
(inclusivé ao psicólogo), à custa de uma idealização destas, e o
ignorar dos aspectos que não lhe agradavam, aspectos estes talvez
colocados, muitas vezes, quer noutras pessoas, quer nele próprio,
segundo Matos (2002) seria também um aspecto a ter em conta
na definição desta personalidade. Estes critérios agrupados, seriam
os necessários para que eu o associasse a uma personalidade
neurótica, enquanto o “seu modo de estar no mundo”.
Mas como já foi referido anteriormente, o M. para além destas
características, possui também, referenciando-nos a Valdês (1998b),
uma incapacidade de se adaptar de uma forma satisfatória às
normas sociais e às relações interpessoais. Possuí uma solidão
bastante marcada, bem como uma incapacidade de manter um
emprego fixo; tal como me disse, as pessoas acham-no “estranho”,
tem problemas com a justiça, e zanga-se facilmente. Caracterizase, ainda, e retirando de Swildens (1990), uma grande impulsividade
e uma forma exageradamente agressiva de responder a certas
realidades. Todos estas características, associadas com o modo de
se relacionar com o psicólogo, que implicou um uso da manipulação,
uma idealização deste (a relação estabelecida construiu-se de uma
forma intensa, alternando ataques, com bajulação ou desespero
do desamparo, constituiu-se de opostos, de tudo ou nada), assim
como a relação que ele mantém com o mundo (dos objectos) ambitendente - onde um dos lados possui características neuróticas
(parte psiconeurótica), mas a outra que se caracteriza, por “uma
relação de rejeição – perseguição, em que o objecto é sentido
como rejeitante e/ou persecutório” (Matos, 2002, p.361), resultam
numa porção tipicamente psicótica. Ao tentar estabelecer uma
organização da sua personalidade, ao tentar defini-lo nesta sua
ambiguidade, encontramo-nos nas franjas de duas estruturas
nosológicas clássicas: a neurose e a psicose. Possui assim um “estar
no mundo” com ferramentas neuróticas e psicóticas, ferramentas
essas, que englobadas poderão definir uma outra personalidade
(acima exposto por Ruiloba (1998),Valdês (1998b), Matos (2002),
Caso Clínico / Clinical Case
Swildens (1990) e Bohart (1990)). Recorremos então à designação
de “estado limite” (Matos, 2002) (designando algo que se encontra
na fronteira), ou personalidade borderline para enquadrar o M. e
a sua personalidade. A psicose “major” (visto alguns autores
caracterizarem esta organização limite como uma psicose menor
(Matos, 2002)), distingue-se da personalidade borderline, porque
esta última, segundo Matos (2002), “mantém o investimento no
mundo exterior - continua a interessar-se pelas pessoas em geral,
as coisas do mundo e a vida.” (p.412), caracterizando-se, ainda, por
um desinvestimento (afectivo) circunstancial perante a realidade,
dirigindo-se a uma pessoa ou a um conjunto restrito de pessoas,
a uma situação ou a um número restrito de situações (e não ao
resto do universo como acontece no desinvestimento psicótico).
Percebe-se, com o exposto, porque associo, então, M. a uma
personalidade de tipo borderline.
A estória acaba. A dor mais significativa “escorreu-nos por entre
os dedos” restando unicamente uma sedução que mostra as
escamas mais externas do que tínhamos para contar. Encontramos
verdades (porque também a linguagem não nos permitiu maior
complexidade), e daí talvez esta sensação de contradição, de anti
fluido, da não existência. Porque sentimo-nos no dever de reafirmar
nesta parte final, que para além de toda a teorização realizada, a
terapia, formou-se como uma “co-construção de conhecimento”
(Schimd, 2002), contrariando por isso a designação de “expertism”
atribuída ao terapeuta, em que a sua descrição se situa exactamente
na habilidade de resistir à tentação de actuar/comportar, como
um tradicional “expert” (que classicamente se designava como
conhecedor dos problemas dos outros - mesmo contra os desejos
do cliente), que resolve os problemas com a ajuda de técnicas em
vez de os perspectivar enquanto pessoas (Schimd, 2002). No M.,
mais do que uma preocupação com a rotulação da sua personalidade,
que para nós que nos sentimos imersos no seu processo de
desenvolvimento nos aparece teórica, superficial, e como já foi
referido, inexistente do ponto de vista do relacionamento
estabelecido com o psicólogo, a centralidade colocou-se no “way
of being with the client”, no modo particular de resposta ao sofrimento
daquele “ser” (procurando não o problema, mas a pessoa como
um ser global), nas atitudes do terapeuta e no modo de relacionamento, que proporcionariam a melhor realidade para que
potencialidade se tornasse actualidade.
Terminamos assim com uma citação de Rogers (1980):
“Person-Centered Psycotherapy is the practice of an image of the
human being witch understand the human being as a person and
thus encounters him or her personally acknowledging him or her as
the other instead of objectifying him or her by trying to know him or
her, to get knowledge.”
BIBLIOGRAFIA
Abreu, J .L. P.(1997). Introdução à Psicopatologia Compreensiva. 2ª edição. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian.
Abreu, J. L. P (2000). O Tempo Aprisionado Ensaios não Espiritualistas sobre o Espírito
Humano. Coimbra: Quarteto Editora.
Andrade-Ribeiro, J. (2000). Psychotherapeutic process: autopoiethic perspective. In
J. Marques-Teixeira e S. Antunes, (Eds), Client Centered and Experiential Psychotherapy.
Lisboa:Vale & Vale editores, Lda.
Antunes, S. (2000). Self Concept and Client-Centered Therapy. In J. Marques-Teixeira
e S. Antunes, (Eds), Client Centered and Experiential Psychotherapy. Lisboa: Vale & Vale
editores, Lda.
Bohart, A. e Hills, D. (1990). A cognitive Client-Centered Perspective on Borderline
Personality Development. In G. Lieter, J. Rombauts and R. Van Ballen, (Eds.), ClientCentered and Experiental Psychotherapy in the Nineties. Leuven: Leuven University Press.
Camus, A. (2002). O Mito de Sísifo Ensaio sobre o absurdo. Lisboa: Livros do Brasil.
Hoffman, L., Paris, S. e Hall, E. (1996). Psicología del Desarrollo Hoy. Vol.2. 6ª edição.
Madrid: McGraw-Hill.
Kircher, T., Torres, M. e Forns, M. (1996). Aportaciones Conceptuales y Metodológicas a
la Evaluación Psicológica. Barcelona: Copy-Grácia.
Maslow, A. (2000). El Hombre Autorrealizado, 13ª edición. Barcelona: Kairós.
Marques-Teixeira (2000). Psychopathology and Client-Centered Therapy. In J. MarquesTeixeira e S. Antunes, (Eds), Client Centered and Experiential Psychotherapy. Lisboa:Vale
& Vale editores, Lda.
Matos, A. C. (2002). O Desespero. Lisboa: Climepsi Editores.
Mora, J. F. (1974). Dicionário de Filosofia. Lisboa: Dom Quixote.
Pinto, A. C. (1998). A experiência do Psicólogo num Centro de Saúde: uma abordagem
Centrada na Pessoa. A Pessoa como Centro, 1 (I): 59-63.
Rodrigues, C., Teixeira, M. e Gomes, F. (1989). Afectividade. Porto: Contraponto.
Rogers, C. R. (1974a). Psicoterapia e Consulta Psicológica. Lisboa: Morais Editores.
Rogers, C. R. (1980). Client-centered-psychotherapy. In H. I. Kaplan, B. J. Sadock and
A. M. Freedman, (Eds.) Comprehensive Textbook of Psychiatry, III. Baltimore, MD:Williams
and Wilkins.
Rogers, C. R. e Kinget, G. M. (1975). Psicoterapia e Relações Humanas Vol I. Belo
Horizonte: Interlivros.
Rogers, C. R. (1985). Tornar-se Pessoa. 7ª edição. Lisboa: Morais Editores.
Ruiloba, J. V. (1998). Neurosis: generalidades. In J. V. Ruiloba (ed). Introduccion a la
Psicopatologia y la Psiquiatria. 4ª edición. Barcelona: Masson.
Schmid, P. F. (2002).The Necessary and Sufficient Conditions of Being Person-Centered:
On Identity, Integrity, Integration and Differentiation of the Paradigm. In J. C. Watson,
R. N. Goldman and M. S. Warner, (Eds). Client-Centered and Experiential Psychotherapy
in the 21st Century: Advances in theory, research and practice. Ross-on-Wye: PCCS Books.
Swildens, H. (1990). Client-Centered Psychotherapy for Patients with Boderline
Symptoms. In G. Lieter, J. Rombauts and R. Van Ballen, (Eds.), Client-Centered and
Experiental Psychotherapy in the Nineties. Leuven: Leuven University Press.
Teixeira, J. A. C. (1997). Introdução às abordagens fenomenológica e existencial em
psicopatologia (II): as abordagens existenciais. Análise Psicológica, 2 (XV): 195-205.
Valdês, M. (1998a). Otros transtornos neuróticos y psicosomáticos. In J. V. Ruiloba
(Ed). Introduccion a la Psicopatologia y la Psiquiatria. 4ª edición. Barcelona: Masson.
Valdés, M. (1998b). Transtornos de personalidad. In J. V. Ruiloba (Ed). Introduccion a la
Psicopatologia y la Psiquiatria. 4ª edición. Barcelona: Masson.
VOLUME V Nº4 JULHO/AGOSTO 2003
45

Documentos relacionados