O outro lado do “espelho”

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O outro lado do “espelho”
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Fotojornalismo
Fotojornalismo
O outro lado do “espelho”
No ano em que bateu o recorde de candidaturas, o 8º Prémio de Fotojornalismo Visão/BES, voltou a
reunir um júri de “peso”. Jean-François Leroy, Yuri Koyzirev, Philipe Blenkinsop, Susan Smith e Nöel
Quidu parecem não ter tido grande dificuldade em chegar a um consenso relativamente à foto
vencedora, da autoria de Augusto Brázio. Uma imagem tocante, classificaram, em consonância com
uma das ideias mais fortes que nos deixaram durante a conferência sobre fotojornalismo, realizada
no Museu da Electricidade: é preciso humanizar a informação, conduzir o leitor para além do que os
olhos vêem.
Por Maria José Mata
e Marisa Torres da Silva
É preciso humanizar
a informação,
conduzir o leitor para
além do que os olhos
vêem.
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«O fotojornalismo está bem e
recomenda-se. Quando vemos o
trabalho fantástico que o Yuri Kozyrev
está a fazer no Iraque, percebemos isso.
A crise está nas revistas, porque querem
comprar retratos, por exemplo, do Brad
Pitt, da Angelina Jolie ou de jogadores
de futebol. A imprensa é que está
doente, não o fotojornalismo.» A
eloquência é uma característica do
discurso de Jean-François Leroy,
presidente do júri do Prémio Visão/Bes
de Fotojornalismo. Esta frase foi
proferida numa breve conversa com a
JJ, poucos minutos depois da
conferência sobre fotojornalismo que
encerrou a oitava edição deste prémio,
e dá conta da sua recusa em aceitar a
ideia de uma crise disseminada no
meio. «O fotojornalismo estará morto
quando deixar de conseguir de
organizar o “Visa”. Mas, todos os anos,
recebo 10 mil fotografias e funciona.»,
asserta. O «Visa Pour L’Image» é um dos
festivais de fotojornalismo mais
prestigiados em todo o mundo, onde
oitenta por cento das imagens
apresentadas a concurso nunca foram
publicadas. Leroy, director-geral do
evento, assume essa opção:
«Geralmente, todas as histórias sobre
gente feliz são publicadas, porque as
revistas não se interessam com o
sofrimento, a morte ou a fome. Por
isso, criei o “Visa”, para mostrar o tipo
de imagens que não são mostradas,
fotografias jornalísticas na verdadeira
acepção da palavra.»
Imagens como as que Philip
Blenkinsop, então freelancer, fez, em
2003, no Laos, e que momentos antes
tinham colado o olhar da assistência aos
ecrãs espalhados pelo espaço onde
decorreu a conferência, no Museu da
Electricidade. Essas fotografias, embora
premiadas internacionalmente (prémios
Aministia Internacional para
Fotojornalismo, World Press Photo e
Visa Pour L’image), nunca chegaram a
ser publicadas pelas revistas norteamericanas. «Não querer ver é
repugnante», qualificou o fotógrafo. A
sua eventual publicação em livro é uma
possibilidade em aberto, mas, a
concretizar-se, o próprio Blenkinsop
confessou que «não irá ajudar aquelas
pessoas, será mais uma espécie de
obituário glorificado». O trabalho feito
no Laos é composto por imagens
fortíssimas de uma guerra pela
sobrevivência, travada pelo Hmong,
um grupo de veteranos combatentes
que lutou ao lado dos Estados Unidos
durante a Guerra do Vietname e que,
posteriormente, foi abandonado à sua
própria sorte. Mais do que
denunciadoras de uma indignidade,
são um convite ao testemunho
responsável e comprometido com a
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situação mostrada. É impossível ser-lhes
indiferente.
Esse convite é extensivo às imagens
dos conflitos na Libéria (2003) e no Haiti
(2004), captadas pela lente de Noël
Quidu, da agência Gamma, ou ainda às
fotografias do antes e depois da recente
guerra do Iraque, da autoria de Yuri
Kozyrev, membro da Noor, também
mostradas ao público presente na
conferência. Sofrimento, horror e morte
são os condimentos inevitáveis a partir
dos quais cada fotógrafo constrói a sua
narrativa sobre os acontecimentos.
Por cada história mostrada há várias,
ocultas, que a sustentam. Perante
situações limite, no terreno, nem
sempre é fácil estabelecer fronteiras
entre “o que” e “quando” fotografar ou
não. Para Philip Blenkinsop, «a primeira
responsabilidade é humanística».
Momentos há em que se pode e intervir
nas situações, ajudar alguém, e nessas
alturas deve deixar-se a câmara de lado.
Mas também há outros em que,
acrescentou, «sabemos que não
podemos fazer nada, e então aí
devemos fazer a foto pois ela vai, pelo
menos, servir como prova do que
aconteceu». Para quem fotografa, há
ainda outro desafio: «salvar a própria
vida e ao mesmo tempo tirar a
fotografia», lembrou Nöel Quidu.
NÃO AO “RETRATISMO”
«Muitas pessoas estão apenas a fazer
retratos e pensam que são jornalistas.
Não, não são», afirmou taxativamente
Jean-François Leroy à JJ, manifestandose contra aquela que considera ser uma
tendência actual da fotografia
jornalística.
A fotografia vencedora do Prémio
Visão/BES deste ano foge,
precisamente, a essa tendência. O seu
autor, Augusto Brázio, freelancer e
membro da agência Kameraphoto,
retrata uma jovem de 19 anos, que
acabava de dar à luz o seu terceiro
filho, em casa, quando foi assistida pelo
INEM. A imagem é, nas palavras do
Presidente do júri, «extremamente
tocante. Quando olho para a imagem,
não quero saber o nome da mulher e o
que ela está a fazer, mas quero saber se
o bebé está bem, se sobreviveu, se foi
vítima de um acidente, de uma bomba,
de uma tragédia…».
Esta capacidade de interrogar os
factos e de mobilizar o espectador para
o que está para além do que olhos
captam é um dos desafios do
fotojornalismo. Num mundo
permanentemente inundado por
imagens, nem sempre é fácil. O
caminho, apontou Philip Blenkinsop, é
«humanizar a informação». Criar
mecanismos de identificação, dando a
conhecer quem são as pessoas por
detrás dos acontecimentos, acredita,
ajuda a «fazer com que os outros
percebam que elas são seres humanos,
iguais a nós». Há histórias difíceis de
vender mas, como observou Leroy, o
objectivo primordial dos fotógrafos não
Jean-François Leroy,
presidente do júri
do Prémio Visão/Bes
de Fotojornalismo
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Fotojornalismo
é ganhar dinheiro, eles querem,
sobretudo, testemunhar o mundo e
contribuir para o testemunho futuro.
«Este métier é muito difícil.
Conseguimos manter-nos por convicção
profunda», assinalou Quidu. Alguns
dos fotógrafos anualmente distinguidos
com os mais prestigiados prémios de
fotojornalismo a nível mundial são
VENCEDORES DO 8º PRÉMIO VISÃO/BES
DE FOTOJORNALISMO
GRANDE PRÉMIO
Augusto Brázio (freelancer/Kameraphoto)
CATEGORIAS
Notícias
Augusto Brázio, freelancer
Menções honrosas
Hernâni Pereira, Diário de Notícias
Mário Proença, World Picture News
Pedro Correia, Jornal de Notícias.
Reportagem do Quotidiano
Rodrigo Cabrita, Diário de Notícias,
Menções honrosas
João Carvalho Pina, Kameraphoto e
Paulo Duarte, ½ de Formato.
Reportagem Noticiosa
João Carvalho Pina, Kameraphoto,
Menção honrosa
Gonçalo Lobo Pinheiro, freelancer
Vida Quotidiana
Bruno Simões Castanheira, Jornal de Notícias,
Menções honrosas
Artur Vaz Oliveira e Paulo Maria , ambos freelancer
Retrato
Vasco Neves, Diário de Notícias
Menções Honrosas
Daniel Rocha e Enric Vives-Rubio, ambos Público.
Espectáculo
Nacho Doce, Reuters
Menções honrosas
Ângela Mendes Ferreira e Filipe Paiva, ambos freelancer.
Desporto
Nicolas Asfouri, France Presse
Menções honrosas
António Pedro Santos, Sol
Luís Efigénio, freelancer
Natureza
Eduardo Barrento, freelancer
Menções honrosas
Alfredo Cunha, Jornal de Notícias
José Luís Pereira Jorge, freelancer.
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freelancer. O estatuto de independência
tem um preço, recordado por
Blenkinsop, que desde o ano passado
integra a Noor, uma nova agência, de
que é co-fundador. «Ser freelancer não é
fácil, mas nunca vendam a vossa
integridade! Façam a história que vos
pedem, mas façam-na à vossa
maneira.», aconselhou aos profissionais
presentes na assistência. A união pode
fazer a força e as agências, consentiu,
podem ser uma boa ajuda, sobretudo se
forem constituídas por um bom grupo
de profissionais, que se movam em
função dos mesmos objectivos.
No meio das dificuldades e desafios
debatidos ao longo da tarde, nesta
conferência, o cenário descrito por
Susan Smith, directora-adjunta da
National Geographic, acabou por
destoar pela positiva. Ao mostrar
alguns dos trabalhos publicados na
revista, Susan Smith realçou as
excepcionais condições de trabalho
proporcionadas aos fotógrafos: um ano
ou mais de presença no terreno,
nalguns casos com direito a um
assistente. Confrontada com a beleza
das imagens produzidas, fez questão de
frisar que o mais importante é criar
uma narrativa, contar uma história:
«não procuramos fotografias bonitas;
interessa-nos sobretudo o
comportamento, as atitudes dos
animais fotografados, as surpresas».
A National Geographic situa-se num
nicho de mercado, nem por isso menos
apelativo para os profissionais da
imagem. Interpelada por um dos
presentes sobre a abertura a novos
talentos, Susan Smith admitiu que,
neste momento, «não há espaço para
novos fotógrafos», mas está sempre à
procura de um novo olhar. No fundo,
aquilo que valoriza qualquer fotógrafo,
seja em que categoria for.
Habitualmente tida como um espaço
de diálogo e discussão aberta entre
profissionais e aspirantes, a conferência
sobre fotojornalismo que encerrou o
Prémio de Fotojornalismo Visão/BES
deste ano revelou-se, sobretudo, um
espaço onde as imagens “falaram” mais
do que as palavras, convidando o olhar
dos presentes a ver para lá do “espelho”
do(s) mundo(s) nelas captado(s). JJ
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Entrevista
Philip Blenkinsop à JJ
«O fotojornalismo não perdeu a alma,
mas são tempos perigosos»
Tem 43 anos, é inglês, mas desde cedo foi viver para a Austrália, o que lhe permite, hoje, ter dupla
nacionalidade e dois passaportes, que usa consoante a vontade. Desconhecemos qual deles escolheu
para esta viagem desde a Tailândia - onde reside há duas décadas - até Portugal, aonde se deslocou
para integrar o júri da oitava edição do Prémio de Fotojornalismo Visão/BES. Nesta entrevista à JJ, um
dos mais prestigiados e premiados fotógrafos da actualidade, que tem seguido de perto os
acontecimentos mais relevantes do continente asiático, revela-se um ser humano sensível e um
profissional comprometido. Apesar da violência física e psíquica dos momentos que já fotografou, Philp
Blenkinsop mantém a capacidade de se emocionar com as situações e as pessoas. Nas montanhas de
Timor, viveu uma das suas experiências mais marcantes, aqui recordada na primeira pessoa.
Maria José Mata
e Marisa Torres da Silva
Integrou o júri do 8º Prémio de Fotojornalismo Visão/BES. Qual é a
importância deste tipo de galardões?
O que se ganha e quem ganha?
Acho que são muito importantes.
Uma competição tão bem organizada
e competente como esta pode ajudar
a dar a conhecer alguns dos melhores
trabalhos, mais inteligentes, que
tentam ir mais longe. E é sempre bom
ter um pouco de reconhecimento ao
nosso trabalho, para tirar a dor ao
que fazemos. Porque não? É um
prémio com um montante
considerável, que pode permitir às
pessoas fazer “estórias” que de outra
forma não poderiam contar, por não
terem recursos disponíveis. Acho que
é uma óptima iniciativa, que poderia
eventualmente ser complementada
com workshops e outras coisas do
género.
Afirmou algures que não se considera
fotojornalista, embora tenha
começado a sua carreira num jornal
australiano. Prefere considerar-se,
simplesmente, fotógrafo?
Sim, há demasiadas pessoas se
apelidam fotojornalistas… Não é
que eu não me veja como
fotojornalista, mas a palavra perdeu
a sua força. É apenas um termo,
faço o que faço, podem chamar-me
fotojornalista se quiserem, mas eu
prefiro não usar a palavra em
relação a mim mesmo. Conheço
muita gente que diz “sou
fotojornalista” e depois descobrimos
que a maior parte do seu trabalho é
fotografar os bastidores de uma
rodagem de um filme. Mas gostam
do termo fotojornalista. A palavra é
sobre-utilizada.
O fotojornalismo perdeu a alma? É
uma questão estética, ética, ou
ambas?
Não… Há fotógrafos que estão a
fazer um trabalho incrível, com
muita alma. Mas a fotografia está a
tornar-se mais acessível a muito
mais pessoas do que dantes, é
muito mais fácil fotografar e
disseminar fotografias. O
fotojornalismo não perdeu a sua
alma, mas são tempos perigosos. Há
tantas pessoas a tirar fotografias,
sem regulação… Não estou a
sugerir que deva haver uma
regulação, no sentido de decidir
quem pode e quem não pode ser
fotojornalista. Mas acho que a
democratização da fotografia é
muito perigosa.
Está também a referir-se ao chamado
“fotojornalismo do cidadão”, como
foi feito durante os atentados de
Londres, em 2005? Isso também
pode ser perigoso?
Não, acho que não. Estar envolvido
num acidente ou tragédia e tirar
fotografias é muito diferente de
pessoas comprarem máquinas
fotográficas e viajarem pelo mundo
a tirar fotografias, no sentido de
vender os seus trabalhos às revistas
e fazer dinheiro. Estou apenas a
sugerir que, hoje em dia, é mais
fácil ver alguém a tirar e a vender
fotografias, a quem lhe falte o grau
certo de responsabilidade. Quanto
mais gente houver a fazer isso, mais
probabilidades temos de ver
fotografias nas quais não podemos
confiar ou acreditar. Não estou a
dizer que isto não acontecia antes
do digital, mas hoje o campo abriuse. Toda gente está em posição de
tirar fotografias, mandá-las para
revistas, publicá-las online. E acho
que isto comporta o perigo de se
deixar de acreditar no que se vê
numa revista ou num jornal. Como
é que sabemos que uma
determinada fotografia não é falsa?
Fala do problema da manipulação
fotográfica?
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Fotojornalismo
Sim, também. Dantes o processo de
alguém se tornar fotógrafo era
moroso, difícil e trabalhoso; agora é
quase imediato. Não é preciso saber
praticamente nada, todas as
potencialidades da máquina são
acessíveis ao indivíduo. Mas o
conhecimento da tecnologia não
implica o conhecimento de
princípios éticos, modos de
comportamento adequados, história
da imagem. Muitas pessoas chegam
à profissão demasiado “verdes”.
poder dizer a ninguém “Temos uma
fotografia onde não se pode ver que
a criança está morta” por ser
perturbador para os leitores. Isso
não me importa minimamente. E
também não é justo para os leitores,
porque se está a adulterar uma
realidade, a mentir, a censurar uma
cena. O meu trabalho não é
esterilizar as notícias, torná-las
limpas.
reacção seja a indiferença. Se se
trata de uma imagem de alegria,
sintam a alegria; se se trata de uma
imagem de sofrimento, sintam o
sofrimento.
Numa entrevista, há uns tempos
atrás, afirmou: “Para muitas pessoas,
a fotografia tem a ver com interpretar
a vida como gostariam que ela fosse,
mas o meu trabalho não é isso. É
sobre a realidade – a vida tal como
Mas as pessoas também se podem
ela é.” Será que uma fotografia pode
habituar ao horror de certas imagens,
ser assim tão “limpa”? Afinal, tirar
A questão da manipulação foi muito
por se tornarem demasiado
uma fotografia é um acto
discutida em relação aos atentados
familiares, como dizia Susan
interpretativo por natureza, o
de 11 de Março, em Madrid, ocasião
Sontag…
resultado de um conjunto de
em que alguns jornais publicaram a
Sim e não. As imagens têm de ser
inteligentes. Creio que quanto mais
horrível uma situação for, mais
difícil é fotografá-la. Acho que
muitos fotógrafos, quando vêem
uma situação destas, acham que não
têm de pensar nela, porque já é
demasiado dramática. Mas, na
verdade, é o contrário. Por exemplo,
a história que fiz no Bornéu [em
1999], que abordava a questão do
canibalismo, requeria uma escolha
estética muito cuidadosa. Usar
formatos de filme pequenos ou
grandes faz uma diferença abissal;
os primeiros são muito sérios e
sombrios, os outros são quase
gratuitos. Por isso, há o perigo de
tornar as pessoas insensíveis, e
também por isso é que é tão
importante empregar uma estética
inteligente, para proporcionar uma
interpretação adequada.
escolhas individuais…
imagem de um membro humano
dilacerado pelas ferragens e outros
optaram por colocar a mesma foto,
mas reenquadrada ou com o
membro disfarçado, para evitar
chocar o espectador. O que pensa
disso?
Falei especificamente sobre isso
numa entrevista de rádio, na
Austrália. O Daily Telegraph
australiano, que li nesse dia no
avião, manipulou digitalmente a
fotografia, colocando pedras no local
do membro despedaçado (ao
contrário do que fez o Libération).
Na altura, afirmei que aquilo era um
escândalo e que o editor de imagem
devia ser imediatamente despedido.
Mas que direito é que alguém tem
de mudar a história? O argumento
geral era de que mostrar o braço ou
a perna iria incomodar o espectador.
Mas ninguém pensa como é que a
família da vítima se sentiu ao ver
que, simplesmente, apagaram ou
disfarçaram o seu membro? Essa
família não existe? Não há dor? Não
há realidade? Como fotógrafo, a
minha responsabilidade é para com
as pessoas que fotografo. Não tenho
qualquer responsabilidade perante o
leitor, não quero saber se ele fica
perturbado, se vomita, se estrago o
pequeno-almoço de alguém.
Realmente, não quero saber. A mim
preocupam-me a dor e as vidas das
pessoas que fotografo, e é isso que
tento mostrar. Ninguém deveria
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Exactamente. Mas escolho
interpretar a realidade da forma
como a sinto, com toda a
informação que tenho no momento,
com o que vejo e o que ouço.
Quando tiro uma fotografia, tento
apresentar uma cena da forma mais
verdadeira e honesta que consigo.
Mas é tudo muito subjectivo, claro,
o que escolho ver é diferente do
que outra pessoa escolheria ver.
Mas esperamos que quem tira a
fotografia seja honesto, tenha a
capacidade de empatia e possua
bons valores humanos.
Viveu nas montanhas de Timor-Leste
com os guerrilheiros da Fretilin.
Como sabe, a questão timorense
mobilizou Portugal de forma
particular e você foi testemunha de
um momento extremamente
importante da história do país. O que
Diz que não quer saber do leitor ou
é que o mobilizou a si, como
espectador, mas falando assim não
fotógrafo?
parece. Afinal, preocupa-se com a
Foi o facto de ser outro sítio triste,
onde as pessoas sofriam uma
opressão horrível. Havia poucas
notícias sobre o assunto. Fui numa
boa altura, em Julho de 1998, depois
da demissão do general Suharto e
antes da independência [em
Setembro de 1999]. Foi uma decisão
jornalística.
interpretação que o seu trabalho pode ter.
Quero que o espectador veja o que
aconteceu realmente. Quero que as
minhas fotografias produzam um
efeito no leitor. Nesse sentido,
importo-me com ele, agora não
quero saber se as minhas fotos o
vão perturbar. Porque determinadas
realidades são, de facto, muito
perturbadoras! Pretendo que as
minhas fotos provoquem um
sentimento, não quero que a
Tomada por si?
Sim. Sabia muito pouco de Timor,
apenas que era um sítio onde
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ninguém ia e onde estavam a
acontecer coisas horríveis. Conheci
na altura Jill Jollife, uma jornalista
australiana que veio viver para
Lisboa depois da invasão da
Indonésia, em Timor, para estudar
português e acompanhar mais de
perto a história. Ela tinha estado lá,
queria seguir a causa e escrever
sobre Timor-Leste. Conheci-a em
Bangkok, quando lá foi mostrar um
documentário. Fiquei fascinado com
as caras destas pessoas, eram
incrivelmente fotogénicas e muito
fortes. Apresentei-me à Jill e
perguntei-lhe quais eram as
possibilidades de entrar em TimorLeste. Ela olhou-me de uma forma
estranha e perguntou-me se eu
queria lá ir, ao que respondi que
sim. Ficou muito contente, porque
estava à procura de uma pessoa que
quisesse ir e até então ninguém
tinha dito que sim.
Quanto tempo esteve em Timor?
Passámos cerca de quatro semanas
nas montanhas, onde tive uma
experiência incrível. Senti que
aquelas pessoas dariam a vida por
mim e senti-me muito próximo
deles todos. Quando chegou a hora
de partirmos, juntaram-se numa fila
e deram-nos presentes de
despedida e cartas escritas por si.
Muitos deles [guerrilheiros]
choravam. Um homem ficou muito
embaraçado e por isso fugiu para a
selva, para chorar mais à vontade.
Fui ao encontro dele e demos um
longo abraço. Todos estávamos
tristes por termos que partir. Foi um
momento muito especial, um dos
melhores da minha vida. Apesar do
perigo e de todas as preocupações,
foi uma época de alegria para mim,
onde conheci pessoas muito boas.
Vive frequentemente na fronteira
entre a vida e a morte. Como lida
com isso, consegue ter uma vivência
“normal”?
Mas eu não quero ter uma
existência normal! [risos] Lido com
a morte e a tragédia o melhor que
posso, mas muitas vezes fico
zangado com as pessoas. Acho que
o maior problema, para mim, seria
viver no ocidente. É muito
agradável estar aqui [em Lisboa]
mas olho em volta e vejo o
dinheiro, a água a sair da torneira, o
desperdício… E acho tudo muito
vazio, porque não é a vida real.
Prefiro estar com pessoas que lutam
pela sua sobrevivência. Aí sim, sinto
que estou a viver uma vida.
Fundou recentemente a agência Noor,
em conjunto com outros fotógrafos.
Numa época em que se fala no
domínio de duas ou três agências
internacionais em termos de
cobertura mediática dos conflitos,
qual será o caminho das novas
agências? O que é que o levou a
fazer parte da Noor?
Escolhi este conjunto de fotógrafos,
porque são boas pessoas e estão na
profissão pelas razões certas. A sua
motivação é muito humanitária.
Estive uns anos na agência francesa
Vu, uma agência incrível, mas muito
diversificada, em termos de estilos.
Com a Noor, penso que conseguimos
criar uma agência de fotografia mais
centrada em notícias e em
problemáticas. A agência foi lançada
em Setembro de 2007, por isso ainda
é muito cedo para ver resultados. JJ
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Fotojornalismo
Entrevista
Noël Quidu à JJ
«A ética jornalística consiste
na denúncia do horror da guerra»
Nöel Quidu é habitualmente designado como um fotógrafo de guerra. Olhando para o seu currículo no qual constam três prémios obtidos no World Press Photo, com fotografias tiradas em diferentes
conflitos armados – o facto não parece merecer discussão. Nesta entrevista, dada à JJ numa tarde
solarenga, em Lisboa, onde esteve como membro do júri dos Prémios de Fotojornalismo Visão/BES,
Quidu justifica a sua função no terreno com um dever de denúncia que obrigue os políticos a agir.
Para este fotógrafo francês, que integra os quadros da agência Gamma desde 1988 e tem no seu
portfólio os grandes acontecimentos mundiais dos últimos vinte anos (desde a primeira Guerra do
Golfo, passando pelos conflitos na ex-Jugoslávia, até às guerras civis na Costa do Marfim e na Libéria,
entre tantos outros) o principal papel do fotojornalista é provocar a reflexão e “fazer” a história.
Maria José Mata
e Marisa Torres da Silva
Grande parte do seu trabalho tem
sido desenvolvido em zonas de
conflito. Sente-se mais protegido ou
mais exposto por detrás da câmara?
Quando estou a fazer um trabalho
sobre uma guerra, sei exactamente o
que fazer e estou preparado para o
que vai acontecer. O jornalismo é um
trabalho muito esquizofrénico:
durante o trabalho, sou jornalista, mas
quando acabo, sou um homem como
outro qualquer. Há esses dois lados.
A câmara é uma protecção, não sei
porquê. Sei o que estou a fazer e
que estou a denunciar alguma coisa
que mais ninguém sabe. Assim, os
políticos podem ver e podem fazer
alguma coisa a partir daí.
Quando parte para um determinado
trabalho, procura deliberadamente
um “olhar” ou simplesmente
“encontra-o”? O que é que vem
primeiro?
Depende de se estou pela primeira
vez numa zona de conflito ou se já
lá tiver estado mais de cinco vezes.
Neste caso, começo a perceber o
funcionamento das coisas. Claro
que já sei o que espero encontrar,
porque leio sempre jornais e vejo
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Fotografias
em Belgrado
e na Libéria
televisão previamente, para me
informar. Mas é sempre diferente
quando se chega ao meio do
cenário da guerra. Enquanto
jornalista, estou lá para denunciar e
é assim que resisto ao horror. Cubro
os acontecimentos, apesar de tudo,
porque as situações devem ser
denunciadas.
É uma questão ética, para si?
Ética, no sentido em que um
jornalista nunca deve esquecer que
o é. Amo esta profissão, porque está
totalmente ligada aos processos
democráticos. Vemos que, nos
países onde a democracia não se
desenvolveu, há sempre problemas
com a imprensa, vemos jornalistas
na prisão, como aconteceu
recentemente no Zimbabwe. A ética
jornalística consiste na denúncia do
horror da guerra. Por isso, os
fotojornalistas têm a possibilidade
de tirar fotos que traumatizem as
pessoas, para que elas não possam
fazer de conta que a situação não
existe. Os políticos também são
obrigados a dizer qualquer coisa. O
nosso trabalho é, então, dizer:
“Atenção! Até onde é que vamos? O
que podemos fazer para que isto
pare?”
Num mundo em que os conflitos se
gerem de uma forma cada vez mais
calculada, do ponto de vista da
gestão daquilo que interessa
“mostrar” ou “esconder”, qual é a
margem de manobra dos
fotojornalistas?
Quando vamos para a linha da
frente, encontramos profissionais
que defendem a causa do seu povo
ou da sua nação. No entanto, para
um jornalista estrangeiro, aquela
não é a sua guerra e, por isso, não
adere à propaganda, mantém a sua
verdade e o seu sentido de justiça.
Quando vou, por exemplo, para a
região do Médio Oriente, o meu
objectivo não é denunciar nem os
israelitas nem os palestinianos, mas
sim dizer: “Voilá. Isto é assim”. Não
fabrico as minhas fotografias. Aliás,
nunca falo quando as tiro.
O propósito de um jornalista não é
defender nem ganhar causas, mas
antes denunciar uma situação, para
que alguma coisa seja feita. Até
porque numa guerra, a maior parte
das pessoas que morrem são civis,
não fizeram nada.
Li uma afirmação sua em que dizia
que “muitas vezes, as imagens são
as únicas coisas que retemos da
história”. A responsabilidade do
fotojornalista, deste ponto de vista, é
enorme. Sente esse ‘peso’, essa
responsabilidade?
Sim, há fotografias que
provocaram uma mudança na
opinião pública e, por isso,
mudaram a história. Quando uma
imagem é muito simbólica, as
pessoas apercebem-se da
enormidade do horror, no fundo,
da verdade. A fotografia tem um
impacto intelectual sobre as
pessoas que a vêem e, acima de
tudo, sobre os políticos que
decidem por nós. Portanto, para
mim, o papel do fotojornalista é
muito claro: provocar a reflexão.
Essa procura da “verdade” reflectese na forma como fotografa?
A verdade é essencial para o bom
jornalismo e, por isso, gosto das
fotografias simples. O meu
objectivo não é fazer fotografias
“belas”, com grandes preocupações
estéticas, mas sim fazer fotografias
“boas”, fortes, com informação.
Lida muito com a morte. A fotografia
imortaliza-a. Isso condiciona a forma
como encara a vida?
Não. As guerras existem desde o
princípio do mundo. Não gosto de
ver essas situações, mas quando tiro
uma fotografia, tenho sempre
esperança de que haja uma acção
por parte dos políticos. Considero
que a minha missão foi cumprida
quando isso acontece, ou quando,
por exemplo, os responsáveis por
uma situação são julgados por um
tribunal internacional. Quando me
dizem que sou um fotógrafo de
guerra, digo sempre que estou em
guerra contra a política, porque os
políticos são sempre os verdadeiros
responsáveis. JJ
JJ|Abr/Jun 2008|59

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