O Globo - Médicos Sem Fronteiras

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O Globo - Médicos Sem Fronteiras
Segunda-feira 5 .10.2015
O GLOBO
Mundo
l 21
BOMBARDEIO DE HOSPITAL
_
Versões em conflito
Cabul alega que prédio atacado era base talibã; MSF nega e pede inquérito independente
NYT/3-10-2015
-KUNDUZ, AFEGANISTÃO- Um dia após a morte de 22 ci-
U
LOCAL DO ATAQUE
Guerra de palavras
KUNDUZ É PALCO DE FORTES COMBATES DESDE A SEMANA PASSADA
O que diz cada lado
1,6km
Detalhe
GOVERNO AFEGÃO. Insiste que o hospital
Relatos de
presença
do Talibã
UZBEQUISTÃO
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TURCOMENISTÃO
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K
Ri
o
Kundu
PARA OS EUA, ‘SITUAÇÃO É CONFUSA’
Em viagem oficial pela Espanha, o secretário de
Defesa dos EUA, Ashton Carter, disse a repórteres que “a situação é confusa e complicada”. Autoridades americanas admitem que um avião
C-130 realizou bombardeios nas proximidades
de Kunduz, mas não confirmam se foram eles os
responsáveis pela destruição no hospital.
O presidente dos EUA, Barack Obama, prestou
condolências às vítimas pelo que chamou de
“trágico incidente”. Mas afirmou que vai esperar
os resultados da investigação antes de emitir um
juízo definitivo sobre as circunstâncias da tragédia. A coalizão liderada pelos EUA no Afeganistão
prometeu concluir a apuração do caso em breve.
O resultado deve ser divulgado “em questão de
dias”, disse a Otan em comunicado.
A MSF, em paralelo, pede uma investigação
independente, pondo sob suspeita um inquérito conduzido somente pelos militares americanos — eles próprios acusados de realizar o bombardeio em Kunduz.
“Sob a clara presunção de que um crime de
guerra foi cometido, (a MSF) exige que uma investigação completa e transparente sobre o
evento seja conduzida por uma entidade internacional independente”, disse o diretor-geral da
ONG, Christopher Stokes. “Depender de uma
investigação interna de uma das partes do conflito seria totalmente insuficiente”.
O apelo da organização teve o coro da ONU,
que reivindica uma apuração “completa e transparente” dos fatos.
O bombardeio matou 12 funcionários da MSF e
dez pacientes, entre eles três crianças. O fechamento do hospital terá graves consequências para a população civil, que fica sob o fogo cruzado
dos combates entre o Exército afegão e os rebeldes talibãs para assumir o controle da cidade.
Kunduz ainda é palco de combates intensos, e
ontem fontes locais indicaram à rede al-Jazeera
que o Talibã conseguiu retomar áreas de onde fora expulso pela contraofensiva do governo.
— O hospital da MSF já não pode continuar
funcionando. Os pacientes em estado crítico foram transferidos para outros estabelecimentos.
Nenhum funcionário da MSF está mais no hospital. Neste momento, não sei dizer se o centro
de traumatologia de Kunduz voltará a abrir —
lamentou Kate Stegeman, porta-voz da organização no Afeganistão. l
Socorro. Criança que estava na unidade da MSF atacada em Kunduz é atendida num hospital em Cabul, para onde vários pacientes foram transferidos após o bombardeio
Rio
vis num ataque aéreo atribuído aos EUA contra
um hospital da ONG Médicos Sem Fronteiras
em Kunduz, no Nordeste do Afeganistão, a organização decidiu retirar seus funcionários e
suspender as atividades do centro de traumatologia que mantinha na cidade. Com médicos e
pacientes ainda em choque — e entre os escombros da única unidade capaz de atender feridos
graves na região — aprofundou-se uma guerra
de versões. O governo afegão insiste que a ofensiva buscava talibãs que teriam se infiltrado no
hospital. A MSF nega e pede uma investigação
independente, para além da “apuração exaustiva” prometida pelos EUA. A Força Aérea americana reconhece que fazia operações na área,
mas não confirma ser autora do bombardeio,
visto pela ONU como possível crime de guerra.
A versão de que “entre dez e 15 talibãs” se esconderam no hospital foi defendida pelo Ministério da Defesa afegão logo após o ataque e, ontem,
ganhou respaldo do governador interino da província de Kunduz. Segundo Hamdullah Danishi,
talibãs não só se ocultavam na unidade como a
usaram como base para planejar e executar ataques contra forças afegãs apoiadas pelos EUA.
— A área do hospital era 100% usada pelo Talibã. O hospital tem um amplo jardim, e o Talibã
estava ali. Vínhamos tolerando suas ofensivas já
há algum tempo — assegurou Danishi.
Em Cabul, o Ministério da Defesa afirmou que
talibãs tinham inclusive atacado o hospital e
que utilizavam o edifício como “escudo humano”. A Médicos Sem Fronteiras nega.
“As portas do complexo do hospital ficaram
fechadas toda a noite, e nenhuma das pessoas
presentes era desconhecida. Havia apenas pacientes e profissionais de saúde no momento do
ataque. De todo modo, bombardear um hospital em pleno funcionamento não tem justificativa”, disse a organização num comunicado. A
MSF indicou que até poderia haver talibãs no
hospital, mas sendo tratados como pacientes,
uma vez que a organização é neutra e atende a
todos os feridos.
A MSF alega que nos últimos meses, com a intensificação das investidas talibãs contra Kunduz, indicou várias vezes as coordenadas geográficas do hospital tanto às forças afegãs como
às americanas. A capital provincial acabou caindo na semana passada — a primeira grande cidade tomada pelo grupo desde sua expulsão do
poder, em 2001, pela invasão americana — e foi
imediatamente alvo de uma contraofensiva afegã, apoiada por aviões dos EUA. Segundo a MSF,
o ataque aéreo de sábado teria continuado por
mais de 30 minutos após funcionários do hospital avisarem que estavam sob bombardeio.
na
b ad
QG da Polícia
KUNDUZ
Kunduz
Hospital
da MSF
Jalalabad
Herat
AFEGANISTÃO
Cabul
Kandahar
IRÃ
PAQUISTÃO
150km
Relatos de
presença
do Talibã
Fonte: The Washington Post e New York Times
MÉDICOS SEM FRONTEIRAS. Nega que o
Editoria de Arte
U
MÉDICOS SOB BOMBAS
ENFERMEIRO RELATA CENAS DE HORROR
-KUNDUZ, AFEGANISTÃO- Enfermeiro
da Médicos Sem Fronteiras,
Lajos Zoltan Jecs estava no
hospital de traumatologia da
ONG humanitária em Kunduz
quando a unidade foi atingida
pela série de ataques aéreos na
madrugada de sábado. Num
comunicado divulgado pela
organização, ele relatou “terror
absoluto” ao ver tantos colegas e
pacientes feridos ou mortos.
“Ao longo da última semana,
já havíamos escutado outras
bombas e explosões, mas
sempre distantes. Esta era
diferente, perto e forte”, contou
Jecs, que disse ter sido acordado
pelo ataque. “Um dos
enfermeiros da sala de
emergência cambaleava com
um trauma enorme no braço.
Estava coberto de sangue, com
ferimentos por todo o corpo.
Naquele momento, meu cérebro
não conseguia processar o que
estava acontecendo. Paralisei,
estava em choque. Não havia
morfina para conter a dor dele.”
Após os mais de 60 minutos de
bombardeio, o enfermeiro se
deparou com o hospital em
chamas, com seis pacientes
queimando vivos em seus leitos.
“Não posso descrever o que
aconteceu lá dentro. Não há
palavras para o quão terrível
estava. Na unidade de terapia
intensiva, seis pacientes estavam
queimando em seus leitos. Foi
horrível. Um paciente ali, na mesa
de operação, morto, exposto no
meio de toda aquela destruição.”
Um médico que atendia no local
morreu enquanto a equipe
improvisada tentava salvá-lo,
após ficar gravemente ferido.
“Toda a situação foi muito
difícil. Vimos nossos colegas
morrerem. Nosso farmacêutico,
com quem estive justamente
conversando na última noite e
planejando os estoques, morreu
ali no nosso escritório. Alguns de
era usado como base pelos talibãs para a
realização de ataques às forças do governo
que lutam para recuperar Kunduz. O
Ministério do Interior disse que entre dez e
15 militantes se encontravam no hospital no
momento do ataque, e o governador interino
da província, Hamdullah Danishi, afirmou
que as instalações do MSF eram “100%
usadas pelo Talibã”. O escritório do
presidente Ashraf Ghani inicialmente
divulgou que o comandante das forças
americanas no Afeganistão, John F.
Campbell, pedira desculpas ao mandatário
pelo ataque, mas depois retirou a
afirmação, alegando que fora apenas uma
mensagem de condolências pelas vítimas.
meus colegas estavam realmente
em choque, chorando e chorando.
Tentei encorajar alguns dos
profissionais a ajudar,
oferecer-lhes algo no que se
concentrar, afastar suas mentes
do horror. Mas alguns estavam
simplesmente chocados demais
para fazer qualquer coisa.”
Segundo Jecs, ele trabalhava
em Kunduz desde maio,
acostumado a cenas de ferimentos
e morte, mas nada o preparou
para ver seus próprios colegas
como vítimas. O enfermeiro
ressaltou que as equipes vinham
trabalhando duro por meses, sem
parar ao longo da última semana.
“Eles não foram para casa, não
viram suas famílias, só vinham
trabalhando no hospital para
ajudar pessoas. Agora, estão
mortos”, lamenta. “Isto é
completamente inaceitável. Como
pode ocorrer? Qual o benefício?
Destruir um hospital e tantas vidas
para nada.”
hospital estivesse sendo usado como base
pelo Talibã. Segundo a ONG, poderia haver
talibãs no prédio, mas apenas sendo
tratados como pacientes, e não realizando
ataques de dentro das instalações. A MSF
alega que contatou tanto o governo
americano como o afegão logo após o
primeiro ataque, mas não recebeu resposta.
Segundo a ONG, outros três ataques se
seguiram, tendo o bombardeio durado ao
todo cerca de 70 minutos, concentrado no
prédio principal. A MSF não acusa
diretamente os EUA, mas diz que “todos os
indícios apontam” para a coalizão
internacional liderada por Washington.
ESTADOS UNIDOS. Reconhecem que
realizaram um ataque aéreo em apoio às
forças afegãs em terra no momento em que
houve o bombardeio do hospital, e que pode
ter havido um “dano colateral” às
instalações da unidade da MSF. No entanto,
alegam que uma investigação realizada pelo
Pentágono está em curso e não ainda não é
possível dizer com precisão quem estava por
trás do ataque. Mas o presidente Barack
Obama prometeu respostas.
ONU. O alto comissário de Direitos
Humanos, Zeid Ra’ad al-Hussein,
classificou o bombardeio de inaceitável e
disse que ataques a hospitais configuram
crime de guerra. O secretário-geral Ban
Ki-moon também deplorou o bombardeio
e pediu uma investigação “completa e
imparcial sobre o ataque, a fim de garantir
a prestação de contas”.