transe atlântico
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transe atlântico
transe atlântico transe atlântico é um projecto editorial da autoria de Mauro Santos Pereira, para a disciplina Estudos de Design, Licenciatura em Design de Comunicação pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Junho de 2010. Design Mauro Santos Pereira Selecção de textos Carlos Alberto Machado Colaboradores Ana Francisco [Portugal] Cristóvão de Aguiar [Açores, Portugal] Fernando Machado Silva [Portugal] Francisco Piqueiro [Portugal] Helder Moura Pereira [Portugal] Inês Lourenço [Portugal] Jaime Rocha [Portugal] Jorge Fazenda Lourenço [Portugal] José Maria de Aguiar Carreiro [Açores, Portugal] Luís Maffei (Brasil) Manuel Ribeiro [Portugal] Mário Cabral [Açores, Portugal] Miguel Manso [Portugal] Paulo da Costa Domingos [Portugal] Ricardo Pérez Piñero [Canárias, Espanha] Rogério de Sousa [Açores, Portugal] Rui de Sousa [Açores, Portugal] Rui Sousa [Portugal] Tomé Duarte [Portugal] Urbano Bettencourt [Açores, Portugal] 6 7 34 Jorge Fazenda Lourenço 30 32 Jaime Rocha 28 29 Inês Lourenço 22 24 26 27 Helder Moura Pereira 18 19 20 Fernando Machado Silva 13 16 Cristóvão de Aguiar 12 10 Ana Francisco 08 Carlos Alberto Machado autor 78 80 Mauro Santos Pereira 82 Urbano Bettencourt 76 Rui Sousa 75 Rui de Sousa 74 67 72 Rogério de Sousa 58 60 61 64 Ricardo Pérez Piñero 53 56 Paulo da Costa Domingos 50 52 Miguel Manso 43 45 47 48 Mário Cabral 39 40 42 Luís Maffei 37 38 José Maria de Aguiar Carreiro autor editorial vozes no céu de dublin fotografias de francisco piqueiro susurro poema em segunda mão potássio de ócio vigário fotografia de manuel ribeiro aurora alentejo mañana de abril fotografia de manuel ribeiro [presentes, os nossos antepassados] fotografia de manuel ribeiro o cristo de nampula status report o saber que escapa aos relógios o saber do poeta essência poética fotografias de francisco piqueiro andor fotografia de francisco piqueiro ordinateur às ruínas de uma dama o mármore que não lerás lembranças de são tomé sem príncipe, para o príncipe ruy cinatti (1983) a cidade inventada (1, 2) fotografia de francisco piqueiro o meu melhor ângulo sala provisória [ah meu amor vem] fotografia de tomé duarte [não estás, mais uma vez não estás.] [morreu-me entre as duas mãos o pássaro] a morte é uma terra inacabada lugar abandonado a faca páginas de um diário perdido fotografia de tomé duarte boris magic poem with dutch landscape um novo transe atlântico 8 A ligação da academia ao mundo exterior – empresarial, mas igualmente cultural, social e político é, creio, um dos desideratos fundamentais da sociedade portuguesa. A nossa sociedade encara sempre com cepticismo, no mínimo, o académico que termina a sua formação e “chega ao mundo”: não é inusual ouvirem-se coisas como “é só teoria”, “agora é que vai mesmo aprender”. Simetricamente, a academia, em regra, não recebe muito bem quem vem do “exterior”, e atribuem-lhe o labéu de “inculto”, com “falta de preparação teórica”, etc. Estão, creio, equivocados uns e outros. Seja como for, também por ultrapassar esta barreira, fictícia ou não, é de louvar a iniciativa do Mauro Santos Pereira em realizar o seu trabalho de design de comunicação com recurso a textos literários e a fotografias de autor, como se de um autêntico trabalho editorial se tratasse. Isto é, transe atlântico pode ombrear, também por essa razão mas igualmente pelo trabalho profissional do Mauro, com qualquer revista de arte e cultura. Espero, aliás, que o projecto, em futuro próximo, se efective no mercado (editorial e comercial). Duas palavras sobre os conteúdos. Antes de mais, agradecer a disponibilidade de todos os autores em disponibilizar graciosamente os seus textos e imagens inéditos. As pontes em transe atlântico fazem-se com ligações afectivas entre Portugal Continental e os Açores, de onde o Mauro é (orgulhosamente) natural, e entre outro arquipélago, o das Canárias (Espanha), e o continental Brasil. Lajes do Pico, 7 de Junho de 2010 carlos alberto machado carlos alberto machado um novo transe atlântico As imagens, que não são ilustrativas de nada e que valem (muito) por si só, e, embora em pequena quantidade, são excelentes exemplos da diversidade do que se faz neste âmbito artístico no nosso país. Agregam-se aqui textos, maioritariamente poemas, de “consagrados” e de “novos ou novíssimos” autores. Forma, no conjunto, um bom exemplo, embora heterogéneo, dos consolidados e sempre renovados caminhos da literatura portuguesa e da boa relação que entretece com os parceiros de outros horizontes criativos próximos, quer geográfica, quer historicamente. Naturalmente, nesta avaliação posso ser considerado “suspeito” – pela amizade que me une à generalidade dos participantes neste transe atlântico – e por isso me declaro “culpado”. 9 boris O segredo que os outros não vêem é feito da magia enzimática: da forma única ligante de seres que não serve para mais nada. ou como diria o outro: o segredo é sempre feito das mãos, da pele e do gesto que com a voz traduzem a força toda, sobreelevam a necessidade e glorificando os dias, sublimam os encontros. De dentro da espessura dos dias, que não chegando a ser de espuma já não possibilita a respiração viriam os movimentos que se seguem a desacreditar os outros. ana francisco O teu ser é feito do mundo e das coisas que não se percebendo têm de ser feitas; 10 O teu ser é feito dos outros e das coisas que não te levam aos lugares certos porque nem sempre o caminho é escolhido. A ser criativo, e para matar a história cortar o fio. A ser criativo - dizia ele, deves dizer três vezes – Não; Para que seja feito de coisas novas o dia novo para que seja digno e vital como o mistério enzimático que explica que tu tenhas as mãos e a pele que servem a minha voz que explica que tu tenhas os gestos que transformam tudo. Um dia, será sempre pela invenção para que retirando as camadas espessas se descubram finalmente os nomes daqueles a quem chamar ... Enfim: o sentido que a tua forma atribui às minhas ideias é de fogo. autor ana francisco Desde que todos os que se encontraram defronte do teu nome e do teu ser souberam escolher o caminho da liberdade; a posição o espelho e os véus eram cruzados com a magia de saber coisas. 11 páginas de um diário perdido FarThing was a beautiful man that would never tell you either what was inside his mind or what was outside. Tornei a chegar à Ilha. Já havia cá vindo no primeiro mês do ano, mas pouco me demorei. Semana e meia. Regressei ao princípio da tarde de um domingo de eleições, nem esperei pela terça-feira seguinte, dia em que marcara a viagem de volta. Antecipei o regresso. Tomei a lancha na Madalena, atravessei o Canal, e fui apanhar o avião à Horta. De caninos afiados, a solidão mordeu-me durante doze dias! Ela só me é benfazeja quando estou de bem comigo e a posso enfrentar cara a cara. Marcado de nódoas negras, tudo no imo me parecia negro e me doía. As pessoas com quem não tenho qualquer afinidade, as coisas, e eu, naturalmente, por arrasto. Magoavam-me! Até a Montanha, que entreabriu a saia a experimentar se me levantava os mecanismos eróticos, não conseguiu o seu intento e tapou-se logo depois. Cavou-se-me a depressão que me sobreviera em fins de Maio do ano passado, após cortar cerce com toda a medicação que tenho vindo a tomar há anos. Agravou-seme em Novembro seguinte, logo após a homenagem de que fui alvo na Universidade - quarenta anos de vida literária! Tretas! Quis ser valente. Algumas das pessoas que me rodeiam esmeram-se por vezes em lembrar-me que tomo comprimidos como uma galinha come milho. Quis mostrar que era dono de mim. Só não lhes segui o conselho de comerlhe e beber-lhe à tripa forra! E foi o que se viu. Médico, medicamentos, efeitos contraditórios até se acertar com a dose certa. O diabo entre as couves! Agora vim para me esconjurar. Mas, como sempre, trouxe toda a tralha interior comigo, mais o medo que me assaltou de me sentir nu e desprotegido no miolo do desterro de há quatro meses. Esconjurar-me de quê? Escrevendo. Serei capaz? Nem que seja escrever sobre a impossibilidade da escrita... Não me esqueci de nenhum tareco! Se ao menos pudesse recomeçar tudo de novo! Louis FarThing started his lying process around nineteen eighty one, aged seven, by disconnecting himself from his mother. autor ana francisco By fourteen he disconnected himself from his father; after twenty-one there was only him and some female bodies to embrace in questionable moments. At twenty-eight there was nobody left. and everything was perfect. 12 cristóvão de aguiar magic poem with dutch landscape 13 vos já de si fragilizados e em franja. Leio mas pouco assimilo. Dispersão total. Não percebo o que vou lendo. A mente rodopiando por Ceca e Meca. Mudo de livro como quem muda de camisa. Vou experimentar um de estudo. Dizem que faz bem ao ego reler os livros por que se estudou em outra idade. Não os tenho comigo, a não ser alguns da instrução primária. Hei-de reler a História de Portugal, de Tomás de Barros. A minha cabeça tornou-se numa pedra dura. Não terá sido sempre assim? O tempo também não pára quieto e anda às avessas, como me disse uma vizinha, “Anda o mundo ápsaidedaune...” Tem um binóculo em cima do peitoril da janela. para vigiar os barcos que navegam no Canal e sobretudo as pessoas nos seus quintais ou que se aproximam ao longo da estrada. Este costume vem do tempo da baleação. Logo que se divisava baleia no mar, estalejava um foguete no ar e passava-se palavra para que os baleeiros acorressem aos barcos. Como acabou a caça à baleia o binó-culo serve agora para vigiar o semelhante. O outro dia queixava-se uma vizinha para a que lhe fica defronte: “ O meu filho não deve andar por bons caminhos; esta noite che-gou-me a casa à meianoite!” E a outra: “À meia-noite, não; à meia-noite e dez...” O mau humor do tempo ainda não desamparou a loja. Já vamos entrados no derradeiro mês da Primavera e ele continua a fustigar a mente e o corpo. Mais aquela do que este. Nevoeiro, chuva, vento, frio! Andam ambos mancomunados para me codilhar. Sou sensível aos fluidos atmosféricos. Os ilhéus com a minha natureza são os que mais penam. Tanta esperança tinha eu posto nesta estada na Ilha para me restabelecer de mazelas psíquicas. Nunca mais tomo juízo. Ando embuziado. Não me consigo sofrer, quanto mais os outros. Deixo à minha volta uma clareira de silêncio. E quanto mais me apontam o dedo tanto mais me custa vencê-lo. A vida está-se-me tornando num fardo. Cansado de viver assim. Acabar com ela seria uma boa solução. Falta-me coragem e tenho medo. Há quem sustente que o suicídio é uma cobardia. Penso o contrário. Julgo que é um acto heróico. Apetece-me fugir para onde me não fizesse companhia. cristóvão de aguiar cristóvão de aguiar 14 À chegada, o tempo agoniado, o tecto baixo. A Montanha cingida por um maciço de nuvens pesadas em grossa muralha. Bastou-me essa adversativa para que a depressão de que me julgava já meio sarado principiasse a dar alguns sinais. Conheço-os. Uma tristeza indefinida. Sem objecto nem causa. Começa sempre por esse agravo. Como um vómito, trouxe-me à boca do estômago a matilha dos fantasmas. Que queres tu da vida? A Ilha em frente, meio velada, carregou mais a negrura de me sentir estranho. Há gente que sofre mais e não tem tempo para ficar deprimida... Deu-me agora para me sentir estranho. Aqui. Não o serei? Espero reencontrar-me na primeira encruzilhada. Haverá um mundo onde eu caiba? Estranho. Tanto que queria eu continuar a escrever! Tenho de ter uma conversa a sério comigo. Que te falta? Devagar, muito lentamente, tomo a temperatura à casa. Tudo limpo e nos seus lugares, como se dela tivesse saído ontem. Já não me sinto nela como antes. Que se passará? Que estará a acontecer ao meu sonho pedra a pedra construído de ter uma casa de escrita, à beira-mar, com uma Ilha defronte? Tenho-a. Enchi-a de livros e de alma para me sentir mais aconchegado. Quase não leio e não sinto vontade de escrever. E agora caí num covão de mudez. Pouco ou nada falo. Não me apetece. Guardei para esta altura da vida a releitura de certos clássicos mal assimilados nos tempos de estudante. Julgava que neste sossego estaria nas minhas sete quintas. Tenho-os, aqui, encadernados a olhar-me das estantes. Já não tenho tempo! Não sinto cobiça. Apetece-me reenviar tudo para a origem. No fundo sei muito bem o que me atormenta - a escrita. Já me vai faltando nervo. Um escritor meu conhecido dos tempos de estudante, o primeiro com quem falei, disse-o há tempos numa entrevista a um jornal literário. Perguntado por que não publicava há mais de vinte anos respondeu: “Também gostava muito de jogar ténis, mas faltamme os músculos nas pernas e nos braços; com a escrita passa-se o mesmo; tudo tem a sua época, não é preciso fazer disso um drama...” Tão simples mas tão custoso de se pôr em prática. Já não tenho nada para dizer em escrita. Se calhar, nunca tive senão a ilusão disso. Por que se exige a um escritor que esteja em pleno até à hora da morte? De facto não fica bem ouvir-se: sou um aposentado da escrita... Foi-se o Sol e veio a chuva e um vento fresco. Águas grossas. Nem a Ilha em frente se enxerga. O mar continua prateado e chão. Vejo-o daqui da janela. Não deve demorar-se muito. A chuva. Entisica os ner- 15 tomé duarte autor autor tomé duarte 16 17 a morte é uma terra inacabada lugar abandonado “quem decide a paisagem da vida?” José Angél Cilleruelo fernando machado silva os muros circundam aquele pedaço de terra e o horário de trabalho fecha por completo o carpir das velhas mulheres. isto nunca acaba, sempre há novas ervas a arrancar folhas que ocultam os nomes queridos dos idos sempre antes do tempo. dizem ao ouvido das lajes: fazes cá falta, a vida é dura para uma pessoa só quando se tem duas casas a tratar e um amor a cumprir 18 tomámos um velho palacete na praça de espanha ainda o pórtico da liberdade se estendia entre as ervas e o musgo. de lá fizeram segunda casa caras que só vejo hoje três – quando fazia do punk a alternativa à família embora mesmo aí fosse estrangeiro – outros ao fim-de-semana para copos charros conversa e muita música. projectou-se um centro, fez-se uma biblioteca, um bar uma oficina de serigrafia… mas já não sei se foram as forças da ordem ou do caos que fizeram desse sonho, que agora encontro, um lugar abandonado às ervas daninhas. fernando machado silva para o Filipe Quaresma, Pedro Neves e Rui Caetano, entre outros amigos de aventuras 19 autor fernando machado silva para os meus irmãos 20 jogávamos ao mundo ou como é que esse jogo espécie de risco se chama, frente à casa da minha avó. o círculo desenhado com mestria infantil por um graveto ou a bota enlameando-se. a mim não me foi permitido participar a disputa era entre os mais velhos irmão e primos e eu aprendia, vendo, para mais tarde, já grande, saber como conquistar o respeito de desconhecidos. lançavam-se, creio eu, três vezes a faca à terra e traçava-se um pequeno território. a discussão não tardou e a faca atirada procurou o redondo do rosto de um dos meus irmãos. foi o cabo, por sorte, que embateu. logo o choro e a gritaria e o concílio dos ainda mais velhos deu por terminada a guerra tratando dos dói-dóis autor fernando machado silva a faca com beijos bolos sumos salame de chocolate. daí em diante, em cada discussão, mantive sempre um olho nos argumentos o outro nas mãos à procura de facas não sabendo qual a mais perigosa. 21 Ah meu amor vem ter comigo ao Starbucks de Belém. Não tragas relógio, porque eu não consigo estar contigo a pensar no tempo e a reparar que olhas para o relógio, é um vício mas a mim parece-me sempre que te queres ir embora, que não queres estar comigo. 22 Impaciente vou até aos pastéis e olho um certo tempo para o rio. Aceitaste vir ter comigo ao Starbucks de Belém e não sei se trazes um livro para discutir comigo ou se um beijo no sorriso à distância. Tragas o que trouxeres és tu e basta, mas não tragas o relógio e deixa-me ver o teu pulso branco, deixa-me passar os lábios pelas tuas veias pequenas. autor helder moura pereira E um livro também não. Um livro é para leres no eléctrico, a não ser que o queiras discutir comigo e nesse caso então está bem. 23 autor tomé duarte autor tomé duarte 24 25 Não estás, mais uma vez não estás. Uma aflição os minutos da tua demora. As minhas mãos passam de quentes a frias e no coração um outro frio se agita. Não há dúvida, o amor é exagero. Beijo-te logo à entrada da porta como se fosse verdade ir acabar o mundo antes de acabarmos nós. Eu sinto nervosismo em vez de paz e por isso uma vez fui-me embora. Mas o amor é como todos os dias, vai dormir ou morre e depois ressuscita. Morreu-me entre as duas mãos o pássaro vadio, era o meu peixe azul num aquário, o fanatismo de ser de um clube, o meu ídolo com as suas pequenas patas de barro. Visitava-me muitas vezes, cheguei a crer que era mais do que um, mas não, era sempre o mesmo, o meu pássaro com asas de um negro radioso, talvez não fosse negro, talvez fosse às riscas, mas o bico, esse era amarelo torrado e nunca há-de haver outro como ele. Não lhe dei de comer, porque ele não precisava, ele desenvencilhava-se sozinho, acompanhou-me na velhice dos dois sem nada exigir e agora, de asas caídas e patas trémulas, veio morrer às minhas mãos o meu amigo. autor helder moura pereira autor helder moura pereira É bom programa evitar o desespero, fazer do silêncio uma coisa morta. Para com um único gesto profundo, sem palavras te imaginar a voz. 26 27 Prefiro o agudo. Muito menos o recto e nunca o obtuso. O raso adormenta todas as audácias e o adjacente agrega-nos em parede mútua e indissolúvel. Assim, é no estreito e resguardado vértice do agudo que apetece ficar, abrigada do rotundo e celebrado círculo. Nunca se sabe quando estamos num lugar pela última vez. Numa casa que vai ser demolida, numa sala provisória que vai encerrar, num velho café que mudará de ramo, como página virada jamais reaberta, como canção demasiado gasta, como abraço tornado irrepetível, numa porta a que não voltaremos. inês lourenço sala provisória inês lourenço o meu melhor ângulo 28 29 a cidade inventada 1. 2. A cidade continua o seu ciclo de ervas As poças encontram fios de nylon no interior da água e as pedras soltas rebentam os nós de todas as árvores. Uma mulher inclina-se para as cinzas, para as margens dessa cidade onde tudo aparece envolto numa espécie de lixo acumulado. Os passeios morrem com o dilúvio dos pombos. Há um desejo secular nos passos do homem, um olhar que se vislumbra num espelho antigo que vem do tempo dos cães e que marca o destino das aves. Morre também a humidade dos muros. E são os bichos que seduzem a mulher, para que o seu uivo se desloque para as pontes, para um outro lugar fora do rio, um lugar movediço coberto com um plástico vermelho. É aí que o homem coloca as armadilhas, nessa devoção pelos pássaros, pelas estátuas. As suas mãos tremem ao surgir da noite. As cordas ferem-no nos braços, salpicando a terra. E tudo à sua volta se transforma numa sombra, num espaço feminino. jaime rocha autor rocha jaime Lisboa, Abril de 2010 30 31 autor tomé duarte autor tomé duarte 32 33 4. Pela beira das escolas Um alvor de miúdos Lembranças de São Tomé sem Príncipe, para o príncipe Ruy Cinatti (1983) Dedos de outros lábios sugam Canas sequiosas Amarras de açúcar. 5. Como aves de repouso em demanda De uma gota de púrpuro verde Existe O fulgor de aportar em ilha Num azul despenhado imenso. 2. (fortaleza de são sebastião) Conheço destas pedras a vertigem, não Assim erguidas contra o mar, De sabores trocados em roda De engenho que engenho trouxe − Memória, um pouco Espera. jorge autor fazenda lourenço 3. 34 As areias desta praia do imperador desertas Águas claras de aguados olhos Senhor outro terão. Velozes Na lentura espessa de cacaueiros A estrada líquida roça Roças de outrora e nós Suando a fundão Para a vila adivinhada Em rastilhos de sòcòpé. 6. Viemos agora mesmo de rio do ouro Por uma alameda rumorosa de palmeiras E um vento acre de despedidas. Do que tu precisas (que é como quem Pede) é dessas sombras − Como o cacau das eritrinas Para a memória das raízes Vingar melhor seus frutos. 7. café baía (esplanada) Imperador que aqui pisou Nesta praia deixou areias De amador que não voltou. Aqui mete-se o corpo Em olhos estendidos Ao mar que da baía Ana chaves em semi-círculo Se abre de murmúrios A memórias de infinito. jorge fazenda lourenço 1. 35 Aqui, santuário exíguo Ou foz de água grande, Na tarde soltam de falcões Seu voltear insondáveis O azul de cavas sombras. É como o tempo, humano Verde, de deuses fixo. às ruínas de uma dama “Te espera el mármol / que no leerás.” Jorge Luis Borges, El outro, el mismo Este ocá que me protege Será meu sol de canoa Espiando o voador Ou o vermelho Horizonte. Neste tronco hei-de voltar E de colher framboesas, E colorir meus olhos Para lá dos imbondeiros. Remirada ilha. Reverdecido azul. jorge autor fazenda lourenço 9. 36 Amanhecem acácias No relento respirar Da lagoa azul. Vai, Colhe de andalas Um braço de arder. É perto, tua morada, Tua concha de água, Canto e fim. Demora-se pelos corredores a velha senhora falando aos cantos por onde os olhos se acamam. Da janela descortina as plantas e o chuvisco que brilha na trajectória descrita por seus olhos azuis. Um fio de azeite unge as mãos e os pés, o corpo cinzento entregue ao espaço. A porta está fechada. O quarto escuro. Os cestos cheios. Uma rapariga parou, um pouco embainhada à luz. Veste-lhe novelões nos braços o cortinado. Onde a fundação da memória, a horta calcinada, as vigas de madeira e os pregos ainda novos. Passam lá fora os constrangimentos, consequências da guerra que ordena às plantas. Toca os vidros pelos quais sente o efeito exterior ao circuito fechado do pensamento. Ah a cegueira e o assombro. As canções da tarde. Os beijos. A portentosa escarpa piscando nos olhos e os tijolos altos cercando a testa. josé maria de aguiar car\reiro 8. 37 andor Ainda agora comias no prato dos cães. Com unhas falas do destino que tentaste contrariar e falas da sua mão pesada que te açoita. Ofendes o velho guarda infantilizando a sua voz e o seu cajado. O universo espera-te enquanto trabalhas e aparas a barba. Pensas nas Erínias que te despedaçam. Agora estavas aos beijos, a janela fechada, a pouca luz, num resguardo contra a raiva. Não respondas. Contorna os lábios, uma romã para dentro do peito. Quantas horas foram perdidas sem que um único momento fosse visível. Fala-me. Introduz o espírito nas aldrabas da memória. O sonho incandescente. A luz directa sobre as pedras. Eu digo o que me resta: desconheço, só dão notícias vagas de ida e volta. Será correr com o andor de porta em porta o monstro de arrastar? Qual o seu preço? Jejuo porque julgo que o começo, havendo fome ou parto, não suporta o exíguo camelô que incerto aporta enquanto a espaço e vácuo eu endereço o trinco, a trema, o homem com a mochila exposta no sair do hipermercado, será que é isto o mundo? Isto a tranquila entrada do jejum no mesmo lado em cuja embarcação mais de um gorila urina sobre os pés do retornado? Pediram que o andor formasse fila, ouvi que o monstro arqueja de suado. autor luís maffei josé autormaria de aguiar carreiro 38 o mármore que não lerás 39 autor francisco piqueiro autor francisco piqueiro 40 41 o saber que escapa aos relógios Estar perto da origem do vento é em todo caso ou neste ventilador sem som nem cabelo a mover-se acima das cabeças abaixo dos telhados em direção a flancos pontos exclamativos: nalguns lugares ou ¿que sei eu? neste nem sempre o vento é fio ordinateur nem sempre mata. Era uma vez um país onde os cegos davam longos passeios à beira-mar. Arregaçavam as calças mas não se importavam de molhar as meias por detrás das sandálias. Desta forma elaborada dissertavam sobre a cor das águas. Um dizia: «Quantas cores supões caberem dentro duma só vaga?» Outro respondia: «Todas aquelas que sinto nos pés as confirmas no coração». «Donde te vem sabedoria assim tamanha?», retorquia o primeiro; ao que o segundo exclamava: «Da ignorância subjacente à tua pergunta». Eu, que olho tanto para o mar, começo a intuir a minha cegueira E já sinto o desconforto dos pés frios, condição indispensável Para quem espera sem compreender a demora. Deveria já ter resvalado para aquele país. Por exemplo, já não vejo as coisas mas o espaço que há entre elas; E não vejo os órgãos mas o intervalo que há entre eles Espaço de fase, diz-se na Física quântica. Por exemplo, já não me importo com o tempo dos verbos nem com a colocação rigorosa dos ficheiros. Quase sempre paro as tarefas a metade, interrogando-me sobre aquilo que sabia antes de nascer. Nas muitas longas horas que dedico à contemplação do mar nascem as sombras do futuro E no lugar do futuro eu vejo-me sentado com grande pena de mim. Não sei onde vou buscar a coragem para vos revelar todos estes segredos; autor luís maffei Romba emboscada: ¿o que se come sem fruta nem boca? 42 autor mário cabral ordinateur 43 autor mário cabral Casa das Tramóias, Terça-feira, 9 de Março, Quarta-feira, 10 de Março A.D. 2004 44 o saber do poeta O Saber do Poeta consiste em ter na mão uma gema de ovo Ver na gema de ovo o sol e sofrer queimadura de terceiro grau Ter a palma da mão puro espelho reflexifulgente Obrigar, portanto, a linguagem, como se vê, a reflectir A reflexão do Poeta é a que vê mais perto: Vai da gema para o sol, vai da gema para a pedra preciosa Vai da gema para as chagas de Cristo Vai da gema para o Conhecimento gemelar de todo o Ser. E pela queimadura da mão entra no corpo o sol Incendeia a mente do Poeta que, porque mente E a esta escala, não pode ser levado muito a sério Por quem se encontre em patamar inferior da escada. O Poeta grita alto, ele avisa do alto do altíssimo: - Não se aproximem dos ovos! E o eco justamente repercute: - Aproximem dos olhos! Aproximem dos olhos! Ao mesmo tempo mostra a palma da mão livre. Pretende exemplificar O Universo inteiro está nas linhas deste mapa que respira. De algum modo o povo reconhece o Saber do Poeta Há que ser apenas um a salvar o Pai sol do anonimato; Reconhece o sangue frio do toureiro e, por conseguinte, nos dias de festa O Poeta deixa a cozinha, enverga o traje da Luz, entra na arena Uma arena é ainda uma gema, percebe-se pelo som das palavras. Vitorioso, a corrida é paga com cestas e cestas de ovos e ovos Que o Poeta leva para o alto, para o altíssimo autor mário cabral Repararam, por certo, na minha forma de falar, em moldes que não são permitidos. Dir-se-iam quase escandalosos e por isso eu peço perdão. Vejam bem: ainda me falta aprender a falar silenciosamente. A verdade é que ganho a vida como professor e, confesso sem vaidade, sou famoso como tal. É tudo tão estranho: nas novas salas de aulas a Cruz foi substituída pelo relógio. Dantes ela estava à frente, em cima de mim; agora ele está nas costas dos alunos Cínico, só eu o vejo, obriga-me ao descrédito geral, à vergonha. Um destes dias não resisti; os cegos estavam parados no beijo das ondas. Gritei bem alto: «Sou eu quem vos permite a felicidade. Mandem outro para o meu lugar!» Fingiram não ouvir-me; mas de imediato eu fui rodeado pelo bater ensurdecedor das asas seráficas Pelo que tenho a certeza absoluta que me escutaram. Hei-de pagar o meu atrevimento, esperando tanto mais absurdamente quanto decidi deixar de ler as horas 45 Vai acompanhado por um aprendiz que deixa a família a chorar No alto do altíssimo vai chocar os ovos e de cada ovo Uma estrela e é por isso que nesta língua circular Se chamam céus estrelados aos céus da felicidade Da plena felicidade, da plena felicidade. essência poética 46 Na Sexta-feira Santa do ano da Graça de 2005 Depois do ofício da Paixão do Senhor Eu, abaixo-assinado Cabral, saí para passear os cães Pelo caminho tantas vezes percorrido. O furacão estava a passar e eu vi o arco-íris no céu. Então pensei: «Bom sinal». Mais à frente, um cavalo branco de freio escarlate Passeava livremente pelo meio da marginal E eu cheguei a temê-lo porque nos seguia. Quando cheguei à Casa das Tramóias Minha irmã mais velha avisou-me que jantaria a sós Porque ela iria visitar minha irmã do meio E a mais nova estava indisposta do estômago. Enquanto comia folar e ovo cozido com chá verde Ouvi na televisão que um dos corpos Dos dois pescadores da minha freguesia Desaparecidos durante a tempestade Dera à costa noutra ilha. Não tinha a cabeça nem uma perna. Estes factos deram-se assim mesmo há menos dum par de horas. Poderia, se quisesse, dar-lhes tratamento simbólico E até referir o Fedro, de Platão, por exemplo. Mas não quero. A minha vontade é outra. Procuro, deste modo, mostrar a essência poética Linguagem tão descritiva como outra qualquer Embora mais exigente, mais culta, mais elaborada Por outras palavras, excelência humana. Casa das Tramóias, Sexta-feira Santa, A.D.2005 autor mário cabral autor mário cabral Casa das Tramóias, Abril, A.D. 2004 47 francisco piqueiro autor autor francisco piqueiro 48 49 o cristo de nampula reencontrei-o num copo largo que abarcava um conjunto prodigioso de esferográficas secas e lápis caducos, no escritório de casa dos meus pais e só agora me apercebo da eloquência que a mutilação assentiu e do sentido que faz incluir nesta colectânea um poema onde caiba o ex-crucifixo que tenho agora sobre a secretária, à luz do candeeiro este Cristo preto, compacto, completo posso começar por embutir nesta estória o mestre Frank Arroni N’taluma – tenho o cartão dele algures entre a papelada – o escultor makonde morto há uns anos num acidente de carro em Moçambique e que agora, ileso, bebe copos na Bica foi precisamente aí que, numa noite, me contou das cinquenta mulheres do seu avô, metade em cada margem de um rio atravessado a nado apenas de seis em seis meses mas de nada serve, em todo o caso, a inclusão no texto desta figura, já que o objecto que pretendo descrever só por indecifráveis enredos a ela estará apenso 50 à cruz, tê-la-ei separado do corpo, pelo que agora se perdeu e ao corpo falta um braço, o esquerdo, que ninguém saberá dizer onde está, acaso se pretenda reconstituir o Cristo de Nampula que brotou do contacto serôdio e missionário com a tremenda inclinação para a beleza do povo banto autor miguel manso autor miguel manso refiro-me a um crucifixo comprado pelo meu pai num mercado em Nampula durante a guerra, e que foi parar, anos depois, à caixa de brinquedos que eu, ao tempo da infância, tinha sob domínio 51 status report já não tenho a vida toda (faço trinta o mês que vem) e a verdade é que nem na morte se pôde alguma vez confiar miguel manso muito mal contado, isso da morte 52 Presentes, os nossos antepassados E param, olham com os seus olhos húmidos fachadas que ajudaram a construir, e param, porque o município não recolheu um pombo morto, pensam no seu próprio destino, solitário, de morte para breve, inclinam-se um pouco a cabeça como elefantes, olheiras densas, o sol que não abre. Param doridos dos joelhos, já não são como dantes as costas, só fachadas ergueram e tapetes de dúvidas para esconder carcaças ósseas do muito que ficou por enfrentar ou assumir, olham pendentes para ambos os lados, param, urinam-se, mesmo inertes são seres, compêndios de dinâmica, arma à beira de explodir na indiferença urbana e, pois não!: civilizada. Devagarinho arrastam uma réstea de sol, só memória, só impulsão de cadáver para a superfície de uma saia que passa, e voltam-se... Um jagunço os encosta a um vão da fachada que ajudaram a erigir, borram-se enquanto os roubam e a crueldade do sol autor paulo da costa domingos sou comarca onde parou de chover e quem não se lembra da sanguechuva que foi em tempos este coração 53 abre-lhes o coração, param, param, sustenidos e desfeitos em saliva: baba. Têm galhos, que caem, contra vontade, e caem olhando-nos. Acenam atirados para um canto como um livro que se abandonou, cantos virados, orelhas por onde o papel há-de rasgar, podre dos vícios lúbricos da sua história. Os velhos – estamos sempre a gritar-lhes. Olhos húmidos de raiva, papos com as águas a romper, bengalas hirtas como antigas vergas ameaçadoras, ali aparafusados aos sofás, perderam-se dos seus animais de estimação num dia incendiário e sem qualquer nexo com gente a descer e subir escadas-rolantes sobre soalhos flutuantes sob tectos falsos. Poderia, sei lá!, pensar-se que não pensam assim parados, mas não é verdade. Depressa, que o tempo mal chega, depressa, as pinturas de guerra, o verniz das unhas, os aparatos, o autocarro que se perde à distância. E segurar-se em bicos dos pés! 54 Fazer a barba, à pressa, depressa, o nó da gravata, um botão de punho que está prà-i caído... que maçada! Enquanto a mulher acorda, algo lhe diz, pelo sangue na almofada, sangue do livro ainda adormecido: continuo viva. Com um círculo de sal à volta, feito desmazelo de roupa interior e um tabuleiro onde chávenas de cafés nidificam certa sujidade moral. Param, os tais. Acenam uma separação que vai ser irreversível, coração na boca e duas pedras frias na mão, entregues a lares onde o poema nem sobrevoa nem é real, na companhia veterinária de parceiros no abandono, porque o dono está demissionário... ou no desemprego confinado a já só ter pressa de ter pressa. autor paulo da costa domingos paulo da costa domingos autor Os velhos, ó se estamos sempre a gritar-lhes, piores que crianças, pelo contrário. 55 francisco piqueiro autor autor francisco piqueiro 56 57 aurora “I know not what tomorrow will bring” Fernando Pessoa no han de tardar las jóvenes cajeras de Pingo Doce. Muertos automóviles bocinan otro día duplicado, el mismo que se deja amanecer, dudando de sus pasos, donde gime la niebla. La luz rompe a brochazos en lo oscuro, dudando de sus pasos, donde gime la niebla, sin saber qué trae consigo. El día, tan solo. Esta humedad, esta melancolía que insiste en acabarnos, que gotea impasible en la reseca costra de un corazón que arranca y se detiene. 58 Renquea una ambulancia al frío de faroles que se apagan. El ruido de las tazas, el mostrador cordial, la cerradura que abre otra jornada: ricardo pérez piñero ricardo pérez piñero La luz va dibujando el claustro lapislázuli del Paço, el lejano azulejo de colinas. 59 Soñábamos el mar entre trigales, el sendero amarillo que nos llevara a casa, madre pañuelo negro, y toda aquella luz abrasando la tarde sin ventanas en el mantel azul del cielo inmaculado. ricardo pérez piñero El agua de la acequia murmuraba canciones. Es grande la alegría de los pobres. Poco bastaba: un pan, el vino fuerte, y entonces la distancia, los cuchillos del aire en las colinas, y el tren que volvería anegado de lágrimas. 60 La ciudad desde el río, donde arde el agua a ciegas, encendía la luna blanca como la noche sobre los girasoles. mañana de abril Mirándote a los ojos, en la fotografía de la tarde, en la memoria, surca la mar el miedo. Un día recogió, reflejado tu rostro en un recibo, aquel desasosiego labios de un desayuno, el malestar, la prisa cuando la luz se apaga, –segundos, un disparo, la luz roja– que otro día captase aquel desasosiego la jornada siguiente, los sucesos enormes del periódico, cuando éramos tan jóvenes, con el agua y la vida por delante, las caras alongadas sobre el río. Vorágine. En el álbum se oxidan los contornos, se nos sepia la vida, aquella barbería Grándola de tu barrio, aquel pajero, aquel desasosiego ricardo pérez piñero alentejo 61 ricardo pérez piñero pasa un coche ( quesenosmuereaquí Resecasombraríodóndestamos ) aquella imagen líquida, las luces cotidianas, y el agua, y el cansancio de un viaje sin estación ni aduana, cómo duele cómo te va rastreando, cacheándote, indefenso, no puedes perdonarte las mañanas perdidas, este desasosiego que te muerde que te cerca en silencio, que te mira testigo, que te archiva a traición, vila morena passe-partout blanco-crema, desnudo como el agua del río ante la cámara, temblor trípode cierto este desasosiego que te que se me aferra a muerte. 62 manuel ribeiro autor autor manuel ribeiro 64 65 vigário O som emerge num crescente zumbido, tornando-se progressivamente mais forte até que no ecrã de plasma, outrora negro, surge uma imagem, um breve relance da realidade lá fora, do outro lado do plástico, para além das cores ajustáveis a esta realidade mais artística, mais brilho, menos brilho, um pouco mais de contraste, para que a sombra que o corpo deitado numa qualquer rua de bagdad projecta se torne um pouco mais viva, um pouco mais genuína. E depois o som desaparece, lentamente, seguro do seu trabalho cumprido (I own the tv, ‘cause tragedy thrills me) e certo de que o aparelho se manterá ligado por mais umas quantas horas, uns triliões de projecções de luzes que cada componente do ecrã terá de executar, num constante bombear de imagens, de cores, de contrastes, de realidade virtual, até que o som volte a surgir, no contínuo e lento desaparecer do desligar do aparelho, até mais não ser do que um zumbido distante, como uma mosca que paira 66 sobre um conjunto de corpos estendidos no passeio de uma qualquer rua de bagdad, com mãos escuras, sujas do pó de cimento que flutua no céu e no ar que respiram, fruto do suor e do trabalho do homem quando constrói maquinaria maciça, compacta, energética, uma prova de masculinidade e supremacia irrefutável da espécie, fruto do trabalho e do pensamento do homem, cuja mágica articulação de impulsos eléctricos, autor rogério sousa autor (whatever flavour, it happens to be like) 67 (killed by the husband, drowned by the ocean) Esta minha racionalidade, capaz de construir hospitais e centros de saúde, estruturas físicas e humanas que permitem o constante renovar do conhecimento da espécie, a intrínseca necessidade que o ser humano possui em reconstruir-se depois de fragmentado, de tentar levantarse depois de partir uma perna, ou de perder uma mão entre fragmentos de uma granada deixada ao abandono numa ruela qualquer de uma rua principal de badgad. Esta minha racionalidade, que permite um infinito e contínuo desenrolar de novelos de adn, que permite uma constante actualização de sinapses, de neuro-transmissores, de construções elevadas e filosóficas, construções capazes de questionar a existência desta minha racionalidade, (shot by his own son, she used the poison in his tea) de duvidar pelo prazer de fomentar sinapses, de fazer com que a transmissão neuronal seja mais elástica, mais capaz e mais rápida, numa constante actualização de software, de correcção de erros e desenvolvimento das mais avançadas ferramentas de protecção contra racionalidades nefastas, através da criação de antivírus, firewalls, bloqueadores de popups indesejados. Esta minha racionalidade, que no contínuo jogo neuronal admite a existência de um elemento inatingível e etéreo, uma estranha e complexa rede de pequenos fenómenos e factores, variantes e incógnitas, uma antiquíssima articulação hormonal e psicossomaticosocial que autor rogério sousa (then kissed him goodbye, it’s my kind of story) 68 me leva a querer algo mais, que me faz ansiar e desejar somente aquilo que a minha racionalidade concluiu já ser irreal. Um sonho… talvez uma eterna busca do sol benevolente, de uma calma e harmonia entre o eu e o teu, o meu e o nosso, esta estranha possibilidade de eternidade, de auxílio externo à minha consciência e vontade, ao meu parco enten- dimento, que será sempre limitado por células e carne e osso e músculo e órgãos e epiderme e pele e unhas e cabelos e beleza e mortalidade. Seio. Mas mesmo assim tenho uma estranha vontade de preencher este meu vazio que não é visível nos raios-x, que não aparece nos tacs nem nas ressonâncias magnéticas, e muito menos nas vossas ecografias. (it’s no fun until someone dies) É um qualquer estranho querer, um pedido de saber-me acompanhado, desejado, amado, compreendido e resultado de uma entidade superior que nos tem supervisionado até agora. Uma etérea presença, que desde a nossa inicial formação de barro e sopro de vida tem estado connosco, sempre presente na sua omniausência, segurando-me naqueles momentos mais aflitivos, em que pensei perder o pé e cair pelas escadas abaixo, em que sonhei cair freneticamente a três mil pés (‘cause I need to watch things die) de altitude, em vislumbrei a sua presença na minha inconsciência, na minha visão diurna e sonâmbula, percebi os seus sinais nas simples manifestações naturais que a minha racionalidade me havia anteriormente explicado, exemplificado, esquematizado no quadro negro de aprendizagem. Encontrei os seus indícios nos mais recônditos lugares da terra, em obscuras palavras que foram consciente e publicamente adulteradas, onde antes estava uma menina passou a estar uma virgem, onde estava um treçolho passou a estar uma cegueira, onde antes estava uma lua cheia passou a estar uma estrela guiadora, (from a good safe distance) e sei de verdade que a verdade que todos os dias me tentam vender como a verdadeira, essa outra verdade, essa complexa rede de acontecimentos naturais, de moléculas, de átomos, de órgãos, de neurónios, de sinapses e impulsos eléctricos cientificamente comprovados não passa afinal de um grande embuste, de uma tentativa de me ludibriar, de me enganar para que eu não seja correcto, para que eu não honre a sua existência, para que desacredite o seu nome, a sua verdade, a sua incondicional verdade dogmática e verdadeira. autor rogério sousa entre filamentos e neurónios e sinapses e conectores, que tão prosaicamente se denomina de racionalidade, produz. 69 Mudo o canal da televisão e o espectáculo repete-se, de canal em canal, testemunho o milagre diário da racionalidade, esta maravilhosa magia das sinapses e dos impulsos eléctricos, dos neurónios e das células neurotransmissoras, dos ossos e da pele, das pulsações cardíacas que comandam esta complexa rede que é o pensamento, e compreendo enfim a necessidade de me defender do inimigo da verdade, de implementar neste exíguo espaço limitado por mar um estado de vivência, de entendimento comum e compreensão (vicariously I live while the whole world dies) e então crio novas máquinas, novas técnicas de matar, novas e inventivas formas racionais de fazer com que o esforço do último suspiro seja menor, imperceptível quase, limpo. Mudo de canal e encontro novas armas. Sentado no sofá, segurando o controlo remoto da realidade lá fora, ajustando o contraste das sombras e a luminosidade das ruelas, criando uma genuinidade mais de acordo com a minha estética, conjecturo novas bombas, com novos alcances de destruição e novos estilhaços multidireccionados, (you all need it too, don’t lie) autor rogério sousa autor que rasgam a pele e a carne e os ossos de uma forma ainda mais rápida e mortífera do que como aquela granada, perdida algures numa troca de racionalidades e entendimentos diferentes, algures numa briga de tribos rivais, de milícias, numa incógnita e pequena ruela, perdida numa transversal semelhante a tantas transversais de uma qualquer marginal de uma qualquer zona de bagdad………………………………............................ Sinto-me feliz. 70 71 manuel ribeiro autor autor manuel ribeiro 72 73 poema em segunda mão potássio de ócio onde vais com tanta calma, caracol? à minha volta morrem as horas os dias vão se enterrando em mim. a poesia adormeceu e Deus nem notou(estava entretido a ler Nietzche). depois de partir olhei por cima do ombro e não vi nada nem ninguém apenas vento e cinza. a minha morte foi um duche frio e agora tremo estou limpo. os meus cabelos molhados gemem e arranham a madeira. a diária confusão da dívida com um dever o que fazer? mexer bem e juntar água aos poucos até os cães me olham de lado como quem olha um brinquedo usado não quero sonhos em saldo nem a vida em segunda mão espera caracol! onde vais com essa calma toda? r. de sousa há um desafio em cada olhar cada vez se morre mais devagar é no fundo do precipício que se esconde a chave do vício e caminho parado a uma velocidade constante mergulho sozinho no escuro instante autor rui de sousa autor rui de sousa Edgar Farniente 74 75 76 Foi sem reparar que reparou em ti. Pediu desculpa. - Deu a resposta errada? Foi a desculpa que arranjou Para que no fim Fizesses a pergunta certa. Falou-te de nós Nós sem rumo Nós nos dedos a entrelaçar A agarrar a tua mão para que - Não me largues! Por querer sem querer cair Vagarosamente No poço sem fundo das tuas mãos. Cair no precipício do teu olhar Para que te afundes Sem hipótese de fuga No abismo do seu. Depois partiu-se quando quis partir. Por querer que corresses atrás - Por que não vens? Vem apanhar os estilhaços Que de frente encontrei no teu olhar E pede que fiques mais um pouco Que assim tão pouco te sentes só. autor rui sousa autor rui sousa sussurro Depois Quando todos fogem Acende a ternura com um cigarro Para te confessar que fica Nem que seja mais um segundo Nem que seja mais um pouco Porque sabe a tão pouco O tão pouco que sei de ti. Porque se pode partir Até mesmo em estilhaços Mas não partirá nunca Porque o nunca São as três da manhã no relógio da torre Três da manhã no relógio da torre E ainda agora é tão cedo, por que não ficas? Fica Que nem que seja mais tarde Eu cedo. Eventualmente cedo Eventualmente tarde. 77 autor urbano bettencourt para Adelaide e Vamberto Freitas 78 Havia uma mulher sentada junto ao murete de pedra, nessa meia tarde de um Outono precoce em que visitámos as ruínas da Abadia de Howth. O guia turístico adquirido na recepção do hotel informava que Howth “has long been a favoured dwelling place for writers”. Mas, referida a Dublin, qualquer indicação sobre a presença literária na cidade será sempre redundante. Assim, a manhã esgotara-se entre a visita ao Dublin Writers’ Museum e a demorada passagem pela Martello Tower, aliás James Joyce Tower, cujos recantos e escadarias pareciam ressumar ainda a inquietação difusa perante a ameaça de uma eventual invasão napoleónica . A voz de Buck Mulligan, que nos havia transportado até aos alvores do século XIX num andamento pausado e a rondar a monotonia, adquiriu uma súbita vivacidade ao descrever o memorial joyceano. E ganhou uma inesperada gama de modulações e registos quando se pôs a evocar os acontecimentos dessa luminosa manhã de Junho de mil novecentos e quatro em que Leopold Bloom saiu de casa para comprar rins de carneiro e, ao entrar no talho, pediu tomates, num particular momento de perturbação espacial e linguística cujo eco o escritor Arménio Vieira faria chegar às ilhas de Cabo Verde. Em Howth não houve qualquer Buck Mulligan a falar-nos do remoto prestígio da Abadia e do fascínio que exerceu sobre os intelectuais da Europa medieval. Vagueámos pelo seu interior, tentando apenas surpreender ainda um possível rumor de passos e as vozes dos homens que ali, um dia, construíram o seu mundo por entre o recolhimento e a contemplação da Ireland’s Eye, separada de terra por um curto braço de mar e, mesmo assim, ilha longínqua, entregue ao seu destino de solidão e abandono. E tudo isso se harmonizava, enfim, com a melodia autor urbano bettencourt vozes no céu de dublin que a mulher sentada junto ao murete se pusera, entretanto, a entoar. Nessa noite, Briege Murphy cantava no Howth’s Abbey Center. Mas só quando começou a interpretar “The sea” me apercebi de que ela era, afinal, a mesma mulher que nós surpreendêramos junto às ruínas da Abadia. A sua voz desenhava um fio melódico que se erguia no ar em movimentos oscilantes, acentuados pelo dedilhado sóbrio do violão, e nessa ondulação devo ter pressentido os ritmos marítimos de SaintJohn Perse, o fluxo e refluxo das suas marés verbais, dos seus versos desmaiando sobre o corpo de uma ilha da memória. Talvez tenha mesmo tentado perseguir no rasto dessa voz o remoto apelo do mar que secretamente ecoa na poesia de Emanuel Félix. O mesmo mar que traçou para sempre o destino de Enrico Mreule, levando-o a trocar o fechado Mediterrâneo pelo Atlântico infindo, sem saber que este era, afinal, esse outro mar de Claudio Magris e onde tudo acontece. Lentamente, porém, a canção ganhava corpo nas palavras de uma dorida história de amor em que uma mulher a pouco e pouco se perdia de si mesma nas repetidas ausências do seu homem no imenso Atlântico selvagem: he takes a piece of me with him, each time he leaves the shore. Depois, uma fina amargura invadia os versos e a melodia até desembocar num desabafo derradeiro em que tudo era já sem remédio nem consolação: he won’t stay home for me, cause my love he has a mistress, she’s the sea. De súbito, naquela história de enamoramento e ciúme chegavam-me os ecos da belíssima abertura do romance Saudade, de Katherine Vaz, e nela vibrava a voz de Conceição Cruz, como se José Francisco tivesse decidido perder-se em definitivo da terra. E dei comigo a pensar como será bom saber que, de cada vez que sucumbirmos ao íntimo chamamento do mar, uma voz de mulher há-de erguer-se para chorar-nos o destino e a perdição. Assim, longe dos Açores e da Califórnia, ouvindo Briege Murphy no Howth’s Abbey Center, eu era ao mesmo tempo leitor e personagem do romance de Katherine Vaz. 79 manuel ribeiro autor manuel ribeiro 80 81 82 A minha meta é o Design Social – por isso, é importante dar o meu contributo à sociedade. Este transe atlântico é apenas o começo. Daqui a poucos meses estarei de regresso às minhas origens, às Lajes do Pico, local onde agora se abandona a cultura em prol de “outras coisas mais importantes”. Sou pequenino, mas tenho vontade de começar, tenho vontade de mostrar que a cultura é necessária e que é com ela que se educam as pessoas. Assim, aproveito este empréstimo literário e fotográfico para mostrar do que sou capaz. E, também, dizer que podem contar comigo para a grande e demorada luta de mostrar às pessoas que a cultura é necessária: um bem essencial. transe atlântico é um projecto pensado por mim mas que deve muito a Carlos Alberto Machado – é dele a coordenação de conteúdos deste número zero. Mais do que a mim e ao Carlos, este projecto deve o seu eventual valor aos colaboradores que com os seus registos lhe deram alma. É um projecto académico, mas considero-o um começo. Um começo para mais tarde fazer algo em maior escala. Este projecto é produção de cultura. Produção de custos controlados mas com conteúdo de valor incalculável. Porque é assim que classifico a cultura: não começa nem acaba em nós, passa por nós e de nós segue para o próximo. É isto que desejo transmitir às pessoas quando voltar ao Pico. Não é num só dia, ou num acontecimento cultural, que se educam as pessoas, é numa vida! O trabalho de produzir cultura não se reflecte apenas em nós, reflecte-se naqueles que vêm depois de nós. Por mais lucro que possa gerar, ou por mais despesa que dê, ela é sobretudo aposta na comunidade, de agora e do futuro. É preciso semear/plantar agora, para colher os frutos mais tarde. Porto, 13 de Junho de 2010 mauro santos pereira mauro santos pereira editorial Os Açores são um local de eleição, onde existe excelente qualidade de vida. Contudo, na contemporaneidade, qualidade de vida também significa cultura. Não serve de nada sermos o local mais bonito do mundo, se não soubermos como dele tirar partido. O Pico, em especial, tem problemas de fixação de jovens. Muita gente pensa que é devido à falta de comércio, ou à falta de investimento privado. Na verdade, por falta de sedimento cultural, pessoas que têm mais condições para investir não o querem fazer, porque pensam que as pessoas não aderem a determinadas coisas. Ou melhor, que as pessoas não aderem ao novo, pois classificam-no de “diferente” ou de “intelectual”, como se isso fosse motivo de negação. A cultura não pode ser só a de base tradicional. As nossas raízes tradicionais podem ser potenciadas pela cultura contemporânea. Mas atenção, este projecto não é uma vanguarda. É apenas uma tentativa de iniciar algo de sólido para o futuro Agradeço todo o apoio que me foi dado, em especial pela possibilidade de, com todos os intervenientes, semear cultura para construir um futuro melhor. 83 autor autor 84 85