transe atlântico

Transcrição

transe atlântico
transe
atlântico
transe atlântico é um projecto editorial
da autoria de Mauro Santos Pereira, para a disciplina
Estudos de Design, Licenciatura em Design
de Comunicação pela Faculdade de Belas Artes
da Universidade do Porto.
Junho de 2010.
Design
Mauro Santos Pereira
Selecção de textos
Carlos Alberto Machado
Colaboradores
Ana Francisco [Portugal] Cristóvão de Aguiar [Açores, Portugal]
Fernando Machado Silva [Portugal]
Francisco Piqueiro [Portugal]
Helder Moura Pereira [Portugal]
Inês Lourenço [Portugal]
Jaime Rocha [Portugal]
Jorge Fazenda Lourenço [Portugal]
José Maria de Aguiar Carreiro [Açores, Portugal]
Luís Maffei (Brasil)
Manuel Ribeiro [Portugal]
Mário Cabral [Açores, Portugal]
Miguel Manso [Portugal]
Paulo da Costa Domingos [Portugal]
Ricardo Pérez Piñero [Canárias, Espanha]
Rogério de Sousa [Açores, Portugal]
Rui de Sousa [Açores, Portugal]
Rui Sousa [Portugal]
Tomé Duarte [Portugal]
Urbano Bettencourt [Açores, Portugal]
6
7
34
Jorge Fazenda Lourenço
30
32
Jaime Rocha
28
29
Inês Lourenço
22
24
26
27
Helder Moura Pereira
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19
20
Fernando Machado Silva
13
16
Cristóvão de Aguiar
12
10
Ana Francisco
08
Carlos Alberto Machado
autor
78
80
Mauro Santos Pereira
82
Urbano Bettencourt
76
Rui Sousa
75
Rui de Sousa
74
67
72
Rogério de Sousa
58
60
61
64
Ricardo Pérez Piñero
53
56
Paulo da Costa Domingos
50
52
Miguel Manso
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45
47
48
Mário Cabral
39
40
42
Luís Maffei
37
38
José Maria de Aguiar Carreiro
autor
editorial
vozes no céu de dublin
fotografias de francisco piqueiro
susurro
poema em segunda mão
potássio de ócio
vigário
fotografia de manuel ribeiro
aurora
alentejo
mañana de abril
fotografia de manuel ribeiro
[presentes, os nossos antepassados]
fotografia de manuel ribeiro
o cristo de nampula
status report
o saber que escapa aos relógios
o saber do poeta
essência poética
fotografias de francisco piqueiro
andor
fotografia de francisco piqueiro
ordinateur
às ruínas de uma dama
o mármore que não lerás
lembranças de são tomé sem príncipe,
para o príncipe ruy cinatti (1983)
a cidade inventada (1, 2)
fotografia de francisco piqueiro
o meu melhor ângulo
sala provisória
[ah meu amor vem]
fotografia de tomé duarte
[não estás, mais uma vez não estás.]
[morreu-me entre as duas mãos o pássaro]
a morte é uma terra inacabada
lugar abandonado
a faca
páginas de um diário perdido
fotografia de tomé duarte
boris
magic poem with dutch landscape
um novo transe atlântico
8
A ligação da academia ao mundo exterior – empresarial, mas igualmente cultural, social e político é, creio, um dos desideratos fundamentais
da sociedade portuguesa. A nossa sociedade encara sempre com cepticismo, no mínimo, o académico que termina a sua formação e “chega
ao mundo”: não é inusual ouvirem-se coisas como “é só teoria”, “agora
é que vai mesmo aprender”. Simetricamente, a academia, em regra, não
recebe muito bem quem vem do “exterior”, e atribuem-lhe o labéu de
“inculto”, com “falta de preparação teórica”, etc. Estão, creio, equivocados uns e outros.
Seja como for, também por ultrapassar esta barreira, fictícia ou não,
é de louvar a iniciativa do Mauro Santos Pereira em realizar o seu trabalho de design de comunicação com recurso a textos literários e a fotografias de autor, como se de um autêntico trabalho editorial se tratasse. Isto é, transe atlântico pode ombrear, também por essa razão mas
igualmente pelo trabalho profissional do Mauro, com qualquer revista
de arte e cultura. Espero, aliás, que o projecto, em futuro próximo, se
efective no mercado (editorial e comercial).
Duas palavras sobre os conteúdos. Antes de mais, agradecer a disponibilidade de todos os autores em disponibilizar graciosamente os seus
textos e imagens inéditos.
As pontes em transe atlântico fazem-se com ligações afectivas entre
Portugal Continental e os Açores, de onde o Mauro é (orgulhosamente)
natural, e entre outro arquipélago, o das Canárias (Espanha), e o continental Brasil.
Lajes do Pico, 7 de Junho de 2010
carlos alberto machado
carlos alberto machado
um novo transe atlântico
As imagens, que não são ilustrativas de nada e que valem (muito) por
si só, e, embora em pequena quantidade, são excelentes exemplos da
diversidade do que se faz neste âmbito artístico no nosso país.
Agregam-se aqui textos, maioritariamente poemas, de “consagrados”
e de “novos ou novíssimos” autores. Forma, no conjunto, um bom
exemplo, embora heterogéneo, dos consolidados e sempre renovados
caminhos da literatura portuguesa e da boa relação que entretece com
os parceiros de outros horizontes criativos próximos, quer geográfica,
quer historicamente.
Naturalmente, nesta avaliação posso ser considerado “suspeito”
– pela amizade que me une à generalidade dos participantes neste transe
atlântico – e por isso me declaro “culpado”.
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boris
O segredo que os outros não vêem
é feito da magia enzimática:
da forma única ligante de seres
que não serve para mais nada.
ou como diria o outro:
o segredo é sempre feito das mãos, da pele e do gesto
que com a voz traduzem a força toda,
sobreelevam a necessidade
e glorificando os dias,
sublimam os encontros.
De dentro da espessura
dos dias,
que não chegando a ser de espuma
já não possibilita a respiração
viriam os movimentos
que se seguem a desacreditar
os outros.
ana francisco
O teu ser é feito do mundo
e das coisas que não se percebendo
têm de ser feitas;
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O teu ser é feito dos outros
e das coisas que não te levam
aos lugares certos
porque nem sempre o caminho é escolhido.
A ser criativo,
e para matar a história
cortar o fio.
A ser criativo
- dizia ele,
deves dizer três vezes – Não;
Para que seja feito de coisas novas
o dia novo
para que seja digno
e vital
como o mistério enzimático
que explica que tu tenhas as mãos e a pele
que servem a minha voz
que explica que tu tenhas os gestos
que transformam tudo.
Um dia,
será sempre pela invenção
para que retirando as camadas espessas
se descubram finalmente
os nomes daqueles a quem chamar
...
Enfim:
o sentido que a tua forma
atribui às minhas ideias
é de fogo.
autor
ana francisco
Desde que todos os que se encontraram
defronte do teu nome
e do teu ser
souberam escolher o caminho da liberdade;
a posição
o espelho
e os véus
eram cruzados
com a magia de saber coisas.
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páginas de um diário perdido
FarThing was a beautiful man that would never tell you
either what was inside his mind or what was outside.
Tornei a chegar à Ilha. Já havia cá vindo no primeiro mês do ano, mas
pouco me demorei. Semana e meia. Regressei ao princípio da tarde de
um domingo de eleições, nem esperei pela terça-feira seguinte, dia em
que marcara a viagem de volta. Antecipei o regresso. Tomei a lancha na
Madalena, atravessei o Canal, e fui apanhar o avião à Horta. De caninos
afiados, a solidão mordeu-me durante doze dias! Ela só me é benfazeja
quando estou de bem comigo e a posso enfrentar cara a cara. Marcado
de nódoas negras, tudo no imo me parecia negro e me doía. As pessoas
com quem não tenho qualquer afinidade, as coisas, e eu, naturalmente, por arrasto. Magoavam-me! Até a Montanha, que entreabriu a saia
a experimentar se me levantava os mecanismos eróticos, não conseguiu o seu intento e tapou-se logo depois. Cavou-se-me a depressão
que me sobreviera em fins de Maio do ano passado, após cortar cerce
com toda a medicação que tenho vindo a tomar há anos. Agravou-seme em Novembro seguinte, logo após a homenagem de que fui alvo na
Universidade - quarenta anos de vida literária! Tretas! Quis ser valente.
Algumas das pessoas que me rodeiam esmeram-se por vezes em lembrar-me que tomo comprimidos como uma galinha come milho. Quis
mostrar que era dono de mim. Só não lhes segui o conselho de comerlhe e beber-lhe à tripa forra! E foi o que se viu. Médico, medicamentos,
efeitos contraditórios até se acertar com a dose certa. O diabo entre as
couves! Agora vim para me esconjurar. Mas, como sempre, trouxe toda
a tralha interior comigo, mais o medo que me assaltou de me sentir nu e
desprotegido no miolo do desterro de há quatro meses. Esconjurar-me
de quê? Escrevendo. Serei capaz? Nem que seja escrever sobre a impossibilidade da escrita... Não me esqueci de nenhum tareco! Se ao menos
pudesse recomeçar tudo de novo!
Louis FarThing started his lying process around nineteen eighty one,
aged seven, by disconnecting himself from his mother.
autor
ana francisco
By fourteen he disconnected himself from his father;
after twenty-one there was only him
and some female bodies to embrace in questionable moments.
At twenty-eight there was nobody left.
and everything was perfect.
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cristóvão de aguiar
magic poem with dutch landscape
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vos já de si fragilizados e em franja. Leio mas pouco assimilo. Dispersão total. Não percebo o que vou lendo. A mente rodopiando por Ceca
e Meca. Mudo de livro como quem muda de camisa. Vou experimentar
um de estudo. Dizem que faz bem ao ego reler os livros por que se estudou em outra idade. Não os tenho comigo, a não ser alguns da instrução primária. Hei-de reler a História de Portugal, de Tomás de Barros.
A minha cabeça tornou-se numa pedra dura. Não terá sido sempre assim? O tempo também não pára quieto e anda às avessas, como me disse
uma vizinha, “Anda o mundo ápsaidedaune...” Tem um binóculo em
cima do peitoril da janela. para vigiar os barcos que navegam no Canal e sobretudo as pessoas nos seus quintais ou que se aproximam ao
longo da estrada. Este costume vem do tempo da baleação. Logo que se
divisava baleia no mar, estalejava um foguete no ar e passava-se palavra para que os baleeiros acorressem aos barcos. Como acabou a caça
à baleia o binó-culo serve agora para vigiar o semelhante. O outro dia
queixava-se uma vizinha para a que lhe fica defronte: “ O meu filho não
deve andar por bons caminhos; esta noite che-gou-me a casa à meianoite!” E a outra: “À meia-noite, não; à meia-noite e dez...”
O mau humor do tempo ainda não desamparou a loja. Já vamos entrados no derradeiro mês da Primavera e ele continua a fustigar a mente e o corpo. Mais aquela do que este. Nevoeiro, chuva, vento, frio! Andam ambos mancomunados para me codilhar. Sou sensível aos fluidos
atmosféricos. Os ilhéus com a minha natureza são os que mais penam.
Tanta esperança tinha eu posto nesta estada na Ilha para me restabelecer de mazelas psíquicas. Nunca mais tomo juízo. Ando embuziado.
Não me consigo sofrer, quanto mais os outros. Deixo à minha volta uma
clareira de silêncio. E quanto mais me apontam o dedo tanto mais me
custa vencê-lo. A vida está-se-me tornando num fardo. Cansado de viver assim. Acabar com ela seria uma boa solução. Falta-me coragem
e tenho medo. Há quem sustente que o suicídio é uma cobardia. Penso
o contrário. Julgo que é um acto heróico. Apetece-me fugir para onde
me não fizesse companhia.
cristóvão de aguiar
cristóvão de aguiar
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À chegada, o tempo agoniado, o tecto baixo. A Montanha cingida por
um maciço de nuvens pesadas em grossa muralha. Bastou-me essa adversativa para que a depressão de que me julgava já meio sarado principiasse a dar alguns sinais. Conheço-os. Uma tristeza indefinida. Sem
objecto nem causa. Começa sempre por esse agravo. Como um vómito,
trouxe-me à boca do estômago a matilha dos fantasmas. Que queres tu
da vida? A Ilha em frente, meio velada, carregou mais a negrura de me
sentir estranho. Há gente que sofre mais e não tem tempo para ficar
deprimida... Deu-me agora para me sentir estranho. Aqui. Não o serei?
Espero reencontrar-me na primeira encruzilhada. Haverá um mundo
onde eu caiba? Estranho. Tanto que queria eu continuar a escrever! Tenho de ter uma conversa a sério comigo. Que te falta?
Devagar, muito lentamente, tomo a temperatura à casa. Tudo limpo e nos seus lugares, como se dela tivesse saído ontem. Já não me sinto
nela como antes. Que se passará? Que estará a acontecer ao meu sonho
pedra a pedra construído de ter uma casa de escrita, à beira-mar, com
uma Ilha defronte? Tenho-a. Enchi-a de livros e de alma para me sentir mais aconchegado. Quase não leio e não sinto vontade de escrever.
E agora caí num covão de mudez. Pouco ou nada falo. Não me apetece.
Guardei para esta altura da vida a releitura de certos clássicos mal assimilados nos tempos de estudante. Julgava que neste sossego estaria
nas minhas sete quintas. Tenho-os, aqui, encadernados a olhar-me das
estantes. Já não tenho tempo! Não sinto cobiça. Apetece-me reenviar
tudo para a origem.
No fundo sei muito bem o que me atormenta - a escrita. Já me vai
faltando nervo. Um escritor meu conhecido dos tempos de estudante,
o primeiro com quem falei, disse-o há tempos numa entrevista a um
jornal literário. Perguntado por que não publicava há mais de vinte
anos respondeu: “Também gostava muito de jogar ténis, mas faltamme os músculos nas pernas e nos braços; com a escrita passa-se o mesmo; tudo tem a sua época, não é preciso fazer disso um drama...” Tão
simples mas tão custoso de se pôr em prática. Já não tenho nada para
dizer em escrita. Se calhar, nunca tive senão a ilusão disso. Por que se
exige a um escritor que esteja em pleno até à hora da morte? De facto
não fica bem ouvir-se: sou um aposentado da escrita...
Foi-se o Sol e veio a chuva e um vento fresco. Águas grossas. Nem
a Ilha em frente se enxerga. O mar continua prateado e chão. Vejo-o
daqui da janela. Não deve demorar-se muito. A chuva. Entisica os ner-
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tomé duarte
autor
autor
tomé duarte
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a morte é uma terra inacabada
lugar abandonado
“quem decide a paisagem da vida?”
José Angél Cilleruelo
fernando machado silva
os muros circundam aquele pedaço de terra
e o horário de trabalho fecha
por completo o carpir das velhas
mulheres. isto nunca acaba,
sempre há novas ervas a arrancar
folhas que ocultam os nomes
queridos dos idos sempre antes
do tempo. dizem
ao ouvido das lajes:
fazes cá falta, a vida
é dura para uma pessoa só
quando se tem duas
casas a tratar
e um amor a cumprir
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tomámos um velho palacete
na praça de espanha
ainda o pórtico da liberdade
se estendia entre as ervas e o musgo.
de lá fizeram segunda casa
caras que só vejo hoje três –
quando fazia do punk
a alternativa à família
embora mesmo aí fosse estrangeiro
– outros ao fim-de-semana
para copos charros conversa
e muita música.
projectou-se um centro, fez-se
uma biblioteca, um bar
uma oficina de serigrafia…
mas já não sei se foram
as forças da ordem ou do caos
que fizeram desse sonho,
que agora encontro, um
lugar abandonado às ervas daninhas.
fernando machado silva
para o Filipe Quaresma, Pedro Neves e Rui Caetano,
entre outros amigos de aventuras
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autor
fernando machado silva
para os meus irmãos
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jogávamos ao mundo
ou como é que esse jogo
espécie de risco
se chama, frente à casa
da minha avó. o círculo
desenhado com mestria
infantil por um graveto
ou a bota enlameando-se. a mim
não me foi permitido participar
a disputa era entre os mais velhos
irmão e primos e eu
aprendia, vendo, para mais tarde,
já grande, saber como conquistar
o respeito de desconhecidos.
lançavam-se, creio eu, três vezes
a faca à terra e traçava-se
um pequeno território. a discussão
não tardou e a faca atirada
procurou o redondo do rosto de um
dos meus irmãos. foi o cabo,
por sorte, que embateu. logo
o choro e a gritaria e o concílio
dos ainda mais velhos
deu por terminada a guerra
tratando dos dói-dóis
autor
fernando machado silva
a faca
com beijos bolos sumos
salame de chocolate.
daí em diante,
em cada discussão,
mantive sempre um olho
nos argumentos o outro nas mãos
à procura de facas
não sabendo qual
a mais perigosa.
21
Ah meu amor vem
ter comigo
ao Starbucks de Belém.
Não tragas relógio, porque eu não consigo
estar contigo a pensar no tempo
e a reparar que olhas para o relógio,
é um vício mas a mim parece-me sempre
que te queres ir embora,
que não queres estar comigo.
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Impaciente vou até aos pastéis
e olho um certo tempo para o rio.
Aceitaste vir ter comigo
ao Starbucks de Belém
e não sei se trazes um livro para discutir comigo
ou se um beijo no sorriso à distância.
Tragas o que trouxeres
és tu e basta, mas não tragas o relógio
e deixa-me ver o teu pulso branco,
deixa-me passar os lábios pelas tuas veias pequenas.
autor
helder moura pereira
E um livro também não.
Um livro é para leres no eléctrico,
a não ser que o queiras discutir comigo
e nesse caso então está bem.
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autor
tomé duarte
autor
tomé duarte
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Não estás, mais uma vez não estás.
Uma aflição os minutos da tua demora.
As minhas mãos passam de quentes a frias
e no coração um outro frio se agita.
Não há dúvida, o amor é exagero.
Beijo-te logo à entrada da porta
como se fosse verdade ir acabar o mundo
antes de acabarmos nós.
Eu sinto nervosismo em vez de paz
e por isso uma vez fui-me embora.
Mas o amor é como todos os dias,
vai dormir ou morre e depois ressuscita.
Morreu-me entre as duas mãos o pássaro
vadio, era o meu peixe azul num aquário,
o fanatismo de ser de um clube, o meu ídolo
com as suas pequenas patas de barro.
Visitava-me muitas vezes, cheguei a crer
que era mais do que um, mas não, era
sempre o mesmo, o meu pássaro com asas
de um negro radioso, talvez não fosse negro,
talvez fosse às riscas, mas o bico, esse
era amarelo torrado e nunca há-de haver outro
como ele. Não lhe dei de comer, porque ele
não precisava, ele desenvencilhava-se sozinho,
acompanhou-me na velhice dos dois sem nada
exigir e agora, de asas caídas e patas trémulas,
veio morrer às minhas mãos o meu amigo.
autor
helder moura pereira
autor
helder moura pereira
É bom programa evitar o desespero,
fazer do silêncio uma coisa morta.
Para com um único gesto profundo,
sem palavras te imaginar a voz.
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Prefiro o agudo. Muito menos o recto
e nunca o obtuso. O raso adormenta
todas as audácias e o adjacente agrega-nos
em parede mútua e indissolúvel. Assim,
é no estreito e resguardado vértice
do agudo que apetece ficar, abrigada
do rotundo e celebrado círculo.
Nunca se sabe
quando estamos num lugar
pela última vez. Numa casa
que vai ser demolida, numa sala
provisória que vai encerrar, num velho
café que mudará de ramo, como
página virada jamais reaberta, como
canção demasiado gasta, como
abraço tornado irrepetível, numa
porta a que não voltaremos.
inês lourenço
sala provisória
inês lourenço
o meu melhor ângulo
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a cidade inventada
1.
2.
A cidade continua o seu ciclo de ervas
As poças encontram fios de nylon no
interior da água e as pedras soltas
rebentam os nós de todas as árvores.
Uma mulher inclina-se para as cinzas,
para as margens dessa cidade onde tudo
aparece envolto numa espécie de lixo
acumulado. Os passeios morrem com
o dilúvio dos pombos. Há um desejo
secular nos passos do homem, um olhar
que se vislumbra num espelho antigo
que vem do tempo dos cães e que
marca o destino das aves.
Morre também a humidade dos muros.
E são os bichos que seduzem a mulher,
para que o seu uivo se desloque para
as pontes, para um outro lugar fora do
rio, um lugar movediço coberto com
um plástico vermelho. É aí que o homem
coloca as armadilhas, nessa devoção pelos
pássaros, pelas estátuas. As suas mãos
tremem ao surgir da noite. As cordas
ferem-no nos braços, salpicando a terra.
E tudo à sua volta se transforma numa
sombra, num espaço feminino.
jaime rocha
autor rocha
jaime
Lisboa, Abril de 2010
30
31
autor
tomé duarte
autor
tomé duarte
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4.
Pela beira das escolas
Um alvor de miúdos
Lembranças de São Tomé
sem Príncipe, para o príncipe
Ruy Cinatti (1983)
Dedos de outros lábios sugam
Canas sequiosas
Amarras de açúcar.
5.
Como aves de repouso em demanda
De uma gota de púrpuro verde
Existe
O fulgor de aportar em ilha
Num azul despenhado imenso.
2. (fortaleza de são sebastião)
Conheço destas pedras a vertigem, não
Assim erguidas contra o mar,
De sabores trocados em roda
De engenho que engenho trouxe
− Memória, um pouco
Espera.
jorge
autor fazenda lourenço
3.
34
As areias desta praia do imperador desertas
Águas claras de aguados olhos
Senhor outro terão.
Velozes
Na lentura espessa de cacaueiros
A estrada líquida roça
Roças de outrora e nós
Suando a fundão
Para a vila adivinhada
Em rastilhos de sòcòpé.
6.
Viemos agora mesmo de rio do ouro
Por uma alameda rumorosa de palmeiras
E um vento acre de despedidas.
Do que tu precisas (que é como quem
Pede) é dessas sombras −
Como o cacau das eritrinas
Para a memória das raízes
Vingar melhor seus frutos.
7. café baía (esplanada)
Imperador que aqui pisou
Nesta praia deixou areias
De amador que não voltou.
Aqui mete-se o corpo
Em olhos estendidos
Ao mar que da baía
Ana chaves em semi-círculo
Se abre de murmúrios
A memórias de infinito.
jorge fazenda lourenço
1.
35
Aqui, santuário exíguo
Ou foz de água grande,
Na tarde soltam de falcões
Seu voltear insondáveis
O azul de cavas sombras.
É como o tempo, humano
Verde, de deuses fixo.
às ruínas de uma dama
“Te espera el mármol / que no leerás.”
Jorge Luis Borges, El outro, el mismo
Este ocá que me protege
Será meu sol de canoa
Espiando o voador
Ou o vermelho
Horizonte.
Neste tronco hei-de voltar
E de colher framboesas,
E colorir meus olhos
Para lá dos imbondeiros.
Remirada ilha.
Reverdecido azul.
jorge
autor fazenda lourenço
9.
36
Amanhecem acácias
No relento respirar
Da lagoa azul.
Vai,
Colhe de andalas
Um braço de arder.
É perto, tua morada,
Tua concha de água,
Canto e fim.
Demora-se pelos corredores a velha senhora
falando aos cantos por onde os olhos se acamam.
Da janela descortina as plantas e o chuvisco que brilha
na trajectória descrita por seus olhos azuis.
Um fio de azeite unge as mãos e os pés,
o corpo cinzento entregue ao espaço.
A porta está fechada. O quarto escuro. Os cestos cheios.
Uma rapariga parou, um pouco embainhada à luz.
Veste-lhe novelões nos braços o cortinado.
Onde a fundação da memória, a horta calcinada,
as vigas de madeira e os pregos ainda novos.
Passam lá fora os constrangimentos,
consequências da guerra que ordena às plantas.
Toca os vidros pelos quais sente o efeito exterior
ao circuito fechado do pensamento.
Ah a cegueira e o assombro. As canções da tarde. Os beijos.
A portentosa escarpa piscando nos olhos
e os tijolos altos cercando a testa.
josé maria de aguiar car\reiro
8.
37
andor
Ainda agora comias no prato dos cães.
Com unhas falas do destino que tentaste contrariar
e falas da sua mão pesada que te açoita.
Ofendes o velho guarda
infantilizando a sua voz e o seu cajado.
O universo espera-te enquanto trabalhas e aparas a barba.
Pensas nas Erínias que te despedaçam.
Agora estavas aos beijos, a janela fechada, a pouca luz,
num resguardo contra a raiva.
Não respondas. Contorna os lábios,
uma romã para dentro do peito.
Quantas horas foram perdidas
sem que um único momento fosse visível.
Fala-me. Introduz o espírito nas aldrabas da memória.
O sonho incandescente. A luz directa sobre as pedras.
Eu digo o que me resta: desconheço,
só dão notícias vagas de ida e volta.
Será correr com o andor de porta em porta
o monstro de arrastar? Qual o seu preço?
Jejuo porque julgo que o começo,
havendo fome ou parto, não suporta
o exíguo camelô que incerto aporta
enquanto a espaço e vácuo eu endereço
o trinco, a trema, o homem com a mochila
exposta no sair do hipermercado,
será que é isto o mundo? Isto a tranquila
entrada do jejum no mesmo lado
em cuja embarcação mais de um gorila
urina sobre os pés do retornado?
Pediram que o andor formasse fila,
ouvi que o monstro arqueja de suado.
autor
luís maffei
josé
autormaria de aguiar carreiro
38
o mármore que não lerás
39
autor
francisco piqueiro
autor
francisco piqueiro
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41
o saber que escapa aos relógios
Estar perto da origem do vento é
em todo caso
ou
neste
ventilador sem som nem
cabelo a mover-se acima das
cabeças abaixo dos
telhados em direção a
flancos pontos
exclamativos: nalguns
lugares ou
¿que sei eu?
neste
nem sempre o vento é fio
ordinateur
nem sempre
mata.
Era uma vez um país onde os cegos davam longos passeios à beira-mar.
Arregaçavam as calças mas não se importavam de molhar as meias
por detrás das sandálias.
Desta forma elaborada dissertavam sobre a cor das águas.
Um dizia: «Quantas cores supões caberem dentro duma só vaga?»
Outro respondia: «Todas aquelas que sinto nos pés
as confirmas no coração».
«Donde te vem sabedoria assim tamanha?», retorquia o primeiro;
ao que o segundo exclamava:
«Da ignorância subjacente à tua pergunta».
Eu, que olho tanto para o mar, começo a intuir a minha cegueira
E já sinto o desconforto dos pés frios, condição indispensável
Para quem espera sem compreender a demora.
Deveria já ter resvalado para aquele país.
Por exemplo, já não vejo as coisas mas o espaço que há entre elas;
E não vejo os órgãos mas o intervalo que há entre eles
Espaço de fase, diz-se na Física quântica.
Por exemplo, já não me importo com o tempo dos verbos nem com
a colocação rigorosa dos ficheiros.
Quase sempre paro as tarefas a metade, interrogando-me sobre aquilo
que sabia antes de nascer.
Nas muitas longas horas que dedico à contemplação do mar nascem
as sombras do futuro
E no lugar do futuro eu vejo-me sentado com grande pena de mim.
Não sei onde vou buscar a coragem para vos revelar
todos estes segredos;
autor
luís maffei
Romba emboscada:
¿o que se come
sem
fruta nem boca?
42
autor
mário cabral
ordinateur
43
autor
mário cabral
Casa das Tramóias, Terça-feira, 9 de Março, Quarta-feira, 10 de Março A.D. 2004
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o saber do poeta
O Saber do Poeta consiste em ter na mão uma gema de ovo
Ver na gema de ovo o sol e sofrer queimadura de terceiro grau
Ter a palma da mão puro espelho reflexifulgente
Obrigar, portanto, a linguagem, como se vê, a reflectir
A reflexão do Poeta é a que vê mais perto:
Vai da gema para o sol, vai da gema para a pedra preciosa
Vai da gema para as chagas de Cristo
Vai da gema para o Conhecimento gemelar de todo o Ser.
E pela queimadura da mão entra no corpo o sol
Incendeia a mente do Poeta que, porque mente
E a esta escala, não pode ser levado muito a sério
Por quem se encontre em patamar inferior da escada.
O Poeta grita alto, ele avisa do alto do altíssimo:
- Não se aproximem dos ovos! E o eco justamente repercute:
- Aproximem dos olhos! Aproximem dos olhos!
Ao mesmo tempo mostra a palma da mão livre. Pretende exemplificar
O Universo inteiro está nas linhas deste mapa que respira.
De algum modo o povo reconhece o Saber do Poeta
Há que ser apenas um a salvar o Pai sol do anonimato;
Reconhece o sangue frio do toureiro e, por conseguinte, nos dias de festa
O Poeta deixa a cozinha, enverga o traje da Luz, entra na arena
Uma arena é ainda uma gema, percebe-se pelo som das palavras.
Vitorioso, a corrida é paga com cestas e cestas de ovos e ovos
Que o Poeta leva para o alto, para o altíssimo
autor
mário cabral
Repararam, por certo, na minha forma de falar, em moldes
que não são permitidos.
Dir-se-iam quase escandalosos e por isso eu peço perdão.
Vejam bem: ainda me falta aprender a falar silenciosamente.
A verdade é que ganho a vida como professor e, confesso sem vaidade,
sou famoso como tal.
É tudo tão estranho: nas novas salas de aulas a Cruz
foi substituída pelo relógio.
Dantes ela estava à frente, em cima de mim; agora ele está
nas costas dos alunos
Cínico, só eu o vejo, obriga-me ao descrédito geral, à vergonha.
Um destes dias não resisti; os cegos estavam parados no beijo
das ondas. Gritei bem alto:
«Sou eu quem vos permite a felicidade. Mandem outro
para o meu lugar!»
Fingiram não ouvir-me; mas de imediato eu fui rodeado pelo bater
ensurdecedor das asas seráficas
Pelo que tenho a certeza absoluta que me escutaram.
Hei-de pagar o meu atrevimento, esperando tanto mais absurdamente
quanto decidi deixar de ler as horas
45
Vai acompanhado por um aprendiz que deixa a família a chorar
No alto do altíssimo vai chocar os ovos e de cada ovo
Uma estrela e é por isso que nesta língua circular
Se chamam céus estrelados aos céus da felicidade
Da plena felicidade, da plena felicidade.
essência poética
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Na Sexta-feira Santa do ano da Graça de 2005
Depois do ofício da Paixão do Senhor
Eu, abaixo-assinado Cabral, saí para passear os cães
Pelo caminho tantas vezes percorrido.
O furacão estava a passar e eu vi o arco-íris no céu.
Então pensei: «Bom sinal».
Mais à frente, um cavalo branco de freio escarlate
Passeava livremente pelo meio da marginal
E eu cheguei a temê-lo porque nos seguia.
Quando cheguei à Casa das Tramóias
Minha irmã mais velha avisou-me que jantaria a sós
Porque ela iria visitar minha irmã do meio
E a mais nova estava indisposta do estômago.
Enquanto comia folar e ovo cozido com chá verde
Ouvi na televisão que um dos corpos
Dos dois pescadores da minha freguesia
Desaparecidos durante a tempestade
Dera à costa noutra ilha. Não tinha a cabeça nem uma perna.
Estes factos deram-se assim mesmo há menos dum par de horas.
Poderia, se quisesse, dar-lhes tratamento simbólico
E até referir o Fedro, de Platão, por exemplo.
Mas não quero. A minha vontade é outra.
Procuro, deste modo, mostrar a essência poética
Linguagem tão descritiva como outra qualquer
Embora mais exigente, mais culta, mais elaborada
Por outras palavras, excelência humana.
Casa das Tramóias, Sexta-feira Santa, A.D.2005
autor
mário cabral
autor
mário cabral
Casa das Tramóias, Abril, A.D. 2004
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francisco piqueiro
autor
autor
francisco piqueiro
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o cristo de nampula
reencontrei-o num copo largo que abarcava um conjunto
prodigioso de esferográficas secas e lápis caducos, no escritório
de casa dos meus pais
e só agora me apercebo da eloquência que a mutilação assentiu
e do sentido que faz incluir nesta colectânea um poema onde caiba
o ex-crucifixo que tenho agora sobre a secretária, à luz do candeeiro
este Cristo preto, compacto, completo
posso começar por embutir nesta estória o mestre
Frank Arroni N’taluma – tenho o cartão dele algures
entre a papelada – o escultor makonde morto
há uns anos num acidente de carro em Moçambique
e que agora, ileso, bebe copos na Bica
foi precisamente aí que, numa noite, me contou das
cinquenta mulheres do seu avô, metade em cada margem
de um rio atravessado a nado apenas de seis em seis meses
mas de nada serve, em todo o caso, a inclusão no texto
desta figura, já que o objecto que pretendo descrever
só por indecifráveis enredos a ela estará apenso
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à cruz, tê-la-ei separado do corpo, pelo que agora se perdeu
e ao corpo falta um braço, o esquerdo, que ninguém saberá dizer
onde está, acaso se pretenda reconstituir o Cristo de Nampula
que brotou do contacto serôdio e missionário com a tremenda
inclinação para a beleza do povo banto
autor
miguel manso
autor
miguel manso
refiro-me a um crucifixo comprado pelo meu pai num mercado
em Nampula durante a guerra, e que foi parar, anos depois, à caixa
de brinquedos que eu, ao tempo da infância, tinha sob domínio
51
status report
já não tenho a vida toda (faço trinta
o mês que vem) e a verdade é que nem
na morte se pôde alguma vez confiar
miguel manso
muito mal contado, isso da morte
52
Presentes, os nossos antepassados
E param, olham
com os seus olhos húmidos
fachadas que ajudaram a construir, e
param, porque o município
não recolheu um pombo morto, pensam
no seu próprio destino, solitário, de morte
para breve, inclinam-se um pouco
a cabeça como elefantes, olheiras
densas, o sol que não abre. Param
doridos dos joelhos, já
não são como dantes as costas,
só fachadas ergueram e tapetes de dúvidas
para esconder carcaças ósseas
do muito que ficou por enfrentar ou assumir,
olham pendentes para ambos os lados, param,
urinam-se, mesmo inertes são seres,
compêndios de dinâmica, arma
à beira de explodir na indiferença urbana
e, pois não!: civilizada. Devagarinho
arrastam uma réstea de sol, só memória,
só impulsão de cadáver para a superfície
de uma saia que passa, e voltam-se...
Um jagunço os encosta a um vão
da fachada que ajudaram a erigir, borram-se
enquanto os roubam e a crueldade do sol
autor
paulo da costa domingos
sou comarca onde parou de chover
e quem não se lembra da sanguechuva
que foi em tempos este coração
53
abre-lhes o coração, param, param,
sustenidos e desfeitos em saliva: baba.
Têm galhos, que caem, contra vontade,
e caem olhando-nos. Acenam atirados
para um canto como um livro
que se abandonou, cantos virados, orelhas
por onde o papel há-de rasgar, podre
dos vícios lúbricos da sua história.
Os velhos – estamos sempre a gritar-lhes.
Olhos húmidos de raiva, papos
com as águas a romper, bengalas hirtas
como antigas vergas ameaçadoras,
ali aparafusados aos sofás, perderam-se
dos seus animais de estimação num dia
incendiário e sem qualquer nexo
com gente a descer e subir
escadas-rolantes sobre soalhos
flutuantes sob tectos falsos. Poderia,
sei lá!, pensar-se que não pensam
assim parados, mas não é verdade.
Depressa, que o tempo mal chega, depressa,
as pinturas de guerra, o verniz das unhas,
os aparatos, o autocarro que se perde
à distância. E segurar-se em bicos dos pés!
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Fazer a barba, à pressa, depressa, o nó
da gravata, um botão de punho
que está prà-i caído... que maçada!
Enquanto a mulher acorda, algo
lhe diz, pelo sangue na almofada,
sangue do livro ainda adormecido:
continuo viva. Com um círculo de sal
à volta, feito desmazelo de roupa interior
e um tabuleiro onde chávenas de cafés
nidificam certa sujidade moral.
Param, os tais. Acenam uma separação
que vai ser irreversível, coração na boca
e duas pedras frias na mão, entregues
a lares onde o poema nem sobrevoa
nem é real, na companhia veterinária
de parceiros no abandono, porque o dono
está demissionário... ou no desemprego
confinado a já só ter pressa de ter pressa.
autor
paulo da costa domingos
paulo da costa domingos
autor
Os velhos, ó se estamos sempre a gritar-lhes,
piores que crianças, pelo contrário.
55
francisco piqueiro
autor
autor
francisco piqueiro
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aurora
“I know not what tomorrow will bring”
Fernando Pessoa
no han de tardar las jóvenes cajeras
de Pingo Doce.
Muertos automóviles
bocinan otro día duplicado,
el mismo que se deja amanecer,
dudando de sus pasos,
donde gime la niebla.
La luz rompe a brochazos en lo oscuro,
dudando de sus pasos,
donde gime la niebla,
sin saber
qué trae consigo.
El día,
tan solo. Esta humedad,
esta melancolía
que insiste en acabarnos,
que gotea impasible
en la reseca costra
de un corazón que arranca y se detiene.
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Renquea una ambulancia
al frío de faroles que se apagan.
El ruido de las tazas, el mostrador cordial,
la cerradura que abre otra jornada:
ricardo pérez piñero
ricardo pérez piñero
La luz va dibujando
el claustro lapislázuli del Paço,
el lejano azulejo de colinas.
59
Soñábamos el mar entre trigales,
el sendero amarillo
que nos llevara a casa,
madre pañuelo negro,
y toda aquella luz
abrasando la tarde sin ventanas
en el mantel azul del cielo inmaculado.
ricardo pérez piñero
El agua de la acequia
murmuraba canciones.
Es grande la alegría de los pobres.
Poco bastaba:
un pan, el vino fuerte,
y entonces la distancia,
los cuchillos del aire en las colinas,
y el tren que volvería
anegado de lágrimas.
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La ciudad desde el río,
donde arde el agua a ciegas,
encendía la luna
blanca como la noche sobre los girasoles.
mañana de abril
Mirándote a los ojos,
en la fotografía de la tarde,
en la memoria, surca
la mar el miedo.
Un día
recogió, reflejado
tu rostro en un recibo,
aquel desasosiego
labios de un desayuno,
el malestar, la prisa
cuando la luz se apaga,
–segundos, un disparo, la luz roja–
que otro día captase
aquel desasosiego
la jornada siguiente,
los sucesos enormes del periódico,
cuando éramos tan jóvenes,
con el agua y la vida por delante,
las caras alongadas
sobre el río. Vorágine.
En el álbum
se oxidan los contornos,
se nos sepia la vida,
aquella barbería
Grándola de tu barrio,
aquel pajero,
aquel desasosiego
ricardo pérez piñero
alentejo
61
ricardo pérez piñero
pasa un coche
( quesenosmuereaquí
Resecasombraríodóndestamos )
aquella imagen líquida,
las luces cotidianas,
y el agua,
y el cansancio de un viaje
sin estación ni aduana,
cómo duele
cómo te va rastreando,
cacheándote, indefenso,
no puedes perdonarte
las mañanas perdidas,
este desasosiego
que te muerde
que te cerca en silencio,
que te mira testigo,
que te archiva a traición,
vila morena
passe-partout blanco-crema,
desnudo
como el agua del río
ante la cámara,
temblor trípode
cierto
este desasosiego
que te
que se me aferra
a muerte.
62
manuel ribeiro
autor
autor
manuel ribeiro
64
65
vigário
O som emerge num crescente zumbido, tornando-se progressivamente
mais forte até que no ecrã de plasma, outrora negro, surge uma imagem, um breve relance da realidade lá fora, do outro lado do plástico,
para além das cores ajustáveis a esta realidade mais artística, mais brilho, menos brilho, um pouco mais de contraste, para que a sombra que
o corpo deitado numa qualquer rua de bagdad projecta se torne um
pouco mais viva, um pouco mais genuína.
E depois o som desaparece, lentamente, seguro do seu trabalho cumprido
(I own the tv, ‘cause tragedy thrills me)
e certo de que o aparelho se manterá ligado por mais umas quantas
horas, uns triliões de projecções de luzes que cada componente do ecrã
terá de executar, num constante bombear de imagens, de cores, de contrastes, de realidade virtual, até que o som volte a surgir, no contínuo
e lento desaparecer do desligar do aparelho, até mais não ser do que um
zumbido distante, como uma mosca que paira
66
sobre um conjunto de corpos estendidos no passeio de uma qualquer
rua de bagdad, com mãos escuras, sujas do pó de cimento que flutua no
céu e no ar que respiram, fruto do suor e do trabalho do homem quando
constrói maquinaria maciça, compacta, energética, uma prova de masculinidade e supremacia irrefutável da espécie, fruto do trabalho e do
pensamento do homem, cuja mágica articulação de impulsos eléctricos,
autor
rogério sousa
autor
(whatever flavour, it happens to be like)
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(killed by the husband, drowned by the ocean)
Esta minha racionalidade, capaz de construir hospitais e centros de
saúde, estruturas físicas e humanas que permitem o constante renovar
do conhecimento da espécie, a intrínseca necessidade que o ser humano possui em reconstruir-se depois de fragmentado, de tentar levantarse depois de partir uma perna, ou de perder uma mão entre fragmentos
de uma granada deixada ao abandono numa ruela qualquer de uma rua
principal de badgad.
Esta minha racionalidade, que permite um infinito e contínuo desenrolar de novelos de adn, que permite uma constante actualização de
sinapses, de neuro-transmissores, de construções elevadas e filosóficas, construções capazes de questionar a existência desta minha racionalidade,
(shot by his own son, she used the poison in his tea)
de duvidar pelo prazer de fomentar sinapses, de fazer com que a transmissão neuronal seja mais elástica, mais capaz e mais rápida, numa
constante actualização de software, de correcção de erros e desenvolvimento das mais avançadas ferramentas de protecção contra racionalidades nefastas, através da criação de antivírus, firewalls, bloqueadores de popups indesejados.
Esta minha racionalidade, que no contínuo jogo neuronal admite
a existência de um elemento inatingível e etéreo, uma estranha e complexa rede de pequenos fenómenos e factores, variantes e incógnitas,
uma antiquíssima articulação hormonal e psicossomaticosocial que
autor
rogério sousa
(then kissed him goodbye, it’s my kind of story)
68
me leva a querer algo mais, que me faz ansiar e desejar somente aquilo que a minha racionalidade concluiu já ser irreal. Um sonho… talvez
uma eterna busca do sol benevolente, de uma calma e harmonia entre
o eu e o teu, o meu e o nosso, esta estranha possibilidade de eternidade,
de auxílio externo à minha consciência e vontade, ao meu parco enten-
dimento, que será sempre limitado por células e carne e osso e músculo
e órgãos e epiderme e pele e unhas e cabelos e beleza e mortalidade. Seio. Mas mesmo assim tenho uma estranha vontade de preencher este
meu vazio que não é visível nos raios-x, que não aparece nos tacs nem
nas ressonâncias magnéticas, e muito menos nas vossas ecografias.
(it’s no fun until someone dies)
É um qualquer estranho querer, um pedido de saber-me acompanhado,
desejado, amado, compreendido e resultado de uma entidade superior
que nos tem supervisionado até agora. Uma etérea presença, que desde
a nossa inicial formação de barro e sopro de vida tem estado connosco,
sempre presente na sua omniausência, segurando-me naqueles momentos mais aflitivos, em que pensei perder o pé e cair pelas escadas
abaixo, em que sonhei cair freneticamente a três mil pés
(‘cause I need to watch things die)
de altitude, em vislumbrei a sua presença na minha inconsciência, na
minha visão diurna e sonâmbula, percebi os seus sinais nas simples
manifestações naturais que a minha racionalidade me havia anteriormente explicado, exemplificado, esquematizado no quadro negro de
aprendizagem. Encontrei os seus indícios nos mais recônditos lugares
da terra, em obscuras palavras que foram consciente e publicamente
adulteradas, onde antes estava uma menina passou a estar uma virgem,
onde estava um treçolho passou a estar uma cegueira, onde antes estava uma lua cheia passou a estar uma estrela guiadora,
(from a good safe distance)
e sei de verdade que a verdade que todos os dias me tentam vender
como a verdadeira, essa outra verdade, essa complexa rede de acontecimentos naturais, de moléculas, de átomos, de órgãos, de neurónios, de
sinapses e impulsos eléctricos cientificamente comprovados não passa
afinal de um grande embuste, de uma tentativa de me ludibriar, de me
enganar para que eu não seja correcto, para que eu não honre a sua
existência, para que desacredite o seu nome, a sua verdade, a sua incondicional verdade dogmática e verdadeira.
autor
rogério sousa
entre filamentos e neurónios e sinapses e conectores, que tão prosaicamente se denomina de racionalidade, produz.
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Mudo o canal da televisão e o espectáculo repete-se, de canal em canal,
testemunho o milagre diário da racionalidade, esta maravilhosa magia
das sinapses e dos impulsos eléctricos, dos neurónios e das células neurotransmissoras, dos ossos e da pele, das pulsações cardíacas que comandam esta complexa rede que é o pensamento, e compreendo enfim
a necessidade de me defender do inimigo da verdade, de implementar
neste exíguo espaço limitado por mar um estado de vivência, de entendimento comum e compreensão
(vicariously I live while the whole world dies)
e então crio novas máquinas, novas técnicas de matar, novas e inventivas formas racionais de fazer com que o esforço do último suspiro seja
menor, imperceptível quase, limpo.
Mudo de canal e encontro novas armas. Sentado no sofá, segurando
o controlo remoto da realidade lá fora, ajustando o contraste das sombras e a luminosidade das ruelas, criando uma genuinidade mais de
acordo com a minha estética, conjecturo novas bombas, com novos alcances de destruição e novos estilhaços multidireccionados,
(you all need it too, don’t lie)
autor
rogério sousa
autor
que rasgam a pele e a carne e os ossos de uma forma ainda mais rápida
e mortífera do que como aquela granada, perdida algures numa troca de
racionalidades e entendimentos diferentes, algures numa briga de tribos rivais, de milícias, numa incógnita e pequena ruela, perdida numa
transversal semelhante a tantas transversais de uma qualquer marginal de uma qualquer zona de bagdad………………………………............................
Sinto-me feliz.
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manuel ribeiro
autor
autor
manuel ribeiro
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poema em segunda mão
potássio de ócio
onde vais com tanta calma, caracol?
à minha volta morrem as horas
os dias vão se enterrando em mim.
a poesia adormeceu
e Deus nem notou(estava entretido a ler Nietzche).
depois de partir olhei por cima do ombro
e não vi nada nem ninguém
apenas vento e cinza.
a minha morte foi um duche frio
e agora tremo estou limpo.
os meus cabelos molhados gemem
e arranham a madeira.
a diária confusão da dívida com um dever
o que fazer?
mexer bem e juntar água aos poucos
até os cães me olham de lado
como quem olha um brinquedo usado
não quero sonhos em saldo
nem a vida em segunda mão
espera caracol! onde vais com essa calma toda?
r. de sousa
há um desafio em cada olhar
cada vez se morre mais devagar
é no fundo do precipício
que se esconde a chave do vício
e caminho parado a uma velocidade constante
mergulho sozinho no escuro instante
autor
rui de sousa
autor
rui de sousa
Edgar Farniente
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Foi sem reparar que reparou em ti. Pediu desculpa.
- Deu a resposta errada?
Foi a desculpa que arranjou
Para que no fim
Fizesses a pergunta certa.
Falou-te de nós
Nós sem rumo
Nós nos dedos a entrelaçar
A agarrar a tua mão para que
- Não me largues!
Por querer sem querer cair
Vagarosamente
No poço sem fundo das tuas mãos.
Cair no precipício do teu olhar
Para que te afundes
Sem hipótese de fuga
No abismo do seu.
Depois partiu-se quando quis partir.
Por querer que corresses atrás
- Por que não vens?
Vem apanhar os estilhaços
Que de frente encontrei no teu olhar
E pede que fiques mais um pouco
Que assim tão pouco te sentes só.
autor
rui sousa
autor
rui sousa
sussurro
Depois
Quando todos fogem
Acende a ternura com um cigarro
Para te confessar que fica
Nem que seja mais um segundo
Nem que seja mais um pouco
Porque sabe a tão pouco
O tão pouco que sei de ti.
Porque se pode partir
Até mesmo em estilhaços
Mas não partirá nunca
Porque o nunca
São as três da manhã no relógio da torre
Três da manhã no relógio da torre
E ainda agora é tão cedo, por que não ficas?
Fica
Que nem que seja mais tarde
Eu cedo.
Eventualmente cedo
Eventualmente tarde.
77
autor
urbano bettencourt
para Adelaide e Vamberto Freitas
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Havia uma mulher sentada junto ao murete de pedra, nessa meia tarde
de um Outono precoce em que visitámos as ruínas da Abadia de Howth.
O guia turístico adquirido na recepção do hotel informava que
Howth “has long been a favoured dwelling place for writers”. Mas, referida a Dublin, qualquer indicação sobre a presença literária na cidade
será sempre redundante. Assim, a manhã esgotara-se entre a visita ao
Dublin Writers’ Museum e a demorada passagem pela Martello Tower,
aliás James Joyce Tower, cujos recantos e escadarias pareciam ressumar ainda a inquietação difusa perante a ameaça de uma eventual invasão napoleónica .
A voz de Buck Mulligan, que nos havia transportado até aos alvores do século XIX num andamento pausado e a rondar a monotonia,
adquiriu uma súbita vivacidade ao descrever o memorial joyceano.
E ganhou uma inesperada gama de modulações e registos quando se
pôs a evocar os acontecimentos dessa luminosa manhã de Junho de mil
novecentos e quatro em que Leopold Bloom saiu de casa para comprar
rins de carneiro e, ao entrar no talho, pediu tomates, num particular
momento de perturbação espacial e linguística cujo eco o escritor Arménio Vieira faria chegar às ilhas de Cabo Verde.
Em Howth não houve qualquer Buck Mulligan a falar-nos do remoto prestígio da Abadia e do fascínio que exerceu sobre os intelectuais da Europa medieval. Vagueámos pelo seu interior, tentando apenas
surpreender ainda um possível rumor de passos e as vozes dos homens
que ali, um dia, construíram o seu mundo por entre o recolhimento
e a contemplação da Ireland’s Eye, separada de terra por um curto braço de mar e, mesmo assim, ilha longínqua, entregue ao seu destino de
solidão e abandono. E tudo isso se harmonizava, enfim, com a melodia
autor
urbano bettencourt
vozes no céu de dublin
que a mulher sentada junto ao murete se pusera, entretanto, a entoar.
Nessa noite, Briege Murphy cantava no Howth’s Abbey Center. Mas só
quando começou a interpretar “The sea” me apercebi de que ela era,
afinal, a mesma mulher que nós surpreendêramos junto às ruínas da
Abadia. A sua voz desenhava um fio melódico que se erguia no ar em
movimentos oscilantes, acentuados pelo dedilhado sóbrio do violão,
e nessa ondulação devo ter pressentido os ritmos marítimos de SaintJohn Perse, o fluxo e refluxo das suas marés verbais, dos seus versos
desmaiando sobre o corpo de uma ilha da memória. Talvez tenha mesmo tentado perseguir no rasto dessa voz o remoto apelo do mar que secretamente ecoa na poesia de Emanuel Félix. O mesmo mar que traçou
para sempre o destino de Enrico Mreule, levando-o a trocar o fechado
Mediterrâneo pelo Atlântico infindo, sem saber que este era, afinal,
esse outro mar de Claudio Magris e onde tudo acontece.
Lentamente, porém, a canção ganhava corpo nas palavras de uma
dorida história de amor em que uma mulher a pouco e pouco se perdia
de si mesma nas repetidas ausências do seu homem no imenso Atlântico selvagem: he takes a piece of me with him, each time he leaves the
shore. Depois, uma fina amargura invadia os versos e a melodia até
desembocar num desabafo derradeiro em que tudo era já sem remédio nem consolação: he won’t stay home for me, cause my love he has
a mistress, she’s the sea. De súbito, naquela história de enamoramento
e ciúme chegavam-me os ecos da belíssima abertura do romance Saudade, de Katherine Vaz, e nela vibrava a voz de Conceição Cruz, como
se José Francisco tivesse decidido perder-se em definitivo da terra.
E dei comigo a pensar como será bom saber que, de cada vez que sucumbirmos ao íntimo chamamento do mar, uma voz de mulher há-de
erguer-se para chorar-nos o destino e a perdição.
Assim, longe dos Açores e da Califórnia, ouvindo Briege Murphy
no Howth’s Abbey Center, eu era ao mesmo tempo leitor e personagem
do romance de Katherine Vaz.
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manuel ribeiro
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manuel ribeiro
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A minha meta é o Design Social – por isso, é importante dar o meu contributo à sociedade. Este transe atlântico é apenas o começo.
Daqui a poucos meses estarei de regresso às minhas origens, às Lajes
do Pico, local onde agora se abandona a cultura em prol de “outras coisas mais importantes”. Sou pequenino, mas tenho vontade de começar,
tenho vontade de mostrar que a cultura é necessária e que é com ela que
se educam as pessoas. Assim, aproveito este empréstimo literário e fotográfico para mostrar do que sou capaz. E, também, dizer que podem
contar comigo para a grande e demorada luta de mostrar às pessoas que
a cultura é necessária: um bem essencial.
transe atlântico é um projecto pensado por mim mas que deve muito
a Carlos Alberto Machado – é dele a coordenação de conteúdos deste
número zero. Mais do que a mim e ao Carlos, este projecto deve o seu
eventual valor aos colaboradores que com os seus registos lhe deram
alma. É um projecto académico, mas considero-o um começo. Um começo para mais tarde fazer algo em maior escala.
Este projecto é produção de cultura. Produção de custos controlados
mas com conteúdo de valor incalculável. Porque é assim que classifico
a cultura: não começa nem acaba em nós, passa por nós e de nós segue
para o próximo. É isto que desejo transmitir às pessoas quando voltar
ao Pico. Não é num só dia, ou num acontecimento cultural, que se educam as pessoas, é numa vida! O trabalho de produzir cultura não se
reflecte apenas em nós, reflecte-se naqueles que vêm depois de nós. Por
mais lucro que possa gerar, ou por mais despesa que dê, ela é sobretudo
aposta na comunidade, de agora e do futuro. É preciso semear/plantar
agora, para colher os frutos mais tarde.
Porto, 13 de Junho de 2010
mauro santos pereira
mauro santos pereira
editorial
Os Açores são um local de eleição, onde existe excelente qualidade de
vida. Contudo, na contemporaneidade, qualidade de vida também significa cultura. Não serve de nada sermos o local mais bonito do mundo, se não soubermos como dele tirar partido. O Pico, em especial, tem
problemas de fixação de jovens. Muita gente pensa que é devido à falta
de comércio, ou à falta de investimento privado. Na verdade, por falta
de sedimento cultural, pessoas que têm mais condições para investir
não o querem fazer, porque pensam que as pessoas não aderem a determinadas coisas. Ou melhor, que as pessoas não aderem ao novo, pois
classificam-no de “diferente” ou de “intelectual”, como se isso fosse
motivo de negação.
A cultura não pode ser só a de base tradicional. As nossas raízes tradicionais podem ser potenciadas pela cultura contemporânea. Mas
atenção, este projecto não é uma vanguarda. É apenas uma tentativa de
iniciar algo de sólido para o futuro
Agradeço todo o apoio que me foi dado, em especial pela possibilidade de, com todos os intervenientes, semear cultura para construir um
futuro melhor.
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