Nas tuas mãos, de Inês Pedrosa

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Nas tuas mãos, de Inês Pedrosa
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Resenha
Nas tuas mãos, de Inês Pedrosa
Por Vera Brandão
J
enny, Camila, Natália.
Três mulheres de gerações diferentes que, em partes distintas desse
sensível romance, nos falam de sentimentos íntimos, secretos, sobre
as diferentes formas de amar, tendo como panorama as mudanças na
sociedade portuguesa nos últimos 60 anos.
O livro tem uma estrutura tripartida – um relato em forma
de diário, outro como fotobiografia e, finalmente, por
cartas, na perspectiva de três gerações de mulheres da
mesma
família.
As
partes,
aparentemente
independentes, formam ao final um círculo tecido por
essas mulheres com e sobre o amor, as esperanças,
(des)ilusões e a solidão, resultados dos encontros e
desencontros que permearam sua vida.
O tempo é um “personagem” balizador e que entretece o
fio narrativo, formando uma teia que sustenta e dá
sentido aos sentimentos e às relações entre elas e delas
com outros, por meio da memória.
A Memória é esse lugar de refúgio, meio história, meio
ficção, universo marginal que permite a manifestação
continuamente atualizada do passado. (Pimentel Pinto,
1998, p.307)
A primeira parte - O Diário de Jenny - apresenta a avó, que escreve sobre as
dificuldades do amor e a difícil relação com António, seu marido, que ela ama
sem ser correspondida. Existia Pedro, sempre presente.
[...] eu dava-te a mão e o Pedro pegava-me logo na outra
mão, sentia a inveja alastrando pelos salões como um
perfume sensual, eram meus os dois rapazes mais
desejados de Lisboa. (2005, p. 15)
A revelação de António, após o casamento, é cruel, mas ela aceita a
convivência no “trio amoroso”, permanecendo juntos até o final - “permaneceria
tua namorada, cúmplice do teu amante”.
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Surge Camila, fruto de uma “traição” de Pedro, em torno da qual Jenny constrói
seu “castelo de cartas” de normalidade.
A autora do instigante romance constrói seus personagens com verdade e
sentido, como no trecho no qual Jenny, já idosa, indica os limites entre
realidade e sanidade, em um dos mais elucidativos trabalhos ficcionais sobre a
progressão do tempo na velhice.
Tenho oito anos, a cama do quarto dos fantasmas está
cheio de maçãs, amadurecendo no escuro para a
compota [...] o rosto turvo de minha mãe visita-me agora a
intervalos cada vez mais regulares [...] Tenho outra vez
oito anos, deito-me sobre a relva mas ela não cede ao
meu peso de menina com aquela docilidade que recordo,
a terra é dura, seu cheiro violento, doem-me os ossos, o
sol rasga-me os olhos, sufoca-me o peito [...].
A Camila contratou uma espia para viver comigo; uma
espia que me roubava louças e toalhas, e me assaltava a
despensa. Ralhava-me, quando me encontrava a beber o
meu próprio whisky. Comia-me as compotas,
envenenava-me a canja, espreitava-me os cadernos, dizia
mal de mim. Apanhei-a a conspirar com as vizinhas e
despedi-a. Despedi-a, antes que a Camila me mandasse
internar como louca por causa das intrigas dela. (pp. 9192)
O Álbum de Camila - segunda parte do livro - revela a filha de Jenny, e mãe de
Natália, que rememora, por meio de um álbum de fotografias – entre os anos
1941-1994 - sua história de amores e dores, tendo com panorama a militância
política em um país que passou pela ditadura, guerras coloniais, perseguição,
tortura, morte e liberação. (1)
Ao longo do caminho de recordações Camila analisa o que ela chama de
autorretrato na foto que ilustra o ano de 1994. Nele acompanha a passagem do
tempo no próprio corpo, fazendo da fotografia um espelho de si.
Gosto muito desta mulher que olha para mim com
serenidade, com uma câmara fotográfica na mão. Sou eu.
Tenho cinquenta e dois anos. É na curvatura dos dedos
que primeiro se nota a passagem do tempo. [...] As
manchas escorrem-me sobre a pele das mãos, alastram.
Quando as pessoas me fazem mal ponho-me a olhar para
essas ilhas castanhas que me conduzem para a terra de
meus mortos. Já ninguém me consegue fazer mal [...]. (p.
142)
Gosto desta mulher de olhos cinzentos cercados de
olheiras roxas, cavadas. Gosto das sobrancelhas ralas
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desta mulher, das rugas que lhe reduzem a cor dos olhos
a um traço de luz [...]. Gosto desta boca lisa, sem cor,
nem volume. Gosto das dobras deste pescoço como de
um mapa esborcinado depois de muitas viagens. Esta
mulher imprimiu-se inteira na sua vida e sabe que vai
morrer. Ninguém pode já fazer-lhe mal, ninguém pode
sequer já fazer mossa sobre seu corpo excessivamente
leve. (p. 145)
Em As Cartas de Natália surge a filha e neta das duas mulheres. Ela escreve
cartas para a avó Jenny, nas quais relata o relacionamento conflituoso com a
mãe e a perene busca da felicidade. Cartas que não foram entregues, mas
signos da ligação ancestral, e nas quais recorda o passado com a avó, o
despertar de seus amores, o casamento desfeito, tendo como mote as
estranhezas e o distanciamento vividos com sua mãe.
Escreve em uma das últimas cartas, enviada de Maputo:
É para uma morta, a primeira carta que escrevo desta
terra que esconde o cadáver de meu pai. Devia escrever
à minha mãe, mas as palavras, entre nós, foram sempre
complicadas. [...] Pensei que me bastaria aterrar em
Moçambique para encontrar a sombra desse soldado
desconhecido que meu deu o seu sangue sem saber”. (p.
205)
E depois de muitas buscas e voltas, de muitas lágrimas e solidão, é para a
casa que abrigou sua avó, Antônio e Pedro, palco de sua infância, que Natália
retorna.
Os meus amigos vieram ajudar-me a limpar e arrumar os
quartos [...] mas o que quero dizer-lhe, querida Jenny, que
a Casa voltou, a partir de ontem, a albergar a grande
aparição.
Engalfinhei-me nos seus papéis, vestidos e recordações,
Jenny, limpei o seu jardim [...] Mas quando os trabalhos
acabaram soube que não podia continuar a fugir de mim.
(p. 219)
E Natália, na derradeira carta, relata a abertura da casa para o amor libertador,
refazendo um ritual preparado, mas não vivido por sua avó, numa celebração e
ressignificação das memórias que uniram pelas palavras as mulheres, num
diálogo indireto, mas reparador e purificador.
Ao princípio da noite acendi a lareira da sala. Tinha
muitas saudades deste fogo [...] Ateei as tochas do jardim,
até o portão. [...] Deixei a porta da entrada aberta, e enchi
de velas acesas o caminho da entrada até ao seu quarto,
Jenny. Vesti a sua camisa de noite branca, de bordado
inglês, e meti-me entre os lençóis de frioleiras bordados
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pela sua avó para celebrar a sua entrada no universo do
amor real [...] Ele veio. (p. 221)
Nascida em Coimbra (1962), Inês Pedrosa
iniciou sua carreira literária aos 14 anos com
um conto publicado na revista Crónica
Feminina. Licenciada em Ciências da
Comunicação, seu trabalho jornalístico em
1983 foi na redação de O Jornal (atual revista
Visão), e se mantém atuante em diferentes
jornais e revistas. Sua primeira obra foi um
livro infantil Mais Ninguém Tem (1991).
Em 1992 publica seu primeiro romance, A
Instrução dos Amantes, seguido de Nas Tuas
Mãos (1997), pelo qual recebeu o Prémio
Máxima de Literatura. Com o romance Fazesme Falta (2003) consolida-se como uma das
principais romancistas da atualidade.
Em 2010 recebe o Prémio Máxima de Literatura com “Os
Íntimos”.
É diretora da Casa Fernando Pessoa desde fevereiro de
2008.
Em uma de suas diversas entrevistas, Inês fala de um amor primitivo, e sobre
esse sentimento em sua relação com a ausência, tema recorrente em suas
obras.
O que me interessa são as relações humanas, a minha
paisagem são pessoas, no sentido em que os locais
abstratos não me interessam em nada. Todos nós, mais
do que consolação, precisamos de quem nos ajude a
pensar em temas diferentes ou a encará-los de uma outra
maneira. Nos meus livros procuro encontrar outras
perspectivas para os assuntos que me tocam e que me
interessam.
Nota 1
Em 1926, após um golpe de Estado, foi estabelecida uma ditadura no país, e
no ano de 1932 Antônio de Oliveira Salazar tornou-se primeiro-ministro das
finanças e virtual ditador, instalando um regime inspirado no fascismo italiano.
As liberdades de reunião, de organização e de expressão foram suprimidas
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com a Constituição de 1933. Portugal manteve-se neutro durante a Segunda
Guerra Mundial, mas a recusa em conceder independência às colônias
africanas estimulou movimentos guerrilheiros de libertação em Moçambique,
Guiné-Bissau e Angola. Em 1974 se dá a chamada Revolução dos Cravos, que
derrubou o regime salazarista e restabeleceu as liberdades democráticas,
promovendo transformações sociais no país.
A senha para o início do movimento, dada à meia-noite por uma emissora de
rádio, foi uma música proibida pela censura, Grândula Vila Morena, de Zeca
Afonso. Nessa noite a população saiu às ruas para comemorar o fim da
ditadura e distribuiu cravos, a flor nacional, aos soldados rebeldes, em forma
de agradecimento.
Referências
Pedrosa, I. Nas tuas mãos. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2005*.
Pinto, Júlio P. (1998). Uma Memória do Mundo: ficção, memória e história em
Jorge Luiz Borges. São Paulo: Estação Liberdade.
*Nova edição - Editora Alfaguara (RJ), 2011.
Data de recebimento: 21/03/2013; Data de aceite: 23/03/2013.
______________________
Vera Brandão - Pedagoga (USP). Mestre e doutora em Ciências SociaisAntropologia pela PUC/SP. Pesquisadora CNPq PUC-SP. Docente do
COGEAE PUC-SP. Idealizadora e docente da Oficina de Formação
Continuada: Narrativas Autobiográficas: Memória, Identidade e Cultura. Editora
do Portal do Envelhecimento e da Revista Portal de Divulgação
www.portaldoenvelhecimento.org.br. Membro da equipe fundadora do OLHE –
Observatório
da
Longevidade
Humana
e
Envelhecimento
http://www.olhe.org.br. Email: [email protected].
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