HISTÓRIA DA ÁFRICA “PRÉ-COLONIAL”
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HISTÓRIA DA ÁFRICA “PRÉ-COLONIAL”
ÁGORA – Revista Eletrônica, nº 11 / Dezembro de 2010. ISSN 1809 4589 Página 60 - 63 HISTÓRIA DA ÁFRICA “PRÉ-COLONIAL”: OBSERVAÇÕES SOBRE A RECENTE HISTORIOGRAFIA AFRICANA Rodrigo Janoni Carvalho* O projeto História Geral da África, patrocinado pela UNESCO, é reconhecido como principal obra de referência internacional sobre o continente africano. Podemos considerar esta contribuição pioneira no que diz respeito à mudança de visão sobre a história da África. Trata-se de um trabalho que contribui significativamente na leitura sobre a cultura africana, principalmente na formação de professores e na desmistificação da centralidade do processo histórico pelos europeus. Dentre os diversos autores presentes nesta coleção podemos destacar Theóphile Obenga, nascido no Congo, e, Joseph Ki-Zerbo, de Burkina Faso. Ambos os autores trabalham a questão da nova escrita sobre o continente africano, objetivando incluir a história deste na história da humanidade, sob plano (pano) de fundo às intensas lutas de descolonização ao longo do século XX. A coleção da UNESCO, datada dos anos 60, vem de encontro com aqueles processos de emancipação e formação de novos países na África, em que a necessidade de mudança do discurso historiográfico se aproxima dos projetos de independência. A tese central nos dois trabalhos aqui levantados é a questão da interdisciplinaridade na produção de uma nova história em contraposição a uma visão marcada pela dominação colonialista. O próprio fato de separar a história dos povos africanos em pré-colonial, colonial e pós-colonial emancipatória traz uma marca eurocêntrica com base nos processos de infiltração daqueles povos no continente africano. Em Fontes e técnicas específicas da história da África – Panorama Geral, Theóphile Obenga alerta o esquecimento, por muito tempo, dos povos africanos do campo dos historiadores ocidentais. Por anos, permaneceu a crença (errônea) da inexistência de uma história da África. Para o autor, é evidente a necessidade de estabelecimento de fontes como um primeiro trabalho do historiador, seguido do exame de procedimentos técnicos destas fontes. Obenga é considerado pioneiro nestes trabalhos que visam à escrita de uma nova história africana. * Graduando em História pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. _______________________________________________________________________________________________________________ www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras quaisquer, do/a(s) seu/sua(s) autor/a(es). ÁGORA – Revista Eletrônica, nº 11 / Dezembro de 2010. ISSN 1809 4589 Página 60 - 63 Com diversas documentações reveladas, foi possível a formulação de novas questões sobre a existência de fontes particulares como a geologia, paleontologia, pré-história e arqueologia, paleobotânica, geografia física, etno-sociologia, tradição oral, linguística, documentos escritos europeus, árabes, hindus e chineses, documentos econômicos ou demográficos, dentre inúmeros outros. Diante dessa ampla variedade de recursos, Obenga acredita que a utilização cruzada de fontes aparece como uma grande inovação na história africana. Isto nos permite pensar uma construção plural com a contribuição de diversas áreas do conhecimento, em que o trabalho do historiador “não se limita a estabelecer fontes, trata-se de se apropriar, através de uma sólida cultura pluridimensional do passado humano” (OBENGA, 1983, p. 92). Neste sentido, a intervenção das ciências físicas modernas é um fato metodológico decisivo neste trabalho, possibilitando responder questões referentes às origens dos homens. Da mesma forma, as ciências da Terra iluminam igualmente a história africana. E, (omite-se a vírgula) a arqueologia e a paleobotânica podem informar o historiador sobre diversos pontos de nossos ancestrais. Obenga trata como um “avanço metodológico” essa vasta documentação que pode ser obtida de fontes e técnicas baseadas em diversas ciências, considerando “as técnicas de investigação como parte da prática histórica fazendo com que a história se incline de forma concreta para o lado da ciência” (OBENGA, 1983, p. 96). Parece claro que para este autor existe uma necessidade de aproximação da história à ciência. Há ainda de se considerar as ricas contribuições de outras ciências humanas e sociais como egiptologia, linguística, tradição oral, ciências econômicas e políticas. A tradição oral durante anos foi desprezada, todavia se caracteriza como uma fonte preciosa na escrita. Por outro lado, há contribuições de sociólogos que permitem redefinir o saber histórico e cultural, com as devidas ressalvas. “Os conceitos de “reino”, “nação”, “império”, “Estado”, etc. nem sempre são automaticamente aplicáveis à realidade africana” (OBENGA, 1983. p. 102). Desse modo, o “relato” histórico, como diz o próprio autor, renovou-se completamente, na medida em que a metodologia consiste em empregar várias fontes e técnicas particulares ao mesmo tempo e de modo cruzado. Percebemos que, para Obenga, o historiador deve estar absolutamente atento a todos os tipos de procedimentos de análise mediante um vasto conjunto de conhecimentos, onde a noção de “fontes cruzadas” demonstra o “subsolo da metodologia geral” nesta nova maneira de escrever. De maneira análoga, Joseph Ki-Zerbo trabalha a questão da interdisciplinaridade na pesquisa histórica como parcela de um projeto bem mais amplo, político e transdisciplinar. Em Os métodos interdisciplinares utilizados nesta obra, o autor ressalta, da mesma forma que Obenga, a importância da interdisciplinaridade como um tema em voga na pesquisa histórica. A ausência de documentos escritos por _______________________________________________________________________________________________________________ www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras quaisquer, do/a(s) seu/sua(s) autor/a(es). ÁGORA – Revista Eletrônica, nº 11 / Dezembro de 2010. ISSN 1809 4589 Página 60 - 63 muitos anos dificultou a escrita de uma história africana. Todavia, na medida em que surgem novas fontes e técnicas, a história da África deve coligar todas estas para reconstituir seu passado. O autor aponta alguns males que a pesquisa histórica na África sofreu ao longo do tempo. O primeiro deles diz respeito à deformação historicista, que leva a considerar o fluxo do processo social como eventos datados. O segundo seria a obsessão de reconstituir um calendário que torne inteligível a evolução dos povos (KI-ZERBO, 1983, p. 367). Surge destas deformações a história linear, genealógica e factual, “desprovida de própria carne da vida”. Há ainda outro desvio, o preconceito de primitivismo aplicado à realidade africana por um evolucionismo sumário. Para o autor, a ajuda combinada dos documentos escritos, a arqueologia, a linguística e a tradição oral são um caminho para solução destes problemas. As fontes da história africana são nitidamente complementares. A arqueologia presta profundos serviços às outras disciplinas, ao mesmo tempo em que delas se beneficia; o mesmo se dá com a arte e a tradição oral. “A tradição oral é a história vivida, transportada pela memória coletiva com todas as suas contingências e singeleza, mas também com toda a sua força e vigor” (KI-ZERBO, 1983, p. 370). Para o autor, a tradição oral ignora fatores econômicos e sociais. Pode até ignorar em certa medida, aspectos mais amplos ou grandes transformações. Contudo, não acredito que ignore completamente; de uma forma ou de outra estes mesmos aspectos podem aparecer nas narrativas orais. Os tambores são outra grandiosa fonte em termos de riqueza constituindo “livros vivos da África”. Representam celebrações coletivas. As línguas são um museu vivo em que se preservam as tradições. KiZerbo também ressalta a importância das ciências naturais e exatas, tal como vimos com Obenga, de forma que cada vez mais contribuem na escrita da história. Para os autores, a interdisciplinaridade é um amplo trabalho em conjunto dependente das diversas áreas do conhecimento humano. Ki-Zerbo denomina este profundo trabalho como “método global” que integra elementos variados transcendendo as fronteiras do continente africano, de modo bastante semelhante às “fontes cruzadas”. Tanto Obenga quanto Ki-Zerbo tratam desta nova escrita da história africana como um significativo avanço nos estudos daquele continente, de forma que é preciso pensar esta nova forma de ver a história da África concomitantemente aos processos de emancipação de diversas colônias durante o século XX, de acordo com o presente vivido por aqueles autores. A cultura africana é um sofisticado complexo de fatores e o ideal é apoiar-se de todos os elementos disponíveis para retratá-la, em que o método interdisciplinar e/ou de fontes cruzadas conduza a um projeto transdisciplinar na construção desta nova escrita. _______________________________________________________________________________________________________________ www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras quaisquer, do/a(s) seu/sua(s) autor/a(es). ÁGORA – Revista Eletrônica, nº 11 / Dezembro de 2010. ISSN 1809 4589 Página 60 - 63 Referências Bibliográficas KI-ZERBO, Joseph. Os métodos interdisciplinares utilizados nesta obra. In: História Geral da África. UNESCO. Vol. 1. São Paulo: Ática/Unesco, 1983. OBENGA, T. Fontes e técnicas específicas da história da África. Panorama Geral. In: História Geral da África. UNESCO. Vol. 1. São Paulo: Ática/Unesco, 1983. _______________________________________________________________________________________________________________ www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS Os textos, opiniões, dados, análises e interpretações, bem como citações, plágios e incorreções, são de responsabilidades legais, morais e econômicas ou outras quaisquer, do/a(s) seu/sua(s) autor/a(es).
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