Revista Fusca.p65
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ESPAÇO RESERVADO PARA PUBLICIDADE ESPAÇO RESERVADO PARA PUBLICIDADE Edição e Diagramação Roberto Tenório Reportagem Roberto Tenório Arte Final Priscilla Tenório Orientador Laerte Fernandes de Oliveira Colaborador Edvaldo Idalgo Fernandes (Fusca Clube ABC) Revisor Gamaliel Inácio Reportagem Especial Qual o segredo do Fusca? O carisma que desperta a simpatia em muita gente intriga estudiosos e levanta a questão sobre sua origem. Roberto Tenório Olhe, pai! Achei mais um fusquinha ali! A frase acima pode soar um pouco estranha a princípio, mas é só dizer que é uma brincadeira entre pai e filho procurando ver quem acha o maior número de Fuscas no trânsito de hoje que ela se torna um pouco mais familiar. Afinal de contas, encontramos vários casos de pessoas que brincam com crianças dessa forma, visando estimular o raciocínio ou mesmo só pelo prazer da brincadeira em torno daquele que é um dos mais populares carros da história da indústria automobilística mundial, e ainda querido por uma parte significativa da população. Ao longo desses 40 anos de história aqui no Brasil, o carro coleciona uma série de admiradores e levanta algumas questões referentes a seu sucesso na época e sua simpatia atualmente. Para tentar compreender essas questões é necessário relembrar alguns aspectos do cenário político e econômico do Brasil quando o Fusca chegou por aqui; os motivos que levaram o governo a conceder maiores incentivos à indústria do automóvel; os fatores determinantes para que o carro sobrevivesse em meio a concorrentes mais espaçosos e luxuosos e como o carro conquistou a confiança dos consumidores. São essas idéias que darão o tom do texto a seguir, procurando contextualizar e descobrir um pouco mais dessa relação entre os proprietários e o carro, em um ciclo que dura pelo menos seis décadas e remete à criação do carro na Alemanha. O surgimento Tudo começou através de Ferdinand Porsche. Nascido em 3 de setembro de 1875, na cidade Fusca Brasil n Novembro de 2007 Página 3 de Maffersdorf, região Austro-Húngara, era autodidata e mostrou-se um empreendedor visionário. Aos 25 anos já apresentava, no Salão do Automóvel de Paris, em 1900, o projeto do seu primeiro carro com tração elétrica e motores instalados no lugar das calotas. No entanto, ao contrário do que se imagina, o projetista começou sua carreira especializando-se em projetos de carros de luxo para a montadora Austro-Daimler, que depois mudou o nome para Daimler-Benz (atual MercedesBenz). Mas o que mais desafiava Porsche era desenhar um carro que todos pudessem comprar, e foi dessa idéia que surgiu o projeto daquilo que daria origem ao carro mais famoso do planeta. O Fusca foi gestado na cidade de Sttutgard, Alemanha, em 1932, quando Porsche começou a projetar o carro em sua própria garagem, devido a falta de apoio para desenvolver-lo em uma linha de produção. Após isso, ele conseguiu viabilizar duas parcerias, uma após a outra, com fábricas de motocicletas para tentar a construção em série do modelo. A primeira foi em abril de 1932, onde o projetista conseguiu, por meio de um protótipo construído em parceria com a fábrica de motocicletas Zündapp, colocar o primeiro carro nas ruas, mas devido à falta de recursos a idéia foi abandonada. A segunda tentativa foi feita com a NSU, que investiu mais no projeto por estar em queda a venda de motocicletas e acreditar ser promissor o mercado do futuro carro popular; por isso, os protótipos, conhecidos como Ty p 32, foram mais bem elaborados e feitos em carrocerias de aço com motor de dois cilindros opostos o irmão mais novo do motor boxer que equipou o Fusca durante sua jornada. Entretanto, os testes foram encerrados em 1933, pois a NSU não tinha de onde tirar a Reportagem Especial tido um enorme sucesso durante sua implantação. O carro deveria viajar a uma velocidade de 100 km/h para encarar as Autobahns (acabavam de ser construídas as primeiras), possuir um consumo médio de 14 km por litro de combustível, ter um espaço de quatro a cinco lugares (perfil da família alemã de então) e refrigeração a ar, pois nem todos os proprietários poderiam possuir uma garagem e no inverno europeu a água do sistema de O “typ 32”, segundo protótipo. Foram produzidos refrigeração congelaria. três pela fabrica de motocicletas NSU Tudo isso a um preço de quantia estimada para colocar o 990 marcos alemães, cerca de R$ carro em linha de produção. 5.500,00 atualizados. Ferdinand Através do projeto de um aceitou o desafio e em 22 de juótimo carro de corridas para a nho de 1934 atual dia mundial Auto Union (atual Audi), o qual do Fusca , seguindo as regras proporcionou grande destaque citadas acima, apresentou um préinternacional à Alemanha por projeto que serviu de base para o meio das vitórias conseguidas nas contrato assinado entre a emprecorridas, Porsche despertou a sa dele e o governo alemão. Era o atenção de Hitler. Os motores e surgimento daquilo que seria o os carros utilizados nas corridas primeiro Fusca. A aquisição do tinham também como objetivo, modelo pela população poderia na época, desenvolver tecnologia ser à vista ou parcelado. Esta últimecânica e aerodinâmica de pon- ma opção só seria possível medita sem despertar a atenção de ou- ante uma inscrição junto ao gotros países, pois os resultados dos verno onde o comprador recebetestes desenvolvidos nas pistas ria um tipo de caderno, e colaria seriam usados posteriormente nele selos mensais até completápara equipar os aviões de guer- lo, efetivando a compra do veícura. E foi em função de um proje- lo era parecido com os álbuns to ligado a carros de corrida que de figurinhas que hoje são venhouve o primeiro encontro en- didos nas bancas de jornal. Para tre Porsche e Hitler, no mês de suprir essa demanda foi construída abril de 1933. Por meio desse fato uma fábrica, a Volkswagenwerk o líder alemão revelou os requi- (fábrica do carro do povo), que sitos do governo para o lança- no início pertencia aos trabalhamento de um Volkswagen (tra- dores e ao governo alemão e cuja duzindo: carro do povo), que primeira fase estava pronta em seria um dos pilares políticos do 1939, mas nem chegou a produgoverno nazista juntamente com zir para o público geral em razão o Volksradio (rádio popular), do início da guerra. veículo de comunicação já preMesmo assim, foram sente em praticamente todos os construídos na primeira fase cerlares alemães e que já havia ob- ca de 30 protótipos experimenFoto/Crédito: Edvaldo Fernandes, Fuca abc Fusca Brasil n Novembro de 2007 Página 4 tais para serem usados e testados por homens da SS, tropa especial do exército alemão. Eles rodaram cerca de 80 mil quilômetros com cada carro, totalizando aproximadamente dois milhões e trezentos mil quilômetros de testes em reprodução severa de uso diário, detalhes exigidos pessoalmente por Ferdinand e que eram anotados em relatórios para o aperfeiçoamento do projeto, onde ao final de cada dia os carros eram analisados e revisados para a observação das possíveis alterações que poderiam ocorrer. No final, todos os carros foram destruídos a golpes de marreta pelos soldados para que ninguém pudesse copiá-los. Na opinião de Edvaldo Idalgo Fern a n d e s , f u n c i o n á r i o d a Volkswagen do Brasil, pesquisador e um dos coordenadores do Imagem/Crédito: Edvaldo Fernandes, Fuca abc. Anúncio feito pelo governo alemão para a aquisição do “carro do povo”. Ao fundo, destaque para a caderneta (espécie de financiamento) que servia para colar os selos que eram comprados em postos autorizados pelo governo. Ele funcionava como um tipo de álbum; assim que fosse comple-tado, o carro estava “quitado”. Reportagem Especial Fusca Clube do ABC, embora seja praticamente impossível não associar a imagem de Hitler ao próprio carro, o que causa certo desconforto em algumas pessoas, o ditador não encomendou um Fusca. Fernandes explica que deveria ser um carro de baixo custo, mecânica simples, projetado para andar em terrenos acidentados e para uma família de dois adultos e três crianças. Portanto, reforça ele, Hitler não encomendou um Fusca, mas sim um carro com alguns pré-requisitos; e como Porsche já tinha um projeto semelhante, foi só adequá-lo. Foto/Crédito: Edvaldo Fernandes, Fuca abc. O Fusca e a Segunda Guerra Mundial Mas, com o advento da Segunda Guerra Mundial, em 1939, o carro nem chegou a ser vendido ao povo, sendo transformado em versões adaptadas para o uso no campo de batalha. Era o caso do Schwimmwagen (carro que nada), com tração nas quatro rodas, utilizado para uso misto na água ou em terra e o Kübelwagen (carro caçamba), jipe leve com tração somente nas rodas traseiras. Uma outra versão foi feita com a carroçaria do Fusca, suspensão mais alta e o chassi e a tração nas quatro rodas do Schwimmwagen, eram os Imagem/Crédito: Edvaldo Fernandes, Fuca abc. Modelo deveria acomodar dois adultos e três crianças, o perfil da família alemã de então. Soldados da SS, tropa de elite de Hitler, destroem os protótipos com golpes de marreta em 1939. K o m m a n d e u r w a g e n (carro do comandante) utilizados no transporte de oficiais do exército alemão e que conseguiam superar com maior facilidade terrenos acidentados. Mas no final da guerra sobrou pouca coisa da Alemanha e da fábrica. Localizada na hoje chamada cidade de Wolfsburg, a Volkswagen estava quase totalmente destruída devido aos intensos bombardeios que sofreu, pois também era utilizada para construir e reparar peças para os aviões de combate. Com a divisão do território alemão em quatro partes, no ano de 1945, os ingleses passaram a controlar a região em que a fábrica estava instalada, deslocando para lá todo o contingente da REME (Royal Electrical and Mechanical Engineers), um braço do exército britânico especializado em assuntos mecânicos e civis, incluindo a produção e manutenção de veículos. Esse segmento do exército era comandado pelo coronel M. A. Mcevoy, Fusca Brasil n Novembro de 2007 Página 5 que já havia visitado a feira do automóvel em Berlim e ficado impressionado com o projeto do carro popular de Porsche, e logo ao recolocar a fábrica em funcionamento passou a utilizar os Kommandeurwagen e os Kdfwagen para o transporte e deslocamento de suas tropas. A fábrica da Volkswagen passou a atuar como contratada da REME e tinha a função de consertar e recuperar os caminhões e ônibus danificados na guerra, estabelecendo uma estrutura de transportes satisfatória para manter o país em atividade. Sendo assim, Mcevoy nomeou o engenheiro e major, Ivan Hirst, então com 29 anos, para comandar a oficina adaptada na parte da fábrica que não havia sido destruída pelos bombardeios, utilizando a mão-de-obra dos próprios funcionários que haviam sobrevivido à Guerra. Com isso, em 1945 foram produzidas cerca de 1.800 unidades dos Kdfwagens. O nome, que significa Reportagem Especial pletasse seu cardápio de veículos oferecidos em outros países. Para a companhia americana não era um mau negócio, pois os carros da Volkswagen passariam a completar seus produtos disponíveis para a exportação e, em contrapartida, para a montadora alemã era a chance de tornar-se conhecida em outros paíEmbarque dos primeiros modelos para exportação ses. Ta l v e z e l e s n e m em 1950. Entre os vários destinos estava o Brasil. imaginassem que esse primeiro passo seria decarro força através da alegria do cisivo para que o carro fosse expovo, e se refere ao nosso co- portado para 150 países e vennhecido Fusca, foi dado pelo desse 22 milhões de unidades em próprio Hitler em um discurso toda a sua trajetória. feito na inauguração da fábrica, explicando que o carro deveria Imagem/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc. portar o mesmo sentimento dos funcionários e do povo para o qual estava sendo feito. Em 1948, a fábrica da Volkswagen na Alemanha começava a mudar seu perfil de produção com a chegada do novo presidente da empresa. O engenheiro Heinrich Nordhoff assumiu o controle da companhia no dia 5 de janeiro e passou a ace- Projeção da sede da Volkswagen lerar a produção na linha de localizada em Wolfsburg, Alemanha. montagem, aperfeiçoando o carO Brasil antes do Fusca ro e transformando-o em um sucesso comercial. Sua experiência Atualmente, o carro é um bem como ex-funcionário da Opel ( d i v i s ã o a l e m ã d a G e n e r a l de consumo durável acessível a Motors) e os treinamentos que uma boa parte da população, não recebeu nos Estados Unidos an- somente pela facilidade das lites da guerra ajudaram a levan- nhas de crédito disponíveis no tar a empresa, conquistando no- mercado, mas, principalmente, vos mercados. E em 1949 ele con- devido à grande variedade de segue, através de uma parceria modelos e preços. No entanto, com a montadora americana nem sempre foi esse o cenário Chrysler, efetivar um importante que predominou nas grandes acordo para que o Fusca chegas- capitais brasileiras. No início do século XX, o munse a praticamente todos os continentes do planeta: a fábrica do vivia uma grande recessão americana cederia suas conces- devido aos prejuízos que o final sionárias fora da América do Nor- da Primeira Grande Guerra hate para que a Volkswagen com- via causado. Com isso, para conFoto/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc. Fusca Brasil n Novembro de 2007 Página 6 seguir captar mais recursos, os países ricos passaram a investir naquilo que foi denominado de mercados emergentes, trazendo tecnologia e auxiliando na criação de grandes pólos industriais. No Brasil da primeira década predominava como base da economia nacional a exportação dos bens de consumo primários como os grãos, as frutas e verduras. Esses produtos eram gerados através da monocultura e do latifúndio, onde os grandes proprietários de terras conhecidos como coronéis eram quem ditavam as regras; contudo, esse cenário passou aos poucos a perder espaço para as indústrias (entre elas a automobilística) que começaram a crescer por aqui a partir da segunda década, com a chegada da industrialização. Henry Ford é considerado hoje um pioneiro daquilo que seria um dos principais pilares da economia mundial: a produção e venda em massa de veículos automotores. Com o objetivo de popularizar os carros, Ford tentou quebrar a barreira daquilo que até então era privilégio somente das classes mais abastadas mediante o lançamento do Ford T, o famoso Ford bigode, um automóvel de uso misto que tanto poderia ser utilizado para o trabalho, colocando uma caçamba na parte de trás da carroçaria, como para passeio. E procurando aumentar seus lucros, Henry passou a ampliar sua produção levando seus produtos para outros países, e o Brasil era um deles. Em 1912, desembarcaram os três primeiros carros modelo Ford T adquiridos por uma empresa de táxi, em São Paulo. À época, através das importações, os automóveis já começavam a fazer parte da paisagem dos grandes centros urbanos brasileiros como São Paulo e Rio de Janeiro. Com Reportagem Especial o objetivo de organizar esse mercado de importação que estava crescendo por aqui, foi fundada em 24 de abril de 1919 a primeira subsidiária brasileira da Ford, pioneira no investimento em mercado de automóveis aqui no Brasil. E como o setor estava em expansão, a decisão de instalar uma montadora em terras brasileiras foi tomada logo em seguida pelo próprio empresário americano e ocorreu no ano de 1922, obedecendo ao conceito idealizado por ele de produção de veículos em série. Era o início da industrialização e a fundação do mercado de consumo de bens duráveis, que trouxe uma boa injeção de investimentos ao país, algo em torno de US$ 320 mil, atualizados. A capacidade anual da fábrica era em torno de 4,7 mil automóveis e 360 tratores, números consideráveis se analisarmos a frota de cerca de quatro mil carros que rodavam em São Paulo na época. O galpão da linha de montagem funcionava na Rua Sólon, Bom Retiro, região central da capital paulista e foi utilizado até o ano de 1953. Com o estímulo do governo através de incentivos fiscais e outras medidas, o setor respondeu de forma totalmente positiva levando a empre s a a comemorar o primeiro recorde de vendas anuais: 24 mil unidades em 1925 ano da chegada da General Motors aqui no Brasil. Esse feito foi repetido até o final dos anos 60, quando se iniciou a produção de veículos totalmente nacionais. Com isso, o crescimento da indústria automobilística na época e os benefícios gerados por ela até os dias atuais mereceram destaque na revista Autodata de fevereiro de 2007, com circulação interna da Ford, onde, segundo o texto, um país sem um parque industrial voltado para o setor de transportes se torna totalmente inapto ao crescimento da economia de uma maneira geral. Contudo, após o crack da Bolsa de Nova York, no dia 29 de outubro de 1929, o mundo inteiro sofreu um grande abalo econômico. Os americanos respondiam por grande parte da produção e compra dos produtos mundialmente negociados e, com a retração do mercado americano, os demais países entraram em colapso. Paralelamente a isso, o Brasil, que tinha como sua principal base econômica a agricultura e era o maior exportador de café do mundo, sofre u Foto/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc. sil e Estados Unidos com o objetivo de afastar a proximidade que o governo brasileiro de então possuía com os alemães , levando a uma participação do Brasil na guerra em 1942. Mas seu término, com a grande pressão que foi estabelecida pelos americanos para o afrouxamento dos regimes autoritários e a crescente preocupação com o possível surgimento de outros regimes socialistas, os EUA passaram a patrocinar regimes com maior disciplina e controle da sociedade. Foi então que Getúlio sofreu o golpe que levou os militares ao poder em 1945, estabelecendo o que ficou conhecido, de 1946 a 1964, como República Populista. A conjuntura política brasileira Linha de montagem manual do Fusca na década de 1950. um grande encalhe da produção, levando o mercado a entrar em colapso e gerar uma gigante massa de desempregados. Um dos resultados disso foi o retrocesso da pequena evolução industrial que o país começava a experimentar. A situação que se estabeleceu contribuiu para abalar as bases políticas da República Velha, gerando a revolução de 1930, que levaria Getúlio Vargas pela primeira vez ao poder como chefe do governo provisório (193034), depois como presidente constitucionalmente eleito pelo Congresso (1934-37), em seguida como ditador (1937-45) e, finalmente, como presidente por voto universal em 1950. A Segunda Guerra Mundial criou um clima favorável nas relações diplomáticas entre BraFusca Brasil n Novembro de 2007 Página 7 A promulgação da Nova Constituição Liberal em 1946 visava, a partir daquele momento, levar o país a promover as eleições para presidente, deputados e senadores procurando restabelecer as bases democráticas de direito ao povo e à nação, que até então fora dominado pelo regime ditatorial de Vargas. Entretanto, após a Segunda Guerra, eram os socialistas que passavam a integrar o rol de ameaça ao mundo no contexto dos americanos, que fizeram com que o governo brasileiro, então sob a direção do presidente general Dutra, rompesse com a então URSS, e tornasse, conseqüentemente, o Partido Comunista Brasileiro ilegal, ferindo o decreto constitucional de liberdade de manifestação e de pensamento estabelecido na recém-aprovada Constituição. No contexto interno, o governo reduziu a intervenção do Estado na economia filosofia conhecida como liberal e que prega basicamente o Reportagem Especial livre mercado, ou seja, os preços são regulados pelos próprios negociadores , atitude que passava a vigorar no pós-guerra, e fracassou no propósito de obter uma economia que trouxesse melhores condições de vida à população. No mercado de exportação ainda predominava o mesmo modelo agroexportador, enquanto o país continuou a importar equipamentos ferroviários, artigos de plástico, automóveis etc. A abertura ao capital estrangeiro, limitando a ação do Estado e dificultando o crescimento de determinados setores da economia nacional devido à forte concorrência, somada ao arrocho salarial e à escalada assustadora do preço dos alimentos, ajudou a construir o cenário ideal para o retorno daquele que ficou conhecido como o pai dos pobres: Getúlio Vargas, que voltou vitorioso ao poder nas eleições de 3 de outubro de 1950, em um cenário político extremamente instável. É importante notar o estilo do discurso populista de Vargas, que associava o desenvolvimento à independência do país e da classe trabalhadora, mobilizando as massas através dos comícios e dos sindicatos que eram controlados pelo governo. Tal orientação ensina que a transmissão de propostas amplamente dirigidas às massas tem como objetivo passar uma sensação de melhoria a uma classe social excluída da maior parte dos benefícios econômicos e sociais do país, manipulando-as em prol de interesses dos grupos dominantes do sistema social; com isso consegue-se o apoio da maioria para a implantação dos projetos políticos de interesse dos líderes. E foi usando esse discurso que Vargas enviou ao Congresso, no ano de 1951, um programa de governo que propunha a expansão industrial e o aumento da intervenção do Estado na economia, objetivando o aumento do mercado interno, o crescimento da produção de bens de consumo e a elevação da renda nacional. Na teoria, o objetivo do governo era modernizar o país, construindo estruturas compatíveis com as condições do sistema capitalista do pós-Segunda Guerra, mas na prática a condução política de desenvolvimento sofreu pressões que refletiam a diversidade de interesses dos distintos segmentos da burguesia re p resentados no governo. O Imagem/Crédito: Alexander Gromow. Desenho do Fusca modelo 1950. principal conflito deu-se entre os nacionalistas, que apoiavam a industrialização e a intervenção do Estado na economia, e a ala opositora, que sustentava uma política com menor intervenção do governo, e não priorizava o crescimento industrial. O Plano Nacional de Reaparelhamento Econômico, ou Plano Lafer, elaborado e apresentado em janeiro de 1951 pelo ministro da Fazenda, Horácio Lafer, possuía projetos para a criação de novas fontes de energia, ampliação das indústrias, da rede de transportes, dos serviços portuários e da introdução de avançadas técnicas na agricultura. Uma parte do dinheiro viria dos Estados Unidos; a outra, de recursos i n t e rn o s do Fundo de Reaparelhamento Econômico, Fusca Brasil n Novembro de 2007 Página 8 constituído por um adicional de 15% sobre o Imposto de Renda. Por esse motivo tornou-se necessária a criação de órgãos que viabilizassem a organização e eficácia das medidas econômicas. Datam de então o BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico), cuja função era financiar o programa de crescimento, e o Banco Nacional de Crédito Corporativo com o objetivo de subsidiar pequenos e médios produtores. Todavia, o maior de todos os problemas que Getúlio enfrentou talvez tenha ocorrido quando foi criada a Petrobrás, em dezembro de 1951. O projeto para a criação da Petróleo Brasileiro Sociedade Anônima foi enviado pelo presidente ao Congresso e colocava a União como controladora majoritária da empresa, cujo objetivo era pesquisar, lavrar, refinar, comercializar e transportar o petróleo e seus derivados. A oposição, liderada por comunistas, nacionalistas radicais e alguns dirigentes de partidos políticos, passou a mostrar forte resistência à criação da empresa e tinha um sentido, segundo historiadores, totalmente anti-Getúlio. Sendo assim, após o projeto sofrer 32 emendas parte das quais permitia o controle da empresa por capitais nacionais e estrangeiros , derrubadas nas votações da Câmara, foi aprovada a versão final. A soma dessas e de outras medidas causou na sociedade tal efeito que, a partir do início da década de 1950, o modo de vida dos moradores de grandes centros urbanos começava a mudar para um ritmo cada vez mais acelerado. Já para a classe média o carro começava a se tornar um fiador da liberdade de ir e vir e símbolo do progresso, pois passou a ser cada vez mais indispensável para vencer as distâncias que estavam se tornando Reportagem Especial maiores nas cidades. Mas Getúlio pagou um preço muito alto por essas mudanças. O combate feroz dos opositores contra o seu projeto nacionalista, somado a outros fatores, fez com que o presidente, em intensa pressão emocional, se suicidasse em agosto de 1954. Após o suicídio do presidente Vargas, o vice, Café Filho, assumiu interinamente o poder, procurando garantir ao país o cumprimento do re g i m e presidencialista, que recebia uma forte pressão dos militare s, e exigia m um governo mais rígido e conservador. Apesar de toda essa aparente confusão trazida pelo início do desenvolvimento, a instabilidade foi de certa forma contornada e, em outubro 1955, foi eleito Juscelino Kubitschek, que governou de 1956 a 1961 e teve como marca de seu legado a indústria automobilística nacional e a construção da cidade de Brasília. Aproveitando o pontapé inicial de seu antecessor, Juscelino continuou estimulando essa política de desenvolvimento intenso e procurou aproveitar o clima favorável às instituições do governo, lançando o Plano de Metas. Tratava-se de um pacote de incentivos econômicos e investimentos em alguns segmentos estratégicos da economia que abrangiam, basicamente, quatro setores: energia, transportes, alimentação e indústria de base (fabricantes de matéria-prima para confecção de produtos). O Surgimento do primeiro c a r ro nacional E foi no auge dessas metamorfoses que, por meio de uma propaganda veiculada na revista O Cruzeiro, em 1955, foi anunciado o primeiro carro montado em solo brasileiro: a Romi-Isetta. Tratava-se de um projeto lançado inicialmente na Itália, sendo aperfeiçoado e incorporado pela montadora alemã BMW em 1955, que foi comprado pela fábrica de máquinas agrícolas ROMI, passando a ser o primeiro veículo a ser fabricado em série no país. A primeira Isetta foi fabricada no dia 5 de setembro de 1956, em Santa Bárbara dOeste. Entretanto, há uma divergência sobre o início propriamente dito da indústria do automóvel nacional. O jornalista especializado em indústria automobi- um grande investimento em mão-d e-obra especializada e um mega desenvolvimento em estrutura urbana e rodoviária. O crescimento da produção de automóveis (carros, utilitários, jipes e caminhões) aumentou rapidamente, tornando visível para a população urbana e, em parte, para alguns setores rurais os resultados palpáveis da política econômica adotada pelo governo. Mas não foi somente isso que o desenvolvimento trouxe ao país. Essa ampliação econômica implicou a permanência da associFoto/Crédito: Site DKW ação do capital estrangeiro ao nacional, criando laços com importantes setores internacionais através da importação de tecnologias para a produção de bens de consumo farmacêuticos, automóveis, máquinas, produtos químicos etc. E d e capital de pagamento dessas tecnologias obA “Vemaguete” da DKW. Modelo é reconhecido como tido por empréstimos a primeiro veículo nacional pelo GEIA. juros com esses países. Em contrapartida, o golística Fernando Calmon explica verno JK permitia imensas reque a maioria dos historiadore s messas de lucros das empresas considera as regras estabelecidas estrangeiras ao Brasil como forpelo Grupo Executivo da Indús- ma de tornar mais atraente o país tria Automobilística (GEIA), ór- às outras nações; por isso hougão criado para regular o setor ve um barateamento de matérique acabava de surgir, válidas as-primas, impulsionando o Espara estabelecer o início das tado e expandindo a economia. atividades aqui. Portanto, ele fi- Um exemplo claro dessa denaliza dizendo que foi a DKW- monstração física de crescimenVemag camioneta, hoje chama- to e desenvolvimento foi a consda de perua ou station-wagon, t r u ç ã o d a r o d o v i a B e l é m com duas portas e espaço para Brasília, que encurtou os camicinco pessoas, o primeiro carro nhos para a Amazônia. nacional a ser fabricado em série Esse período marcou a entrano Brasil, no dia 19 de novem- da efetiva do país na fase de prob r o d e 1 9 5 6 , c o m 6 0 % d a dução de bens de consumo dutecnologia brasileira. ráveis, mas sem conseguir reduA soma dessas medidas aju- zir os buracos entre as classes dou na ampliação dos chama- sociais. Na realidade o crescidos parques industriais, com mento industrial só ocorreu deFusca Brasil n Novembro de 2007 Página 9 Reportagem Especial vido ao atraso tecnológico de outras regiões, especificamente as rurais, onde imperava o sistema de produção através de técnicas arcaicas de plantio, tornando favorável o êxodo dessa população para os centros urbanos e favorecendo a mão-de-obra barata necessária ao desenvolvimento. Mas o preço a ser pago por todas essas medidas foi muito alto, principalmente no que diz respeito às áreas interligadas ao comércio exterior e finanças do governo. Os gastos para sustentar o programa de desenvolvimento e a construção da cidade satélite resultaram em crescentes déficits no orçamento federal no final de seu governo. Para simplificar, o governo gastava mais do que arrecadava e o resultado disso foi uma relativa perda de autonomia do país gerada por uma dívida extern a muito alta em virtude dos empréstimos obtidos com bancos estrangeiros, a qual juntamente com a inflação alta que começava a crescer no país e trazer consigo a recessão e o desemprego foram os resultados de uma política ambiciosa para obter a tão sonhada promessa de campanha do desenvolvimento denominado 50 anos em 5. A chegada das montadoras E é nesse cenário de transformação e desenvolvimento que o Fusca começaria a se estabelecer como o primeiro carro popular brasileiro. De acordo com o livro A História do Fusca, publicado pelo estudioso e um dos criadores do dia nacional e internacional do carro, Alexander Gromow, foi através de José Bastos Thompson, da Companhia Geral Distribuidora Brasmotor (atual Multibrás), que o besouro chegou ao país. Segundo a versão oficial da Volks publicada no li- vro, após acompanhar uma reportagem sobre a reconstrução da fábrica na Alemanha, Thompson ficou apaixonado pelo carro, e ao procurar saber mais sobre ele passou a acreditar que poderia dar certo por aqui, fato que ficou ainda mais evidente quando descoFoto/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc. JK desfila a bordo de um Fusca conversível durante a inauguração da fábrica da Volkswagen em 1959. Seu governo ficaria conhecido como o que mais favoreceu a indústria automobilística. briu que o carro era relativamente ágil e funcionava sem água no sistema de refrigeração, algo inédito na época. Através de cartas, tentou por muitas vezes entrar em contato com a direção da fábrica na Alemanha, mas sem sucesso. Ao saber que a montadora americana Chrysler, da qual a Brasmotor era representante aqui no Brasil, também era a responsável pela importação do carro, entrou em contato com o presidente mundial da montadora americana, Cecil B. Thomas, para poder viabilizar o processo de importação do carro ao país. Os primeiros carros importados pela Brasmotor chegaram via Porto de Santos, Estado de São Paulo, no dia 11 de setembro de 1950. Segundo Gromow, analisando em seu livro um jornal da época que pertence ao seu acervo particular, o n o m e d o n a v i o e r a Va p o r Fusca Brasil n Novembro de 2007 Página 10 Defland e transportava dez VW sedans (nome do fusca na época) e dois comerciais VW (a Kombi que nós conhecemos hoje), pioneiros em terras brasileiras. Em janeiro de 1951, chegou o primeiro lote de seis CKDs sigla que traduzida significa kits de montagem de carros completamente desmontados de Fusca, dando início a montagem dos veículos no Brasil pela Brasmotor, prática já difundida na época e que também era utilizada na montagem dos veículos da Chrysler vendidos aqui pela mesma empresa. A Volkswagen montou no Brasil, no dia 23 de março de 1953, seu primeiro galpão para trabalhar em parceria com a B r a s m o t o r, e j u n t a s , comercializaram no mesmo ano um total de 2.895 Fuscas. O galpão da Volks ficava localizado na Rua do Manifesto, Bairro do Ipiranga, São Paulo, onde doze funcionários montavam os primeiros lotes de veículos importados pela empresa, permanecendo no mesmo local até o dia 2 de setembro de 1957, data em que a produção dos veículos foi transferida oficialmente para o complexo industrial no Km 23,5 da Rodovia Anchieta. Apesar de a Ford e a General Motors já estarem presentes no país há um bom tempo, a produção dos veículos de passeio só foi intensificada nos anos 50, justamente por meio do conjunto de medidas políticas que costuraram essa fase de desenvolvimento nacional. Com esse pacote de favorecimento, montadoras como a Volkswagen conseguiram construir seus megacomplexos industriais que geraram milhares de empregos diretos e indiretos e fizeram da região do ABC, e d e várias outras, importantes pólos industriais do Estado de São Paulo. E foi justamente pela oferta de mão-de-obra barata, boa infra-es- Reportagem Especial trutura de transporte urbano e rodoviário este importante para o escoamento da produção até o Porto de Santos que essas empresas escolheram essas localidades. Isso, somado ao pacote de incentivos fiscais, tributários e obras de terraplanagem em terrenos acidentados (porém bem localizados) que as prefeituras desses municípios ofereciam, foi decisivo para o investimento e transferência dessas companhias. No início do desenvolvimento, montadoras como a Volkswagen, General Motors do Brasil, WillysOverland, Toyota, DKW-Vemag e a Simca foram empresas que tiveram uma boa parcela de importância na industrialização. Portanto, essa evolução do parque industrial de uma maneira geral, que tinha como base a indústria do automóvel, mudou aos poucos a vida dos brasileiros nos grandes centros. Isso ocorreu devido a diversos fatores políticos e e c o n ô m i c o s , e n t re e l e s a atração de dinheiro estrangeiro e o estímulo do governo para inv e s t i m e n t o s d e e m p re s a s Imagem/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc. Anúncio da época sobre o novo modelo disponível no mercado. Foto/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc. multinacionais aqui no Brasil. Tanto que as indústrias com maior concentração de capital eram de fora do país e 98% delas re p re sentavam a indústria automobilística. O resultado disso é que a Modelos deixam a linha de montagem em 1957. Fábrica começou a renda nacio- operar dois anos antes de sua inauguração oficial pelo presidente JK. nal com a produção do café, principal pro- instalações em Tatuí cinco anos duto brasileiro até então, já tinha depois e, em 1978, a Fiat lançou sido ultrapassada pelo setor de o Pick-up 147, criando uma cateveículos. Sendo assim, de certa goria única até hoje no mundo: a forma o carro passou a se tornar dos veículos pequenos de carg a parte da identidade do Brasil, fi- derivados de automóveis. cando muito difícil falar em proEsses fatos foram importantes gresso sem citar os veículos. Para para o desenvolvimento de proa antropóloga Ana Lúcia Castro, dutos e tecnologia cada vez mais o carro representa uma identifi- brasileiros, como foi o caso do cação brasileira com a constru- Proálcool, de 1975, que coordeção de uma indústria nacional; nava pesquisas na área de motoele é, devido a todo o processo res, fazendo o Brasil alcançar pelo qual o Brasil passou, parte aquilo que Calmon chama de esde uma identidade do país.... tado de arte em motores a álcoE os resultados desse progres- ol, levando o país a produzir mais so são apontados como relevan- de 90% da frota nacional exclutes por Calmon com mais intensi- sivamente para o uso do comdade nos anos 1970. Ele explica bustível vegetal em meados dos que a própria Volkswagen, apro- anos 1980. Esses avanços foram priando-se das antigas instalações alcançados no Laboratório de da Vemag, criou um departamen- Pesquisa de Motores do Centro to de projetos que desenhou em Técnico Aeroespacial, em São suas pranchetas outro sucesso de José dos Campos (SP), com a ajuvendas: o VW Brasília em 1973, da do professor Urbano Stumpf, um carro com desenho, fabrica- coordenador da pesquisa. Assim, ção e desenvolvimento totalmen- a indústria conseguia aos poute nacionais. A partir disso, foi c o s s u p e r a r o s o b s t á c u l o s dada a largada para a concorrên- tecnológicos, com pesquisas e cia entre as montadoras, pois a exaustivos testes de campo. GMB passou a investir em Através disso, pode-se perceber capacitação técnica e inaugurou que, do alto dos mais de 50 miem Indaiatuba, interior de São lhões de unidades de veículos (lePaulo, o primeiro campo de pro- ves e pesados) produzidas até hoje vas da América Latina, em 1974, pela indústria do automóvel em para Fernando um verdadeiro geral, tudo foi conquistado a muito marco. A Ford inaugurou suas custo. O final da década de 1980 Fusca Brasil n Novembro de 2007 Página 11 Reportagem Especial culminou com a decadência dos motores a álcool, não por culpa dos pesquisadores ou pela falta de tecnologia, mas por questões referentes à queda na oferta do produto nos postos de combustível. Os anos 1990 ficaram marcados com a criação do Mercado Comum do Sul e chega na fase atual da indústria chamada de fase pró-ativa, com o resgate do interesse pelo álcool através da nova tecnologia flex-fuel, onde tanto se pode usar gasolina como o combustível vegetal no tanque do carro. Tecnologia que despertou a atenção dos países ricos com a nova moda do desenvolvimento sustentável, e que trata basicamente do aproveitamento racional e consciente dos produtos que podem ser obtidos na natureza sem prejudicá-la. E sabe-se que o álcool, por ser um combustível vegetal, além de mais barato, emite uma menor quantidade de poluentes na atmosfera terrestre, contribuindo para uma melhor qualidade do oxigênio a ser respirado. Qual o segredo do Fusca? Muito ao contrário do que possa parecer, o Fusca teve que enfrentar inúmeras dificuldades para se estabelecer como um sucesso de vendas nacional e conquistar a simpatia que carrega até hoje. No período que desembarcou aqui, o país possuía uma frota de aproximadamente 530 mil veículos, para cerca de 52 milhões de habitantes. Uma proporção de um veículo para cada 100 pessoas, Foto/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc. Foto marca o início dos testes do programa pró-álcool. exatamente o mesmo cenário da Alemanha quando ele foi lançado por lá. E ao chegar em terras brasileiras ainda teve que encarar a concorrência dos modelos americanos, carros grandes, imponentes, luxuosos e com muitos detalhes cromados que dominavam o mercado nacional. Mas o pequeno e, para muitos na época, estranho carrinho tinha ao seu favor a facilidade e o baixo custo de manutenção, aliado a robustez, economia de combustível para os padrões da época e o O Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) Assinado em 1991, o tratado tinha incialmente como integrantes o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai. Ele possui como princípios básicos a livre circulação de produtos, bens e serviços entre os participantes, juntamente com a criação de uma tarifa externa comum para todas essas transações. Ou seja, não existem taxas ou encargos extras para todo o tipo de negociação entre os países integrantes. Atualmente o acordo também é de extrema importância para as montadoras, que usam as vantagens como a isenção de impostos para importar ou exportar seus produtos e assim ampliarem seu volume de vendas e sua margem de lucro. Fusca Brasil n Novembro de 2007 Página 12 motor localizado na parte de trás do carro. Este último ponto era um ótimo aliado para vencer subidas íngremes de terra, algo muito comum no Brasil da época. Outros fatores que foram decisivos para o carro cair no gosto do público eram: a simplicidade em reparar possíveis quebras no carro, afinal de contas, na época era muito difícil encontrar oficinas com o equipamento necessário para a manutenção; a economia que o carro oferecia no consumo de combustível, pois ele rodava uma média de 10 quilômetros com um litro de gasolina dentro da cidade; e, finalizando, o desempenho satisfatório nas estradas esburacadas, resistindo com valentia a possíveis quebras que esses obstáculos poderiam causar. Com essas qualidades, o carro conseguiu quebrar o gelo com o consumidor da época. A explicação para a durabilidade do motor está na relação da baixa potência, pois, segundo o engenheiro mecânico Agenor Gea, quando se procura tirar o máximo do motor, conseqüentemente a vida útil dele acaba se tornando reduzida, e esse é o ponto principal da durabilidade do Fusca, pois ele não utilizava toda a potência que o motor teria condições de oferecer. Poderia até ser feita uma comparação com os motores de mil cilindradas atuais, que devido a refrigeração a água podem trabalhar em alta rotação e normalmente depois de um tempo de uso tem problemas no cabeçote (parte superior do motor), que empena por sofrer superaquecimento. Portanto, essa margem de segurança para não utilizar todo o limite nas partes estrutural e mecânica era o principal fator que colaborava para sua robustez. Gea diz que o ponto positivo do carro é realmente a sua sim- Reportagem Especial plicidade. Não tem nada para dar problema. Ele tem o básico necessário, e também a refrigeração a ar é algo que facilita muito, explica. O fato referente à simplicidade e durabilidade de manutenção do carro foi amplamente noticiado na época, de forma que pudesse transmitir confiança ao público em relação à novidade. E deu certo. Tanto que o carro carrega até hoje a fama de mecânica simples, como analisa Edivaldo. Se você pegar o manual (do proprietário) de instrução de um Fusca da década de 1970, ele te ensina a fazer tudo no carro, até desmontar o carro. Se você pegar o de qualquer outro carro ele diz: Olha esse botão serve pra isso e aquele serve para aquilo, ao contrário do Fusca que demonstra como é simples a manutenção dele, conclui. Os resultados positivos referentes a essa estratégia foram colhidos na seqüência: no ano de 1959, estréia da sua fabricação aqui no Brasil, foram comercializadas 8.500 unidades, e a partir de 1962 ele consagrouse como líder de mercado, vendendo um total de 31.014 carros. Alguns anos depois, em julho de 1967, a Volkswagen comemorava a produção de 500 mil besouros brasileiros. A década de 1970 ficou conhecida como a era do Fusca e o período em que ele sofreu o maior número de transformações. Para se ter um idéia do tamanho do mercado que o carro ocupava, em 1973, 224.154 unidades foram vendidas, o que representou uma média de 18.679 veículos que saíam das concessionárias todos os meses durante o ano. Nesse mesmo ano o carro era responsável por 40% do mercado de automóveis no país, conseguindo manter a média de produção anual acima dos 200.000 até 1976, acumulando cerca de 1.800.000 unidades comercializadas até o início de 1980. Depois dessa fase o carro não sofreu nenhuma alteração significativa até sua saída de linha em 1986, que ocorre u devido a concorrência acirrada que começava a tomar conta do mercado, principalmente após o lançamento do Gol e do Passat, modelos que possuíam um espaço interno maior, motores mais potentes e uma relação custo benefício muito mais atraente. A queda e o re t o rn o A defasagem que o projeto do Fusca vinha sofrendo foi um dos fatores determinantes para deixar de ser fabricado, pois um carro pensado e construído na década de 1930, sem sofrer praticamente nenhuma modificação significativa ao longo desses mais de 50 anos, não conseguiria enfrentar os concorrentes modernos com o mesmo nível de competitividade. Um exemplo disso é o motor a ar que, devido à ausência da refrigeração a água, torna o carro muito barulhento, e isso prejudica a zona de conforto que as pessoas tanto procuram, gerando uma desvantagem para o consumidor em relação aos motores a água mais modernos, observa Agenor. E foram basicamente esses motivos que levaram ao término do período de fabricação do Fusca. Mas após um período de sete anos, mais precisamente no dia 25 de janeiro de 1993, Pierre Alain de Smedt, então presidente da Volkswagen do Brasil, foi chamado à Brasília para uma reunião com o presidente do Brasil Itamar Franco. Em pauta estava o interesse de Itamar em relançar o carro no mercado a um preço acessível, com a justificativa de combater o desemprego, estimular o mercado de consumo de carros populares que tomava novos rumos com o lançamento dos A cidade do Fusca Não, não se trata de piada nem de brincadeira. Ainda existem cidades onde os Fuscas são encontrados freqüentemente nas ruas e são muito valorizados na hora da revenda. Cunha, localizada em São Paulo, entre as serras do Mar e da Bocaina, é aparentemente uma cidade como qualquer outra. Ela é conhecida pelo seu potencial turístico, tanto por meio de seus aspectos naturais como pelos ateliês de produtos de cerâmica, onde é possível acompanhar o processo de cozimento do barro em uma espécie de ritual aberto a todos os interessados no assunto. Mas suas grandes ladeiras fazem com que os habitantes da cidade quase sempre tenham que enfrentar subidas ou descidas, dificilmente encontrando uma rua plana. E esses são os principais motivos que fazem do Fusca o transporte oficial da maioria dos moradores de lá. A resposta para esse sucesso está na tração das rodas traseiras, ingrediente essencial para Fusca Brasil n Novembro de 2007 Página 13 Imagem/Crédito: Alexander Gromow. um carro vencer subidas íngremes ou atoleiros. Essas características associadas ao baixo custo de manutenção e a facilidade para encontrar peças fazem do carro um objeto cobiçado por lá. Com esse exemplo, vemos que mesmo depois de praticamente 60 anos de sua criação, em pleno o século XXI, o Fusca continua em alta em alguns lugares e cumprindo fielmente sua missão de servir a muitas pessoas que ainda não possuem condições de adquirir um carro mais apropriado, e feito especificamente para andar em terrenos acidentados. Reportagem Especial veículos de 1000 cilindradas e aproveitar a imagem positiva que faz parte do carro. Entretanto, a notícia não foi bem aceita pelos críticos do governo e pela mídia em geral. Para eles seria um retrocesso o país voltar a fabricar um carro que já havia saído de linha com o discurso de que outros veículos modernos estavam chegando para melhorar a qualidade dos produtos oferecidos. Mesmo assim, foram investidos cerca de US$ 30 milhões Imagem/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc. Ilustração com os detalhes internos do cãmbio (acima) e do motor (abaixo) do Fusca. De acordo com Gea, “Não tem nada para dar problema. Ele tem o básico necessário, e também a refrigeração a ar é algo que facilita muito”. para adequar a linha de montagem ao relançamento do carro, gerando algo em torno de 800 novos empregos diretos e aproximadamente 24 mil indiretos. A festa de inauguração ocorre u no dia 24 de agosto de 1993, em uma cerimônia que o presidente Itamar, da mesma maneira que Juscelino fez, desfilou em carro aberto pela fábrica. Para Gea, a decisão foi mais política do que comercial, pois o carro já havia chegado em seu limite de produção, ou seja, não havia muito mais o que fazer para melhorar o projeto. Prova disso é que nem chegaram a utilizar a injeção eletrônica no carro usada por um período na Kombi antes da substituição pelo atual motor 1.4 com refrigeração a água , um importante recurso na ampliação da potência do carro. Na verdade, Gea acredita que foi tirado sal de pedra, porque ele rendeu até demais, passando de 1.200 cilindradas para 1.300, 1.500 e finalmente 1.600, tendo inclusive várias versões. Um dos motivos para esse retorno do Fusca foi a diminuição do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) que incidia sobre os carros populares da época. O imposto passou a ser cobrado através de uma taxa simbólica de 0,1% para carros 1.0, incluindo o besouro. As vendas responderam de forma mais positiva após a implantação do Plano Real, em 1994, acabando com a inflação crônica e acelerando o consumo de bens duráveis através da criação de linhas de crédito para financiamento. Em setembro de 1994, o ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, decidiu antecipar a implantação de tarifas externas comuns do Mercosul que começaram a vigorar em 1995. O objetivo dessas tarifas era faciliFusca Brasil n Novembro de 2007 Página 14 tar a entrada de veículos importados com um preço competitivo para o mercado nacional, combatendo a elevação dos preços via ágio que acabaram se multiplicando após o excesso de procura pelos carros novos que o crédito fácil provocou, colocando em risco a inflação do país. Contudo, o conjunto dessas medidas aumentou a importação dos bens e diminuiu a exportação, causando um crescente prejuízo na balança comercial (responsável pelo cálculo daquilo que o país vende e compra de outras nações), e fazendo com que o governo aumentasse o IPI para 32%. Essas medidas, somadas à crescente disputa e modernização do segmento dos veículos 1.0, fez com que o Fusca, juntamente com o seu projeto antigo, ficassem inviáveis para a Volks. Mesmo assim, nesse último e curto período de fabricação, o carro vendeu cerca de 50 mil unidades, tendo o último modelo deixado a linha de produção brasileira em junho de 1996. Essa versão continuou sendo fabricada até o dia 30 de julho de 2003, na cidade de Puebla, México, onde definitivamente deixou de ser produzido para o mundo. Além do próprio esgotamento do projeto do carro, a saída de linha do modelo ocorreu, entre outros fatores, devido às normas internacionais que controlam a emissão dos poluentes, procurando minimizar a quantidade dos gases que provocam o efeito estufa, aumentando gradativamente a temperatura do planeta. Gea explica que isso ocorre porq u e: quando você não tem uma boa relação potência/consumo, existe um grau de emissão de poluentes muito maior. Na tecnologia atual, através de sensores de oxigênio Reportagem Especial chamados de sonda lambda (que calculam a medida ar/combustível exata e enviam ao computador central do carro os dados da proporção correta que deve ser utilizada no momento) procura-se obter uma queima de combustível na medida certa para que o motor aproveite melhor a gasolina ou o álcool. Portanto, quando se queima melhor o combustível, evidentemente obtém-se um nível de emissão de poluentes menor; são os chamado motores ecologicamente corretos. O Fusca chegou ao Brasil em um momento que era necessário um meio de transporte confiável para desbravar estradas cheias de buracos, e que em muitos casos nem asfaltadas eram. Gea explica que a contribuição do carro foi principalmente na criação e estabilização de um mercado consumidor de carros em massa, fato que nem o Ford T, ou Ford bigode, havia conseguido por aqui, salienta. E essa expansão da qual o carro participou criou uma relação com os proprietários de tal maneira que é muito difícil você encontrar uma pessoa na faixa dos 40 anos, hoje, que nunca teve e nunca dirigiu um Fusca. Por esse motivo, os saudosistas Foto/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc. Linha de produção do Fusca em 1964. Foto/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc. logo trataram de criar clubes e encontros que, segundo Ana Lúcia Castro, revelam essa identificação de nacionalidade brasileira com o besouro. Isso quer dizer que é necessário para esses amantes do Fusca se encontrar com outros que expressem o mesmo Modelo conhecido como “Itamar” foi relançado em sentimento pelo carro 1993, e fabricado até 1996. para poder mostrar qual é o modelo mais antigo, o mais am clubes, são aficionados na bem conservado, qual a peça história, na trajetória do carro. É que deu mais trabalho para ser possível encontrar vários tipos de encontrada. Nesses simples en- pessoas que são fãs do mesmo contros, barreiras sociais e cul- carro, finaliza. turais são transpostas através da O encontro dos discussão dos assuntos referenp roprietários tes ao carro, estabelecendo uma linguagem característica no gruE é essa impressão que temos po por meio de uma ponte de ligação com um passado que quando presenciamos um enconprovavelmente deixou saudade tro. Em um deles, realizado no ese, ao mesmo tempo, fugindo de tacionamento da Fundação Santo u m p re s e n t e c u l t u a d o r d o André, na cidade de m e s m o consumismo que torna as pes- nome, todo segundo domingo de cada mês, encontramos os mais soas mais vazias. Fato comprovado se analisar- diversos tipos de grupos. Existem mos os clubes do Fusca que exis- a q u e l e s q u e g o s t a m d o tem atualmente em vários países Volkswagen Gol, dos modelos da e s p a l h a d o s p e l o m u n d o . Fiat, da Chevrolet, do Fusca, de E d i v a l d o c o n t a q u e p o s s u i alguns tipos de motos etc; e cada contato com gente do mundo qual se reúne no seu espaço deinteiro que possui Fuscas. São terminado para trocar informações países pequenos que mantêm a sobre o assunto. Isso sem contar mesma paixão pelo carro, e mes- o mercado paralelo de peças desmo estando do outro lado do tinadas a esses modelos, o chaplaneta o sentimento é o mes- mado mercado de pulgas, onde mo. Tem amigos meus na Ilha se encontra quase de tudo: carda Madeira (Portugal), que é um buradores, volantes, emblemas pedacinho de terra no meio do com o nome do carro, painéis e oceano pacífico, e nós mantemos até alguns produtos artesanais contato sempre. Tem também na como pinturas, miniaturas etc. A África do Sul, Espanha, Costa- impressão que se tem é a de uma Rica, Alemanha, Estados Unidos, feira de exposição com locais reonde você imaginar; é até um servados para a compra e venda pouco de troca de cultura, ex- de veículos, peças e outros proplica. Para ele o público que dutos. Nesses locais, é possível mantêm o carro é bem eclético, notar a presença de famílias com vai desde a pessoa que tem o seus animais de estimação, criancarro por necessidade até os ças, jovens, adultos e idosos pascultuadores desse mito que cri- seando tranqüilamente e reparan- Fusca Brasil n Novembro de 2007 Página 15 Reportagem Especial do em cada modelo, cada detalhe, trocando informações e fazendo perguntas aos proprietários sobre como achar bons mecânicos, peças de qualidade, carros impecáveis para compra, manuais do proprietário de alguns veículos raros, os principais defeitos e qualidades de cada modelo etc. Sem contar os que gostam do carro um pouco mais modificado, com alterações na potência do motor, rodas maiores e cores diferentes da época em que foi fabricado. Enfim, é um prato cheio para quem gosta de uma boa conversa, e agrada aos diversos estilos daqueles que gostam de carros antigos. E foi em meio a esse ambiente que encontramos Luiz Carlos, 39 anos, técnico em laboratório, que possui um Fusca de cor branca, turbinado. Ele conta que sempre gostou do modelo, e o seu primeiro carro foi justamente um fusquinha comprado de sua avó. Era um modelo 1973, verde limão, que foi usado por ela um bom tempo. A relação com o carro é tão intensa que ele afirma que está no sangue, veio do meu pai e por incrível que pareça já contaminei minha filha. Uma vez uma pessoa me ofereceu uma grana muito boa para comprar meu carro, e ela começou a fazer um escândalo tão grande quando eu disse que ia vender, que acabou não deixando eu vender, não. Então ele (o carro) não é importante pelo uso, mas sentimentalmente ele é muito importante pra mim. Caso semelhante ocorreu também com a publicitária Priscilla Ozanan, de 24 anos. Ela conta que ganhou o carro do avô que, embora permaneça vivo, acabou cedendo o Fusca para ela quando completou 18 anos. No princípio, por não gostar muito do carro, acabou desprezando um pouco o presente, mas com o tempo acabou se apaixonando. Eu achava, a partir dos conceitos de outras pessoas, que era um carro velho, só servia para trabalhar. A única coisa que eu gostava era que ele é redondinho, porque eu não gosto de carro quadrado. No começo o carro era usado para ir e voltar d a faculdade e do trabalho, e ele sempre respondeu às suas expectati- vas, nunca apresentando um defeito grave. Com o tempo, o sentimento aumentou pelo fato de perceber que o amor de seu avô estava expresso através daquele carrinho. Onde eu passava as pessoas, principalmente com mais idade, olhavam e admiravam o carro, Entrevista com a Antropóloga Ana Lúcia Castro Buscamos a ajuda da doutora em antropologia, Ana Lúcia Castro, para tentar compreender um pouco mais sobre a paixão pelo Fusca. De acordo com ela, todo ser humano busca produzir algum sentido à sua vida através da identificação com grupos. Isso vale tanto para a pessoa que procura se vestir de uma determinada maneira e só anda com o grupo que utiliza àquele tipo de vestuário, como para os colecionadores de um determinado tipo de objeto. Através disso estabelecem uma linguagem, costumes e regras próprias que vão designar suas atitudes e demonstrar que fazem parte de uma tribo, automaticamente se diferenciando de outras. Essa análise é de extrema importância para tentar entender o que move e estimula tantos proprietários a cultivarem o carro e esse tipo de ritual que são os encontros, onde os grandes personagens são os Fuscas. 1) Porque em determinados grupos um carro antigo pode despertar uma paixão tão grande? Eu acho que tem uma questão que a gente precisa ter sempre em mente: é próprio do ser humano buscar o que dá sentido à sua vida através de elos de pertencimento a um grupo. Eles indicam a identificação com outros seres humanos e com outros elementos do mesmo grupo, e ao mesmo tempo, e isso que é mais interessante, essa identificação implica em uma fronteira simbólica que é levantada em relação ao diferente. Então eu me identifico com alguns e estou me distinguindo de outros grupos. Portanto, essa paixão pelo carro antigo, que poderia ser por outro tipo de objeto, é um exemplo, mas de uma questão mais real, e é interessante você perceber isso expresso na paixão pelo carro, ainda mais o Fusca que tem toda essa identificação com uma nacionalidade brasileira e com a construção de uma indústria nacional. 2) Então essa paixão não é ideológica, mas sim uma busca pelo consumo? O que vincula essas pessoas, esse grupo, não é ideológico, você pode até ter ali as pessoas que tem militância política ou não. O recorte é simbólico de outra ordem. É relativo ao que o carro simboliza pra essas pessoas. 3) Mas não seria um recorte de classe? Claro que você tem que ter um pouco de informação e um poder aquisitivo mínimo para poder adquirir os objetos. Mas passado esse patamar mínimo, você pode ter pessoas de classe A ou de classe B e não é isso que vai definir. Não é uma definição de classe que está unindo essas pessoas é a necessidade de dar sentido às suas vidas nesse mundo tão complexo e com significados tão emaranhados. Um mundo onde você tem uma multiplicidade tão grande de referências e ao mesmo tempo um certo vazio, porque as pessoas ficam perdidas nessas referências e esse mundo acaba gerando um certo vazio. Você pode entender que a motivação, mesmo de uma pessoa aficionada que comprou o Fusca zero e o mantém até hoje, é dar um sentido à sua vida se apegando a um bem de consumo que no passado foi até um objeto de ostentação, mas que caiu em desuso, e através desse Fusca, ele procura gerar um sentido. Nosso mundo, em função do processo de globalização, tem uma profusão de imagens e de informações intensa, por isso as pessoas criam formas de se apegar a elementos, objetos ou produtos culturais que são constantes, porque senão cai no vazio mesmo. Quando nós olhamos para essas práticas cotidianas, vemos que o indivíduo está se posicionando, está buscando canalizar os seus anseios. Fusca Brasil n Novembro de 2007 Página 16 Reportagem Especial perguntavam pelo ano e diziam que estava muito bonito. Para ela o carro tem sentimentos. Sempre via que as pessoas não cuidavam muito bem dos Fuscas nas ruas, para muita gente nem carro ele é considerado. Mas se as pessoas cuidarem direitinho dele, nunca vai dar trabalho. E essa sensação de que o carro sente quando nós gostamos dele aumentou ainda mais quando assisti ao filme Herbie, meu Fusca turbinado, porque você vê que é realmente assim; olhando pra carinha dele, parece que tem sentimento. Já para Ronaldo Alves, 22 anos, assessor de imprensa, o Fusca é um carro sem nada para oferecer. Ele acha o modelo um pouco bonito, simpático, mas não compraria de jeito nenhum. Não consigo entender o que vêem no carro; é preciso gostar muito para comprar um, ironiza. Seu primeiro carro foi um golzinho que deixou muita saudade. Ele tinha um ótimo espaço interno, sua mecânica nunca me deu trabalho e suas peças eram muito baratas, por esse motivo ele disse que preferiu esperar um pouco mais para adquirir o primeiro carro, já que na época o dinheiro que tinha só dava para comprar um Fusca. Meu pai ainda me sugeriu um Foto/Crédito: Roberto Tenório. “Besouros” em exposição durante o encontro no ABC. Fusca, disse que seu primeiro carro foi um que se chamava Precioso, mas eu não ia conseguir andar com um carro barulhento, fraco e que não oferece nenhum conforto. Por isso não tive dúvida: esperei mais um pouco e comprei o carro que queria, afirma. A antropóloga Ana Lúcia Castro explica que as modificações pela qual o mundo vem passando no decorrer dos anos, junto com o bombardeio de imagens e informações, faze m com que as pessoas se apeguem a eixos que, “ têm pessoas que andam com o carro do ano, enquanto eu ando com o carro do século... como no caso do Fusca, representariam um elo do passado com o presente, e deste com o futuro. É como o exemplo do proprietário que comprou o carro zero e o conserva até hoje em suas mãos. Na época que ele comprou o carro era um produto da moda, mas com o passar do tempo ele tornou-se um objeto ou elemento cultural que proporciona sentido à vida do dono. Assim, é possível notar que tal proprietário procura manter essa ligação com a época em que ele adquiriu o carro, levando-o a crer que era uma fase que acrescentou algo muito bom à sua vida. O fato observado diz respeito à maneira como o carro marca a vida dos proprietários. Muitos dos que cultuam o carro atualmente já tiveram na infância algum tipo de experiência que os faz lembrar do carro com carinho. É o caso do Balconista Rogério, de 31 anos, que explica sua relação com o carro. O Fusca Brasil n Novembro de 2007 Página 17 imagem/Crédito: Roberto Tenório. O chamado “mercado de pulgas”, local onde podem ser achadas algumas peças raras. Fusca foi meu primeiro carro. É uma coisa que vai ficar marcada para sempre, é como a primeira namoradinha: a gente nunca esquece. Seu primeiro contato com o carro foi através de seu irmão, que possuía um, quando Rogério era bem novinho. Comecei vendo ele mexer no carro, transformar algumas partes, trocando pneus e rodas. A partir daí comecei a pegar gosto pelo carro, peguei gosto pela coisa, brinca. Para ele, muitos torcem o nariz para o carro pelo simples fato de ele estar associado à imagem do proletariado até hoje. É o que eu falo: tem pessoas que andam com o carro do ano, enquanto eu ando com o carro do século! Carro que aliás já o deixou em situação de apuros. Uma vez saí com a minha namorada e fazia uns três meses que a gente estava junto. Quando eu estava indo embora do local do encontro, meu Fusca quebrou e não havia quem fizesse o carro pegar. Para ele, o mais complicado foi mandar a namorada embora de ônibus. O pior foi ver ela entrar no ônibus com aquela cara de sem graça, se diverte. Sangue brasileiro E é justamente por todos esses motivos que muitas pes- Reportagem Especial de tecnologia, gerando mais e m p regos e transforma n d o a rotina das grandes cidades, seja porque foi o primeiro veículo que conseguiu atingir o maior número de consumidore s , q u e b r a n d o re c o r d e s d e vendas e compondo grande parcela da frota de automóveis soas têm a impre s s ã o d e q u e o carro possui alma brasileira. De certa forma, o carro re almente está profundamente enraizado na história do país de uma maneira geral. Seja pelo fato de ter chegado por aqui em uma fase de transição industrial, que elevou o nível que transportou quase todos os brasileiros que hoje estão na faixa dos 40 a 50 anos de idade. Com isso, a verdadeira re s p o s t a p a r a a q u e s t ã o d o Fusca está na história que cada proprietário viveu com ele, e na maneira que essa experiência foi vivida. Entrevista com Alexander Gro m o w 1) Como surgiu seu interesse pelo c a r ro ? Com a compra do primeiro e único Fusca que tenho até hoje (um modelo 1955). Fui me interessando pelo carro, comecei a comprar revistas especializadas e a colaborar com elas, pesquisar em livros estrangeiros e a me informar sobre a história do Fusca. Logo cheguei à conclu- 5) Como foi o processo para criar o dia municipal e mundial do Fusca? Foto/Crédito: Ervin Moretti. Ele é referência quando o assunto é Fusca. Alexander Gromow pode até ser considerado como o Papa dos fusqueiros, não só pelo conhecimento profundo em relação ao assunto, mas, principalmente, pela sua dedicação na busca e organização dos documentos, datas, nomes e fatos relacionados ao famoso carrinho. Nascido na Alemanha, em 1947, vive no Brasil desde 1949, onde ainda criança aprendeu a gostar de automóveis. Foi um dos fundadore s do Fusca Clube do Brasil, atualmente a única entidade reconhecida oficialmente pela Volkswagen do Brasil como representante do carro. Engenheiro bem sucedido e poliglota (fala sete idiomas) é reconhecido como entusiasta da marca pela própria Presidência e Diretoria da Volkswagen. No Brasil foi um dos responsáveis pela criação do Dia Municipal do Fusca, comemorado no dia 20 de Janeiro através da lei promulgada pelo então prefeito Paulo Salim Maluf, além de lançar no conhecido evento de Bad Camberg (um encontro anual que reúne Fuscas de várias partes do mundo), na Alemanha, o Dia Mundial do Fusca, celebrado no dia 22 de Junho, data da aprovação do projeto do carro pelo governo alemão, em 1934. Por todos esses motivos e por pesquisar a história do carro desde 1970, seu nome é muito popular entre os amantes do carro e sua autoridade no assunto reconhecida internacionalmente. E com exclusividade, a Revista Fusca Brasil traz uma entrevista sobre o autor do livro: Eu amo o Fusca, fruto de vários anos de pesquisa. Alexander Gromow e o seu “Rosinha”. são de que aquela história tinha ingredientes especiais e que não se tratava de mero produto industrial. 2) De onde surgiu a idéia de escre v e r o l i v ro ? Durante essa fase de descoberta sobre o carro, eu procurei uma publicação com a história do Fusca também no Brasil e não encontrei nada. Ai surgiu a idéia de preencher esta lacuna para a posteridade, ou seja, para permitir uma fonte de pesquisa para as gerações vindouras também. 3) Há quanto tempo você pesquisa sob re o assunto? Desde o início da década de 70. O trabalho de preparo do primeiro livro levou 15 anos. 4) Em seu livro você aborda muitos fatos re f e rentes às datas, pessoas e e m p resas envolvidas com o Fusca. Porque você não relacionou a todo esse p ro c e s s o a s d e c i s õ e s p o l í t i c a s e econômicas que o governo brasileiro tomou na época? Havia a necessidade de se fazer um compromisso entre o tamanho do livro e seu conteúdo. Para fazer um registro completo o livro teria o triplo do tamanho, entraria em detalhes que interessariam a poucos e fugiria da meta inicial que foi respeitar o lamentável fato do brasileiro preferir uma revista de fotos a um livro. Fusca Brasil n Novembro de 2007 Página 18 O Dia do Fusca no Município de São Paulo foi instituído pela Lei Municipal número 12.202 de novembro de 1996. A idéia surgiu de contatos com o Prof. Fábio Lazzari que tinha um cargo na Secretaria de Esportes Turismo e Lazer, e era assessor do Vereador Toninho Paiva. No dia 20 de janeiro de 1997 foi realizada uma cerimônia solene para a comemoração do primeiro Dia do Fusca oficial em São Paulo. Já a criação do dia mundial foi um trabalho árduo que levou vários anos e que envolveu clubes de várias partes do mundo. Eu tive a idéia e trabalhei no sentido de lançá-la mundialmente. Acabou prevalecendo o dia 22 de junho, pois nesta data, em 1934, foi assinado o contrato que deu início ao desenvolvimento do Fusca por Ferdinand Porsche. 6) Na sua opinião, qual foi a importância e a colaboração histórica do Fusca para a indústria de uma forma geral? Costumo afirmar que o Fusca foi o presente que Hitler deu para a Alemanha, país que, paradoxalmente, ele mesmo ajudou a destruir. Resumindo: por onde o Fusca passou, ele trouxe progresso, conhecimento e alegria para os povos dos países onde ele foi fabricado, montado ou simplesmente vendido. Seu significado histórico é indelével, já foi eleito o carro do século, foi produzido, praticamente com a mesma cara mais de 22 milhões de vezes, e há muitos deles andando por aí, e muitos objetos com seus componentes andando no céu (aviões) e na água (barcos). 7) O que o leva a cultivar a paixão p e l o c a r ro ? O carro e sua história. Sei o que houve e sei que há muito para recolher de dados históricos, e aprender é cativante. Para mim, isso já basta como motivo. ESPAÇO RESERVADO PARA PUBLICIDADE ESPAÇO RESERVADO PARA PUBLICIDADE
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