Bruno Fiúza No final dos anos 1980, Yulia era uma jovem que

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Bruno Fiúza No final dos anos 1980, Yulia era uma jovem que
CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE / BOLETIM/OUTUBRO DE 2006
UMA OKUPAÇÃO POLÍTICA
Bruno Fiúza
Especial para o Brasil de Fato, de Barcelona (Espanha).
No final dos anos 1980, Yulia era uma jovem que dividia apartamento com mais
três amigos em Barcelona, na Espanha. Eles moravam no Raval, um antigo bairro
operário no centro histórico da cidade que, como tantos outros em Barcelona, vem
mudando muito para se adaptar às necessidades do turismo. Um dia, Yulia e seus
amigos foram informados pelas autoridades de que o prédio onde viviam, assim como
todos os demais da rua, seriam demolidos.
Naquela época, chegavam a Barcelona notícias de ocupações de imóveis
abandonados, que eram transformados em centros de atividade política e cultural
alternativa, chamados squatts. Aconteciam principalmente em países como Alemanha,
Holanda, Inglaterra e Itália, mas também em outras regiões da Espanha, como o País
Basco.
Sem possibilidades de arcar com os gastos de um novo aluguel e inspirados
pelas notícias que chegavam de longe, os quatro amigos decidiram ocupar uma casa
vazia no município de Esplugues, região metropolitana de Barcelona.
Não tinham intenção política, só queriam um lugar para morar. Depois de duas
tentativas que terminaram em despejos, Yulia e seus amigos voltaram a entrar em uma
antiga casa abandonada no bairro barcelonês de Gracia. Era uma construção do
começo do século 20, que havia servido de quartel-residência para os oficiais da
Guardia Civil, a polícia espanhola, até o início dos anos 1980. Fora abandonada após
um grupo armado - chamado Terra Lliure (Terra Livre, em catalão), que lutava pela
independência da Catalunha, região onde está Barcelona - colocar duas bombas na
base policial e deixar partes do imóvel em ruínas.
Kasa de la Muntanya
O antigo quartel foi rebatizado e se tornou uma residência coletiva que, logo
depois de ocupado, já contava com cerca de 30 moradores. Nascia a Kasa de la
Muntanya (Casa da Montanha). O grupo que ocupou a casa só queria um espaço para
morar, mas começou a desenvolver atividades políticas no Ateneu Libertário de Gracia,
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um centro cultural montado nos anos 1960 por militantes libertários, herdeiros da
tradição anarco-sindicalista catalã e dos ateneus do começo do século. A idéia era criar
um espaço de intercâmbio cultural entre os trabalhadores nos bairros.
Seguiam a linha política dos anarquistas de 1936, que, ao estourar a Guerra
Civil Espanhola, defenderam Barcelona e lutaram contra as tropas do general
Francisco Franco, até serem derrotados, três anos depois. Franco, em regime ditatorial,
governou a Espanha entre 1939 e 1975, quando morreu. A experiência anarcosindicalista, durante os primeiros meses da Guerra Civil, fomentou na Catalunha um
processo de coletivização de fábricas, transformando Barcelona no epicentro da
Revolução Espanhola, que completou 70 anos em 19 de julho.
No início, a Kasa de la Muntanya estava em péssimas condições. Os estragos
causados pelas bombas e o abandono de quase uma década haviam destruído o
encanamento e o sistema elétrico, além de comprometer a estrutura das paredes. Os
moradores assumiram a tarefa de reconstruir o local. Transformaram o que antes eram
escombros em uma casa com luz, água e quartos habitáveis. Sempre por meio do
trabalho coletivo, tomando as decisões em assembléias.
Projeto político
De uma ação por moradia a um projeto político. Essa é a diferença entre uma
ocupação com "c" e a okupação com "k". A explicação é de Joan e Gemma, que
integram o coletivo do Kasal Okupat del Prat (KOP), um Centro Social Okupado na
cidade de El Prat de Llobregat, na região metropolitana de Barcelona. Ao contrário da
Kasa de la Muntanya, a KOP nasceu em 2003 com o objetivo explícito de ser um
espaço para atividades políticas e culturais alternativas.
"A ocupação com "c" reivindica apenas o direito à moradia. A okupação com "k",
além da moradia, reivindica várias outras coisas. É mais politizada. É preciso
diferenciar as pessoas que entram em casas vazias para morar das que reivindicam
essas okupações como um ato político para tornar público um problema social", explica
Joan. Na okupação, as pessoas experimentam novas formas de se organizar
coletivamente, não comerciais e não institucionais.
É uma alternativa à sociedade capitalista, na prática. São auto-gestões, que
objetivam a auto -subsistência. Nesse sentido, nenhuma "okupação" supera a
comunidade "rururbana" - rural e urbana - de Can Masdeu, um antigo leprosário situado
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em uma montanha perto de Barcelona. Foi "okupado" em 2001 por 8 pessoas que
buscavam um espaço para organizar um encontro de ecologistas europeus.
Can Masdeu já atingiu um nível avançado de auto-suficiência. Seus moradores
levam uma vida que em vários aspectos está à margem da sociedade urbana e
capitalista, com abastecimento próprio da água e dos vegetais que consomem. Álvaro,
um dos moradores de Can Masdeu, explica que "com a okupação você pode se
permitir não gastar a maior parte do tempo trabalhando porque já não tem que pagar
aluguel. Por não ter que dedicar tanto tempo trabalhando, você pode dedicar mais
tempo a fazer o que gosta".
Combate à especulação imobiliária
Uma forma de luta contra a especulação imobiliária, as "okupações" hoje giram
em torno de 150, em toda Barcelona, incluindo casas e centros sociais. Desde o final
da década de 1980, a prefeitura de Barcelona adota a política de transformar a cidade
em uma grande vitrine mundial. Quer atrair turistas e empresários, patrocinando
eventos como os Jogos Olímpicos de 1992. A cidade se metamorfoseia. Antigos
bairros industriais são substituídos por paisagens pós-modernas.
A remodelação da cidade expulsa os moradores dos bairros populares,
transformados em áreas nobres. Os especuladores imobiliários aproveitam a crescente
demanda de imóveis e aumentam o preço dos aluguéis, que ficam inacessíveis para os
jovens. O movimento okupa resiste à reestruturação econômica e territorial "okupando"
imóveis vazios. Uma vez "okupado", um imóvel particular só pode ser desocupado
após um processo judicial, onde são ouvidos tanto os "okupas" como os proprietários.
Edifícios públicos podem ser desalojados, sem julgamento.
O tempo de vida de uma "okupação" depende de quando o proprietário reclama
a propriedade a quando é expedida a ordem de despejo, e isso muitas vezes pode
durar meses ou anos. Terminados os recursos pela via judicial, passa-se à resistência
por meio da ação direta contra a polícia, para defender a "okupação" e reivindicar a
função social da moradia, considerada mais importante do que o direito à propriedade
privada.
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Movimento sem rótulo
Não há um movimento "okupa". Há vários. Nenhuma generalização é possível
quando se trata de "okupações". Não se trata de um movimento unitário e qualquer
tentativa de ver uma organização hierárquica e centralizada é pura perda de tempo. Há
diferentes centros sociais, com suas práticas e visões de mundo próprias. Os vínculos
são feitos entre grupos de afinidade que trabalham temas de interesse comum.
Tanto que não existe uma ideologia do movimento. "Em Barcelona, nunca
quisemos identificar a okupação com uma determinada ideologia, como aconteceu em
outros lugares da Espanha e da Europa. Todos os que precisam têm o direito de
okupar. O trabalho coletivo depende da afinidade entre as pessoas", explica Yulia, da
Kasa de la Muntanya. Ela acredita que antes de ser um projeto político a "okupação"
surge da necessidade de espaços "onde pessoas, com inquietudes diferentes das que
nos vendem continuamente, possam realizar seus projetos. É uma ação direta contra a
propriedade privada e a especulação".
Práticas libertárias
As "okupações" baseiam seu funcionamento na autogestão e têm a assembléia
como prática política por excelência. Por isso, alguns, como Joan, do Kasal Okupat del
Prat, acreditam que há uma clara influência da tradição libertária e que o movimento
seria um novo ciclo desta luta. Mas nem todos estão de acordo.
Álvaro, da Can Masdeu, é um dos que não se identificam com esse rótulo: "A
okupação é muito heterogênea, existem muitas formas de fazer as coisas. Ninguém vai
te dar uma definição. Mas em geral eu não me identifico com isso de ‘libertário’,
‘anarquista’. A sensação que tenho é de que a sociedade, pelo menos a européia e a
espanhola, vem sofrendo transformações que fazem com que muitas formas antigas de
militância já não funcionem muito. Há uma necessidade de se reinventar, e o que me
interessa é tudo aquilo que esteja experimentando com coisas novas", afirma.
Ideologias à parte, o fato é que as experiências sociais das "okupações",
baseadas em uma visão de mundo distinta da dominante, não permitem mais a quem
as vive estar no mundo da mesma maneira que antes. Depois de dois filhos e mais de
17 anos "okupando", a professora primária Yulia é a primeira a reconhecer isso.
"Quando você vive assim, de maneira comum com tantas outras pessoas, aprende a
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pensar por você mesma e a tomar suas decisões. Isso te faz ganhar uma liberdade que
você acaba transmitindo por onde passa. Isso acontece quando você aprende a viver
de outra maneira, e ainda por cima vê que é muito mais gratificante do que estar aí
enjaulado.”
Fonte:
http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/internacional/news_item.2006-09-29.9717755984
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