Inconfesso Desejo Queria ter coragem Para falar deste segredo
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Inconfesso Desejo Queria ter coragem Para falar deste segredo
Inconfesso Desejo Queria ter coragem Para falar deste segredo Queria poder declarar ao mundo Este amor Não me falta vontade Não me falta desejo Você é minha vontade Meu maior desejo Queria poder gritar Esta loucura saudável Que é estar em teus braços Perdido pelos teus beijos Sentindo-me louco de desejo Queria recitar versos Cantar aos quatros ventos As palavras que brotam Você é a inspiração Minha motivação Queria falar dos sonhos Dizer os meus secretos desejos Que é largar tudo Para viver com você Este inconfesso desejo Carlos Drummond de Andrade A Verdade A porta da verdade estava aberta, Mas só deixava passar Meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, Porque a meia pessoa que entrava Só trazia o perfil de meia verdade, E a sua segunda metade Voltava igualmente com meios perfis E os meios perfis não coincidiam verdade... Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta, Chegaram ao lugar luminoso Onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades Diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela E carecia optar. Cada um optou conforme Seu capricho, sua ilusão, sua miopia. Carlos Drummond de Andrade As Sem-razões do Amor Eu te amo porque te amo. Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo. Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga. Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários. Eu te amo porque não amo bastante ou demais a mim. Porque amor não se troca, não se conjuga nem se ama. Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo. Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor. Carlos Drummond de Andrade Ausência Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim. Carlos Drummond de Andrade Os Ombros Suportam o Mundo Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração. Tempo em que não se diz mais: meu amor. Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco. Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. Ficaste sozinho, a luz apagou-se, mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. És todo certeza, já não sabes sofrer. E nada esperas de teus amigos. Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança. As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação. Carlos Drummond de Andrade Quadrilha João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história. Carlos Drummond de Andrade A Língua Lambe A língua lambe as pétalas vermelhas da rosa pluriaberta; a língua lavra certo oculto botão, e vai tecendo lépidas variações de leves ritmos. E lambe, lambilonga, lambilenta, a licorina gruta cabeluda, e, quanto mais lambente, mais ativa, atinge o céu do céu, entre gemidos, entre gritos, balidos e rugidos de leões na floresta, enfurecidos Carlos Drummond de Andrade Para Sempre Por que Deus permite que as mães vão-se embora? Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não apaga quando sopra o vento e chuva desaba, veludo escondido na pele enrugada, água pura, ar puro, puro pensamento. Morrer acontece com o que é breve e passa sem deixar vestígio. Mãe, na sua graça, é eternidade. Por que Deus se lembra - mistério profundo de tirá-la um dia? Fosse eu Rei do Mundo, baixava uma lei: Mãe não morre nunca, mãe ficará sempre junto de seu filho e ele, velho embora, será pequenino feito grão de milho. Carlos Drummond de Andrade Fazenda Vejo o Retiro: suspiro no vale fundo. O Retiro ficava longe do oceano mundo. Ninguém sabia da Rússia com sua foice. A morte escolhia a forma breve de um coice. Mulher, abundavam negras socando milho. Rês morta, urubus rasantes, logo em concílio. O amor das éguas rinchava no azul do pasto. E criação e gente, em liga, tudo era casto. Carlos Drummond de Andrade Mãos dadas Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considere a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história. Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela. Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida. Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. Carlos Drummond de Andrade Acordar, viver Como acordar sem sofrimento? Recomeçar sem horror? O sono transportou-me àquele reino onde não existe vida e eu quedo inerte sem paixão. Como repetir, dia seguinte após dia seguinte, a fábula inconclusa, suportar a semelhança das coisas ásperas de amanhã com as coisas ásperas de hoje? Como proteger-me das feridas que rasga em mim o acontecimento, qualquer acontecimento que lembra a Terra e sua púrpura demente? E mais aquela ferida que me inflijo a cada hora, algoz do inocente que não sou? Ninguém responde, a vida é pétrea. Carlos Drummond de Andrade A bomba A bomba é uma flor de pânico apavorando os floricultores A bomba é o produto quintessente de um laboratório falido A bomba é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles A bomba é grotesca de tão metuenda e coça a perna A bomba dorme no domingo até que os morcegos esvoacem A bomba não tem preço não tem lugar não tem domicílio A bomba amanhã promete ser melhorzinha mas esquece A bomba não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está A bomba mente e sorri sem dente A bomba vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados A bomba é redonda que nem mesa redonda, e quadrada A bomba tem horas que sente falta de outra para cruzar A bomba multiplica-se em ações ao portador e portadores sem ação A bomba chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés A bomba faz week-end na Semana Santa A bomba tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia A bomba industrializou as térmites convertendo-as em balísticos interplanetários A bomba sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose, de verborréia A bomba não é séria, é conspicuamente tediosa A bomba envenena as crianças antes que comece a nascer A bomba continua a envenená-las no curso da vida A bomba respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais A bomba pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba A bomba é um cisco no olho da vida, e não sai A bomba é uma inflamação no ventre da primavera A bomba tem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro, cobalto e ferro além da comparsaria A bomba tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc. A bomba não admite que ninguém acorde sem motivo grave A bomba quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos A bomba mata só de pensarem que vem aí para matar A bomba dobra todas as línguas à sua turva sintaxe A bomba saboreia a morte com marshmallow A bomba arrota impostura e prosopéia política A bomba cria leopardos no quintal, eventualmente no living A bomba é podre A bomba gostaria de ter remorso para justificar-se mas isso lhe é vedado A bomba pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo A bomba declare-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade A bomba tem um clube fechadíssimo A bomba pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel A bomba é russamenricanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris A bomba oferece de bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos de paz A bomba não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas A bomba desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger velhos e criancinhas A bomba não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer A bomba é câncer A bomba vai à Lua, assovia e volta A bomba reduz neutros e neutrinos, e abana-se com o leque da reação em cadeia A bomba está abusando da glória de ser bomba A bomba não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba o instante inefável A bomba fede A bomba é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina A bomba com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve A bomba não destruirá a vida O homem (tenho esperança) liquidará a bomba. Carlos Drummond de Andrade O mundo é grande O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar. O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar. Carlos Drummond de Andrade O que Alécio vê A voz lhe disse ( uma secreta voz): - Vai, Alécio, ver. Vê e reflete o visto, e todos captem por seu olhar o sentimento das formas que é o sentimento primeiro - e último - da vida. E Alécio vai e vê o natural das coisas e das gentes, o dia, em sua novidade não sabida, a inaugurar-se todas as manhãs, o cão, o parque, o traço da passagem das pessoas na rua, o idílio jamais extinto sob as ideologias, a graça umbilical do nu feminino, conversas de café, imagens de que a vida flui como o Sena ou o São Francisco para depositar-se numa folha sobre a pedra do cais ou para sorrir nas telas clássicas de museu que se sabem contempladas pela tímida (ou arrogante) desinformação das visitas, ou ainda para dispersar-se e concentrar-se no jogo eterno das crianças. Ai, as crianças... Para elas, há um mirante iluminado no olhar de Alécio e sua objetiva. (Mas a melhor objetiva não serão os olhos líricos de Alécio?) Tudo se resume numa fonte e nas três menininhas peladas que a contemplam, soberba, risonha, puríssima foto-escultura de Alécio de Andrade, hino matinal à criação e a continuação do mundo em esperança. Carlos Drummond de Andrade Poema da purificação Depois de tantos combates o anjo bom matou o anjo mau e jogou seu corpo no rio. As água ficaram tintas de um sangue que não descorava e os peixes todos morreram. Mas uma luz que ninguém soube dizer de onde tinha vindo apareceu para clarear o mundo, e outro anjo pensou a ferida do anjo batalhador. Carlos Drummond de Andrade Receita de ano novo Para você ganhar belíssimo Ano Novo cor do arco-íris, ou da cor da sua paz, Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido (mal vivido talvez ou sem sentido) para você ganhar um ano não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; novo até no coração das coisas menos percebidas (a começar pelo seu interior) novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, mas com ele se come, se passeia, se ama, se compreende, se trabalha, você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, não precisa expedir nem receber mensagens (planta recebe mensagens? passa telegramas?) Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta. Não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumidas nem parvamente acreditar que por decreto de esperança a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver. Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre. Carlos Drummond de Andrade No meio do caminho No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra. Carlos Drummond de Andrade