HUMBERTO DELGADO - A Esfera dos Livros

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HUMBERTO DELGADO - A Esfera dos Livros
HUMBERTO DELGADO
BIOGRAFIA DO
GENERAL SEM MEDO
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Frederico Delgado Rosa
HUMBERTO DELGADO
BIOGRAFIA DO
GENERAL SEM MEDO
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A Esfera dos Livros
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Reservados todos os direitos
de acordo com a legislação em vigor
© Frederico Delgado Rosa, 2008
© A Esfera dos Livros, 2008
1.a edição: Abril de 2008
Capa: Frederico Delgado Rosa/Compañia
Imagem da capa: Arquivo da Fundação Humberto Delgado
Revisão: Francisco Boléo
Paginação: Segundo Capítulo
Impressão e Acabamento: Tilgráfica
Depósito legal n.°
ISBN 978-989-626-108-5
Todas as imagens do interior pertencem
ao Arquivo da Fundação Humberto Delgado.
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ÍNDICE
Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 000
primeirA parte – «o meu maior sonho é ser capitão de artilharia» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 000
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PRÓLOGO
A vida que se perde e que periga;
Que, quando ao medo infame não se rende,
Então, se menos dura, mais se estende.
Luís de Camões, Os Lusíadas
H
umberto Delgado dizia de si próprio que nascera com uma estamina acima do normal, o que explicaria a sua energia contagiante.
Esse anglicismo, curiosamente de raiz latina (stamen, i.e., fibra), não
reflecte porém o que havia de tão especial na sua pessoa para marcar
invulgarmente todos quantos se cruzavam consigo na vida, incluindo as
massas anónimas que o aclamaram em 1958. Sob risco de não captar a
essência de Humberto Delgado, é preciso recorrer a noções ainda mais
figuradas e menos racionais. Nas palavras do poeta, «onde outros eram
cinza, ele era chama»; e verdadeiramente a História necessita por vezes
da poesia para não deixar fugir uma dimensão profunda. Se dissermos,
por exemplo, que na sua verve incomparável Humberto Delgado era
detentor de uma auréola, estaremos com esta imagem imperfeita a roçar
a verdade. Entramos então na categoria acertada das grandes figuras
carismáticas do século xx.
Humberto Delgado tinha perfeita consciência do seu lugar na História e, sobretudo, a percepção estratégica de possuir algo que mais ninguém possuía. Muito simplesmente, ele era o único opositor de Salazar
eleito pelo povo. Nenhum candidato presidencial da Oposição foi às
urnas antes de Humberto Delgado – e depois dele o regime aboliu o
sufrágio directo para a chefia do Estado. Assim, em 48 anos de ditadura,
o seu nome sobressai não apenas como líder da Oposição, mas como
líder plebiscitado nas ruas de Portugal e até mesmo nos números oficiais
da fraude eleitoral, que lhe atribuíram apesar de tudo um resultado de
23,5%. Homem escolhido e popularmente idolatrado, Humberto Del-
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gado acabou por se inteirar da componente mística que rodeava a sua
pessoa. Ele próprio a tornou ainda mais sebastiânica ao partir para o
exílio, quando fez circular de norte a sul do país milhares de selos clandestinos com a sua efígie e a frase: «Eu voltarei!»
Amado por uns, invejado e odiado por outros, inclusive nas fileiras
da Oposição, Humberto Delgado encontrou muitas personagens desejosas de rebater o seu irrebatível estatuto. Quem não caiu nesse erro foi a
PIDE. Quem melhor compreendeu a indestrutibilidade do General Sem
Medo foram os seus assassinos. Enquanto vivesse, Humberto Delgado
era um catalisador da revolução, independentemente dos muitos obstáculos que afectavam a sua capacidade operacional no exílio – e até
mesmo se fosse preso. Foi necessário eliminá-lo porque acima de tudo
ele era um símbolo e, mais do que isso, um símbolo insubstituível, não
havendo ninguém que pudesse preencher o seu lugar. O maior deslize da
brigada que assassinou Humberto Delgado em 13 de Fevereiro de 1965
foi ter enterrado mal o cadáver, o que permitiu a sua descoberta. Em vez
de um simples «desaparecimento», que poderia ser ainda hoje um mistério por resolver, o regime viu-se a braços com um mártir da Liberdade.
Será grande a curiosidade de muitos portugueses de saber preto no
branco se foi afinal António de Oliveira Salazar quem mandou matar
Humberto Delgado. Como não existem provas documentais a confirmar
ou a infirmar tal hipótese, a única promessa que podemos deixar desde
já é que não nos absteremos, no capítulo oportuno, de emitir a nossa
opinião a esse respeito, conscientes da responsabilidade de um biógrafo,
no sentido de não decepcionar os seus leitores. A relação com o ditador é
aliás um leitmotiv inevitável da vida do seu inimigo n.o 1, tanto mais que
Humberto Delgado começou por ser um fervoroso admirador de Salazar.
Esta é uma longa história.
Existe uma efabulação de senso comum em redor da dissidência
“repentina” de Humberto Delgado, que teria ocorrido nos Estados Unidos na década de 50, sob influência directa da democracia americana.
A presente biografia revela, entre outras surpresas, que as raízes do seu
descontentamento em relação ao Estado Novo mergulham num período
muito anterior. De resto, sempre se definiu como um liberal e um «homem
das esquerdas», sobretudo em questões de justiça social, embora se afirmasse «das direitas» no nacionalismo exacerbado. Ao invés de ser um
protegido de Salazar, como alguns crêem, Humberto Delgado foi sempre
mantido sem tropas nem armas, afastado deliberadamente dos quartéis
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e de preferência bem longe de Portugal. Só exerceu uma vez na vida,
por mero imperativo legal, o comando de uma unidade militar; e não
foi também por acaso que se viu literalmente empurrado para a aviação
civil, ele que era um amante da aviação militar.
Correm ainda hoje muitas ideias erradas sobre Humberto Delgado,
ou não se tratasse de um mito do século xx português, sujeito naturalmente a leituras apaixonadas e díspares. É habitual dizer-se que o
enaltecimento é o grande pecado ou pelo menos a tentação de qualquer
biógrafo. No caso presente, com mais força se poderia pensá-lo, uma vez
que o biógrafo é neto do biografado. Ora, se o laço de sangue foi a motivação primeira deste livro, não foi o seu método nem a sua trave-mestra.
Procurámos que Humberto Delgado surgisse ao longo das páginas como
um homem de carne e osso, com defeitos e virtudes, sem escamotearmos
as contradições da natureza humana. Não é possível escrever História
com objectividade, mas é possível escrevê-la com rigor, e foi o que fizemos. De resto, a personalidade de Humberto Delgado responde por si
própria perante a História.
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Primeira Parte
«O MEU MAIOR SONHO É SER CAPITÃO
DE ARTILHARIA»
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Capítulo 1
FILHO DO RIBATEJO
1906-1916
«O
medo consentido dá a cobardia, o medo vencido dá a coragem.» Esta máxima do poeta romântico Ernest Legouvé era
uma das preferidas de Humberto Delgado. Se o destino lhe perpetuou o
nome como General Sem Medo, o verdadeiro significado deste epíteto
era que dominava tal sentimento, mas não o desconhecia. Considerava
pelo contrário que só uma mente limitada ou sem instinto de conservação
poderia não ter medo de nada. Humberto Delgado foi ensinado a enfrentar o perigo desde a infância e deliberadamente colocado em situações
de risco pelo pai, que o obrigava a «façanhas bastante viris». Aos dez
anos de idade, quando tinha à sua frente um garraio que devia tourear e
pegar pelos cornos, «o medo era muito, mesmo muito», mas não podia
dar parte fraca perante uma assistência de homens1. É curioso notar que
Humberto Delgado faria uso recorrente de metáforas tauromáquicas no
seu combate contra Salazar, a quem chamou inclusive El Toro, humoristicamente: «Vamos ver se lhe meto o estoque no meio da testa.»2
A «raça dos Delgados» era reputada pela lealdade e pela bravura na
aldeia de Boquilobo, perto de Torres Novas, onde Humberto Delgado
nasceu a 15 de Maio de 1906. O pai, amante de touros, de caça, de vinho
e de mulheres, personificava a virilidade da mais pura extracção ribatejana. À data do nascimento do seu único filho varão, Joaquim Delgado
era 1.o sargento do Regimento de Artilharia 3, em Santarém, o que representava já uma longa caminhada para quem se alistara como recruta em
1893. Enveredar pela carreira militar fora a sua tábua de salvação, após
uma juventude errante e uma infância traumática, que o transforma-
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ram numa pessoa rude nas palavras e no jeito, mas de índole generosa
e de sentido de humor muito popular. O seu passado de abandono a si
mesmo, numa constante luta pela sobrevivência do mais forte, representa
uma peça-chave da educação que veio a dar ao seu filho Humberto, uma
educação feita de constante incitamento moral, de emulação, de expectativas as mais altas, tudo aquilo que ninguém lhe dera no seu próprio
crescimento. Joaquim Delgado era um homem de carácter incorruptível
e de total frontalidade, dizendo sempre o que pensava fosse a quem
fosse. Humberto Delgado, ao longo da vida, nunca deixaria de associar
a integridade e a coragem à virilidade, e essa foi uma lição aprendida
desde cedo com o pai, responsável directo por traços essenciais da sua
personalidade.
«Um átomo desagregado da matéria»
Órfão de mãe à nascença, Joaquim Delgado foi confiado pelos seus
avós maternos, lavradores de algumas posses, aos cuidados de uma ama-de-leite. Por necessidade de lançar mão a outros trabalhos, esta deixava‑o sozinho horas seguidas, até que um dia o avô, ao passar defronte
da casa, ouviu o choro ininterrupto do neto, arrombou a porta e levou‑o
consigo. Passou a dar-lhe o leite de uma cabra que tinha no curral, e
o animal afeiçoou-se de tal maneira à criança que passou a comportar-se
como uma mãe adoptiva. Nas suas memórias, dedicadas ao «querido
filho Humberto» e escritas à mão em 1940, quatro anos antes de morrer,
Joaquim Delgado relataria esse longínquo momento da primeira infância, dizendo que a cabra, ao ouvi-lo chorar, saltava por cima de qualquer
obstáculo até o encontrar, «pondo imediatamente a jeito as suas longas
tetas, isto é, punha-se sobre mim, ficando uma perna de cada lado e eu no
meio delas, de maneira a tocar-me com os seios na cara para eu os procurar com a boca. Esta cabra, que comia do que queria tanto nas searas
como no celeiro de meu avô, foi a minha segunda e última ama-de-leite,
por decerto lhe ter sido reconhecida mais competência e amabilidade do
que a qualquer outra»3.
Em criança, Joaquim Delgado envolvia-se em lutas constantes com os
rapazes da aldeia que não se submetiam à sua vontade. O avô batia‑lhe
com mão pesada, mas a avó defendia-o sempre e voltava-se contra «os
agressores do seu menino», que «bem lhe bastava não ter mãe». O argu-
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mento da orfandade também era invocado junto do marido, para que se
lembrasse da sua «infeliz filha morta na flor da idade», o que fazia por
vezes recolher à abegoaria a corda do carro destinada a assentar nos lombos do rapaz. Mas até mesmo a paciência de avó se esgotava. «Quando
por vezes se via na necessidade de me castigar pelas mariolices que eu
praticava, batia-me na parte traseira com um sapato que tirava do pé,
mas, coitadinha da santa velhinha, no fim daquilo que ela julgava um
grande castigo, ficava muito cansada e sem forças, o que me dava imenso
dó, e por isso agarrava-me a ela com ternura e beijava-a, facto este que
lhe fazia desaparecer imediatamente toda a ira.»4
Aos treze anos de idade, Joaquim Delgado foi obrigado a passar
abruptamente da infância ao estado adulto, por morte da avó. Desde o
desaparecimento «daquela santa», tornou-se «um átomo desagregado
da matéria», sem apoio «no laboratório da vida que o devia amparar no
caminho áspero até à formação completa do homem». O avô mandou-o
guardar touros por conta de um proprietário da região, tendo que dormir ao relento e comer o pão que o diabo amassou. Até que foi chamado
a Torres Novas pelo pai, que era então chefe da estação de caminhos-de-ferro e já casado pela terceira vez. Apesar de mal se conhecerem, chegara-lhe aos ouvidos a terrível reputação do filho e estava apostado em
pô-lo nos eixos. José da Silva Delgado era um homem «muito honesto»,
mas severo e violento «quando se apossava dele a cólera». Certo dia, deu
ao filho uma tareia fora de todas as proporções, deixando-o em muito
mau estado. «É claro que logo que me foi possível pôr-me de pé, desertei
do seu convívio e fui novamente para a vida de maltês», relatou Joaquim
Delgado. Aquele avô de Humberto Delgado suicidou-se pouco tempo
depois com um tiro de caçadeira, por razões desconhecidas.
Definitivamente entregue a si próprio aos dezasseis anos, Joaquim
Delgado viveu a partir daí entre palheiros e eiras, mas sem muito se
afastar da sua terra natal. Cuidava de gado ou trabalhava em ceifas,
multiplicava os encontros nocturnos com raparigas, nos campos de trigo,
e chegava amiúde a vias de facto quando alguém o atraiçoava ou de
alguma forma o ofendia. O desprezo pela deslealdade entre homens era
um dos traços mais salientes e constantes do seu carácter, retratando-se
a si próprio como «bom camarada e amigo do meu amigo, mas sempre
pronto a modificar a minha atitude logo que tenha razão para o fazer»5.
Exactamente como seria o seu filho Humberto. Conhecido na aldeia natal
pelo seu carácter impulsivo, Joaquim transformou-se num «esfomeado
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de dezoito anos», que contava apenas com a bondade e os préstimos de
uma boa samaritana de Boquilobo, Maria da Piedade, que lhe cozia pão
e lhe tratava da roupa – e com cuja filha viria a casar.
«Estão a chorar para quê? Morreu, enterra-se!»
Joaquim Delgado assentou praça voluntariamente no Regimento
de Artilharia 2, em Torres Novas, quando tinha vinte anos de idade.
«Quase toda a gente da minha terra e arredores dizia que eu havia de
ser um desgraçado habitante das prisões, mas felizmente não aconteceu assim.» De facto, deu-se o fenómeno inesperado de revelar uma
grande aptidão para a vida militar. A farda e a disciplina do quartel
proporcionaram‑lhe um novo enquadramento para o seu código de
honra. «Fui sempre estimado pelos meus superiores, que me desculparam algumas garotices por decerto tomarem em linha de conta a forma
rigorosa como cumpria e fazia cumprir os deveres militares, ainda os
mais difíceis.» Sentia-se recompensado pelo apreço demonstrado e
também por tirar a barriga de misérias com o rancho do quartel, que
achava uma delícia, depois de ter vivido quatro anos sem um tecto.
Terminou a instrução de recruta em Junho de 1894, e três meses mais
tarde era 1.o cabo, com uma natural inclinação para se fazer respeitar.
Concluiu o segundo curso da escola regimental em 1895 e foi promovido a 2.o sargento no ano seguinte, o que lhe proporcionou a maior
alegria da sua vida até à data, por se tratar de um posto em que lhe
faziam a continência.
Passou a ser visto de outra forma em Boquilobo e foi nessa altura que
começou a namorar Maria do Ó, filha de Manuel Pereira e de Maria da
Piedade, pequenos proprietários rurais. Apesar da sua ascendência camponesa, a mãe de Humberto Delgado era uma rapariga frágil e de gostos
delicados, que imprimia a cada gesto uma generosidade e humildade de
inspiração religiosa. Sempre pronta a ajudar o próximo com sacrifício
próprio, Maria do Ó transmitiu ao filho essa compaixão espontânea, já
por sua vez herdada da avó Maria da Piedade, em genealogia feminina
até Humberto Delgado, reputado em adulto pelas esmolas extravagantes que dava e pela forma como defendia os escorraçados da sociedade
contra os interesses egoístas das classes abastadas. Maria do Ó tinha
dezassete anos quando foi arrebatada pela figura possante de um metro
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e setenta e cinco e pelo bom fundo do seu pretendente, Joaquim Delgado,
que de tantas vezes ir ter com ela a Boquilobo, a seis quilómetros da sua
unidade, extenuou até à morte um cavalo do quartel. O namoro conduziu ao casamento, em 1897, na igreja de S. Simão da Brogueira, paróquia
e freguesia a que pertencia Boquilobo.
No ano seguinte, em que nasceu a primeira filha, Deolinda, o jovem
sargento foi destacado para o Regimento de Artilharia 3, em Santarém, onde foi notada a sua vocação para o serviço do picadeiro, devido
à longa experiência com animais. Os superiores louvaram-lhe a inteligência, o desembaraço e as boas qualidades morais, pelo que Joaquim
Delgado foi subindo na sua modesta carreira militar, com uma primeira
medalha de comportamento exemplar em 1905. Maria do Ó ficou grávida de Humberto nessa altura. Foi tê-lo a casa da mãe, em Boquilobo,
uma pequena casa rústica de piso térreo e com um palheiro ao lado, sen-
A casa onde nasceu Humberto Delgado, na aldeia de Boquilobo, era dos seus avós
maternos. Nela viveu apenas os primeiros meses de vida, pois o pai estava no Regimento de Artilharia 3, em Santarém. Além desta cidade, a infância de Humberto
Delgado foi vivida no Porto, em Abrantes e em Torres Novas.
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tindo-se aí mais apoiada do que em Santarém. Permaneceu com o filho
na aldeia até ao ano e meio de idade, o único período da sua vida em que
Humberto Delgado residiu no Boquilobo.*
O nascimento de um rapaz representou muito para o pai, que se projectou a si próprio no filho, depositando nele a esperança de se vingar da
vida, de o ver subir mais alto do que ele próprio poderia, uma vez que
tinha o sentimento muito nítido de lhe terem cerceado oportunidades na
juventude. Paradoxalmente, foi sob influência do nascimento do príncipe
herdeiro de Itália que o republicano Joaquim Delgado escolheu para o
filho o nome que escolheu, o qual soou másculo e grandiloquente aos
seus ouvidos. A 24 de Outubro de 1907, com um ano e meio de idade,
Humberto da Silva Delgado foi baptizado pelo padre Joaquim na igreja
seiscentista de São Simão da Brogueira. Os padrinhos eram proprietários na Brogueira, mas analfabetos, como quase todos os habitantes da
localidade. Foi depois do baptismo que o bebé Humberto Delgado fez
a sua primeira viagem, ao mudar-se com a mãe e a irmã para Santarém,
para junto do pai.
Em Fevereiro de 1908, Joaquim Delgado provocou alvoroço ao levar
para casa a notícia de que tinham matado o rei D. Carlos e o príncipe
real. O pequeno Humberto acordou a chorar e a mãe agarrou-se a ele,
lavada em lágrimas. Muito ao seu estilo, o chefe da família barafustou
que não havia razões para uma cena daquelas: «Estão a chorar para quê?
Morreu, enterra-se!» Em adulta, Deolinda Delgado relataria o episódio
e recordaria a mãe a rezar e a choramingar pelos cantos, por compaixão
pela Dona Amélia de Orléans e Bragança e o seu filho morto6. Apesar da
impressão causada pelo regicídio, Joaquim Delgado celebrava o fim da
ditadura de João Franco, primeiro-ministro particularmente odiado nos
meios republicanos devido à repressão exercida, e que o rei colocara no
poder em Maio de 1906, uma semana após o nascimento de Humberto
Delgado. No jornal escalabitano Correio da Estremadura, a notícia do
atentado abria com as seguintes palavras: «Tombou finalmente o sr. João
Franco do pedestal da Governação. Mas para isso foi necessário que o
* Manuel Lopes Maioral, um seu conterrâneo quatro anos mais velho, afirmava
em 1991 que ainda tinha brincado com ele, mas essa recordação reporta-se a ulteriores visitas à avó Maria da Piedade, a única que chegou a conhecer, quando mais tarde
a família se instalou em Torres Novas. De resto, a noção de que Humberto Delgado
muito cedo saiu da sua terra natal ainda perdura em Boquilobo nos dias de hoje.
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rei D. Carlos e seu filho o príncipe Luís Filipe caíssem varados a tiro nas
ruas de Lisboa.»7
Os oficiais do Regimento de Artilharia 3 e a corporação dos sargentos, de que fazia parte Joaquim Delgado, enviaram telegramas de condolências à família real, e sucederam-se em Santarém, como em todo o país,
as missas sufragando a alma d’el-rei e do príncipe real – «o malogrado
moço» –, sendo dita uma delas pelo capelão do mesmo regimento8. Joaquim Delgado compareceu por dever e foi notada a presença de grande
número de senhoras, entre as quais possivelmente Maria do Ó, que continuava muito perturbada com os acontecimentos. Apesar da sua natureza suave e calma, ficava num grande estado de nervos quando o marido
levava para casa os ecos republicanos do quartel e da imprensa, e foi
alimentando o receio de que ele se envolvesse em alguma revolta. O seu
conservadorismo e em particular o seu entendimento do papel de esposa
atenuavam o contraste de sensibilidades do casal, mas as discordâncias
de fundo acabavam sempre por vir à superfície.
A implantação da República seria uma das memórias mais longínquas
de Humberto Delgado, que não sabia precisar sequer em que localidade
se encontrava nesse momento da primeira infância. Curiosamente, encontrava-se no Porto, pois o pai foi transferido para o Grupo de Artilharia 6
em princípios de 1910, após a sua promoção a sargento-ajudante, ao
fim de dez anos no quartel de Santarém. Era a primeira vez que Joaquim
Delgado ia servir fora do Ribatejo, de armas e bagagens, acompanhado
pela família. Maria do Ó estava grávida da segunda irmã de Humberto
Delgado, Aida, que nasceu a 27 de Setembro de 1910, a escassos dias do
fim da monarquia.
Republicano aos quatro anos
No Porto, as comunicações telefónicas e telegráficas com Lisboa
ficaram interrompidas desde a madrugada de 5 de Outubro de 1910,
havendo uma dificuldade exasperante em seguir o desenrolar dos acontecimentos. Ao longo da manhã e da tarde, perante os rumores de uma
revolução na capital, a população concentrou-se nas imediações da estação de S. Bento para aguardar notícias com a chegada do rápido das três
da tarde. Mas a linha do Norte tinha sido cortada e só muito mais tarde,
já noite caída, entrou na estação um comboio da linha de Torres Novas
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com exemplares da edição d’O Século onde era relatado o primeiro troar
de canhões que tirara do seu sono a população lisboeta. Pela madrugada,
com quase um dia de atraso, chegou finalmente às redacções dos jornais
do Porto o telegrama onde se podia ler que a República fora proclamada
«pelo Povo, Exército e Armada, depois de luta heróica»9.
Com a notícia já completamente espalhada através de sucessivas edições do Jornal de Notícias e do Primeiro de Janeiro literalmente arrancadas às mãos dos ardinas, a população portuense afluiu em massa aos
paços do concelho. Joaquim Delgado deixou a mulher e as filhas em casa
e rumou para a Praça de D. Pedro, com o filho de quatro anos nos braços.
Sob o olhar extasiado do pequenino Humberto, uma força de cavalaria
«de aspecto aguerrido e pouco tranquilizador» plantou-se entretanto em
frente da Câmara Municipal, pois o comandante da guarda municipal
«não consentia que a bandeira republicana fosse hasteada enquanto
não viesse confirmação oficial de ter sido proclamada a República».
Viveram‑se horas de enorme tensão e ansiedade até à retirada desses
cavaleiros que muito impressionaram o rapaz.
O discurso para a História, que Humberto Delgado ouviu sem ter
idade para compreender, foi proferido da mesma varanda de onde já
tinha sido malogradamente proclamada a República a 31 de Janeiro
de 1891: «Cidadãos! Desde ontem que a gloriosa bandeira republicana
flutua triunfantemente no Tejo, nas nossas naus de guerra e na capital da
nação em todas as fortalezas e praças, delirantemente aclamada como
um símbolo de redenção e de esperança, pelo heróico povo de Lisboa.
O povo do Porto, que há mais de dezanove anos derramou o seu sangue
generoso pela conquista dessa aspiração grandiosa, não pode deixar
de felicitar-se e rejubilar com o conhecimento deste facto notável (...).
É pois, cidadãos, com o coração a transbordar de alegria, que eu tenho
neste momento a insigne honra de, na qualidade de vereador mais velho
da Câmara Municipal do Porto, proclamar dos Paços do Concelho a
República Portuguesa e declarar perpetuamente abolida a dinastia de
Bragança.»10
Ouviu-se então um imenso «viva a República» e foi hasteada a nova
bandeira de Portugal, feita e oferecida no próprio dia por um particular.
«Não se descreve o delírio que então se operou em toda aquela imensa
multidão», comentou o repórter do Primeiro de Janeiro. «As bandeiras republicanas, os chapéus e os lenços agitando-se, dezenas – muitas
dezenas – de milhares de pessoas gritando vivas à República e à Pátria
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num entusiasmo intensíssimo, fenomenal, louco.»11 Os sargentos, como
Joaquim Delgado, eram alvo privilegiado da simpatia popular, sendo
levados em triunfo. No seu caso, era ele que levava o filho em triunfo,
melhor dizendo, às cavalitas. Humberto gritava de alegria e agitava a
bandeirinha de papel verde e vermelha que o pai lhe improvisou e com
a qual participou nesse momento de viragem histórica. Tudo isso ficou
gravado indelevelmente na mente da criança. Foi o seu baptismo político. «Quanto a política, pode portanto dizer-se que entro na categoria
de republicano nato», escreveria com humor nas suas memórias12. Quem
diria que Humberto Delgado seria aclamado por milhares de portuenses
naquele mesmo local, quatro décadas mais tarde?
Abrantes e os «paivantes»
Em começos de 1911, quando as forças monárquicas chefiadas por
Henrique de Paiva Couceiro abriram hostilidades contra o novo regime a
partir da Galiza, Joaquim Delgado foi destacado para Viana do Castelo,
a fim de servir como ajudante do coronel António Júlio Pereira d’Eça,
que o escolheu pessoalmente pois dava-lhe a honra da sua amizade e
franco apreço, desde que o sargento Delgado tinha salvo a sua filha de
um acidente equestre, alguns anos antes, dependurando-se ao pescoço
do cavalo em fúria que a menina montava. Terminada a primeira guerra
couceirista, o sargento Delgado voltou para o Porto, onde se demorou
até Junho de 1911. Nessa altura regressou ao Ribatejo e foi enfim promovido a alferes, não da Administração Militar, como era sua pretensão
inicialmente, mas do Quadro Auxiliar dos Serviços de Artilharia. Com
trinta e sete anos, feliz por pertencer à oficialidade do Exército Português
e por prestar juramento à República, iniciou esse novo capítulo da sua
vida no Regimento de Artilharia 8, então aquartelado no castelo de Abrantes, o que teria grandes repercussões no futuro do seu filho Humberto.
A família instalou-se na Rua da Barca, que desce vale abaixo até
ao Tejo e é uma das mais antigas de Abrantes, havendo menção dela
num documento do século xiv. Humberto acompanhava muitas vezes
o pai, que o levava consigo para o quartel, de mãos dadas pelo coração dessa vila populosa até à colina do castelo. Ensinava-lhe canções
da tropa e era um pai amigo e afectuoso dentro do seu modo castiço.
Estava porém apostado em enrijecer o segundo homem da família desde
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tenra idade e impunha-lhe duras provas. Em Abrantes se cumpriu, com
a primeira ida à caça, a sua integração muito precoce no universo dos
homens. Com bolhas nos pés, cansaço, calor e náuseas provocadas pelo
vinho partilhado com os adultos, o pequeno Humberto suportou tudo
em silêncio, pois «não queria passar por cobarde aos olhos do pai, que
era um caçador de primeira» e o considerava «suficientemente forte para
aguentar»13. A infância no Ribatejo foi preenchida com muitas caçadas a
pé, sozinho entre homens. Em adulto, Humberto Delgado recordaria de
forma recorrente as longuíssimas e extenuantes caminhadas a acompanhar o passo do pai com botas grandes demais para o seu tamanho.
Joaquim Delgado encorajava-o sem concessões e recompensava-o
com uma linguagem adulta. Nunca levantou a mão contra o filho, mas
ensinou‑lhe muitos truques para vencer as brigas com os outros rapazes.
Apesar das aflições da mãe, Humberto gostava de lutar e tirava muito
prazer das vitórias, acompanhadas ainda por cima das demonstrações de
orgulho do progenitor. A verdade é que ele era um miúdo ao mesmo tempo
corajoso e sensível, viril sem ser abrutalhado. Enquanto a irmã mais velha
saía ao pai na falta de delicadeza, ele tinha mãos de pianista, herdadas de
Maria do Ó, e um potencial humanístico que marcaria pela vida fora a sua
diferença em relação à crueza de Joaquim Delgado. Ficou todavia a dever
ao pai o arranque excepcional da sua longa vida de estudante, pois foi
com ele que aprendeu a ler aos cinco anos de idade, antes mesmo de entrar
para a escola primária, até porque no ano de 1911 as duas escolas oficiais
de Abrantes estiveram encerradas durante algum tempo. A obrigatoriedade do ensino primário era uma recente conquista da República e a verdade é que a preocupação de Joaquim Delgado com a educação do filho
era muito invulgar à época, sobretudo no contexto das suas raízes rurais.
Por nele projectar ambições acima da sua própria condição, Joaquim
Delgado repetia-lhe que tinha de ser sempre o melhor em tudo e o primeiro. Esta ideia encaixava-se perfeitamente no temperamento do rapaz,
já de si «orgulhoso e votado ao brio». Conforme comentaria Humberto
Delgado em retrospectiva, «não precisava que me incitassem, eu próprio o fazia». Não admira pois que fosse o melhor aluno da Escola de
São João, a sua primeira escola, que ficava na Rua Luís de Camões, a
pouca distância da Rua da Barca. Em consequência de ter entrado para
a 1.a classe aos cinco anos, Humberto Delgado seria durante a vida inteira
o mais novo, em todos os cursos e em todas as patentes. O seu professor
em Abrantes, Francisco Fernandes Lizardo, era um jovem de dezanove
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anos e um republicano convicto, apesar de ser oriundo de uma família
muito monárquica. Vivia com a sua mulher numa rua de casas modestas
e calçada antiquíssima, nem mais nem menos a Rua da Barca, lado a lado
com a família Delgado. Dessa vizinhança e da amizade que gerou, ficou a
história de uma chávena de chá partida por Humberto Delgado quando
tinha os seus seis anos, deixando até aos dias de hoje incompleto, no seio
da família Lizardo, um serviço da Baviera14.
A vila de Abrantes, que dentro em pouco passaria a cidade, era muito
animada nos primeiros anos da República. O pequeno Humberto gozava
à farta nos «raids burricais» e nas corridas de bicicleta, nas frequentes
vacadas e nas garraiadas, sem adivinhar que não faltava muito para
ser lançado também ele na arena. O pai levava-o às soirées do Teatro
Taborda com artistas lisboetas e «internacionais» e às curtas-metragens
mudas no Salão Cinematográfico. Reinava igualmente em Abrantes, a
par de toda essa animação, um enorme alvoroço por causa das medidas
anticlericais que a população seguia a olho nu, como era o caso da simples proibição da batina fora das igrejas. Nessa altura Humberto Delgado
ainda não compreendia que o grande combate político da nação estava a
ser travado na sua própria casa, mas presenciou muitas discussões entre
o pai e a mãe por ela ir à igreja de S. João Baptista beber os sermões
reaccionários da «padralhada», classificada por Joaquim Delgado como
«o pior inimigo da República». Maria do Ó estava a ser ultrapassada
pelos acontecimentos e custava-lhe muito o desrespeito pelos sacerdotes
e por D. Manuel II, tratado, entre outras coisas, como «menino beato e
cobarde que foi rei de Portugal e que pensa ainda, mercê de certas taras
doentias, em voltar a sê-lo»15. Humberto Delgado era «uma espécie de
bola» entre o pai e a mãe, com cada um a puxá-lo para o seu lado.
«Adoravam‑me ambos», escreveu nas suas memórias. Naturalmente, a
tendência do rapaz era colocar-se ao lado da carinhosa e trémula Maria
do Ó, a quem tratava de forma muito meiga e protectora.
O maior alvo das invectivas republicanas era todavia Henrique de Paiva
Couceiro, pejorativamente retratado nos jornais abrantinos como «D. Paiva,
o traidor», que se afirmara respeitador da vontade da Nação e «contrário
às lutas fratricidas», para em seguida as desencadear: «É uma criatura desprezível, que tem iludido muita gente. O paladino da honra é um refalsado
hipócrita, o patriota é um miserável agente provocador, manobrando às
ordens de estrangeiros.»16 Este tipo de libelo agradava a Joaquim Delgado,
que partilhava o ideário republicano mais extremo e que, logo em 1911,
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aquando da cisão do Partido Republicano em três facções distintas, se fizera
membro do Partido Democrático liderado por Afonso Costa, «o apóstolo da República»17. Abrantes vivia uma atmosfera de suspeição contra
quaisquer potenciais conspiradores monárquicos, a que era dado o epíteto
jocoso de «paivantes» ainda antes das incursões monárquicas chefiadas por
Paiva Couceiro a partir da Galiza. O próprio comandante do Regimento
de Artilharia 8, o regimento de Joaquim Delgado, tinha recebido em sua
casa uma carta assinada por aquele líder monárquico18. Seria um provável
convite à sublevação, mas não tinha solo onde medrar, pois as tropas da
vila pertenciam cerradamente às fileiras da República.
Em Julho de 1912, devido ao reacendimento das incursões monárquicas,
Joaquim Delgado foi indigitado para comandar uma unidade de artilharia
montada, cuja missão era combater um eventual ataque na Beira Baixa,
através da fronteira de Penamacor. Tratava-se de uma decisão arbitrária
do referido comandante do regimento, tenente-coronel Abel Hipólito, com
quem o alferes Delgado mantinha um conflito de carácter. Por lei, não lhe
deveria caber aquela missão de comando, «mas como se tratava de guerra
e não desejando que alguém me alcunhasse de covarde, aceitei a nomeação
sem manifestar a injustiça que me era feita»19. Em compensação, o comandante Abel Hipólito foi em pessoa buscar Maria do Ó e os filhos, no carro
dos oficiais, a fim de assistirem ao desfile da partida, o que só por si foi
motivo de grande excitação para o pequeno Humberto. A unidade atravessou a vila logo pela manhã, aclamada pelo povo desde a parada do quartel até à estação dos caminhos-de-ferro. Foi organizada uma subscrição
pública para comprar tabaco para as praças, o qual foi entregue em mão
ao alferes Delgado. Ao ver a imponente figura do pai, a cavalo, à frente dos
cinquenta e oito soldados, das cinquenta e uma cavalgaduras e das seis viaturas de munições, com espingardas, espadas e lanças, marchando ao som
dos clarins, Humberto ficou muito impressionado. Com olhos de criança,
viu naquele espectáculo «uma espécie de fabulosa serpente, destruidora e
apocalíptica». Segundo relataria, sentiu pela primeira vez o apelo da vida
militar e disse a si próprio que queria ser soldado20.
A cerca de trinta quilómetros de Penamacor, ao desembarcar a sua
divisão militar do comboio especial em que seguira, o alferes Delgado
recebeu um telegrama que o informava de um ataque dos couceiristas
àquela praça fortificada e lhe pedia para acelerar o passo com a maior
urgência. Embora os cavalos e muares precisassem de água, o alferes
comandante fez uma prelecção às praças para iniciarem de imediato a
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marcha a trote. A meio caminho, quando uma força de cavalaria republicana o informou de que não tinha havido qualquer assalto a Penamacor, Joaquim Delgado ficou «pior que pólvora». Muito simplesmente, o
comandante do batalhão ali instalado era um major «fraco e medroso»,
obcecado com a ideia de um ataque iminente. Joaquim Delgado esteve a
ponto de se insubordinar devido à ordem absurda de manter os animais
engatados às viaturas durante a noite. E a verdade é que se viu envolvido
numa conspiração dos oficiais subalternos, que chegaram a reunir-se
secretamente para prender e destituir o major comandante no caso de se
confirmar uma incursão das forças inimigas.
Em certa ocasião, o major comandante de Penamacor entrou de rompante aos gritos, com as mãos na cabeça: «Estamos a ser atacados por
todos os lados!» O alferes Delgado ficou furioso com a falta de sentido militar do seu superior e chamou-o à parte para lhe dizer, «com
uma grande vontade de o esbofetear, que um comandante não podia
proceder daquela maneira, demais a mais na presença de soldados».
Quão parecida esta atitude de Joaquim Delgado com as do seu filho no
futuro! Tudo não passara de uma fantasia quixotesca, nem nunca chegaria a ocorrer qualquer ataque pela fronteira de Penamacor. A divisão
de artilharia montada iniciou a marcha de regresso ao fim de um mês de
permanência e de exercícios em vão. Ao chegar a Abrantes, no dia 26 de
Julho de 1912, foi surpreendida por uma grande recepção popular, com
banda de música, vivas e foguetes. Apesar da ausência de actos heróicos
a relatar, e apesar de ter contraído na Beira Baixa uma terrível gastrite,
Joaquim Delgado procurou não desiludir a pequena multidão de adultos
e crianças que lhe vinham dar as boas-vindas, entre as quais o Humberto,
então com seis anos. Pegou nele e sentou-o consigo no selim do cavalo,
«o que lhe causou muita alegria»21. O rapaz não arredou pé dos festejos,
que se prolongaram pela noite fora com uma marcha aux flambeaux – à
luz de archotes. Juntou a sua voz de criança às dos homens feitos que
gritavam «viva a República», «viva a Pátria» e «abaixo os traidores»22.
Torres Novas, berço do patriotismo
Três anos volvidos, a permanência em Abrantes chegava ao seu termo.
O alferes Delgado passou a encarregado do material de guerra na Escola
Prática de Cavalaria, aquartelada em Torres Novas desde 1902 e deno-
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minada Escola de Equitação já depois da República. A mudança ocorreu
em Janeiro de 1914, afectando mais uma vez toda a família, que seguiu
para Torres Novas com a mobília atrás e ficou a viver numa casa do Rossio
de São Sebastião. Tratava-se de um regresso de Joaquim Delgado ao seu
primeiro quartel, uma vez que o gigantesco edifício da Escola Prática de
Cavalaria tinha sido ocupado anteriormente pelo Regimento de Artilharia 2. A sua promoção ao posto de tenente teve lugar neste novo quadro.
Foi em Torres Novas, na terceira e na quarta classe, que Humberto
Delgado teve o professor primário que mais o marcou e que mais recordaria em adulto. José da Silva Paulo Júnior, de trinta e quatro anos,
apercebeu-se da sua inteligência acima da média e reservava-lhe um tratamento de igual para igual que o enchia de orgulho. Chegava mesmo
a pedir-lhe para substituir o professor da terceira classe quando este
faltava. Para dar uma ideia do que sentia nessa ocasião, Humberto Delgado evocaria Napoleão nas suas memórias: «Que bom que era subir
ao estrado onde se encontrava a secretária do professor e sentar-me na
sua cadeira! Nem o imperador corso se sentira tão feliz ao ser coroado
pelo Papa. Foi uma grande experiência humana. Fazendo de adulto, eu
corrigia a leitura, ensinava as crianças da minha idade ou mais velhas e
conversava com os meus “colegas” professores.»23
A consideração do professor Paulo pelo seu aluno preferido era tão
mais significativa quanto se tratava de uma personagem temível em Torres Novas. A Escola Central masculina, de que era regente e onde ensinava desde 1899, situava-se em pleno coração da vila, nas traseiras da
bela igreja quinhentista da Misericórdia. Hoje desaparecido, era um
edifício que tinha sido hospital e onde se juntaram naquela data as escolas de rapazes, que funcionavam anteriormente em casas particulares.
O regente José da Silva Paulo Júnior era amado por uns e odiado por
outros, e segundo o testemunho dos seus detractores ostentava grande
arrogância intelectual e certo despotismo de carácter. Quando encarregava o servente de levar recados à Câmara Municipal, este invariavelmente os comunicava através da fórmula: «A minha fera manda
dizer...»24 O certo é que o polémico professor exercia um forte estímulo
sobre os seus alunos, o que também passava por ensinar o orgulho de
ser português. Humberto Delgado viria, já em adulto, a manifestar explicitamente a sua gratidão por esse facto: «Há dentro de mim uma força
indómita a empurrar-me para a frente: o patriotismo que logo aos oito
anos um bom professor primário me ­incutiu. É do professor de instru-
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ção primária, como primeiro modelador do carácter, que depende em
parte a qualidade das massas. (...) aqui deixo a minha homenagem ao
mestre-escola José da Silva Paulo, um professor que tomou o seu papel
a sério.»25 Esta relação privilegiada agradava muito a Joaquim Delgado
e foi o princípio de uma grande proximidade entre as duas famílias. Um
dos filhos de Paulo Júnior era colega de carteira de Humberto, e a filha
Maria Teresa foi a sua primeira paixoneta. Alguns anos mais tarde, a
mulher do professor Paulo viria ainda a ser madrinha de Lídia Delgado,
a irmã mais nova, já nascida em Torres Novas26.
Hoje desaparecida, a Escola Central Masculina de Torres Novas, onde Humberto
Delgado fez a 3.a e a 4.a classe, ficava nas traseiras da igreja da Misericórdia.
Em 1915, quando estava a concluir a instrução primária, Humberto
Delgado ganhou plena consciência do clima de convulsão política do
país, que atingiu em Maio desse ano, precisamente na véspera do seu aniversário e durante os três dias seguintes, um patamar próximo da guerra
civil. O Partido Democrático, que tinha já tido vários governos exonerados pelo Presidente da República em nome da moderação e da pacificação da sociedade portuguesa, foi afastado do poder através de um golpe
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de Estado encabeçado pelo general Pimenta de Castro, cujas inclinações
reaccionárias se traduziram na legalização da causa monárquica e na
amnistia dos seus líderes, incluindo Paiva Couceiro. Segundo uma leitura
da época, assinada por Mayer Garção no jornal O Torrejano, «a audácia
dos monárquicos, nos derradeiros tempos da ditadura pimentista, já não
conhecia limites», chegando a ser reprimidos pela polícia os gritos de
«viva a República»27. Estas ameaças ao regime foram a gota de água e o
pretexto para uma revolta armada contra aquele governo de forte cariz
militarista e considerado ditatorial e germanófilo pela maioria. O Partido
Democrático esteve na primeira linha do combate que então se travou
entre 14 e 18 de Maio de 1915, sobretudo em Lisboa e no Porto, com
um número considerável de mortos e feridos.
O país estremeceu durante esses quatro dias, acompanhando ansiosamente a confrontação em curso. Humberto Delgado recordaria, nas suas
memórias, o «medo terrível» que sua mãe sentiu com «a revolta sangrenta
que restituiu o poder aos Democráticos»28. Não estava apenas em causa a
vulnerabilidade feminina de Maria do Ó, mas uma vez mais a sua condição de católica praticante, pois em Torres Novas, como no resto do país,
a missa dominical era um pólo declaradamente acusatório para toda a ala
política de Afonso Costa. O facto é que a revolução de 14 de Maio teve um
apoio popular vastíssimo e perdurou na memória colectiva dos anos subsequentes, e na memória de Humberto Delgado, como um acontecimento
de importância quase equiparável à implantação da República.
Certas iniciativas de carácter cívico procuravam entretanto apaziguar a
família portuguesa através de temas consensuais e perfeitamente inócuos.
Era o caso, por exemplo, da Festa Nacional da Árvore, instituída desde
1913 pelo ministro de Instrução. Em Torres Novas, no período em que
aí viveu a família Delgado, o evento reunia anualmente todas as crianças
e um vasto leque de associações e entidades, incluindo a Escola de Equitação. A récita de poemas e trechos teatrais ensaiados pelos professores
servia de preâmbulo à plantação de árvores, que era então matéria obrigatória da instrução primária. Humberto aprendera no banco da escola
a fazer estacas, mergulhias, enxertos de garfo e de borbulha, através do
pequeno manual Rudimentos de agricultura, assinado pelo seu punho de
criança a 11 de Julho de 1914 e escrevinhado a lápis da primeira à última
página para dar voz a todas as figuras de plantas e animais: «os burros
gostam de me comer», «eu mordo nos bois», «eu é que mando em tudo»,
«roeram-me toda», «eu sou boa porque como lagartas», «sou tão pequena
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que nem me vêem», «tenho muito leite», «eu também», «ando gordo»,
«sou venenosa», «eu também sou venenoso», «as minhas raízes são boas
para comer», «qualquer dia já tenho laranjas», «qualquer dia tenho amêndoas»...29 Na Festa da Árvore, Humberto e os outros alunos da Escola
Central masculina desfilaram separados das meninas da Escola Central
feminina, num cortejo seguido de grande quantidade de povo. Estavam
presentes indivíduos de todas as classes sociais, cores políticas e credos
religiosos: «A ninguém se ouviu uma palavra de censura.»30
Em contrapartida, Torres Novas vivia a decadência da sua praça de
touros, edificada em 1885, mas paulatinamente abandonada até ser vendida ao desbarato em 1916. Entrara-se no período das vacadas e outros
espectáculos considerados mais envilecidos e todavia muito populares.
Foi nessa altura que Joaquim Delgado considerou chegado o momento de
ensinar o filho a tourear e a pegar garraios. A irmã mais velha de Humberto Delgado, Deolinda, que tinha já dezoito anos e era uma mulher
feita, trabalhadora e muito senhora de si, criticava com rispidez a forma
excessiva como o pai o vangloriava e a mãe o acarinhava. «O miúdo leva
o rei na barriga», dizia ela. Sob o efeito conjunto das suas próprias qualidades e das promessas que lhe estavam confiadas enquanto filho varão,
Humberto ocupava um lugar central na família e cresceu deveras como
uma espécie de príncipe ou, nas suas próprias palavras, como um «grand
seigneur»31. Os afectos de Maria do Ó recaíam todos sobre o filho e não
sobre o marido, a quem não perdoava as escapadelas; para a irmã mais
nova, Aida, então com cinco anos, ele era também e seria sempre um
objecto de adoração; e a própria Deolinda, no seu jeito agreste, gostava
seriamente do irmão e pagava do seu bolso para irem juntos às matinées
cinematográficas do Cine-Teatro Virgínia, onde Charlot era a grande
sensação do momento.
Humberto estava agora a frequentar o liceu, mas através de aulas particulares, a única possibilidade oferecida em Torres Novas nessa altura.
Embora cobrasse preços módicos, o professor Dário Ramos (ou «explicador», como era chamado) tinha apenas meia dúzia de alunos do primeiro ano, entre rapazes e raparigas. Para Joaquim Delgado, tratava‑se
de uma solução provisória, porque o seu grande objectivo era que o
filho entrasse para o Colégio Militar. Humberto julgava que seguia as
pisadas do pai, mas não era o caso, pois o seu destino daria um enorme
salto, em comparação com o de Joaquim Delgado, pelo simples facto de
ser admitido nessa vetusta instituição de ensino militar, que preparava
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os futuros candidatos aos cursos das armas. No começo do ano lectivo
de 1915‑1916, a sua ida para Lisboa foi todavia protelada, por não
ter ainda dez anos completos, a idade mínima de admissão. Para não
perder tempo, frequentou o referido «curso de explicações» e no dia 11
de Agosto foi fazer exame ao Liceu de Sá da Bandeira, em Santarém, o
que depois lhe permitiria entrar directamente para o segundo ano do
Colégio Militar. Os resultados dos exames dos alunos particulares de
Dário Ramos tiveram direito a publicação na primeira página do jornal
O Torrejano. A melhor nota coube à menina Corte-Real de Almeida e
a segunda a Humberto Delgado, respectivamente 15 e 14 valores, classificações «dadas a raros examinandos»32. Logo nesse mesmo mês de
Agosto, Joaquim Delgado reuniu a numerosa documentação exigida
pelo Colégio Militar – desde a malfadada certidão de idade até ao atestado «comprovando que o candidato não sofre de moléstia crónica ou
contagiosa» – e mandou o Humberto a Lisboa para prestar provas de
aptidão física e intelectual. «Tomá lá, tens aqui a direcção», disse o pai
ao filho, sem qualquer outra espécie de auxílio33. Sozinho, apanhou o
comboio e lá chegou ao seu destino. Apesar do sucesso obtido nas provas, foi comunicado por carta um inesperado adiamento, desta vez «em
virtude das preferências dos filhos dos oficiais que estavam mobilizados
para a guerra»34.
A Alemanha tinha declarado guerra a Portugal no dia 9 de Março
de 1916, mas o sentimento anti-germânico era dominante no país pelo
menos desde finais de 1914, em especial porque a Alemanha tinha já
atacado vários fortes moçambicanos a partir da fronteira do Tanganica.
A pseudo-neutralidade que se viveu durante mais de um ano preparou
e deu lugar a uma vaga de fundo nacionalista contra a «brutal Alemanha», «essa nação de facínoras», «bárbara e pérfida», «feroz inimigo da
civilização e da humanidade», «sempre arrogante e insolente para com
os pequenos»35. Em Maio de 1916, foi instituída a Cruzada das Mulheres Portuguesas, que procurava pôr ao serviço do esforço de guerra «os
bálsamos dulcificantes do coração de mulher», através da confecção de
roupa, angariação de fundos, enfermagem, etc. Foi criada em Torres
Novas uma sub-comissão da qual fez parte Deolinda Delgado, e que
em Dezembro já reunia donativos «para socorro das famílias dos soldados que hajam de partir para o campo da batalha»36. Por essa altura
estava mobilizado um grande número de homens, o que não era ainda
o caso do tenente Delgado. Mas sê-lo-ia daí a pouco, pelo que decidiu
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protestar contra o adiamento da entrada do seu filho no Colégio Militar.
O protesto foi dirigido ao presidente da Obra Tutelar do Exército de
Terra e Mar, um organismo criado em 1911 pelo Governo Provisório
para acautelar a educação dos filhos dos militares, com especial protecção aos órfãos e a outros casos especiais. E a verdade é que surtiu efeito
e «o rapaz foi mandado ali apresentar-se dois meses, pouco mais ou
menos, depois do início do curso»37.
Estava a chegar ao fim a infância ribatejana de Humberto Delgado. Ia
partir sozinho para Lisboa, e o pai para França. Era para todos o começo
de uma nova era, de separação e de ausência dos homens da família.
O filho de Joaquim Delgado ia transformar-se em Menino da Luz.
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