Capítulo

Transcrição

Capítulo
Primeira Parte
O Choque da Invasão
1941
Capítulo 1
Baptismo de Fogo
A invasão hitleriana da União Soviética começou às primeiras horas
do dia 22 de Junho de 1941. Recusando-se a acreditar que poderia ser
enganado, Estaline rejeitou mais de oitenta avisos. Apesar de o ditador só
ter assentido mais tarde, ficou bastante desorientado ao descobrir a verdade e o anúncio da notícia teve de ser feito via rádio, ao meio-dia, pelo
seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Vyacheslav Molotov, num tom
de voz rouco. O povo da União Soviética demonstrou ser bem mais vigoroso do que os seus líderes. Fizeram filas, oferecendo-se como voluntários
para combater na frente.
Vasily Grossman, usando óculos, com peso a mais e apoiado numa
bengala, ficou desapontado quando o posto de recrutamento o recusou.
Não deveria ter ficado surpreendido, tendo em consideração a sua fraca
condição física. Grossman andava na casa dos trinta anos, porém, as raparigas que conviviam de perto com ele chamavam-lhe “tio”.
Nas semanas que se seguiram procurou encontrar algum tipo de
trabalho para o qual estivesse capacitado e relacionado com a guerra.
Entretanto, as autoridades soviéticas davam poucas informações precisas
sobre o que sucedia na frente. Nada era dito sobre as forças alemãs,
dotadas de uma superioridade de três milhões de efectivos, que iam
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UM ESCRITOR NA GUERRA
Cidadãos soviéticos escutando o anúncio de Molotov sobre a invasão alemã,
22 de Junho de 1941.
dividindo o Exército Vermelho através de incursões blindadas, capturando
centenas de milhares de prisioneiros cercados. Só os nomes das cidades
mencionadas nos boletins oficiais revelavam a rapidez da progressão
inimiga.
Grossman demorou a aconselhar a sua mãe a abandonar a cidade
de Berdichev, na Ucrânia. A sua segunda esposa, Olga Mikhailovna
Guber, persuadiu-o de que não tinham forma de a instalar. Assim, antes de
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BAPTISMO DE FOGO
Grossman ter plena consciência do que estava a acontecer, o 6º Exército
alemão capturou Berdichev a 7 de Julho. O inimigo avançou 350 quilómetros em apenas duas semanas. O facto de não ter sido capaz de salvar
a sua mãe afligiu Grossman até ao fim dos seus dias, mesmo depois de ter
descoberto que ela se recusaria a sair porque não havia ninguém que cuidasse de uma sobrinha. Grossman também estava muito preocupado com
o destino de Ekaterina, ou Katya, a sua filha da primeira mulher. Não
sabia que ela estaria ausente de Berdichev durante o Verão.
Desesperado por participar no esforço de guerra, e apesar de não ser
membro do Partido Comunista, Grossman integrou o Departamento Político Central do Exército Vermelho, conhecido pelo acrónimo GLAVPUR.
O seu futuro editor, David Ortenberg, um comissário com patente de
general, relatou mais tarde a forma como ele veio trabalhar para o
Krasnaya Zvezda, o jornal das forças armadas soviéticas que era, de
longe, o jornal lido com mais atenção durante a guerra (1).
Recordo-me quando Grossman apareceu pela primeira vez no
departamento editorial. Foi em finais de Julho. Tinha entrado
casualmente no Departamento Político Central e ouvi dizer que
Vasily Grossman lhes tinha pedido que o enviassem para a frente.
Tudo o que sabia acerca deste escritor era que tinha escrito o
romance Stepan Kolchugin sobre o Donbass.
Perguntei: «Vasily Grossman?». «Nunca o conheci, mas conheço
Stepan Kolchugin. Por favor, enviem-mo para o Krasnaya Zvezda».
«Sim, mas ele nunca foi à tropa. Não sabe nada sobre isso. Será
que se encaixa no Krasnaya Zvezda?»
«Não faz mal», respondi, tentando convencê-los. «Ele conhece a
alma das pessoas».
Só os deixei em paz quando o Comissário do Povo assinou a
ordem de recrutamento de Vasily Grossman para o Exército Vermelho e o nomeou para o nosso jornal. Havia um problema. Deram-lhe a patente de soldado, ou, tal como dizia Ilya Ehrenburg que
gostava de troçar consigo próprio e com Grossman, de “soldado
inexperiente”. Era impossível conferir-lhe o estatuto de oficial ou de
comissário, já que não era um membro do Partido. Também era
(1) Ortenberg, David I. (adoptou o nome não-judeu Vadimov no Krasnaya
Zvezda).
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UM ESCRITOR NA GUERRA
impossível fazê-lo envergar um uniforme de soldado, pois iria passar
metade do tempo a fazer continência aos seus superiores. Tudo o que
podíamos fazer era atribuir-lhe a posição de despenseiro. Alguns dos
nossos escritores, como Lev Slavin, Boris Lapin e até, durante algum
tempo, Konstantin Simonov, estiveram na mesma situação. As suas
divisas verdes causavam-lhes imensos problemas, pois as mesmas
divisas são ostentadas pelos médicos e estão sempre a ser confundidos. De qualquer modo, assinei a ordem a 28 de Julho de 1941:
«O despenseiro de segunda ordem Vasily Grossman é nomeado
correspondente especial do Krasnaya Zvezda, auferindo um salário
de 1200 rublos por mês».
No dia seguinte, Grossman apresentou-se no departamento editorial. Comunicou-me que estava satisfeito, apesar da sua nomeação
ser inesperada. Voltou completamente equipado alguns dias depois e
com um uniforme de oficial. [O seu casaco estava todo amarfanhado, os seus óculos insistiam em deslizar-lhe pelo nariz e a sua
pistola estava pendurada como se fosse um machado no seu cinto
desapertado.]
«Estou pronto para partir hoje em direcção à frente», declarou.
«Hoje?», perguntei. «Mas sabe disparar essa coisa?», apontei para
a pistola pendurada ao seu lado.
«Não.»
«E uma espingarda?»
«Não, também não sei.»
«Então, como é que posso deixar que vá para a frente? Lá, tudo
pode acontecer. Não. Terá de permanecer no departamento editorial
durante duas semanas.»
O coronel Ivan Kitrov, o nosso especialista em estratégia e antigo
oficial do exército, tornou-se o instrutor de Grossman. Levá-lo-ia a um
dos campos de tiro da guarnição de Moscovo e ensiná-lo-ia a disparar.
A 5 de Agosto, Ortenberg permitiu que Grossman partisse para a
frente. Organizou as coisas de modo a que fosse acompanhado por Pavel
Troyanovsky, um correspondente bastante experiente, e por Oleg Knorring,
um fotógrafo. Grossman descreveu a partida com algum detalhe.
Estamos de partida para a Frente Central. O oficial político
Troyanovsky, o repórter de câmara Knorring e eu dirigimo-nos para
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BAPTISMO DE FOGO
Gomel. Troyanovsky, com o seu rosto escuro, magro e um grande
nariz, recebeu a medalha “Por Proezas em Combate”. Apesar de não
ser velho, já viu muita coisa, na verdade ele é dez anos mais novo do
que eu. De início, pensei que Troyanovsky fosse mesmo soldado, um
combatente nato, mas afinal começou a sua carreira no jornalismo
há não muito tempo como correspondente do Pionerskaya Pravda
[o jornal do Movimento da Juventude Comunista]. Disseram-me
que Knorring é um bom fotojornalista. É alto, um ano mais novo do
que eu. Sou mais velho do que os outros dois, mas em comparação
com eles sou apenas uma criancinha em questões de guerra. Sentem
um prazer perfeitamente justificado brindando-me com os horrores
que se avizinham.
Partiremos amanhã de comboio. Viajaremos numa “aprazível”
carruagem ferroviária até Bryansk, e daí em diante em qualquer
transporte que Deus nos enviar. Antes da nossa partida reunimos
com o comissário de brigada Ortenberg. Disse-nos que estava prestes
a decorrer uma investida. O nosso primeiro encontro foi no
GLAVPUR. Ortenberg conversou comigo e, por fim, confessou-me
que achava que eu era um autor de livros para crianças. Isto constituiu para mim uma enorme surpresa, não fazia ideia de ter escrito
livros para crianças. Quando nos despedimos dele, disse-lhe: «Adeus
camarada Boev.» Ele desatou a rir. «Não sou Boev, sou Ortenberg.»
Bom, vinguei-me. Confundi-o com o chefe do departamento de
publicações do GLAVPUR.
Passei o dia todo a beber, tal como compete a um recruta.
Apareceu o papá, tal como Kugel, Vadya, Zhenya e Veronichka.
Veronichka fitava-me com uns olhos muito tristes, como se eu fosse
o Gastello (2). Eu estava muito comovido. Toda a família entoava
canções e conversava sobre coisas tristes. O ambiente era melan-
(2) O capitão Gastello, um herói famoso que combateu como piloto na
Guerra Civil espanhola, era comandante de esquadrão no 207º Regimento da
42ª Divisão Aérea. Uma bateria antiaérea alemã atingiu o tanque de combustível
do seu avião a 26 de Junho de 1941 na região de Molodechno. A aeronave
começou a arder e Gastello despenhou-a numa coluna de veículos alemães na
estrada. Diz-se que a explosão e o fogo que se seguiram destruíram dúzias de
veículos, soldados inimigos e tanques. Postumamente, Gastello foi agraciado
com o título de Herói da União Soviética.
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UM ESCRITOR NA GUERRA
cólico e denso. Nessa noite deitei-me só e pensativo. Tinha de pensar
numa série de coisas e de pessoas.
O dia da nossa partida está encantador, está quente e chuvoso.
O sol e a chuva alternam repentinamente. As ruas e os passeios estão
molhados. Por vezes brilham e noutras ocasiões são ardósia cinzenta.
O ar está repleto de vapor quente e sufocante. Uma rapariga bonita,
Marusya, veio despedir-se de Troyanovsky. Trabalha nos escritórios
editoriais [do Krasnaya Zvezda], mas parece que se veio despedir por
sua iniciativa e não a pedido do editor. Knorring e eu actuamos com
tacto. Evitamos olhar na direcção deles.
Assim, nós os três [fomos para a plataforma]. Tenho tantas
memórias da estação de comboios de Bryansky. Cheguei a essa estação quando pela primeira vez vim a Moscovo. Talvez esta seja a
última vez que daqui vou partir. Bebemos limonada e comemos
bolos asquerosos na cafetaria.
O nosso comboio sai da estação. Todos os nomes das estações ao
longo do trajecto são familiares. Percorri-os inúmeras vezes quando
era estudante e regressava para junto de minha mãe, em Berdichev,
nas férias. Pela primeira vez, em muito tempo, consegui dormir neste
compartimento “aprazível”, após os ataques aéreos sobre Moscovo.
[Depois de chegar a Bryansk] passamos a noite na estação de
comboios. Todos os cantos estão cheios de soldados do Exército
Vermelho. Muitos deles estão mal vestidos, em farrapos. Eles já
estiveram “lá”. Os Abcazes são os que têm pior aspecto. Muitos deles
estão descalços.
Tivemos de ficar sentados durante toda a noite. A força aérea
alemã aparece por cima da estação, o céu ruge, há holofotes por todo
o lado. Apressamo-nos a fugir para um local deserto, o mais afastado
possível da estação. Felizmente, aqui os Alemães não nos bombardearam, só nos assustaram. De manhã ouvimos uma transmissão de
Moscovo. É uma conferência de imprensa dada por Lozovsky [o responsável da Secretaria de Informação Soviética]. O som é péssimo,
assistimos sequiosamente. Como de costume, utilizou uma série de
provérbios, mas não aligeiraram os nossos corações.
Fomos para a estação de mercadorias à procura de um comboio.
Enfiaram-nos num comboio-hospital que se dirigia para Unecha
[a meio caminho entre Bryansk e Gomel]. Entramos no comboio,
mas de repente instala-se o pânico. Toda a gente desata a correr e a
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BAPTISMO DE FOGO
disparar. Um avião alemão metralhou a estação. Eu próprio fui arrebatado por esta enorme excitação.
Depois de Unecha, viajámos num vagão de mercadorias. O tempo
estava maravilhoso, mas os meus companheiros de viagem disseram
que isso era mau e eu próprio tomei consciência disso. Ao longo de
toda a via-férrea havia grandes buracos e crateras das bombas. Viam-se árvores quebradas pelas explosões. Nos campos estavam milhares
de camponeses, homens e mulheres, a cavar valas antitanque.
Olhávamos com inquietação para o céu e decidimos saltar do
comboio, não fosse acontecer o pior. Estava a avançar de forma
muito lenta. Logo que chegámos a Novozybkov houve um raide
aéreo. Uma bomba caiu perto do pátio da estação. Este comboio já
não saía dali. Deitámo-nos na relva, esperando e desfrutando o calor
e a relva à nossa volta, mas mantivemo-nos atentos ao céu. E se um
[avião] alemão aparecesse de repente?
A meio da noite pusemo-nos a pé. Havia um comboio-hospital
que se dirigia para Gomel. Agarrámo-nos aos varões quando o comboio já estava em movimento. Pendurámo-nos nos degraus, batemos
à porta, pedindo-lhes que nos deixassem ir pelo menos no estrado do
vagão de mercadorias. De repente, uma mulher viu-nos e gritou:
«Saltem imediatamente! É proibido viajar em comboios-hospital!»
A mulher era uma médica, cuja vocação consiste em aliviar o sofrimento dos outros. «Desculpe-nos, mas o comboio avança a toda a
velocidade, como é que podemos saltar?» Somos cinco agarrados aos
varões, somos todos oficiais e tudo o que pedimos é que nos deixem
ficar na plataforma coberta. Ela começa a pontapear-nos com a sua
bota enorme, em silêncio e com uma força extraordinária. Esmurra-nos as mãos de modo a largarmos os varões. Isto está com mau
aspecto: se largássemos, seria o fim. Felizmente, percebemos que não
estávamos num eléctrico de Moscovo e passámos da defesa ao ataque. Uns segundos depois, a plataforma coberta era nossa e a cabra
com estatuto de médica está assustada, aos berros e sumiu-se rapidamente. Esta foi a nossa primeira experiência de combate.
Chegamos a Gomel. O comboio pára muito longe da estação,
por isso temos uma caminhada penosa pela via e às escuras. Temos
de rastejar por baixo das carruagens para atravessar os carris.
Bato com a testa neles e entorpeço; o raio da minha pasta é muito
pesada.
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UM ESCRITOR NA GUERRA
Por fim, chegamos ao edifício da estação. Está completamente
destruído. Soltamos «ahs!» e «ohs!» ao olharmos para as ruínas. Um
empregado ferroviário que passa tranquiliza-nos dizendo que a estação tinha sido demolida mesmo antes da invasão de forma a construir outra maior e melhor.
Gomel! A tristeza que há nesta cidade verde sossegada, nestes
amenos jardins públicos, nos idosos sentados nos bancos, nas doces
raparigas que passeiam nas ruas. As crianças brincam nos montes de
areia que foram transportados para apagar as bombas incendiárias.
Uma nuvem gigantesca pode cobrir o sol a qualquer minuto, uma
tempestade pode fustigar a areia e o pó, e transformá-los num remoínho. Os Alemães estão a menos de cinquenta quilómetros de distância.
Gomel acolhe-nos com um aviso de raide aéreo. Os habitantes
dizem que aqui é costume fazer soar o alarme quando não há qualquer avião alemão por perto e, pelo contrário, divulgar que está tudo
bem assim que começam os bombardeamentos.
Bombardeamento de Gomel. Vacas, silvos de bombas, fogo,
mulheres… O cheiro forte a perfume – de uma farmácia atingida
pelo bombardeamento – cortou, só por um momento, o cheiro a
queimado.
Uma fotografia de Gomel a arder nos olhos de uma vaca atingida.
As cores do fumo. Os tipógrafos compunham o seu jornal à luz
de edifícios em chamas.
Passamos a noite com um jornalista inexperiente. Os seus artigos não farão parte de Tesouro Áureo da Literatura. Vi-os no jornal
da frente. São lixo, com histórias do género: «Ivan Pupkin matou
cinco Alemães com uma colher».
Fomos ao encontro do editor, o comissário de regimento Nosov,
que nos fez esperar umas boas duas horas. Tivemos de nos sentar
num corredor escuro. Por fim, quando vimos esta figura imperial e
falámos com ele durante dois minutos, apercebi-me que este camarada não era particularmente brilhante, para ser brando, e que a sua
conversa não valia sequer uma espera de dois minutos.
O quartel-general da Frente Central foi primeiro ponto de escala para
Grossman, Troyanovsky e Knorring. A Frente Central, comandada pelo
36
ov
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2.º GRUPO
PANZER
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Trajecto da fuga de Grossman
Linha do avanço alemão, meados de Agosto, 1941
Linha do caminho-de-ferro
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Bryansk
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Gomel
BAPTISMO DE FOGO
Novozybkov
Zyabrovsky
Sevsk
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Novogorod-Severskij
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37
Gomel e a Frente Central, Agosto 1941.
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Glukhov
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Kursk
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a
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Borzna
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Gomel Central e a Frente
Agosto 1941
UM ESCRITOR NA GUERRA
general Andrei Yeremenko, foi armada à pressa devido ao colapso da
Frente Ocidental no final de Junho (3). O pobre comandante da Frente
Ocidental, o general D.G. Pavlov, tornou-se no principal bode expiatório
da recusa de Estaline em preparar-se para a guerra. À maneira caracteristicamente estalinista, Pavlov, o comandante das forças blindadas soviéticas durante a Guerra Civil espanhola, foi acusado de traição e executado.
O quartel-general foi instalado no palácio Paskevich. Existe um
parque encantador e um lago com cisnes. Por todo o lado foram
cavadas brechas de trincheiras. O chefe do departamento político da
frente, o comissário de brigada Kozlov, recebe-nos. Diz-nos que o
conselho militar está bastante alarmado com as notícias que chegaram ontem. Os Alemães tomaram Roslav e aí reuniram uma enorme
força blindada (4). O seu comandante é Guderian, autor do livro
Achtung! Panzer! (5).
Folheámos um número do jornal da frente. Num artigo destacado, deparei-me com a seguinte frase: “O inimigo fortemente
massacrado continua a sua progressão cobarde.”
Dormimos no soalho da biblioteca do clube “Komintern”, com
as botas calçadas, usando máscaras de gás e sacos de campanha como
almofadas. Jantamos na cantina do quartel-general. Está localizada
no parque, num pavilhão multicolorido engraçado. Serviram-nos
bem, como se estivéssemos numa dom otdykha [uma casa de repouso
soviética] antes da guerra. Há molhos, requeijão e até gelado como
sobremesa.
(3) O general A.I. Yeremenko (1892-1970) participou na divisão da Polónia
em 1939. Depois do combate em Gomel, em Agosto de 1941, foi colocado no
comando da Frente Bryansk. Nesse Outono foi gravemente ferido na perna e
quase capturado quando os Panzers de Guderian ganharam vantagem sobre as
suas forças. Mais tarde foi comandante-em-chefe da Frente de Estalinegrado,
onde foi entrevistado por Grossman.
(4) Roslav estava a duzentos quilómetros a nordeste, como tal a área em
volta de Gomel estava perigosamente exposta. Rapidamente ficou conhecida
como a saliência de Gomel.
(5) O general Heinz Guderian (1888-1953) foi o comandante da 2ª Divisão
Panzer (mais tarde, o 2º Exército Panzer). Por duas ocasiões, Grossman quase foi
capturado pelas suas forças.
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BAPTISMO DE FOGO
À medida que percebia a falta de preparação do Exército Vermelho,
Grossman ficou cada vez mais horrorizado e desiludido. Apesar do silêncio oficial sobre o assunto, começou a suspeitar que o maior responsável
pelo desastre era o próprio Estaline.
Aquando da eclosão da guerra, vários comandantes e generais
veteranos estavam de férias em Sochi. Nos tanques de muitas unidades blindadas estavam a ser instalados novos motores, muitas unidades de artilharia não tinham munições, bastantes regimentos de aviação não tinham combustível. Quando o telefone começou a tocar a
anunciar o início da guerra, da fronteira para os principais quartéis-generais, a resposta que receberam foi a seguinte: «Não respondam
a provocações». Isto gerou surpresa, no sentido mais assustador e
mais grave do termo.
A catástrofe ao longo da frente, desde o Mar Negro até ao Báltico,
tinha uma enorme importância pessoal para Grossman, tal como mostra
uma carta dirigida ao seu pai a 8 de Agosto.
Caro [Pai], cheguei ao meu destino no dia 7 [de Agosto]…
Lamento imenso não ter comigo um cobertor, não é lá grande coisa
dormir apenas com uma gabardina. Estou constantemente preocupado com a mãe e com o seu destino. Onde é que ela está, o que
lhe aconteceu? Por favor, logo que tenhas alguma notícia sobre ela
diz-me imediatamente.
Grossman visitou as linhas da frente e anotou estas observações.
Relataram-me como, depois de Minsk começar a arder, os cegos
do asilo caminharam pela estrada numa longa fila, atados uns aos
outros com toalhas.
Um fotógrafo comenta: «Ontem vi uns refugiados muito bons.»
Um soldado do Exército Vermelho está deitado na relva depois
de uma batalha, conversa consigo próprio: «Os animais e as plantas
lutam pela existência. Os seres humanos lutam pela supremacia.»
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UM ESCRITOR NA GUERRA
A dialéctica da guerra – a capacidade de se esconder, de salvar a
própria vida e a capacidade de saber lutar, de dar a própria vida.
Histórias sobre ser-se cercado. Todos aqueles que conseguem
fugir não conseguem parar de contar histórias sobre ser-se cercado, e
todas as histórias são aterradoras.
Um piloto escapou das linhas inimigas apenas com a sua roupa
interior, mas conservou resolutamente a sua pistola.
Cães especialmente treinados, com cocktails Molotov amarrados, são enviados contra os tanques e irrompem em chamas (6).
As bombas explodem. O comandante de batalhão está deitado
na erva e recusa-se a ir para o abrigo. Um camarada grita-lhe:
«Tornaste-te num grande preguiçoso. Por que é que ao menos não te
escondes naqueles pequenos arbustos?»
Um quartel-general numa floresta. Os aviões vagueiam nas alturas por cima da abóbada. [Os oficiais] retiram as suas boinas por
causa do brilho das insignias e tapam-se com folhas. De manhã, as
máquinas de escrever matraqueiam por todo o lado. Quando aparece
um avião, os soldados põem camuflados nos dactilógrafos, já que
estes usam roupas coloridas. Escondidos nos arbustos, os secretários
continuam as suas disputas acerca dos ficheiros.
Uma galinha que pertence ao pessoal do quartel-general passeia-se, com tinta nas suas asas, por entre os abrigos cavados na terra.
Há míscaros na floresta – é triste olhar para eles (7).
(6) Estes cães foram treinados a partir de princípios pavlovianos. A sua
comida era-lhes sempre dada debaixo de um tanque e assim que avistavam um
veículo blindado começavam a correr para debaixo dele. O explosivo era
amarrado às suas costas com um grande detonador que seria accionado logo que
tocasse na parte de baixo do veículo alvo.
(7) Esta passagem inspirou presumivelmente um excerto do seu romance
O Povo Imortal: “Bogaryov viu uma família de míscaros na erva. Ali estavam
com os seus gordos talos brancos, e recordou com imensa paixão como ele e a
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BAPTISMO DE FOGO
Os [instrutores] políticos foram destacados para a frente. Podem
ser facilmente detectados os que querem ir e os que não querem.
Alguns obedecem simplesmente à ordem, outros esquivam-se. Todos
estão sentados em círculo e todos conseguem ver tudo isto, e aqueles
que se esquivam sabem que todos conseguem perceber os seus
logros.
Uma estrada longa. Carroças, peões, filas de carretas. Uma
nuvem de pó amarelo sobre a estrada. Rostos de idosos e de mulheres. O condutor Ivan Kuptsov estava montado no seu cavalo a uns
cem metros de distância da posição. Quando se iniciou uma retirada
e um canhão ficou para trás, as baterias alemãs fizeram chover projécteis sobre eles, mas em vez de galopar para a retaguarda ele avançou para o canhão de campanha e recuperou-o de um lamaçal.
Quando o oficial político lhe perguntou onde é que tinha desencantado coragem para desempenhar este feito de bravura, enfrentando a
morte, ele respondeu: «Tenho uma alma simples, tão simples como
uma balalaica. Não tem medo da morte. São os que têm almas
preciosas que receiam a morte.»
Um motorista de tractor transportou todos os feridos no seu
veículo e levou-os para a retaguarda. Mesmo os que estavam gravemente feridos seguravam as suas armas.
[Segundo] o tenente Yakovlev, comandante de batalhão, os
Alemães que o atacaram estavam completamente bêbados. Aqueles
que foram capturados tresandavam a álcool e os seus olhos estavam
raiados de sangue. Todos os ataques foram repelidos. Os soldados
queriam transportar Yakovlev, que estava ferido com gravidade, para
a retaguarda, num oleado. Ele gritou: «Ainda tenho voz e sou capaz
de dar ordens. Sou um comunista e não posso abandonar o campo
de batalha.»
Manhã abafada. Ar calmo. A aldeia está absolutamente pacífica – vida de aldeia, agradável e calma – com crianças a brincar,
sua esposa tinham apanhado cogumelos no ano anterior. Ficariam doidos de
alegria se tivessem encontrado tantos míscaros. Mas em tempo de paz, nunca teve
tanta sorte.”
41
UM ESCRITOR NA GUERRA
idosos e mulheres sentados nos bancos. Mal tínhamos acabado de
chegar, aparecem três Junkers. Detonação de bombas. Gritos.
Labaredas vermelhas com fumo branco e negro. Durante a noite
passámos pela mesma aldeia. As pessoas estão com os olhos
esbugalhados, esgotadas. As mulheres carregam os seus pertences.
As chaminés cresceram muito alto, erguem-se por entre as ruínas.
E as flores – centáureas e peónias – exibem-se de forma serena.
Fomos atacados nas imediações de um cemitério. Escondemo-nos debaixo de uma árvore. Estava lá estacionado um camião,
dentro dele jazia um atirador-sinaleiro coberto com um oleado.
Os soldados do Exército Vermelho cavavam ali perto uma sepultura
para ele. Quando houve um raide de Messers (*), os soldados tentaram esconder-se nas valas. O tenente gritou: «Continuem a cavar,
senão só acabamos à noite.» Korol esconde-se na sepultura fresca,
enquanto todos os outros correm em diferentes direcções. Só o
sinaleiro morto é que fica estendido ao comprido e as metralhadoras
descarregam sobre ele.
Grossman e Knorring visitaram o 103º Regimento de Caças Aéreos
do Exército Vermelho estacionado perto de Gomel. Grossman descobriu
desde logo que, em terra, o Exército Vermelho tinha sentimentos ambíguos sobre a sua própria força aérea, e esta rapidamente adquiriu a reputação de atacar tudo o que mexia, fossem amigos ou inimigos. «São nossos,
são nossos?» contava-se numa anedota conhecida. «Então, onde é que está
o meu capacete?»
Fui com Knorring ao aeródromo de Zyabrovsky, próximo de
Gomel. O comissário Chikurin da aviação do Exército Vermelho,
um tipo grande e pachorrento, emprestou-nos o seu carro ZIS de
serviço. Amaldiçoava os [pilotos de caça] alemães: «Perseguem veículos, camiões particulares, carros. É selvajaria, um ultraje!
No mesmo regimento estavam dois camaradas que tinham sido
condecorados. Um dia abateram um dos nossos aviões e foram punidos. Depois de receberem as suas sentenças, começaram a actuar
melhor. Propôs-se que fossem absolvidos.
(*) [Messerschmitt, caça alemão] (N.R.).
42
BAPTISMO DE FOGO
Grossman faz o seu primeiro voo no aeródromo de Zyabrovsky,
perto de Gomel, Agosto 1941.
Notas de uma entrevista com um piloto:
«Camarada tenente-coronel, abati um Junkers-88 para a mãe-pátria soviética.»
Sobre os Alemães:
«Há pilotos que não são maus, mas a maioria é uma porcaria.
Evitam combater. Eles só lutam em último caso.»
«Não há qualquer ansiedade – raiva, fúria. E quando vês que ele
está a arder, a tua alma ilumina-se.»
«Quem é que se vai desviar? Ele ou eu? Eu não me desvio.
Transformei-me numa só entidade com o avião e já não consigo
sentir nada.»
Um jovem soldado do Exército Vermelho disparou um rocket no
posto de comando [do aeródromo] e atingiu o traseiro do chefe de
estado-maior.
O quartel-general está situado num edifício que foi o palácio dos
Jovens Pioneiros. Um piloto enorme, enfeitado com cartucheiras,
uma pistola, e mais coisas, surge numa porta onde está escrito «Para
jovens raparigas.»
43
UM ESCRITOR NA GUERRA
Os edifícios no aeródromo foram destruídos pelos bombardeamentos, a pista foi sulcada pelas explosões. Os aviões Ilyushin e MiG
são escondidos debaixo de redes de camuflagem. Circulam viaturas
pelo aeródromo distribuindo combustível pelos aviões. Há também
um camião com bolos e um camião que transporta frascos de comida
em vácuo. Moças vestidas com fatos-macacos brancos atestam os
pilotos com o jantar. Os pilotos comem caprichosamente, com
relutância. As raparigas incentivam-nos a comer. Alguns aviões estão
escondidos na floresta.
Foi extremamente interessante quando Nemtsevich [o comandante do regimento aéreo] nos descreveu a primeira noite de guerra,
aquando da terrível e rápida retirada. Circulou num camião, durante
o dia e a noite, a recolher as mulheres e os filhos dos oficiais. Numa
casa encontrou oficiais que foram apunhalados até à morte. Ao que
parece, foram mortos durante o sono por sabotadores. Isto ocorreu
junto à fronteira. Relatou que na noite da invasão alemã ele tinha de
fazer uma chamada telefónica, sobre um assunto sem importância, e
veio a saber que as comunicações não estavam a funcionar… Ficou
aborrecido, mas não prestou muita atenção ao facto.
Nemtsevich disse-me que os aviões alemães não apareciam no
seu aeródromo há dez dias. Foi categórico na sua conclusão: os
Alemães não têm combustível, os Alemães não têm aviões, foram
todos abatidos. Nunca ouvi uma coisa assim – que optimismo! Este
traço de carácter é bom e prejudicial ao mesmo tempo, mas de
qualquer forma ele nunca dará um estratega.
Almoçámos numa pequena cantina aconchegada. Estava lá uma
bela auxiliar e Nemtsevich gemia de desejo quando olhava para ela.
Falou-lhe num tom servil, tímido e suplicante. Ela foi ironicamente
indulgente. Este foi aquele breve triunfo da mulher sobre um
homem nos dias, ou talvez até horas, que precedem a “rendição” do
seu coração. É curioso ver esta submissão tímida ao poder de uma
mulher neste comandante belo e másculo de um regimento de caças.
Evidentemente, ele é um grande mulherengo.
Pernoitámos num edifício com vários andares. Estava deserto,
escuro, aterrorizador e triste. Há já algum tempo que nele habitavam
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BAPTISMO DE FOGO
centenas de mulheres e de crianças, famílias de pilotos. Durante a
noite fomos acordados por um ténue rugido assustador e saímos para
a rua. Por cima de nós, esquadrões de bombardeiros alemães voavam
para leste, evidentemente aqueles a que Nemtsevich se referia
durante o dia, aqueles que ele afirmava não terem combustível e que
tinham sido destruídos.
Ouviu-se o rugido dos motores a ligarem, pó e vento – aquele
vento bastante peculiar dos aviões, esmagado contra o chão. Um
após outro, os aviões subiram ao céu, deram uma volta e afastaram-se. De imediato, o aeródromo ficou vazio e silencioso, tal como
uma sala de aula quando os alunos desaparecem. É como o póquer:
o comandante de regimento atira toda a sua fortuna ao ar. A mesa
de jogo está vazia. Ele permanece aí com os olhos fitos no céu, e por
cima dele os céus estão vazios. Ou fica na miséria, ou recupera tudo
com juros. Isto é um jogo em que as apostas são a vida e a morte, a
vitória e a derrota. Sinto-me sempre como se estivesse num ecrã de
cinema e não apenas a presenciá-lo. Estão a suceder, com frequência
e rapidez, grandes acontecimentos.
Por fim, depois de um ataque bem sucedido a uma coluna
alemã, os caças regressam e aterram. O avião líder tinha carne
colada ao radiador. Isto aconteceu porque o avião de apoio tinha
atingido um camião com munições, que explodiu no exacto
momento em que o líder o sobrevoava. Poppe, o líder, retira a carne
com um arame. Eles chamam um médico que examina atentamente a massa ensanguentada e pronúncia: [é] «carne ariana!» Toda
a gente se ri. Sim, despontou um tempo impiedoso – um tempo de
ferro.
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