O ESTRANHO QUE EU AMAVA - Português

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O ESTRANHO QUE EU AMAVA - Português
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O ESTRANHO QUE EU AMAVA
- Roteiro de Daniel J. ZIMERMAN
AGOSTO 2014
FADE IN:
LEGENDA
CISJORDÂNIA
Há 18 anos.
INT. QUARTO DE DAVE-CRIANÇA – NOITE.
Um menino RUIVO de sete anos está trabalhando com os
componentes eletrônicos do que um dia foi um microcomputador.
Um gravador portátil está ligado: OUVIMOS os Beatles, cantando
LUCY IN THE SKY WITH DIAMONDS.
De repente, DAVE ouve a voz de MIKE e abaixa o volume do
rádio.
MIKE
(em OFF)
DAVE! Onde foi que você colocou meu laptop?! Não
consigo achá-lo.
Ele parece preocupado com alguma coisa. É um adulto em tudo,
menos na aparência de criança. MIKE (com vinte anos a menos)
aparece, apontando primeiro a cabeça na porta.
DAVE
Coloquei de novo no carro, Mike. Tive que fazer nova
formatação, tudo bem?
MIKE
OKAY, DAVE. E o sistema operacional?
DAVE
(paciente)
Troquei. Aquele sistema é muito ruim, Mike. Fiz um
novo para sua máquina, mais adequado ao seu perfil
de usuário.
MIKE
(educado, mas sem calor humano)
Não precisava. Mas obrigado de qualquer maneira.
DAVE
Mike?
MIKE
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O quê?
DAVE
Você é o meu pai?
MIKE
Já falamos sobre isso, DAVE.
DAVE
Por que não gosta que eu chame você de pai, Mike?
MIKE
Não é que eu não goste.
DAVE
É sim. Você não gosta mesmo.
MIKE
Não é isso.
DAVE
Por que você vai me levar para Toronto? Eu prefiro
ir morar com você.
MIKE
Eu já expliquei. Trabalho num lugar muito perigoso.
Não posso levar você para lá.
DAVE
Perigoso por quê? Desde quando o trabalho de um
jornalista é perigoso?
MIKE
Eu sou correspondente de guerra, Dave. É diferente.
Beirute não é um bom lugar para criar uma criança.
DAVE
(fitando Mike com os olhos brilhando)
Todo mundo diz a mesma coisa da Cisjordânia, mas eu
gosto daqui. Minha mãe também gostava.
MIKE
Hannah morava aqui porque era importante para o
jornal dela, Dave. Se pudesse escolher, moraria em
TEL-AVIV.
DAVE
Não sei se concordo com você, Mike. Os melhores
amigos dela moram aqui.
MIKE
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(firme)
Você vai gostar do Canadá, DAVE. Você vai para uma
escola especial, para garotos inteligentes como
você.
DAVE
Lá eu vou aprender astrofísica?
MIKE
Você vai aprender tudo o que quiser.
DAVE
Promete?
MIKE
Prometo.
O menino sorri para Mike.
ROLAM OS CRÉDITOS INICIAIS, que são impressos em imagens
fascinantes do cosmo, com estrelas, planetas, reconstituindo o
BIG BANG.
Essas imagens são intercaladas por imagens que representam as
muitas outras disciplinas estudadas por DAVE: o fundo do mar,
ondas gigantescas, reprodução celular, choque entre átomos,
números e fórmulas, animais selvagens, blocos de gelo na
Antártida, imagens internas do corpo humano, simulações de
fissão e fusão nuclear, velocidades altíssimas percorridas por
jatos de última geração etc.
Imagens em CLOSE-UP do rosto de DAVE, evoluindo de criança a
adulto, absorvendo todo aquele conhecimento.
Na trilha sonora, ACROSS THE UNIVERSE, com os Beatles.
FIM DOS CRÉDITOS.
INT. CASA DE DAVE/SCARBOUROUGH/TORONTO – NOITE.
DAVE está diante do espelho, contemplando sua imagem. Com uma
tesoura na mão, corta um ou outro fio de barba que está
desalinhado, deixando tudo como queria: perfeito.
Ruivo, muito elegante (parece mais um modelo pronto a desfilar do que
um cientista renomado), ele ajeita os cabelos antes de dar-se por
satisfeito e sair da frente do espelho.
Ouve uma buzina, vai até a porta – VEMOS um pôster dos Beatles
ainda jovens, caminhando por Liverpool – e então DAVE repara
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num papel amarelo adesivo POST IT, em que está escrito à mão,
com caneta vermelha:
Dr.LOGAN
9h
Ele faz uma careta e sai, depois de uma última espiada no
espelho.
EXT. CASA DE DAVE/SCARBOUROUGH/TORONTO – NOITE.
DAVE sai de casa e entra rapidamente no carro de MADELEINE (a
roliça e simpática assistente dele, de 35 anos), um modelo já bem
usado.
INT. CARRO DE MADELEINE – NOITE.
Madeleine dá um assovio de admiração.
MADELEINE
Não precisava dessa produção toda, DAVE. O lugar é
simples, você vai ver.
DAVE
Os rapazes de Liverpool merecem. E os ingressos?
MADELEINE
Na bolsa. Vamos embora?
DAVE
O que você está esperando, menina? Quero esquecer
aquela maldita consulta e sacudir o esqueleto até
raiar o sol.
EXT. CASA DE DAVE/SCARBOUROUGH/TORONTO – NOITE.
O carro arranca rápido, dando uns solavancos. Fica evidente de
que Madeleine é péssima motorista.
FUSÃO para a pista de uma boate, no embalo de TWIST AND SHOUT,
com os Beatles.
INT. PISTA DA BOATE/TORONTO – NOITE.
Na pista, entre vários casais, DAVE e Madeleine dançando. Ela
é um pouco desajeitada, mas Dave é um bom dançarino, que imita
Travolta no filme SATURDAY NIGHT FEVER sem fazer feio.
Na pista, VEMOS que muitas garotas (na faixa de 25-30 anos) olham
com muito interesse para DAVE.
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Devagar, uma mais ousada vai se aproximando de DAVE, sempre
dançando, procurando ficar na frente dele. A garota é linda e
não parece se importar com o fato dele estar acompanhado na
pista.
DAVE dá a entender que não percebe que a moça está dançando
‘para’ ele; Madeleine deixa claro que entendeu o recado. Ela
cede espaço para a moça, discretamente.
Outra moça, igualmente linda, começa a se aproximar da mesma
forma, depois de notar que DAVE não pareceu atraído pela
primeira.
E assim ocorre com quatro moças. Uma delas chega a ser bem
enfática para tentar seduzir DAVE. Sem sucesso.
As moças parecem ter desistido de seduzir DAVE. Uma delas
sinaliza para a outra, sem que DAVE e Madeleine percebam, que
DAVE é gay.
Na trilha, outra música dos Beatles, GET BACK. DAVE finge que
está tocando guitarra, completamente envolvido pela canção.
Um casal gay (homens) observa a sinalização entre as moças. O
mais bonito, visivelmente afeminado, toma coragem e se
aproxima de DAVE e Madeleine, olhando ostensivamente para ele.
DAVE está inteiramente voltado para a música: como ocorreu com
as moças, dá a entender que não percebeu a intenção do rapaz
afeminado – que quer chamar atenção dele, tal como as moças –
e continua a dançar, sempre olhando para Madeleine.
Está sorrindo, feliz: adora dançar. Não deseja passar a
impressão de que é um convencido, que esnoba as tentativas de
aproximação de quem quer que seja.
O rapaz afeminado vê que não conseguiu atrair Dave e sai
dançando, sem graça.
Outro homem, musculoso, bonito como Dave, aproxima-se com a
mesma intenção. O resultado é o mesmo. Dave só tem olhos para
Madeleine enquanto está dançando. Mas fica evidente que são
apenas amigos.
Os rapazes gays não compreendem a atitude de DAVE.
EXT. ESTAÇÃO DE METRÔ/RUA DUNDAS/TORONTO – DIA.
Bem agasalhado, sempre muito elegante, DAVE está saindo da
estação do metrô. Despreocupado, caminha pela rua, até entrar
num prédio.
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INT. CORREDOR/PRÉDIO – DIA.
DAVE sai do elevador e caminha até uma porta em que está
afixada a placa
James Logan, Ph.D.
Psiquiatra.
INT. SALA DE ESPERA/CONSULTÓRIO DR. LOGAN – DIA.
DAVE entra e vai até a secretária.
DAVE
Dave KÖNIGSBERG.
SECRETÁRIA
O doutor LOGAN está aguardando o senhor, professor.
Por favor. (aponta a porta, autorizando a entrada dele)
Ele caminha na direção da porta do consultório.
DAVE
Obrigado.
INT. CONSULTÓRIO DR. LOGAN – DIA.
O Doutor Logan parece ter chegado aos 70 anos. Austero, usa
óculos clássicos. Levanta-se com agilidade e recebe DAVE com
um sorriso, oferecendo uma poltrona perto da dele e não o
divã.
Estende a mão a DAVE, que aperta.
LOGAN
Bom dia, doutor KÖNIGSBERG. É um prazer conhecê-lo.
DAVE
(pouco à vontade)
Obrigado. DAVE apenas, por favor. Tudo bem com o
senhor?
LOGAN
Você. James.
Sentam-se.
LOGAN
Sou seu fã, DAVE. Quero saiba que lamento muito as
circunstâncias em que estamos nos conhecendo. Eu
ficaria aliviado se você entendesse que essa (...)
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DAVE
(interrompendo-o)
Sessão.
LOGAN
Conversa (ênfase aqui)... Não foi ideia minha.
DAVE
Muito gentil de sua parte, Doutor. Mas nós sabemos
que eu estou aqui para ser avaliado. Gosto de chamar
as coisas pelos seus nomes.
LOGAN
Eu disse ao seu diretor que essa conversa era
desnecessária. Não acredito, de forma alguma, que
haja alguma coisa errada com você.
DAVE parece mais confortável. Repara que há duas revistas com
ele na capa na mesinha perto da poltrona do psiquiatra: as
capas de edições das revistas TIME e NEWSWEEK mostram DAVE (sem
barba, bem mais novo, cara de menino, aos 21 anos).
CLOSE-UP do título da matéria de capa da revista TIME: NOBEL
DE FÍSICA.
DAVE
Você sabe deixar um sujeito à vontade.
psiquiatra você também é psicanalista?
Além
de
LOGAN
Acertou. Meu relatório já está escrito e nele seu
diretor vai ler o que eu acabei de dizer a você.
Quer ler?
DAVE
Absolutamente. Confio em você.
LOGAN
Ótimo. O que acha de aproveitar que está aqui e
conversar sobre a pressão que você está sofrendo de
seu diretor? Talvez eu possa ajudar.
DAVE
Exatamente o quê Archibald disse a você, James?
LOGAN
Ele falou que seu projeto de pesquisa está parado há
quatro anos. Que você não consegue descobrir a
solução
para
determinado
problema
e
que
sua
inteligência se esgotou.
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DAVE
Você não acredita nisso.
LOGAN
Nem um pouco.
DAVE
Por quê?
LOGAN
Andei bisbilhotando e descobri algumas coisas bem
interessantes.
DAVE
Bancando o detetive, James?
LOGAN
Só
para
fazer
o
relatório
que
seu
diretor
encomendou. Fiquei realmente impressionado com o que
descobri.
DAVE
Archibald está certo. Não produzi nada mesmo.
LOGAN
É um ponto de vista. Em quatro anos você fez um
curso inteiro de medicina e um doutorado em química
nuclear. É algo notável, mesmo para alguém como
você.
DAVE
Estudei psicanálise também, James.
LOGAN
Mas o que mais me surpreendeu foi saber que você
aprendeu oito idiomas. Não sabia desse seu interesse
em aprender outras línguas.
DAVE
Tenho interesse em aprender tudo o que eu ainda não
sei. Há muito mais coisas desconhecidas do que
conhecidas, James. Simplesmente não gosto de aceitar
isso.
LOGAN
Não duvido. Mas eu descobri algo que você ainda não
sabe.
DAVE
É mesmo, James? O quê?
LOGAN
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O seu bloqueio criativo – se me permite - começou
exatamente no dia 12 de junho de 2010.
DAVE
(seriamente interessado)
É mesmo?
LOGAN
Sabe o que foi que aconteceu nesse dia, DAVE?
DAVE
Não tenho a mínima ideia.
LOGAN
Foi exatamente nesse dia que um jornalista de
Toronto
chamado
Mike
HOOPER
ganhou
o
prêmio
Pulitzer. E se mudou para o Brasil.
Dave fica visivelmente desconfortável.
DAVE
(dando um suspiro)
Se eu tivesse lido algo sobre isso eu saberia, James.
LOGAN
Falta estudar mais um pouco de psicanálise.
EXT. AVENIDA HOSKIN/TRINITY COLLEGE - DIA.
DAVE avança de patins na direção do imponente prédio histórico
da renomada instituição de ensino.
Ele patina com segurança e habilidade, desviando-se dos
estudantes que entram e saem do prédio, numa manhã chuvosa.
DAVE confunde-se com os alunos, pois parece bem mais jovem do
que de fato é (25 anos).
DAVE chega à entrada principal e sobe a escadaria de patins
mesmo, com segurança. Ele entra.
INT/CORREDOR/TRINITY COLLEGE/TORONTO – DIA.
Sem tirar os patins, DAVE entra num corredor amplo, que dá
acesso à sala do diretor.
Passa com agilidade pelos alunos que vem e vão pelo corredor e
dá uma parada ao lado de um faxineiro já idoso, surpreendendoo com um beijo na careca dele.
O bom humor de DAVE é contagiante.
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Ele entra numa porta na qual há uma placa: DIRETOR.
INT. SALA DO DIRETOR/TRINITY COLLEGE/TORONTO – DIA.
DAVE entra na sala, sempre de patins. O DIRETOR está aparando
uma árvore bonsai, usando uma tesourinha especial, de avental
sobre o terno.
Em momento algum ele olha para DAVE, que se senta
poltrona, ficando, então, de costas para o diretor.
Que
bom
que
KÖNIGSBERG.
DIRETOR
você
resolveu
aparecer,
numa
doutor
DAVE
Amigos sempre aparecem, Archibald.
O diretor dá um pigarro (ele não gosta de informalidade).
DAVE
Bacana esse seu hobby, Archibald. Bem repousante,
com certeza.
O diretor para de aparar a pequena árvore e olha fixamente
para DAVE.
DIRETOR
O senhor sabe o quanto essa universidade já enfiou
no seu projeto?
DAVE
Que verbo mais inadequado, Archibald. Mas eu tenho
uma estimativa. O que me diz de cinco milhões?
DIRETOR
É muito dinheiro para você ficar quatro anos só
estudando, doutor KÖNIGSBERG. Ah, sim: e jogando
dados.
DAVE
Você anda me espionando, Archibald? Que coisa mais
feia.
DIRETOR
Depois do Nobel você se acomodou, doutor KÖNIGSBERG.
Não escreveu nem um mísero artigo científico.
(ironizando) Fez muita coisa, mas trabalhar no projeto
bancado pela universidade que é a sua obrigação,
nada.
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DAVE
Não é verdade, Archibald. Há um problema que será
resolvido. É questão de tempo.
DIRETOR
James Logan diz a mesma coisa. Mas eu não penso
assim.
DAVE
Coisa comum na ciência. É claro que é involuntário e
é ainda mais claro que vou resolver isso de forma
satisfatória.
DIRETOR
Acabou a boa vida, doutor KÖNIGSBERG. A universidade
não vai colocar nem mais um centavo na sua pesquisa.
DAVE
Uma decisão um tanto drástica essa sua, Archibald.
Olhe que muitas universidades gostariam de ter meu
projeto.
DIRETOR
Nem um centavo até lá. Você está por sua conta.
Fique à vontade para procurar outra universidade. Já
estou farto de sua enrolação.
DAVE
Fique tranquilo, Archibald. Vou ao Rio de Janeiro
amanhã e na segunda-feira esse probleminha estará
resolvido.
DIRETOR
Faça o que quiser. Mas com o seu dinheiro, entendeu?
DAVE sai sem se despedir do diretor, que nem repara que o
cientista não está mais lá. Ele tira os patins.
INT. CORREDOR/TRINITY COLLEGE/TORONTO – DIA.
MADELEINE, ansiosa, dá um gritinho quando o rosto sorridente
de DAVE aparece saindo da sala do diretor.
Dave leva os patins nas mãos; anda rapidamente.
Madeleine tem dificuldade para segui-lo.
MADELEINE
O que ele queria?
Dave
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Sujeitinho detestável.
MADELEINE
Direto ao ponto, Dave.
DAVE
Ficamos sem os fundos de pesquisa.
MADELEINE
Sem nada? Nadinha?
DAVE
Zero. (pausa) Telefone à redação do New York Times e
consiga o endereço do correspondente deles no Rio de
Janeiro.
MADELEINE
Só tem um?
DAVE
É. Mike HOOPER.
MADELEINE
Rio de Janeiro? Não entendi.
DAVE
Providencie tudo, Madeleine. Depois eu explico. Não
há tempo a perder.
MADELEINE
Que papo é esse? O que você vai fazer no Brasil?
DAVE
Vou lá ver se Sigmund Freud tinha razão, Madeleine.
MADELEINE
Freud? O que Freud tem a ver com isso? Pode me
explicar?
DAVE
Eu não. Mas talvez ele possa. Depois, Madeleine.
(pausa) Cuide de tudo, querida. Quero ficar num hotel
simples, perto de uma favela. Quero conhecer a
cidade real e não o Rio dos cartões postais.
MADELEINE
Sim, bwana. Mais alguma ordem?
DAVE
Quero viajar o mais rápido possível. Se der para ir
hoje à noite, melhor. Volto segunda à noite.
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CORTA PARA
Uma bela visão da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro.
VEMOS o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar.
A imagem se expande e VEMOS que a bela paisagem é vista a
partir de uma favela e não de um endereço nobre como sugerem
as informações turísticas.
LEGENDA
RIO DE JANEIRO
EXT. FAVELA DO CANTAGALO/RIO DE JANEIRO – DIA.
Uma casa simples, típica das favelas cariocas. A casa é
vigiada por homens fortemente armados, muitos sem camisa, só
de calção, acostumados a ficar sob o sol forte.
Homens negros ou mestiços, magros, jovens, alguns ainda na
adolescência.
INT. FAVELA DO CANTAGALO/RIO DE JANEIRO – DIA.
Num cômodo mal iluminado, sem móveis, MIKE (52 anos, cabelos
pretos, magro) está dependurado numa barra de ferro, que foi
atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho, a
um metro e meio do chão.
Ele está nu, ensopado de suor, cheio de marcas de pancadas,
sangue escorrendo pelo nariz, muito ferido, visivelmente
esgotado: está sendo torturado por um traficante, JOÃO GORDO
(que é esquelético).
CLOSE-UP: um revólver calibre 44 aproxima-se do rosto dele e o
cano é colocado na boca de MIKE.
JOÃO GORDO
(em OFF)
O que é que você anda xeretando por aqui, malandro?
Mike tenta falar, mas não consegue. JOÃO GORDO tira o cano da
arma da boca dele.
MIKE não fala nada.
Começa uma roleta russa. O tambor começa a girar e o gatilho é
acionado. MIKE fecha os olhos.
Aliviado, percebe que não houve disparo. Ele suspira.
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JOÃO GORDO
Você é um sujeito de sorte. Dá pra ver que você é um
sortudo de primeira.
CLOSE-UP de uma mão que segura dois fios desencapados, usados
para aplicar um choque elétrico nos testículos de MIKE, que
retorce o corpo e grita.
JOÃO GORDO
(em OFF)
E aí? Estou esperando.
Mike nada fala. Dá um gemido de dor.
Novo giro do tambor do revólver. O gatilho é acionado, o
tambor do revólver move-se mais uma vez.
MIKE fecha os olhos, esperando o pior.
Nenhum tiro.
Mais um longo suspiro de alívio.
JOÃO GORDO
Deixa de ser besta. Não tem nenhum otário aqui.
MIKE
Está certo. Eu vou falar. Eu vim comprar pó pra
minha namorada.
JOÃO GORDO
Sei. Bacana você. Meu cliente.
A lâmpada pisca, ameaçando apagar-se, quando começa mais uma
sessão de choques em Mike.
Gritos terríveis são ouvidos na favela, que já se acostumou
com coisas assim.
INT. QUARTO DE MIKE/CASA/COPACABANA/RIO – DIA.
Mike (de cueca) está despertando. Muito suado, com respiração
difícil e muita falta de ar, ele dá um grito desesperado.
MIKE
Não! Não! Pelo amor de Deus, parem com isso! Eu juro
que não sei de nada.
Ele se acalma ao perceber que a tortura não foi real: era um
pesadelo.
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INT. AVIÃO – NOITE.
DAVE está sentado no canto, perto da janela, na
econômica. Está com fone de ouvidos, absorto na música.
classe
Um sujeito corpulento, ruivo como ele, chega e coloca uma
maleta pequena no bagageiro. Senta-se e tira a boina xadrez no
assento vago entre eles.
Os dois se olham com curiosidade: são bem parecidos. DAVE tira
o fone de ouvido.
DAVID
O meu pai ou o seu andaram pulando a cerca. (Estende
a mão, sorrindo) David.
DAVE
(apertando a mão estendida)
DAVE.
DAVID
Está me gozando?
DAVE
De jeito nenhum. DAVE KÖNIGSBERG.
DAVID
O’HARA.
DAVE
Mundo pequeno, esse, hein? É por essas e outras que
adoro matemática.
DAVID
Você não acredita em coincidências?
DAVE
A física quântica desmoralizou a visão determinista,
xará. Não dá mais para buscar refúgio no bom senso.
O mundo deixou de ser tão simples.
DAVID fica incomodado. Acha que DAVE é presunçoso.
DAVID
E qual é o seu ramo?
DAVE
Sou pesquisador.
DAVID
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Pesquisa de quê?
DAVE
Científica. E o seu?
DAVID
Sou bom fisionomista, por dever de ofício. Já vi
você em algum lugar.
DAVE
É possível. Você também mora em Toronto?
DAVID
Moro. Mas não é por isso. (lembrou-se) Ei! Você é um
sujeito famoso. É o garoto que ganhou o prêmio
Nobel, não é?
DAVE
Você não é muito mais velho do que eu.
DAVID
(balançando a cabeça)
É você. Agora está de barba. Garoto inteligente,
físico nuclear.
DAVE
Físico teórico.
DAVID
Dá na mesma. Meu trabalho é bem mais divertido do
que o seu, quer apostar?
DAVE
A física pode ser muitas coisas, mas monótona eu
garanto que não é.
DAVID
Topa a aposta ou vai amarelar?
DAVE
Topo. Qual é o seu ramo?
DAVID
Turismo.
DAVE
Você tem uma agência de viagens?
DAVID
Mais ou menos. Sou autônomo. Vendo passagens para um
único destino. Meu lugar preferido.
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DAVE
Um só? E o que tem de divertido nisso?
DAVID
Para o inferno, meu amigo.
DAVE olha
fascinado.
para
David,
examinando-o
com
atenção.
Sorri,
DAVE
Impressionante. É mesmo, David? Não é brincadeira?
DAVID
Tenho cara de quem brinca com essas coisas?
DAVE
Talvez.
DAVID
É um negócio como qualquer outro.
DAVE
E tem muita gente interessada?
DAVID
Não posso reclamar.
DAVE
Não tem problema de consciência?
DAVID
Por que teria? Acho o inferno um lugar bem mais
divertido do que o céu.
DAVE
Nem todos pensam como você. Que tipo
compra uma passagem para o inferno?
de
pessoa
DAVID
Gente rica. Com problemas.
DAVE
Eles não ficam com receio de não gostar da viagem?
DAVID
Nem um pouco. Não são eles que fazem a viagem.
DAVE
Eles contratam a viagem para outras pessoas, não pra
elas mesmas.
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DAVID
Você pega as coisas rápido. Gosto de gente assim.
O interesse de DAVE é genuíno.
DAVE
Nunca conheci alguém de seu ramo. Sua profissão é
moralmente condenável, mas muito interessante. Posso
fazer uma pergunta?
DAVID
Manda.
DAVE
Quanto você cobra?
DAVID
Depende da importância do passageiro. Normalmente,
de 500 mil a um milhão. De euros.
Você deve
aposentar?
DAVE
estar muito
rico.
Não
pensa
em
se
DAVID
Pra quê? Adoro o que faço.
DAVE
Não
sente
nenhum
arrependimento?
tipo
DAVID
Durmo muito bem. Para
qualquer outro.
mim
de
é
remorso?
um
trabalho
Algum
como
DAVE
Não se preocupa com um julgamento lá em cima?
DAVID
Se eu fosse Deus, faria o mundo exatamente como ele
é hoje. Eu sou uma peça numa engrenagem muito maior.
DAVE
Você teve formação religiosa?
DAVID
Católica.
DAVE
Frequenta a igreja? Já se confessou?
19
DAVID
Não frequento mais. Já fui muitas vezes. Acho os
padres um bando de hipócritas. Que diferença existe
em despachar um sujeito com uma bala na cabeça e
queimá-lo lentamente numa fogueira?
DAVE
A Igreja garantia
inquisidores.
um
lugar
no
céu
para
os
DAVID
Os padres garantiram para mim também.
DAVE
Mas você teria que se arrepender.
DAVID
Não tenho do que me arrepender. Estou fazendo um
favor às pessoas que despacho para o inferno.
DAVE está pensativo.
Imagino que
instantânea.
DAVE
uma bala
na
cabeça
provoca
morte
DAVID
Nem todas. As minhas sim. Só uso balas com ponta de
titânio.
DAVE
Você realmente está falando sério, não é mesmo?
DAVID
(rindo)
Claro que não. Estou brincando. Você acreditou?
DAVE dá uma risada; o outro apenas sorri. Os dois trocam um
olhar cúmplice.
INT. QUARTO DE MIKE/CASA/COPACABANA/RIO – DIA.
Uma
bela
negra,
inteiramente
espreguiçando-se como um gato.
nua,
Mike está com os cabelos molhados,
afundando o rosto na água refrescante.
RITA
acorda
próximo
ao
devagar,
lavatório,
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Aconteceu alguma coisa? Tive a impressão de ouvir
alguém gritando.
MIKE
Foi impressão sua.
OUVIMOS batidas na porta.
ALAIN
Mike? Mike? Tudo bem aí?
Mike vai até a porta e abre parcialmente, apenas o suficiente
para que ele veja o rosto de ALAIN do outro lado da porta.
Ele fala com
afeminado.
forte
sotaque
francês.
É,
visivelmente,
um
ALAIN
Tudo certo?
MIKE
Na mais perfeita ordem, Alain.
ALAIN
(em voz baixa)
Sua namorada estava aqui.
MIKE
Ex-namorada.
ALAIN
Que seja. Ela acabou de ir embora.
MIKE
Deixou algum recado?
ALAIN
Ela falou de uma câmera. Disse que espera você no
escritório.
MIKE
OKAY.
Mike tenta fechar a porta, mas não consegue: o pé de Alain
está impedindo.
MIKE
O que foi agora?
ALAIN
Não deixe a moça escapar, Mike. Ela é especial.
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MIKE
Não acho que isso seja de sua conta, Alain.
ALAIN
É difícil encontrar uma mulher como ela, Mike.
Mike não diz mais nada. Fecha a porta e vê que Rita acendeu um
cigarro de maconha e está tragando.
Ele vai até uma mesinha, onde quatro carreiras de cocaína
estão enfileiradas; ele cheira as duas primeiras de uma vez
só.
Na mesinha, VEMOS uma foto de LAURA, numa moldura.
MIKE
Tenho que ir trabalhar. Vamos tomar um banho.
RITA
(tragando)
Hoje é feriado, delícia. Esqueceu?
MIKE
Pra mim é um dia normal.
RITA
Tem problema se eu ficar aqui?
MIKE
Tem. Alain não vai gostar.
RITA
E eu com isso? Quero mais é que esse veado se dane.
Mike fica irritado; pega as roupas dela e joga sobre Rita.
MIKE
(ríspido)
Vá embora. Cai fora logo, menina!
RITA
(sem se mexer)
O que foi? Ficou bravo porque chamei seu amigo de
veado? Todo mundo na comunidade sabe que esse
francês é gay.
Mike caminha na direção do banheiro.
MIKE
Vou tomar um banho e quero você fora daqui quando eu
voltar. Estamos entendidos?
22
RITA
Filho da puta.
Ele entra no banheiro e fecha a porta. Rita começa a vestirse, irritadíssima.
PONTO DE VISTA de Rita, olhando com curiosidade a foto de
Laura.
CORTA PARA
Na trilha sonora, GAROTA
Jobim e Vinícius de Moraes
DE
IPANEMA,
interpretada
por
Tom
(http://youtu.be/KJzBxJ8ExRk).
Imagens de Laura fazendo surf. Morena, 34 anos, ela tem um
belo corpo, bem definido, com músculos no lugar certo, sem
perder a feminilidade.
Novas imagens: agora LAURA está jogando vôlei de praia. Depois
aparece numa barra, fazendo exercícios.
Por fim, caminhando na praia, numa imagem poética, ao por do
sol.
INT. AVIÃO – AMANHECER.
A luz do sol entra pela janela e acorda DAVE, que cochilava.
Ele olha para o lado e vê DAVID numa posição pouco usual; a
boina está caída no piso da aeronave.
Estranhando a posição de DAVID, DAVE cutuca o companheiro de
viagem e percebe que ele está imóvel.
Ele levanta-se e constata que o homem não respira.
DAVE acende a luz de comunicação com as comissárias. Vê uma
delas.
DAVE
Comissária! Comissária! Por favor, venha aqui.
A comissária aproxima-se.
COMISSÁRIA
Senhor? Em que posso ajudar?
DAVE aponta o defunto.
DAVE
Esse homem está morto.
23
A comissária, surpresa, coloca a mão no pescoço de DAVID,
verificando a pulsação dele.
Os
passageiros
olham
para
o
cadáver,
horrorizados.
comissária vai até a cabine do comandante em passos rápidos.
A
COMISSÁRIA
Por favor, não mexam no corpo. Eu não demoro.
EXT. CASA DE MIKE/COPACABANA – DIA.
Mike está saindo de casa. De chapéu panamá, roupas largas (bem
à vontade) ele está numa bicicleta, seu meio de transporte
preferido.
Um belo dia de sol no Rio de Janeiro.
EXT. BAR/FAVELA DE CANTAGALO/COPACABANA – DIA.
Mike para no bar que fica entre a favela e Copacabana. Entra e
leva a bicicleta para dentro, nas mãos.
MIKE
(dirigindo-se ao balconista, um negro forte, simpático)
Manda o café, Miguel.
Mike acende um cigarro.
Miguel está sempre com uma toalha nos ombros. Com ela limpa o
suor de vez em quando. Está quente demais, como é comum no
Rio.
MIGUEL
O pão-de-queijo saiu agora. Está quentinho.
MIKE
Dois então. Acordei com fome.
Miguel serve o café para Mike, num copo simples, cheio até a
borda.
Tira dois pães de queijo de uma lata, usando guardanapos que
são sobras de papel de pão: é um bar frequentado por gente
muito simples.
MIGUEL
Ninguém faz pão de queijo igual a minha patroa.
MIKE
E eu não sei?
24
Mike toma café, olhando o movimento.
Sua atenção é despertada por um Mercedes-Benz negro, que entra
na favela. Ele apaga o cigarro.
Homens armados, postados com discrição em locais estratégicos,
trocam sinais entre si: é uma autorização para que o carro
entre na favela sem ser incomodado.
O vidro escuro se abaixa e o rosto do passageiro do banco de
trás (RUBENS, sócio de LAURA, aparece, saudando um segurança que parece
mais graduado) fica parcialmente visível.
MIKE
Miguel? Você já viu aquele carro por aqui antes?
MIGUEL
Aquele carro preto?
MIKE
É. Já viu?
MIGUEL
(lavando copos)
Já. Uma ou duas vezes.
Mike continua observando o carro; repara que os ‘seguranças’
do tráfico cumprimentam o passageiro do carro, que não
aparece, pois o vidro é escuro, provavelmente blindado.
Um dos ‘seguranças’ olha em volta e vê que Mike está olhando o
carro, tentando ver quem é o passageiro, sem conseguir.
MIKE
Você sabe quem é aquele sujeito que está no carro?
MIGUEL
Tá de sacanagem comigo, cara?
MIKE
Não vejo por que. Manda mais um café.
Miguel serve mais um café.
MIGUEL
Você não sabe mesmo?
MIKE
Por que deveria saber?
25
MIGUEL
É o namorado de seu amigo francês.
MIKE
Alain?
MIGUEL
Tem algum outro?
MIKE
Não.
Mike pega a bicicleta e sai, sem voltar-se para Miguel.
EXT. ESCRITÓRIO DE LAURA/COPACABANA/RIO – DIA.
Laura está linda num terninho cinza com a saia riscada na
altura das belas pernas, trabalhando em seu laptop.
LÚCIA
(em OFF)
Mike está aqui. Ou o que sobrou dele. Parece que
veio pedalando do México. Estou servindo uma água ao
coitadinho.
LAURA
Você passou na costureira?
LÚCIA
Você vai adorar. Ela é linda, maravilhosa. Coloquei
no bagageiro da moto.
Mike entra na sala.
LAURA
E a câmera?
MIKE
Lúcia é exagerada demais. Estou ótimo.
Laura se levanta e vai até ele. Ele tenta beijá-la nos lábios,
ela vira o rosto.
LAURA
Já passamos dessa fase, querido. Trouxe a câmera?
MIKE
(entrega a ela um prendedor de gravatas)
Claro.
LAURA
O que é isso?
26
MIKE
A câmera que você pediu.
Mike mostra a ela que a caneta é uma câmera disfarçada.
LAURA
Incrível. E a qualidade da imagem?
MIKE
Ótima. Está programada para mandar imagens para meu
laptop. São do mesmo fabricante. Tem certeza que vai
querer usá-la?
LAURA
Meu pai é um canalha. Depois de tudo o que
aconteceu, o filho da puta está traindo a minha mãe
de novo.
MIKE
Isso é problema dele e de sua mãe. Você não deveria
se meter nessa estória.
LAURA
Você menos ainda. Homens são todos iguais.
MIKE
Eu nunca prometi fidelidade a ninguém.
LAURA
Nem disse que era promíscuo. Nem que tinha doença
venérea.
MIKE
Como é que você sabe que foi comigo que pegou?
Laura para, olha fixamente para Mike.
LAURA
SE (ênfase aqui) a sua existência fosse relevante – e
não é – eu consideraria dar a você uma resposta
adequada.
MIKE
Veja lá como vai usar
problemas com o conde.
essa
câmera.
Não
quero
LAURA
(olhando fascinada para o prendedor de gravata)
Não vai ter. Só preciso das imagens para convencer
minha mãe.
27
MIKE
É bom mesmo. Já tenho problemas demais.
LAURA
E como é que faço para acionar a gravação?
MIKE
(mostrando a ela)
Na hora em que você firmar na gravata dele, aperta
aqui. Só para de transmitir se você apertar de novo.
LAURA
Muito bacana.
MIKE
Vi seu sócio lá em Cantagalo hoje. Subindo o morro.
E não foi para namorar. Alain estava em casa.
LAURA
(absorta na observação da câmera)
Quase todos os maiores traficantes do Rio são nossos
clientes.
MIKE
Você não tem nenhum problema de consciência? Essa
gente é perniciosa.
LAURA
Minha conta bancária
incomoda você?
ajuda
a
superar
isso.
Isso
MIKE
Muito. Não acho certo.
LAURA
De qualquer modo, quem cuida dos traficantes é
Rubens. Eu só lido com os clientes que atuam dentro
da lei.
MIKE
Não faz diferença.
LAURA
Para mim faz. De qualquer forma, isso não é mais
problema seu.
Ela dá dois passos e abre a porta.
LAURA
Não precisa editar as imagens. Mande para meu e-mail
e me favoreça com sua ausência. Para sempre.
28
INT. AVIÃO – AMANHECER.
Dois comissários levam o corpo de DAVID para os fundos da
aeronave.
DAVE pega a boina xadrez no chão e faz menção de chamar a
comissária.
Muda de ideia e coloca a boina na cabeça, ajeitando-a.
EXT. PRÉDIO/APTO DO CONDE/AV. VIEIRA SOUTO/RIO – DIA.
Vista externa do sofisticado prédio em que vivem CONDE, a
mulher dele e LAURA, filha única.
INT. BANHEIRO/APTO DO CONDE/AV. VIEIRA SOUTO/RIO – DIA.
O conde LUIZ FRANCISCO DE ORLEANS E BRAGANÇA, pai de LAURA,
está diante do espelho, ajeitando o prendedor de gravatas que
ganhou da filha.
BERNADETE, mulher dele, fala algo sem entrar no banheiro.
VOZ DE MULHER
(em OFF)
Querido. Rubens já está esperando você.
CONDE
Laura está com ele?
VOZ DE MULHER
(em OFF)
Não. Ela foi ao Fórum.
Depois de ajeitar os cabelos, ele sai.
INT. QUARTO DE MIKE/COPACABANA/RIO – DIA.
Mike está diante do laptop, teclando com rapidez. Um sinal
sonoro avisa que a máquina está recebendo imagens.
CLOSE-UP de um ícone que representa uma câmera, piscando. Ele
leva o mouse até o ícone e clica.
Na tela começa a surgir, distorcida, a imagem de Rubens,
captada pela câmera embutida no prendedor de gravata de Conde.
PONTO DE VISTA DA MINI-CAM: Rubens parece preocupado.
RUBENS
(na tela do laptop)
29
O filho da mãe está quase descobrindo tudo. Ele me
viu no morro hoje.
A imagem firma-se.
MIKE faz menção de voltar ao trabalho, mas resolve acompanhar
as imagens da conversa entre Rubens e o conde.
CONDE
(em OFF)
Você estava no carro do escritório?
RUBENS
Tive que sair às pressas, conde. Não deu tempo de
trocar de carro.
CONDE
(em OFF)
Acalme-se, rapaz. Trate
diabo mora nos detalhes.
de
ficar
mais
atento.
O
RUBENS
Laura já terminou com ele. Vamos resolver isso logo.
CLOSE-UP DE MIKE. Ele está assustado.
A voz do conde é registrada em OFF quando a CAM estiver no
PONTO-DE-VISTA de Mike, que está de olho na tela de seu
laptop.
Nesse caso, só Rubens aparece na imagem, enquadrado pela CAM
fixada na gravata do Conde.
CONDE
Nosso convidado já chegou?
RUBENS
Deve estar chegando ao Galeão agora.
CONDE
(em OFF)
Quero uma recepção de gala. Inesquecível.
RUBENS
Já cuidei de tudo, conde. Ele vai ser tratado como
rei. Contratei uma menina nova, espetacular.
CONDE
(ironizando)
Fico preocupado quando você diz que uma mulher é
espetacular.
RUBENS
30
Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A moça é
da alta sociedade, refinada, fala inglês e francês
fluente. Perfeita para nosso hóspede canadense.
CONDE
Quero esse assunto resolvido amanhã. Deixe o sujeito
descansar hoje.
RUBENS
Considere resolvido.
CONDE
E o movimento da semana?
Rubens aproxima-se da MINI-CAM e entrega a CONDE uma pasta.
O conde examina os papeis.
PONTO DE VISTA DA MINI-CAM: as mãos de Conde estão manuseando
as folhas, uma após a outra.
As folhas mostram planilhas, cheias de números.
CONDE
(em OFF)
Pavãozinho tem que melhorar. Aperte aquele crioulo.
Essa gente de favela é folgada demais.
RUBENS
Você acha que ele está metendo a mão?
CONDE
(em OFF)
Não. Ele não é louco pra fazer isso. É só relaxado.
RUBENS
O faturamento no Complexo do Alemão cresceu quase
20%. Paulo Preto é fera, conde.
CONDE
(em OFF)
Os caras tem que saber que você está de olho,
Rubens.
Vigilância,
meu
caro.
O
negócio
é
vigilância.
RUBENS
O pessoal de Zé Marreco está reclamando da polícia.
CONDE
(em OFF)
Que Zé Marreco é esse?
31
RUBENS
Da Rocinha.
CONDE
(em OFF)
Vá direto ao governador. Esse secretário é um bobão.
Quem é mesmo que está na Polícia Civil? Cada dia tem
um sujeito diferente lá.
RUBENS
Delegado Marcílio, conde. Não é má pessoa.
CONDE
(em OFF)
Detesto gente gulosa demais. Reduza a parte dele em
15%. Não, 20%. Passe para o governador.
RUBENS
Está certo.
Acabam as
apanha.
folhas.
CONDE
estende
a
pasta
a
Rubens,
que
CONDE
E Vigário Geral?
RUBENS
As folhas estão grudadas.
CONDE separa as duas folhas.
CONDE
Bom. Muito bom. Mais alguma coisa?
RUBENS
Não.
CONDE
Algum problema além do
comendo a minha filha?
bisbilhoteiro
que
estava
RUBENS
Você se refere àquele assunto que já está resolvido?
CONDE
É assim que eu gosto das coisas, Rubens. Vou para
Angra depois do almoço. (pausa) Arrume umas duas
meninas para mim.
RUBENS
Vou cuidar disso, conde.
a
32
Rubens levanta-se.
PONTO DE VISTA DA MINICAM: Rubens se aproxima. Os dois se
abraçam.
Mike suspira, passando as mãos na cabeça. Está muito abatido.
INT. AEROPORTO DO GALEÃO/RIO DE JANEIRO – DIA.
DAVE, usando
desembarque.
a
boina
de
DAVID,
está
saindo
da
área
de
Carrega numa mão o porta terno de couro e na outra uma sacola,
também de couro.
Um sujeito com uniforme
aproxima-se dele.
de
motorista
(com
quepe
inclusive)
MOTORISTA
Senhor David O’HARA?
DAVE para. Depois de titubear um pouco, DAVE responde.
DAVE
Sim. Pois não?
MOTORISTA
Vim buscar o senhor.
DAVE
Para onde você vai me levar? Para um hotel?
MOTORISTA
Não, senhor O’HARA. O senhor é convidado pessoal do
Doutor Rubens.
DAVE
Sou?
MOTORISTA
O senhor vai ficar hospedado na casa de hóspedes.
Recebi ordens para fazer tudo o que o senhor quiser.
Prefere ir para um hotel?
DAVE
Não. A casa de hóspedes está bem. Qual é o seu nome?
MOTORISTA
Sergio. Ao seu dispor.
33
O motorista se oferece para levar a bagagem de DAVE e ambos
caminham na direção da saída do aeroporto.
SERGIO
Por aqui, por favor.
EXT. AEROPORTO DO GALEÃO/RIO – DIA.
O carro preto (Mercedes-Benz) que apareceu antes está estacionado
num local proibido.
DAVE, atento, observa que há um guarda de trânsito por perto.
O motorista abre a porta traseira, depois de fazer um sinal de
agradecimento ao policial, sob o olhar curioso de DAVE.
DAVE entra no carro, o motorista também.
EXT. RUAS/AVENIDAS DO RIO DE JANEIRO – DIA.
O carro preto avança por ruas e avenidas do Rio de Janeiro.
CAM NO PONTO DE VISTA DE DAVE: um Rio que não aparece em
cartões postais. Ruas sujas, muita confusão no trânsito,
favelas.
Na TRILHA SONORA, uma música emblemática do caos urbano em que
se transformou a cidade: RIO 40 Graus, de Fernanda de Abreu,
cantora carioca (http://youtu.be/Y5gneAzzpGk).
O carro para num engarrafamento gigantesco. O motorista vira a
cabeça para trás.
SERGIO
Se o senhor quiser, pode ligar a televisão.
DAVE
Prefiro apreciar a vista. É minha primeira vez no
Rio.
SERGIO
Com esse engarrafamento não vai dar para apreciar
nada, senhor O’HARA.
DAVE
Não tem importância. Isso acontece em todo lugar.
SERGIO
(rindo)
Vamos ficar presos aqui por pelo menos duas horas.
34
DAVE
(muito surpreso)
Duas horas?
SERGIO
Se estivermos com sorte. (pausa) Aí atrás tem jornais
e revistas, se preferir. Em inglês. Tem água e
uísque também.
IMAGENS DO ALTO, mostrando uma interminável fila de carros.
DAVE
Os engarrafamentos aqui são sempre assim?
SERGIO
Nem todos, mas é comum. Já estamos acostumados. O
trânsito no Rio é um caos.
DAVE
Então vou sair para ver a cidade. Não vou me afastar
muito. Quero conhecer as pessoas.
SERGIO
Ninguém fala inglês aqui, Senhor O’HARA.
DAVE
Eu
sei.
Não
falo
português,
mas
razoavelmente. Vou treinar meus ouvidos.
DAVE já se afasta do carro.
Sergio.
entendo
Não presta atenção na fala de
SERGIO
Cuidado com assaltos, Senhor O’HARA. (para si mesmo)
Que bobagem a minha. Os assaltantes é que tem que
tomar cuidado.
DAVE afasta-se, caminhando entre os transeuntes na movimentada
rua do centro do Rio.
PLANOS APROXIMADOS de pessoas comuns que circulam pela parte
antiga do centro do Rio, sem o glamour das imagens de cartões
postais.
Na TRILHA, volta Rio 40 Graus.
INT. QUARTO/CASA DE MIKE/COPACABANA – RIO.
Mike ainda está diante do laptop.
35
O monitor do laptop transforma-se na tela e VEMOS o que Mike
digita, com rapidez, anexando à mensagem as imagens captadas
com a conversa entre CONDE e Rubens:
Envio a você imagens que acabei de receber. O arquivo está
criptografado, para sua segurança. Veja esse material somente
quando estiver sozinha. Tranque as portas. É estarrecedor.
O namorado de meu amigo que adora vinho aparece prestando
contas ao chefe dele, que é o verdadeiro comandante do tráfico
de drogas no Rio.
A promotora Alice KUROSAWA está recebendo essa mensagem, bem
como as informações que já consegui apurar.
Estou saindo do Rio agora. Você vai entender por que. É certo
que minha extinção física foi determinada. Espero ter ajuda da
promotora e proteção da Polícia Federal.
Fique em paz. M.
Ele levanta-se, clica no mouse.
PONTO
DE
VISTA
DE
MIKE: VEMOS o e-mail da destinatária
com
cópia
oculta
para
Laura
([email protected]),
([email protected]).
MIKE fecha o laptop, junta algumas roupas numa mochila e sai o
mais rápido que consegue.
EXT. MANSÃO DE COSME VELHO/RIO DE JANEIRO – DIA.
O carro chega a uma bela mansão e estaciona em frente à porta.
Sergio desce primeiro e abre a porta para DAVE, que está
adorando ser tratado como VIP.
Sergio pega os itens
acompanhando DAVE.
da
bagagem
Imediatamente surge um empregado
porta e pega a bagagem de DAVE.
e
leva
até
uniformizado,
a
que
porta,
abre
MORDOMO
Boa tarde, senhor O’HARA. Seja bem-vindo. Boa tarde,
Sergio.
Sergio aponta o caminho para DAVE.
SERGIO
Por aqui, senhor. Boa tarde, Hermínio.
a
36
DAVE
Boa tarde, Hermínio.
O cumprimento de DAVE é caloroso. Hermínio, muito formal, fica
surpreso.
HERMÍNIO
(a Sergio)
Não se preocupe. Levo o senhor O’HARA até a suíte
dele.
SERGIO
Está certo. Boa estada, senhor O’HARA. Estarei aqui
à sua disposição.
Sergio sai e Hermínio conduz DAVE ao quarto dele, no segundo
pavimento da bela casa.
SEGUIMOS os dois, que sobem a escada. DAVE repara o bom gosto
da decoração e da construção da casa.
Obras de arte valiosas estão espalhadas por todo canto.
INT. SUÍTE/MANSÃO/COSME VELHO/RIO – DIA.
As janelas estão abertas, proporcionando uma bela vista para o
Pão de Açúcar. A mesa está posta para um lanche frugal.
HERMÍNIO
Tomei a liberdade de preparar um lanche para o
senhor. Não sei exatamente do que gosta, mas fiz o
possível para agradá-lo. Se faltar alguma coisa é só
apertar aquela campainha, certo?
DAVE
Está perfeito, Hermínio (recita o nome em português com
pronúncia perfeita). Muito obrigado por sua atenção.
HERMÍNIO
Não há de que. É meu trabalho. Boa tarde, senhor.
O mordomo sai. DAVE senta-se na cama espaçosa e dá um suspiro.
DAVE
Madeleine? DAVE. Quero mudar o voo de volta. Passe
para terça-feira à noite. Vou precisar de mais dois
dias. OKAY.
DAVE termina o telefonema e dá uma olhada para a mesa, cheia
de quitandas típicas do Rio.
37
O que chama a atenção dele é um bolo esverdeado, com alguns
morangos na superfície.
DAVE
Esse bolo parece uma delícia.
Come uma fatia de uma vez e aprova o sabor. Corta mais uma,
começa a comer e serve-se de suco de laranja.
Sem que ele percebesse, Laura entrou no quarto por uma porta
lateral da suíte.
É difícil reconhecer nela a advogada bem-sucedida: está
literalmente vestida como uma rainha egípcia e devidamente
maquiada, no estilo CLEÓPATRA que Liz Taylor celebrizou em
Hollywood.
A vestimenta é ricamente adornada, uma festa para os olhos.
Ela usa joias verdadeiras, impressionantes: é como se
Cleópatra tivesse saído diretamente dos livros de história e
se materializado naquela suíte.
Está descalça, pés com esmalte branco, como as mãos. Uma festa
para os olhos.
LAURA
Gostou do bolo? Fui eu que fiz.
DAVE vira-se e olha surpreso para Laura.
DAVE
Impressionante. CLEOPATRA THEA PHILOPATOR, filha
ÍSIS, senhora do Sol e da Lua, mãe do Alto e
Baixo Egito, filha de Ptolomeu, o Flautista.
incrível! (Faz uma curvatura reverente) A que devo
honra, majestade?
de
do
É
a
Laura age como se fosse a própria CLEOPATRA.
LAURA
Ajoelhe-se, plebeu impertinente! Não lhe ensinaram a
respeitar uma rainha?
DAVE ajoelha-se.
DAVE
(sorrindo)
Mil perdões, majestade!
LAURA
38
Estás perdoado, ó plebeu! Mas somente de tiveres
adorado o bolo real.
DAVE caminha até a mesa e corta mais uma
rapidamente, tomando um mais um gole do suco.
DAVE
Isso é fácil. (acaba de engolir)
delicioso que já comi. De que é?
É
o
fatia.
bolo
Come
mais
LAURA
(senta-se na cama e cruza as pernas, teatral)
De trigo, naturalmente. Coma mais, plebeu! Pode ser
que assim eu poupe sua vida miserável!
DAVE dá uma risada gostosa. E serve-se de mais uma fatia, que
come tão rápido como as demais.
Laura abaixa-se e, debaixo da cama, puxa um balde em que há
uma garrafa de champanhe.
LAURA
O bolo vai ficar ainda mais saboroso se você tomar
um pouco disso aqui, plebeu.
DAVE dá mais uma risada sonora; PERCEBEMOS, então, que ele
está alterado.
DAVE
Agradeço
muito,
alteza.
alcóolica.
Mas
não
tomo
bebida
LAURA
E quem foi que disse que um plebeu ordinário como
você tem o direito de recusar o champanhe real? (Ela
serve champanhe numa taça) Beba imediatamente! E coma
mais um pedaço do bolo. Senão, calabouço!
DAVE ri de forma ainda mais exagerada. Corta mais uma fatia e
toma o champanhe de um gole só.
DAVE
Meu Deus! Eu era infeliz e não sabia! Isso é bom
demais!
DAVE vai rápido até o balde e serve
devagar, saboreando o sabor da bebida.
mais
um
LAURA
Você realmente nunca tomou bebida alcóolica?
copo.
Toma
39
DAVE
Por que o espanto?
LAURA
Isso é muito raro. Raríssimo!
DAVE serve mais uma taça. Mais uma risada.
DAVE
Acho que devo contar um pequeno segredo a você,
minha rainha. Mas antes quero a receita desse bolo
magistral. O que vai além de trigo?
LAURA
Segredo? Que segredo?
DAVE
(sorridente)
É uma troca. Eu dou o segredo, você dá a receita.
LAURA
Fechado, plebeu. O bolo é de haxixe.
DAVE
Haxixe?! Aquele negócio que parece maconha?
LAURA
O melhor haxixe do mundo, plebeu. Padrão holandês.
EXT. RUA SAINT ROMAIN/IPANEMA/RIO – DIA.
O táxi em que está Mike segue pela rua quando é fechado por
dois carros, de onde descem vários dos ‘seguranças’ do tráfico
na favela de Cantagalo.
Eles rendem o motorista e tiram Mike à força com carro. Um
deles volta e pega a mochila.
Colocam Mike no bagageiro de um dos carros e saem em alta
velocidade.
INT. SUÍTE/MANSÃO/COSME VELHO/RIO – ANOITECENDO.
VEMOS a passagem do tempo: está anoitecendo.
Na cama da suíte, debaixo dos lençóis, DAVE e Laura parecem
estar se divertindo muito.
Peças da roupa ‘real’ de Laura são lançadas para fora, ao
chão, uma a uma.
40
DAVE ri pra valer.
DAVE
Ei! Você realmente vai ficar nua?
LAURA
Estou
pensando
seriamente
nisso,
ordinário. Alguma coisa contra?
seu
plebeu
DAVE
(rindo muito)
Você é uma prostituta?
Ela bate no rosto dele, mais para fazer barulho do que para
machucar.
LAURA
Plebeu impertinente!
DAVE
(rindo muito)
Eu não tenho
prostitutas.
experiência
com
rainhas.
Nem
com
LAURA
Fora daqui eu tenho uma profissão, plebeu. Rainha só
nas horas vagas, e por diversão, não por dinheiro.
Entendeu?
DAVE
Impressionante. Mil perdões, minha rainha!Acho que
tem
alguém
aqui
que
vai
ter
uma
surpresa
desagradável.
LAURA
Será? Você tem o pinto muito pequeno? Deixe-me dar
uma conferida.
DAVE
Ei! Vamos com calma aí, senhora do Nilo!
LAURA
Hum, aqui tem coisa boa, plebeu. Trate de tirar a
calça rápido. Mal posso esperar para soltar essa
cobra enorme. E eu achando que era uma minhoquinha.
DAVE
O problema não é esse, alteza.
LAURA
Você é gay?
41
DAVE ri com vontade, até ficar com lágrimas nos olhos.
DAVE
Não exatamente.
Laura coloca a cabeça para fora. VEMOS que está com os seios
nus.
LAURA
Que raio de resposta é essa, plebeu? É gay ou não é?
DAVE levanta-se, vai até a mesa e come mais um pedaço de bolo.
Toma mais um gole em sua taça de champanhe e volta para a
cama.
DAVE
Nem uma coisa nem outra. Sexo não é uma coisa que
funcione para mim. Mas nunca senti falta.
LAURA
É impotente ou coisa assim?
Mais risadas.
DAVE
Coisa assim.
LAURA
Exatamente do que estamos falando aqui?
DAVE
Não tenho apetite sexual. Nunca tive.
LAURA
Jura?
DAVE
Não precisa fazer essa cara, minha rainha. Isso não
me afeta em nada. Não sinto falta de algo que não
conheço.
LAURA
Que desperdício, meu
psicólogo ver isso?
Deus.
Você
já
foi
a
um
DAVE
Não é preciso. Eu já sei. Estudei psicanálise para
entender o meu caso.
LAURA
42
Assim não vale. Você jamais vai ter isenção para
analisar a si mesmo.
DAVE
Confirmei meu diagnóstico com um camarada de alto
nível.
LAURA
E aí?
DAVE
Perdi minha mãe aos cinco anos, alteza. Substituí a
pulsão sexual por um interesse insaciável por
conhecimento. Chama-se sublimação. É simples assim.
LAURA
Simples que nada. Nunca ouvi falar disso.
DAVE
Eu
sou
cientista,
alteza.
Razoavelmente
sucedido. Nunca senti falta de sexo.
bem-
LAURA
Pois isso vai acabar agora. Vamos apostar?
DAVE
Não seria justo com você, alteza. Você não tem a
mínima chance de ganhar.
LAURA
Isso é problema meu. Topa ou não topa a aposta?
DAVE
Topo. O que está valendo?
LAURA
Se eu ganhar você vai comigo a um baile funk. Mas
antes disso quero esclarecer uma coisa. O segredo
que você mencionou é esse?
DAVE
Não. É outro.
LAURA
Uma aposta por cada vez, plebeu.
DAVE
Eu enganei as pessoas que trabalham nessa casa. Eles
acham que eu sou um assassino profissional.
43
Agora é a vez de Laura rir com vontade. Lágrimas aparecem no
rosto dela.
DAVE
O assassino verdadeiro morreu no avião, de um ataque
cardíaco. Estava ao meu lado, conversei com ele e eu
não resisti à tentação de saber como era a vida deum
matador.
LAURA
Você é maluco? Não tem ideia do que vai acontecer
quando esse pessoal descobrir que foi enganado?
Ela levanta-se de uma vez. Está inteiramente nua. Um corpo
estupendo, que DAVE contempla admirado (sem apetite sexual).
LAURA
Vamos embora daqui imediatamente!
DAVE
E a aposta? Nunca apostei tanto em minha vida!
LAURA
Você perdeu por usar falsidade ideológica. Fique
quietinho aqui e me espere. Vou trocar de roupa e já
volto.
DAVE
Fique à vontade, alteza. Vou comer mais bolo. Essa
conversa atrapalhou o efeito do bolo.
Essa é uma
forma muito engenhosa de consumir haxixe. Você é um
gênio. Vou levar o resto do bolo, posso?
LAURA
(já saindo pela porta lateral)
Autorização concedida, plebeu. Não demoro.
EXT. BECO NA FAVELA/CANTAGALO/RIO – ANOITECENDO.
Um carro (modelo simples, mais antigo) estaciona perto de uma casa
da favela.
Rubens sai do carro, apressado e entra no sobrado típico de
uma favela carioca.
Homens da ‘segurança’
fortemente protegida.
do
tráfico
INT. SOBRADO/CANTAGALO/RIO – NOITE.
cercam
a
casa,
que
é
44
Rubens entra
cadeira.
na
sala
e
vê
Alain
sentado
e
amarrado
numa
Ao lado dele, João Gordo, chefe do tráfico na favela.
Rubens observa que Alain está desacordado, mas sem sinais de
violência.
Um rapaz jovem está no canto, trabalhando no laptop de Mike.
JOÃO GORDO
Ninguém encostou a mão nele,
tranquilo.
Doutor.
Pode
ficar
RUBENS
Sei. (apontando o rapaz que trabalha no laptop) Quem é esse
aí?
JOÃO GORDO
É gente de confiança. Eu garanto o menino. Trabalha
para nós.
RUBENS
Saia menino.
Obediente, o rapaz sai. João Gordo parece contrariado.
RUBENS
Explicações, Gordo. Quero boas explicações.
JOÃO GORDO
Pegamos o jornalista tentando fugir.
RUBENS
Onde ele está?
JOÃO GORDO
(aponta uma porta)
Está ali dentro. Virou ‘presunto’ (gíria para cadáver).
RUBENS
Não era para matar o sujeito.
JOÃO GORDO
Não foi de propósito. Ele tentou fugir e a gente não
teve alternativa.
RUBENS
Desde quando é você que decide isso?
JOÃO GORDO
45
Antes de morrer ele contou que mandou umas filmagens
para sua sócia no escritório.
Rubens fica atento.
RUBENS
Que filmagens?
JOÃO GORDO
Você ‘prestando contas’ (ele enfatiza) a outro
sujeito. Hoje de manhã. Sua sócia colocou uma câmara
na gravata do sujeito com quem você se reuniu. Ele
não aparece. Só você, doutor.
RUBENS
Você viu a filmagem?
JOÃO GORDO
Não. Meu menino estava tentando abrir a porra do
arquivo. Está mais trancado do que cofre do Banco
Central.
RUBENS
Alguém mais ouviu o que ele disse?
JOÃO GORDO
Só eu e o meu secretário, Peruca. O menino não sabe
de nada, mas leu a mensagem do jornalista para a
sócia do doutor.
Rubens observa a tela do laptop e vê que uma mensagem está na
tela.
RUBENS
É aquela?
JOÃO GORDO
É.
RUBENS
(apontando Alain)
E esse aqui?
JOÃO GORDO
Dei uma coisinha pra ele dormir até sua chegada.
Ninguém encostou a mão nele.
RUBENS
Acabe com seu secretário.
46
João Gordo dá uns passos e abre a porta. Rubens se aproxima e
vê os corpos de Peruca e Mike (com sangue nas costas e sinais de
tortura).
RUBENS
Acabe com o garoto do micro.
JOÃO GORDO
Canarinho!
O rapaz que trabalhava no laptop de Mike entra.
CANARINHO
Posso voltar ao trabalho?
João Gordo saca a automática com rapidez e atira na cabeça do
rapaz, que morre na hora.
Ato contínuo, Rubens saca um revólver 38 e atira em João
Gordo, que também morre na hora.
Um ‘segurança’
empunhada.
entra
logo
depois,
com
uma
submetralhadora
RUBENS
Calma. O menino e João Gordo se mataram. Tudo bem
aqui. Pode sair.
O ‘segurança’ faz menção de sair.
RUBENS
Fernando.
FERNANDO
Sim, doutor.
RUBENS
Você fica no lugar do Gordo.
FERNANDO
Obrigado pela confiança, doutor. O senhor não vai se
arrepender.
O novo chefe do tráfico em Cantagalo sai, quase explodindo de
alegria.
Rubens confirma que Alain dorme profundamente, vai até o
laptop, lê a mensagem, confirma que o arquivo anexado está
criptografado e tecla um número no celular.
EXT. RUA DE COSME VELHO/RIO – NOITE.
47
Numa HARLEY&DAVIDSON modelo clássico, de guidon alto, VEMOS
DAVE na garupa da moto, sem capacete.
Quem conduz a moto é uma pessoa com traje preto de couro,
capacete negro também.
A motocicleta sai da casa devagar
gasolina, parando para abastecer.
e
entra
num
posto
de
O condutor da moto tira o capacete e reconhecemos Laura. Ela
está com uma pequena mochila presa às costas.
A bagagem que DAVE trouxe do Canadá está na moto: parte entre
ele e Laura e parte atada ao pequeno bagageiro da moto.
Um carro negro para com intenção de fazer a conversão e virar
à direita, para entrar na casa em que Laura e DAVE estavam.
Ela reconhece o MERCEDEZ-BENS do escritório.
O vidro está abaixado: VEMOS Rubens, no PONTO DE VISTA de
Laura, no banco de trás.
Ela observa que dois carros acompanham o Mercedes-Benz.
LAURA
(apontando para Rubens)
Você conhece aquele homem?
DAVE
Não, minha rainha. Nunca vi. Quem é?
LAURA
Acho que foi ele quem contratou seu amigo do avião.
DAVE
É o mesmo sujeito que contratou você?
LAURA
É. Depois te conto essa estória, plebeu. Agora a
gente vai se divertir.
EXT. RUAS/AVENIDAS/IPANEMA – NOITE.
A HARLEY&DAVIDSON de Laura avança devagar pela orla marítima
do Rio.
DAVE está na garupa dela, sem capacete.
Ele dá gritos de prazer com o passeio.
48
Na trilha sonora, GAROTA NACIONAL, da banda brasileira SKANK
(http://youtu.be/DjPtwYunRq4)
Chegam a um prédio pequeno e entram pela garagem.
INT. GARAGEM/PRÉDIO PEQUENO/IPANEMA – NOITE.
Carregando a bagagem de DAVE na mão, eles caminham até o
elevador e entram.
VAMOS COM ELES NO ELEVADOR.
LAURA
É só o tempo de trocar de roupa. Quer ficar aqui?
DAVE
Minha assistente fez reserva
favela chamada Cantagalo.
numa
pousada.
Numa
LAURA
Aqui é melhor.
DAVE
Quero conhecer uma favela.
LAURA
Deixe isso comigo, plebeu. Você vai ter sua favela e
não vai demorar.
O elevador para.
INT. SALA/APARTAMENTO CONDE/AV. VIEIRA SOUTO – NOITE.
Rubens está servindo um uísque. O conde está tenso.
CONDE
Eu avisei a você que esse namoro com aquela bicha
francesa iria dar merda. Quantas vezes eu avisei,
seu monte de merda?!
RUBENS
(cabisbaixo)
Não precisa humilhar, conde. (pausa) Sem ele a gente
nunca saberia o que aquele jornalista estava
fazendo.
CONDE
E do que adiantou a gente saber?
RUBENS
49
O arquivo está criptografado. Dá tempo de dar um
jeito na japa.
CONDE
Não sei quanto tempo. Vá falar com o nosso amigo
canadense. Agora mesmo. Resolva esse negócio hoje à
noite mesmo.
RUBENS
(tomando o uísque de um gole só)
E Laura? O que a gente vai fazer com ela, conde?
CONDE
Diga você.
RUBENS
Não tem outro jeito.
CONDE
Você é que vai dar a notícia pra mãe dela. Não estou
com saco para drama de novela mexicana.
RUBENS
Eu dou. E o jornalista?
CONDE
Mande sumir com o corpo.
RUBENS
Pode ficar tranquilo, conde. O filho da puta não
mandou
nada
para
o
jornal.
Alain
acompanhou
diariamente tudo que ele andou enviando para Nova
York.
CONDE
Sou um poço de tranquilidade. Se essa merda vazar
você é quem vai pagar o pato. Eu não apareço na
gravação, já que a câmera estava comigo.
RUBENS
Vão identificar você. Não há outro conde no Rio.
CONDE
Nisso é possível dar um jeito. Pode ser apelido de
um marginal. Mas quem vai assumir a merda é você,
claro. Mas agora não é hora de pensar nisso. Vá logo
cuidar de Laura.
O celular de Rubens vibra. Rubens confere o número de quem
está chamando.
50
RUBENS
Só um minuto. É de Toronto.
O Conde serve um uísque para ele e vai até a sacada.
PONTO DE VISTA do Conde: uma vista monumental da orla da praia
de Ipanema.
Ele olha para Rubens, que parece surpreendido com o que ouviu.
Rubens se aproxima.
RUBENS
Não estou entendendo mais nada.
CONDE
O que foi agora?
RUBENS
O sujeito morreu no voo para o Rio.
CONDE
Que sujeito?
RUBENS
O nosso canadense. Chegou morto ao Galeão. Eu não
entendo mais nada.
CONDE
Só me faltava essa. E quem é o cara que está na casa
de Cosme Velho?
Não tenho
descobrir.
a
RUBENS
menor ideia,
conde.
Vou
lá
agora
CONDE
Leve gente do Gordo com você. Entre em contato com a
companhia aérea. Descubra quem sentou perto do
canadense. Mexa esse rabo gay, rapaz. Suma daqui!
INT. GARAGEM/PRÉDIO PEQUENO/IPANEMA – NOITE.
DAVE e Laura
garagem.
acabam
de
sair
pelo
elevador,
entrando
na
Ela veste um vestidinho bem curto e usa uma sandália de salto
alto.
DAVE também trocou de roupa; está elegante, como sempre.
51
DAVE
Você está linda, alteza.
LAURA
Você também. A cobra deu sinal?
DAVE ri.
DAVE
Não deu e nem vai dar, alteza. (Ele tosse)
LAURA
A garganta fica irritada mesmo. É normal.
DAVE
É bem melhor comer do que fumar.
LAURA
Depois do baile tenho uma surpresa pra você.
DAVE
Ainda não desistiu?
LAURA
Essa palavra não existe em meu dicionário. (aproximase dele e dá um beijo carinhoso) Plebeu.
Os dois se encaminham para uma camionete, modelo esportivo,
nacional, que está ao lado da moto.
VEMOS um bagageiro com chave logo atrás da cabine.
EXT. FAVELA DA ROCINHA/ZONA SUL/RIO – NOITE.
A camionete de Laura está entrando na favela da Rocinha, a
maior do Rio.
DAVE olha para tudo, admirando a paisagem, fascinado.
Laura estaciona a camionete num lugar que parece perto de
enorme galpão, que é onde vai ser o baile funk tradicional na
favela.
Ao fundo, OUVIMOS a zoeira do funk.
Os descem do carro. Muita gente jovem, mulheres de vestidos
bem curtos, seios contidos com dificuldade.
DAVE faz um grande sucesso, chamando atenção das brasileiras.
Laura responde olhando de cara fechada, delimitando o terreno,
apresentando-se como acompanhante dele.
52
EXT. BILHETERIA/BAILE FUNK/ROCINHA – NOITE.
Os dois aguardam na fila. Tudo é bem simples.
DAVE
Adorei a surpresa, alteza. Mal posso esperar para
entrar.
LAURA
Você gosta de dançar?
DAVE
Adoro. Mas nunca experimentei esse tipo de música.
LAURA
É o funk carioca, plebeu. Não se assuste se as
meninas se esfregarem em você. Lá dentro pode. Aqui
não. Entendeu?
DAVE
Impressionante.
LAURA
É bom ir se acostumando com a ideia, plebeu. Você é
meu.
DAVE
Você está pensando me transformar em seu gigolô ou
algo assim, alteza?
LAURA
Você gosta da ideia?
DAVE
É um tanto exótico para um cientista. Você faria
bolo de haxixe para mim todo dia?
LAURA
Pode contar com isso, plebeu.
DAVE
Já se esqueceu daquele pequeno problema?
LAURA
Não existe pequeno problema quando a cobra é grande
como a sua. Nós vamos resolver isso hoje, plebeu.
Prepare-se para a melhor noite de sua vida, querido.
DAVE
Seu otimismo é comovente, alteza.
53
Eles entram no corredor de acesso ao galpão.
SEGUIMOS COM OS dois descendo um lance de escada, num pequeno
corredor e COM ELES CHEGAMOS à pista de dança.
Na trilha sonora o som do funk carioca, ao vivo.
INT. PISTA DO BAILE FUNK/ROCINHA – NOITE.
DAVE e Laura dançam com alegria, envolvidos
alucinante da música em altíssimo volume.
Muitos casais
erótica.
se
beijam,
a
dança
é
sensual,
pelo
ritmo
extremamente
As mulheres partem para cima dos homens, beijam mais de um na
sequência: coisa comum nesses bailes.
Um casal faz sexo na pista: a mulher de vestido muito curto,
sem calcinha. Ninguém dá importância.
Outros fumam crack, droga
preocupação com a polícia.
comum
nas
favelas,
sem
qualquer
DAVE é abordado por mais de uma e aceita os beijos, sem muito
entusiasmo na resposta, mas aceita.
De vez em quando, Laura se aproxima e dá um pequeno empurrão
numa dançarina mais afoita.
Depois de muita dança, Laura percebe que o telefone celular
está vibrando; o aparelho está dentro uma minúscula bolsa que
ela leva presa à cintura.
Ela para de dançar e atende, mesmo com o barulho infernal.
PERCEBEMOS que é impossível ouvir qualquer coisa: ela avisa a
DAVE que precisa sair.
Os dois saem
desceram.
da
pista
e
depois
sobem
a
escada
que
antes
INT. SALA DE ESTAR/APTO DO CONDE/IPANEMA – NOITE.
O conde lê um livro, auxiliado pela luz indireta de um abajur.
A mulher dele chega com uma bandeja: café e biscoitos.
CONDE
Obrigado, querida.
54
BERNADETE
Não há de quê, meu bem.
O celular dele vibra em cima da mesa onde Bernadete colocou a
bandeja.
O conde toma um gole do café e olha quem está chamando.
Atende: é Rubens. O conde olha em volta e não vê ninguém por
perto.
CONDE
Luiz
Francisco.
Encontrou
Laura?
insistindo. Uma hora ela tem que atender.
Continue
VEMOS que Bernadete está escondida, ouvindo a conversa dele.
CONDE
Mande alguém naquele apartamentinho dela. Claro.
(pausa) O quê? Localize a cafetina e ache a moça. O
sujeito deve estar com ela. Ligou na companhia
aérea? HOOPER? Tem certeza? Você acredita em Papai
Noel? Coincidência uma merda!
O celular de Bernadete toca e o conde percebe que ela estava
ouvindo a conversa, escondida.
Ele
levanta-se,
surpreende.
continua
conversando
normalmente
e
a
CONDE
Consiga umas fotos dele e vá direto ao governador.
Quando a polícia quer, pega qualquer um bem rápido.
Monte uma operação de guerra se for preciso, mas
ache aqueles dois de qualquer jeito! Ela também,
imbecil! Coloque gente seguindo a japa 24h e
grampeie todos os telefones dela. Se ela conseguir
abrir o arquivo você está perdido, Rubinho. É seu
rabo que está em jogo!
Ao terminar de falar o conde está diante de Bernadete, que
desligou o celular sem atender e está paralisada de medo do
marido.
EXT. GALPÃO/BAILE FUNK/ROCINHA/ZONA SUL/RIO – NOITE.
DAVE e Laura estão do lado de fora, onde é possível conversar
ao telefone.
Ela está teclando um número.
55
LAURA
Era minha mãe. E agora não atende. Estranho isso.
DAVE
Não estamos com pressa. Vamos tomar água?
LAURA
Quero dar uma olhada em minha caixa postal antes.
Pode ser?
DAVE
OKAY. Vou lá buscar a água. Fique à vontade, minha
rainha.
LAURA
Você é um amor de plebeu. (Dá um beijo carinhoso nos
lábios dele) Gracinha.
DAVE se afasta e Laura olha para a tela de seu celular. Vê a
mensagem enviada por Mike e quase desfalece.
LAURA
Meu Deus! Não é possível. Não pode ser.
Relê a mensagem. Tecla outro número.
LAURA
Alain? Laura. Você pode falar? (pausa) Desculpe ligar
a essa hora, querido. Por quê? Alô? Alain?!
DAVE se aproxima com uma garrafa de água.
DAVE
Você está pálida, minha rainha. Está passando bem?
Algum problema?
Laura começa a chorar.
DAVE
O que aconteceu, alteza? Algum problema com sua mãe?
Vamos sair
daqui.
LAURA
daqui. Vamos
embora.
Precisamos
sair
Ela puxa DAVE pela mão.
INT. QUARTO DO CONDE/APTO/IPANEMA/RIO – NOITE.
O conde está sentado diante de Bernadete, com o celular de
Bernadete na mão.
56
Verifica se ela fez alguma ligação recente.
CONDE
Exatamente o que você falou com Laura, Bernadete?
BERNADETE
Pelo amor de Deus, Luiz Francisco, ela é sua filha.
CONDE
Responda.
BERNADETE
Eu não falei nada. Juro por Deus. Não deu tempo.
CONDE
Eu não queria isso, Bernadete. Deus sabe que eu não
queria.
BERNADETE
Pelo que existe de mais sagrado no mundo, Luiz
Francisco. Não faça uma coisa dessas com sua filha.
CONDE
Ela se meteu aonde não devia e agora não há outro
jeito. Quem mandou seguir aquele jornalista de
merda?
BERNADETE
O culpado é ele, Luiz Francisco. Só ele. (chorando)
CONDE
Sabe o que ele fez? O filho da puta mandou o
material para aquela promotora japa. E quem colocou
aquela câmera foi minha própria filha. Foi Laura,
meu bem.
Bernadete recompõe-se.
BERNADETE
Tem certeza?
CONDE
(mostra o prendedor de gravata)
Aqui está a maldita câmera.
BERNADETE
E se você mandar Laura para o exterior?
CONDE
Ela não é mais criança, Bernadete. Não iria adiantar.
57
BERNADETE
Tem que haver um jeito, Luiz Francisco.
CONDE
Infelizmente não vejo outra solução, meu bem.
BERNADETE
Você promete que ela não vai sofrer?
CONDE
Garanto que não, meu bem. Ela é nossa filha.
Bernadete volta a chorar.
EXT. FAVELA DA ROCINHA/ZONA SUL/RIO – NOITE.
A camionete de Laura está se dirigindo para fora da favela,
quando para, repentinamente.
INT. CAMIONETE/FAVELA DA ROCINHA/RIO – NOITE.
Laura abre a porta da camionete.
LAURA
Você se incomoda em dirigir?
DAVE
Nem um pouco, alteza.
Ela sai e DAVE ocupa o lugar dela, que entra pela porta do
carona.
DAVE dá a partida e sai.
LAURA
Fique tranquilo que eu te oriento.
DAVE
Para onde vamos?
LAURA
Para meu apartamento. Vamos lá pegar suas coisas.
DAVE
Não vou mais ser seu hóspede?
LAURA
Mudei de ideia, se você não se importa.
DAVE
58
Claro que não.
LAURA
Pegue a primeira à esquerda.
DAVE
Eu memorizei o caminho.
LAURA
Ótimo. Mas antes dê uma parada, por favor.
DAVE para a camionete.
Laura abre o porta-luvas do carro e tira material para cheirar
três carreiras de cocaína.
Curioso, DAVE observa.
DAVE
Impressionante.
LAURA
Quer?
Ela cheira a primeira carreira.
DAVE
Obrigado, alteza. Não tenho vontade de experimentar
drogas químicas ou injetáveis.
LAURA
Melhor. Eu não faço isso sempre. Quer um cigarro de
haxixe?
Laura cheira a segunda carreira.
DAVE
Não se for continuar dirigindo.
LAURA
Qual é o endereço de seu hotel? Cantagalo é uma
favela enorme.
DAVE
Não peguei o endereço. Vou ligar para Madeleine.
Laura cheira a terceira fileira.
LAURA
Quem é essa?
59
DAVE
Minha assistente.
LAURA
Vamos trocar de lugar. Já estou pronta para dirigir.
Trocam de lugar mais uma vez. Ela dá a ele um cigarro de
haxixe e um isqueiro.
DAVE
Não é perigoso fazer isso aqui?
LAURA
Na Rocinha? Esqueça.
DAVE pega seu celular e tecla o número de Madeleine, depois de
tragar a primeira vez.
DAVE
MADDY? Sou eu. Tudo bem. Ótimo. Mande o endereço por
SMS. Como? Mike ligou? Não, claro que não. Pode
fornecer meu celular também.
DAVE desliga.
DAVE
Muito estranho ele ter ligado. Nunca fez isso.
LAURA
Quem?
DAVE
Meu pai biológico. Ele mora aqui no Rio.
Laura freia bruscamente o carro. Não
segurança os dois teriam se machucado.
fosse
o
cinto
LAURA
Qual é o nome dele?
DAVE
Vá com calma, alteza.
Pelo amor
HOOPER.
de
LAURA
Deus me
DAVE
Você conhece Mike?
diga
que
você
não
é
DAVE
de
60
Laura suspira profundamente. Dave para de fumar, joga fora o
cigarro de haxixe.
Você está
dirigir.
DAVE
pálida como
um
cadáver.
É
melhor
eu
Laura respira devagar, profundamente.
LAURA
Não. Minha pressão caiu. Já está melhorando. Vou
ficar bem.
DAVE
Quem é você, afinal de contas? De onde conhece Mike?
LAURA
É uma estória longa. Vamos a um lugar tranquilo. Vou
contar tudo a você.
DAVE
(firme)
Não vai dar para esperar, alteza. Preciso saber o
que está acontecendo. Por favor, alteza.
LAURA
Não foi Mike quem ligou para sua assistente no
Canadá. Não sei quem ligou, mas com certeza, Mike
não foi.
DAVE
E como é que você sabe quem não foi ele?
LAURA
Lamento muito ter que dizer isso a você, mas Mike
está morto.
DAVE
Morto? Você está enganada. Eu vim falar com Mike.
Laura liga a partida do carro e começa a dirigir.
LAURA
Tentei falar com ele agora há pouco. Os traficantes
mataram Mike, querido. Ele estava fazendo uma
reportagem sobre tráfico de drogas no Rio.
DAVE
Quando ele morreu?
LAURA
61
Ontem.
DAVE
Sei. (pausa) E como é que você soube disso?
LAURA
Eu fui namorada dele.
DAVE fica pensativo. Não está exatamente emocionado, apenas
intrigado.
DAVE
Pare o carro. Vamos conversar com calma. (pausa) E
quem era aquele sujeito que chegou naquela casa?
Laura para e estaciona a camionete.
LAURA
Meu sócio.
DAVE
Sócio? Seu gigolô?
LAURA
Não. Meu sócio no escritório de advocacia.
DAVE
Você é advogada?
LAURA
Sou. Meu escritório é o maior do Rio.
DAVE
Por que você... (é interrompido)
LAURA
Para magoar meu pai. Sou muito rica, não preciso daquilo.
DAVE
O que houve entre você e seu pai?
LAURA
Fui abusada. Sexualmente abusada até os 16 anos.
DAVE
Não sei o que dizer. Terrível, triste demais.
LAURA
Quando eu cresci ele perdeu o interesse por mim.
Gosta só de garotinhas.
62
DAVE
Uma monstruosidade, minha rainha. Tenho dificuldade
para compreender algo tão monstruoso.
LAURA
Mike sabia disso?
LAURA
Sabia.
DAVE
O que seu sócio foi fazer naquela casa?
LAURA
Ele contratou os serviços de uma prostituta. Não
sabia que era eu. Iria aparecer lá cedo ou tarde.
DAVE
Escoltado por homens armados? Aquilo não era uma
visita social.
LAURA
Ele foi atrás do sujeito que você substituiu. Não de
você.
DAVE
Ele levou aqueles homens para mim mesmo, alteza.
LAURA
Ele não conhece você, plebeu.
DAVE
Descobriram que o sujeito que esperavam estava
morto. Chegaram a mim, com certeza. Foram eles que
ligaram para Madeleine.
LAURA
Como conseguiram chegar a você?
DAVE
Na companhia aérea. Tenho HOOPER no nome.
LAURA
Você tem que sair do Rio imediatamente, plebeu. Meu
pai controla a polícia. Vão achar você. É questão de
tempo.
DAVE
Traficantes tem tanto poder assim aqui no Rio?
LAURA
63
Meu pai não é um traficante comum, plebeu. É da alta
sociedade, de família aristocrática. Mike descobriu
e me mandou uma mensagem.
DAVE
Seu pai é uma espécie de bon vivant?
LAURA
Pelo contrário. Trabalha 20h por dia. É dono de uma
rede de jornais e revistas, incluindo o maior jornal
do Brasil. Herdou um titulo de nobreza, da antiga
realeza que veio de Portugal.
DAVE
Uma mistura do príncipe Phillip, com Ruppert Murdoch
e Pablo Escobar. Impressionante.
LAURA
Ele era só um título falido, aí se casou com minha
mãe e enriqueceu de novo.
DAVE
Sua mãe sabe dos abusos que você sofreu?
LAURA
Sabe.
DAVE
E nunca fez nada para denunciar seu pai?
LAURA
Minha mãe é de uma das famílias mais tradicionais do
Rio de Janeiro. Jamais colocaria o nome da família
no noticiário policial.
DAVE
Impressionante.
LAURA
Se você falar ‘impressionante’ de novo vai ficar sem
metade da cobra.
DAVE
Você acha que seu pai mandaria matar você?
LAURA
Estou contando com isso, plebeu. Estamos marcados
para morrer, plebeu.
DAVE
Isso não parece incomodar você.
LAURA
64
Eu me preparei para esse momento desde que tinha
oito anos de idade.
DAVE
Não tem medo?
LAURA
Muito. Você não?
DAVE
Ainda não parei para pensar nisso.
LAURA
Você não parece alguém que está com a cabeça a
prêmio. Nesse momento a polícia e todo o crime
organizado do Rio estão atrás de você.
DAVE
A polícia também?
LAURA
Meu pai controla o governador, que controla
polícia. Isso não preocupa você, plebeu?
Acho
tudo
DAVE
isso (...)
(olha para Laura, que
expressão ameaçadora para ele) (...) emocionante
faz
a
uma
demais.
Essa adrenalina é deliciosa.
LAURA
Você é completamente doido, plebeu. Não tem medo de
morrer?
DAVE
Nem de viver. O que você pretende fazer?
LAURA
Não pretendo ficar de braços cruzados. Vou acabar
com
ele
antes
que
ele
perceba
o
que
está
acontecendo.
DAVE
Conte comigo, minha rainha.
LAURA
Você é um amor, plebeu. Mas não sabe mesmo atirar?
Nem um tiro bem pequenininho, assim... praticamente
invisível a olho nu?
DAVE
65
Nada. Sou uma nulidade na área de assassinatos em
série.
LAURA
Se pelo menos a cobra fosse venenosa.
DAVE
Voltamos à cobra, alteza?
LAURA
Foi só uma brincadeira boba. Isso agora não tem mais
nenhuma importância.
DAVE
Humor é bom para relaxar. Mas (...) o que vamos
fazer agora?
LAURA
Agora nada. Vamos passar a noite num lugar
tranquilo. Colocar a cabeça em ordem. Raciocinar.
Amanhã vai ser outro dia.
DAVE coloca a mão dele sobre a dela. Olham-se com carinho.
EXT. EDIFÍCIO-SEDE DA POLÍCIA FEDERAL/CENTRO/RIO – NOITE.
Só uma sala está com a luz acessa.
INT. SALA/COMBATE A CRIMES INTERNET/SEDE – NOITE.
Três homens trabalhando em microcomputadores. Um deles tem
aparência NERD, é muito jovem.
Toca o telefone na mesa dele.
MAURO
Mauro.
VOZ DE ALICE
(em OFF)
Alguma novidade, Maurinho?
MAURO
Nenhuma doutora. Esse tipo de código é muito difícil
de decifrar.
VOZ DE ALICE
(em OFF)
Está certo. Você me avisa assim que abrir o arquivo?
MAURO
66
A grana está de pé?
VOZ DE ALICE
(em OFF)
Acabei de aumentar para 30 mil. Se você conseguir em
meio dia.
CORTA PARA
VEMOS um gravador.
A imagem se expande e identificamos um homem com fones de
ouvido.
VOZ DE MAURO
(em OFF)
Não existe milagre em tecnologia, doutora. Vou levar
pelo menos uma semana nesse serviço. E não garanto
que vou conseguir abrir o arquivo.
VOZ DE ALICE
(em OFF)
Está certo. Trinta mil. Dólares.
OUVIMOS o click de um telefone fixo que é desligado.
EXT. PRAIA DESERTA/RIO DE JANEIRO – NOITE.
A camionete de Laura está numa praia deserta.
Uma noite sem nuvens, de céu estrelado. Um clima agradável,
propício para um banho de mar.
Os dois descem da camionete.
LAURA
Esse é o meu paraíso particular. Estou investindo
para fazer um loteamento.
DAVE
É um paraíso mesmo, alteza. Vamos dar uma volta?
LAURA
Foi para isso que trouxe você aqui, plebeu.
Laura começa a tirar a roupa. DAVE fica maravilhado com a
ousadia dela, que num piscar de olhos está nua.
DAVE
Isso aqui é um campo de nudismo?
LAURA
67
Agora é. Venha, dê um pouco de ar para sua anaconda.
DAVE
Eu não fico à vontade. Pode chegar alguém.
Laura já está inteiramente nua.
Dá a volta e vai até o bagageiro da camionete.
Pega uma bola de futebol e começa a brincar com ela, chutandoa com os pés, como fazem os craques de futebol.
DAVE observa como é notável a habilidade dela com os pés: a
bola nunca vai ao chão, sendo chutada para cima repetidas
vezes.
Ele está maravilhado.
LAURA
Relaxe, plebeu. Não vai aparecer ninguém. A praia é
particular.
DAVE
Ei! Você é boa nisso, alteza.
LAURA
Não quer aprender? É fácil.
Na trilha sonora começam os acordes de guitarras em “É uma
partida de futebol”, com a banda brasileira de rock SKANK.
(https://www.youtube.com/watch?v=4gqeHu7r5dQ)
Ela dá um chute mais forte, jogando a bola longe e corre atrás
dela.
DAVE despe-se rapidamente e corre atrás dela, inteiramente à
vontade.
Os dois começam a trocar passes.
DAVE
adquire
habilidade.
segurança
aos
poucos,
revelando
alguma
As imagens dos dois brincando com a bola (ela ensina a ele como
dominar
a
bola),
simulando
uma
partida
de
futebol
são
intercaladas com imagens da torcida numa arena de futebol, num
jogo de verdade.
EXT. PRÉDIO DA POLÍCIA FEDERAL/CENTRO/RIO – NOITE.
68
Mauro, o técnico em informática que está trabalhando para a
promotora ALICE, está saindo do trabalho.
Entre um bocejo e outro, ele caminha na direção de seu carro,
quando uma moto aproxima-se e o piloto dá dois tiros nele,
afastando-se rapidamente.
Um homem sai do prédio e corre na direção de Mauro, que parece
muito ferido.
EXT. PRAIA/RIO DE JANEIRO – NOITE.
DAVE e Laura estão dormindo na carroceria da camionete. Estão
nus, abraçados.
INT. SALA/COMBATE A CRIMES INTERNET/SEDE DA PF/CENTRO – NOITE.
O telefone toca e um funcionário atende.
VOZ DE JÚLIA
(em OFF)
Mauro?
FUNCIONÁRIO
Não. Quem quer falar com ele?
VOZ DE JÚLIA
(em OFF)
Alice KUROSAWA. Sou promotora de Justiça.
FUNCIONÁRIO
Mauro está no hospital, doutora. Atiraram nele há
menos de uma hora.
VOZ DE JÚLIA
(em OFF)
Que pena. E como ele está?
FUNCIONÁRIO
O estado dele não é dos melhores, mas parece que vai
escapar.
VOZ DE JÚLIA
(em OFF)
Eu espero que sim. Ele é ótima pessoa. Obrigado.
O funcionário desliga o telefone e volta ao trabalho.
EXT. PRAIA DESERTA/RIO DE JANEIRO – AMANHECER.
A camionete de Laura segue por uma estrada vicinal, de terra.
69
O sol está nascendo.
DAVE no volante.
Laura termina de digitar uma mensagem SMS no celular e acende
um cigarro de haxixe.
LAURA
Não me dou bem com ALICE, mas não tenho dúvida de
que ela é honesta. Nela dá para confiar, plebeu.
DAVE
Qual é seu problema com ela?
Laura interrompe suas falas algumas vezes, para tragar.
LAURA
Pessoal, nenhum. Mas tirei da cadeia algumas pessoas
que ela queria condenar.
DAVE
Só isso?
LAURA
Sabe como ela é chamada no fórum? Pittbull japonês.
Assim. No masculino mesmo.
DAVE
Impressionante. Ela é combativa?
LAURA
Combativa sou eu. Ela é obsessiva. Quando pega no
pescoço de alguém não larga de jeito nenhum.
DAVE
Você acha que ela vai pegar no pescoço de seu pai?
LAURA
Essa é a nossa sorte, plebeu. Ela tem ódio mortal de
meu pai. Ela faz qualquer coisa para botar o filho
da puta em cana.
DAVE
É pessoal?
LAURA
Tudo para ela é pessoal, plebeu. Meu pai teve uma
amante há alguns anos. Uma jornalista. Linda a moça,
Maria. Vinte e um anos, recém-formada, uma ninfeta.
Meu pai enlouqueceu com a menina.
70
DAVE
E onde entra a promotora pittbull?
LAURA
Relaxe, plebeu. Quer mais um pouco de erva?
DAVE
Não. Obrigado. Fiquei com a garganta irritada.
LAURA
A menina quis largar meu pai e o conde não costuma
aceitar um pé na bunda.
CORTA PARA
Numa cavalariça, VEMOS o conde, mais novo alguns anos,
correndo atrás de uma mulher jovem (MARIA) e atirando nela, nas
costas.
A mulher cai e ele se aproxima bem perto, atirando duas vezes
na cabeça dela.
CLOSE-UP de Maria, indefesa, ferida.
VOLTAMOS À CAMIONETE.
DAVE
(coloca uma mão sobre a mão de Laura)
Seu pai não é um ser humano normal. Não pode ser
minha rainha.
LAURA
Meu pai comprou todo mundo. É réu confesso, mas
nunca passou um único dia atrás das grades.
DAVE
Ele confessou e ainda assim não foi preso?
LAURA
Só por três horas. Habeas Corpus.
DAVE
Não entendo como isso é possível.
LAURA
Aqui as leis existem para serem burladas, plebeu. Só
pobre vai para a cadeia nesse país. Quem pode pagar
um advogado razoavelmente bom jamais vê o sol nascer
quadrado.
DAVE
71
Impressionante. E sua amiga pittbull não se conforma
com isso.
LAURA
Bingo. Alice não convive muito bem com a impunidade.
É uma promotora pouco heterodoxa. Fabrica provas,
corrompe, faz qualquer coisa para botar as mãos em
um criminoso impune. Vai perseguir meu pai até o
último suspiro.
CORTA PARA
EXT. AV. VIEIRA SOUTO/IPANEMA/RIO – AMANHECER.
O carro de ALICE para ao lado de um furgão. Ela desce e entra
na parte de trás do furgão.
INT. FURGÃO – AMANHECER.
Os dois policiais que trabalham com Alice, TOURINHO E MATTOS –
vestidos de preto, com o rosto parcialmente coberto –,
aguardavam a promotora na parte de trás do furgão.
ALICE
Tudo certo?
TOURINHO
Tudo, doutora. Daqui a pouco o porteiro dá o sinal e
nós entramos.
ALICE
E os seguranças dele?
TOURINHO
Ficam sempre de fora. Foram proibidos de entrar na
garagem.
ALICE
E o motorista dele?
MATTOS
Não tem. O homem faz questão de dirigir.
ALICE
Vai ser fácil então. Não quero erros. Levem o filho
da mãe para o Ninho da Águia. Bom trabalho,
crianças.
Alice sai.
VOLTAMOS À ESTRADA VICINAL:
DAVE e Laura continuam na camionete.
72
DAVE
Alice já sabe que é seu pai que controla o tráfico
de drogas?
LAURA
Eu acho que não. Só sabe que eu sei quem é. Mike
mandou as provas para ela, mas o arquivo com as
imagens que incriminam meu pai está criptografado.
DAVE
Mike conseguiu filmar seu pai na favela?
LAURA
Não exatamente. Mas a prova é boa se for apresentada
junto com meu depoimento. Mas antes ela tem que
conseguir abrir o arquivo, coisa que ainda não fez.
DAVE
É uma prática usual do New York Times para proteger
seus repórteres.
Laura dá um trago ainda mais lento do que os demais.
LAURA
Pelo visto não adiantou muito. Como é que você sabe
disso?
DAVE
O jornal me contratou para fazer esse tipo de coisa.
Ninguém vai conseguir abrir o arquivo. Só eu
consigo.
LAURA
Você não é psicanalista?
Não. Estudei
disse a você.
DAVE
psicanálise,
mas
sou
físico.
Eu
já
LAURA
Não prestei atenção, plebeu. Desculpe.
DAVE
Tudo bem. Como é que tem tanta certeza de que Mike
morreu?
EXT. FAVELA DE CANTAGALO/COPACABANA/RIO – MANHÃ.
Um buraco enorme é usado como lixo pelos moradores da favela.
Uma fogueira foi feita com muitos pneus, o que produz uma
fumaça negra, espessa.
73
Perto, em CLOSE-UP, VEMOS um pé de sapato e outro de uma
sandália de dedo, muito comum no Rio.
VOLTAMOS À CAMIONETE, com DAVE e Laura.
LAURA
Liguei para Alain. Ele estava em prantos.
DAVE
Ele viu meu pai biológico ser morto?
LAURA
Não disse isso, mas sabe que ele deve ter morrido.
DAVE
Deve? Você não tem certeza?
LAURA
Não cultive nenhuma esperança, plebeu. É modo de
dizer.
DAVE
Quem é Alain?
LAURA
O melhor amigo de Mike. Foi namorado dele, morava
junto com ele.
DAVE
Mike namorava homens e mulheres?
LAURA
Era um sujeito versátil seu pai biológico, plebeu.
Não sabia?
DAVE
A última vez que vi Mike foi quando tinha sete anos
de idade.
LAURA
Foi por isso que você estudou psicanálise?
DAVE
Na época eu achava que não. Estudei muitas coisas,
sempre gostei de estudar.
LAURA
E aí descobriu que precisava bater um papo com Mike.
DAVE
74
Nunca senti falta dele, alteza. Mas há quatro anos
minha criatividade secou e eu vim ao Rio para
resolver isso.
LAURA
O que tem a ver uma coisa com a outra, plebeu?
DAVE
Vamos deixar isso para depois, alteza. Agora quero
saber se esse lugar para onde estamos indo é mesmo
seguro.
LAURA
O pittbull garantiu que é. Vamos entrar pelos
fundos, um caminho que só ela usa. Falta pouco.
CORTA PARA
INT. GARAGEM/PRÉDIO/IPANEMA/RIO – AMANHECER.
O furgão está estacionado perto do Toyota do conde, que sai
pelo elevador observado pelos homens que trabalham para Alice.
PONTO DE VISTA DE TOURINHO: pela fresta da porta traseira do
furgão, Tourinho vê o conde saindo do elevador.
O conde, com abrigo para ginástica, de tênis, aproxima-se do
Toyota.
Rápidos, os dois homens saem do furgão e imobilizam o conde,
sedando-o com um lenço umedecido com clorofórmio.
Ele desmaia e é carregado pelos homens até a traseira do
furgão e colocado lá dentro.
Mattos fica lá com ele e Tourinho entra na cabine, dando a
partida e saindo devagar da garagem.
DE VOLTA À ESTRADA VICINAL.
DAVE e Laura na camionete.
DAVE
Quero conhecer Alain. Você pode levar-me até ele?
LAURA
Ficou maluco? Alain agora é namorado de meu sócio,
que é o braço direito de meu pai.
DAVE
Ele está envolvido na morte de Mike?
75
LAURA
Duvido. É boa pessoa. Ao contrário de Mike, que era
um grandíssimo filho da puta.
DAVE
Por que diz isso, alteza?
LAURA
Incomoda você eu falar assim?
DAVE
Nem um pouco. Quero saber mais sobre Mike, só isso.
LAURA
Mike
não
gostava
de
conversar.
Tudo
o
que
interessava a ele era o trabalho, cocaína e fazer
sexo. Ele era viciado em sexo. Passou–me doença
venérea.
DAVE
É tudo que pode dizer dele?
LAURA
Seu pai biológico era um egoísta incorrigível,
plebeu. Um manipulador, que usava as pessoas e as
descartava sem consideração.
DAVE
Você foi descartada?
LAURA
Não, porque ele me passou doença e eu caí fora.
Acredite em mim, plebeu: você não perdeu nada
importante ficando longe dele.
EXT. BAR/FAVELA DO CANTAGALO/COPACABANA/RIO – MANHÃ.
Em
meio
a
barracos
e
casas
simples,
algumas
apenas
parcialmente construídas, VEMOS a fumaça negra subindo aos
céus.
Miguel está do lado de fora, olhando o movimento, e vê a
fumaça.
Numa mesa colocada
tomando cerveja.
do
lado
de
fora
Miguel sinaliza, mostrando a fumaça.
FREGUÊS
dois
fregueses
estão
76
Isso vai dar merda.
MIGUEL
Vai nada. Um gringo a mais ou a menos não vai fazer
diferença.
FREGUÊS
Daqui a pouco isso aqui vai estar cheio de televisão.
Ele caminha até o balcão e serve-se de pinga, bebida típica do
Brasil. Volta à porta e observa mais uma vez a fumaça. Faz um
brinde (à fumaça) e bebe toda a pinga de um só gole.
MIGUEL
Saúde!
EXT. FAZENDA/INTERIOR/RIO DE JANEIRO – DIA.
A camionete de Laura chega à entrada dos fundos da fazenda de
Alice.
VEMOS que há duas casas (separadas entre si por uma distância de cerca
de duzentos metros) e um curral vazio.
A camionete passa pela casa menor (todas as janelas fechadas) e
segue na direção da casa maior.
DAVE observa que há várias placas em volta da casa menor,
todas iguais em tamanho e conteúdo.
PLACAS:
ACESSO PROIBIDO
Dois cachorros enormes, de aparência hostil, estão presos por
coleiras ligadas a argolas que permitem a movimentação deles
em volta da casa, com espaço suficiente para atacar quem se
aproximar e tentar entrar.
PONTO DE VISTA DE DAVE, em movimento, na camionete: Os cães
ladram de forma ameaçadora.
Devagar, a camionete aproxima-se da casa maior, que é ampla,
confortável e arejada, com todas as janelas abertas.
Um homem muito alto, negro, está plantado diante da casa,
aparentemente esperando DAVE e Laura.
A camionete estaciona e os dois descem.
O homem parece amigável, sorridente. É TONHO, empregado de
Alice.
77
LAURA
Bom dia.
TONHO
Bom dia, senhora. Meu nome é TONHO. A doutora disse
que vocês iam chegar.
DAVE observa o ambiente, curioso. Ninguém à vista.
TONHO
Vocês não têm malas?
LAURA
Não, Tonho. Vamos ficar pouco tempo.
TONHO
Já preparei os quartos de vocês. A cozinheira vai
fazer o almoço. Se quiserem lanchar é só falar com
ela. Fiquem à vontade. Vou esperar a doutora na
outra casa.
LAURA
Obrigado.
Tonho afasta-se com rapidez pouco usual para um homem tão
grande.
LAURA
Ele disse ‘os’ quartos, reparou?
DAVE
Eu quero ficar no seu quarto, alteza. Posso?
LAURA
Mesmo sem haxixe?
DAVE
Sua cama é melhor do que haxixe.
LAURA
Ai de você se mudar de ideia, plebeu.
DAVE
(distraído)
Não sei de quem tenho mais medo. O sujeito quer
parecer amigável, mas prefiro a companhia dos cães.
LAURA
Impressão sua, plebeu. É só um caseiro grandalhão.
Vamos entrar? Estou morrendo de fome.
78
DAVE
Prefiro um banho, mas umas fatias daquele seu bolo
seriam bem-vindas.
Os dois entram.
VOLTAMOS À ESTRADA DE ACESSO À FAZENDA.
O furgão avança pela entrada da fazenda, seguido pelo carro de
Alice, um Jeep Cherokee.
Tonho aproxima-se dos cães e faz carinho neles, acalmando-os.
Depois, abre o portão de acesso à garagem, entra e acende a
luz.
Os dois carros aproximam-se e entram na garagem; Tonho sai e
tranca o portão com um cadeado enorme.
INT. GARAGEM DA CASA/FAZENDA DE ALICE – DIA.
Tourinho e Mattos descem do furgão e abrem a porta traseira,
retirando o conde (de olhos vendados), que está amarrado e
amordaçado e levando-o para dentro da casa.
Alice também sai do carro e entra rapidamente pela porta à
esquerda.
INT. QUARTO DA CASA/FAZENDA DE ALICE – DIA.
O conde é colocado numa cama, deitado com as costas para cima,
em cima das mãos, que continuam atadas.
Tourinho tira a calça dele e sai do quarto, junto com Mattos,
depois de remover a venda e a mordaça.
O conde respira fundo.
CONDE
Eu já sei que é você, doutora Alice. Só não sei o
que você pretende com essa loucura.
Alice está na porta, longe do alcance da visão do conde.
CONDE
Seu perfume traiu você, doutora. Da próxima vez seja
mais cuidadosa.
ALICE
Esteja certo de que vou seguir seu conselho.
CONDE
79
A essa altura metade do Rio de Janeiro está atrás de
mim, doutora.
ALICE
É provável. Mas isso não me preocupa nem um pouco.
CONDE
O que significa essa palhaçada?
Ele vê Tonho entrar no quarto e começar a despir-se. Tourinho
traz uma câmera apoiada num tripé e faz um enquadramento,
voltando a CAM para o conde.
Mattos faz a mesma coisa com outro tripé, enquadrando o conde
de outro ângulo.
Os dois ligam as câmeras e saem.
ALICE
Você vai saber agora o
virgindade, senhor conde.
que
significa
perder
a
CONDE
Como assim?
ALICE
Tonho vai comer seu aristocrático rabo, senhor conde.
CONDE
(desesperado)
Que loucura essa, doutora? O que está pensando em
fazer?
ALICE
Eu vou exercitar meus dons
começa uma nova carreira,
programa.
de cineasta. E você
querido. Garoto de
Tonho já está nu. Masturba-se, cuspindo na mão ocupada.
ALICE
Aproxime-se dele, Tonho. Parece que ele quer dar uma
olhada em seu equipamento.
Tonho chega perto do rosto de Conde, que se assusta com o
tamanho do pênis de Tonho.
CONDE
Que loucura é essa?
ALICE
80
Você tomou o Viagra,
decepcionado aqui.
Tonho?
Não
quero
ninguém
TONHO
Não precisa, doutora.
O conde está chocado, sem saber o que falar.
CONDE
Socorro! Socorro!
Alice confere os enquadramentos das câmeras.
ALICE
Não mexa ele de lugar, Tonho. Vamos começar a festa.
PONTO DE VISTA de Alice na câmera: o rosto do conde (transformado
numa máscara de ódio) é enquadrado em PLANO APROXIMADO.
CONDE
Você não faz ideia do que vou fazer com você depois,
doutora. Nem você, crioulo. Vamos, aproveitem.
Depois vai ser a minha vez de rir.
VEMOS, no PONTO DE VISTA da câmera de Alice, em CLOSE-UP, que
o conde foi penetrado.
O rosto dele revela a dor que está sentindo. Mas não grita:
morde os lábios e o sangue escorre.
ALICE
Vamos ver. Vou colocar essas imagens na Internet,
conde. A menos que você pare de comprar meio mundo e
aceite responder pelo assassinato daquela menina.
CONDE
(contendo a dor, mas mostrando um tipo de alívio)
Então é isso. É aquela menina.
ALICE
O que mais poderia ser? Você matou aquela menina sem
dar a ela nenhuma chance de defesa.
CONDE
Pois pode colocar na Internet. Você
incriminada por isso também, sua piranha.
vai
ser
ALICE
Vamos ver se você continuar tão valente depois que
começar a gozar.
81
CONDE
Nada nesse mundo vai me tirar o prazer da vingança,
sua puta ordinária. Nada!
ALICE
Vou editar o material e todo o Rio de Janeiro vai
ver você gozando. Ninguém vai acreditar em estupro.
INT. QUARTO DE LAURA E DAVE/FAZENDA DE ALICE – DIA.
DAVE está terminando de fazer a barba: seu rosto
inteiramente limpo, mais jovial.
ficou
Laura está tomando banho.
INT. SALA DE RUBENS/ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA – DIA.
Rubens está sentado ao lado de um rapaz jovem.
RUBENS
Tem certeza?
RAPAZ
Absoluta. Esse tipo de criptografia é praticamente
impossível de abrir. Pode desistir, doutor. É coisa
de gente grande.
RUBENS
(sorrindo)
Sabe que isso é uma ótima notícia? Ganhei meu dia.
Obrigado, pode ir.
Rubens pega o telefone e tecla um número.
RUBENS
Fernando? Sou eu. Pode ligar. Não. Mande um SMS para
avisar. Isso. Para a caixa postal dela, a pessoal.
Rápido, homem! Não há tempo a perder.
INT. QUARTO DE LAURA E DAVE/FAZENDA DE ALICE – DIA.
Laura sai do banheiro enrolada numa toalha, com o celular na
mão. Parece assustada. Nem repara que DAVE fez a barba.
CORTA PARA
VEMOS a mãe de Laura, Bernadete, numa imagem gravada
qualidade técnica. Está machucada, cheia de hematomas.
BERNADETE
(chorando)
sem
82
Eles me bateram muito, minha filha. Vão me matar.
Não fale nada contra seu pai, minha filha. Por
favor. Minha vida está em suas mãos.
VOLTAMOS AO QUARTO DE DAVE e LAURA.
VEMOS que DAVE viu na tela do celular o depoimento da mãe de
Laura.
Abatida, Laura sentou-se na cama.
DAVE, carinhoso, a enlaçou com as mãos, num abraço protetor.
LAURA
Dessa vez o senhor conde se superou.
DAVE
Seu pai seria capaz de algo tão horrível?
LAURA
Aquele filho da puta faz qualquer coisa. Ele não tem
consciência.
DAVE
O que você vai fazer?
LAURA
Não sei. Não sei. (começa a chorar) O que você acha?
DAVE
Não há o que pensar. A vida de sua mãe está em suas mãos.
LAURA
Eu já disse a Alice que vi o material que Mike mandou.
DAVE
Diga a verdade. Ela vai compreender.
LAURA
Não vai mesmo. (só então repara que DAVE está sem barba)
Ei! Cadê a sua barba?
DAVE
Achei que seria conveniente. Não gostou, alteza?
LAURA
Não seja ingênuo, plebeu.
diferença. Mas eu gostei.
lindo.
Não vai fazer nenhuma
Você ficou ainda mais
83
Laura dá um beijo nele. Sem perceber, o beijo torna-se cada
vez mais sensual.
CLOSE-UP das mãos de Laura, apalpando a região genital de
DAVE.
DAVE
A cobra continua em repouso, alteza. E isso não vai
mudar. Nem hoje nem nunca.
LAURA
Você não sentiu prazer?
DAVE
Claro. Mas não como você esperava. Eu sinto muito.
Não queria que fosse assim.
LAURA
Sabe de uma coisa, plebeu? Você está enganado.
DAVE
Você não está chateada comigo?
LAURA
Nem um pouco. Apaixonada, sim. Chateada, não.
DAVE
Apaixonada?
LAURA
Irremediavelmente apaixonada, eu diria.
DAVE
Tem certeza? Eu não vou mudar. Não nisso (aponta seu
pênis).
LAURA
É isso que faz você tão especial para mim, plebeu.
Você não se importa por que sou uma prostituta?
DAVE
Você não é uma prostituta. É uma ativista política.
É diferente.
Laura dá uma risada.
LAURA
Você realmente não existe. Posso continuar chamando
você de plebeu?
DAVE
84
Pelo resto da vida se depender de mim.
LAURA
(surpresa)
O que você quer dizer com isso?
Eu não sei
embaraçado.
DAVE
como
dizer.
Eu
nunca
fiquei
disse
que
tão
LAURA
Você quer dizer que me ama?
Não exagere,
apaixonada.
DAVE
alteza.
LAURA
Quer dizer que você
Reciprocidade?
Você
é
só
a
favor
da
estava
Lei
da
DAVE
100% favorável.
LAURA
E se eu falar que amo você além de estar apaixonada?
DAVE
Eu exijo uma declaração formal.
Os dois estão com os rostos muito próximos, envolvidos por
muito carinho. Alice entra no quarto repentinamente.
ALICE
Que gracinha dos dois pombinhos. Muito meigo.
Eles se afastam um do outro, surpresos com a entrada dela.
LAURA
Que invasão é essa?
DAVE
O pittbull japonês!
ALICE
Em carne e osso, bonitão. Mais em carne do que em
osso (mostra a si mesmo com as mãos). Gostou?
Laura fica visivelmente incomodada com os olhares de Alice
para DAVE e dele para a promotora: DAVE está admirado com a
beleza dela.
85
LAURA
Você está sendo inoportuna e invasiva. Espere eu me
trocar que já vamos conversar.
ALICE
Quem é o bonitão?
LAURA
Não é de sua conta.
ALICE
Talvez seja. Segure seu cãozinho por que eu estou no
cio, doutora.
DAVE
Impressionante.
Laura dá alguns passos, pega um travesseiro na cama e abre a
porta, apontando para Alice.
LAURA
Saia daqui! Já!
Alice sai rindo, olhando de forma provocativa para DAVE. Laura
joga o travesseiro em DAVE.
LAURA
Deixe-me ver! Vamos, deixe-me ver!
DAVE
O quê? O que houve?
LAURA
Se essa cobra estiver em posição de sentido pode ir
se despedindo dela.
Laura caminha até ele o coloca a mão na área genital dele,
apalpando.
LAURA
É. Parece que ela continua dormindo.
Laura está aliviada. DAVE começa a rir.
DAVE
Você ficou com ciúmes do pittbull?
LAURA
Deixe de ser bobo. Eu me garanto!
86
Nunca
vivi
emocionante.
DAVE
uma
cena
de
ciúmes,
alteza.
É
DAVE aproxima-se para abraçá-la.
Ela rejeita o carinho: está irritada.
LAURA
Vamos parar com essa estória de alteza.
DAVE a surpreende: dá um salto e a abraça com força. Fitam-se
em falar nada e começam a rir. Beijam-se com carinho depois.
LAURA
Meu plebeu.
DAVE
Minha rainha.
INT. SOBRADO/CANTAGALO/RIO – NOITE.
Rubens e o delegado Marcílio, com colete da polícia carioca,
estão sentados à mesa.
RUBENS
Tem certeza?
MARCÍLIO
Foi sequestro. Os seguranças não viram nada. Tiraram
o conde do prédio num furgão. Chequei as câmeras.
RUBENS
Já verificou a placa?
MARCÍLIO
Já. É um sargento do exército aposentado. Um tal
Francisco Tourinho.
RUBENS
Mande trazerem ele para cá. Vou ficar aqui
esperando. Vê se não demora. (pausa) Nenhuma pista do
filho do jornalista?
MARCÍLIO
Nenhuma. Mas ele ainda está no Brasil.
RUBENS
Como é que você sabe?
MARCÍLIO
87
Chequei todos os aeroportos. Tem gente nossa na
Polícia Federal. O que o senhor quer que a gente
faça?
RUBENS
Minha sócia tinha um caso com Mike HOOPER. Ela
trocou o pai pelo filho bonitão e os dois deram
sumiço no jornalista. Pode espalhar.
MARCÍLIO
Podemos colocar a doutora como sócia do tráfico.
Matamos dois coelhos de uma só cajadada.
RUBENS
Deixe de ser burro. Eu sou advogado deles. Vai
sobrar pra mim. O desaparecimento do conde é outra
estória. Nada a ver uma coisa com a outra.
MARCÍLIO
E o conde? O que a gente vai fazer?
RUBENS
Deixe isso comigo, delegado. Eu resolvo. Esqueça o
conde.
INT. SALA/FAZENDA DE ALICE/RIO DE JANEIRO – DIA.
Alice, Laura e DAVE estão tomando café da manhã.
Alice parece irritada.
DAVE ataca as quitandas com enorme apetite: dá a impressão de
nunca ter comido tanta coisa gostosa.
ALICE
Seja mais específica, doutora. Não entendi.
LAURA
Minha mãe foi sequestrada, Alice. Vão matar minha
mãe se eu contar a você o que sei.
ALICE
Você não precisa contar. Abra a porra do arquivo
para mim.
LAURA
É a mesma coisa. Além do mais, eu não sei abrir
aquele arquivo. Recebi a mesma mensagem que você.
Arrume um técnico de informática.
ALICE
88
É sua última palavra?
LAURA
É a vida de minha mãe, Alice. Você não consegue
entender isso?
ALICE
Tenho certa dificuldade, querida. Nunca tive mãe.
Fui criada num orfanato.
Alice levanta-se e chega até a janela.
ALICE
Tonho!
TONHO
(em OFF)
Estou aqui, doutora!
ALICE
Venha até aqui. Rápido.
LAURA
(a DAVE)
Você gostou mesmo, hein?
DAVE
(de boca cheia)
Absolutamente
deliciosas.
magistral.
Jamais
comi
coisas
tão
Tonho entra na sala.
ALICE
Pode levá-lo (aponta DAVE), Tonho.
Tonho aproxima-se e levanta DAVE como se ele
criança, imobilizando-o com seus braços enormes.
fosse
uma
Com a boca cheia, DAVE não consegue falar nada; arregala os
olhos, surpreendido.
LAURA
O que é isso, sua maluca?! Pirou de vez, é?
ALICE
Trate de ficar mais colaborativa, doutora. Ou não
vai ver mais seu príncipe encantado inteiro.
LAURA
Isso não vai ficar assim, sua desgraçada!
89
Ela levanta-se e pula sobre Alice, que a imobiliza com um
golpe certeiro de karatê. Laura desmaia.
Tonho fica sem saber o que fazer.
ALICE
Leve o moço para o quarto azul. Leve a doutora para
lá também.
Tonho dirige-se para a porta, arrastando DAVE.
ALICE
Coloque a água pra ferver.
ALICE
Está certo, doutora.
Tonho sai. Alice olha para Laura, fica pensativa.
INT. SOBRADO/CANTAGALO/RIO – NOITE.
Fernando entra na sala empurrando Tourinho.
Tourinho tem sangue escorrendo pela boca e alguns hematomas;
está algemado. Rubens está cochilando num pequeno sofá.
FERNANDO
O delegado mandou essa encomenda
doutor. Fico aqui ou saio?
para
o
senhor,
RUBENS
Pode sair. (a Tourinho)
Aceita um café?
Seja
bem-vindo,
sargento.
TOURINHO
Não.
RUBENS
No exército não ensinaram normas de boa educação?
TOURINHO
Desculpe. Obrigado. O que o senhor quer de mim?
RUBENS
Quem quer é você, meu caro. Um milhão limpinho em
sua mão (aponta uma pequena sacola) ou uma bala de 38 na
cabeça. O que você quer?
TOURINHO
Pra fazer o quê?
RUBENS
90
(mostra um bloco de anotações que está numa mesinha)
Não precisa falar. Dedurar os outros é muito feio.
Você escreve aqui e pode dizer para seu pessoal, sem
mentir, que não falou nada.
Tourinho parece ter dúvida.
RUBENS
Fernando!
Fernando entra rápido.
FERNANDO
Pois não.
RUBENS
Seu 38. Por favor.
Tourinho não fala; observa apenas.
FERNANDO
(estende o revólver para ele)
Está na mão.
RUBENS
A chave da algema. (pega a chave estendida por Fernando)
Pode sair.
Fernando sai.
RUBENS
Não vou esperar muito tempo.
TOURINHO
O senhor vai me soltar?
RUBENS
Para escrever?
Rubens oferece a ele uma caneta que tira do bolso.
TOURINHO
Vai ficar mesmo entre nós?
RUBENS
Pode contar com isso, sargento.
Tourinho pega a caneta e escreve.
Entrega o bloco de anotações a Rubens, que lê o escrito e
entrega a Tourinho a sacola.
91
Tourinho abre a sacola e vê que está cheia de dinheiro. Esboça
um sorriso.
RUBENS
Fernando! (Fernando aparece
sargento ir embora.
de
novo)
Pode
deixar
o
Tourinho sai. Rubens devolve a Fernando o revólver.
RUBENS
(sorrindo)
Junte a turma. O dia vai ser animado, garoto. Muito
animado.
INT. QUARTO AZUL/FAZENDA DE ALICE/RIO DE JANEIRO – DIA.
O quarto é pequeno, todo pintado de azul.
Laura, consciente, está amarrada
inteiramente imobilizada.
numa
cadeira
de
madeira,
Está com uma corda atravessada na boca: não pode falar.
Um fogão pequeno fica próximo de DAVE: uma panela está debaixo
das chamas de uma das trempes do fogão.
DAVE está atado a uma barra de ferro presa ao teto, pendurado
por uma corrente de ferro ligada a uma roldana, que permite
que ele seja puxado para cima ou abaixado. O corpo dele está
inteiramente estendido: o teto é bem alto.
Também está impedido de falar: uma corda prende a boca dele.
Perto dos pés dele, despido dos sapatos, uma bacia vazia, a 10
cm da altura dos pés.
Tonho está perto da roldana, esperando ordens de Alice, que
acaba de entrar.
ALICE
A água já está boa?
TONHO
Quase, doutora.
ALICE
(a Laura)
Está vendo aquela bacia?
Laura tenta falar e não consegue.
92
Emite sons que demonstram que está com raiva, muita raiva.
DAVE espicha os olhos, tentando ver a bacia.
ALICE
Na verdade, aquilo não é uma bacia. É um estimulante.
Alice vai até a panela e constata que a água já está fervendo.
Ela faz sinal para Tonho, que gira a roldana e levanta DAVE
cerca de 1cm.
CLOSE-UP da panela: o vapor da água já está subindo.
Tonho vai até o fogão, apaga a chama da trempe e carrega a
panela até a bacia, despejando, devagar, a água fervente.
DAVE instintivamente levanta os pés.
Tonho volta à roldana e abaixa o corpo de DAVE.
CLOSE-UP dos pés de DAVE, que tem que levantá-los para não ter
contato com a água fervente.
OUVIMOS gemidos e murmúrios de DAVE e de LAURA, que estão
desesperados com o que está acontecendo.
EXT. CASA DA FAZENDA/RIO DE JANEIRO – DIA.
Os cães que cercam a casa estão vigilantes, farejando o ar,
rosnando com ferocidade.
INT. QUARTO AZUL/FAZENDA DE ALICE/RIO DE JANEIRO – DIA.
DAVE faz um esforço enorme para não queimar os pés na água
fervente da bacia.
Laura olha para
libertar-se.
a
cena,
desesperada;
tenta
inutilmente
ALICE
Ele não vai aguentar muito tempo, doutora. Não vai
mesmo.
De fato, DAVE não aguenta mais manter os pés acima da água e
um dos pés encosta na superfície fumegante, provocando uma dor
terrível.
Ele geme de dor, tenta gritar e não consegue.
ALICE
93
Estou sentindo um cheiro estranho. (Cheira o ar) O que
será? Carne cozida ou chulé?
Alice percebe que Laura emite sinais de que deseja falar. Faz
um sinal a Tonho, que tira a corda da boca dela.
LAURA
Eu vou falar! Eu vou falar! Tire ele daí! Pelo amor
de Deus, tire ele daí!
DAVE faz sinal negativo: fica claro que ele
aguentar a dor e que não deseja que Laura ceda.
se
dispõe
a
girando
a
Laura fica sem saber o que fazer.
ALICE
Romeu é corajoso.
Ela faz sinal e Tonho abaixa o corpo de
roldana, mergulhando os pés dele na água.
DAVE,
Laura grita.
DAVE geme e esperneia, levantando os pés e tirando-os da água
fervente, sem muito sucesso. A dor dele é terrível e só lhe
resta gemer.
LAURA
Não! Não! Eu falo, eu falo!
Alice faz sinal a
afastando-o da água.
Tonho,
que
levanta
o
corpo
de
DAVE,
Nesse momento, OUVIMOS ganidos desesperados de cães.
Alice olha para Tonho, que sai rápido para investigar o que
está acontecendo lá fora.
INT. QUARTO DA CASA/FAZENDA DE ALICE – DIA.
O conde está deitado na cama, deitado de bruços.
Escuta um ruído e vê Fernando entrando no quarto.
O bandido procura evitar fazer qualquer ruído.
PLANO APROXIMADO
socorro.
do
conde, que se anima com a chegada de
Fernando caminha até ele e dispara três tiros no nas costas do
conde, que morre na hora.
94
INT. QUARTO AZUL/FAZENDA DE ALICE/RIO DE JANEIRO – DIA.
Alice, apreensiva, está próxima à janela, que
tentando acompanhar o que está acontecendo lá
disparos.
é lacrada,
fora. Mais
LAURA
Solte DAVE, sua maluca! Tire ele de lá.
ALICE
Acalme-se, doutora. E fale logo. Senão ele volta
para a bacia.
LAURA
Mike descobriu que meu
chefes do tráfico.
sócio
é
quem
comanda
os
ALICE
Não acredito. Ele é um bobão.
LAURA
Meu pai é que manda. Meu pai, Alice.
ALICE
Você tem provas? Eu preciso de provas!
LAURA
Você ficou maluca? Não tem ideia do que está
acontecendo? Meu pai descobriu tudo. É gente dele
que está lá fora! Só pode ser!
ALICE
Será?
LAURA
Tire-me daqui, você vai precisar de ajuda!
OUVIMOS mais tiros e o grito agonizante de Tonho.
Alice solta Laura, que afasta a bacia dos pés de DAVE e vai
até a roldana, abaixando-o até que ele possa firmar-se no
chão.
Com dificuldade ele se firma, pois tem queimaduras nos pés.
Laura puxa uma cadeira para ele, colocando outra para que ele
descanse as pernas, para evitar que toquem o chão.
VEMOS Alice digitando alguma coisa no celular dela.
95
RUBENS
(em OFF)
Laura! Alice! Estão me ouvindo?
Uma rajada de metralhadora é disparada, atingindo a janela
lacrada e fazendo vários furos.
Alice e Laura atiram-se ao chão e DAVE também.
RUBENS
(em OFF, gritando)
O conde está morto! O crioulo também! Vocês estão
cercadas!
LAURA
É mentira! Meu pai manda nele! Não acredite.
Cuidadosamente, Alice aproxima-se da janela e pelos furos de
balas vê que Rubens fala a verdade: os corpos de Conde e Tonho
estão estendidos no chão, ensanguentados.
ALICE
É verdade. Matarem eles mesmo!
LAURA
O meu pai também?
ALICE
Mataram o conde. Eu vi o corpo dele, doutora.
RUBENS
(em OFF, gritando)
Sua mãe está viva,
continua viva.
Laura.
Venha
para
cá
e
ela
LAURA
Ela está com você?
RUBENS
(em OFF, gritando)
Não. Mas ela está viva.
ALICE
Não acredite nele. Vamos resistir. Chamei a polícia
federal. Eles não demoram!
LAURA
Onde está seu laptop? Está na outra casa?
ALICE
Está. Mas eu tenho outro aqui.
LAURA
96
Você tem Internet?
ALICE
Claro! Por quê?
LAURA
Vá buscar! Rápido!
ALICE
Um minuto. Rubens! Está me ouvindo?
RUBENS
(em OFF, gritando)
Vamos negociar! Você não precisa morrer. Mande Laura
e o rapaz e nos acertamos.
Você vai ficar
milionária, Alice.
LAURA
Seu filho da puta! Eu acabo com você, sua bicha
filho da puta!
RUBENS
(em OFF, gritando)
Um minuto, Alice! Nem um segundo a mais!
ALICE
Vocês estão sendo filmados! Há câmeras de segurança
espalhadas em volta da casa.
RUBENS
(em OFF, gritando)
Eu sei! É por isso que você ainda está viva.
Alice, sempre abaixada, pega a pasta dela, que estava sobre o
pequeno sofá no fundo do quarto.
De lá, retira um laptop.
LAURA
Dê a ele! Entregue o laptop a DAVE, Alice! Ele vai
abrir o arquivo!
DAVE levanta-se, vai até Laura (andando com dificuldade) e pega o
laptop, sentando-se no sofá.
Ele abre a tela e liga a máquina.
DAVE
Conversem com ele. Distraia o sujeito, alteza!
ALICE
Alteza?
97
LAURA
(gritando)
Rubens! Não faça nenhuma loucura! Mike mandou o
arquivo para o jornal! Eles vão abrir o arquivo,
Rubens!
RUBENS
(em OFF, gritando)
Não vão abrir porra nenhuma! Sabe por quê? Por que o
idiota do seu namorado não mandou nada para o
jornal!
LAURA
(gritando)
Mandou sim! Ele me disse que mandou!
DAVE faz sinal: está quase terminando.
RUBENS
(em OFF, gritando)
Mentirosa! É o fim da linha pra você, Laura!
ALICE
(gritando)
Vá com calma, Rubens! Nós vamos entrar num acordo!
RUBENS
(em OFF, gritando)
Mande Laura sair! Minha paciência acabou!
DAVE
Pronto!
Nesse momento vários tiros são disparados, varam a janela
lacrada mais uma vez e um deles acerta a cabeça de DAVE, que
cai como morto.
O corpo dele vai ao chão, como um saco de batatas.
É visível o buraco aberto pela bala na cabeça de DAVE. Escorre
um filete de sangue.
Laura corre até o corpo estendido no chão.
Alice corre para o computador e faz alguns comandos.
LAURA
Não! Nãaaaaaoooooo!
ALICE
98
Acabei de abrir o arquivo, Rubens! Mandei para a
Polícia Federal e para os jornais de São Paulo. O
fim da linha é para você, seu criminoso filho da
puta!
RUBENS
(em OFF, gritando)
Mentira! Mentira!
Laura chora desesperada junto ao corpo de DAVE.
DAVE
Meu amor, meu amor. O que fizeram com você, meu amor?!
ALICE
Dê uma espiada em meu perfil no TWITTER! Vá! Olhe!
EXT. CASA/FAZENDA DE ALICE/RIO DE JANEIRO – DIA.
Rubens está com o celular na mão, teclando.
Olha para a tela e vê sua imagem no dia em que foi filmado na
conversa com o conde.
CLOSE-UP da tela do celular de Rubens, no PONTO DE VISTA dele.
OUVIMOS um tiro.
Rubens explodiu seu cérebro com um único tiro.
Fernando, perto dele, viu tudo.
FERNANDO
Vamos embora, gente! Acabou a festa.
Os homens correm na direção dos carros, entram e saem rápido.
OUVIMOS sirenes de carros de polícia.
EXT. PISTA/AEROPORTO PEARSON/TORONTO – DIA.
Rodas enormes de avião atritam-se no piso molhado da pista de
pouso, provocando um ruído colossal e irritante.
LEGENDA
TORONTO
VEMOS o avião, que é um cargueiro, com o nome do país de
origem (Brasil) estampado do lado de fora: é uma transportadora
do Rio de Janeiro.
99
O avião taxia até o hangar da transportadora.
INT. HANGAR/AEROPORTO PEARSON/TORONTO – MANHÃ DE CHUVA.
O avião entra no hangar mais um pouco e para, ficando imóvel.
A equipe que descarrega o avião aproxima-se e dois homens
caminham até a porta de entrada na aeronave.
A porta traseira do cargueiro se abre lentamente. O tempo está
fechado.
Chuva fina, intermitente. Faz frio.
INT. CARGUEIRO/AEROPORTO – DIA.
VEMOS um CAIXÃO entre outros itens que estão no cargueiro do
avião.
Usando equipamento adequado, dois homens removem o caixão do
lugar, levando-o até a plataforma móvel que funciona como
elevador.
A plataforma começa a descer com o ataúde e, junto dele, os
empregados.
DAVE
(em OFF)
Esse negócio de usar títulos acadêmicos me enche
mortalmente o saco. (imita a voz do Diretor) Doutor
KÖNIGSBERG. Ainda bem que isso acabou.
Uma parte do caixão ficou para fora.
DAVE
(em OFF)
Cuidado aí, pessoal!
Um dos empregados coloca o caixão na posição normal.
DAVE
(em OFF)
Poucas coisas no mundo são mais detestáveis do que
fazer uma viagem muito longa enfiado dentro de um
caixão. E não é pela falta de ar, porque você já
está morto. Também não é a falta de conforto. A
merda é perceber que você mudou de categoria. Virou
material orgânico em decomposição. Não há mais
energia vital em nenhuma molécula de seu corpo: você
é um cadáver e não há nada que se possa fazer quanto
a isso.
INT. HANGAR/AEROPORTO PEARSON/TORONTO – DIA.
100
Os dois homens pegam o ataúde na plataforma e o conduzem até
um veículo funerário.
O ataúde está coberto por um pano que reproduz um céu sem
nuvens, cheio de estrelas.
O caixão é iluminado pela luz dos FLASHES das muitas máquinas
fotográficas de jornalistas que foram ao aeroporto fotografálo.
DAVE
(em OFF)
Isso é muito bom. Espera. É bom demais. Ainda estou
na fase de encantamento, mas já deu pra perceber que
é bem divertido ser uma celebridade.
VEMOS mais de uma dezena
fotografando o caixão.
de
fotógrafos
PLANO APROXIMADO de uma flâmula
Toronto, presa sobre o caixão.
do
e
TRINITY
jornalistas,
COLLEGE,
de
DAVE
(em OFF)
Que mau gosto, meu Deus. Isso só pode ser coisa de
Archibald. Sujeitinho detestável.
O ataúde é colocado dentro da limusine da funerária.
INT. HANGAR DO CARGUEIRO/TORONTO – DIA.
Os homens levam o caixão até uma limusine fúnebre, colocando-o
dentro do veículo.
INT. SALA DE TRABALHO DE DAVE/TRINITY COLLEGE/TORONTO – DIA.
Uma sala espaçosa, com uma enorme (da altura da cintura de DAVE ao
teto) lousa verde escura, onde estão anotadas várias equações
matemáticas,
com
integrais,
derivadas
e
símbolos
incompreensíveis para leigos.
De frente à lousa, uma escada portátil, que ele usa para
escrever na parte superior da lousa.
Há vários dardos que foram arremessados por um atirador de
excelente pontaria; todos os arremessos na zona central do
alvo, formada por círculos concêntricos, impressos sobre a
fotografia do diretor da faculdade.
DAVE
(em OFF)
101
Sempre pensei que depois de bater as botas ia ficar
livre dos problemas de uma vez só, num passe de
mágica. Infelizmente não é bem assim. Sabe aquela
encrenca que atazanava você nos bons tempos em que
ainda não era um defunto? Ela gruda em você como um
carrapato necrófilo.
EXT. RUAS DE TORONTO – DIA.
A limusine avança pelas ruas de Toronto, num dia chuvoso.
PLANOS APROXIMADOS das pessoas, no dia-a-dia da cidade. Gente
indo
e
vindo:
o
espetáculo
da
batalha
diária
pela
sobrevivência.
CAM no ponto de vista de DAVE, que passeia de patins na pista
de gelo da Nathan Phillip Square.
CAM no ponto de vista de DAVE, num passeio de bicicleta na
ilha de Toronto.
CAM no ponto de vista de DAVE, que passeia de patins de rodas
em frente à DUNDAS Square.
DAVE
(em OFF)
É claro que você pode fazer de conta que o problema
não é seu. Cá entre nós, isso é uma tentação até
para um defunto. Mas você sabe: não existe efeito
sem causa. O carrapato necrófilo não vai te deixar
em paz. Não mesmo, por mais que você arrume
distrações pra matar a saudade dos bons tempos.
EXT. AGÊNCIA FUNERÁRIA/TORONTO – DIA.
O veículo funerário entra na área de serviços de
funerária. Empregados descem o caixão e entram com ele.
uma
INT. FUNERÁRIA/TORONTO – DIA.
Os empregados colocam o caixão sobre uma esteira, que começa a
mover-se, conduzindo o ataúde.
INT. FORNO CREMATÓRIO/FUNERÁRIA/TORONO – DIA.
O ataúde move-se na esteira, indo na direção e no sentido de
um forno crematório.
DAVE
(em OFF)
102
Mas não pense que do lado de cá não há emoções
fortes. A velha adrenalina pode dar as caras e aí a
coisa pode ficar bem desagradável.
VEMOS (no ponto de vista do caixão) que o caixão aproxima-se
lentamente do forno, que está cada vez mais perto. O caixão
está QUASE entrando no forno. PLANO APROXIMADO das chamas.
DAVE
(em OFF)
Forno outra vez? Hum-hum (som de uma negativa). Muito
clichê.
A esteira para repentinamente e o caixão também.
DAVE
(em OFF)
Melhor assim. Nunca é tarde para ser original.
A esteira volta a mover-se. CAM (no ponto de vista do caixão)
aproximando-se das CHAMAS, cada vez mais perto.
DAVE
(em OFF)
(tosse)
Não está mais aqui quem falou.
CAM em movimento, DENTRO do forno. As CHAMAS devoram o caixão.
Na trilha, ruído de madeira queimando.
CORTA PARA
Um empregado aproxima-se da esteira e usa uma espátula e uma
pequena pá para juntar as cinzas do que um dia foi um cadáver
dentro de um caixão.
O conteúdo da pá é despejado num jarro e devidamente tampado.
VEMOS, em CLOSE-UP, uma placa metálica com o nome da pessoa
que fora um dia parte daquela cinza toda: DAVE KÖNIGSBERG
HOOPER.
DAVE
(em OFF)
HOOPER? Agora é assim, é? Mal você vira pó e já
colocam o nome de seu pai biológico na sua jarra?
Sem consultar você? Ninguém aqui respeita a última
vontade de um defunto? Quantas vezes eu vou ter que
repetir? Meu nome é KÖNIGSBERG.
CLOSE-UP da placa com o nome de DAVE.
103
Vestido inteiramente de azul claro, num terno bem cortado, um
homem de aproximados 60 anos aparece repentinamente no
recinto, carregando outro vaso, que coloca ao vaso em que
estão as cinzas do corpo de DAVE.
CLOSE-UP
HOOPER.
da
placa
de
identificação
do
novo
vaso:
MICHAEL
DAVE está contemplativo, absorto em pensamentos, quando repara
no vaso que foi colocado ao do vaso ‘dele’.
CLOSE-UP: MICHAEL HOOPER (placa).
OUVIMOS UM RUÍDO ENSURDECEDOR, MUITO PARECIDO COM O DE UM
TROVÃO.
Um raio corta os céus de Toronto.
CORTA PARA
Como num passe de mágica, os dois materializam-se na ilha de
Toronto.
PONTO DE VISTA de DAVE, que vê o homem de costas.
DAVE
Ei você?! O que está fazendo?
O homem vira-se para DAVE. É George Harrison, o beatle, tal
como estava nos últimos shows.
HARRISON
Cumprindo a minha função.
DAVE
George? É você mesmo, George?
HARRISON
Como vai você, meu velho?
DAVE
Devo estar no céu, George. Estou absolutamente
honrado em conhecê-lo. Sempre fui seu fã.
HARRISON
(estendendo a mão)
Bons tempos aquele, meu velho.
DAVE
104
Nem sei o que falar, George. É emocionante
conhecer você.
demais
Só então DAVE fica repara na mudança (saíram da funerária) e
mostra-se surpreso com a mudança de local. Mas não muito.
Olha em volta, reconhecendo o local onde costumava andar de
bicicleta.
George o conduz, pegando-o pelo braço. Começam a caminhar.
DAVE
As coisas aqui são rápidas, hein?
HARRISON
Não mais do que você, meu velho. Sua mente é afinada
como minha guitarra preferida.
DAVE
Não é mais um beatle, George?
HARRISON
Não mais, há muito tempo. Cada um tem a função que
escolhe. Tanto na Toronto que você deixou como nessa
onde estamos.
DAVE
Não me parecem muito diferentes.
HARRISON
São muito semelhantes mesmo.
DAVE
Por que deixou a música, George?
HARRISON
Cumpri meu ciclo e achei que era hora de mudar de
função.
DAVE
Todos mudam por aqui?
HARRISON
Não é regra. Cada um escolhe sua função.
DAVE
Eu quero continuar na
cientista e há coisas
fazer.
HARRISON
minha área. Gosto de ser
que eu quero terminar de
105
No mesmo ponto em que estava, quando saiu do Rio de
Janeiro?
DAVE
Não seria o caso de dizer “quando você morreu”?
HARRISON
Se você prefere.
DAVE
Não mais, George. Sair é mais confortável do que
morrer. Por que se trata disso, não? Saí de lá,
entrei aqui. Entrar, sair.
HARRISON
Eu não diria melhor. Você é bem rápido mesmo, meu
caro.
DAVE
Faz algum sentido aquela
inferno? (pausa) Purgatório?
conversa
de
céu,
de
HARRISON
O que você acha?
DAVE
Lorota religiosa. Reencarnação?
HARRISON
Você se sente reencarnado?
DAVE
Nem um pouco. Para mim continua tudo igual. A não
ser, claro, o fato de que eu levei um tiro na
cabeça.
HARRISON
Levou mesmo, DAVE. Foi horrível.
DAVE
Mas isso foi no Rio de Janeiro. E agora há outro Rio
de Janeiro.
HARRISON
Sem dúvida. Mas você escolheu viver aqui em Toronto.
DAVE
Literalmente. Sinto meu coração batendo normalmente,
como se estivesse vivo.
HARRISON
106
Bem vivo e com a função que escolheu. Sua sala no
TRINITY COLLEGE continua no mesmo lugar, tudo igual.
Mas sua assistente agora é outra.
DAVE
Impressionante. (pausa) E você, George? Qual é a sua
nova função?
HARRISON
Recepcionar você. Você e o titular daquelas cinzas
que coloquei ao lado da jarra com seu nome.
Meu
pai
assessoria?
DAVE
biológico
também
está
recebendo
sua
HARRISON
Você já respondeu a essa pergunta, meu caro.
DAVE
Você é bem detalhista, George. Entende tudo ao pé da
letra.
HARRISON
Vá se acostumando, meu caro. Todos aqui são como eu.
DAVE
Aqui? Defina ‘aqui’ (ênfase na palavra), por favor,
George.
HARRISON
Em Toronto. Em 2014. Tudo exatamente igual à Toronto
que você conheceu, com uma única exceção.
DAVE
Todos seriam considerados ‘saídos’ na Toronto que eu
conheci.
Exatamente,
nessa época.
HARRISON
DAVE. Todos
escolheram
vir
para
cá,
DAVE
Muito interessante. Quer dizer que ao morrer cada um
escolhe para onde quer ir? E quando?
HARRISON
Exatamente. Para onde
exemplo, vivo em 1980.
DAVE
e
em
que
época.
Eu,
por
107
Muito interessante. E o que está fazendo aqui, em
2014? Escolheu Toronto e não Liverpool?
HARRISON
Moro em Liverpool. Estou aqui recepcionando você e
Michael HOOPER.
DAVE
Mike também escolheu a Toronto de 2014?
HARRISON
Ele fez questão de escolher a mesma época que você.
DAVE
Por quê?
HARRISON
Isso você vai ter que perguntar a ele. Mas não é
difícil imaginar. Não para você, que é tão
perspicaz.
DAVE
Ele sente-se responsável
estória toda, presumo.
por
mim.
Você
sabe
a
HARRISON
Sei. Faz parte de meu trabalho, meu caro. Sim, ele
sente-se responsável por você.
DAVE
Pois diga a ele que não se preocupe com isso. Eu
estou bem em relação a isso. Estava mesmo chateado
com ele. Mas já passou.
HARRISON
Passou mesmo, meu caro? Tem certeza?
DAVE
Eu não queria admitir, mas tinha muitas mágoas de
Mike. Não achei correto ele me abandonar em Toronto
quando eu tinha só sete anos.
HARRISON
Abandonar? Esse verbo sugere que ainda pode haver
mágoa.
DAVE
E não é que você tem razão, George? Mas não há mesmo
mais nenhuma mágoa. É que me acostumei a usar esse
verbo.
108
HARRISON
Mesmo que você não tenha mágoa, Michael tem muitas
mágoas.
DAVE
De mim?
HARRISON
mesmo. Ele
Não. Dele
não se perdoa por
‘abandonado’ (ênfase no verbo) você tão jovem.
ter
DAVE
Pois diga a ele que está sendo mais realista do que
o próprio rei. Se eu, que sou a parte interessada,
não tenho mágoas, por que ele haveria de ter?
HARRISON
Faz sentido. Mas ele não é tão racional como você,
meu caro. Há sentimento envolvido, compreende?
DAVE
De que tipo de sentimento você fala?
HARRISON
De um tipo que você ainda não compreende. Mas tudo
tem seu tempo e sua hora. Vou dar uma volta para
conhecer melhor a Toronto de 2014.
DAVE
Espere aí, George. Faltou você explicar-me como é a
logística. Como é que eu faço para dar um pulo na
faculdade? Estou ansioso para trabalhar.
HARRISON
Tudo igual no que diz respeito à logística, meu
caro. A única diferença é que você pode escolhe a
época de destino, além do local.
DAVE
Posso ir à Toronto de 2000?
HARRISON
Na hora em que quiser. É só ir ao terminal
rodoviário, ao terminal ferroviário ou ao metrô.
DAVE
Muito interessante. Essa Toronto é bem melhor do que
a outra.
HARRISON
109
Com certeza. Se as pessoas soubessem disso ninguém
iria querer ficar lá, não acha?
DAVE
Provavelmente, George. OK, você está liberado de sua
tarefa de anjo da guarda.
HARRISON
Anjo da guarda não é o correto, meu caro. Guia. Eu
acho que guia é melhor.
DAVE
Como preferir, George. Recomendações a Mike.
HARRISON
Não prefere dá-las pessoalmente?
DAVE
Se encontrá-lo, vou dá-las, George.
HARRISON
Vou nessa, meu velho.
DAVE
Obrigado, George.
HARRISON
Não agradeça, meu velho. É minha obrigação.
DAVE
Estou com vontade de desobedecer você, George.
HARRISON
Gostou do bolo, hein, meu velho?
DAVE
Adorei. Por aqui também tem?
HARRISON
(sorrindo)
Aqui em Toronto eu não sei. Mas em Liverpool com
certeza tem.
EXT. PRÉDIO DO TORONTO STAR/TORONTO – DIA.
Mike está chegando ao edifício em que funciona o jornal.
Caminha devagar, com um jornal dobrado debaixo do braço.
EXT. AVENIDA HOSKIN/TRINITY COLLEGE - DIA.
110
DAVE está chegando ao prédio. É cumprimentado
saudado por colegas com muito carinho.
por
alunos,
INT. SALA DE TRABALHO DE DAVE/TRINITY COLLEGE/TORONTO – DIA.
Uma sala espaçosa, com uma enorme (da altura da cintura de DAVE ao
teto) lousa verde escura, onde estão anotadas várias equações
matemáticas,
com
integrais,
derivadas
e
símbolos
incompreensíveis para leigos.
De frente à lousa, uma escada portátil, que ele usa para
escrever na parte superior da lousa.
DAVE entra na sala, sobe na escada e completa uma equação que
estava no alto da lousa verde.
Desce da escada e fica observando a equação completa.
DAVE
(para si mesmo)
Como é que eu não pensei nisso antes? É tão óbvio.
MARIA
Tudo aqui fica mais claro, professor.
DAVE volta-se para o canto da sala onde ouviu a voz de MARIA,
que é a personagem que foi assassinada pelo conde: linda aos
21 anos.
DAVE
É verdade. Você é minha aluna?
MARIA
Não, professor. Sou sua secretária.
Ela estende a mão para ele.
MARIA
Maria. Ao seu dispor.
DAVE
Muito prazer, MARIA.
Madeleine?
Você foi minha aluna, como
MARIA
Não. Sou jornalista. Isso é um problema?
DAVE
Não sei. Talvez seja. Minhas assistentes sempre
foram alunas minhas no mestrado ou no doutorado.
MARIA
111
Há um motivo especial que me trouxe a esse cargo,
professor.
DAVE
Mal posso esperar para saber qual.
MARIA
Quem me recomendou para trabalhar com você foi Mike
HOOPER.
INT. METRÔ/TORONTO – DIA.
David O’HARA
jornal.
está
sentado
numa
poltrona
do
metrô,
lendo
CLOSE-UP numa manchete do jornal, no ponto de vista de David:
DAVE KÖNIGSBERG ENTRA EM TORONTO.
INT. CORREDOR DO TRINITY COLLEGE/TORONTO – DIA.
DAVE e Maria caminham pelo corredor.
DAVE
Vamos
fazer
uma
experiência,
Maria.
Se
você
conseguir superar sua falta de conhecimento em
física será efetivada. OKAY?
MARIA
Nem sei como agradecer, professor. Prometo que vou
empenhar-me e retribuir sua confiança.
DAVE
É a Mike que você deve o agradecimento, Maria.
Eles chegam ao fim do corredor, diante da porta de acesso à
sala de aula.
DAVE
Acompanhe toda a aula, Maria. Veja se consegue um
lugar na primeira fila ou num lugar em que eu possa
vê-la.
MARIA
Posso passar por aqui?
DAVE
Melhor não. Dê a volta, se não se importa. Vá lá.
DAVE entra.
INT. SALA DE AULA/TRINITY COLLEGE/TORONTO – DIA.
112
A sala é enorme e está inteiramente lotada.
Ao verem DAVE entrar ele é aplaudido com entusiasmo.
Ele fica surpreso e, sem arrogância, pede a interrupção das
palmas, com gestos.
DAVE
Bom dia, crianças. Hoje vocês estão assanhados, hein?
VEMOS que Maria conseguiu um lugar na plateia e faz sinal para
DAVE.
Ela está sentada ao lado de DAVID O’HARA.
PLANO APROXIMADO de DAVE, surpreso ao ver O’HARA na plateia.
A plateia finalmente atende ao pedido dele, depois de mais
alguns instantes de palmas entusiásticas.
DAVE
Não quero ser nenhum desmancha-prazeres, mas vocês
estão
um
tanto
exagerados
demais.
Sem
falsa
modéstia, não mereço tanto entusiasmo.
Um sujeito de presumidos oitenta anos entra na área em que
DAVE está.
É o diretor HOPKINS, do TRINITY COLLEGE.
Ao lado dele, um sujeito vestido como na era vitoriana, um
tipo sardento, muito nórdico.
É Alfred NOBEL, inventor da dinamite, fundador da Fundação
NOBEL.
DAVE parece não entender a entrada dos dois.
HOPKINS
Caríssimo professor KÖNIGSBERG. Sou o diretor
Hopkins. Desculpe entrar assim, sem ao menos ter me
apresentado ao senhor, mas o senhor NOBEL fez
questão de vir vê-lo pessoalmente. Chegou a pouco de
Estocolmo.
DAVE
Não há problema, diretor Hopkins. Fez boa viagem,
senhor Nobel?
NOBEL
113
Excelente, doutor KÖNIGSBERG. Desculpe o incômodo,
mas quis trazer seu prêmio pessoalmente.
Nobel tira um cheque do bolso.
DAVE
Prêmio? A que prêmio o senhor se refere?
NOBEL
(estende o cheque para DAVE)
Seu notável trabalho sobre a abordagem holística na
física quântica abriu novos horizontes para a
ciência moderna. Parabéns, doutor KÖNIGSBERG.
DAVE fica em dúvida se pega ou não o cheque.
A plateia aplaude entusiasticamente, gritando o nome dele:
DAVE! DAVE! DAVE! DAVE!
O diretor pede silêncio (com as mãos).
DAVE
Há aqui um mal entendido, senhor Nobel. Eu terminei
agora
a
pouco
a
equação
que
estabelece
a
conformidade holística.
NOBEL
Não há nenhum mal entendido, doutor KÖNIGSBERG.
HOPKINS
DAVE chegou a pouco, senhor Nobel. Ele ainda
desconhece
algumas
de
nossas
particularidades,
apenas isso.
NOBEL
(a DAVE)
Houve um grande avanço no processo de
conhecimento, doutor KÖNIGSBERG. O
tomou conhecimento de sua equação de
conformidade holística imediatamente
escrevê-la na lousa.
transmissão do
mundo inteiro
nivelamento da
após o senhor
DAVE está absolutamente pasmo.
DAVE
Impressionante. Quer dizer que eu ganhei outro Nobel?
NOBEL
E outro milhão de dólares. Esse o senhor poderá
gastar consigo mesmo, pois não há mais refugiados na
Palestina há muitos anos.
114
A plateia volta aos aplausos e invade a área em que DAVE está.
DAVE é cercado por cumprimentos e perde-se no meio de tanta
gente.
INT. QUARTO/CASA DE DAVE/SCARBOUROUGH/TORONTO – NOITE.
Na mesa ao lado da cama, duas garrafas de champanhe e duas
taças.
Na cama, nus e abraçados, DAVE e Maria estão acordando.
DAVE acorda primeiro e vê Maria abraçada a ele.
Tenta desvencilhar-se do abraço, com delicadeza, mas
acorda.
Maria
DAVE
Desculpe. Não queria acordar você.
MARIA
Não tem problema. Quantas horas são?
DAVE
Não tenho a mínima ideia.
Ela faz alongamento, como uma gata. DAVE contempla o belo
corpo de Maria.
DAVE
Que noitada.
MARIA
Nem me fale. Nunca bebi tanto em minha vida.
DAVE
Foi maravilhoso. Você é uma mulher incrível.
Os dois beijam-se com carinho.
MARIA
Devo estar com um gosto horrível na boca.
DAVE
Bobagem. Sua boca está deliciosa.
Beijam-se de novo.
MARIA
Foi mesmo a sua primeira vez?
DAVE
115
Foi. Mal posso acreditar que tive uma ereção.
MARIA
Uma? Você pode ter ganhado o Nobel, mas ainda não
aprendeu a contar. Estou moída por dentro.
DAVE
Nunca fui tão feliz como agora.
MARIA
Adoro esse seu jeito espontâneo.
Ela o beija mais uma vez.
MARIA
Vou ficar nessa cama o resto do dia.
DAVE
Pois eu tenho que andar de bicicleta.
MARIA
Você pedala todo dia?
DAVE
Pedalava. Pretendo continuar pedalando.
MARIA
Estou morrendo de sono. Vou ficar por aqui. Você se
importa?
DAVE
Claro que não.
Ele sai da cama e vai até o armário.
Pega uma camiseta e um calção. Na outra porta do mesmo armário
retira um tênis.
DAVE
Impressionante. Tudo no mesmo lugar.
MARIA
(sonolenta)
Como? Não entendi.
DAVE já está vestido. Senta-se numa poltrona e calça o tênis.
DAVE
Nada, querida. Durma. Eu não demoro.
Ele acaba de calçar-se e sai do quarto.
116
EXT. CASA DE DAVE/SCARBOUROUGH/TORONTO – NOITE.
DAVE está saindo de casa, empurrando com a bicicleta com as
mãos.
Já na rua, sobe na bicicleta e começa a pedalar.
EXT. RUA DA ILHA DE TORONTO – DIA.
David O’HARA está sentado em um banco.
Olha para os lados: parece esperar alguém.
EXT. ILHA DE TORONTO – DIA.
David repara que
pedalando devagar.
DAVE
vem
se
aproximando
na
bicicleta,
Ao aproximar-se de DAVID, DAVE para a bicicleta e a encosta
perto do banco.
DAVE
E não é que nos encontramos de novo?
DAVID
Mundo pequeno esse, hein?
DAVE
É. Bem pequeno. (pausa) Vi você em minha aula ontem.
Interessado em física agora?
DAVID
Só curiosidade. Aquela conversa nossa despertou meu
interesse por sua área.
DAVE
Que bom. Qual é a sua função?
DAVID
Continuo no ramo de extermínio. Gosto muito desse
ofício.
DAVE
Impressionante. Achei que aqui não existisse demanda
para isso.
DAVID
Sempre existe. Há gente incômoda em todo lugar.
DAVE
117
Olha. Não quero me meter em sua vida, mas talvez
seja adequado mudar de ramo. Aqui as coisas são
muito diferentes, David.
DAVID
Não vejo muita diferença.
DAVE
Você não vai conseguir clientes por aqui, David. Seu
guia não lhe informou sobre isso?
DAVID
Não sei do que você está falando.
DAVE
Tenho certeza. Não há assassinatos aqui.
DAVID
Não concordo. Já tenho um contrato.
DAVE
Não é possível. Tem alguma coisa errada.
DAVID
Um daqueles bons. Uma bela grana para despachar um
sujeito que eu devia ter despachado lá no Rio de
Janeiro.
DAVE
Sei. Você vai para o Rio.
DAVID
Não vai ser preciso. Meu alvo mora aqui mesmo.
DAVE
(empalidecendo)
Não é possível. Não pode ser.
DAVID
Do que diabos você está falando?
DAVE
Seu alvo é Mike HOOPER?
DAVID
Como é que você sabe?
DAVE
(suspirando)
Impressionante.
118
DAVE senta-se ao lado de DAVID.
DAVE
HOOPER é meu pai biológico.
DAVID
E todo pai não é biológico?
DAVE
Nem todos, David. Não fui criado por ele. Mal o
conheço.
DAVID
Menos mal. Assim você não vai sentir muito.
DAVE
Eu não posso deixar você fazer uma coisa dessas,
David. É errado.
DAVID
(tenso)
Não vejo como você poderá impedir-me, DAVE.
DAVE
Não se trata disso. Sou absolutamente contrário à
violência. Mas pretendo denunciar você à polícia.
DAVID
(rindo)
Sabe de uma coisa, DAVE? Não existe polícia
aqui.
por
DAVE
Por que não existem crimes. Não é permitido matar
nesse lugar.
DAVID
Quem é que disse? (mostra a pistola automática, colocada
debaixo das axilas) Ninguém me tirou isso.
Tentando surpreender
cotovelada.
David,
DAVE
tenta
acertar-lhe
uma
Mas David é mais rápido e lhe dá um golpe de karatê na cabeça:
DAVE desmonta e vai ao chão, desmaiando.
Calmamente, David levanta-se e segue pela rua.
Logo depois, HARRISON surge no quadro e vai até DAVE, tentando
reanimá-lo.
119
HARRISON
DAVE? Acorde, DAVE. Você está bem?
DAVE
George? É você?
HARRISON
O que houve com você, meu velho? Está passando mal?
DAVE
Ainda bem que você veio. Há um sujeito, um assassino
profissional. Ele quer matar Mike. Ele vai matar
Mike!
HARRISON
Calma, meu caro. Não há assassinatos aqui.
DAVE
Pois vai haver um, George. Eu conheci o assassino no
Rio de Janeiro. Ele me agrediu!
HARRISON
Não
permitimos
violência
simplesmente não é possível.
aqui,
DAVE.
Isso
DAVE
E como é que você acha que eu consegui isso? (Pega a
mão de George e passa
resultado da pancada)
sobre
a
cabeça
dele,
mostrando
o
HARRISON
Você pode ter caído, meu caro. Teve um pesadelo. É
natural em situações de adaptação.
DAVE
Mike vai ser assassinado se você não fizer alguma
coisa, George. Estou falando sério. Mike vai morrer!
HARRISON
Impossível. Não há essa possibilidade. Acredite em
mim, meu velho. Não há.
DAVE
Não vou ficar discutindo
posso encontrar Mike?
com
você,
HARRISON
No Toronto Star. É lá que ele trabalha.
DAVE sai correndo.
George.
Onde
120
DAVE
Procure ajuda, George! É real, acredite em mim!
EXT. EDIFÍCIO DO TORONTO STAR/TORONTO – DIA.
DAVE desce
jornal.
de
um
táxi
e
corre
na
direção
da
portaria
do
INT. PORTARIA/EDIFÍCIO DO TORONTO STAR – DIA.
Um porteiro uniformizado está na recepção. Dave aproxima-se
dele, entrando em alta velocidade no recinto.
DAVE
Mike HOOPER, por favor! Chame Mike HOOPER! É uma
emergência!
PORTEIRO
Calma, amigo. Vamos com calma. O Sr. HOOPER não está
na redação.
Eu preciso
morte!
DAVE
falar com
ele.
É
questão
de
vida
ou
O porteiro parece não entender o que DAVE está falando.
PORTEIRO
Vida ou morte?
DAVE
Isso mesmo! A vida de Mike está correndo perigo!
PORTEIRO
(aparentemente o porteiro acha que DAVE é maluco)
Eu entendo. Mas Mike realmente não está na redação.
Ele vem muito pouco aqui.
DAVE
Onde posso conseguir o endereço dele?
PORTEIRO
Isso é só com ele. O jornal não pode dar o endereço
de nenhum profissional. Trata-se de normas internas,
senhor.
DAVE
Não! Trata-se de vida ou morte!
DAVE agarra o sujeito pelo pescoço.
121
DAVE
Dê-me logo o endereço. Vamos! O endereço!
PORTEIRO
Eu não sei. Garanto que o jornal não sabe o endereço
de nenhum de nós!
DAVE
Isso é um absurdo! Tem que ter!
PORTEIRO
Juro que estou dizendo a verdade, senhor. Por favor
não me machuque.
DAVE parece então perceber que estava muito alterado. Solta o
porteiro.
DAVE
O senhor me desculpe.
HOOPER é meu pai!
Estou
transtornado.
Mike
PORTEIRO
Eu compreendo sua urgência, senhor. Mas realmente
não tenho o endereço dele. Ninguém aqui no jornal
tem.
DAVE
Meu Deus! O que eu fazer?
DAVE sai correndo e, já na rua,
chama um táxi.
ENTRAMOS COM ELE no táxi.
MOTORISTA
Para sua casa, senhor?
DAVE
Sim. Minha casa. Como é que o senhor sabe?
MOTORISTA
Estaremos lá em dez minutos exatos. O trânsito está
ótimo.
DAVE
Ei! Eu não disse qual é o meu endereço.
MOTORISTA
Disse sim. Eu não sou adivinho.
DAVE
122
Meu Deus! Todos enlouqueceram? Isso não pode estar
acontecendo!
MOTORISTA
Calma, senhor. O senhor é novato na cidade?
DAVE
(aliviado)
Isso mesmo! Sou novato!
MOTORISTA
O senhor ainda não foi informado, mas somos todos
telepatas por aqui.
DAVE
Impressionante. Vamos para minha casa então.
EXT. CASA DE DAVE/SCARBOUROUGH/TORONTO – DIA.
Maria acorda abruptamente e salta da cama.
Coloca a roupa rapidamente e sai do quarto.
MARIA atravessa a sala de estar, olha pena janela e corre na
direção da porta de saída da casa.
DAVE está chegando. O táxi para e ele desce.
Procura dinheiro nos bolsos e dá duas notas para o motorista.
DAVE
Obrigado. Fique com o troco.
Maria vai até DAVE.
DAVE
Que bom que você me ouviu. E aí? Conseguiu falar com
Mike?
MARIA
Não. Ele deve estar dormindo. Aí não tem jeito. Por
isso você também não conseguiu.
DAVE
Meu Deus! Não sei mais o que fazer!
CORTA PARA
VAMOS AO PARQUE.
Mike está sentado num banco do parque, cochilando com um livro
nas pernas. Começa a acordar.
123
MARIA
Já sei onde ele está!
VOLTAMOS a DAVE e Maria.
DAVE
Para o parque!
O mesmo táxi está de volta, aproximando-se com rapidez, de ré,
parando bruscamente, fazendo muito barulho com a fricção dos
pneus no asfalto.
Os dois entram no carro, não falam nada e o motorista arranca
o carro, bem rápido.
EXT. PARQUE DE TORONTO – DIA.
Um dia de céu limpo em Toronto. Mike levanta-se do banco e
coloca o livro que estava sob suas pernas na pasta de couro.
Consulta o relógio
movimentada.
e
decide
atravessar
a
rua,
que
é
bem
Perto dali, a cerca de 50m, para o táxi que conduz DAVE e
Maria e os dois descem, procurando Mike com os olhos.
Mike começa a atravessar a rua.
DAVE
(gritando)
Mike! Ei! Mike! Aqui! Espere por nós, Mike!
Mike parece ouvir, mas olha para o lado contrário de onde veem
DAVE e Maria.
DAVE corre (é muito rápido) na direção dele.
Um carro aproxima-se em alta velocidade, indo em direção a
Mike.
DAVE
Volte! Volte! Mike: O carro!
Mike não vê que o carro vem na direção dele.
PLANO APROXIMADO de David, no volante do carro, bem perto de
Mike, que olha para trás e vê Maria, mas não DAVE que já está
bem perto dele.
PONTO DE VISTA de MIKE: vê Maria, acenando.
124
Tudo acontece muito rápido: o carro está quase em cima de
Mike, quando DAVE surge repentinamente, empurrando-o para
frente e sendo atropelado no lugar dele.
Mas o carro não parece colidir com DAVE.
Através de uma fusão, o carro passa através do corpo de DAVE.
A trilha sonora acentua um choque, que não parece ser físico,
mas realmente acontece.
DAVE é jogado longe e vai ao chão desmaiado, com sangue saindo
da cabeça, que bateu ao chão ao cair.
A IMAGEM QUE SE SEGUE é congelada e começa a ser exibida como
num daqueles antigos projetores de slide, foto a foto:
Mike, desesperado corre até ele, abaixa-se, coloca a cabeça de
DAVE em sua perna e paga na mão dele.
Os dois ficam de mãos dadas muito tempo, DAVE desmaiado e Mike
olhando para ele com todo o carinho do mundo.
VEMOS QUE FOMOS TRANSPORTADOS A UMA SALA DA CASA DA INFÂNCIA
DE DAVE, EM QUE MIKE, HANAH e ele assistem à sequência de
slides que foi exibida pouco antes (agora são eles que veem os
slides, não só o espectador).
MIKE
DAVE! Meu filho!
VOLTAMOS À RUA em que houve o atropelamento de DAVE.
Perto dali, VEMOS HARRISON sorrindo.
O carro em que David ia para bruscamente.
VEMOS que
HARRISON.
David,
ao
volante,
está
sorrindo,
olhando
para
Cumprimentam-se com um gesto e David vai embora.
HARRISON surge repentinamente perto de Mike e o levanta,
puxando-o pelos ombros, com firmeza, mas com carinho.
Mike parece acalmar-se.
Fica abraçado a HARRISON. Maria aproxima-se, sorrindo também.
OUVIMOS a sirene de uma ambulância e logo VEMOS um veículo
paramédico aproximando-se de onde DAVE está estendido no chão,
inconsciente.
125
OUVIMOS trovões.
O céu cobre-se de nuvens e vários raios iluminam o fim de
tarde.
VOLTAMOS À CASA MENOR DA FAZENDA DE ALICE.
CLOSE-UP do rosto de DAVE.
Um filete de sangue escorre de algum lugar na cabeça dele.
DAVE abre os olhos e vê a expressão angustiada de Laura,
olhando fixamente para ele, em mudo desespero.
DAVE
Mike? Pai? Você está bem, pai?
O rosto de LAURA surge na tela, no PONTO DE VISTA de DAVE.
Laura começa a chorar de alegria: pensava que DAVE estivesse
morto. Ao fundo, a sirene de ambulância cada vez mais perto.
LAURA
Meu amor. DAVE, você voltou, seu plebeu maldito.
Você voltou!
DAVE
Laura? O que você está fazendo aqui?
LAURA
Está tudo bem, querido. Agora está tudo bem. Você
vai ficar bom.
DAVE
Estamos no Rio de Janeiro?
LAURA
Sim, querido. Estamos no Rio. Mas
Toronto. É para lá que você quer ir?
vamos
para
DAVE
É. É para Toronto que eu quero ir.
Paramédicos entram na sala e aproximam-se de DAVE, colocando-o
numa maca.
Sempre de mãos dadas com ele, Laura acompanha-o e entra com
ele na ambulância.
CRÉDITOS FINAIS, impressos sobre imagens da chegada da Polícia
Federal.
126
Na trilha sonora, YESTERDAY, com George Harrison.
127