Acórdão do Tribunal da Relação 925.36 Kb

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Acórdão do Tribunal da Relação 925.36 Kb
Tribunal da Relação de Lisboa
Rua do Arsenal Letra G - 1100-038
Tel: 213222900 - Fax: 213222992 . Email: [email protected]
Processo n.º 263/06.8JFLSB.L1
*****
Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da
9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
Na 1ª Vara Criminal de Lisboa, por acórdão de 23/02/2009, constante de
fls. 2062 a 2119, foi o Arg.1 Domingos Gonçalves Névoa, com os restantes sinais
dos autos (cf. fls. 1741) condenado nos seguintes termos:
“VIII. E assim, julgando parcialmente procedente a pronúncia, nos
termos e com os fundamentos expostos, decide este Tribunal Colectivo, em:
1. Condenar o arguido, Domingos Gonçalves Névoa, como autor de um
crime de corrupção activa para acto lícito, previsto e punível nos termos do
mencionado Art.º 18.º, n.º 2, da Lei 34/87 de 16/7, na pena de 25 (vinte e cinco)
dias de multa, à razão diária de € 200 (duzentos euros), o que perfaz o montante
global de € 5.000,00 (cinco mil euros); e
2. condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça
em 10 (dez) Ucs, e a procuradoria em ¼ - Artºs 513º do CPPenal e 85º nº 1 e 95
nº 1, estes do CCJudiciais – a que acresce 1% da taxa de justiça nos termos do
Artº 13º, nº 3, do DL 423/91, de 30/10.”.
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Inconformado, veio o Ex.m.º Magistrado do MP2 interpor recurso da
referida decisão com os fundamentos constantes da motivação de fls. 2138 a
2161, com as seguintes conclusões:
“a) Face à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, a
conduta do arguido integra a prática de um crime de corrupção activa para a
prática de acto ilícito, previsto e punível noArt.18°, n.° 1, por referência aos Arts.
16°, n.° 1, e3°, n.°1, alínea i), da Lei n.° 34/87 de 16/07, na redacção da Lei n.°
108/2001 de 28/11—e não um crime de corrupção activa para a prática de acto
licito, p. e p. pelo Art.18°n.° 2 da Lei n.°34/87,de 16/07, ilícito criminal pelo qual
foi condenado.
1
2
Arguido/a/s.
Ministério Público.
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b) O tribunal "a quo" não extraiu, como podia e devia, das transcrições
das gravações relativas aos encontros, entre a testemunha Ricardo Sá Fernandes
(doravante RSF) e o arguido, ocorrido sem 24/01/2006e27/01/2006 – constantes
do Apenso E, nem das declarações prestadas pela referida testemunha, os factos
relevantes à subsunção da conduta do arguido ao crime de corrupção activa para
a prática de acto ilícito.
c) A transcrição da gravação relativa ao encontro de 24/01/2006 constante do Apenso E, é clara.
d) Apesar da testemunha RSF vincar ao arguido que o seu irmão não o
quer prejudicar, o tribunal não valorou o distanciamento, intencional, que o
arguido manifestou em relação ao assistente, quando refere "...eu não falo com o
seu irmão, não posso." (sic)
e) A ser consistente a ideia, espelhada na fundamentação do acórdão, que
o arguido pretendia, tão só, que o Vereador assumisse, publicamente, a
legalidade do negócio, justificando essa conclusão na consulta de documentação
existente ao seu dispor no município ou na Câmara, não se compreende que o
mesmo não tomasse a iniciativa activa, com a ajuda da testemunha RSF, no
sentido de transmitir/explicar, pessoalmente, ao assistente, a razão dos seus
argumentos na base da estrita legalidade, caso, saliente-se, os mesmos tivessem a
dignidade legal que o acórdão, de certo modo, parece conferir.
f) Ora, o arguido assumiu posição contrária.
g) Tal comportamento não corresponde ao que seria de esperar do homem
médio numa posição de certeza e de convicção da legalidade dos seus
argumentos.
h) Não vinga o argumento, também, vertido na decisão impugnada, de que
não está provado que os negócios levados a cabo pelas empresas representadas
pelo arguido foram contrários à lei e lesivos dos interesses do Município por o
litígio judicial, ainda, estar pendente em tribunal e que não está demonstrado que
o arguido pretendia declarações do assistente que falseavam a verdade relativa a
assuntos a que tinha acesso nessa sua qualidade de vereador.
z) Se é verdade que o litígio judicial não teve, ainda, decisão final, não é
menos que daí se possa concluir que os negócios levados a cabo pelas empresas
representadas pelo arguido não foram contrários à lei e lesivos dos interesses do
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Município e sobre tal matéria é inequívoca, pública e conhecida a posição do
assistente, que considera que foram lesivos.
j) Sobre tal matéria a seu tempo o tribunal administrativo, porque o
competente, decidirá, sendo prematuro/precipitado tirar quaisquer ilações sobre
o desfecho da acção popular.
k) A partir da transcrições da gravação do encontro de 24/01/2006 constante do Apenso E, dúvidas não temos, que o arguido pretendeu manobrar o
Vereador, assistente, fazer com que alterasse, as suas convicções legais, nas suas
palavras"...demovê-lo…" das suas posições, a troco de uma compensação, de
natureza pecuniária.
l) Neste plano de demover o assistente das suas posições ganha particular
relevo a compensação monetária a pagar ao mesmo, a troco da desistência da
acção popular e de declaração pública sobre a legalidade da actuação das
empresas representadas pelo arguido.
m) Desta gravação do encontro resulta claro que o arguido pretendia, ao
contrário da valoração feita pelo tribunal, que o assistente através da declaração
pública manifestasse, precisamente, no palco da Câmara, posição favorável aos
seus interesses, só assim se compreende que reportando-se à declaração pública
concordou que a mesma fosse expressa numa reunião da Câmara ao referir
"Perfeitamente.... numa reunião da Câmara e manda isso para tribunal, manda a
desistência para tribunal..." (sic)
n) Na transcrição da gravação relativa ao encontro de 27/01/2006 constante do Apenso E, também, o tribunal não curou valorar a preferência do
arguido da declaração a ser proferida na Assembleia Municipal, ao responder a
pergunta feita pela testemunha RSF se"...preferia uma declaração na Câmara ou
na Assembleia?" respondeu "Na ahhhh', eu preferia, eu acho que na Assembleia
(imperceptível), há muitos jornalistas. "(sic)
o) A ser insofismável a ideia que o arguido pretendia tão só que o
Vereador assumisse, publicamente, a legalidade do negócio, justificando essa
conclusão na consulta de documentação existente ao seu dispor no município ou
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na Câmara, não se concebe, também, que, para tanto, apesar do negócio cumprir
todas as exigências legais, mesmo assim, tivesse que pagar a quantia monetária
de €200.000,00, objecto da proposta. Seria intolerável para o comum dos
homens.
p) É inegável que o arguido, mercê da reconhecida capacidade financeira
das empresas por si representadas, com obras realizadas por todo o território
nacional, não pretendeu, somente, que o assistente, na qualidade de Vereador,
tivesse a clarividência da legalidade dos negócios das empresas por si
representadas. Quis mais, muito mais.
q) Pretendeu condicionar a vontade política do visado, criando um clima
de permeabilidade favorável às suas pretensões, em futuros projectos, mormente
na capital do país assumindo a contrapartida monetária pedra de toque, na sua
acção.
r) Recordem-se, neste capítulo, as palavras do arguido quanto ao
esquema para recolher a quantia monetária objecto do pagamento a fazer ao
assistente "...Conforme faço uma escriturazinha, rapo 2 mil euros aqui, eh, 10 mil
euros aqui, 10 mil euros acolá, pronto, a curto prazo. Por lá em casa num cofre,
para, para a gente ir fazendo umas ratices, mas nisto não sou virgem, esteja à
vontade....Não sou virgem nestas coisas, não é? Não sou."(sic)
s) O arguido, sem qualquer rodeio, no seu diálogo com a testemunha RSF,
faz vincar a sua experiência na prática de esquemas denominados de"...ratices..."
... ratices... "envolvendo o desvio de dinheiro de negócios jurídicos, esquemas
ilícitos e contrários à lei, vangloriando-se até de não ser"...virgem..." nesses
esquemas.
t) Esta postura do arguido genuína, sem qualquer pejo e acanhamento,
direccionada à pessoa do assistente, outra leitura não pode ter de que com a sua
proposta pretendeu a violação, por parte do assistente José Sá Fernandes, dos
deveres de imparcialidade, de lealdade e de obediência à lei inerentes ao seu
cargo de Vereador e correspondente à prática de um acto contrário a esses
deveres.
U) O arguido como agente de corrupção activa visou, única e
exclusivamente, a prática de um acto ilícito pelo assistente.
v) O depoimento da testemunha RSF, prestado em 23/01/2008, constante
do CD 2-00:00:30 a 02:32:40 - não pode, também, deixar de ser valorado,
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positivamente, no sentido de que o arguido pretendia na sua acção de corrupção
activa a prática de um acto ilícito, por parte do seu irmão.
w) O tribunal "a quo" julgou, incorrectamente, ao dar como não provado
os factos, constantes do ponto IV. do acórdão elencados a fls. 2080 e2080 verso,
a saber que:
“…
.o mesmo arguido Domingos Névoa pretendesse que o Vereador José Sá
Fernandes viesse a afirmar a sua mudança de opinião em sede de reuniões dos
órgãos do Município de Lisboa;
.o mesmo arguido fizesse depender o pagamento do montante pecuniário,
tal como referido em a.19., do proferimento, por parte do Dr. José Sá Fernandes,
de declarações públicas na qualidade expressa de vereador da Câmara
Municipal de Lisboa;
(…)
.o arguido pretendesse com a declaração pública do Dr. José Sá
Fernandes aludida em a.36. e a.37, comprometer o vereador José Sá Fernandes
com uma versão de apoio aos interesses do mesmo grupo de empresas, de forma
a vinculá-lo em votações futuras de temas e de projectos em que as sociedades
por si participadas estivessem envolvidas;
.o arguido, para além do exposto em a.52., pretendesse uma alteração das
tomadas de posição do Dr. José Sá Fernandes em sede de artigos de imprensa e
enquanto vereador na Câmara Municipal de Lisboa, como fim de este passar a
reconhecer idoneidade e viabilizar projectos e negócios mantidos pelas empresas
de que o arguido era accionista, em particular as empresas"BRAGAPARQUES" e
"PARQUE MAYER – Investimentos Imobiliários";
.o arguido actuou com vista a levar o referido vereador a violar as
obrigações que havia assumido com a aceitação do seu mandato;." (sic)
y) A argumentação gizada em sede de impugnação da matéria de facto
impõe inevitáveis reflexos no enquadramento jurídico-penal da conduta do
arguido.
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z) O ilícito criminal referido em a) é punido, em abstracto, com uma pena
de prisão de 6 (seis) meses a 5 (cinco) anos.
aa) Tendo presente a culpa do arguido, as exigências de prevenção (geral
e especial) e as circunstâncias que depõem a seu favor - afigura-se-nos que se
mostra adequada, proporcional e justa, no caso em apreço, aplicar-lhe uma pena
concreta de2(dois) anos e (dois) 2meses de prisão, graduação da pena abaixo do
limite médio da pena.
bb) Pese embora a circunstância do arguido não ter evidenciado qualquer
interiorização do desvalor da respectiva conduta, já que negou os factos e não
mostrou qualquer arrependimento, considerando que não tem antecedentes
criminais, que se mostra familiar, social e profissionalmente inserido e é pessoa
respeitada no meio em que se insere e tendo, ainda, em consideração a respectiva
idade, neste sentido, vejam-se os factos provados no ponto III do acórdão - Cfr. c) Do julgamento e do relatório social de c.10. a c.18., constante de fls. 2084
verso a 2085 - entendemos ser possível, ainda assim, fazer um juízo de prognose
favorável quanto à possibilidade de a respectiva reinserção social se fazer em
liberdade.
cc) A simples censura do facto e a ameaça da prisão, no caso concreto,
realizam, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, sendo de
aplicar ao arguido o instituto da suspensão da execução da pena, previsto no
Art.50°doC.Penal.
dd) O tribunal "a quo" violou por errada interpretação e aplicação
mormente, os Arts.40°n.°s 1 e 2, 50°, 71°doC. Penal, Art. 18º, n.° 1, por
referência aos Arts. 16°, n.°1, e3°,n.°1, alínea i), daLei34/87de16/07,na redacção
da Lei 108/2001 de 28/11.
ee) Nesta conformidade e pelo exposto o acórdão impugnado deve ser
revogado e substituído por outro que condene o arguido pela prática de um crime
de corrupção activa para a prática de acto ilícito, previsto e punível no Art.18°,
n.° 1, por referência aos Arts. 16°, n.°1, e 3°, n.°1, alínea i), da Lei n.° 34/87 de
16/07, na redacção da Lei n.°108/2001de28/11, na pena de2 (dois) anos e (dois)
2 meses de prisão, pena esta suspensa na sua execução por igual período.”.
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Também inconformado, veio o Arg. interpor recurso da referida decisão,
com os fundamentos constantes da motivação de fls. 2162 a 2214, com as
seguintes conclusões:
“A
1 - Tais como foram autorizadas e levadas a cabo no processo e serviram
de fundamento para a decisão impugnada, as escutas telefónicas, a acção
encoberta, as gravações de som e imagem sem consentimento são ilegais e nulas.
2 - Tanto por violação dos pressupostos materiais como das exigências
formais-procedimentais de que a lei faz depender a admissibilidade e validade
destas medidas.
3 - A nulidade resulta logo da ostensiva e total falta de fundamentação do
despacho do Juiz de Instrução, de fls 15 dos autos, que autorizou as escutas
telefónicas, as gravações de conversas entre presentes e os registos de imagem.
4 - O despacho é totalmente omisso quanto a todos os tópicos que devia
convocar e sustentar: crime a perseguir, a sua pertinência ao catálogo das
respectivas
medidas,
a
suspeita
fundada
em
factos
concretos,
a
necessidade/subsidiariedade e a proporcionalidade.
5 - Mais do que uma fundamentação irregular ou insuficiente, o que está
em causa é a inexistência pura e simples de fundamentação.
6 - Patente e chocante, para além disso, a violação dos princípios de
subsidiariedade e de proporcionalidade.
7 - Por um lado, não há qualquer justificação para o recurso a uma
escalada de medidas, não se explicando porque são todas indispensáveis e
necessárias.
8 - Por outro, porquanto, para fazer face a uma infracção situada no
limiar inferior da ilicitude penal e quase-bagatelar (crime de corrupção activa
para acto lícito), foi mobilizado um arsenal de meios dos mais gravosos e
invasivos, como se se tratasse de um “combate” às formas mais drásticas da
criminalidade organizada ou do terrorismo.
7
9 - Ao violar abertamente a lei, o Juiz de Instrução limitou-se a agir como
longa manus do Ministério Público, assumindo passiva e acriticamente os seus
juízos de facto e de direito.
10 - E respondendo — na hora e de forma automática — a todos os seus
impulsos e solicitações.
11 - Com este procedimento, o Juiz de Instrução frustrou o sentido e
função da reserva de juiz, a saber, a tutela preventiva e a representação
compensatória
12 - e ofendeu, além de o disposto no nº 2 do artº 18º CRP, directamente
aplicável – nº 1 do mesmo preceito -, o conjunto normativo formado pelas
disposições combinadas dos arts 187º, nº 1, e 189º, nº 1, CPP, 2º e 3º da Lei nº
101/2001, de 25 de Agosto, e 1º e 6º da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro.
13 - As normas legais contidas nos arts 2º e 3º da Lei 101/2001, de 25 de
Agosto, 187º, nº 1, e 189º, nº 1, CPP, e 1º e 6º da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro,
são inconstitucionais, por ofensa do disposto nos arts 18º, nº 2, 32º, nº 1, e 205º,
nº 1, CRP, quando interpretadas no sentido de se considerar validamente
autorizados meios ocultos de investigação (acções encobertas, escutas
telefónicas, e gravações de conversas entre presentes e de imagens) através de
despacho que não contenha a descrição e análise dos factos concretos que
suportam a suspeita fundada da prática de crimes do catálogo que admitem o
recurso a esses meios, e a ponderação, explicitada num juízo concreto, da
necessidade/indispensabilidade
de
utilização
desses
meios
e
da
sua
proporcionalidade à gravidade concreta do crime a investigar.
14 - O direito português vigente — artigos 187º ss do Código de Processo
Penal, Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto e Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro,
correctamente aplicados, nomeadamente à luz das exigências constitucionais da
proporcionalidade e que foram violados pelo douto acórdão — não permite o
recurso a escutas telefónicas, acções encobertas e gravação de conversas cara-acara e de imagem, para investigar e perseguir o crime de Corrupção activa para
acto lícito.
15 - Mesmo que as medidas pudessem ter sido legalmente autorizadas e
realizadas para investigar um suposto crime de Corrupção activa para acto
ilícito, as provas através delas obtidas não podem ser valoradas para sustentar a
prova do crime de Corrupção activa para acto lícito.
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16 - Isto em conformidade com os regimes dos conhecimentos fortuitos e
dos conhecimentos-da-investigação.
17 - Porque as medidas — escutas telefónicas, acção encoberta, gravação
de conversas cara-a-cara e de imagem — foram ilegalmente autorizadas e
realizadas, as provas que elas permitiram obter não podem ser valoradas para
condenar o arguido Recorrente.
18 - Sobre elas impende uma intransponível proibição de valoração – arts
118º, nº 3, 125º e 126º, nº 2, CPP.
19 - As normas contidas nos arts 189º, nº 1, CPP, 2º, al. m), da Lei nº
101/2001, de 25 de Agosto, e 1º, nº 3, e 6º, da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, são
inconstitucionais, por violação do art 18º, nº 2, CRP, quando interpretadas no
sentido de permitirem o recurso à acção encoberta e ao registo de voz e imagem
para investigação de crimes de corrupção activa, para acto lícito ou ilícito.
20 - As normas legais contidas nos arts 2º e 3º da Lei 101/2001, de 25 de
Agosto, 125º, 187º, nº 1, e 189º, nº 1, CPP, e 1º e 6º da Lei 5/2002, de 11 de
Janeiro, são ainda inconstitucionais, por ofensa do disposto no artº 18º, nº 2,
CRP quando interpretadas no sentido de se considerar válidas para provar um
crime de corrupção activa para acto lícito as provas obtidas (quer por
conhecimento fortuito quer por conhecimento de investigação) através do recurso
a meios ocultos de investigação (acções encobertas, escutas telefónicas, e
gravações de conversas entre presentes e de imagens) autorizados para
investigação dum crime de corrupção activa para acto ilícito pelo qual o Arguido
foi absolvido.
21 - A autorização para acção encoberta concedida pelo Ministério
Público, no dia 24 de Janeiro de 2006 (fls 6/7 do Apenso B) - com tão sôfrega
precipitação que ocorreu dois dias antes de o proposto agente encoberto ter
prestado as suas primeiras declarações -, foi comunicada, nesse dia, ao Juiz de
Instrução (fls 15 dos autos), que não proferiu “despacho de recusa nas setenta e
duas horas seguintes”.
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22 - Face ao disposto no artº 3º, 3, da Lei 101/2001, de 25 de Agosto,
considerar-se-ia a acção validada.
23 - No entanto, todos os actos praticados neste processo no âmbito da
acção encoberta – signanter, as conversas entre presentes, com gravação cara-acara – ocorreram antes de esgotado esse prazo de setenta e duas horas,
24 - o que viola o princípio da reserva de juiz e a tutela preventiva e
representação compensatória que lhe estão imanentes, dos quais decorre que
nenhum acto possa ser praticado ao abrigo da acção encoberta sem que tenha
sido proferido um despacho expresso de validação da acção ou sem que se tenha
esgotado o prazo de setenta e horas necessárias para a sua validação tácita.
25 - Interpretado em sentido divergente, que permita a execução e
validade de quaisquer actos praticados no âmbito da acção encoberta antes de
proferido despacho de validação expressa ou de decorrido o prazo de validação
tácita, o nº 3 do artº 3º da Lei 101/2001, de 25 de Agosto, está ferido de
inconstitucionalidade material, por ofensa dos arts 18º, 1, e 32º, 1 e 8, CRP.
B
26 - Todas as provas produzidas no processo que tiveram origem no
agente encoberto Dr RICARDO SÁ FERNANDES (acção encoberta, gravações
de conversas entre presentes, declarações de testemunhas – dele e de todos
aqueles a quem ele transmitiu os factos) estão inquinados pelo vício irremível da
violação de sigilo profissional de advogado e não podem valer em juízo.
27 - Ao decidir de modo diverso, o douto acórdão valorou prova proibida
e ofendeu, por isso, o disposto no artº 87º, nº 1, al. e), e nº 5, da Lei 15/2005, de
26 de Janeiro, e no artº 125º CPP.
28 - Além do que, ao considerar permitida a actuação como agente
encoberto dum Advogado, maxime com violação do sigilo profissional, assumiu
uma interpretação inconstitucional das disposições conjugadas dos arts 2º e 3º,
nº 1, da Lei 101/2001, de 25 de Agosto, e 87º, nº 1, al. e), e nº 5, da Lei 15/2005,
de 26 de Janeiro, por violação do artº 208º CRP.
C
29 - Os factos dados como provados e imputados ao arguido Recorrente –
mesmo que fossem verdadeiros, o que não se concede - não fundamentam a sua
responsabilização, a nenhum título, pelo crime de Corrupção activa para acto
lícito (artigo 18º, nº 2 da Lei nº 34/87, de 16 de Julho).
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30 - Aqueles factos não preenchem a factualidade típica da incriminação,
logo porque as prestações esperadas ou solicitadas ao titular do cargo político
(desistência da acção popular e declaração pública de explicação e justificação)
são tipicamente irrelevantes: porque não configuram actos de “exercício do
cargo”.
31 - A responsabilidade criminal do arguido estará também excluída, por
falta de culpa, devida a erro não censurável sobre a ilicitude, nos termos do
artigo 17º, nº 1 do Código Penal.
32 - Porque não se provou que o arguido tivesse conhecimento da
ilicitude (penal) — coisa diferente do conhecimento da proibição — como não se
provou que o seu desconhecimento ou erro fosse censurável.
33 - O crime de corrupção activa (para acto lícito ou ilícito) é um crime
de intenção ou de resultado cortado, em que “o tipo de ilícito é construído de tal
forma que uma certa intenção surge como uma exigência subjectiva que concorre
com o dolo do tipo ou a ele se adiciona e dele se autonomiza. Isso sucede (…)
sempre que a intenção tipicamente requerida tem por objecto uma factualidade
que não pertence ao tipo objectivo de ilícito”.
34 - Este elemento da factualidade típica, que representa a intenção
específica de alcançar ou prosseguir um determinado fim – no caso dos autos: o
“fim indicado no artº 17º” da Lei 34/87 -, só está preenchido quando ocorre o
dolo directo do agente, não sendo susceptível de verificação através de dolo
eventual, nem sequer de dolo necessário,
35 - o que não ocorre no caso vertente.
36 - O douto acórdão impugnado violou, assim, as normas legais contidas
nos arts 18º, nº 2, da Lei 34/87, de 16 de Julho, e 17º, nº 1, do Código Penal.
D
37 - Na improcedência das questões que antecedem – o que não se admite
senão para efeito de raciocínio -,
38 - o douto acórdão julgou incorrectamente os factos provados que
descreveu nas alíneas a.13 a a.20; a.27; a.30; a.36 a a.38; a.41; a.49 a a.51;
11
a.53 e ainda os factos não provados que ficaram transcritos na rubrica IV desta
motivação,
39 - impondo-se a sua modificação (por forma a que os primeiros sejam
julgados como não provados e os segundos como provados), com base,
designadamente, nos seguintes elementos de prova produzidos e analisados em
julgamento e conjugados com as regras da experiência comum:
- declarações do Arguido;
-
declarações
do
agente
encoberto
Dr
RICARDO
SÁ
FERNANDES;
- cartão de visitas junto a fls 146 dos autos;
- mensagem SMS transcrita a fls 9 do Apenso F e transcrições de
telefonemas de fls 7 a 10 do mesmo Apenso;
- declarações da testemunha Drª R;
- declarações da testemunha O;
- reprodução, por transcrição constante do respectivo Apenso dos
autos, da gravação das conversas que ocorreram, nos dias 24 e 27 de Janeiro de
2006, entre o Arguido e o agente encoberto Dr RICARDO SÁ FERNANDES;
- relatório de exame forense de fls 2002/2017 e Parecer junto ao
requerimento apresentado pelo Arguido no dia 16.12.200.
40 - Além da síntese formulada pelo douto acórdão das diversas
declarações, o Recorrente, no texto desta motivação, referiu, localizou e
transcreveu, na parte com interesse, os depoimentos gravados, o que tudo deve
ter-se aqui por reproduzido.
41 - Ao decidir de modo diverso do propugnado, o douto acórdão
ofendeu, entre outros, o artº 127º CPP.
42 - Deve revogar-se o douto acórdão recorrido, absolvendo-se o
Recorrente.”.
*
Ainda inconformado, interpôs também recurso o Assistente José Paixão
Moreira Sá Fernandes, id. a fls. 1741, nos termos de fls. 2390 a 2403,
concluindo da seguinte forma:
“1ª A fls. 41 do Acórdão e no seu ponto IV deu o tribunal a quo como não
provado que o arguido Domingos Névoa pretendesse que o Vereador José Sá
Fernandes viesse a afirmar a sua mudança de opinião em sede de reuniões dos
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órgãos do Município de Lisboa, por um lado, e, por outro, que o arguido tivesse
actuado com vista a levar o referido Vereador a violar as obrigações que havia
assumido com a aceitação do seu mandato;
2ª Tais factos deviam ambos ter sido dados como provados atendendo à
prova produzida e existente nos autos, sendo de destacar, para além das
gravações realizadas, as declarações da testemunha Ricardo Sá Fernandes
produzidas na sessão de 16.09.08 e na sessão de 23.09.08;
3ª A decisão a quo deve, neste ponto, ser reformulada com base nos
elementos de prova acima mencionados e sem necessidade de recurso a qualquer
outra diligência processual;
4ª O crime de corrupção consumou-se no dia 22 de Janeiro de 2006 assim
que o assistente teve conhecimento dos factos propostos pelo arguido e
transmitidos pelo seu irmão, Dr. Ricardo Sá Fernandes, independentemente do
teor das conversas e reuniões posteriormente mantidas – a pedido da
investigação – nos dias 24 e 27 do mesmo mês;
5ª Se, após a consumação do crime no dia 2 de Janeiro de 2006, o
arguido, pensando melhor na eficácia que pretendia, propõe, à margem das
intervenções do assistente como vereador nos órgãos autárquicos, que seja feita
uma declaração com a presença dos meios de comunicação social tal alteração
ou complemento não tem relevância jurídico-penal: o crime estava consumado;
6ª Dando como provado que o arguido Domingos Névoa pretendeu que o
Vereador José Sá Fernandes viesse a afirmar a sua mudança de opinião em sede
de reuniões dos órgãos do Município de Lisboa, por um lado, e, por outro, que o
arguido actuou com vista a levar o referido Vereador a violar as obrigações que
havia assumido com a aceitação do seu mandato, então deverá esse douto
tribunal igualmente reformular a decisão a quo no sentido de considerar estarem
integralmente preenchidos os requisitos objectivos e subjectivos do crime de
corrupção activa para acto ilícito previsto e punido no artigo 18º, nº 1 da Lei
34/87 de 16 de Julho;
13
7ª Mas ainda que se conclua não ser de alterar qualquer da matéria de
facto do acórdão de primeira instância defende o assistente que da matéria de
facto dada como provada resulta, do mesmo modo, o preenchimento dos
pressupostos para a aplicação ao arguido da pena contida no artigo 18º, nº 1 da
citada lei, ou seja, entende o assistente que o Acórdão contém matéria de facto
suficiente para se impor a condenação do arguido pelo crime de corrupção activa
para acto ilícito;
8ª Tal conclusão decorre da análise conjunta dos seguintes factos
fundamentais descritos no Acórdão condenatório e dados como provados sob as
alíneas a.6., a.8., a.9., a.10., a.12., a.14., a.19., a.27., a.30., a.36., a.37., a.39.,
a.40., a.52, a.53. e a.54.:
9ª O arguido sabia e pretendia que o assistente, na qualidade de vereador,
produzisse as pretendidas declarações em violação frontal à sua consciência, em
violação frontal à sua opinião sobre a ilegalidade do negócio realizado e em
violação do princípio da imparcialidade;
10ª O assistente, enquanto vereador, deixava de ser livre tendo de
fornecer uma explicação que consubstanciava uma mentira sobre tais factos
porquanto não tinha mudado de opinião nem tinha tido acesso a novos
documentos;
11ª Acresce que o assistente também era corrompido para ficar em
silêncio relativamente à questão do direito de preferência (cfr. Ponto a.40. do
acórdão acima transcrito), ou seja, o arguido pretendia igualmente que o
vereador José Sá Fernandes tivesse uma conduta omissiva;
12ª Tais considerações são totalmente independentes da análise sobre a
legalidade substantiva do negócio realizado;
13ª O que importa, do ponto de vista das obrigações de qualquer vereador
eleito, é precisamente a expressão da opinião que tal vereador tem sobre um
determinado assunto;
14ª Os munícipes não podem tolerar que um vereador diga que mudou de
opinião se não mudou, não podem tolerar que um vereador afirme ter consultado
novos elementos se eles não existem e, por isso, aquele não os consultou, não
podem tolerar que um vereador afirme algo contrário ao que, interna e
externamente, sempre defendeu, não podem tolerar que subitamente um vereador
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fique em silêncio quanto a uma questão fundamental que sempre apontou
criticamente, tudo a troco de uma compensação pecuniária;
15ª É na valoração de tal liberdade e imparcialidade que o sistema está
construído;
16ª O arguido pretendeu comprar – COM DINHEIRO – quer a ficcionada
mudança de opinião do vereador José Sá Fernandes quer o seu comportamento
omissivo quanto ao direito de preferência;
17ª Se, por mera hipótese de raciocínio, o assistente tivesse feito o que o
arguido dele pretendia teria praticado um crime de corrupção passiva para acto
ilícito por ter violado as suas obrigações enquanto vereador, com particular
destaque para a violação do dever de imparcialidade
18ª Isso é inaceitável e configura hialinamente a prática de um crime de
corrupção activa para acto ilícito previsto e punido no artigo 18º, nº 1 da Lei
34/87 de 16 de Julho pelo qual o arguido deve justamente ser condenado numa
pena concreta de prisão!”.
*
O Ex.m.º Magistrado do MP, respondeu ao recurso do Arg., nos termos
de fls. 2472 a 2484, em suma, pugnando pela improcedência do mesmo.
*
O Arg. respondeu aos recursos do MP e do Assistente, nos termos de fls.
2515 a 2533, concluindo da seguinte forma:
“1. O douto acórdão impugnado não incorreu nos erros de julgamento da
matéria de facto nem da matéria de direito que os Recorrentes lhe atribuem.
2. Devem, por isso, os recursos ser julgados improcedentes.”.
*
O Assistente, respondeu ao recurso do MP, nos termos de fls. 2534 a
2543, em suma, mantendo as posições já assumidas na motivação do recurso que
interpôs.
E ao recurso do Arg., nos termos de fls. 2548 a 2575, em suma, pugnando
pela sua improcedência.
15
*
Neste Tribunal o Ex.m.º Procurador-Geral Adjunto reservou a sua tomada
de posição para a audiência requerida pelo Assistente (fls. 2593), na qual se
pronunciou por … .
*
Cumpre decidir.
A sentença (ou acórdão) proferida em processo penal integra três partes
distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo. A fundamentação abrange
a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que
o tribunal podia e devia investigar; expõe os motivos de facto e de direito que
fundamentam a mesma decisão e indica, procedendo ao seu exame crítico e
explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram
para fundamentar a decisão do tribunal.
Tais provas terão de ser produzidas de acordo com os princípios
fundamentais aplicáveis ou seja o princípio da verdade material; da livre
apreciação da prova e o princípio “in dubio pro reo”. Igualmente é certo que, no
caso vertente, tendo a prova sido produzida em sede de audiência de julgamento,
está sujeita aos princípios da publicidade bem como da oralidade e da imediação.
A decisão em crise fixou da seguinte forma a matéria de facto:
“III. Resultaram como provados, em julgamento e com interesse para a
decisão da causa (constituindo objecto de prova nos moldes do Art.º 124.º do
CPPenal), excluindo aqui os enunciados meramente valorativos, conclusivos ou
de cariz negativo (ou impugnatório), os factos seguidamente discriminados:
a) Da pronúncia e do julgamento.
a.1. O arguido Domingos Gonçalves Névoa é sócio gerente da sociedade
“BRAGAPARQUES – Estacionamentos, SA” que, por sua vez, detém a maioria
do capital social da sociedade “P. Mayer – Investimentos Imobiliários (Parque
Mayer), SA", com sede na Travessa do Salitre, n.º 35, em Lisboa.
a.2. Na data de 5 de Julho de 2005, a referida sociedade “P. Mayer –
Investimentos Imobiliários, SA", representada pelo arguido Domingos Névoa e
pelo seu sócio M, celebrou com a Câmara Municipal de Lisboa um contrato, sob
a forma de escritura pública, de permuta dos imóveis de que era proprietária,
sitos junto à Avenida da Liberdade, em Lisboa, e conhecidos como “Parque
Mayer”, por um terreno para construção, composto por uma superfície
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necessária para desenvolver uma área de edificação, acima do solo, no total de
61.000 (sessenta e um mil) metros quadrados,
República, zona de Entre Campos, em Lisboa,
sita
junto à Avenida da
local conhecido por “Feira
Popular”, pertencente à autarquia .
a.3. Os termos de tal acordo haviam sido aprovados, na data de 4 de
Fevereiro de 2005, em reunião da Câmara Municipal de Lisboa, com base na
proposta de deliberação n.º 36/2005, submetida à Assembleia Municipal, onde foi
aprovada por
deliberação de
1 de Março de 2005 – deliberação n.º
32/AML/2005 .
a.4. Os intervenientes em tal contrato acordaram ainda que os termos da
permuta previam a concessão à sociedade “P. Mayer – Investimentos
Imobiliários, Lda” de um direito de preferência sobre a aquisição de um outro
lote de terreno para construção, igualmente sito no espaço conhecido como Feira
Popular, zona de Entre Campos –
operação de loteamento de iniciativa
municipal n.º 3/2005, aprovado pela deliberação 307/CM/2005, que deu origem
aos lotes de terreno 2005/068 e 2005/069, correspondentes, respectivamente, às
descrições prediais n.º 299 e 300, da Freguesia de Nossa Senhora de Fátima
(informação da 2ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa de folhas 772 e
seguintes).
a.5. Na sequência desse entendimento, porque a sociedade “P. Mayer –
Investimentos Imobiliários, Lda” veio a apresentar uma proposta que foi
considerada equivalente à vencedora do procedimento de hasta pública
instaurado para a venda do referido segundo lote de terreno, veio também o
mesmo a lhe ser vendido, prevendo-se aí um total de 59.000 (cinquenta e nove
mil) metros quadrados de área de construção acima do solo, por um valor de
61.950.000,00 € (sessenta e um milhões novecentos e cinquenta mil euros),
conforme escritura de compra e venda celebrada a 20 de Julho de 2005, de cópia
a folhas 427.
a.6. Por discordar dos termos de tal acordo e por o julgar lesivo dos
interesses da autarquia de Lisboa, o cidadão José Sá Fernandes veio a intentar,
17
em Julho de 2005, uma acção popular, perante o Tribunal Administrativo e
Fiscal de Lisboa, onde lhe veio a ser atribuído o n.º 1862/05.BELSB e foi
distribuído ao 2.º Juízo, 4ª Unidade Orgânica Administrativa, deduzindo, contra
o Município de Lisboa, a sociedade “P. Mayer – Investimentos Imobiliários, SA"
e a “EPUL – Empresa Pública de Urbanização de Lisboa”, a pretensão de o
Tribunal declarar a nulidade das deliberações que aprovaram o acordo e do
contrato de permuta de terrenos supra referido, bem como a nulidade da
deliberação e das operações de loteamento do terreno onde se encontrava
instalada a Feira Popular .
a.7. O mesmo cidadão José Sá Fernandes veio ainda a requerer e a obter
o registo da referida acção, em sede de Registo Predial, como inscrição às
descrições prediais n.º 299 e 300, da Freguesia de Nossa Senhora de Fátima,
em Lisboa, correspondentes aos terrenos da designada Feira Popular adquiridos
pela “P. Mayer Investimentos Imobiliários, SA" por via do contrato de permuta
supra referido ( 2ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, doc. de folhas
774 e de folhas 819 e seguintes).
a.8. O cidadão José Sá Fernandes apresentou-se como candidato às
eleições autárquicas, para o Município de Lisboa, no acto eleitoral que veio a ter
lugar na data de 9 Outubro de 2005, vindo a ser eleito como vereador, cargo de
que tomou posse a 28 de Outubro de 2005.
a.9. No âmbito das funções que assumiu como vereador, José Sá
Fernandes continuou a manifestar-se e a tomar posições dentro da Câmara de
Lisboa contra o acordo supra referido, celebrado com a BRAGAPARQUES,
designadamente quanto aos projectos de viabilização de construção destinados
aos terrenos cedidos pela autarquia junto a Entre Campos.
a.10. Assim, o vereador José Sá Fernandes veio a tomar posição contra o
Plano de Alinhamento de Cérceas da Av. da República, do qual dependia a altura
de construção que viria a ser permitida na zona de Entre Campos, e que veio
apenas a ser aprovado para discussão pública e elaboração dos Planos de
Pormenor, através da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de
Lisboa e Vale do Tejo, na data de 7 de Junho de 2006 .
a.11. O Dr. José Sá Fernandes havia ainda tomado posição em actos
públicos contra outros interesses conexos com empresas participadas pelo
arguido e pela BRAGAPARQUES, tal como os termos dos acordos de exploração
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de parques de estacionamento subterrâneos celebrados com as referidas
empresas.
a.12. Ao mesmo tempo, o vereador José Sá Fernandes continuou a
patrocinar a acção popular n.º 1862/05.0 BELSB, mantendo o registo da sua
pendência a onerar os prédios descritos na 2ª Conservatória do Registo Predial
de Lisboa, inscrições prediais n.º 299 e 300, da Freguesia de Nossa Senhora de
Fátima.
a.13. Em face dos atrasos no desenvolvimento do projecto de construção
para os terrenos da designada Feira Popular, com os consequentes custos
financeiros, provocados por tais posições do vereador Sá Fernandes e face à
pendência, em sede de registo predial, do ónus relativo à acção pendente, para
além da má imagem pública que as suspeitas de ilegalidades implicavam as
sociedades associadas à “BRAGAPARQUES”, dificultando encontrar parceiros
para o desenvolvimento de projectos comuns,
o arguido Domingos Névoa
formulou o propósito de procurar fazer o referido José Sá Fernandes desistir da
acção referida em a.6. destes factos provados apresentando um proposta de
compensação pecuniária.
a.14. Pretendia o arguido Domingos Névoa que o mesmo José Sá
Fernandes procedesse à desistência da acção popular referida em a.6., sabendo
que para isso este teria de se justificar publicamente mediante uma explicação da
sua mudança de opinião quanto à valia e à legalidade do acordo de permuta,
afirmando a correcção dos procedimentos desenvolvidos pelas sociedades
participadas pela BRAGAPARQUES e pelos respectivos sócios.
a.15. Para o efeito, o arguido Domingos Névoa pensou em abordar o
irmão do mesmo vereador José Sá Fernandes,
o advogado Ricardo Sá
Fernandes, que sabia ter escritório no mesmo edifício e nas mesmas instalações
da sua advogada pessoal e das sociedades por si participadas, a Dra. Rita
Matias .
a.16. Assim, na data de 18 de Janeiro de 2006, o arguido Domingos
Névoa, identificando-se apenas como Domingos, telefonou, ao Dr. Ricardo Sá
19
Fernandes, para o telefone do escritório deste último, pedindo-lhe para
marcarem uma reunião, que deveria ocorrer fora das instalações do escritório,
dizendo apenas ser a fim de tratarem de um assunto de interesse comum e que
teria uma proposta a apresentar.
a.17. O Dr. Ricardo Sá Fernandes, acedeu a manter tal reunião com o
Domingos Névoa, que veio a ocorrer, por disponibilidade de agenda do primeiro,
apenas no dia 22 de Janeiro de 2006, cerca das 17H30, nas instalações de bar do
Hotel Mundial, junto à Praça da Figueira, em Lisboa.
a.18. No decurso desse primeiro encontro, o arguido Domingos Névoa
começou por abordar os antecedentes do negócio de permuta de terrenos
realizado entre a Câmara Municipal de Lisboa e a “P. Mayer Investimentos
Imobiliários”, lamentando-se do tempo já perdido até à celebração do negócio e
dando a entender ao Dr. Ricardo Sá Fernandes de que o procedimento por parte
da sua empresa havia sido correcto e conforme à lei, pelo que a acção judicial
interposta pelo irmão do seu interlocutor, o Dr. José Sá Fernandes, estaria
condenada ao fracasso, visando dar a aparência de não estar preocupado com o
resultado final de tal acção.
a.19. Nessa sequência, o arguido transmitiu ao Dr. Ricardo Sá Fernandes
que, de forma a evitar mais perdas de tempo no desenvolvimento de projectos
para os terrenos da antiga Feira Popular, estaria disposto a realizar o
pagamento de um montante pecuniário em benefício do Dr. José Sá Fernandes se
o mesmo viesse a desistir da acção pendente perante o Tribunal Administrativo e
Fiscal e a proferir declarações públicas no sentido mencionado em a.14..
a.20. Tendo-se apercebido do alcance da proposta que lhe estava a ser
dirigida, o Dr. Ricardo Sá Fernandes respondeu ao arguido que precisava de
falar com o irmão, não podendo dar qualquer resposta naquele momento, mas
comprometendo-se a contactar o mesmo José Sá Fernandes e a vir a dar uma
resposta num próximo encontro, tendo o arguido concordado com tal
procedimento.
a.21. Logo ficou acordado entre os dois vir a ocorrer um novo encontro,
no mesmo local, que seria marcado por mensagens escritas trocadas entre os
telemóveis dos dois, tendo o arguido Domingos Névoa dado como seu contacto o
número 967055609.
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a.22. Ainda no mesmo dia, o Dr. Ricardo Sá Fernandes contactou com o
seu irmão José Sá Fernandes, a quem deu a conhecer o encontro mantido e o teor
da proposta recebida, tendo os dois, de imediato, acordado em recusar a mesma
e dar conhecimento dos factos à autoridade judiciária.
a.23. Foi assim, instaurado o inquérito que abriu o presente processo, na
pendência do qual o Dr. Ricardo Sá Fernandes foi autorizado à prática de actos
de colaboração, na invocação da acção encoberta, em coordenação com a
Policia Judiciária, através de despacho que foi proferido e presente ao Juiz de
Instrução na data de 24 de Janeiro de 2006, não tendo recebido deste qualquer
oposição – procedimento de acção encoberta que consta do actual Apenso B
(despacho de fls. 15 do respectivo apenso).
a.24. Assim, o Dr. Ricardo Sá Fernandes, no âmbito dos referidos actos
de colaboração, aceitou participar em novo encontro com o arguido Domingos
Névoa, tal como já havia sido acordado entre os dois, através da troca de
mensagens escritas, tendo sido marcado para o próprio dia 24 de Janeiro, pelas
18:00H, de forma a permitir descobrir qual o pagamento concreto que seria
proposto e a concretizar melhor qual a actuação que o arguido pretendia obter
do seu irmão, o vereador José Sá Fernandes.
a.25. Ainda no dia 24 de Janeiro de 2006, pelas 18h00, tal como
previamente acordado, o Dr. Ricardo Sá Fernandes encontrou-se com o arguido
Domingos Névoa, no bar do Hotel Mundial, inquirindo-o sobre como é que iriam
proceder para ser realizado o pagamento e praticados os actos pretendidos,
colocando o arguido na perspectiva de o seu irmão vir a aceitar o proposto.
a.26. O arguido explicou então que não poderia haver contactos seus
directos com o Dr. José Sá Fernandes e que, mesmo os contactos telefónicos a
manter consigo deveriam passar a ser feitos através de recados ou mensagens
deixadas no telemóvel do seu filho B, com o n.º 91 7517377.
a.27. Mais disse o arguido Domingos Névoa que pretendia que o Dr. José
Sá Fernandes, na qualidade de Vereador, viesse dizer publicamente que, após ter
tomado posse, tinha consultado e analisado os processos existentes na Câmara
21
Municipal de Lisboa e que tinha concluído não haver qualquer ilegalidade por
parte da actuação das sociedades representadas pelo arguido em sede dos
acordos relativos aos terrenos do Parque Mayer e da Feira Popular.
a.28. Relativamente ao pagamento que se tinha proposto realizar, o
arguido afirmou que apenas poderia ser feito ao Dr. Ricardo Sá Fernandes, de
preferência no Minho, local da sede da BRAGAPARQUES, e que seria mais fácil
se lhe pudessem arranjar documentos de suporte de despesa, pois de outra forma
teria que ir desviando alguns montantes das receitas das empresas, mas admitiu
ainda que poderia ser feito a coberto de um contrato promessa de um andar num
edifício que uma empresa do grupo projectava construir em Lisboa, na zona da
Estefânia.
a.29. Quanto ao montante que estaria disposto a pagar, o arguido referiu
a quantia de 200.000,00 € (duzentos mil euros), que teria que entregar ao Dr.
Ricardo Sá Fernandes em várias tranches, dadas as dificuldades em obter um
tal montante.
a.30. O arguido expressou que uma das hipóteses poderia passar por
uma declaração, por parte do Dr. José Sá Fernandes, na reunião da Câmara
Municipal, e com a remessa para o Tribunal de um requerimento de desistência
da acção pendente, pedindo ao Dr. Ricardo Sá Fernandes que marcasse novo
encontro logo que tivesse uma resposta de aceitação ou não da mesma proposta.
a.31. Ainda em coordenação com a Policia Judiciária, nos moldes atrás
descritos, e de forma a confirmar o interesse na proposta apresentada pelo
arguido, o Dr. Ricardo Sá Fernandes sugeriu a realização de novo encontro,
enviando para tal, na data de 26-1-2006, pelas 10:00H, uma mensagem escrita
para o telemóvel do B dizendo “amanhã às 12H00 no mesmo local? Peço
confirmação”.
a.32. O mesmo B, logo após receber a mensagem, contactou com o seu
pai, arguido Domingos Névoa, que manifestou interesse em falarem os dois antes
de confirmarem a reunião.
a.33. O arguido Domingos Névoa apenas confirmou a reunião na parte da
tarde do mesmo dia, tendo instruído o seu filho B para mandar, via telemóvel,
uma mensagem escrita ao Dr. Ricardo Sá Fernandes com os dizeres “É só para
confirmar a presença amanhã às 12 Horas, no local marcado”.
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a.34. Assim, o arguido Domingos Névoa e o Dr. Ricardo Sá Fernandes
voltaram a encontrar-se no Bar do Hotel Mundial, em Lisboa, no dia 27 de
Janeiro, pelas 12H00.
a.35. Nesse novo encontro o mesmo Domingos Névoa começou por
procurar fazer crer que a acção instaurada pelo Dr. José Sá Fernandes teria
poucas possibilidades de êxito, até porque teria recebido da sua advogada a
indicação de que existiam pareceres jurídicos no sentido da existência de
incompatibilidade entre o estatuto de vereador e o de patrocinador de uma acção
popular, visando o arguido diminuir a relevância da actuação que pretendia que
o Dr. José Sá Fernandes levasse a cabo.
a.36. Porém, tendo recebido do Dr. Ricardo Sá Fernandes, conforme
instrução da Policia Judiciária, a indicação de que o José Sá Fernandes estaria
disposto a considerar a sua proposta, o arguido Domingos Névoa frisou a
necessidade daquele vereador fazer um esclarecimento público, no qual deveria
afirmar que as pessoas e as entidades que haviam negociado com a CML o
contrato da Feira Popular/Parque Mayer, isto é, o arguido e os demais
accionistas da “Bragaparques” e da “P. Mayer - Investimentos Imobiliários”,
haviam estado de boa fé, tendo cumprido as exigências legais, pelo que não
deveriam ser prejudicados, tanto mais que apenas haviam actuado na defesa dos
interesses das suas empresas.
a.37. O arguido Domingos Névoa afirmou ainda que tal declaração
poderia ser feita em sede de Assembleia Municipal, mas o que lhe interessava é
que fosse feita na presença de elementos da comunicação social.
a.38. Com efeito, visava o arguido, para além da desistência da acção, de
uma justificação pública que, por essa via, demonstrasse a legalidade do negócio
e, por essa via, melhorar a imagem pública das sociedades “BRAGAPARQUES”
e associadas, nas quais tinha participação.
a.39. Confrontado então, pelo Dr. Ricardo Sá Fernandes, com a
possibilidade de o vereador José Sá Fernandes vir a ser criticado por terceiros
por ter mudado de posição, o arguido realçou que, na declaração, o vereador
23
deveria remeter para documentos e consulta de processos que antes não lhe
estavam acessíveis, ao mesmo tempo que garantiu que, da parte das suas
empresas, seria feita também uma declaração de apoio à nova posição tomada
pelo vereador.
a.40. O arguido Domingos Névoa explicou então ao Dr. Ricardo Sá
Fernandes que a única oposição credível ao contrato de permuta e que poderia
prejudicar o desenvolvimento dos projectos da Feira Popular era a que provinha
do Dr. José Sá Fernandes, pelo que este deveria ficar em silêncio, em particular
no que se pudesse referir ao direito de preferência reconhecido pela Câmara
Municipal de Lisboa, realçando ainda o arguido que o José Sá Fernandes não
ficaria comprometido consigo aos olhos do público, até porque o arguido não
conhecia sequer pessoalmente o vereador e, no futuro, se se cruzassem em
qualquer ocasião, não precisavam sequer de se cumprimentar.
a.41. O arguido Domingos Névoa insistiu, de novo, que a declaração
pública a realizar pelo vereador poderia esclarecer que os responsáveis da
sociedade do grupo BRAGAPARQUES não tinham qualquer responsabilidade
pelos termos do negócio de permuta e sugeriu mesmo que a declaração
abrangesse uma censura ao Dr. Jorge Sampaio por este se ter oposto à
instalação de um casino no espaço do Parque Mayer, o que, na versão do
arguido, teria permitido resolver o problema sem custos para o Município e sem
permutas.
a.42. O Dr. Ricardo Sá Fernandes colocou então, de novo, ao arguido a
questão do montante e da forma do pagamento, tendo Domingos Névoa renovado
a proposta de entrega de 200.000,00 € (duzentos mil euros) e propondo-se fazer a
mesma por cheque e na totalidade caso lhe fosse entregue um documento de
suporte de despesa, mesmo que relativo a serviços.
a.43. No entanto, dada a dificuldade em produzir um tal documento, tanto
mais que o arguido reforçou não poder haver qualquer ligação com o escritório
de advogados do Dr. Ricardo Sá Fernandes, o arguido Domingos Névoa propôs
realizar o pagamento em numerário, podendo de imediato entregar 100.000,00 €
(cem mil euros) e depois, no espaço de mês e meio, realizar duas outras entregas
de 50.000,00 € (cinquenta mil euros) cada.
a.44. O arguido explicou que tal pagamento faseado se ficava a dever ao
facto de o dinheiro provir de montantes parciais não manifestados, recebidos nas
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escrituras de compra e venda que fosse realizando, declarando ser um modo de
proceder em que não era “virgem”.
a.45. Quanto ao momento oportuno para fazer a declaração, o arguido
sugeriu que o identificado José Sá Fernandes a fizesse logo a partir do dia 31 de
Janeiro, terça-feira seguinte, uma vez que o Domingos Névoa estaria então
ausente do país, em Angola, não podendo ser associado à mesma, propondo para
o efeito realizar o pagamento da quantia prometida na Segunda Feira, dia 30 de
Janeiro, ou na própria terça feira de manhã.
a.46. O arguido defendeu que a declaração do mesmo José Sá Fernandes
viesse a ser realizada durante a sua ausência do país, mas o Dr. Ricardo Sá
Fernandes, visando ganhar tempo, pretextou que na segunda e na terça feira
seguintes estaria ocupado em julgamento, não podendo deslocar-se a encontros
para receber o dinheiro.
a.47. O arguido voltou ainda a insistir em realizar uma entrega de
dinheiro antes de se deslocar a Angola, propondo mesmo que o Dr. Ricardo Sá
Fernandes fosse a sua casa, em Braga, no dia seguinte, dia 28 de Janeiro,
Sábado, proposta que este último recusou, pretextando ter que falar com o irmão
José Sá Fernandes sobre os termos e as consequências da declaração pública a
realizar.
a.48. O arguido Domingos Névoa propôs então fazer a entrega do
numerário em qualquer outro ponto, sugerindo um escritório no Porto, um
restaurante em Braga ou mesmo no parque de estacionamento subterrâneo do
Martim Moniz, em Lisboa, mas o Dr. Ricardo Sá Fernandes, ainda visando
ganhar tempo, terminou o encontro dizendo que voltaria a contactar o arguido a
partir do dia 6 de Fevereiro, segunda feira seguinte, sendo então marcada uma
data e um local para ser feita a entrega do dinheiro.
a.49. Após este encontro, face ao protelar da aceitação da entrega do
dinheiro, o arguido Domingos Névoa desconfiou que terceiros tivessem tido
conhecimento dos contactos mantidos com o Dr. Ricardo Sá Fernandes e decidiu
procurar ocultar e disfarçar os seus verdadeiros propósitos, visando criar a
25
aparência de que, nos encontros mantidos, tinha estado em causa dar uma
contribuição para uma campanha política.
a.50. Assim, para o efeito, o arguido deu instruções ao seu filho B para
mandar uma mensagem escrita, via telemóvel, ao Dr. Ricardo Sá Fernandes, com
os dizeres “o meu pai pede para avisar que o valor por vós pedido para a
campanha política não nos é possível. Devido à nossa filosofia não patrocinamos
campanhas”, mensagem que veio a ser enviada do telemóvel n.º 91 7517377,
pelas 15H39, do dia 30 de Janeiro de 2006.
a.51. O arguido não voltou a contactar com o Dr. Ricardo Sá Fernandes
em vista do exposto em a.49., para o que inscreveu num cartão de visita os
seguintes dizeres: “Dr. R. Sá Fernandes que um apoio para campanha politica
250.000 Zero” (documento constante de folhas 146 dos autos).
a.52. Ao abordar e manter três encontros com o Dr. Ricardo Sá
Fernandes, o arguido Domingos Névoa visava conseguir, a troco de uma
prestação pecuniária, tal como exposto em a.14., que o identificado José Sá
Fernandes procedesse à desistência da acção popular referida em a.6., sabendo
que para isso este teria de se justificar publicamente mediante uma explicação da
sua mudança de opinião quanto à valia e à legalidade do acordo de permuta,
afirmando a correcção dos procedimentos desenvolvidos pelas sociedades
participadas pela BRAGAPARQUES e pelos respectivos sócios (em particular as
empresas
“BRAGAPARQUES”
e
“PARQUE
MAYER
–
Investimentos
Imobiliários”).
a.53. O arguido Domingos Névoa sabia que o Dr. José Sá Fernandes
exercia um mandato electivo como vereador na Câmara Municipal de Lisboa,
mas actuou no sentido exposto, sabendo que, dessa forma, condicionava o
exercício das suas funções e a sua autonomia política, propondo-se realizar a
favor do mesmo atribuições financeiras e patrimoniais para tal fim.
a.54. O arguido Domingos Névoa sabia ainda que, com a sua conduta,
estaria a colocar em causa a confiança que os eleitores haviam depositado no Dr.
José Sá Fernandes, ao proporcionarem a sua eleição como vereador, bem como
a soberania e a autonomia das decisões que o mesmo viesse a tomar na qualidade
de eleito municipal.
a.55. O arguido Domingos Névoa actuou livre e conscientemente, sabendo
que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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*****
b) Da contestação do arguido e do julgamento.
b.1. O arguido desloca-se há anos ao escritório da sua advogada Dr.ª R,
local onde o identificado Dr. Ricardo Sá Fernandes também exerce a advocacia.
b.2. Sendo a sua voz perfeita e imediatamente reconhecida pela telefonista
do escritório sempre que estabelece com ele ligação telefónica.
b.2. O Dr. Ricardo Sá Fernandes é sócio da Sociedade de Advogados “L
& Associados”, da qual é também sócio a Dra. R.
b.4. Trabalhando ambos, tal como descrito em b.1., no escritório sito na
Rua J, em Lisboa.
b.5. Desde há vários anos a esta parte, a Dra. R patrocina, como
advogada, os interesses das várias sociedades de que o arguido é representante,
incluindo aquela “P. Mayer Investimentos Imobiliários”, SA..
b.6. Facto que é do conhecimento do Dr. Ricardo Sá Fernandes.
b.7. O Arguido, para tratar dos interesses das suas representadas,
desloca-se, desde há anos, todas as semanas aos escritórios da identificada “L &
Associados”, onde se cruza e, por vezes, trocava algumas palavras com o Dr.
Ricardo Sá Fernandes.
b.8. Em Junho de 2004 e Agosto de 2005 o advogado em regime de
estágio, Dr. F, a pedido da identificada Dr.ª R que para isso falou com o Dr.
Ricardo Sá Fernandes, patrono daquele primeiro, veio a produzir para o grupo
de empresas representado por Domingos Névoa, dois pareceres (um primeiro
parecer e uma nova versão actualizada) e uma consulta jurídica a propósito do
enquadramento jurídico-tributário dos Fundos de Investimento, isto a título
particular e sem qualquer intervenção técnico ou de opinião do seu patrono, o
advogado Ricardo Sá Fernandes.
b.9. O mesmo Dr. F utilizou, para o envio de um dos pareceres à Dr.ª R, o
e-mail do Dr. Ricardo Sá Fernandes, nos moldes documentados a fls. 1533 dos
autos, por saber que este era gerido pela secretária deste último e em
combinação prévia com esta.
27
b.10.
No dia 8 de Novembro de 2005, a Dr.ª Rita Matias, em
representação da Ré P. Mayer - Investimentos Imobiliários, SA., contestou a
acção descrita em a.6. e a.7., tendo dado entrada nessa data ao respectivo
articulado.
b.11. No dia 30 de Novembro de 2005, foi junta a esse processo uma
procuração, datada de 31/7/2005, através da qual o Autor da acção constituía
seus mandatários forenses o Prof. Dr. L (também sócio daquela Sociedade de
Advogados), o Dr. Ricardo Sá Fernandes e outros dois colegas de escritório.
b.12. Quando, no dia 17 de Janeiro de 2006, foi notificada da junção aos
autos da procuração outorgada a favor dos seus colegas e, por essa via, tomou
conhecimento desse patrocínio a Dr. R interpelou de seguida o Dr. Ricardo Sá
Fernandes, exigindo-lhe explicações para o facto.
b.13. E porque entendeu que as mesmas não seria satisfatórias, no dia 24
de Janeiro seguinte enviou a cada um dos Advogados constituídos pelo Autor Dr.
José Sá Fernandes uma carta com o objectivo de obter, segundo o que se
encontrava escrito, a sanação do conflito de interesses.
b.14. Carta essa que obteve resposta escrita no dia 26 de Janeiro
seguinte, nos moldes que se documentam a fls. 1804 dos autos, onde se refere que
em Julho de 2005 foi solicitado pelo identificado José Sá Fernandes aos
mencionados J e Ricardo Sá Fernandes, que o patrocinassem nas acções
populares que movera contra o município de Lisboa, o que foi aceite.
b.15. Em 16/2/2006 veio a ser junto aos referidos autos de acção
administrativa um substabelecimento, datado de 25/1/2006, a favor do advogado
Dr. J, dos poderes anteriormente conferidos ao Prof. J, Dr. Ricardo Sá
Fernandes e outros.
b.16. Da informação de serviço exarada a fls.
2 do dossier de
acompanhamento de acção encoberta (Apenso B), datada de 24/1/2006, consta
que o Dr. Ricardo Sá Fernandes, no dia 24 de Janeiro de 2006, informou a
Polícia Judiciária de que o Arguido "o contactou, no intuito de saber da
disponibilidade do Vereador Sá Fernandes para, mediante o pagamento de
valores em numerário em montante o combinar oportunamente, desistir dos
acções populares que intentou contra o CML, mormente a acção conexa com o
negócio/Permuta do Parque Mayer e a Feira Popular, oferecendo os seus
serviços para a prática de actos de colaboração (…)”.
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b.17. E, ainda, nessa mesma informação, que “mais informou o
denunciante que já decorreu no Hotel Mundial, em Lisboa, um encontro no dia
22 do corrente mês, do qual realizou uma gravação de parte das conversas
mantidas, cuja cópia se anexa (um mini CD)”.
b.18. Nesse mesmo apenso B. consta um despacho exarado pelo
procurador da República responsável pelo inquérito, datado de 24/1/2006,
autorizando a actuação do identificado Dr. Ricardo Sá Fernandes ao abrigo da
acção encoberta.
b.19. No mesmo dia 24/1/2006, foi lavrado a fls. 15 dos autos principais,
após remessa dos autos (principais e apenso de acção encoberta / dossier de
acompanhamento), um despacho judicial a autorizar a intercepção e gravação de
comunicações de telefones móveis, a intercepção e gravação de conversas e a
captação de som e imagens, sendo que em 3/2/2006, veio a ser proferido novo
despacho judicial, datado de 3/2/2006, com homologação das transcrições,
validação da intercepção e gravação de conversa, determinação de transcrições
e autorização da realização de exame ao telemóvel, isto a fls. 71 dos autos
principais.
b.20. Em 8/2/2006, o identificado Dr. Ricardo Sá Fernandes, veio a
prestar no desenrolar do apenso de acção encoberta um novo depoimento, no
qual esclareceu “que, em Julho de 2005, o seu irmão pediu ao P e ao próprio
depoente que o passassem a patrocinar nas acções populares que ele tinha
movido contra a CML, o que consta de declarações públicas então por ele feitas.
Assim tem acontecido, tendo o P e o depoente chegado a juntar procuração aos
Autos da acção movida pelo seu irmão relativamente ao Parque Mayer. No
entanto, quando souberam que essa acção havia sido contestada pela sua colega
de escritório Dr.ª R, o Professor L e o depoente entenderam (após contactos
recíprocos com a Dr.ª R) que, para evitar embaraços no escritório, seria
preferível, nessa acção do Parque Mayer, substabelecer os poderes noutro
colega, Dr. J, o que aconteceu em momentos contemporâneos dos factos que ora
se relatam, já em Janeiro do corrente ano. O P e o depoente não chegaram a ter
29
qualquer intervenção nessa acção judicial e nas conversas com o Sr. Domingos
Névoa nunca houve qualquer referência a essa situação, tendo o depoente feito
questão de sublinhar que não estava a falar com ele como Advogado, mas como
irmão do Vereador José Sá Fernandes, logo que percebeu que a conversa tinha a
ver com os negócios do Parque Mayer”, isto nos moldes de fls. 14-15 dos autos
de apenso B – Anexo de Acção Encoberta.
c) Do julgamento e do relatório social.
c.1. O arguido Domingos Gonçalves Névoa é natural do concelho de (…).
c.2. O mesmo arguido viveu (…).
c.3. Aos 14 anos o arguido Domingos Névoa (…).
c.4. Com 17 anos de idade (…).
c.5. Durante o referido período (…).
c.6. De seguida (…).
c.7. Emigrou então para (…).
c.8. Com os dividendos obtidos na referida actividade (…).
c.9. Em simultâneo dedicou-se (…).
c.10. Em termos familiares (…).
c.11. O arguido continua (…).
c.12. O relacionamento familiar (…).
c.13. O agregado (…).
c.14. O arguido mantém (…).
c.15. A actividade profissional (…).
c.16. Durante a semana (…).
c.17. O arguido Domingos Névoa é conhecido (…).
c.18. O arguido continua (…).
c.19. Em 21/10/2008, veio a ser proferido um acórdão pelo tribunal da
Relação de Lisboa, transitado em julgado, tal como consta dos autos apensos de
recurso, no qual vieram a ser conhecidas das questões suscitadas pelo arguido
Domingos Névoa em sede de requerimento de abertura de instrução, entre outras
relativas às decisões instrutórias, - da inadmissibilidade da acção encoberta por
a acusação não preencher os requisitos do tipo legal de crime de corrupção para
acto ilícito ou lícito; e - da ilegalidade da acção encoberta porque derivada de
gravação ilegal, porque violadora do segredo profissional de advogado, por
utilização de meios enganosos, por inconstitucionalidade do Art.º 2.º, alínea m),
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da Lei 101/2001, de 25/8, e por ausência de fundamentação do despacho judicial
que autorizou as escutas telefónicas e a recolha de imagem e som.
IV. Não se provaram quaisquer outros factos, designadamente que3:
a) o mesmo arguido Domingos Névoa pretendesse que o Vereador José Sá
Fernandes viesse a afirmar a sua mudança de opinião em sede de reuniões dos
órgãos do Município de Lisboa;
b) o mesmo arguido fizesse depender o pagamento do montante
pecuniário, tal como referido em a.19., do proferimento, por parte do Dr. José Sá
Fernandes, de declarações públicas na qualidade expressa de vereador da
Câmara Municipal de Lisboa;
c) no encontro descrito de a.18. a a.21. o arguido tenha invocado
urgência no assunto;
d) o arguido expressou perante o Dr. Ricardo Sá Fernandes que apenas
haveria acordo se o Dr. José Sá Fernandes estivesse disposto a fazer a
declaração na reunião da Câmara Municipal;
e) o arguido pretendesse com a declaração pública do Dr. José Sá
Fernandes aludida em a.36. e a.37, comprometer o vereador José Sá Fernandes
com uma versão de apoio aos interesses do mesmo grupo de empresas, de forma
a vinculá-lo em votações futuras de temas e de projectos em que as sociedades
por si participadas estivessem envolvidas;
f) o arguido, para além do exposto em a.52., pretendesse uma alteração
das tomadas de posição do Dr. José Sá Fernandes em sede de artigos de
imprensa e enquanto vereador na Câmara Municipal de Lisboa, com o fim de este
passar a reconhecer idoneidade e viabilizar projectos e negócios mantidos pelas
empresas de que o arguido era accionista,
em particular as empresas
“BRAGAPARQUES” e “PARQUE MAYER – Investimentos Imobiliários”;
3
Tendo a matéria de facto sido impugnada por todos os Recorrentes, para que infra este acórdão
seja mais inteligível, passamos a atribuir alíneas aos factos que o acórdão recorrido deu como não
provados.
31
g) o arguido actuou com vista a levar o referido vereador a violar as
obrigações que havia assumido com a aceitação do seu mandato;
h) foi o referido advogado Dr. Ricardo Sá Fernandes quem, no decurso de
contactos a partir de Setembro de 2005, tomou a iniciativa de pedir ao arguido
Domingos Névoa um financiamento para pagar as despesas da campanha
política do irmão para as eleições autárquicas de 2005 e para a liquidação de
despesas pessoais do candidato e, mais tarde, Vereador;
i) o advogado Dr. Ricardo Sá Fernandes começou por pedir-lhe uma
"contribuição" de 100.000 contos (ou seja, cerca de 500.000 euros), vindo, em
contactos subsequentes, a reduzir esse pedido para 250.000 euros e, por último,
para 200.000 euros;
j) partiu dele, Ricardo Sá Fernandes, a iniciativa de propor a desistência
da acção popular, a troco da contrapartida monetária que lhe solicitou;
l) foi o advogado Dr. Ricardo Sá Fernandes quem sugeriu que o seu
irmão, o vereador Dr. José Sá Fernandes, proferisse uma declaração pública que
lhe permitisse, por razões pessoais de natureza política, desistir da acção sem
perder a face;
m) o arguido anuiu aos contactos com o Dr. R porque este era sócio do
escritório da sua advogada, Dr.ª R, nos moldes acima descritos, o que tornava
difícil e muito melindroso cortar cerce o pedido que lhe era feito;
n) o mesmo arguido optou por ir entretendo o seu interlocutor até que ele
desistisse da sua pretensão, nunca tendo sido sua intenção ou propósito entregarlhe qualquer quantia;
o) foi ele, arguido, quem pôs termo aos contactos, pela única razão de
que, a partir do último encontro entre ambos, que teve lugar no dia 27 de Janeiro
de 2006, se convenceu de que era impossível continuar a manter a aparência das
negociações;
p) o advogado Dr. Ricardo Sá Fernandes só decidiu efectuar a gravação
ilegal duma conversa que manteve com o arguido e oferecer-se à Polícia
Judiciária para agir como suposto agente encoberto após ter-se convencido, num
primeiro encontro, no início de 2006, no Hotel Mundial, de que o arguido não lhe
iria entregar o contributo que pretendia e que os contactos que estabeleceu com
ele, implicando violação do segredo profissional, poderiam vir a chegar ao
conhecimento da sua sócia e colega de escritório, a advogada Dr.ª R; e que
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q) o mesmo advogado Dr. Ricardo Sá Fernandes tenha prestado serviços
jurídicos ao arguido ou às empresas por si representadas, através dum seu
estagiário.”.
*
Como dissemos, o art.º 374º/2 do CPP determina que, na sentença, ao
relatório se segue a fundamentação que consta da enumeração dos factos
provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível
completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam
a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a
convicção do tribunal.
A redacção deste preceito inculca a ideia, que a obediência a regras de
bom senso, clareza e precisão apoiam, de que a fundamentação da decisão se
repartirá pela enumeração dos factos provados, depois dos não provados e,
seguidamente, pela exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam
a decisão com o exame crítico das provas.
Necessário e imprescindível é que o tribunal indique os fundamentos
suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência se
possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto provado
ou não provado4.
4
Relativamente à fundamentação de facto, cf. a jurisprudência plasmada no Ac. STJ de
17/11/1999, relatado pelo Sr. Conselheiro Martins Ramires, in CJSTJ, III, p. 200 e ss., do qual
citamos: “O entendimento do STJ sobre o cumprimento deste preceito encontra-se sedimentado:
trata-se de exposição tanto quanto possível completa, mas concisa, dos motivos de facto e
indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, sem necessidade de
esgotar todas as induções ou critérios de valoração das provas e contraprovas, mas permitindo
verificar que a decisão seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo
ilógica, arbitrária contraditória ou violadora das regras da experiência comum ... .”.
Também neste sentido, ver Maria do Carmo Silva Dias, in “Particularidades da Prova em
Processo Penal. Algumas Questões Ligadas à Prova Pericial”, Revista do CEJ, 2º Semestre de
2005, pp. 178 e ss., bem como a doutrina e a jurisprudência constitucional citadas. No mesmo
sentido, cf. Sérgio Gonçalves Poças, in “Da sentença penal – Fundamentação de facto”, revista
“Julgar”, n.º 3, Coimbra Editora, p. 21 e ss..
José I. M. Rainho, in “Decisão da matéria de facto – exame crítico das provas”, Revista do
CEJ, 1º Semestre de 2006, pp. 145 e ss., afirma: “Em que consiste portanto a especificação dos
fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção? Consiste simplesmente na
indicação das razões fundamentais, retiradas a partir das provas segundo a análise que delas fez
33
No cumprimento desse dever, a decisão recorrida fundamentou da a sua
decisão de facto seguinte forma:
“V. O juízo sobre a certeza e a verdade material dos factos gizou-se e
resultou, sobretudo, dos seguintes meios de prova.
Ao dar como provada e não provada a factualidade supra descrita o
tribunal formou a sua convicção com base no cotejo crítico do conjunto da prova
produzida em audiência de julgamento, e bem assim, da prova documental e
pericial junta aos autos, toda ela apreciada de acordo com o seu valor probatório
e as regras da experiência, nomeadamente segundo dita o princípio da livre
apreciação da prova consagrado no Art.º 127.º do CPPenal.
Tudo isto, tendo em conta as máximas indiciárias (tanto as de conteúdo de
conteúdo determinístico-natural como as de conteúdo estatístico), fez relevar,
repita-se, o tipo de testemunhos alvitrados que juntamente com os pontos
cristalizados do lastro de coincidência das várias versões alvitradas, e com alto
grau indiciário de probabilidade ou de verosimilhança (sobre este conteúdos, vd.
Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, tradução da 5ª edição alemã,
1989, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 367-370; e Lebre de Freitas,
Introdução ao Processo Civil - Conceito e Princípios Gerais - À Luz do Código
Revisto, 1996, Coimbra: Coimbra Editora, pp. 160-161) que se impõe, que
suplantam a presunção de inocência dos arguidos, deram ao tribunal, na sua
compreensão global, para além de toda a dúvida razoável, a verdade material da
parcela dos factos dados como comprovados em julgamento.
Descritos os respectivos meios de prova ter-se-á de proceder, conforme
impõe o Art.º 374.º, n.º 2, do CPPenal, à exposição, tanto quanto possível
completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão,
com o exame crítico das provas enumeradas.
*
o julgador, que levaram o tribunal a assumir como real certo facto. Ou, se se quiser, consiste em
dizer por que motivo ou razão as provas produzidas se revelam credíveis e decisivas ou não
credíveis ou não decisivas. No primeiro caso o tribunal explica por que julgou provado o facto;
no segundo explica por que não julgou provado o facto. … a motivação não tem porque ser
extensa, de modo a significar tudo o que foi probatoriamente percepcionado pelo julgador. Pelo
contrário, deve ser concisa, como é próprio do que é instrumental, conquanto não possa deixar de
ser completa.”.
O acórdão do Tribunal Constitucional de 17/01/2007, in DR, 2ª Série, n.º 39, de 23/02/2007,
que decidiu, além do mais, “Não julgar inconstitucional a norma dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º,
n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não é sempre
necessária menção específica na sentença do conteúdo dos depoimentos da arguida e das
testemunhas de defesa.”.
34
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Assim, desde logo, foram escrutinadas as declarações do arguido, o qual
começou por dar a sua concordância à matéria descrita na pronúncia/acusação
nos seus pontos 1. a 5., e dando conta, nesse entretanto, da forma como veio a ter
conhecimento das acções populares propostas pelo Dr. José Sá Fernandes e do
demais descrito na mesma pronúncia nos seus pontos 8., 9., 10., 11. e 12., e da
forma como se estavam a cuidar juridicamente da resolução desses problemas.
Depois, veio a refutar a demais matéria no que respeita aos actos de corrupção,
designadamente à solicitação de qualquer quantia em dinheiro. Mencionou, o
mesmo arguido, que não foi ele que teve a iniciativa para falar com o advogado
Dr. Ricardo Sá Fernandes para intermediar junto do irmão, Dr. José Sá
Fernandes, a desistência da acção popular por este último intentada e de proferir
declarações públicas, mas sim o próprio Dr. Ricardo Sá Fernandes, isto a troco
da entrega de uma quantia pecuniária, tudo isto num relacionamento de um
escritório de advocacia em que o mesmo Dr. Ricardo Sá Fernandes é sócio com
uma sua colega que assume o mandato judicial do aqui arguido e das empresas
em que ele tem participações sociais. Fez referência a que num primeiro contacto
o mesmo Ricardo Sá Fernandes lhe terá solicitado cerca de 100.000 contos para
resolver o problema da acção popular e para auxiliar o seu irmão na campanha
para a Câmara de Lisboa, sendo que oito ou quinze dias depois o mesmo Ricardo
Sá Fernandes lhe tornou a falar e lhe propôs de novo uma ajuda de € 250.000, às
quais propostas e conversa o mesmo arguido disse não ter alimentado, tendo
nessa altura escrito num cartão “RS Fernandes 200.000”. Nesse desenvolvimento
e porque queria resolver o assunto da acção popular, continuou o mesmo
arguido, ligou para o aludido escritório de advocacia para se encontrar com o
mesmo Ricardo Sá Fernandes, isto em Janeiro de 2006, marcando-se um
encontro num bar do Hotel Mundial que veio a ocorrer e onde tiveram uma
conversa de cerca de duas horas. Nessa conversa, referiu o mesmo arguido,
falaram de tudo, tendo o Ricardo Sá Fernandes feito alusões ao seu irmão e às
suas doidices, referindo que iria falar com José Sá Fernandes, seu irmão, para
resolução do problema da acção popular, começando então a falar de dinheiro,
35
tendo ele arguido entrado nesse jogo do gato e do rato, sabendo-se que o mesmo
Ricardo Sá Fernandes ao gravar a conversa inseriu nela aquilo que quis, não
registando as partes da conversa que não lhe interessavam. Designadamente,
apontou o mesmo arguido, no que respeita à proposta final que aquele mesmo
Ricardo Sá Fernandes apresentou de € 200.000,00, referindo-lhe a ele, arguido,
que tinha de trazer o dinheiro, tendo depois o arguido ordenado ao filho que lhe
escrevesse na mensagem por telemóvel que não estava disposto para tal. Mais
esclareceu, neste ponto, que pediu ao seu filho para estabelecer contactos não só
porque não sabe escrever mensagens escritas no telemóvel. Mais esclareceu que
agora tem a consciência de ter sido instrumentalizado pelo mesmo Ricardo Sá
Fernandes, designadamente para conseguir factos políticos, pois na gravação
falava de uma coisa e fora da gravação falava de outras, designadamente de
propostas de atribuição de dinheiro, sendo que no final dos encontros e das
conversas já não tinha mais conversa e acabou por consentir em € 200.000,00
apenas para não ouvir falar mais de dinheiro, sendo que nunca teve intenção de
pagar o que quer que seja, tendo depois mandado o seu filho dizer que não estava
disposto a tal, isto através de uma referência a não contribuição para a
campanha. Reiterou, o mesmo arguido, que a proposta foi apresentada pelo
mesmo Ricardo Sá Fernandes, sendo este último que dizia poder resolver o
assunto do impasse criado pela acção anulatória, com um documento de
desistência e de cancelamento da acção popular, chegando a dizer-lhe ao
despedir-se para ele não se esquecer do envelope na próxima vez. Mais fez alusão
que todos os seus assentimentos à proposta de Ricardo Sá Fernandes se prendiam
com a desistência da acção popular, designadamente ao fazer referência à casa
dele, e que o sms referido no ponto 50. da acusação foi composto pelo filho. Só
teve conhecimento de que estava a ser escutado, referiu ainda o arguido, quando
foi contactado pela Polícia Judiciária no final de Janeiro, quando foi notificado
para ir à Judiciária, sendo que nessa data veio a falar com a sua advogada Dr.ª
R, sendo então revistado (vistoriado também no veículo) e vieram a apreenderlhe um papel (cartão) com uma referência a R. S. Fernandes. Mais aludiu que
nessa altura foi conversar com a sua advogada para o escritório do Dr. J, sendo
nessa altura que constatou ter caído numa armadilha e ficou como congelado três
dias, não tendo capacidade de falar nessa altura. Disse ainda que na verdade o
seu filho e o seu sócio não sabiam de nada, apesar de o ter referido na conversa
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apenas para fazer conversa com o identificado Ricardo Sá Fernandes, assim
como não falou de nada com a Dr.ª R e até com a sua mulher. Referiu, também
assim, que não tinha conhecimento durante esses contactos que o próprio
Ricardo Sá Fernandes patrocinava a acção popular, e que o cartão documentado
a fls. 146 dos autos (cartão) lhe foi retirado na vistoria da Polícia Judiciária,
tendo sido escrito no escritório da sociedade de advogados de que fazia parte
Ricardo Sá Fernandes, no final de Setembro/início de Outubro de 2005 (antes das
eleições), como um escape psicológico aos pedidos que lhe eram feitos pelo
Ricardo Sá Fernandes, fazendo menção a que a sua advogada Dr.ª R assistiu à
curiosidade daquele Ricardo Sá Fernandes pelos seus assuntos. Em declarações
subsequentes, o mesmo arguido veio afirmar que nas suas declarações de
17/2/2006 se encontrava muito transtornado (“ficou perfeitamente congelado”),
não estando em condições de esclarecer nada, e que pretende agora esclarecer
que começou as conversas com o Dr. Ricardo Sá Fernandes, por iniciativa deste,
em Setembro de 2005, ainda antes das eleições autárquicas, pretendendo sempre
estabelecer um acordo nas questões com o Parque Mayer e a Feira Popular, e
que nunca falou à Dr.ª R porque pretendia encobrir o mesmo Dr. Ricardo Sá
Fernandes.
Depois, fundou-se ainda o tribunal, no entrecruzamento dessas
declarações do arguido com o depoimento, contraditório com aquelas, do
identificado Ricardo Sá Fernandes, que se identificou como irmão do assistente
José Sá Fernandes, e que começou por referir o contexto do funcionamento do
escritório de advocacia em que tem o seu gabinete, a sociedade de advogados
constituída logo de início e a constatação que a maior parte dos clientes dos
vários advogados daquele escritório serem clientes de cada um dos advogados
em particular, com algumas raras excepções dos clientes originais da sociedade
de advogados (caso da TELFA, por questões que se prendiam com a
representação internacional), insistindo o depoente que a Bragaparques é apenas
cliente da Dr.ª R. O depoente referiu então que nunca patrocinou a
Bragaparques, o Sr. Domingos Névoa ou qualquer pessoa ligada a esse grupo.
37
Igualmente nunca foi consultado pela sua colega de escritório acerca de
qualquer assunto relacionado com tal grupo empresarial, desconhecendo por
completo, o teor das relações profissionais por ela estabelecidos com ele. Mais
referiu que no dia 18 de Janeiro de 2006, ao final da manhã, recebeu um
telefonema no seu escritório de um indivíduo que se identificou à telefonista, Sr.ª
Dona A (naquele dia em substituição da Dona O cuja mãe tinha morrido), como
“Domingos”, pessoa que o depoente pensava ser um jornalista da TVI. Após
encetar conversa telefónica com o citado “Domingos”, veio este a dizer que se
chamava Domingos Névoa. Disse ainda que o depoente o devia conhecer de vista
do seu escritório, um vez que era lá cliente, duma colega do escritório do
depoente (referiu a Dr.ª R). Embora sem ter a certeza, o depoente associou tal
nome à Administração da Bragaparques, que o depoente sabia ser cliente, em
vários processos, da sua colega de escritório, Dra R, muito embora sem saber em
concreto a que é que se referiam essas relações profissionais. Mais ficou com a
ideia de que tal pessoa estava ligada àquela empresa, quando ela lhe disse que
estava em Braga. A pessoa em causa referiu que tinha uma proposta para lhe
apresentar, que podia ser interessante. Que se fosse aceite, tudo bem, mas que, se
não fosse aceite, cada um continuaria a sua vida. Mais disse que a comunicação
da proposta teria de ser feita fora do escritório e num encontro a sós entre os
dois, de que mais ninguém precisava de saber, tendo o mesmo Domingos Névoa
sugerido o Bar do Hotel Mundial. Esclarece que a pessoa em causa não disse a
razão de ser do encontro ter de ser fora do escritório e a sós, tendo o depoente
depreendido que se tratava de uma conversa não profissional e privada. O
mesmo Domingos Névoa, continuou o depoente, queria que o encontro se
realizasse logo, ou nos dias imediatamente a seguir, mas o depoente informou
que nesses dias estaria ocupado com julgamentos, razão pela qual o encontro
teve de ser agendado, para Domingo, dia 22 de Janeiro às 17:00H, naquele bar
do hotel Mundial (dia das eleições presidenciais). Nesse telefonema, a pedido de
Domingos Névoa, o depoente e ele trocaram os números de telemóvel, tendo
aquele referido que o seu telemóvel era o 967055609. O depoente, mais aduziu,
que ficou intrigado com o teor do telefonema, tendo logo admitido que podia ter a
ver com uma tentativa de suborno do seu irmão, José Sá Fernandes, Vereador da
Câmara Municipal de Lisboa, o que resultava da insistência num encontro fora
do escritório, a sós e de que ninguém soubesse, bem como do facto do depoente
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saber que a acção do seu irmão enquanto Vereador e enquanto autor de uma
acção popular relativamente ao negócio do Parque Mayer, poder estar a
embaraçar os negócios do grupo Bragaparques. Mais aludiu, o depoente, que
quando recebeu o telefonema do identificado Domingos Névoa de 18/1 ficou na
dúvida sobre o que é que devia fazer, tendo-se procurado aconselhar com alguns
amigos próximos e de confiança. Foi assim que falou com o L, com o Prof. A,
com o D, e com a Dr.ª C. Falou ainda, mais tarde, com arquitecta B. O depoente
teve dúvidas sobre o que fazer naquele caso. Depois de se ter aconselhado optou
por tentar gravar tal conversa. Sem explicar em concreto a razão do pedido, o
depoente perguntou ao Sr. C, seu cliente e produtor de televisão, se não tinha
nenhum aparelho que lhe permitisse gravar uma conversa de forma camuflada,
tendo-lhe este dito que tinha em casa um aparelho que tinha um microfone
incorporado numa caneta, cuja gravação poderia ser recebida por um receptorgravador colocado até cerca de 10 metros, que era o aparelho que tinha sido
usado nalgumas séries de apanhados. No Sábado, dia 21 de Janeiro, o depoente
foi buscar o aparelho a casa do Sr. C, tendo-o levado para sua casa, onde o
experimentou, tendo verificado que não estava em condições. Entretanto tinha
pedido ao L para o acompanhar ao Hotel Mundial, para assistir, de longe ao
encontro, e para ficar na posse do receptor/gravador, tendo-lhe sugerido que
levasse a mulher dele. Veio a combinar encontrar-se com o L, em casa da sua
irmã, no Domingo dia 22 de Janeiro, dia em que a sua irmã fazia anos. O L veio
a dizer-lhe que a mulher não poderia ir ao encontro, mas que tinha falado com
uma amiga comum, a arquitecta B, que se tinha disponibilizado para o efeito. O
mesmo L veio ter com o depoente a 22 de Janeiro, depois de almoço, a casa da
sua irmã, tendo-se então confirmado que o aparelho emprestado pelo C não era
fiável. Nessa altura, o cunhado do depoente sem saber em concreto o que se
passava, mas percebendo que estavam a tratar de uma gravação que queriam
fazer, disse-lhes que o telemóvel dele continha um gravador muito eficiente e que
dias antes, por lapso, ele deixara ligado e gravara na perfeição uma conversa
acidental com outra pessoa. Nesta situação o depoente decidiu utilizar o
39
telemóvel do seu cunhado, pedindo no entanto ao L para o acompanhar ao
encontro, para poder testemunhar que ele se realizara. No caminho foram buscar
a arquitecta B, para também o acompanhar Como era dia de eleições, o depoente
pediu ao L que o deixasse junto ao seu local de voto, que depois seguiria, a pé,
para o Hotel Mundial, como veio a fazer. Entretanto, às 11:27H do dia 22 de
Janeiro, o depoente recebera uma mensagem do telemóvel de Domingos Névoa
para confirmar o encontro, tendo os mesmos combinado para meia hora mais
tarde devido ao aniversário da sua irmã. Quando chegou ao Bar do Hotel
Mundial, o depoente dirigiu-se para a direita, tendo visto numa mesa, uma
pessoa que se levantou, e que se lhe dirigiu, percebendo que era a pessoa com
quem se ia encontrar. Ele estava numa mesa perto da televisão, onde se via um
jogo de futebol, o que levou o depoente a pedir que se deslocassem para outra
mesa, por causa do barulho. O depoente reparou igualmente que os seus amigos
L e B, já estavam no Bar do Hotel quando chegou. A conversa com Domingos
Névoa, continuou o depoente, começou por generalidades, com várias referências
às zonas do Gerês e de Montalegre onde ambos tinham afinidades, após o que o
identificado Névoa encaminhou a conversa para a questão do Parque Mayer,
lamentado-se longamente dos prejuízos que tinha tido por causa de sucessivas
actuações dos executivos camarários e também do seu irmão, fazendo questão de
sublinhar que a sua actuação fora sempre legal nesse processo, pelo que estaria
a ser vítima de uma injustiça. Mais lhe referiu o mesmo Domingos Névoa que, se
o irmão do depoente se informasse cabalmente na CML, teria oportunidade de
ver que tudo estaria legal e que ele estaria disposto a dar-lhe um valor se ele
fizesse uma declaração, na Câmara ou noutro fórum Municipal, dizendo que,
depois de ter consultado o processo na CML, tinha verificado que não havia
qualquer ilegalidade e que desistiria das acções populares que tinha intentado
por causa desse assunto. Mais referiu que esse valor poderia ser para uma obra
ou para despesas, o que o seu irmão quisesse, sendo pago em notas e que tal
assunto só seria do conhecimento dele e do depoente. Mais disse, o mesmo
Domingos Névoa, que os encontros entre ambos teriam de ser sempre feitos
discretamente e fora do escritório. O depoente disse que tinha que pensar e que,
considerando a delicadeza do assunto, teria que ver como é que colocaria a
questão ao irmão. O mesmo Domingos Névoa pediu que a marcação do próximo
encontro fosse feita por SMS. A meio da conversa, o depoente, que levava no
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bolso de fora do casaco o gravador do cunhado, sentiu um ligeiro beep, tendo
ficado com a convicção que provinha do gravador. O depoente despediu-se do
arguido Domingos Névoa e saiu sozinho do Hotel, tendo visto que aquele tinha
voltado para a mesa ao pé da televisão. Passado alguns minutos, o L e a
arquitecta B apanharam o depoente, a quem ele contou tudo o que se tinha
passado e também a suspeita de que a gravação ficara incompleta, como se veio
efectivamente a verificar. O depoente disse logo a esses seus dois amigos que
ponderava a necessidade de contar imediatamente tudo a autoridade policial,
uma vez que agora já tinha a certeza da acção de corrupção que até já ocorrera.
Nesse mesmo Domingo, dia 22, outra vez em casa da sua irmã, o depoente
informou o irmão, José Sá Fernandes, do que se estava a passar, com a indicação
de que o mesmo Domingos Névoa o queria comprar, para que ele, enquanto
Vereador, não pusesse obstáculos ao negócio do Parque Mayer e para que
desistisse das acções populares que pusera a tal propósito. Nesse mesmo sentido
falou igualmente com o Professor A e no dia seguinte, falou com o Dr. R, o Dr. R.
Disse então ao mesmo Dr. R que achava que devia participar os factos à
autoridade competente, tendo-lhe dito que o estava a pensar fazer ao Dr. R, que o
depoente conhecia há algum tempo e que lhe merecia a maior confiança. O Dr. R
apoiou o acto cívico e pediu-o para o manter informado. Nessa sequência, referiu
ainda o depoente, veio a marcar um encontro com o Dr. R para o final da tarde
do dia 23 de Janeiro, que se veio a realizar no DCIAP e onde o depoente contou
os factos acima referidos, incluindo a gravação que tinha feito, e comunicando ao
Dr. R, após combinação e de se colocarem dúvidas sobre a gravação
anteriormente realizada, o depoente afirmou que estava disponível para servir de
agente encoberto com o objectivo de obter provas que confirmassem a referida
acção de corrupção. Mais referiu, na altura, que já tinha marcado um novo
encontro para dia seguinte (24/1) às 18:00H, por SMS, estando a aguardar a
confirmação. Nesse dia 23/1 ainda teve um encontro com amigos no Hotel Tivoli
para falar sobre este assunto e sobre as decisões que tinha tomado. Nesse mesmo
dia o Dr. R referiu-lhe para ir no dia seguinte, de manhã, às instalações onde
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neste momento se encontra na Policia Judiciária. Nesse mesmo 23/1, à noite, teve
a confirmação do encontro com Domingos Névoa no dia seguinte, numa
mensagem enviada pelo telemóvel do filho daquele. Nas instalações da PJ, no dia
seguinte, foi colocado o aparelho de gravação, levando esse dispositivo de
gravação facultado pela Policia e comprometendo-se a actuar de forma
adequada, a ouvir uma proposta concreta do Sr. Névoa, que confirmasse o teor
do que já dissera no encontro de Domingo. Ainda recebeu um novo sms do
mesmo telemóvel do filho do arguido, mas não lhe era possível antecipar o
encontro. Esse encontro, mais contou o depoente, veio a ter lugar às l8:00H desse
dia, tendo o depoente levado consigo instrumento de gravação fornecido pela
Policia Judiciária. O encontro tornou a ser no Bar do Hotel Mundial, e na
conversa, depois de umas primeiras alusões gerais em que se falou do processo
da Casa Pia, o depoente referiu que disse ao mesmo Domingos Névoa que ia
jantar nesse dia com o irmão e que queria saber mais um pouco sobre a iniciativa
daquele a fim de lhe poder falar sobre o assunto. O depoente, refere que teve
preocupação, nesta nova conversa, em levar o identificado Domingos Névoa a
repetir a oferta de entrega de dinheiro e a confirmar o pedido da declaração
pública, sem que fosse ultrapassada o que foi dito na 1.ª conversa, sendo que
obteve do mesmo Domingos Névoa a confirmação da conversa anterior, com
alusão a uma declaração muito simples – acto público como vereador que tinha
pedido para consultar o processo e afinal estava enganado – erros haviam mas
eram do próprio Município e não dos particulares envolvidos -, e que estava tudo
bem, sendo que a questão da verba (com referência à obra para ele fazer ou
dinheiro para gastar como ele entendesse, no montante de € 200.000 ou numa
brincadeira assim, mas que falasse com o irmão para tratar disso. E que a verba
poderia ser paga no Minho. Mais referiu a importância que Domingos Névoa
dava à confidencialidade (não diga nada a ninguém), e que lhe pedia desculpa
pelo facto dos últimos SMS virem do telemóvel do filho, mas que este nada sabia
do assunto e que o tinha feito por razões de segurança, porque o Ministério
Público e a Judiciária tinham ido ao telemóvel do sócio ver os números das
pessoas a quem eles tinham ligado. Quanto ao pagamento de uma verba, o
referido Domingos disse ao depoente, segundo este, que dos € 200.000 disporia
logo de cem mil, tendo de retirar o restante da parte das várias vendas que tem
em curso, mas que agora as coisas estavam mais difíceis, por causa do fisco.
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Sugeriu ainda que outra alternativa poderia ser um contrato promessa de uma
habitação, com o preço já liquidado, ao que o depoente levantou reservas. Mais
referiu o depoente que o identificado Domingos Névoa sublinhou mais do que
uma vez que o irmão do depoente deveria dizer na Câmara que, obtidos todos os
elementos, não havia razão para continuar com as acções. Disse ainda que seria
importante para ele, Vereador, porque estaria a fazer política construtiva.
Referiu ainda que sabia que o irmão nada trazia da Câmara e que, com a
actividade que estava a ter, também não deveria ter nada no escritório. O
depoente disse que ia transmitir o teor da conversa ao irmão. O referido
Domingos Névoa insistiu que o novo encontro poderia ser no dia seguinte, ao que
o depoente levantou dificuldades, dando ao Domingos Névoa a ideia que estaria
disponível a qualquer dia para um novo encontro. O mesmo Domingos Névoa
salientou a importância de resolverem depressa o assunto uma vez que iria na
semana seguinte para Angola e que a declaração pública poderia acontecer
nessa altura. O depoente saiu do Hotel Mundial e pouco depois foi abordado por
um Inspector da Policia Judiciária que lhe pediu a devolução do material de
gravação que tinha levado. Nesse mesmo dia, informou o irmão, José Sá
Fernandes do resultado do encontro com Domingos Névoa, de que a acção se
encontrava enquadrada pela PJ, e voltou a discutir o assunto com o grupo inicial
que o apoiou. Mais aludiu, o depoente, que no dia 26/1 tornou a deslocar-se à PJ
para prestar declarações, tendo informado, após saber que a gravação efectuada
no dia 24 estava em condições, que por ele o trabalho estaria concluído, porque a
prova do crime de corrupção estava feita. Foi-lhe pedido que marcasse ainda um
novo encontro para consolidar a prova, ao que o depoente anuiu, tendo no
entanto esclarecido que não estaria disponível para ir a uma entrega física do
dinheiro (peita), porque isso lhe parecia desnecessário e pessoalmente para ele,
depoente, desagradável. Marcou novo encontro, para o dia seguinte, dia 27/1
(12:00H), e realizou-se o mesmo em que o referido Domingos Névoa se
encontrava muito descontraído. O referido Domingos Névoa tornou a dizer ao
depoente que era muito importante uma declaração pública do seu irmão, José
43
Sá Fernandes, que deveria ser na presença de jornalistas, que o seu irmão sabia
muito bem como é que isso se faria. O identificado Domingos Névoa disse que
José Sá Fernandes, deveria fazer uma comunicação para os jornalistas, a quem
diria que iria esclarecer na Assembleia e na Câmara porque estava a actuar
assim. Diria que, analisada toda a documentação, o interesse público, no caso, só
não teria sido salvaguardado no passado, mas não agora. Diria que iria desistir
da acção porque os particulares teriam actuado na defesa da sua empresa.
Confrontado pelo depoente com as críticas que adviriam ao irmão, o mesmo
Domingos Névoa, segundo o depoente, disse que na Câmara a única oposição era
a do irmão e que o PC iria a reboque. O mesmo Domingos Névoa sugeriu ainda
que o irmão do depoente, na declaração aos jornalistas, poderia ainda aproveitar
para dar uma" charutada" ao Presidente da República porque ele teria tido
responsabilidades no facto de o Casino ir para a Expo. Quanto ao pagamento, o
mesmo Domingos Névoa, segundo o depoente reafirmou o pagamento dos €
200.000, dizendo que estava a ser generoso, porque já tinha tido um castigo
enorme. Disse que estava disponível para pagar, já, € 100.000 em numerário e
que o restante teria de ser em mais duas vezes. Quanto ao local da entrega, disse
o mesmo Domingos Névoa que tanto poderia ser no Minho, em casa dele, ou
noutro local, chegando a adiantar que poderia ser no parque de estacionamento
do Martim Moniz, estando cada um no seu carro, pondo os carros um ao lado do
outro. Mais tornou a sublinhar o carácter sigiloso do assunto (entre ele, o sócio e
o seu irmão). Mais referiu, segundo o mesmo depoente, que estas conversas eram
“do além”, era como que um gajo numa funerária, uma “queima de arquivo”,
salientando que não era “virgem nestas coisas”. Mais uma vez se mostrou muito
interessado em que o primeiro pagamento fosse feito o mais depressa possível e
em que a declaração de José Sá Fernandes ocorresse quando ele estivesse fora,
em Angola, para onde iria na semana seguinte. Disse que essa declaração de
José Sá Fernandes seria “uma bomba”. O depoente disse ao mesmo Domingos
Névoa que seria difícil as coisas concretizarem-se nos dias imediatos porque o
irmão tinha que preparar bem as coisas. O mesmo Domingos Névoa informou
que na semana seguinte estaria em Angola, a partir de terça-feira e que chegaria
no sábado, ficando as coisas combinadas para depois da vinda de Domingos
Névoa de Angola. Após este encontro, o depoente informou logo telefonicamente
o procurador do seu teor, tendo-lhe dito que considerava concluída a sua missão
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de agente encoberto, não estando disponível para uma entrega física do dinheiro,
o que lhe parecia desnecessário. Nesse dia informou também o Dr. R das
diligências que fizera como agente encoberto e da sua posição de que não lhe
parecia ser necessário haver uma entrega física do dinheiro, não querendo o
depoente participar em qualquer acto dessa qualquer natureza, porque isso lhe
parecia desnecessário e inútil, e para si muito desagradável. Voltou a falar com
os seus amigos. Mais informou, o depoente, que na 2.ª feira seguinte (dia 30/1) foi
surpreendido por um sms remetido do telemóvel do filho do arguido em que se
dizia que afinal não financiava o partido, tendo-lhe respondido, depois, a
conselho da PJ, que não percebiam. Posteriormente, quando se apercebeu da
detenção do arguido, o depoente foi procurado pela sua colega Dr.ª R, que lhe
questionou sobre o assunto, tendo ele dito que não podia falar com ela.
Posteriormente veio a saber que o arguido o acusava de pretender um
financiamento, e que a sua colega entrava também nesse jogo, pelo que se
manteve sem falar com a sua colega sobre o assunto, sendo que a questão do
escritório ainda não está resolvida. Foi ainda o depoente confrontado com a
cópia do e-mail de fls. 1533, tendo o mesmo referido que não foi ele a proceder à
remessa dessa mensagem, mas sim com um reencaminhamento pela sua
funcionária do escritório, sendo que o trabalho do Dr. F foi por ele contratado
enquanto especialista nessa área, sem qualquer intervenção do depoente, apesar
de ter sido estagiário dele, mas que naquela matéria era especialista, nenhuma
intervenção teve nessa matéria e sobre esse assunto. O depoente esclareceu,
ainda, que em Julho de 2005, o seu irmão pediu ao Professor L e ao próprio
depoente que o passassem a patrocinar nas acções populares que ele tinha
movido contra a CML, o que consta de declarações públicas então por ele feitas.
Assim aconteceu, tendo o Prof. L e o depoente chegado a juntar procuração aos
autos da acção movida pelo seu irmão relativamente ao Parque Mayer. No
entanto, quando souberam que essa acção havia sido contestada pela sua colega
de escritório Dr.ª R, o Prof. L e o depoente entenderam (após contactos
recíprocos com a Dra R) que, para evitar embaraços no escritório, seria
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preferível, nessa acção do Parque Mayer, substabelecer os poderes noutro
colega, Dr. J, o que aconteceu, ao que julga, em 16/2/2006. Mais aludiu que a
única intervenção que tiveram na acção foi para o registo da acção, sendo que
nas conversas com Domingos Névoa nunca houve qualquer referência a essa
situação. Mais fez alusões, no final do seu depoimento, ao teor da
correspondência trocada com a sua colega de escritório, Dr.ª R, bem como à
conversa travada com ele na altura da detenção do arguido, com referência ao
carácter que qualifica de extraordinário da conversa, em que a sua colega utiliza
a expressão “armadilha”, bem como aos pormenores do quotidiano do seu
escritório e a forma como se veio a encontrar esporadicamente com
representante da Bragaparques no corredor, e em que poderia nalguma conversa
de circunstância fazer alusão a problemas fiscais ou outros, nada mais. Fez
alusões, também assim, ao equipamento com que registou a primeira conversa
com o arguido, e sobre o facto de ser falso que tenha tido qualquer conversa
anterior com o arguido, e também às razões que segundo ele estarão por detrás
da iniciativa do arguido, nomeadamente a questão do registo da acção e a
inviabilização do plano das cérceas para a zona de implementação imobiliária
em causa.
E, também, no confronto dessas declarações, com o teor das declarações
do assistente José Sá Fernandes, que se identificou com advogado e vereador do
Município de Lisboa, e que referiu não conhecer pessoalmente o arguido, apenas
por referência à acção popular que entretanto tinha deduzido. Nestas suas
declarações o mesmo assistente referiu que no dia 22/1/2006, dia de anos da sua
irmã, e na casa desta, o seu irmão Ricardo Sá Fernandes, confidenciou-lhe que
tinha sido abordado pelo aqui arguido (Domingos Névoa), e que iria ter um
encontro com ele no Hotel Mundial, suspeitando que era uma conversa para lhe
pedir algum favor. Mais referiu o assistente que ficou ansioso por perceber o que
tinha acontecido no encontro, e que depois o seu irmão Ricardo Sá Fernandes
apareceu com uma gravação, e que lhe esclareceu que tinha sido procurado para
lhe propor uma acção para desistir da acção popular fazendo uma declaração
pública na Câmara aludindo a ter visto os documentos sobre as empresas em
questão e que tudo estava bem com o negócio em questão. Mais aludiu a que
dessa conversa, segundo lhe relatou o seu irmão, lhe foi apresentada uma oferta
de dinheiro em mão. Mais referiu que ouviu a conversa do próprio telemóvel
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(cerca de meia hora de gravação) de onde ela foi realizada e que o final da
conversa não tinha sido finalizado, mais expressando que ficou indignado com
aquela proposta e que o seu irmão se encontra nervoso e também indignado com
o assunto, e que aquilo era um acto de corrupção. Foi desde logo demonstrado o
interesse na denúncia do caso às autoridades, e que nessa altura o irmão lhe
tinha referido a que já tinha falado no assunto a outros amigos com os quais se
tinha aconselhado (D, A, L, B e C). Também referiu o ter de falar com o Dr. R.
Após a denúncia à Polícia Judiciária, referiu ainda o assistente, sabe que foram
realizadas gravações autorizadas ao abrigo da acção encoberta, acompanhadas
pela Polícia Judiciária, com dois outros encontros (em que procuraria repor o
teor da 1.ª conversa e continuar o assunto), fazendo alusão a uma quantia
concreta de € 200.000,00, e onde se veio a dar ênfase à desistência da acção e a
uma declaração pública com algum retratamento seu após consulta e análise dos
documentos na Câmara, aludindo à boa fé das empresas privadas envolvidas.
Demonstrou, mais ainda, a sua indignação acerca daquela proposta, sobretudo
para quem levava avante aquela batalha difícil e por convicção, e que com
aquela declaração pretendia-se condicioná-lo naquele assunto e nas futuras
votações acerca daquele negócio e do respectivo processo, designadamente
quanto às edificabilidades (cérceas da Avenida da República e plano de
pormenores).
Depois, ainda assim, nos depoimentos de:
. B, arquitecta e amiga do depoente Ricardo Sá Fernandes, que se
apresentou a tribunal como amiga pessoal do Dr. Ricardo Sá Fernandes bem
como do irmão e também do Dr. L. Relativamente aos factos recordou que na
véspera das eleições que ocorreram no princípio do ano de 2006, ao que julga no
dia 21 de Janeiro, foi abordada telefonicamente pelo L que lhe transmitiu que o
Ricardo precisava da ajuda de ambos para o acompanharem num encontro sobre
o qual ele teria algumas suspeitas. Aceitou dar uma ajuda a esses seus amigos,
pese embora nesse primeiro contacto não tenha havido qualquer explicação
sobre o que estava em causa. Foi apenas informada de que se tratava de um
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encontro que iria ocorrer no dia seguinte, 22 de Janeiro, pelas 16:30H, no bar do
Hotel Mundial, e que estaria em causa um encontro do Ricardo com outros
indivíduos, havendo conveniência em a depoente assistir à distância ao encontro
e até se possível fazer a gravação da conversa a manter no dito encontro. No dia
seguinte, continuou a mesma depoente, os referidos amigos vieram buscá-la junto
a sua casa, tendo ideia que o encontro chegou a ser atrasado para as 17:30H. Só
a caminho do Hotel Mundial é que o Dr. Ricardo lhe deu pormenores sobre
aquilo que estava em causa. Um encontro com Domingos Névoa da
Bragaparques que o tinha contactado por telefone, primeiro a coberto apenas do
nome Domingos e que ao principio tinha confundido até com um jornalista, o
qual teria proposto ao Dr. Ricardo um encontro para uma conversa particular e
relativa a um assunto do interesse do Dr. Ricardo. Foi também reportado à
depoente que, dadas as suspeitas do Dr. Ricardo, pretendiam tentar gravar a
conversa que o Ricardo iria manter com o Domingos Névoa, para o que tinham
já tentado por a funcionar um sistema com um microfone e um ponto de recepção
à distância mas que o mesmo não tinha funcionado. Estacionaram o carro no
Martim Moniz e conforme o acordado a depoente e o Luís Filipe Rocha
dirigiram-se primeiro para o bar do Hotel Mundial, de modo a já lá se
encontrarem antes de entrar o Dr. Ricardo de modo a dar a aparência a ser um
casal que normalmente ali estaria a tomar uma bebida. Quando entraram
verificaram que o bar tinha um ecrã gigante onde estava a ser transmitido um
jogo de futebol, estando ainda presente um grupo de estrangeiros que estava a
assistir ao jogo e verificando que já lá se encontrava uma outra pessoa que
supuseram ser o referido Domingos Névoa uma vez que não o conheciam
pessoalmente. Ainda antes do Dr. Ricardo chegar lembra-se que o tal Domingos
mudou de mesa no sentido de melhor assistir ao jogo de futebol, ficando então
numa mesa próxima daquela que a depoente e o Dr. L ocuparam. Passado algum
tempo entrou o Dr. Ricardo que se dirigiu ao Domingos Névoa, que se levantou
na altura, tendo os dois, por sugestão do Dr. Ricardo, se encaminhado para uma
mesa mais afastada do ecrã e do barulho que faziam as pessoas que assistiam ao
jogo de futebol. Como essa outra mesa não era visível daquela que a depoente e o
L ocupavam, arranjaram um pretexto para também mudarem de mesa instalandose numa outra de onde viam o que se estaria a passar no encontro do Dr.
Ricardo. A depoente ficou sentada de costas para a mesa onde estava sentado o
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Dr. Ricardo, não sendo possível ouvir nada do que o mesmo estava a falar com o
Domingos Névoa. O L é que ficou de frente e foi transmitindo à depoente que o
Ricardo parecia algo nervoso. A conversa do Dr. Ricardo com o Domingos
Névoa terá durado cerca de três quartos de hora, tendo o Ricardo saído primeiro
sozinho e ficado quer o Domingos Névoa quer a depoente e o Dr. L. Depois do
Ricardo sair o Domingos Névoa ainda chegou a mudar de mesa para continuar a
assistir ao jogo de futebol, tendo a depoente e o L pago a respectiva conta e saído
do bar, antes do mesmo Domingos Névoa. À saída do Hotel Mundial telefonaram
ao Ricardo que logo lhes pareceu estar bastante incomodado tendo combinado
irem buscar o carro e encontrarem-se com ele junto à Rua da Palma. Já no
interior do carro o Ricardo explicou-lhes que o Domingos Névoa tinha oferecido
uma quantia em dinheiro em troca de uma declaração pública a realizar pelo
José Sá Fernandes e relativa ao processo do Parque Mayer / Feira Popular,
pretendendo ainda que houvesse uma desistência da acção administrativa
pendente. O mesmo Ricardo Sá Fernandes, referiu ainda a depoente, manifestou
ainda algum desalento por ter constatado que o telemóvel que tinha levado para
gravar a conversa se teria desligado pouco depois de a mesma ter começado, não
ficando gravada a parte essencial da conversa. A depoente sabe que o Dr. José
Sá Fernandes estava a par do encontro que tinha ocorrido, tanto mais que ele
também estaria em casa da irmão de ambos que fazia anos, supondo que o Dr.
Ricardo lhe iria também relatar o resultado da conversa tanto mais que a mesma
dizia respeito ao referido José e que o Dr. Ricardo estava bastante agastado por
ter ficado com a sensação de que queriam comprar a boa fé e a honestidade do
seu irmão. Relativamente ao pagamento proposto pelo Domingos Névoa lembrase que o mesmo não teria chegado a ser quantificado no encontro presenciado.
Recorda ainda que o Ricardo lhe transmitiu que tinha procurado ganhar tempo
junto do Domingos Névoa, tendo dito que precisava de falar com o irmão e que
numa próxima reunião lhe transmitiria o resultado. Mais recorda que no dia
seguinte falou com o Ricardo Sá Fernandes e que o mesmo tinha tomado a
decisão de denunciar os factos e contribuir para o seu esclarecimento com as
49
entidades policiais. Posteriormente, em encontro com outros amigos do Ricardo
Sá Fernandes (D, L e C) soube ainda que o Dr. Ricardo recebeu mensagens
escritas via telemóvel com origem num telefone do filho do Domingos Névoa, um
tal Bruno. Nunca chegou a falar com o José Sá Fernandes sobre este assunto.
Mais esclareceu que nunca tinha visto o referido Domingos Névoa antes daquele
episódio do Hotel Mundial e que depois o veio a identificar num foto na polícia
judiciária.
. L, que se identificou como realizador de cinema e conhecido e amigo de
ambos os irmãos Sá Fernandes, e que os teria conhecido desde a questão do
processo de Camarate. Referiu que por volta de 20 de Janeiro de 2006 teria
contactado com o Ricardo Sá Fernandes que lhe disse que tinha sido contactado
telefonicamente para o seu escritório por Domingos Névoa (sócio da
Bragaparques que é cliente do escritório de Advogados de Ricardo Sá Fernandes,
mormente da Advogada R) que lhe pediu para comparecer num encontro, que
não poderia ocorrer no escritório. Acrescenta que, de acordo com o que lhe foi
dito por Ricardo Sá Fernandes, este suspeitava que o referido Domingos Névoa
iria apresentar a Ricardo Sá Fernandes uma proposta acerca da Bragaparques e
para o irmão daquele, José Sá Fernandes, Vereador da Câmara de Lisboa e que
havia intentado acções contra a CML relacionadas com o negócio da permuta
Parque Mayer/ Feira Popular na qual interveio a Bragaparques. O depoente deulhe a opinião de que teria de ir preparado para um encontro desses, ficando
desde logo combinado que o Ricardo teria de se aconselhar com mais pessoas, o
que aquele fez com A, com o D e com a C. Depois combinaram que seria melhor
proceder à gravação do encontro, tendo-lhe sido pedido para acompanhar o
Ricardo Sá Fernandes nesse mesmo encontro, designadamente para testemunhar
a realização do encontro em causa. Ficou combinado que seria Ricardo Sá
Fernandes que providenciaria para arranjar um aparelho para realizar a
gravação do encontro, e que o depoente iria encontrar uma pessoa que o
acompanhasse para passar mais despercebido no local do encontro. Refere que
Ricardo Sá Fernandes providenciou um aparelho de gravação sem fios, com um
microfone e um controlo à distância, que testado no Domingo, no dia do
encontro, não funcionou pelo que foi necessário recorrer a um telemóvel/PDA do
cunhado de Ricardo Sá Fernandes. Acrescenta que no Sábado, dia 21 de Janeiro,
contactou a arquitecta B, a qual sabendo apenas que era necessário testemunhar
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a realização de um encontro entre Ricardo Sá Fernandes e outro indivíduo, para
ajudar Ricardo Sá Fernandes, mostrou a sua disponibilidade para acompanhar o
depoente. Assim, no dia 22 de Janeiro deslocou-se, de automóvel, na companhia
de Ricardo Sá Fernandes para apanhar a arquitecta B, no percurso Ricardo Sá
Fernandes inteirou a mesma B do que se estava a passar. Primeiro o Ricardo Sá
Fernandes foi votar e posteriormente disse que seria melhor ir a pé seguindo
aqueles dois de carro para o local do encontro, o que aconteceu. Seguidamente o
depoente e a arquitecta B estacionaram o veículo no parque do Martim Moniz e
deslocaram-se para o Hotel Mundial, tendo-se sentado no Bar. Neste local
constataram que se encontrava numa mesa, a ver o futebol na televisão, um
homem de cerca de 50 anos de idade, 1,70/1,75 de altura, moreno, cabelo escuro
e curto que se encontrava vestido de escuro, segundo julga de fato e gravata. O
depoente teve a intuição que se tratava do indivíduo com quem Ricardo Sá
Fernandes se viria a encontrar, tendo-se sentado com a arquitecta B num local de
boa visibilidade para a mesa onde o indivíduo se encontrava. Acrescenta que
posteriormente entrou Ricardo Sá Fernandes que, após um sinal de chamamento,
se dirigiu ao indivíduo já descrito. Posteriormente Ricardo Sá Fernandes e o
indivíduo em questão mudaram de local, numa mesa fora das vistas do depoente e
da arquitecta B. Algum tempo depois, sentaram-se noutra mesa frontal àquela em
que se encontravam Ricardo Sá Fernandes e o outro indivíduo. No decurso do
encontro recorda-se de pensar que a posição em que os intervenientes do
encontro se encontravam era benéfica para as condições da gravação. Refere que
não ouviu nada do que foi falado no encontro, apenas constatou a linguagem
gestual. O encontro em causa decorreu durante cerca de 40/50 minutos,
posteriormente Ricardo Sá Fernandes abandonou o Hotel Mundial e o outro
indivíduo deslocou-se para os sofás em frente à televisão para visionar a partida
de futebol na televisão. Posteriormente o depoente e a arquitecta B abandonaram
o Hotel Mundial e encontraram-se posteriormente com Ricardo Sá Fernandes,
que relatou ao depoente e à Bárbara o teor da conversa e que disse que tinha
ouvido um pequeno "beep" no decurso do encontro o que poderia significar que
51
não tinha sido gravado todo o encontro. Nessa conversa o Ricardo Sá Fernandes
fez menção a ter sido referido um pagamento em dinheiro a troco da desistência
da acção popular e de uma declaração pública na Câmara Municipal de Lisboa
de que não existia afinal qualquer ilegalidade no negócio em causa. Mais frisou
ter feito parte de alguns encontros com outros amigos do Ricardo Sá Fernandes
sobre o andamento deste assunto e que o mesmo Ricardo falou com o Bastonário
dos Advogados e que iria à Polícia Judiciária, tendo ocorrido gravações
posteriores.
. B, que se identificou como filho do arguido, e que referiu ser ainda
titular do número de telemóvel 917517377, isto desde 1998, tendo agora
conhecimento dos factos que são imputados ao seu pai. Aludiu a que na altura
dos factos descritos na acusação o seu pai lhe pediu para enviar algumas
mensagens por telemóvel dado que este não o sabia fazer, sendo que quando isso
acontecia o depoente o não questionava sobre essa necessidade, esclarecendo
que por vezes indicava o nome e outras vezes apenas o número respectivo. Foi
confrontado no decurso do seu depoimento com o conteúdo das sessões 237, 284
e 524 do anexo Apenso III, actual Apenso F [Alvos 1H091M e 1H092M]
(transcrições de comunicações por telefone), não se recordando bem dos seus
termos, e que o pai lhe pedia para o fazer sem qualquer tipo de pormenor sobre a
justificação das mesmas. Mais referiu que nesse altura e ainda agora se dedica
aos estudos, e que nesta situação não se encontra muito envolvido com os
negócios do seu pai e das suas empresas.
. N, inspector da Polícia Judiciária, que acompanhou as intercepções
telefónicas, bem como as respectivas transcrições, realizadas na investigação
deste processo, dando conta do que se passou no acompanhamento dos encontros
entre o arguido e Ricardo Sá Fernandes, após terem sido contactados por um
Procurador da República e pelo mesmo Ricardo Sá Fernandes, com a notícia do
acontecido e estabelecida e fidedignidade da fonte e do testemunho original. Mais
fez alusão ao formalismo estabelecido para as operações, com acção encoberta,
os dispositivos de gravação utilizados, ao teor das gravações das conversas, e as
intercepções aos contactos entre o arguido e o seu filho e ainda de mais alguns
terceiros. Mais esclareceu que estava tudo desencadeado para haver entrega de
dinheiro, mas foram recebedores de uma mensagem do arguido que os
desmobilizou. Mais fez alusões às acções de busca e revista do arguido e à
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apreensão de um cartão de visita na carteira do arguido (sendo então
confrontada a testemunha com o teor dos autos de fls. 146-148, conteúdo que
confirmou). Mais esclareceu os termos em que foram recebedores, por parte do
Dr. Ricardo Sá Fernandes, do suporte onde foi gravada a primeira conversa tida
com o arguido, no próprio aparelho (pda) em que ela tinha ocorrido, sendo a
Polícia Judiciária que realizou a transferência do suporte original para um mini
CD, nos moldes que se encontram documentados no dossier de acção encoberta
(apenso B), isto a fls. 2-3, mas sem que tenha sido formalizado em auto porque tal
não se fazia nessa altura. Mais aludiu a que o contacto de Ricardo Sá Fernandes
com a Polícia Judiciária ocorreu em 24/1/2006.
. C, inspector-chefe da Polícia Judiciária, que fez alusão a ter chefiado a
brigada encarregue desta investigação, e que acompanhou à distância, após
colocação dos equipamentos, os encontros entre o arguido e Ricardo Sá
Fernandes no Hotel Mundial, já ao abrigo da acção encoberta, e que as
gravações obtidas foram depois objecto das competentes transcrições.
Coordenou também outras diligências de acompanhamento de encontros
estabelecidos entre o arguido e J. Fez ainda alusão a como tinha chegado a
notícia de ter ocorrido a aludida proposta de suborno (o Procurador da
República que foi contacto pelo Dr. Ricardo Sá Fernandes) e dos passos de
investigação que lhe seguiram.
. J, consultor jurídico e que em 2005 se encontrava no Município de
Lisboa, tendo sido assessor no mandato do Presidente da Câmara S e também do
Professor Carmona Rodrigues, encarregue de preparar propostas e pareceres
jurídicos, sendo que exerceu também o cargo de Director Municipal dos Serviços
Centrais, o que incluía a coordenação de vários departamentos. Mais referiu ter
participado e acompanhado as negociações e o processo relativo aos terrenos do
Parque Mayer, com a elaboração e assinatura de contrato-promessa e também
do contrato definitivo, tendo estabelecido contactos com o arguido Domingos
Névoa e com a sua advogada Dr.ª R, sendo que foram trabalhando o acordo com
as instruções que foi sempre recebendo do Presidente da Câmara que tinha um
53
determinado planeamento e engenharia financeira envolvida. Mais referiu os
termos em que veio a encontrar-se com a Dr.ª R e também com o arguido para
resolver o problema da permuta e também sobre os efeitos da acção popular
interposta, recordando o arguido o incómodo por esse facto. Mais aludiu a que
nos contactos estabelecidos com o arguido e com a sua advogada também foram
referidos outros assuntos, designadamente alguns assuntos sobre a cedência dos
parques de estacionamento.
. R, advogado, bastonário no triénio 2005-2007, que referiu conhecer
ambos os irmãos advogados Sá Fernandes, sendo que ao Dr. Ricardo Sá
Fernandes o conhecia melhor desde há 14 anos por causa do então processo dos
hemofílicos. Mais referiu ter sido contactado nos inícios de 2006 (precisamente
na 2.ª feira, 23/1/2006, no dia seguinte às eleições presidenciais) pelo mesmo Dr.
Ricardo Sá Fernandes, a título pessoal, tendo-lhe relatado o teor da conversa
telefónica e do encontro estabelecido com o Sr. Domingos Névoa. Depois o
assunto teve desenvolvimento na Ordem dos Advogados, após a participação da
Dr.ª R e o assunto deixou de ter cariz pessoal. Nessa qualidade, a sua intervenção
aqui em tribunal está devidamente legitimada com a autorização da Ordem dos
Advogados. Mais fez alusão à forma como o Dr. Ricardo Sá Fernandes lhe
contou o encontro estabelecido e o teor da proposta que lhe foi apresentada pelo
mesmo Sr. Domingos Névoa, com vista a ele interceder junto do irmão com vista
à desistência da acção e produzir um acto público no exercício das funções de
vereador, mais lhe tendo sido dito pelo mesmo Dr. Ricardo Sá Fernandes que já
tinha falado informalmente com o procurador Dr. R e combinado ir fazer a
queixa, sendo que lhe pedia a sua opinião sobre esse assunto. Nessa altura, se
bem se recorda, não se fez qualquer menção ao facto de o primeiro encontro ter
sido gravado particularmente pelo Dr. Ricardo Sá Fernandes, e se lembra de lhe
ter dito que ele tinha uma certa propensão para se “meter” em coisas assim, e
que lhe perguntou o que achava o Dr. Rosário Teixeira, dizendo-lhe que fizesse o
que fizesse não se esquecesse que era um advogado. Após isso, veio a ser
contactado pelo mesmo Dr. Ricardo Sá Fernandes (4 ou 5 dias depois, talvez em
27/1/2006), que lhe relatou que iria actuar como agente encoberto com
gravações autorizadas por juiz, sendo que o aqui depoente lhe disse que não
comentava aquilo e que ele sabia que era advogado e que iria ser alvo de
críticas. Nos contactos posteriores veio a saber da participação ao M.ºP.º, do
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teor da acção encoberta e da gravação da conversa. Mais lhe foi salientado, à
testemunha, pelo mesmo Dr. Ricardo Sá Fernandes, que não existia relação entre
o ser advogado e a sua atitude. Depois disso, continuou o mesmo depoente, veio a
ser confrontado (finais de Fevereiro, inícios de Março), com uma carta da Dr.º R
de participação de uma série de factos e que os narrava de forma diferente, e que
por esse motivo deu encaminhamento da denúncia para o Conselho
Deontológico, desde logo por via de uma alegada conexão com uma empresa
cliente do escritório da advocacia. Mais aduziu, o depoente, que esta é uma
matéria controversa, e que nesta segunda fase o assunto ganhou foros
deontológicos, sendo que depois chegou de novo a falar com o Dr. Ricardo Sá
Fernandes e que ele lhe voltou a reforçar que os contactos não tinham qualquer
raiz profissional, que a sua intervenção tinha sido com uma pessoa que não
conhecia, nada tendo a ver com ela.
. D, editor, e amigo do assistente José Sá Fernandes e do depoente
Ricardo Sá Fernandes, e que referiu que no final da campanha para a
presidência da República, em Janeiro de 2006 (6.ª feira anterior às eleições), foi
contactado pelo Ricardo Sá Fernandes, que precisava de falar com ele, tendo
depois combinado um encontro num bar com outra amiga comum (C), em que lhe
fez referência a ter sido contacto telefonicamente por um Sr. Domingos, que
pensava primeiramente que era outra pessoa e que depois veio a identificar como
o ora arguido, e que precisava de aconselhamento e também de eventual
equipamento para gravação de um encontro que iria ter com ele, pois pensava
que se iria tratar de um aliciamento seu para resolver algum problema por causa
do seu irmão José Sá Fernandes o do seu posicionamento na Câmara de Lisboa,
dado que era este que era a voz que se levantava contra o negócio da permuta
dos terrenos. No dia das eleições, conta o mesmo depoente, o Ricardo Sá
Fernandes, apareceu-lhe muito nervoso em sua casa (olhos abertos de espanto),
fazendo menção a que no encontro o aqui arguido Domingos Névoa lhe tido feito
uma proposta pecuniária, a pagar ao irmão, pela retratação deste último das
posições por este assumidas, e que estava espantado com o aliciamento feito de
55
forma tão directa, e com a forma como se pretendia que o irmão viesse a desdizer
a sua posição anterior, com a convocação de uma conferência de imprensa.
Aludiu a testemunha, também assim, a outras reuniões que veio a ter com o grupo
de amigos contactados pelo Ricardo Sá Fernandes (C, L e ele próprio depoente),
para o aconselhar sobre o que fazer. Fez ainda menção, o depoente, que
decorridas duas semanas veio a ter conhecimento que o Ricardo Sá Fernandes
tinha entregue o caso à Polícia Judiciária, e tendo encontrado pessoas próximas
do mesmo Ricardo que lhe demonstraram preocupação pelo assunto.
. A, advogado e professor de direito, colega e amigo de Ricardo Sá
Fernandes, e que referiu ter escritório conjunto com aquele, com a Dr.ª R e fazer
parte da sociedade de advogados entretanto constituída (também com o Prof. J e
com o Dr. A). Fez alusão, o depoente, que a empresa Bragaparques não era
cliente da sociedade de advogados, sendo que esta última tinha muito poucos
clientes (menos de uma dezena), sendo a clientela que se deslocava àquele
escritório com uma componente muito forte da advocacia individual de cada um
dos advogados que repartiam escritório naquele edifício, escritório esse
formando há cerca de 10 / 12 anos.
. J, advogado e professor de direito, que referiu ter conhecimento do
assunto dos autos e que tinha pedido a respectiva autorização da Ordem do
Advogados para falar, caso fosse necessário, de alguns assuntos respeitantes a
algum assunto do foro profissional. Mais referiu fazer parte da aludida sociedade
de advogados “L e Associados”, tendo referido das intenções de afirmar a
mesma sociedade, aquando da sua constituição, como o centro da actividade
daquele escritório, o que nunca veio a acontecer, permanecendo sempre como
preponderante a clientela individual de cada um dos advogados, apenas
permanecendo a sociedade advogados com um determinada clientela, sobretudo
por causa da sociedade europeia de advogados TELFA de que aquela sociedade
faz parte. Todos os colegas daquele escritório fazem, portanto, na sua
esmagadora maioria, trabalho de advocacia individual, isto desde 1994, ao
contrário de que estaria na ideia inicial, mas que nunca veio a concretizar-se.
Fez também referência, o mesmo depoente, à forma como veio a subscrever em
conjunto com o seu colega Ricardo Sá Fernandes, a procuração que lhe foi
outorgada por José Sá Fernandes, na acção popular de processo administrativo
interposta contra o Município de Lisboa e outros, que ele como vereador não
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queria continuar a patrocinar (procuração subscrita em 31/7/2005, que foi junta
pelo Dr. Ricardo Sá Fernandes ao processo depois em Outubro / Novembro).
Aludiu, ainda, o depoente, a que a partir desse momento passaram a ser
formalmente os advogados de José Sá Fernandes, mas que apenas actuaram em
Julho de 2005 no registo da acção, através da colega O). Referiu que nessa
mesma altura se lembra que houve dúvidas quanto à factibilidade da acção e do
seu registo, o que levou a elaboração e apresentação de uma segunda petição
inicial. Aludiu, também, a que em 23/1/2006 vieram de facto a ser notificados da
contestação apresentada pela Bragaparques, subscrita pela Dr.ª R, e que depois
esta veio a ter uma conversa com o depoente e enviou também uma carta
levantando o assunto do conflito de interesses, a que eles também responderam
com uma carta (carta de 24/1 e resposta de 26/1). Mais referiu que depois ele, o
Dr. Ricardo Sá Fernandes e os demais subscritores entenderam substabelecer
noutro colega (Dr. P), não porque entendessem que existia conflito de interesses
(não era uma situação de uma sociedade de advogados e passava à margem
desta), mas porque seria desagradável no mesmo escritório. Salientou, o mesmo
depoente, a que tinha na altura uma vaga ideia de que a Bragaparques era
também um cliente da Dr.ª R (por exemplo, sabe bem que da Alta Autoridade
para a Comunicação Social é a Dr.ª R a advogada permanente), mas foi uma
certeza que só teve depois, salientando que a Bragaparques tem vários
advogados e que naquele escritório se fala pouco dos clientes de cada um
(reconhecendo a testemunha que a Dr.ª R é a mais solitária e a mais individual
daquele escritório).
. F, advogado e que referiu conhecer o Dr. Ricardo Sá Fernandes, uma
vez que foi assessor dele na secretaria de Estado e veio a ser seu estagiário de
inícios de 2004 a Março de 2006. Mais fez alusão a que na altura do estágio
continuou a fazer a sua função pública, pelo que poucas vezes ia àquele
escritório (nunca esteve lá em permanência), e que realmente em Junho de 2004,
a propósito de uma alteração legal nesse domínio, veio a produzir um parecer ou
uma consulta jurídica a propósito do enquadramento jurídico-tributário dos
57
Fundos de Investimento, e em Agosto de 2005, uma nova versão, sabendo-se que
essa consulta lhe foi solicitada pela Dr.ª R no âmbito particular, não tendo
havido qualquer interposição do seu patrono (Dr. Ricardo Sá Fernandes).
Confrontado com o teor documental de fls. 1533 dos autos, referiu, o mesmo
depoente, que foi ele que o enviou, e por não ter o contacto de e-mail da Dr.ª R,
encaminhou primeiro para o e-mail profissional do Dr. Ricardo Sá Fernandes, na
certeza que a sua secretária, que geria a conta de e-mail daquele, procederia ao
reencaminhamento da mensagem para a Dr.ª R, já que estava a par do assunto,
ao invés do que aconteceu com o Dr. Ricardo Sá Fernandes. Questionado sobre
se em algum momento o Dr. Ricardo Sá Fernandes soube desse trabalho, o
depoente referiu que terá sido sugestão daquele à Dr.ª R, mas que o mesmo
parecer lhe foi remunerado no âmbito de uma prestação de serviços, com o
pagamento dos honorários respectivos, sem qualquer intervenção do Dr. Ricardo
Sá Fernandes.
. M, funcionária daquele escritório de advocacia sito na Rua J, em nome
da sociedade “L”, encarregue do serviço externo, e também enquanto secretária
do Dr. A. Referiu conhecer o arguido uma vez que é ela que atende as pessoas
que visitam aquele escritório após as 19.00H e já tinha aberto as portas algumas
vezes. A testemunha indicou que no dia 18/1/2006, a meio da manhã, e quando se
encontrava a substituir a sua colega O quem tinha morrido a mãe, recebeu uma
chamada de telefone de uma pessoa que se identificava como “Domingos” e que
pretendia falar com o Dr. Ricardo Sá Fernandes. Aludiu a testemunha que ainda
tentou saber o apelido, mas que a pessoa não o referiu, a acabou por falar com o
Dr. Ricardo Sá Fernandes, e passou-lhe a chamada. Mais referiu que nessa data
a Paula Martins, secretária do Dr. Ricardo Sá Fernandes, se encontrava de baixa
hospitalar.
. O, telefonista e recepcionista daquele escritório de advogados sito na
Rua J, onde trabalha há cerca de 9 anos. Fez referência a que eram frequentes as
visitas do arguido para a Dr.ª R. Mais declarou que no dia 18/1/2006 não se
encontrou ao serviço devido à morte da sua mãe, e que posteriormente, noutra
data seguinte, veio a atender um telefonema realizado pelo arguido, que se
identificou apenas como “Domingos” e que achou estranho não a cumprimentar
e querer falar com outro advogado que não a Dr.ª R, como era costume, mas sim
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com o Dr. Ricardo Sá Fernandes. Passou então a chamada, concluiu a mesma
testemunha.
. A, com funções de secretariado do advogado Ricardo Sá Fernandes
naquele escritório, que no seu depoimento fez alusão ao trabalho de selecção e
organização dos elementos documentais e informáticos remetidos para aquele
advogado. Mais aludiu, confrontada com o documento de fls. 1533 dos autos, que
na altura o referido Dr. Ricardo Sá Fernandes não recebia ele pessoalmente os emails (não o sabendo fazer), sendo que a caixa de correio electrónico do mesmo
se encontrava no computador da depoente, e que relativamente a esse e-mail o
reencaminhou ela própria e que não precisou de falar sobre esse assunto com o
mesmo Dr. Ricardo Sá Fernandes. Aduziu, ainda, a que no dia 18/1/2006 se
encontrava de baixa, pois iria ser operada no dia 19/1, e que o Dr. Ricardo Sá
Fernandes era muito comum cumprimentar as pessoas no hall e no corredor. Deu
conta, também assim, da distribuição física do espaço dos gabinetes dos vários
advogados naquele escritório.
. B, inspector da Polícia Judiciária, e que aqui veio depor na qualidade de
chefia do grupo de informática da Polícia Judiciária (daquele que deverá vir a
ser o futuro Laboratório de informática forense), o qual veio depor sobre os
aspectos ligados com a gravação do mini-CD junto aos autos e do respectivo
ficheiro, isto é, do tipo de ficheiro em causa (WAV), da sua data de gravação
original, da data de sessão de gravação do suporte original para o mini-CD, das
características do suporte original de gravação (QTECH 100 Mobile Windows
SE), do software utilizado (Nero Burning), salientando que na altura não tinham
registo dos procedimentos e das tarefas realizadas, não se recordando da
situação em causa devido ao assinalável número de casos e situações que lhes
eram e são ainda colocadas diariamente.
. A, professor universitário, e que referiu conhecer o depoente Ricardo Sá
Fernandes dado o mesmo ser casado há cerca de 6/7 anos com uma sua enteada.
Mais aludiu a que há cerca de 2/3 anos foi contactado por telefone pelo mesmo
Ricardo Sá Fernandes em que este lhe conta que tinha sido contactado por um tal
59
Sr. Névoa e que suspeitava que o encontro combinado teria alguma coisa a ver
com um assunto menos própria, sendo que o depoente o aconselhou a falar com a
pessoa para saber o que ele queria. Depois, segundo referiu o mesmo depoente,
existiram mais 2 ou 3 conversas (no escritório e na casa da testemunha) em que o
Ricardo Sá Fernandes lhe relatou os resultados do 1.º e 2.º encontros com o aqui
arguido, em que este pretendia uma troca de favores, e em que o depoente o
auxiliou sobretudo na análise das questões morais e deontológicos, mormente se
um advogado poderia prosseguir nessa via e se a sua acção poderia ser
equacionada como um agente provocador. Relativamente à primeira questão
referiu que concluíram que não era aconselhável sem o acompanhamento da
Ordem dos Advogados e relativamente à segunda afastaram qualquer
coincidência do agente encoberto com o agente provocador. Mais sabia a
testemunha que o assunto estava também a ser investigado pela Polícia
Judiciária e com a supervisão muito próxima da Procuradoria Geral da
República. Mais fez menção a terem discutido se esta situação deveria ou não ser
divulgada publicamente e terem refutado a ideia de qualquer entrega e aceitação
de dinheiro por parte do Ricardo Sá Fernandes ao abrigo da acção encoberta.
. H, economista e director-financeiro desde 1999 da Bragaparques, que
deu conta do conhecimento que tinha do escritório de advocacia onde exercia a
Dr.ª R e o Dr. Ricardo Sá Fernandes, ainda o frequentando actualmente, sabendo
que o mesmo Dr. Ricardo Sá Fernandes trabalha para esse escritório. Referiu
que se desloca ao mesmo escritório cerca de 1 a 2 x por semana, muitas vezes
com o aqui arguido, cruzando-se com o referido Dr. Ricardo Sá Fernandes,
designadamente sabendo que a secretária do Dr. Ricardo Sá Fernandes estava
sentada quase de frente à sala de espera onde o depoente e a sua companhia
esperam pela chamada para serem atendidos pela Dr.ª R. Mais acrescentou ser
aquele escritório situado numa vivenda relativamente pequena e cruzando-se
necessariamente com as pessoas, recebendo os cumprimentos do mesmo Dr.
Ricardo Sá Fernandes e chegando a ter conversas de índole técnica com ele, nos
corredores, quando o confrontava com assuntos da política fiscal por ele ter sido
secretário de Estado, nomeadamente a propósito da isenção do IA para os jeeps
ou uma troca de impressões sobre mais valias detidas há mais de um ano pelos
titulares. Referiu, também, que muitas vezes essas trocas de impressões incluíam
o ora arguido e também V, e que o Dr. Ricardo Sá Fernandes não podia deixar
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de identificar com quem estava a falar. Mais esclareceu que o gabinete da Dr.ª R
se situava no 1.º andar, e que se lembra numa questão sobre o enquadramento
jurídico ou fiscal sobre os fundos de investimento imobiliário a Dr.ª R ficou de
aconselhar com o Dr. Ricardo Sá Fernandes, e que veio depois a ser combinado
que quem iria fazer o parecer era o Dr. F, na altura um estagiário do Dr.
Ricardo Sá Fernandes, e que numa outra altura a propósito de um outro
problema de carácter fiscal também foi suscitada a colaboração do Dr. Ricardo
Sá Fernandes, mas sem que o assunto tivesse avançado. Mais depôs que
acompanhou o arguido na viagem a Angola no final de Janeiro de 2006, e foram
a falar de vários assuntos na viagem, entre os quais a questão do Parque Mayer e
o muito dinheiro ali investido, tendo o arguido referido que aquele assunto era
capaz de se resolver uma vez que tinha entrado um outro advogado no processo
(Dr. Pinto Ribeiro), o que permitiria vir a acontecer um acordo na acção popular
proposta pelo Dr. José Sá Fernandes.
. J, engenheiro e director da Bragaparques, desde Junho de 2001, que
referiu ser visita regular do escritório da Dr.ª R (1 x por semana), na maior parte
das vezes na companhia do arguido. Aludiu, ainda, que o Dr. Ricardo Sá
Fernandes tem o hábito de utilizar o corredor para ler papéis e para ditar à sua
secretária. Com muita frequência encontraram, disse a mesma testemunha, o
mesmo Dr. Ricardo naquele espaço, tendo-se cumprimentado e trocado palavras
circunstanciais, pelo que era impossível o arguido e o mesmo Dr. Ricardo Sá
Fernandes não se conhecerem.
. V, advogado, tendo sido administrador das empresas do grupo do
arguido durante cerca de dez anos. No seu depoimento a testemunha referiu que
ia frequentemente ao escritório da Dr.ª R, no mínimo 1 x por mês, sendo que
conheceu o Dr. Ricardo Sá Fernandes de se cruzar com ele no corredor e na sala
de espera do mesmo escritório, considerando ser impossível o mesmo Dr.
Ricardo não saber quem era o aqui arguido. Mais referiu que chegou a participar
numa conversa de circunstância mantida com o Dr. Ricardo Sá Fernandes sobre
a tributação de jeeps, achando injusta a renovação da tributação de IA. E ainda
61
fez referência que muitas dessas reuniões com a Dr.ª R eram realizadas à noite, e
que a porta era aberta pela funcionária O, e por vezes um ou outro advogado,
incluindo o Dr. Ricardo Sá Fernandes.
. M, advogada, colega de escritório do Dr. Ricardo Sá Fernandes, que fez
menção à instituição daquele escritório de advocacia, com a depoente e mais 7
advogados, incluindo o Dr. Ricardo Sá Fernandes, com constituição de uma
sociedade de advogados e uma sociedade imobiliária, mas em que é mais
marcante o exercício da advocacia em termos individuais. Referiu que entre os
clientes da sociedade de advogados, para além da TELFA (associação de
advocacia internacional), se encontram alguns bancos, sendo possível também
alguns desses dossiers serem tratados por aquela sociedade de advogados.
Informa que quanto à Bragaparques era sua cliente desde 2000, que acompanhou
até 2003 com assuntos mais ou menos pequenos, sendo que a partir de 2003 a
depoente ficou com o dossier do Parque Mayer. Refere que o seu colega Dr.
Ricardo Sá Fernandes até era da opinião que um dossier dessa dimensão deveria
ser da sociedade de advogados, mas que ela não aceitou a sugestão. Mas esse
facto, considerou ainda a depoente, não implicou que sobre assuntos ligados com
esse dossier não deixasse de falar com os colegas sobre eles, o que fez com o Dr.
J, com o Dr. A e também com o Dr. Ricardo Sá Fernandes. Assim, por exemplo,
no que respeita às questões de Fundos de Investimento Imobiliários, a depoente
falou com o mesmo Ricardo Sá Fernandes para a apoiar nessa questão, sendo ele
que lhe sugeriu o Dr. F que era um especialista na matéria, sendo que depois os
contactos foram estabelecidos através da secretária do Dr. Ricardo Sá
Fernandes, pois o referido Dr. F não costumava ir ao escritório como os demais
estagiários. Mais afirmou que o Dr. Ricardo Sá Fernandes ainda foi à 1.ª reunião
de apresentação, mas não participou da discussão dos assuntos nem dos
posteriores contactos, sendo que o Dr. F foi tratar do assunto, sendo que remeteu
um e-mail para o Dr. Ricardo Sá Fernandes, sendo os contactos assegurados
pela depoente P. Mais referiu ter falado com o mesmo Ricardo sobre o parecer e
ficou com a impressão que ele estava a par do seu conteúdo, trocaram opiniões
sobre o conteúdo do mesmo, e ter pago os honorários competentes ao Dr. F. Mais
referiu que a partir de Março/Abril de 2005 começou a evitar falar com o Dr.
Ricardo Sá Fernandes pelo facto de o mesmo ser irmão de José Sá Fernandes,
candidato às eleições autárquicas, sendo que a última conversa ocorreu no dia
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da hasta pública (15/7/2006). Refere que o mesmo Dr. Ricardo Sá Fernandes
pretendeu falar com ela depois no escritório sobre o que tinha acontecido na
hasta pública, demonstrando estar a par do assunto, sabendo dos concorrentes e
dos montantes oferecidos, e fazendo algumas perguntas à depoente que ela
respondia com cautela, designadamente porque razão haviam dois concorrentes e
tinham desistido e da razão dessa desistência. Certo é que essa conversa foi no
dia 15/7 e a acção popular deduzida pelo irmão entrou em 20/7, sendo desde logo
divulgado na impressa tal facto. Mais fez referência à forma como acompanhou a
interposição das acções interpostas e a citação das mesmas, do modo como veio
a acontecer a desistência da 2.ª acção interposta, e como vieram a ocorrer as
junções das procurações, designadamente com o envio da informação ao seu
colega Dr. José Sá Fernandes, em 21/9/2005, de que iria contestar e juntar
procuração, o que fez em 4/10/2005. Mais algumas notificações e pedidos de
dispensa de junção de documentos, e uma referência a ser notificada da junção
da procuração outorgada por Dr. José Sá Fernandes em nome dos seus colegas
J, Ricardo Sá Fernandes e outros, recebida por si em 17/1/2006, bem como dos
actos processuais posteriores relativos a essa mesma acção popular, e das datas
respectivas. Mais fez alusões a que se apressou a falar com os colegas J e
Ricardo Sá Fernandes a que estas situações de conflitos de interesses não
poderem ocorrer, tal como numa situação anterior, e que depois veio a reafirmar
essa opinião por carta enviada aos mesmos colegas e que teve resposta (25/1), na
qual se fazia menção ao substabelecimento noutro colega. Mais fez alusão a ter
sido procurada pelo ora arguido em 16/2/2006 que tinha sido interpelado pela
Polícia Judiciária, julgando os mesmos que seria por causa de uma notificação
normal por causa de uma queixa apresentada pelo PCP. Depois de alguns
contactos, continuou a mesma depoente, referiu que disse ao mesmo arguido que
deveria ir à Polícia Judiciária receber a notificação pessoalmente e que passasse
no escritório ao final do dia, o que veio a acontecer, situação em que o arguido
vinha muito transtornado, não conseguindo explicar o que se passava, que tinha
sido revistado minuciosamente, na sua pessoa e no carro, tendo-lhe mostrado uns
63
papéis que tinham sido apreendidos pela Polícia Judiciária. Foi nessa altura que
o Sr. Domingos Névoa fez referência “ao seu colega disse-me”, ao que a
depoente o terá confrontado com o facto dele ter falado alguma coisa com um
colega e o que tinha sido, e surpreendida com o facto de o cliente não lhe ter dito
nada, ainda sem mais desenvolvimentos, foi lá abaixo ao gabinete do Dr. Ricardo
Sá Fernandes, fechou a porta, dizendo que tinha lá em cima o Névoa e que se não
lhe tinha nada para dizer, ao que o mesmo Ricardo terá ficado perturbado, e só
dizendo que só poderia dar explicação no fim de semana, tendo ela confrontado
então o mesmo Ricardo se lhe tinha montado uma armadilha, ao que o mesmo
respondeu que sim que tinha sido uma armadilha. Depois, referiu ainda a
depoente, referiu ao ora arguido que tinha caído numa armadilha e que as
conversas foram todas gravadas, que não tivesse dúvidas, e que ele teria de
passar a falar com outro colega, dando-lhe a referência então do Dr. J, o que
veio a acontecer, sem que a depoente tivesse acompanhado depois os
desenvolvimentos deste caso, a não ser na convocação para algumas das
declarações, que só assistiu na parte necessária ao esclarecimento dos termos da
acção popular. Mais foi a depoente confrontada com o teor documental de fls.
146 dos autos, sendo por ela referido que só tinha visto uma cópia desse original,
tendo a mesma depoente afirmado que veio depois a ser contactada pelo seu
colega J sobre o seu novo patrocínio na acção popular, e das possibilidades de
acordo que viam serem difíceis de concretizar. Fez alusão, ainda, a mesma
depoente, à forma como o seu colega Ricardo Sá Fernandes se comportava no
escritório, sempre afável com as pessoas que cumprimentava no corredor e na
sala de espera, que encontrava-se muitas vezes a ditar, andando, no corredor
para a secretária, e que cumprimentava o arguido no corredor, o qual se
deslocava ao escritório com uma frequência de 2 ou 3 x por semana.
. C, inspector-chefe da Polícia Judiciária, que interveio na investigação
em algumas das diligências, designadamente na montagem do dispositivo de som
(registo audio) no Dr. Ricardo Sá Fernandes, em dois encontros com o aqui
arguido, e que fez referência também à gravação particular que tinha sido
realizada anteriormente pelo mesmo Dr. Ricardo Sá Fernandes, num telemóvel
ou dispositivo similar, que teria sido copiada no serviços de criminalidade
informática da Polícia Judiciária, mais fazendo menção à direcção pela
Procuradoria do inquérito muito directa; e
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. P, inspector da Polícia Judiciária, e que interveio desde o início nas
diligências de investigação, e que tomou parte numa primeira reunião, no seu
gabinete, 3.ª feira, dia 24/1/2006, com o Sr. Procurador R, com o inspector C e
ainda com o denunciante Ricardo Sá Fernandes, dando conta de uma gravação
particular anterior (de 22/1/2006), e da necessidade de reverter o conteúdo da
mesma do equipamento pessoal (PDA ou telemóvel com gravador), para um CD,
o que aconteceu por sua determinação na mesma altura (pelo inspector B
responsável pelos exames informáticos). Mais fez alusão ao início da acção
encoberta e das demais diligências com autorização judicial (gravações e
intercepções telefónicas posteriores).
e ainda de
. M, V e J, conhecidos e amigos ou de grande relacionamento social do e
com o arguido, e que depuseram no sentido do abono da sua personalidade,
generosidade, solidariedade, dinamismo empresarial e seriedade de vida.
*
Depois, também assim, no confronto da prova pericial (perícia
informática) solicitada à secção especializada da Unidade de Telecomunicações
e Informática da Polícia Judiciária, incidente sobre o suporte de mini-CD que
conterá o ficheiro digital resultante da gravação realizada por Ricardo Sá
Fernandes antes do registo das conversas transcritas nos autos, que teve por
objectivo apurar (1) da natureza do ficheiro inserido no mesmo CD, (2) da
identificação do aparelho que procedeu à gravação original desse ficheiro, (3) da
data e da hora da gravação do ficheiro original e (4) da data e da hora da
gravação no mini-CD do ficheiro que é dele constante; mais os esclarecimento
relativos a saber se (5) é possível inscrever-se, numa cópia em suporte mini-CD,
de uma gravação original realizada num aparelho “PDA”, uma data e hora
diferentes de realização efectiva dessa cópia e se (6) é possível inscrever-se nessa
cópia mini-CD apenas a data da gravação original feita no aludido “PDA”, cujo
resultado consta do relatório de fls. 2002-2017. De onde se extrai, em conclusão,
que é “possível (…) afirmar que o disco óptico em análise, contém um único
65
ficheiro de som do tipo RIFF/WAVE, com a denominação UAContents1.wav
(indiciando que terá sido eventualmente “escrito” através de um dispositivo tipo
PDA com o sistema operativo MS Windows nativo), criado em modificado em 22
de Janeiro de 2006 pelas 18 Horas 02 Minutos 46 segundos, tendo sido
armazenado neste dispositivo em sessão gravada em 24 de Janeiro de 2006 pelas
11 horas 13 minutos e 00 segundos, pela aplicação NERO”, não sendo “possível
pela análise dos dados constantes no disco óptico em exame daber qualquer
elemento sobre o computador ou dispositivo de gravação utilizado na mesma”
(assim, das conclusões do mesmo relatório de exame, a fls. 2021 dos autos).
E, mais ainda, no confronto desse acervo com a seguinte documentação:
. informação de serviço de fls. 2 do anexo B (acção encoberta), actual
apenso B, datada de 24/1/2006;
. descrição do registo comercial e publicação oficial de anúncio relativo à
criação da sociedade “Bragaparques – Estacionamentos de Braga”, SA., com os
respectivos elementos, isto a fls. 55-56 dos autos principais;
. auto de revista de 16/2/2006, com apreensão de cartão de visita (a fls.
146 dos autos principais), com anotação manuscrita “Dt. R. Sá Fernandes que
um apoio para a campanha política 250.000 ZERO” (com sublinhado), isto a fls.
145 dos autos principais;
. listagem das chamadas recebidas e emitidas pela central telefónica do
escritório da sociedade “L, Ld.ª, do dia 18/1, com referência à chamada recebida
pelo portátil às 12:27H do número 253240010 (indicativo de Braga), a fls. 224229 dos autos principais;
. documentação relativa às deliberações e propostas da Câmara
Municipal de Lisboa referente aos negócios e aos assuntos referidos nos autos
(Parque Mayer; escritura de permuta e certidão de prédio urbano; certidão do
registo da acção de declaração de nulidade da deliberação da permuta), isto a
fls. 367-416;
. certidão de escritura de compra e venda do prédio urbano de 20/7/2005,
nos moldes documentados a fls. 433-437;
. cópia certificada da contestação oferecida pelo Município de Lisboa na
acção administrativa especial de impugnação das deliberações, processo
1862/05.BELSB, do 2.º Juízo do Tribunal Administrativo e Fiscal, a fls. 461-526;
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*****
. informação e documentação da Câmara Municipal de Lisboa relativa ao
Plano de Pormenor de Alinhamento e Cérceas para a Avenida da República (fase
de projecto/proposta preliminar), a fls. 548-559;
. certidão integral de todas as inscrições passadas e actuais relativas à
sociedade “Bragaparques – Estacionamentos”, SA., a fls. 602-614;
. certidão integral de todas as inscrições passadas e actuais relativas à
sociedade “P. Mayer – Investimentos Imobiliários (Parque Mayer)”, SA., a fls.
617-620;
. mapa do registo de eleitos locais – autárquicas de 2005, com a
composição da Câmara e Assembleia Municipal de Lisboa, para o mandato
2005-2009, onde consta na ordem 10 o nome de José Paixão Moreira Sá
Fernandes, Partido ou Coligação BE, a fls. 628-636;
. acta da instalação da Câmara Municipal de Lisboa a fls. 640-645;
. cópia da avaliação dos terrenos para o Parque Mayer e cópia do
contrato de aquisição dos terrenos do Parque Mayer pela sociedade
Bragaparques, a fls. 694-716;
. cópia da acção administrativa especial (acção popular) proposta em
20/7/2005, por José Sá Fernandes contra o Município de Lisboa e outras, nos
moldes de fls. 730-774;
. cópias das actas da Comissão Hasta Pública dos terrenos da Feira
Popular e ofícios dirigidos à PGR e Inspecção Geral da Administração do
Território, a fls. 784-792;
. factura do Hotel Mundial (S. Jorge Bar) relativas a consumos de
22/1/2006, a fls. 793;
. planta do escritório de advocacia sito na Rua J, a fls. 794-797;
. informação da Assembleia Municipal de Lisboa relativas a comissões de
análise sobre as questões do Parque Mayer, a fls. 798;
. descrição predial n.º 300 da freguesia de Nossa Senhora de Fátima, com
todas as inscrições em vigor, a fls. 818-821;
67
. certidão do contrato de constituição de sociedade com a firma “L
Sociedade de Advogados”, de 8/5/1997, a fls. 1002-1009;
. certidão relativa ao processo da mencionada acção administrativa
especial n.º 1862/05.0BELSB, relativa à petição inicial subscrita por José Sá
Fernandes [apresentada a 20/7/2005], à contestação da Ré P. Mayer –
Investimentos Imobiliários, SA. [apresentada a 8/11/2005], à procuração
passada a favor do Prof. Dr. J, do Dr. Ricardo Sá Fernandes e outros [datada de
31/7/2005 e apresentada em 30/11/2005], e ao substabelecimento passado a
favor do Dr. J [datada de 25/1/2006 e apresentada na mesma acção em
16/2/2006], isto a fls. 1010-1121 dos autos;
. cópia de e-mail remetido em 21/6/2004 de (…).pt (Dr. Ricardo Sá
Fernandes) para (…).pt (Dr.ª R), de reencaminhamento de outro e-mail datado de
20/6/2004, de Fernando Simões, relativo ao enquadramento jurídico-tributário
dos Fundos de Investimento, tal como documentado a fls. 1530 dos autos;
. informação negativa do registo criminal do arguido, a fls. 1738;
. cópias das certidões do registo predial relativo às acções interpostas por
José Sá Fernandes contra o Município de Lisboa, a P. Mayer – Investimentos
Imobiliários (Parque Mayer), SA.; e EPUL – Empresa Pública de Urbanização
de Lisboa, nos moldes documentais de fls. 1801-1803;
. cópia da carta datada de 26/1/2006 remetida por J, Ricardo Sá
Fernandes e O, onde se refere que em Julho de 2005 foi solicitado pelo
identificado José Sá Fernandes aos mesmos remetentes que o patrocinassem nas
acções populares que movera contra o Município de Lisboa, o que foi aceite,
sendo que nesse mesmo Julho os mesmos signatários receberam a procuração
que vieram a juntar aos autos, tendo ainda em Julho assegurado o registo da
acção, tudo isto nos moldes documentados a fls. 1804 dos autos;
. cópia do aviso de entrega postal da notificação, datado de 23/1/2006, da
contestação da Ré Bragaparques subscrita pela Dr.ª R na indicada acção
administrativa especial (acção popular), e cópia do requerimento e junção do
substabelecimento a favor do Dr. J, dos poderes conferidos ao Prof. J, Dr.
Ricardo Sá Fernandes, Dr. O e Dr.ª S, pelo Dr. José Sá Fernandes,
substabelecimento esse datado de 25/1/2006, isto nos moldes de fls. 1868-1870;
. cópia da notificação datada de 16/1/2006 à Dr.ª R de um despacho
lavrado nos autos da referida acção popular 1862/05.0BELSB, bem como da
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junção ao mesmo processo da procuração outorgada pelo aí A. José Sá
Fernandes em favor dos identificados Prof. J, Dr. Ricardo Sá Fernandes, Dr. O e
Dr.ª S, datada de 31/7/2005 e junta aos mesmo autos em 30/11/2005, tal como
documentado a fls. 1931-1937;
. informação de serviço do depoente B com vista a apurar os elementos
suscitados no despacho de fls. 1986, com vista a esclarecer as concretas
circunstâncias da gravação do mini-CD que conterá a gravação realizada por
Ricardo Sá Fernandes em data anterior às gravações transcritas nos autos, e a
eventual entrega pelo depoente Ricardo Sá Fernandes do aparelho “PDA” que
terá realizado a gravação original, tal como documentada a fls. 1959-1961.
*
Merece aqui, ainda, fazer-se alguma referência, aos registos de gravação
e às escutas ou intercepções telefónicas realizadas em fase de inquérito.
Tais gravações e escutas só se demonstrarão justificadas se se mostrarem
idóneas a descobrir os factos ou o lugar em que o arguido se encontra ou, pelo
menos, de virem a promover decisivamente a investigação de factos
criminalmente puníveis, a acontecer ou acontecidos. É com este sentido e alcance
que deve dar-se ao inciso do n.º 1 do Art.º 187.º do CPPenal: “se houver razões
para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da
verdade ou para a prova”.
Na verdade, sabe-se que o que é escutado e gravado diz respeito ao que se
disse – e ao que foi escutado na inversa posição -, assim como manifestação de
declaração de vontade ou de ciência, de um emissor para um receptor, sendo que
essas declarações de vontade ou de ciência, quanto à existência de determinada
realidade factual ou mesmo susceptíveis de enquadrar uma determinada vontade
ou intenção criminosas, devem ser apuradas na sua efectividade por outro tipos
de meios de prova ou meios indiciários, que nos possibilitem a convicção segura
– para além de toda a dúvida razoável – da existência dos factos criminais
imputados aos arguidos.
69
A aquisição processual que a intercepção e gravação permitem - que pode
ser muito prestável em termos técnicos e estratégicos na investigação sobre
factos penais e na aquisição dos correspondentes meios de prova, em casos de
criminalidade grave, organizada e de difícil investigação - não poderá, enquanto
tal, na dimensão valorativa da prova penal em audiência, ser considerada mais
do que princípio de indicação ou de interacção com outros factos, permitindo,
então, deduções ou interpretações conjugadas no plano autorizado pelas regras
da experiência para afirmação da prova de um determinado facto; os dados
recolhidos na intercepção de uma conversação, apenas enquanto tais, não podem
constituir, nesta dimensão probatória, mais do que elementos da construção e
intervenção
das
regras
das
presunções
naturais
como
instrumentos
metodológicos de aquisição da prova de um facto.
Foram gravadas, por dispositivo de captação de som, algumas conversas
estabelecidas entre o denunciante/testemunha Ricardo Sá Fernandes e o arguido
(nos encontros de 24/1/2006 e 27/1/2006), e interceptadas algumas conversas
telefónicas ou mensagens escritas aos telefones do mesmo arguido e do seu filho
B (enquanto emissores e receptores de chamadas), e que vieram a dar lugar às
transcrições que a seguir se descrevem:
-
conversas
estabelecidas
entre
o
aqui
arguido
e
o
denunciante/testemunha Ricardo Sá Fernandes, nos encontros de 24/1/2006 e
27/1/2006, e registadas em CD’s Rom, tal como descritos a fls. 22 e 23, agora
transcritas no anexo ex-Apenso I, actual apenso E;
- mensagens escritas (sms) e conversas telefónicas estabelecidas entre o
arguido e/ou o seu filho, o denunciante/testemunha Ricardo Sá Fernandes e
terceiros, e realizadas aos Alvos 1H091M e 1H092M, agora transcritas no anexo
ex-Apenso III, actual apenso F.
*
Todos estes meios de prova, assim relevados, no que respeita à matéria da
acusação/pronúncia, têm de merecer uma apreciação de carácter global ou
genérico, que constitui o escrutínio crítico global dos mesmos, fundamentando o
julgamento fáctico realizado.
E é verdade que se podem extrair relevantes indícios e elementos
comprovativos da iniciativa, por parte do aqui arguido Domingos Névoa, em
estabelecer um contacto com o identificado denunciante/testemunha Ricardo Sá
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Fernandes, com vista a obter da parte do irmão deste último, o advogado e
vereador do Município de Lisboa, não só a desistência da acção popular
interposta na Justiça Administrativa, devidamente registada, como também uma
declaração de justificação pública desse acto de desistência e com referência à
legalidade do negócio de permuta que envolveu os terrenos do Parque Mayer e
da Feira Popular de Lisboa.
O cenário de alguma confusão, nebulosidade ou dual das conversas e
contactos estabelecidos, que foi assumido pela defesa do arguido, tanto na fase
de instrução como de julgamento da causa, é ultrapassado por uma leitura mais
atenta, racional e objectiva dos mesmos elementos indiciatórios, à luz do contexto
descrito em julgamento e que resulta do acervo testemunhal ouvido em audiência
de julgamento, bem como das regras da experiência que são escrutináveis em
situações deste tipo. Fazendo que, no fundo, venha a ser líquida ou
suficientemente clara a conexão entre esses elementos transcritos e escritos e o
mencionado relato factual que se retira na acusação.
Assim, após o cotejo dos elementos probatórios acima destacado, não
permanecem dúvidas relevantes que a iniciativa da aludida proposta foi do aqui
arguido Domingos Névoa, desde logo por via da conexão que teve a conversa
estabelecida com o denunciante e testemunha Ricardo Sá Fernandes, com os
pormenores do contacto telefónico estabelecido em 18/1/2006, e pelos cuidados
tomados pelo mesmo arguido nos seus contactos, os quais não seriam percebidos
na sua totalidade sem atribuir esse mesmo sentido à aludida proposta.
A sua preocupação em identificar-se apenas como “Domingos” e a
impressão deixada pelo arguido nas pessoas com quem contactou (v.g. nos
depoimentos testemunhais das funcionárias do escritório de advocacia M, O e A)
para vir a conseguir o contacto de Ricardo Sá Fernandes não levanta grandes
dúvidas neste ponto. Se na versão lançada pelo arguido nas suas declarações e
na sua contestação, os contactos com o mesmo Ricardo Sá Fernandes já existiam
anteriormente (desde há uns 2 ou 3 meses), para quê a escolha pelo arguido
daquele contacto indirecto para o escritório de advocacia? Para quê a
71
necessidade de o mesmo arguido se expor daquela forma, utilizando uma forma
de contacto indirecto e sem utilizar um contacto telefónico ou pessoal mais
directo?
O depoimento de Ricardo Sá Fernandes veio a demonstrar-se consistente
e coerente neste âmbito, devidamente corroborado pelo testemunho do seu
comportamento pessoal e profissional no decurso da situação factual e histórica
em apreço que lhe foi dado pelas pessoas que o rodearam e aconselharam nesse
período – depoimentos de B, L, A e D.
E devidamente corroborado pelo sentido mais unívoco e razoável dos
diálogos entre o arguido e o mesmo depoente Ricardo Sá Fernandes,
devidamente gravados e transcritos nos autos, tal como acima descrito.
Da gravação relativa ao encontro de 24/1/2006, transcrita no apenso E,
retira-se o seguinte:
Ricardo Sá Fernandes (doravante RSF) – “Pois bem, Sr. Névoa... eu tenho
estado a reflectir sobre o que o Sr. me disse .... e vou hoje jantar com o meu irmão. E...
quero ir um bocadinho mais com as ideias arrumadas sobre a sua iniciativa. Ahhh...
Como é que as coisas, como é que íamos processar isto? Diga Lá ..... Se o meu irmão
estiver disponível para uma... para um acordo consigo Como é que nos iríamos, da
forma mais discreta possível fazer isto?” (sublinhado nosso).
Domingos Névoa (doravante DN) – “Sr. Dr. eu não converso com o seu irmão,
não posso. Eu consigo, nós podemos estar em qualquer parte, porque eu faço parte…
(…) que eu trabalho no vosso escritório, tudo o que venha a ser tratado é consigo e
certamente não com o seu irmão…. o Sr. conversa com ele. Tem que lhe explicar que
realmente nós somos as vítimas no meio disto…” (…)
RSF - "Eu tenho a certeza que o meu irmão não o quer prejudicar, isso eu já lhe
disse da outra vez... isso eu tenho a certeza porque o conheço, não o quer prejudicar. E
portanto, eu vou ver se, enfim ..... "
Domingos Névoa (doravante DN) – “demovê-lo .....”
RSF – “... lhe explico a sua argumentação e também a ideia daquilo que me
transmitiu relativamente a uma compensação.” (sublinhado nosso).
Note-se, nestas transcrições, que o arguido, aqui interlocutor do
denunciante Ricardo Sá Fernandes, confrontado com as afirmações deste último
sobre a iniciativa ou a proposta de uma compensação que lhe são atribuídas, não
desmente, recusa ou afasta essas imputações, antes vai afirmando o seu ponto de
vista, pedindo depois desculpa, no decurso da referida transcrição, pela
utilização do telemóvel do filho, preocupando-se com quem sabe ou não sabe do
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assunto, pressupondo a sua gestão do assunto e da iniciativa em curso.
Expressando o medo das gravações e da investigação e alertando quanto à
utilização de telemóveis, salientando a sua preocupação com isso.
Acresce ainda, que é o mesmo Ricardo Sá Fernandes, aquando do
primeiro encontro ocorrido no dia 22/1/2006, que solicitou a duas pessoas
amigas, os depoentes B e L, que presenciassem o mesmo (ainda que o não tenham
escutado), uma vez que estranhou o facto de o arguido Domingos Névoa lhe ter
telefonado no citado dia 18/1/2006, para o seu escritório, a solicitar um
encontro, mas fora do escritório de advogados, a sós e sem que ninguém tivesse
conhecimento desse encontro. E os testemunhos de Ricardo Sá Fernandes e dos
depoentes, amigos seus e próximos, não deixam de ser coerentes entre si, com a
consistência e a autenticidade de quem estará do lado da verdade.
E aqui, a versão apresentada pelo arguido e pela sua defesa, de que a
iniciativa de propor a desistência da acção popular pendente no tribunal
administrativo, a troco de contrapartida pecuniária, partiu de Ricardo Sá
Fernandes, não encontra qualquer sustentáculo nos meios de prova agora
coligidos.
Também ficou comprovado em julgamento – para além de toda a dúvida
razoável -, que o arguido Domingos Névoa pretendia que o irmão do seu
interlocutor, o advogado e vereador José Sá Fernandes, viesse a produzir uma
declaração pública, podendo sê-lo na Câmara ou na Assembleia Municipal de
Lisboa, onde afirmasse que, após consultar o processo que se encontrava na
Câmara, depois de o analisar em pormenor, concluía que estava a prejudicar
uma empresa particular que nada tinha a ver com os erros e as ilegalidades do
Município da altura.
Veja-se, nas transcrições relativas aos encontros de 24/1/2006 e de
27/1/2006, transcritas no apenso E:
“RSF - Então e que declaração pública é que o meu irmão faria?
73
DN - Depois de entrar na Câmara, depois de consultar o processo, ver o
processo, depois de melhor analisar em pormenor o assunto acha que realmente esta
gente, tudo o que está bem ou mal é da responsabilidade do Município.
RSF - E portanto assumia como Vereador, digamos fazia uma declaração desse
género.
DN - Isso só ganha valor ....ele... todos nós temos de olhar para as coisas ... e
hoje ele tem a responsabilidade de olhar para o processo, verificou que tudo está no
coisa e é só pedir: venha a processo todo, deixe-me analisar..... não tem nada aí que
.....acho que realmente que estou a penalizar uma pessoas para a qual não devo, ponto
final. E você ó pá, isto custa x.”.
( ... )
“RSF - Ele teria que fazer neste contexto teria de fazer uma declaração a dizer
que consultados os documentos da…
DN - Acha que realmente não vale a pena estar a prejudicar um particular, nada
tem do assunto, defendeu a empresa e muito bem, retiro a minha coisa, prontos…. Ó Sr.
Dr. pense um bocado nisto….
RSF - Diria isso numa reunião da Câmara ....
DN - Perfeitamente .... numa reunião da Câmara e manda isso para tribunal,
manda a desistência para tribunal ( ... )”. (…)
“RSF - Vão-lhe fazer perguntas, lá na Câmara e na Assembleia,.
DN - Todas. Vão-lhe fazer todos perguntas.
RSF - Tem consciência disso?
DN - E ele vai ter que dizer, neste momento, Sr. Dr. os colegas dele,
(imperceptível) resultado favorável e os meus colegas, lhe entregaram a documentação,
mas a mesma (imperceptível).
RSF - Mas ó Sr. Domingos, tem consciência de que, na Câmara e na Assembleia,
lhe vão colocar essas questões!
DN - Ó Sr. Dr…..
RSF - Tem consciência disso?
DN - Perfeitamente.
RSF - E que é que ele responde nesse contexto?
DN - Consultei o processo e no processo que realmente o particular é o único
que está aqui salvaguardado. Não tem nenhuma, nenhuma responsabilidade. E o
particular Sr. Dr…..
Nós fizemos a carta de aceitação do negócio naquelas condições,
quando a Câmara faz a hasta pública, nós de imediato, nós mandámos a carta: não está
mediante a nossa carta de aceitação (imperceptível). A Assembleia Municipal....
RSF - Então quando os tipos lá na Câmara, do PC, lhe levantarem o problema, o
que é que ele responde?
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DN - Que a acção popular que ele intentou, era com base numa ilegalidade
legal! Tal qual, se há ilegalidade do município, é o município que tem que responder,
não somos nós, particulares.”
( ... )
“RSF - Mas portanto... mas portanto, nessa... quando essas questões forem
levantadas na Câmara e na Assembleia, ele ... qual é que é a sua ideia do que ele deve
exactamente dizer? Que, que...
DN - Que consultou o processo e vê que realmente, a parte privada consultou o
processo, a parte privada sempre agiu em boa fé e em conformidade com a lei. ( ... )”.
Note-se que é o arguido, Domingos Névoa, tal como resulta destas
transcrições agora expressas e também em outros passos dessas transcrições, que
lança os termos e a forma da proposta da declaração pública (o conteúdo, a
forma, o tempo e o local da mesma) que o irmão do interlocutor Ricardo Sá
Fernandes, o advogado e vereador José Sá Fernandes, deveria proferir,
afastando a necessidade da mesma ser proferida na CML ou na Assembleia, mas
podendo também ser, e destacando os limites mínimos que essa mesma
declaração pública deveria conter, isto é os mínimos que entende como aceitáveis
para si.
Nota-se, do mesmo modo, que o arguido já tinha pensado os termos da
indicada declaração pública e também da posição que deveria assumir enquanto
representante das empresas particulares envolvidas.
Destaque-se, na transcrição relativa ao encontro de 27/1/2006, transcrita
no apenso E:
“RSF – Mas preferia uma declaração na Câmara ou na Assembleia?
DN – Na ahhhh’, eu preferia, eu acho que na Assembleia (imperceptível), há
muitos jornalistas.
RSF – Está bem. Eu sei que a sua preocupação é os jornalistas. Mas também, na
Câmara ahhhh.
DN – Ó Pá, isso, isso, ele melhor que eu, ele melhor que eu sabe isso tudo, o que
há-de fazer, não me interessa nada. Só que realmente ele tem que dizer, devia dizer
(imperceptível): «por causa dos particulares, estou a prejudicar os particulares, que não
75
os conheço, nunca os vi, mas estou a atrasar o desenvolvimento (imperceptível) nenhuma
responsabilidade em virtude dos documentos por eles apresentados, que estão
Município”. (…)
“RSF – Mas ó senhor Domingos Névoa, e os senhores depois, em função das
declarações dele, apoiam-no…
DN – Sr. Dr., eu só faço uma declaração. Eu só faço uma declaração. Ele vem,
com uma 3.ª composição, ainda bem, Sr. Dr. Sá Fernandes, consultou o processo, fico
imensamente satisfeito, por ver que a nossa empresa, não ter (imperceptível). Se há, se
há….”.
Em face das características do caso, na elucidação do contexto delineado
– com o enquadramento pessoal, social, político e económico dos factos -, não se
concebe outra ponderação da proposta lançada por parte do arguido senão a de
uma oferta de uma proposta negocial que visava a desistência da acção judicial
de cariz administrativo (acção popular) por parte do assistente (irmão do
depoente contactado) – o advogado e vereador do Município de Lisboa, José Sá
Fernandes – e que contemplasse, ao mesmo tempo, uma justificação pública que
fosse confortável e atraente para o desistente e interessante para os
empreendimentos do arguido (das suas empresas).
Não se concebe que o arguido, ao ter a iniciativa da proposta,
pressionado pelas circunstâncias do problema imobiliário que tinha em mãos e
que o atormentava, não tenha representado e concebido uma proposta que fosse
minimamente aceitável para o seu destinatário e que não contemplasse, por via
disso, para além da desistência da acção popular pendente no tribunal
administrativo, com os registos pendentes e a travar os projectos imobiliários,
uma declaração pública justificativa desse acto. Isto num cenário em que não
seria minimamente aceitável para o destinatário dessa oferta, com os
antecedentes de intervenção pública, social e política que este último tinha
assumido e enraizado no espaço público (na opinião pública), uma outra
proposta que não contemplasse a sugestão ou o desenho de uma declaração
pública justificatória considerada razoável e interessante para as partes
envolvidas. Ou, noutra perspectiva, do que o arguido poderia representar do
assistente e do seu irmão e de como eles poderiam vir a aceitar a proposta que
lhes queria lançar, o que incluiria o pagamento de uma determinada
compensação pecuniária para obter a desistência da acção prejudicial e que não
deixaria de prever uma retratação pública da sua atitude. No fundo, o que o
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arguido suporia mais conveniente para realizar os seus propósitos, aqui
coincidente com uma solução para o impasse jurídico dos seus projectos
imobiliários, através de uma negociação oculta com quem tinha criado esses
obstáculos e que se pretendia ultrapassar da melhor forma, mas também com um
carácter minimamente apelativo e com a menor erosão para ambos os
acordantes.
Se o arguido Domingos Névoa apenas pretendia obter do identificado
José Sá Fernandes a desistência da acção popular em questão a troco de alguma
compensação pecuniária, tal como aconteceria no âmbito de um acordo extrajudicial, por que não utilizou a intermediação da sua advogada, a aqui
testemunha Dr.ª R, apresentando uma estratégia de aproximação dos litigantes
em conciliação ou mediação tão próprias do exercício da advocacia e do
mandato judicial por eles prosseguido? Se o não fez, demonstra bem o contexto e
o alcance do móbil do arguido, ao usar da proximidade que lhe dava o escritório
que frequentava e a familiaridade do interlocutor Ricardo Sá Fernandes para a
prossecução dos seus objectivos.
O arguido, o assistente e o irmão deste último são personalidades com
experiência profissional e pública que não deixa dúvidas sobre aquilo que podem
representar subjectivamente uns dos outros, isto é, do que seria expectável uns
dos outros. O arguido é um empresário com experiência na negociação pública
dos interesses das suas empresas e com incontestável sucesso nessas suas
iniciativas. E em que se apercebe que esse sucesso é muito fruto do seu
empenhamento pessoal – e da persuasão – e da sua capacidade psicológica e
financeira em convencer os outros.
Desde há algum tempo que a actividade dos tribunais e a dedução de
determinadas acções na justiça ganharam uma componente político-social
marcante, sobretudo em matérias que suscitam a defesa de interesses
comunitários, difusos, sociais e ambientais, isto é, de fiscalização da legalidade
da actuação dos órgãos do poder estatal ou local, em que é muito difícil destacar
o que é uma intervenção de cidadania do que é uma assunção pública muito
77
próxima da actividade política e partidária. Em que o reconhecimento do estatuto
público de determinado cidadão mais interventivo e participativo, com grande
repercussão mediática, concede ao mesmo os atributos necessários a uma
actividade política mais institucionalizada. E quando isso acontece os seus
antecedentes públicos, incluindo a dedução de determinadas acções judiciais de
cariz colectivo ganham uma componente política muito conexionada com o cargo
público a que o mesmo acedeu por via eleitoral ou democrática.
Isso não poderia deixar de passar também pela perspectiva de uma
declaração ou justificação públicas por parte do autor da acção popular em
causa e agora vereador do Município de Lisboa, e que por isso não poderia
abdicar dessa qualidade e também do seu passado de intervenção pública sobre
aqueles negócios imobiliários. Aquela representação subjectiva do arguido não
poderia deixar de estar delimitada pelo estatuto de cidadão mas também de
político e de cargo político e público do aqui assistente José Sá Fernandes.
Fica assim vincada a convicção, tanto para o arguido (Domingos Névoa),
como para o seu interlocutor (Ricardo Sá Fernandes), e também para o
destinatário da proposta (José Sá Fernandes), que o assunto em causa tinha a ver
– não poderia deixar de ter a haver - com a actividade de político e vereador
deste último, em que este último ficaria de alguma forma mais condicionado na
sua actuação posterior.
Esta conclusão retira-se bem de uma passagem mais elucidativa da
conversa gravada e transcrita no aludido apenso E (relativa ao dia 27/1/2006),
entre o arguido e o interlocutor Ricardo Sá Fernandes, em que estes falam sobre
a actividade político-partidária no seio da Câmara Municipal de Lisboa e onde
aquele mesmo arguido discorre sobre a influência que tem nesta área,
pretendendo dar a aparência de domínio de todos os sectores. Assim, já no final
dessa passagem, como mais elucidativo:
“DN – A tempo. Ó Sr. Dr., ouça uma coisa, o seu irmão, o seu irmão, diga ao
seu irmão que eu tenho gente minha que é apoiante da lista dele.
RSF – Hum!
DN – Tenho gente minha, o meu homem aqui de Lisboa. O meu director geral, de
Lisboa, a mulher dele, está na lista do seu irmão, arquitecta (imperceptível) que é dos
verdes na Câmara Municipal.
RSF – Hum.
DN – Está lá. Está lá o nome dela, nas listas dele.
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RSF – Hum!
DN – O seu irmão ainda falhou um almoço, um jantar, isto para aí há 8 dias ou
há 10 dias, ora faz… hoje é 6.ª? Faz hoje 8 dias. Ele ia jantar com o nosso pessoal.”
A concretização dessa proposta inicialmente apresentada (desistência da
acção + declaração pública) e o delineamento dessa proposta veio sendo
aclarado e até impulsionado reciprocamente no decurso das conversas registadas
nos autos, entre o arguido e o irmão do assistente, Ricardo Sá Fernandes. Os
termos dessa declaração pública e a referência a uma quantia precisa ainda não
estavam inteiramente concretizados, mas não restam dúvidas que essa proposta
foi lançada pelo arguido com uma intenção precisa e em torno de uma resolução
que já tinha tomado efectivamente.
O interlocutor e denunciante Ricardo Sá Fernandes, teve de assumir a
condução das conversas estabelecidas posteriormente ao telefonema de
18/1/2006 e ao encontro de 22/1/2006, desde logo porque se encontrava a actuar
enquanto agente encoberto e pretendia obter declarações que comprovassem os
encontros e as propostas lançadas anteriormente pelo arguido (em 22/1/2006),
mas isso não ilude o que se pode depreender e retirar dos variados elementos
probatórios alinhados que a iniciativa foi claramente do arguido e que o mesmo
não foi instigado, pressionado ou provocado a isso por ninguém.
Por outro lado, importa referir que a descrita proposta lançada pelo
arguido, da sua iniciativa, condizia com o pagamento de € 200.000,00 (duzentos
mil euros), que é apresentada no encontro de 24/1/2006, e depois reafirmada
posteriormente, no seguinte 27/1, até com a menção ao pagamento imediato da
parcela de € 100.000,00 (cem mil euros). Não tendo esse pagamento chegado a
concretizar-se por oposição do interlocutor Ricardo Sá Fernandes, que sempre
protelou o mesmo, o que manifestamente não coincide com a versão apresentada
pelo arguido, nem mesmo quando afirma que nunca pretendeu efectuar qualquer
pagamento, antes sim pretendeu “enganar” ou entrar num “jogo do gato e do
rato” com o seu contacto “ávido” de cifrões e de dinheiro.
79
Do teor das conversas transcritas não se retira em nada a sensação e o
sentido de que o arguido estava a fazer unicamente propostas “para o ar”, sem
uma qualquer intenção real e séria, como se fosse possível brincar sobre estas
matérias, com este modo de aproximação e sem medir bem as consequências e o
alcance do que dizia. Designadamente quando o assunto o preocupava e o
prejudicava grandemente nos seus interesses empresariais e financeiros, tendo o
que resolver o que a seus olhos a política atrasou e prejudicou. Fazendo querer,
contrariamente à lógica da situação, que estes assuntos não eram e são
importantes, não só para os visados intervenientes como para a cidadania em
geral.
Das transcrições das gravações dos encontros ocorridos em 24/1/2006 e
27/1/2006:
“RSF – Então e diga-me lá uma coisa, aqui a verba envolvente disto era paga em
quê, notas? Isto tinha que ser….
DN – Entrego a si. Você venha ao Minho, está bem?
RSF - Vou lá acima.
DN – Atenção. Fazemos isso em dois ou três pagamentos. Sr. Dr. eu hoje tenho
uma dificuldades enorme em…. de…. esta modalidade, porque nós não temos, não temos
verbas sem documentações. Se você me arranjar documentos suporte do escritório,
arranjo-lhe na mesma hora, mas não pode ser.
RSF – Então como é que vamos fazer isto?
DN – Arranjo dois, três pagamentos. Diga-me qual é o montante que eu falo com
o meu sócio e tratamos das coisas.
RSF – E se fosse para uma obra que ele quisesse fazer…. que valor é que o Sr.
tem na cabeça?
DN – Sr. Dr. não sei pá …. acho que duzentos mil euros, uma brincadeira destas.
Mas é uma conversa que tem de ter com o seu irmão. Não quero avançar, conversa com
ele e vê. O Pá, prontos para este esforço para estas coisas é preciso isto. E eu arranjo o
dinheiro. Se calhar até cem mil euros tenho lá no cofre, se não for não tenho. Não vale a
pena. É claro como a água. (…)”
(…)
“RSF - Olhe, quanto ao montante?
DN - (imperceptível).
RSF - O Sr. Dr. Tinha falado em... em 200 mil Euros. Mas tinha dito para não
dizer ... o meu irmão devolve-lhe a coisa. Então até quanto é que o senhor... "
( ... )
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“DN - ( ... ) Sr. Dr., eu estou a fazer, estou a ser generoso. Acho que 200 mil
Euros é ser generoso. ( ... )"
(…)
“RSF - Então, e como é que se assinam as entregas?
DN - Sr Dr. Ricardo (imperceptível), vem cá amanhã e entrego-o amanhã
(imperceptível). Também entrego hoje, então! Só tenho que dizer ao meu sócio para vir
para baixo, mais nada. Entrego hoje.
RSF - Então mas não era no Minho?
DN - Ó doutor, ouça um coisa: tanto me dá aqui com no Minho (imperceptível),
entregar tudo de uma vez.
RSF- Hum.
DN - Eu devo ter lá no cofre cem mil Euros em numerário, e é o que posso
entregar hoje. (imperceptível) entrego menos.
RSF- Hum.
ON - E, se não precisar um documento, ele vem cá, faça e assino.
RSF - Não.
ON - Se ele precisar, se quiser, eu faço. Assino tudo, tá a andar. E se
(imperceptível) ao seu irmão, ao seu irmão uma comissão de divida, assino o valor de
um trabalho, como uma prestação de serviços qualquer, não é? (imperceptível) . Não há
documentos suporte, nem nada ....
RSF - Pois é.
DN - Portanto, se quiser receber em cheque, pago hoje. Não é? Tudo em cheque,
documento suporte e tal (imperceptível), então, (imperceptível) senhor doutor. Conforme
faço uma escriturazinha, rapo 2 mil euros aqui, eh, 10 mil euros aqui, 10 mil euros
acolá, pronto, a curto prazo. Por lá em casa num cofre, para, para a gente ir fazendo
umas ratices, mas nisto não sou virgem, esteja à vontade.
RSF - Hum.
DN - Não sou virgem nestas coisas, não é? Não sou.”.
Relativamente à última mensagem, por SMS, enviada pelo arguido
Domingos Névoa, por intermédio do seu filho B, ao interlocutor Ricardo Sá
Fernandes, importa atender à gravação da conversa telefónica ocorrida entre o
arguido e esse seu filho, no dia 02/02/2006, pelas 18H49m35s, segundo a qual o
81
arguido perguntou ao filho se não tinha recebido uma mensagem, tendo este dito
que sim e que a mensagem era “Não percebemos”, tendo o arguido respondido
“Tam', também não é para perceber”, ou seja, o arguido Domingos Névoa não
estranhou que o seu último SMS não tivesse sido percebido pelo mesmo Ricardo
Sá Fernandes (assim, sessão 474 de 2/2/2006, relativo ao Alvo 1H092M, apenso
F).
Sempre se dirá ainda que, contrariamente ao afirmado pela defesa do
arguido, não persiste qualquer elemento probatório relevante, para além das
contraditórias declarações prestadas pelo arguido Domingos Névoa, no sentido
de que no primeiro encontro ocorrido entre o arguido e o Dr. Ricardo Sá
Fernandes este se tenha convencido de que o arguido não lhe iria entregar
qualquer quantia económica, pelo que decidiu efectuar a gravação ilegal desse
encontro e oferecer-se às autoridades judiciárias para agir como agente
encoberto.
Desde logo, porque o identificado Ricardo Sá Fernandes efectuou a
gravação ilegal logo no primeiro encontro, ou seja, antes de se ter convencido,
segundo a versão do arguido, de que não iria receber qualquer quantia
económica. Depois porque das gravações legitimadas pela acção encoberta e
pela autorização judicial, que constam dos autos e que espelham o que se passou
no segundo e terceiro encontros, resulta claramente que quem sempre protelou a
concretização do “negócio” (quer a prolação da declaração pública quer a
entrega da quantia económica) foi o mesmo Ricardo Sá Fernandes e não o
arguido Domingos Névoa, sendo que este esteve sempre a tentar arranjar
soluções para entregar o mais rapidamente possível metade da quantia
económica prometida, de forma a que a declaração pública fosse também
proferida o mais rapidamente possível pelo aqui identificado vereador José Sá
Fernandes.
O resultado do exame informático forense realizado em fase de
julgamento, que procurou analisar as características do suporte digital de
gravação do encontro entre o arguido e o interlocutor Ricardo Sá Fernandes em
22/1/2006,
de cariz informático, tal como acima mencionado, confirma a
genuinidade, nesse ponto, do depoimento de Ricardo Sá Fernandes.
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A prova documental, acima analisada, também não deixa de ser
esclarecedora, vindo trazer informações que se compagina com a matéria factual
aduzida na acusação/pronúncia.
O cartão encontrado na posse do arguido no momento da sua notificação
para os termos do processo e revista, com a menção manuscrita “Dt. R. Sá
Fernandes que um apoio para a campanha política 250.000 ZERO” (cartão de
visita a fls. 146 dos autos principais), apenas demonstra que nessa altura o
mesmo arguido se encontrava com ele na sua posse, e que o mesmo o terá escrito
face às desconfianças que passou a sentir a partir do momento que constatou o
protelar da aceitação da entrega do dinheiro por parte do seu interlocutor
Ricardo Sá Fernandes. Procurando, com isso, ocultar e disfarçar os seus
verdadeiros intentos, criando a aparência, tal como tinha feito com a mensagem
escrita (sms) acima referida que tinha ordenado ao seu filho B que enviasse, de
que nos encontros mantidos tinha estado em causa dar uma contribuição para
uma campanha política, demonstrando-se assim justificado o relato dos Art.ºs 49
a 51 da acusação.
Importa ainda referir que as testemunhas oferecidas pela defesa apenas
testemunharam, para além do plano respeitante aos patrocínios da acção popular
pendente na justiça administrativa, quanto ao facto do arguido Domingos Névoa
e do Dr. Ricardo Sá Fernandes se cumprimentarem quando se encontravam no
escritório de advogados e de terem tido breves conversas de circunstância, com
outras pessoas, nesse local. Lançaram suspeitas e dúvidas sobre este ponto –
caso mais impressivo da testemunha R, advogada da empresa “Bragaparques” -,
mas apenas num plano valorativo, e indiciando o aproveitamento político que a
denúncia de Ricardo Sá Fernandes teve nos meios ligados com a candidatura e o
mandato de vereador do seu irmão (José Sá Fernandes).
E, aqui neste ponto, o tribunal não deixa de estar consciente da forte
ambiência política deste caso e de que isso influencia o comportamento dos seus
vários e sucessivos intervenientes. E que isso provoca, também, a ressonância
83
pública e mediática da matéria aqui tratada e também da reacção dos vários
actores e do seu interesse no desfecho do processo.
Mas não obstante o ruído e a relativa nebulosidade criada pela discussão
pública deste caso, entrecruzada pelas declarações públicas dos vários
interessados, e até pelos efeitos positivos ou negativos que do desfecho desta
acção podem retirar alguns dos seus intervenientes, a verdade é que o tribunal
não deixou de dar relevo aquilo que considerou como intrinsecamente autêntico
que veio a ser produzido em julgamento, sufragado que foi esse juízo em
elementos de prova obtidos por meios que foram sufragados e considerados
legítimos e justificados (portanto não desconformes com os princípios do Estado
de direito e com a materialidade constitucional) em sede de instrução, em
instância de recurso, e também no saneamento prévio que se realizou nesta
mesma sede decisória.
Numa ponderação de valores que, aos olhos deste Tribunal, suplanta bem
a relativa estranheza que causou na comunidade jurídica e sobretudo nos seus
pares, a actuação de um advogado como agente encoberto e na prossecução da
investigação de um crime de corrupção gerado em torno de um processo judicial
em que chegou a ter uma procuração passada em seu nome e no qual veio a
assumir o mandato de uma das contrapartes uma sua colega advogada com a
qual partilha escritório.
Uma verdade dos factos que, assim sustentada, sufraga uma apreciação
ético-jurídica destituída de qualquer condição militante ou de especial cruzada
contra os interesses económico-financeiros ou os clientelismos políticos.
O equilíbrio das conclusões do juízo que o tribunal deve retirar dos vários
meios de prova carreados em julgamento, no cruzamento dos elementos
probatórios e indiciatórios aqui em presença, devidamente balizados pelas regras
de experiência, sufraga, em grau considerado suficiente, uma certeza judiciária
que fundamenta a imputação ao arguido dos mencionados factos.
E, tendo em conta as mesmas regras, este tribunal não deixou também de
considerar comprovada alguma da matéria alegada pela defesa, designadamente
aquela que respeita ao contexto do funcionamento do escritório de advocacia
onde exerce a testemunha Ricardo Sá Fernandes e os seus colegas, entre os quais
a sua colega mandatária da empresa “Bragaparques” representada pelo
arguido, e também ao mandato judicial constituído pelo advogado e vereador
84
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José Sá Fernandes em favor, entre outros causídicos, do seu irmão Ricardo Sá
Fernandes, na mencionada acção popular.
Trata-se de uma matéria que veio a merecer o assentimento dos vários
testemunhos das pessoas envolvidas, e que dela demonstram conhecimento
directo – declarações e depoimentos do assistente José Sá Fernandes, e das
testemunhas Ricardo Sá Fernandes, A, José Manuel Lebre de Freitas e R, com o
devido reporte à documentação junta aos autos e respeitante à prática dos actos
processuais respectivos, na elucidação do que dispõe o Art.º 169.º do Código de
Processo Penal.
Por último, para aquilatar das condições pessoais, sociais, e económicas
e culturais do arguido, o tribunal levou em consideração os testemunhos acima
descritos de H, J, M, V e J, e sobretudo o teor do relatório social elaborado pela
reinserção social e o teor da informação registral negativa do cadastro
criminal.”.
*
É pacífica a jurisprudência do STJ5 no sentido de que o âmbito do recurso
se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem
prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
Da leitura dessas conclusões, afigura-se-nos que as questões fundamentais
suscitadas pelos Recorrentes nos seus recursos são as seguintes:
I)
Ilegalidade e nulidade da acção encoberta, das escutas telefónicas e
das gravações de conversas entre presentes e de imagem; (recurso do Arg.)
II)
Nulidade das provas obtidas com violação do segredo profissional de
advogado; (recurso do Arg.)
III) O tribunal recorrido não devia ter dado como provados os factos a.13
a a.20, a.27, a.30, a.36 a a.38, a.41, a.49 a a.51 e a.53, por não ter havido prova
suficiente dos mesmos, e devia ter dado como provados os factos referidos nas
5
Supremo Tribunal de Justiça.
85
alíneas h) a p) da matéria não provada, por isso resultar da prova produzida;
(recurso do Arg.)
IV) Mesmo que se mantenha inalterada a matéria de facto constante do
acórdão recorrido, ela não preenche a factualidade típica da incriminação da
corrupção; (recurso do Arg.)
V)
O tribunal recorrido devia ter dado como provados os factos
referidos nas alíneas a) a g) da matéria não provada, por ser isso o que resulta da
prova produzida; (recurso do MP)
VI) O tribunal recorrido devia ter dado como provados os factos
referidos nas alíneas a) e g) da matéria não provada, por isso resultar da prova
produzida; (recurso do Assistente)
VII) Por isso, o Arg. devia ter sido condenado, pela prática de um crime
de corrupção activa para acto ilícito, p. e p. pelos art.º 18º/1 da Lei 34/87, de
16/07, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensos na sua execução;
(recursos do MP e do Assistente)
VIII) Mesmo que se mantenha inalterada a matéria de facto constante do
acórdão recorrido, ela preenche a factualidade típica da incriminação da
corrupção activa para acto ilícito; (recurso do Assistente).
*
Antes do mais, vejamos se a decisão recorrida padece de algum dos vícios
de apreciação da prova, previstos no art.º 410º/2 do CPP e de conhecimento
oficioso6.
Para que exista o vício da insuficiência para a decisão da matéria de
facto provada, que não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão
de facto, é necessário que a matéria de facto fixada se apresente insuficiente para
a decisão sobre o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos
legais de crime verificáveis e dos demais requisitos necessários à decisão de
direito e seja de concluir que o tribunal a quo podia ter alargado a sua
investigação a outro circunstancialismo fáctico suporte bastante dessa decisão7.
“Está-se na presença da insuficiência da matéria de facto para a decisão
de direito quando os factos colhidos, após o julgamento, não consentem, quer na
6
Cf. Ac. do STJ de 19/10/1995, in DR 1ª Série A, de 12/28/1995, que fixou jurisprudência no
sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no citado
art.º 410.º/2 CPP.
7
Cf. Ac. do STJ de 20/10/1999, tirado no Proc. n.º 1452/98-3ª Secção, que traduz jurisprudência
pacífica.
86
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*****
sua objectividade quer na sua subjectividade, o ilícito dado como provado.”8.
Não ocorre esse vício quando o tribunal investigou tudo o que podia e
devia investigar, como neste caso aconteceu. E o princípio da investigação
oficiosa no processo penal, conferido ao tribunal pelos art.ºs 323°/a) e 340°/1,
ambos do CPP, tem os seus limites na lei e está condicionado pelo princípio da
necessidade, dado que só os meios de prova cujo conhecimento se afigure
necessário para habilitarem o julgador a uma decisão justa, devem ser produzidos
por determinação do tribunal na fase de julgamento, ou a requerimento dos
sujeitos processuais.
Não existe, pois, tal insuficiência na decisão recorrida.
“… há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um
raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma
decisão contrária àquela que foi tomada ou, quando, de harmonia com o mesmo
raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os
fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando
haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da
decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não
provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.”9.
Não vislumbramos na decisão recorrida qualquer destas contradições.
Erro notório na apreciação da prova é a “… falha grosseira e ostensiva
da análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se
como provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como
provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se
provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou
as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado
como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
8
Cf. Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502, com anotação de que se trata de jurisprudência
abundante e pacífica.
9
Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 2008, p. 75.
87
Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante
o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso
comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência
ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se
desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.”10.
Tal erro, previsto no art. 410º/2-c) do CPP, tem que resultar do próprio
texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência
comum11.
Ora, analisando a decisão recorrida, logo se vê que não resulta do seu teor
a existência desse tipo de erro, uma vez que da fundamentação não se evidencia
que a consideração de qualquer facto como provado tenha violado as regras da
experiência ou se tenha baseado em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios.
Pelo contrário. Como veremos, as ilações fácticas tiradas pelo tribunal
recorrido são perfeitamente lógicas e razoáveis.
Também não vislumbramos a existência de outros erros.
*
Analisemos agora as restantes questões suscitadas pelos Recorrentes.
I) e II) – Entende o Arg. que são nulas e ilegais todas as provas neste caso
obtidas por recurso a uma acção encoberta, através de escutas telefónicas, de
gravações de conversas entre presentes e de captação de imagens, bem como as
obtidas com violação do segredo profissional de advogado.
Acontece que tais questões foram já objecto de um recurso, no qual o
Tribunal da Relação de Lisboa proferiu o acórdão de fls. 267 a 318 do Apenso P,
de 21/10/2008, que as julgou improcedentes12.
10
De novo Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 2008, p.
77.
11
Assim o Ac. do STJ de 19/12/1990, proc. 413271/3.ª Secção: " I - Como resulta expressis verbis
do art. 410.° do C.P.Penal, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida,
na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos,
designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a
instrução ou até mesmo no julgamento (...). IV É portanto inoperante alegar o que os declarantes
afirmaram no inquérito, na instrução ou no julgamento em motivação de recursos interpostos".
12
Conforme resulta das partes fundamentais do referido acórdão, que passamos a transcrever: “…
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões, extraídas pelo recorrente, da respectiva
motivação (Ac. STJ de 19/6/1996, BMJ 458, 98) que, no caso sub judice, se circunscreve às
seguintes questões que são propostas para decisão:
I. Nulidade do art. 120, n° 2, alínea d), do Código de Processo Penal por as questões
decididas no despacho recorrido não terem sido precedidas de debate instrutório.
II. Inadmissibilidade da acção encoberta por a acusação não preencher os requisitos do
tipo legal de crime de corrupção activa para acto ilícito e nem mesmo para acto lícito, e não tem
conexão com as funções de vereador da CML do Dr. José Sá Fernandes.
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III. Ilegalidade da acção encoberta
i. Por derivada de gravação ilegal
ii. Por violação do Segredo profissional do advogado doart.87 da Lei n° 15/2005, de 26
de Janeiro de 2005.com referencia ao art. 208 da Constituição da Republica Portuguesa
iii. Por utilização de meios enganosos em violação doart.126, n° 1 e 2, alínea a), do
Código de Processo Penal. Responsabilização do agente encoberto nos termos do art. 6, a
contrario, da lei n° 101/2001, de 25de Agosto
iv. Por inconstitucionalidade do art. 2 alínea m da Lei101/2001, de 25 de Agosto por
ofensa dos princípios de adequação c proporcionalidade do art. 18, n° 2, da Constituição da
Republica Portuguesa, quando em confronto com o art. 1. n° 1 alínea d) da lei 5/2002, de11 de
Janeiro
v. Por Falta de fundamentação do despacho judicial autorizando as escutas telefónicas e
recolha de imagem e som.
…
Assim, ainda que, nos termos deste n° 3, se deva apreciar na decisão instrutória em
primeiro lugar as nulidades e outras questões prévias ou incidentais, nada invalida a decisão,
proferida anteriormente ao debate e a essa decisão instrutória, que se pronunciou sobre tais
questões e da qual apenas o arguido Domingos Névoa discordou recorrendo.
Na verdade, sendo o debate instrutório de realização obrigatória (art. 289, n°1.do
Código de Processo Penal), não se verifica a alegada nulidade da insuficiência da instrução (art.
120, n° 2, alínea d), só porque esse debate não ocorreu antes, mas depois da prolação da decisão
recorrida, pois que, respeitando esta o contraditório, não comprometeu finalidade daquele, qual
seja a"discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória sobre se no decurso do inquérito e
da instrução resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a
submissão do arguido a julgamento" (art. 298 do Código de Processo Penal).
II. Inadmissibilidade da acção encoberta
Como refere, e bem, o despacho recorrido, os vícios formais têm de ser apreciados à luz
dos factos que constam da acusação e só desses, independentemente de posterior apreciação
sobre a valoração das provas produzidas.
Ora, consta do libelo acusatório do Ministério Publico que (…)
Ora a acusação do Ministério Publico contra o referido arguido Domingos Gonçalves Névoa
contem nos §§ 52 a 55 acima transcritos a explicitação dos factos indiciadores do crime de
corrupção activa imputado na acusação pp no art. 18/1. por referência aos arts. 16/1 e 3/1 alínea
i da Lei 34/87, de 16 de Julho, na redacção da Lei 108/2001, de 28 de Novembro, pois que o
comportamento ilícito por atentatório do dever de imparcialidade da actuação de um eleito local
(art. 4, n°1 al c) da Lei 19/87), que se descreve no libelo (…)
E, no tocante ao imputado crime de corrupção, é admitido recurso à acção encoberta nas
seguintes disposições legais:
Art. 2 da Lei n° 101/2001 (Agente Infiltrado), de 25 de Agosto, (…)
Por seu turno, a Lei n.° 36/94 (Medidas de combate à corrupção e criminalidade
económica e financeira), de 29 de Setembro, estabelece o seguinte, com sublinhado nosso a
negrito:
(…)
Paralelamente, no Capitulo I da Lei n.º 5/2002 (Medidas de combate à criminalidade
organizada e económica financeira), de 11 de Janeiro, sublinhamos a negrito o seguinte (…)
O n° 3 deste artigo entende a aplicação dos capítulos II e III do respectivo diploma ao
crime de corrupção, tout court, referido no art. 1 al. m) da Lei 36/94quanto à obtenção de meios
de prova.
E no capitulo II da mesma Lei n.° 5/2002, prescreve o art. 6 que (…)
Dai que o recurso à acção encoberta esteja legitimada nos termos das disposições legais
acima transcritas.
III. Ilegalidade da acção encoberta.
89
i) Conforme resulta dos autos a acção encoberta foi suportada na denúncia apresentada
perante a PJ e confirmada por Ricardo Sá Fernandes, em declarações a fls. 8 e 9, segundo a qual
aquele tinha sido abordado por Domingos Névoa para saber da disponibilidade do Vereador Sá
Fernandes, mediante o pagamento de valores em numerário, em desistir das acções populares que
intentou contra a C.M.L. e não em qualquer gravação ilegal em cujo visionamento a acção
encoberta se apoiasse, que comprometesse a validade desse meio de obtenção de prova.
ii) Não colhe também a alegada violação do segredo profissional de advogado na
conduta do Dr. Ricardo Sá Fernandes, por o seu conhecimento dos factos da acusação não advir
obviamente do exercício da sua actividade profissional nos termos do art. 87 do EOA, pois, como
bem salienta o despacho recorrido atendendo aos factos vertidos no despacho acusatório, o Dr.
Ricardo Sá Fernandes não foi procurado pelo arguido Domingos Névoa cm virtude de ser o
mandatário do Autor da mencionada acção popular, antes sim por ser irmão do Vereador José Sá
Fernandes, também Autor dessa acção, e em face dessa proximidade familiar poder ser um
intermediário privilegiado na proposta de entrega da quantia de 200.000,00€ao mencionado
Vereador, em troca da desistência na mencionada acção popular, bem como na prolação de
declarações públicas, enquanto Vereador, no sentido de ter supostamente concluído, após estudo
dos dossiers, que o negócio de permuta dos terrenos do Parque Mayer estava conforme à
legalidade.
A este propósito, refere acertadamente o despacho recorrido que
(…)
Na verdade, consta no Novo Regime Jurídico do Agente Infiltrado de Fernando
Gonçalves, Manuel João Alves e Manuel Monteiro Guedes Valente, 2001,Almedina, a pág. 37,
que:
"Agente infiltrado é pois o funcionário criminal ou terceiro, por exemplo, o cidadão
particular, que actue sob o controlo da PJ que, com ocultação da sua qualidade e identidade, e
com o fim de obter provas para a incriminação do suspeito, ou suspeitos, ganha a sua confiança
pessoal, para melhor o observar, em ordem a obter informações relativas às actividades
criminosas de que é suspeito e provas contra ele(s), com as finalidades exclusivas de prevenção
ou repressão criminal, sem contudo, os determinar à pratica de novos crimes.
A figura do agente infiltrado é, pois, substancialmente diferente do agente provocador. O
agente provocador cria o próprio crime e o próprio criminoso, porque induz o suspeito à prática
de actos ilícitos, instigando-o e alimentando o crime, agindo, nomeadamente, como comprador ou
fornecedor de bens ou serviços ilícitos. O agente infiltrado, por sua vez, através da sua actuação
limita-se, apenas, a obter a confiança do suspeito (s), tornando-se aparentemente num deles para,
como refere Manuel Augusto Alves Meireis, "desta forma, ter acesso a informações, planos,
processos, confidencias....que, de acordo com o seu plano constituirão as provas necessárias à
condenação»"
Termos em que não se verifica na acção encoberta a violação do segredo profissional de
advogado nem a provocação para a pratica de crime.
iii. Não colhe pelo acima exposto a alegada violação do art. 126, n°s 1 e 2 al a)do
Código de Processo Penal por não se descortinar qualquer utilização de meios enganosos como
método de obtenção de prova proibido, ou de responsabilização do agente encoberto nos termos
do art. 6 da Lei 101/2001 de 25 de Agosto, a contrario, onde se dispõe que
Não é punível a conduta do agente encoberto que, no âmbito de uma acção encoberta,
consubstancie a pratica de actos preparatórios ou de execução de uma infracção em qualquer
forma de comparticipação diversa da instigação ou autoria mediata, sempre que guarde a devida
proporcionalidade com a finalidade da mesma. Na verdade, atenta a natureza do crime de
corrupção em causa em que são postas todas as cautelas para a sua não descoberta, o recurso
àquele meio de obtenção de prova mostra-se proporcional a finalidade que se pretende conseguir
qual seja a transparência e legalidade da actuação das entidades publicas e o prestigio do
Estado.
iv. Também, para alem do que acima se expôs, não colhe a alegada inconstitucionalidade
do art. 2, alínea m), da Lei 101/2001, de 25 de Agosto, por alegada ofensa dos princípios de
adequação e proporcionalidade do art. 18, n° 2, da Constituição da Republica Portuguesa
Dispõe o art. 18, n°2 da Constituição da Republica Portuguesa que
(…)
Consequentemente, são no caso as disposições dos arts. 187 e segs do Código de
Processo Penal que decidirão da abusiva ou não intromissão na vida privada, no domicilio, na
correspondência ou nas telecomunicações e o art. 6 da citada Lei n.°5/2002 quanto ao registo de
voz e de imagem por qualquer meio.
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Apesar disso, entende o Arg. que tais questões devem ser novamente
apreciadas neste acórdão. Em abono da sua tese, cita o acórdão 387/2008 do
Tribunal Constitucional13.
O art. 187 do Código de Processo Penal na redacção da Lei n° 59/98 de 25 de Agosto,
vigente a quando da prática dos factos dispunha, como ainda dispõe, que
(…)
Aquela data, o artigo 188 do mesmo diploma, na redacção do DL n° 320C/2000, de 15 de
Dezembro, dispunha que
(…)
E o artigo 189 seguinte que
(…)
E ainda o artigo 190 que
(…)
Consequentemente não se antolha qualquer violação dos art.s 87 da Lei n°15/2005, de 26
de Janeiro de 2005, com referencia ao art. 208 da Constituição da Republica Portuguesa
(Segredo profissional do advogado), 126, n° 1 e 2, alínea a), do Código de Processo Penal, art. 2,
alínea m), da Lei 101/2001, de 25 de Agosto por violação dos princípios de adequação e
proporcionalidade consagrados no art. 18, n°2, da Constituição da Republica Portuguesa,
Sufragamos, assim, por inteiro, a posição assumida no despacho recorrido e sustentada
pelo Ministério Publico que acima se deixou transcrita.
No entanto, alega ainda o recorrente Domingos Gonçalves Névoa que o despacho
judicial autorizador das escutas telefónicas e da recolha de imagens e som não se encontra
fundamentado, o que não corresponde à verdade pois que como refere o despacho recorrido à
parte as disposições legais adrede invocadas
Relativamente à fundamentação de facto, constata-se que o mesmo fundamenta-se
naquilo que lhe é legítimo fundamentar-se, visto que a ponderação para a prolação desse
despacho resultou do conhecimento do que constava numa acção encoberta, a qual, por natureza,
é sigilosa.
De qualquer modo, para além de ter sido feita expressa referência à existência dessa
acção encoberta, nesse despacho judicial refere-se que as intercepções e gravações são um meio
indispensável para a investigação; assim como se concretiza sobre quem se autoriza a
intercepção e gravação das conversas entre presentes, bem como a captação de som e de imagem,
o que pressupõe conhecimento cabal dos factos em investigação e ponderação sobre os mesmos.
Afigura-se-nos, assim, que o despacho judicial de fls. 15 se mostra profusamente
fundamentado quanto ao direito e suficientemente fundamentado quanto às razões de facto, tendo
em conta que, aquando da prolação de tal despacho, estava em curso uma acção encoberta,
relativamente à qual, se impunham cautelas redobradas, designadamente para protecção do
agente infiltrado (Lein.101/2001, de 25/08).
Em conclusão, o despacho impugnado, douta e profusamente elaborado, não nos merece
qualquer censura pelo que inteiramente o subscrevemos.
Termos em que se nega provimento ao recurso se condena o recorrente Domingos
Gonçalves Névoa em 6 UC de taxa de justiça. …”.
13
Na parte que nos interessa, é o seguinte o teor deste acórdão n.º 387/2008, de
22/07/2008, relatado pelo Senhor Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira: “…Na verdade, há
que reiterar que a intervenção do Tribunal Constitucional, quanto ao recurso previsto na aludida
alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, é reservada àqueles casos em que a decisão neles
proferida é a decisão final. Fica, por isso, excluído esse recurso nos casos em que a norma é
aplicada a título precário ou provisório, sujeito a confirmação posterior, como acontece no caso
em presença. Com efeito, afigura-se manifesto que pela forma como o legislador disciplinou as
91
Parecendo que este acórdão dá razão ao Arg., veremos que não.
Na verdade, ele refere-se à irrecorribilidade do despacho de pronúncia, que
pronuncia o Arg. pelos factos constantes da acusação do MP, mas não se refere ao
caso de ter sido admitido e julgado recurso de despacho de pronúncia, ou outro,
que tenha apreciado nulidades, nos termos do disposto no art.º 310º/1 do CPP, na
versão anterior à que resultou da reforma operada pela Lei 48/2007, de 29/08 (que
entrou em vigor em 15/09/2007). E só tem sentido para afirmar que, quando o
despacho de pronúncia não é passível de recurso, as decisões nele tomadas não
formam caso julgado, pelo que devem ser novamente apreciadas em sede de
sentença final.
Ora, no nosso caso, a decisão que julgou válidas as referidas provas foi
proferida em 15/06/2007 e o recurso da mesma foi interposto pelo Arg. em
11/07/2007. Por isso, o regime processual, quanto à admissibilidade do recurso,
que lhe é aplicável é o do CPP na versão anterior do à que resultou da reforma
operada pela Lei 48/2007, de 29/0814.
Por essa razão, não tendo o Juiz a quo admitido o recurso interposto pelo
Arg., veio a Ex.m.ª Senhora Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa a
regras do processo penal, a "decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes
da acusação do Ministério Público", não produz, ipso facto, alteração na esfera jurídica do
acusado, pois tem uma dupla função de natureza marcadamente garantística: a de comprovar a
acusação do Ministério Público e a de limitar o campo de conhecimento do tribunal de
julgamento. Os juízos operados quanto à selecção dos factos adquiridos e sua qualificação
jurídica, quanto à escolha do direito aplicável e quanto à regularidade das provas – e é
basicamente nisto que consiste a pronúncia do arguido – só são verdadeiramente efectivos
quando são adoptados pelo tribunal do julgamento, na sua sentença, o que, aliás, permite explicar
a opção do legislador quanto à proibição de recurso ordinário da referida decisão.
O sistema adoptado no nosso Código de Processo Penal radica exactamente em tese
oposta à que é defendida pelo recorrente: a lei "desvaloriza" a força jurídica do despacho de
pronúncia formulado nas referidas condições, ao impor a sua irrecorribilidade, e transfere para
uma fase posterior – a fase de julgamento – a obrigação de o tribunal proceder à apreciação, com
força de determinação jurídica, de toda a matéria de que a pronuncia conhece. Tal tarefa abrange
a selecção dos factos incriminadores e da norma penal aplicável, e obriga a conhecer das
nulidades opostas à prova produzida, conforme resulta, sem margem para dúvida, do n.ºs 2 e 3 do
artigo 310º do Código de Processo Penal e do disposto nos preceitos que regulam os requisitos da
sentença (artigos 374º e seguintes). Esta solução respeita a imposição constitucional quanto ao
estabelecimento de um sistema de garantias que protejam o arguido contra acusações infundadas
e ilegais; e deve reconhecer-se que a Constituição – tal como o Tribunal por diversas vezes tem
afirmado – não pretende garantir o direito a não ser submetido a julgamento. …”.
14
Nesse sentido, e por todos, cf. Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal,
Ed. Rei dos Livros, 7ª edição, 2008, p. 636 e ss., onde se conclui que aos recursos se aplicam as
normas processuais que se encontravam em vigor à data da decisão recorrida ou, ao menos, à data
da interposição do recurso.
92
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julgar procedente a reclamação, oportunamente deduzida pelo Arg., e a
determinar o recebimento do recurso15.
Na versão do art.º 310º/1 então em vigor, o STJ havia fixado
jurisprudência no sentido da recorribilidade do despacho de pronúncia, na parte
15
Nos seguintes termos: “… Nos termos do art° 310° CPP é irrecorrível a decisão que
pronunciar os arguidos pelos factos constantes da acusação.
Porém, no Acórdão de 7 de Abril de 1994 [Colectânea de Jurisprudência -Acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça, Ano II, Tomo II,187],o Supremo Tribunal de Justiça concluiu que o
regime de irrecorribilidade da decisão instrutória aludida no artigo 310.°, n.° 1, não se estende às
questões prévias ou incidentais a que se refere o artigo 308.°, n.° 3, do Código de Processo Penal.
São estas as nulidades e as questões prévias ou incidentais de que o juiz possa conhecer no início
do despacho de pronúncia ou de não pronúncia.
Esta orientação veio a ser acolhida no Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 19 de
Janeiro de 2000 [Publicado sob a designação de"Assento n.° 6/2000", no Diário da República. 1
Série-A, n. " 56, de 7 de Março de 2000], que fixou jurisprudência nos seguintes termos:
"A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do
Ministério Público é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no
decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais."
Posteriormente, foi, pelo Supremo Tribunal de Justiça [Acórdão n.° 7/2004, de 21 de
Outubro de 2004, Diário da República, I Série-A, n. ° 282, de 2 de Dezembro de2004],fixada a
seguinte jurisprudência:
"Sobe imediatamente o recurso da parte da decisão instrutória respeitante às nulidades
arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais,
mesmo que o arguido seja pronunciado pelos factos constantes da acusação do Ministério
Público."
No caso, no seguimento do requerimento de abertura de instrução foram apreciadas as
questões prévias e nulidades arguidas no mesmo, em dois momentos decisórios distintos, o
despacho de fls. 1306 e ss., em 15.6.2007, (questões B, C, D, E e F) e o despacho proferido em
sede de decisão instrutória, em 11.07.2207 (questão A) .
No primeiro conheceu-se das alegações de não preenchimento do ilícito típico, da
nulidade da acção encoberta, da nulidade dos actos praticados pelo agente encoberto, da
nulidade das escutas telefónicas e de registo de voz e imagem e da nulidade das declarações do
agente encoberto e a nulidade da acusação particular.
No segundo conheceu-se da questão relativa à alegada inexistência de indícios da
prática do crime por que estava acusado, previamente à decisão de pronúncia.
Na decisão instrutória foi ainda apreciada a nulidade do despacho de fls. 1306 arguida
em sede do debate instrutório, nos termos do art.° 120°, n.°s 1, 2d) e 3 c) CPP.
O facto de se haver cindido a decisão relativa a nulidades arguidas no requerimento de
instrução em dois momentos decisórios terá resultado da ponderação da vantagem de
averiguação prévia do efeito de eventual procedência de tais questões, de conhecimento prévio e
preclusivo relativamente à realização da própria instrução.
Porém, as razões que estiveram na posição assumida pelo Acórdão de Fixação de
Jurisprudência n.°7/2004 atrás mencionado, valem para ambos os momentos da decisão por ela
se reportar a nulidades suscitadas no decurso do inquérito ou na instrução.
Assim, não se vê razão nem vantagem na apreciação separada dos dois recursos cuja
interposição decorre do facto de a decisão ter apreciado as questões em dois momentos distintos
em lugar de o ter feito numa só decisão, sem que essa opção afecte o regime de subida de recurso
interposto.
Pelo exposto, procede a reclamação. …”.
93
respeitante à decisão relativa a nulidades arguidas no decurso do inquérito e da
instrução e às demais questões prévias ou incidentais, e de que esse recurso era de
subida imediata16.
Tendo havido recurso sobre determinada questão processual e tendo
havido decisão sobre a mesma, nunca podia deixar tal decisão de produzir o efeito
de caso julgado formal, porque, das duas uma, ou o recurso e a respectiva decisão
eram completamente inúteis e então não podiam ser admissíveis, ou a lei admitia
que num mesmo processo e sobre uma mesma questão houvesse mais do que uma
decisão, contraditórias entre si.
Ora, é precisamente a este último efeito que pretende obviar o instituto do
caso julgado17.
Como se afirma no Ac. do STJ de 24/05/2006, relatado pelo Senhor
Conselheiro Henriques Gaspar, in CJSTJ18, II: “…O caso julgado formal constitui
noção separada do caso julgado que, como categoria geral (caso julgado
material) está construída para a decisão definitiva do direito do caso, nas
condições da sua existência, conteúdo e modalidades de exercício; no processo
penal respeita à declaração sobre a culpabilidade e determinação da sanção,
bem como da não culpabilidade (seja por não pronúncia ou por absolvição).
O caso julgado que fixa, no processo e fora dele, a vinculação de efeitos
materiais quanto à definição e concretização judicial da relação controvertida ou
objecto material do processo, é o caso julgado material - fixado e estável com
fundamento na vinculação às decisões e na realização dos valores da justiça,
certeza e segurança, também no âmbito do exercício do direito de punir do
Estado em relação ao cidadão arguido da prática de uma infracção penal.
Em processo penal, pode dizer-se que existe caso julgado material quando
a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer
processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos
ilícitos.
16
Acórdão n.º 6/2000, do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de
19/01/2000, (publicado em 07/03/2000, no n.º 56 do Diário da República, I SÉRIE-A), que fixou
jurisprudência no sentido da respectiva recorribilidade, e que veio a ser complementado pelo
Acórdão n.º 7/2004, do Pleno das Secções Criminais do mesmo STJ, de 21/10/2004, (publicado
em 02/12/2004, no n.º 282 do Diário da República, I SÉRIE-A), que fixou jurisprudência no
sentido da subida imediata do concernente recurso.
17
“O efeito negativo do caso julgado consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma
questão.” – Ac. do STJ de 02/03/2006, relatado pelo Senhor Conselheiro Costa Mortágua, in
CJSTJ, I.
18
Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça.
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*****
O caso julgado formal não assume semelhante função, nem contém, no
essencial, dimensão substancial.
O caso julgado formal traduz-se em mera irrevogabilidade de acto ou
decisão judicial que serve de continente a uma afirmação jurídica ou conteúdo e
pensamento, isto é, em inalterabilidade da sentença por acto posterior no mesmo
processo (cfr. Castro Mendes, "Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo
Civil", pág. 16).
No caso julgado formal (art. 672° do Cód. Proc. Civil), a decisão recai
unicamente sobre a relação jurídica processual, sendo, por isso, a ideia de
inalterabilidade relativa, devendo falar-se antes em estabilidade, coincidindo
com o fenómeno de simples preclusão (cfr. Alberto dos Reis, "Código de Processo
Civil, Anotado", vol. V, pág. 156).
Há, pois, caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de
alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio
processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional
do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicatï) - cfr. Acs. do
Supremo Tribunal de 23 de Janeiro de 2002, Proc. 3924/01, e de 3 de Março de
2004, Proc. 215/04.
O caso julgado formal respeita, assim, a decisões proferidas no processo,
no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação
à finalidade a que está adstrito.
Em processo penal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a
prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade - a
inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que
defina nos termos da lei o objecto do processo, ou, no plano material, a produção
de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual,
supondo a inalterabilidade sic stantibus aos pressupostos de conformação
material da decisão.
95
No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui apenas um efeito de
vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos
pressupostos em que assenta a relação processual.”19.
19
Como se afirma no Ac. da RP de 29/05/2002, relatado pelo Senhor Desembargador Clemente
Lima, in www.gde.mj.pt, processo 0210428: “…Importa (…) relembrar as linhas gerais do
instituto do caso julgado em processo penal [No que se avoca a impressiva síntese do acórdão, do
Supremo Tribunal de Justiça, de 18-12-1997, na Colectânea de Jurisprudência do STJ, ano V,
tomo III, pp. 259 e segs. (261) e se remete para os ensinamentos de Cavaleiro de Ferreira, no
«Curso de Processo Penal», UC, III, 57 e em O Direito, anos 65.º, pp. 194 e segs. e 67.º, pp. 200 e
segs.; Castanheira Neves, nos »Sumários de Processo Penal», pp. 113 e segs.; Luís Osório, no
«Comentário ao Código de Processo Penal Português», II, pp. 482 e segs.; Figueiredo Dias, na
Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 107.º, pp. 126 e segs.; Beleza dos Santos, na Revista
de Legislação e Jurisprudência, ano 63.º, pp. 9 e segs.; Eduardo Correia, na Revista de Direito e
Estudos Sociais, XIV, ½, em «Caso julgado em processo penal», na Revista dos Tribunais, ano
58.º, pp. 178 e segs. e no «Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz»; Germano Marques da
Silva, no «Curso de Processo Penal», III, 2000, pp. 36 e segs.].
O fundamento central desta figura, escrevia Beling, radica numa concessão prática às
necessidades de garantir a certeza e a segurança do Direito.
Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através deste
instituto aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões
contraditórias.
Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está
na base do instituto [Eduardo Correia, «A Teoria do Concurso em Direito Criminal», Coimbra,
1983, 302].
Isto vale quer para o caso julgado material, como para o caso julgado formal, sendo
certo que aqui nos interessa considerar apenas este último, dado que a nossa análise apenas
incidirá sobre o efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, ao passo que o caso
julgado material consubstancia a eficácia da decisão proferida relativamente a qualquer processo
ulterior com o mesmo objecto [Cfr. Cavaleiro de Ferreira, «Curso de Processo Penal», vol. 3.º,
Lisboa, 1958, pág. 35].
O CPP/29, no capítulo das excepções, aludia expressamente ao caso julgado (art. 138.º,
3.º) e, a partir do art. 148.º e segs., regulamentava com algum pormenor a referida excepção, com
especial relevo para o caso julgado material e efeitos do caso julgado cível no processo penal.
No actual CPP, não acontece o mesmo e tal ausência de regulamentação constante e
sistemática de matéria tão importante só pode significar, a nosso ver, ou que o legislador
entendeu como suficiente para resolver o problema, a aplicação genérica e indiferenciada ao
processo penal dos vários normativos que no processo civil tratam a questão, ao abrigo do regime
estabelecido no art. 4.º do CPP, ou então que não quis, pura e simplesmente, firmar regras rígidas
no processo penal em matéria de caso julgado, dada a natureza deste ramo do Direito.
Inclinamo-nos decisivamente para esta última posição que se encontra verdadeiramente
em harmonia com a especial natureza do processo penal.
Cremos que é por isso mesmo que não temos assistido, ao contrário do que se passava na
vigência do Código anterior, à elaboração dogmática de uma teoria sobre o caso julgado em
processo penal, preferindo os autores resolver casuisticamente os problemas relacionados com
este instituto.
Na verdade, a pura e simples aplicação dos princípios e normas que regem o caso
julgado no processo civil ao processo penal não se nos afigura legítima, designadamente porque
se iria, no fundo, coarctar, limitar e condicionar o princípio da verdade material que constitui o
escopo fundamental a atingir no processo penal. Refira-se, em abono disto, o ensinamento de
Cavaleiro de Ferreira: «Porque o caso julgado, cortando cerce a possibilidade de busca da
verdade material, restringe o ideal de justiça em função da necessidade de segurança, faz-se
sentir a sua imodificabilidade com mais rigor no processo civil do que em processo penal, por sua
natureza vertido para a justiça real e dificilmente acomodatício às ficções de segurança, obtidas à
custa do sacrifício de valores essenciais» [«Curso de Processo Penal», III, 1958, 88].
No entanto, não pode, de uma forma absoluta, coarctar-se o recurso ao processo civil
nesta matéria, mas o que será indispensável é encontrar um critério que, entrando em linha de
conta com as especialidades do processo penal, imponha alguns limites à aplicação em processo
penal das normas do processo civil neste domínio e tal critério só poderá encontrar-se no art. 4.º
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A esta concepção do caso julgado formal não se tem oposto o Tribunal
Constitucional20.
do CPP, o qual aponta, fundamentalmente, para dois pressupostos de tal aplicação, a saber: - a
existência de lacunas que não podem ser integradas por aplicação analógica de outras normas do
processo penal; e – a harmonização das normas do processo civil a aplicar, com o processo
penal.”.
20
A orientação do TC quanto à matéria do caso julgado penal vem exposta no acórdão 86/2004, de
04/02/2004, relatado pela Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, nos seguintes termos:
“…Também o Tribunal Constitucional se pronunciou já sobre o alcance da protecção
constitucional do caso julgado, mantendo a orientação desenhada pelo acórdão n.º 87 da
Comissão Constitucional.
Assim, e em primeiro lugar, o Tribunal observou por diversas vezes que decorre da
Constituição a exigência de que as decisões judiciais sejam, em princípio, aptas a constituir caso
julgado.
Com efeito, no Acórdão n.º 352/86 (Diário da República, II série, de 4 de Julho de 1987),
considerou “inerente às decisões judiciais insusceptíveis de recurso ordinário” a força de caso
julgado, força essa que “se dev[e] arvorar em princípio constitucional implícito, como decorre,
ainda, do art. 282º, n.º 3, da CRP". No mesmo sentido, disse-se no Acórdão n.º 250/96 (in Diário
da República, II Série, de 8 de Maio de 1996), que, “para que um Tribunal, qualquer que seja,
possa dirimir os conflitos de interesses públicos e privados que lhe são submetidos no exercício da
função jurisdicional, é indispensável que as suas decisões, reunidos que estejam certos requisitos,
sejam dotadas da estabilidade e da força características do caso julgado”; (cfr., ainda, o Acórdão
n.º 506/96, publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Julho de 1996).
Em segundo lugar, o Tribunal Constitucional continuou a afirmar que o caso julgado é
um valor constitucionalmente tutelado, nomeadamente no seu Acórdão n.º 677/98 (Diário da
República, II série, de 4 de Março de 1999): “É sabido que o caso julgado serve,
fundamentalmente, o valor da segurança jurídica (cf. Jorge Miranda, Manual de Direito
Constitucional, t. II, 3º ed., reimp., Coimbra, 1996, p.494); e que, fundando-se a protecção da
segurança jurídica relativamente a actos jurisdicionais, em último caso, no princípio do Estado
de Direito (Gomes Canotilho, “Direito Constitucional e Garantia da Constituição, Coimbra,
1998, p. 257), se trata, sem dúvida, de um valor constitucionalmente protegido”.
Em terceiro lugar, reafirmou a ausência da consagração na Constituição de um
princípio de intangibilidade absoluta do caso julgado:
«2.1.2. Entende este Tribunal que o caso julgado deve ser perspectivado como algo que
tem consagração implícita na Constituição, constituindo, desta sorte, um valor protegido pela
mesma, esteado nos valores de certeza e segurança dos cidadãos postulados pelo Estado de
direito democrático - consagrado, quer no preâmbulo do Diploma Básico, quer no seu artigo 2º
- e, também, num princípio de separação de poderes - consagrado igualmente naquele artigo e
no nº 1 do artigo 111º - e no nº 2 do artigo 205º (a que aquelas outras normas não são alheias),
um e outro do actual texto constitucional.
E entende, identicamente, que o aludido valor, constitucionalmente consagrado, do
caso julgado, não se posta como um valor que a Lei Fundamental considere inultrapassável.
Prova disso, na óptica deste Tribunal, constitui a estatuição constante do nº 3 do artigo
282º da Constituição.
Na verdade, o legislador constituinte derivado, na revisão operada pela Lei
Constitucional nº 1/82, de 8 de Julho, veio a prescrever que da declaração de
inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral ficavam "ressalvados os casos
julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a
matéria penal, disciplinar ou ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo mais favorável
ao arguido".
97
Temos, pois, que concluir que, quando uma decisão intercalar possa ser,
ou tenha sido, objecto de recurso, com subida imediata, há-de poder formar caso
julgado formal.
E isto mesmo para quem considere que a alteração do art.º 310º/1 do CPP
operada pela Lei 48/2007, de 29/08, tem carácter interpretativo da versão
anterior21, porque então teria que se dizer que, tendo sido admitido recurso,
Dessa prescrição extrai o Tribunal, conjugando-a com os artigos 2º, 111º, nº 1, e 205º, nº
2, que, efectivamente, a Constituição aceita como um valor próprio o respeito pelo caso julgado.
Porém, é ela própria, naquele nº 3 do artigo 282º, que vem estabelecer situações de
excepcionalidade ao respeito pelo caso julgado; e daí o dever-se concluir que um tal valor se não
perfila como algo de imutável ou inultrapassável» (Acórdão n.º 644/98, Diário da República, II
Série, de 21 de Julho de 1999).
Por último, e em quarto lugar, o Tribunal Constitucional tem reconhecido que, apesar de
não ter valor absoluto a tutela constitucional do caso julgado, uma lei retroactiva não pode
“atingir o caso julgado nos casos em que, segundo a Constituição, é proibida qualquer
retroactividade, por intermédio de uma lei individual” (Luís Nunes de Almeida, Portugal, in
Constitution et Sécurité Juridique, Annuaire International de Justice Constitutionnelle, XV, 1999,
p. 249 e segs.). É o que sucede, como se sabe, com as leis restritivas de direitos, liberdades e
garantias (n.º3 do artigo 18º da Constituição), as leis penais incriminadoras (artigo 29º, n.º 1) ou
(após a revisão constitucional de 1997) as leis que criam impostos (cfr., por exemplo, o Acórdão
n.º 304/01, Diário da República, II série, de 9 de Novembro de 2009).”.
21
Nesse sentido, ver o voto de vencido do Senhor Desembargador Abílio Fialho Ramalho ao Ac.
da RP de 16/01/2008, in www.gde.mj.pt, processo 0743305: “Não obstante vote a decisão,
afigura-se-me que não seria de conhecer do objecto do recurso, em razão da respectiva
inadmissibilidade legal.
Assim:
Consabidamente, o âmbito da irrecorribilidade do despacho de pronúncia de arguido
pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, determinada pelo art.º 2.º, n.º 2, al. 53,
da Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro (Lei de Autorização Legislativa), e consagrada no art.º 310.º,
n.º 1[1], do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro,
sempre gerou viva controvérsia – doutrinal e jurisprudencial –, mormente quanto à abrangência
do segmento decisório atinente à arguição de nulidades processuais, cuja recorribilidade
motivou, maxime, múltiplos e divergentes arestos dos tribunais superiores – quer no sentido
negativo, quer no positivo –, diversão jurisprudencial que acabou por ser harmonizada pelo
Acórdão n.º 6/2000, do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de
19/01/2000, (publicado em 07/03/2000, no n.º 56 do Diário da República, I SÉRIE-A) – ainda
assim sem unanimidade –, que fixou jurisprudência (embora não obrigatória, conforme então já
se estabelecia no n.º 3 do art.º 445.º do CPP - segmento normativo introduzido pela Lei n.º 59/98,
de 25/08) no sentido da respectiva recorribilidade, e que veio a ser complementado pelo Acórdão
n.º 7/2004, do Pleno das Secções Criminais do mesmo STJ, de 21/10/2004, (publicado em
02/12/2004, no n.º 282 do Diário da República, I SÉRIE-A) – também tomado por maioria –, que
fixou jurisprudência no sentido da subida imediata do concernente recurso.
O entendimento que acabou por vingar quanto à referida recorribilidade nunca se
eximiu, porém, de ponderosas e esclarecidas críticas, mesmo no seio do próprio Supremo
Tribunal de Justiça, em essencial razão da unicidade do acto processual de pronúncia e da
respectiva incindibilidade, bem como do propósito legislativo de incutimento de celeridade
processual à fase instrutória – juízo que sempre se nos apresentou inultrapassável –, de que se
deu nota nas várias declarações de voto de vencido dos dois enunciados acórdãos
uniformizadores, particularmente no último, pela voz dos Ex.mos Conselheiros José Vaz dos
Santos Carvalho, António Luís Gil Antunes Grancho, Políbio Rosa da Silva Flor, António Pereira
Madeira, Armindo dos Santos Monteiro e João Manuel de Sousa Fonte.
Ciente de tal discussão jurídica, o legislador, renovando e vincando o intento de
promoção da simplificação e celeridade processual, já expressamente estabelecido no art.º 2.º, n.º
2, als. 1, 2 e 53, da Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86, de 26 de Setembro, (vide, maxime,
pag. 11 da Exposição de Motivos da proposta de lei n.º 109/X), veio-lhe a pôr definitivo cobro no
acto de revisão do Código de Processo Penal, operada pela Lei n.º 48/9007, de 29 de Agosto –
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quando o não devia ter sido, ainda assim, a decisão tomada que conhecesse do
objecto desse recurso, precludia a possibilidade de a mesma matéria vir a ser
apreciada em sede de decisão final, por efeito do caso julgado.
Harmonizando esta conclusão com a doutrina do acórdão do TC citado
pelo Arg., diremos que se o recurso não tivesse sido admitido, a decisão constante
do despacho aqui em causa não teria formado caso julgado.
É certo que o acórdão recorrido teve entendimento diferente, ignorando o
caso julgado e conhecendo novamente destas questões. Tal conhecimento, no
entanto, não tem a virtualidade de pôr em causa o caso julgado formado sobre a
questão. Por isso, nos termos já referidos no citado acórdão da RL de 29/05/2002
(relatado pelo Senhor Desembargador Clemente Lima, in www.gde.mj.pt,
processo 0210428), recorrendo ao disposto no art.º 675º do CPC (aplicável ex vi
art.º 4º do CPP), há que cumprir a que passou em julgado em primeiro lugar, ou
seja, o acórdão da RL que nestes autos julgou inexistirem as referidas nulidades e
transitou em julgado.
Assim, nos presentes autos existe caso julgado formal, quanto às
questões apreciadas no referido acórdão da Relação de Lisboa, pelo que está
prejudicado o conhecimento das questões suscitadas enumeradas em I) e II).
vigente desde 15/09/2007, (vide respectivo art.º 7.º) –, pelo esclarecimento inserido no n.º 1 do
citado art.º 310.º, de que a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes
da acusação do Ministério Público é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e
outras questões prévias e incidentais, e determina a imediata remessa dos autos ao tribunal
competente para o julgamento.
Tal esclarecimento configura manifestamente uma interpretação legal e autêntica do
enunciado postulado normativo, havendo-se, pois, claramente como lei interpretativa.
Destarte, dado que, em conformidade com o disposto no art.º 13.º, n.º 1, do Código Civil,
a lei interpretativa se integra na lei interpretada, impor-se-á o entendimento desta – art.º 310.º,
n.º 1, do CPP –, desde o início da respectiva vigência, e, portanto, retroactivamente, com o
significado ora esclarecido pelo órgão legiferante [2], nenhuma razão subsistindo,
consequentemente, à observância da orientação jurisprudencial enunciada no Acórdão n.º 6/2000,
do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, cuja disciplina se encontra
ultrapassada.
Por conseguinte, sendo agora indiscutível a total irrecorribilidade da decisão instrutória
que determinar a sujeição do arguido a julgamento pelos actos comportamentais imputados na
acusação do M.º P.º, demandar-se-ia a rejeição do recurso em questão, por inadmissibilidade
legal, [cfr. art.º 420.º, n.º 1, por referência ao 414.º, n.º 2, do C. P. Penal, versão introduzida pela
Lei n.º 59/98, de 15/08, e 420.º, n.º 1, al. b), do mesmo compêndio legal, na versão decorrente da
Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto].”.
99
*
Todos os Recorrentes entendem que o tribunal recorrido devia ter fixado a
matéria de facto de maneira diferente do que fez.
O que invocam, pois, é a existência de erros na avaliação dos
depoimentos e declarações dos intervenientes, bem como da restante prova
produzida em audiência ou constante dos autos.
A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre
apreciação da prova pelo juiz.
Este princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art. 127º do
CPP nos seguintes termos «... a prova é apreciada segundo as regras da
experiência e a livre convicção da entidade competente».
E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em
aspectos fácticos, e que são os referidos no art. 410º/2/3 do CPP, não pode
sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter
dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de
julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto22,23,24.
22
Importa considerar que, como se afirma no Ac. do STJ de 17/02/2005, relatado pelo Sr.
Conselheiro Simas Santos, in www.dgsi.pt, processo 04P4324, “1 - O recurso em matéria de facto
para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é
reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª
Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a
factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e
corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente,
com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto
aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à
prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com
que devia ter sido aplicada. 2 - Se o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos
prestados permite que a 1.ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o
fez e questiona tão só a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida,
sem indicar elementos objectivos que imponham a sua posição, a sua pretensão fracassa pois a
credibilidade dos depoimentos, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um
sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com
os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite
formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo
reexaminada em recurso. 3 - Se apesar de se esforçar, a 1.ª Instância não consegue estabelecer o
motivo que levou o arguido a agir, mas estão presentes todos os elementos do respectivo tipo legal
de crime, nenhuma dúvida se pode levantar sobre a culpabilidade do agente. …”.
E no Ac. do STJ de 12/06/2008, relatado pelo Sr. Conselheiro Raul Borges, in
www.dgsi.pt, processo 07P4375, de cujo sumário citamos: “I - A partir da reforma de 1998
passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente
revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do
art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes
do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da
decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento,
permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a
observância de certas formalidades. II - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios
decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como
resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida,
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A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca
poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e
global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e
correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento,
circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só
considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo
a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de
impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os
mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma. III - No segundo caso, a
apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair
da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo
recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em
vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria
de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma. IV - A alteração do art. 412.º do CPP
operada em 1998 visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada
pelo colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento
da parte final do art. 32.º, n.º 1, da CRP na revisão da Lei Constitucional n.º 1/97, vindo a ser
“confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005 (in
DR, I Série-A, de 07-12-2005), que estabeleceu: «Após as alterações ao Código de Processo
Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso
para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo». V - Esta
possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através
da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por
se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos
de limitações: - desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte
do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e
concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera
incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos
depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão
diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso; - já ao nível do
poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade
e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as
provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições; - por outro lado, há limites à
pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o
duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância;
a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à
indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto
apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do
que resultar do filtro da documentação; - a jusante impor-se-á um último limite, que tem a ver
com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir
que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra
decisão. …”.
23
Neste sentido, cf. ainda o Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502, com anotação de que
neste sentido se vinham orientando a doutrina e a jurisprudência.
24
Neste sentido, ver também o Ac. RL, de 10/10/2007, relatado pelo Sr. Desembargador Carlos
Almeida, in www.dgsi.pt, processo 8428/2007-3, de cujo sumário citamos: “…XVII – No caso,
embora a prova produzida e examinada na audiência permitisse, eventualmente, uma decisão em
sentido diferente, ela não impunha decisão diversa da proferida, razão pela qual o recurso não
pode ter provimento.”.
101
incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto25.
Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores
racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação
da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica
e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, por vezes quase
imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (no
mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211,
para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou
reacções dos depoentes que apenas podem ser percebidos, apreendidos,
interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar
gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá
reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»).
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de
convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das
regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade
daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».
E convém referir que tendo o tribunal recorrido formado a sua convicção
com provas não proibidas por lei (tanto quanto resulta do caso julgado sobre essa
matéria formado nestes autos e supra referido), prevalece a convicção do tribunal
sobre aquelas que formularam os Recorrentes.
III) Posto este enquadramento da reapreciação da matéria de facto em
sede de recurso, passemos a analisar as questões de facto suscitadas pelo Arg..
No fundo, do seu ponto de vista, o tribunal recorrido deu como provada,
no essencial, a versão dos factos apresentada pela testemunha Dr. Ricardo Sá
Fernandes em detrimento da sua e devia ter feito o contrário.
Baseia-se na consideração de que as declarações do Arg. em audiência,
conjugadas com o cartão que lhe foi apreendido e com a mensagem (“SMS”) que
o seu filho, por si, enviou ao Dr. Ricardo Sá Fernandes, e com a falta de
25
No mesmo sentido, cf. o Ac. do STJ de 20/11/2008, relatado pelo Sr. Conselheiro Santos
Carvalho, in www.dgsi.pt, processo 08P3269, de cujo sumário citamos: “I - O STJ tem reafirmado
que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª
instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento
ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento,
que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. II Conhecendo-se pela fundamentação da sentença o caminho lógico que, segundo a 1ª instância,
levou à condenação do recorrente, deveria este ter-se limitado a sindicar os pontos de facto que
nesse percurso foram erradamente avaliados, com a indicação das provas que impunham uma
decisão diversa e com referência aos respectivos suportes técnicos. …”.
102
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credibilidade desta testemunha.
Acontece que, perante o tribunal recorrido, foram expostas duas versões
absolutamente incompatíveis entre si, tendo o tribunal optado, no essencial por
uma delas.
Como dissemos, só se houver entre as provas produzidas e apreciadas
alguma, ou algumas, que imponham uma opção diferente, pode este tribunal de
recurso proceder à alteração da matéria de facto.
O tribunal recorrido explicou profusa e cabalmente os raciocínios que fez
para chegar àquelas conclusões fácticas.
Sendo aceitável que a prova produzida também permitia que se desse
como provada a versão do Arg., a verdade é que não impõe essa versão.
Senão vejamos, o que o tribunal fez foi valorar o depoimento da
testemunha Dr. Ricardo Sá Fernandes em conjugação com as gravações
efectuadas e com os depoimentos das outras testemunhas da acusação.
Convenhamos que este conjunto de provas dá uma imagem coerente e credível
dos factos.
Quanto à credibilidade da testemunha, que decorre dos elementos referidos
e, certamente, da forma como depôs, cremos que o seu evidente interesse na
incriminação do Arg., por si só, não a põe em causa. Caso contrário, teriam os
tribunais que desvalorizar sempre os depoimentos das vítimas, tantas vezes
decisivos, nomeadamente nos crimes sexuais, e dos polícias: uns e outros têm, na
esmagadora maioria dos casos, uma enorme vontade de ver os Arg. condenados.
Perante aquela imagem coerente e credível dos factos, o tribunal não podia
deixar de no confronto com as provas da versão do Arg., fazer um raciocínio
lógico sobre o seu significado fáctico. E foi o que fez.
Por isso considerou que os referidos cartão e “SMS” só podiam resultar de
uma reacção defensiva do Arg. e convenhamos que este raciocínio é
completamente lógico e razoável, sendo que não vemos como possa constituir
uma petição de princípio.
103
Quanto à violação do princípio in dubio pro reo26, dir-se-á, em síntese
que o que resulta do princípio citado é que quando o tribunal fica na dúvida
quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica
que mais beneficie o arguido. Mas para que a dúvida seja relevante para este
efeito, há-de ser uma dúvida razoável, uma dúvida fundada em razões adequadas
e não qualquer dúvida (Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, p.
205)27.
26
“A presunção de inocência é identificada por muitos autores como princípio in dubio pro reo,
no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do
arguido. A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce
porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites
do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final,
malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da
presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a
consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua
responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da presunção de inocência.” (Prof. Germano
Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, I, 5ª ed., 2008, p. 83 e 84).
27
Sobre as possibilidades de aplicação do princípio in dubio pro reo, ver o importante Ac. do STJ
de 27/05/2009, relatado pelo Senhor Conselheiro Raul Borges, in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484,
do qual citamos: “…O princípio in dubio pro reo funda-se constitucionalmente no princípio da
presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória – artigo 32º, nº 2, da
CRP - , impondo este que qualquer non liquet na questão da prova seja valorado a favor do
arguido, apresentando-se aquele, na fase de decisão, como corolário daquela presunção –
acórdão do Tribunal Constitucional nº 533/98, DR, II Série, de 25-02-1999.
O princípio in dubio pro reo - fórmula condensada por Stubel - que estabelece que, na
decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, é um princípio de prova que vigora em
geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário.
A violação do princípio in dubio pro reo tem sido entendida sob diversas perspectivas,
como a de respeitar a matéria de prova e, pois, tratar-se de matéria de facto e como tal
insindicável pelo STJ (por todos, acórdão de 18-12-1997, processo n.º 930/97, BMJ 472, 185), ou
enquanto princípio estruturante do processo penal, podendo ser suscitada perante o Tribunal de
revista, mas o Supremo vem afirmando que isso só é possível se a violação resultar do próprio
texto da decisão recorrida, designadamente da fundamentação da decisão de facto – acórdão de
29-11-2006, processo n.º 2796/06-3ª, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 235 (239).
Contrariamente à posição de Figueiredo Dias, expressa in Direito Processual Penal,
volume I, pág. 217, que defende que o princípio se assume como um princípio geral de processo
penal, não forçosamente circunscrito a facetas factuais, podendo a sua violação conformar
também uma autêntica questão de direito plenamente cabível dentro dos poderes de cognição do
STJ, a jurisprudência maioritária tem repudiado a invocação do princípio em sede de
interpretação ou de subsunção de um facto à lei, não valendo para dúvidas nessas matérias.
Para o acórdão de 06-04-1994, processo n.º 46092, BMJ 436, 248, o princípio não tem
aplicação apenas quanto à matéria de facto, começando, logo, por poder ser aplicado na própria
interpretação da matéria de direito, esclarecendo que “nada impede que, em via de recurso penal
interposto para este Supremo Tribunal, os julgadores se socorram do princípio in dubio pro reo,
quando, esgotados todos os meios de interpretação dos factos ou das disposições legais, surgirem
dúvidas justificadas quanto ao sentido dos factos ou relativamente à norma aplicável”.
E de acordo com o acórdão de 11-02-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 210, o princípio in
dubio pro reo é multifacetado e a sua força omnímoda e dinamismo podem e devem aplicar-se
mesmo dentro dos processos lógicos que interessam à interpretação e integração da lei.
Este acórdão foi objecto de comentário na RPCC, 2003, ano 13, n.º 3, págs. 433 e ss., onde se diz
que o STJ adoptou uma tese errónea em relação à aplicabilidade do princípio, defendendo-se que
o alcance do in dubio pro reo restringe-se a dúvidas sobre a prova da matéria de facto e não tem
aplicação na resolução de dúvidas quanto à interpretação de normas penais, cuja única solução
correcta reside em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que
se revele juridicamente mais exacto.
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Em sentido oposto pronunciaram-se, i. a., os acórdãos de 06-12-2006, processo n.º
3520/06-3ª; de 20-12-2006, processo n.º 3105/06-3ª; de 23-04-2008, processo n.º 899/08, supra
citado, onde se refere que «O princípio vale apenas em relação à prova da questão de facto e já
não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito; aqui, a única solução correcta
residirá em escolher não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que
juridicamente se reputar mais exacto» e no acórdão de 30-04-2008, processo n.º 3331/07-3ª, dizse que «O princípio in dubio pro reo não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das
normas penais. Em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance destas, o problema deve ser
solucionado com recurso às regras de interpretação, entre as quais o princípio do in dubio pro
reo não se inclui, uma vez que este tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da
matéria de facto – sejam os pressupostos do preenchimento do tipo de crime, sejam os factos
demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa».
A eventual violação do princípio in dubio pro reo só pode ser aferida pelo STJ quando da
decisão impugnada resulta, de forma evidente, que tribunal recorrido ficou na dúvida em relação
a qualquer facto, que tenha chegado a um estado de dúvida “patentemente insuperável” e que,
nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido, optando por um entendimento decisório
desfavorável ao arguido, posto que saber se o tribunal recorrido deveria ter ficado em estado de
dúvida, é uma questão de facto que exorbita os poderes de cognição do STJ enquanto tribunal de
revista.
Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra
de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do artigo 127º do CPP, que escapa ao poder de
censura do STJ enquanto tribunal de revista – neste sentido acórdãos de 20-06-1990, BMJ 398,
431; de 04-07-1991, BMJ 409, 522; de 14-04-1994, processo n.º 46318, CJSTJ 1994, tomo 1, pág.
265; de 12-01-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 181; de 06-03-1996, CJSTJ 1996, tomo 2 (sic),
pág. 165;de 02-05-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 177; de 25-02-1999, BMJ 484, 288; de 15-062000, processo n.º 92/00-3ª, CJSTJ 2000, tomo 2, pág. 226 e BMJ 498, 148; de 02-05-2002,
processo n.º 599/02-5ª; de 23-01-2003, processo n.º 4627/02-5ª; de 15-10-2003, processo n.º
1882/03-3ª; de 27-05-2004, processo n.º 766/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 209 (a alegada
violação do princípio só poderá ser sindicada se ela resultar claramente dos textos das decisões
recorridas); de 21-10-2004, processo n.º 3247/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 198 (com
recensão de jurisprudência sobre o tema e em concreto sobre a temática das conclusões que as
instâncias retiram da matéria de facto e o recurso às presunções naturais); de 12-07-2005,
processo n.º 2315/05-5ª; de 07-12-2005, processo n.º 2963/05-3ª; de16-05-2007, CJSTJ 2007,
tomo 2, pág. 182; de 20-02-2008, processo n.º 4553/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 210/08-3ª,
CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 243; de 09-04-2008 processo n.º 429/08-3ª; de 23-04-2008, processo n.º
899/08-3ª; de 15-07-2008, processo n.º 1787/08-5ª.
Noutra perspectiva, o STJ poderá sindicar a aplicação do princípio, quando a dúvida
resultar evidente do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do artigo 410º,
n.º 2, do CPP, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação
da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal tendo ficado em estado de dúvida, decidiu
contra o arguido – cfr. acórdãos de 30-10-2001, processo n.º 2630/01-3ª; de 06-12-2002,
processo n.º 2707/02-5ª; de 08-07-2004, processo n.º 1121/04-5ª, SASTJ, n.º 83; de 24-11-2005,
processo n.º 2831/05-5ª; de 07-12-2006, processo n.º 3137/06-5ª; de 18-01-2007, processo n.º
4465/06-5ª; de 21-06-2007, processo n.º 1581707-5ª; de 13-02-2008, processo n.º 4200/07-5ª; de
17-04-2008, processo n.º 823/08-3ª; de 07-05-2008, processo n.º 294/08-3ª; de 28-05-2008,
processo n.º 1218/08-3ª; de 29-05-2008, processo n.º 827/08-5ª; de 15-10-2008, processo n.º
2864/08-3ª; de 16-10-2008, processo n.º 4725/07-5ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª;de 0412-2008, processo n.º 2486/08-5ª; de 05-02-2009, processo n.º 2381/08-5ª (A apreciação pelo
Supremo da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério
idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera
análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio).
105
Ora, não vislumbramos no acórdão recorrido, quer na matéria de facto
dada como provada, quer na sua fundamentação, que, ao fazer esta opção fáctica,
o tribunal recorrido tenha tido qualquer hesitação quanto à valoração da prova, tal
como não fixou qualquer facto que pudesse colocar em questão a autoria dos
factos, ou seja, não teve qualquer dúvida. O tribunal retirou directamente tais
conclusões da prova produzida em audiência. Não deveria/poderia, em
consequência, fazer uso de tal princípio.
É, pois, improcedente o recurso do Arg. quanto à matéria de facto.
*
V) No entendimento do MP, o tribunal recorrido devia ter dado como
provados os factos referidos nas alíneas a) a g) da matéria não provada.
Para tanto, considera que o tribunal recorrido devia ter tirado outras
conclusões fácticas das transcrições das gravações das conversas, tidas em 24 e
27/01/2006, entre o Arg. e a testemunha Dr. Ricardo Sá Fernandes.
Lidas atentamente as partes das transcrições que o MP considera
Na perspectiva, mais concreta - e que data de finais da década de 90 do século passado de análise do princípio in dubio pro reo, como figura próxima do vício decisório - erro notório na
apreciação da prova, previsto no artigo 410º, n.º 2, alínea c), do CPP - , e, pois, da sua
sindicabilidade pelo Supremo Tribunal, podem ver-se os acórdãos de 15-04-1998, processo n.º
285/98-3ª, in BMJ 476, 82; de 22-04-1998, processo n.º 120/98-3ª, BMJ 476, 272; de 04-11-1998,
processo n.º 1415/97-3ª, in CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 201 e BMJ 481, 265, com extensa
informação acerca do princípio em causa e da livre apreciação da prova; de 27-01-1999, no
processo nº 1369/98-3ª, in BMJ 483º, 140; de 24-03-1999, processo n.º 176/99-3ª, in CJSTJ 1999,
tomo 1, pág. 247, todos do mesmo relator, Exmo. Conselheiro Leonardo Dias, em que a tónica do
entendimento sufragado nos citados arestos é o seguinte: “o erro na apreciação da prova só
existe quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência
comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal. Nesta
perspectiva, a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório
na apreciação da prova, o que significa que a sua existência também só pode ser afirmada
quando, do texto da decisão recorrida, se extrair, por forma mais do que evidente, que o colectivo,
na dúvida, optou por decidir contra o arguido”; e ainda os acórdãos de 20-10-1999, processo n.º
1475/98 -3ª, in BMJ 490º, 64 (em que aquele relator intervém como adjunto); de 04-10-2006,
processo n.º 812/2006-3ª; de 11-04-2007, processo n.º 3193/06-3ª.
Como referimos no acórdão de 05-12-2007, processo n.º 3406/07, parece-nos que esta
possibilidade de abordagem de eventual violação do princípio será balizada pelos parâmetros de
cognoscibilidade presentes numa indagação dos vícios decisórios, por um lado, com o
consequente alargamento de possibilidade de incursão de exame no domínio fáctico, mas
simultaneamente, como ali ocorre, operando de uma forma mitigada, restrita, que se cinge ao
texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência
comum.
O que significa que, tal como ocorre na análise e exame de verificação dos vícios,
quando se perspectiva indagação de eventual violação do princípio in dubio pro reo (em ambos os
casos diversamente do que ocorre com a avaliação de nulidades da sentença), há que não
esquecer que se está sempre perante um poder de sindicância de matéria fáctica, que é limitado,
restrito, parcial, mitigado, exercido de forma indirecta, dentro do condicionalismo estabelecido
pelo artigo 410º do CPP, em suma, que o horizonte cognitivo do STJ se circunscreve ao texto e
aos vícios da decisão, não incidindo sobre o julgamento, isto é, que o objecto da apreciação será
sempre a decisão e não o julgamento. …”.
106
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relevantes para este efeito, somos, de novo, levados a afirmar que, admitindo,
embora, tais transcrições as conclusões fácticas pretendidas, elas não as impõem.
Assim, sendo, nos termos já supra expostos, há que concluir que é
improcedente, nesta parte o recurso do MP.
*
VI) Também o Assistente entende que o tribunal recorrido devia ter dado
como provados os factos referidos nas alíneas a) e g) da matéria não provada.
Baseia-se nas transcrições das gravações das conversas entre o Arg. e a
testemunha Dr. Ricardo Sá Fernandes, conjugadas com o depoimento desta em
audiência.
De novo, lidas as transcrições do depoimento desta testemunha, feitas pelo
Assistente, e conjugando-as com as transcrições das conversas gravadas, somos
levados à mesma conclusão do ponto anterior: admitindo, embora, tais
transcrições as conclusões fácticas pretendidas, elas não as impõem.
Por isso é também improcedente, nesta parte o recurso do Assistente.
*
Chegados à conclusão de que é de manter inalterada a matéria de facto
fixada pelo tribunal recorrido, há que decidir as questões de direito.
Por uma razão de precedência lógica, começaremos por decidir a questão
suscitada pelo Arg..
IV) Entende este que a matéria de facto dada como provada não preenche
a factualidade típica da incriminação da corrupção.
“…De um modo sintético, pode reconduzir-se o fenómeno da corrupção
às situações em que um funcionário (na acepção do art. 386°) solicita ou aceita
uma vantagem patrimonial ou não patrimonial (ou a sua promessa) como
contrapartida de um acto (lícito ou ilícito, passado ou futuro) que traduz o
exercício efectivo do cargo em que se encontra investido.
…
Conforme resulta do n°1 do art. 374°, verifica-se uma corrupção activa
quando alguém oferece ou promete (ou satisfaz a solicitação de) uma vantagem
107
patrimonial ou não patrimonial indevida como contrapartida de um acto (lícito
ou ilícito, passado ou futuro) de um "funcionário" (art. 386°) no exercício do seu
cargo ou dos "poderes de facto" dele decorrentes. …”28.
A Lei 34/87, de 16/07, o que, nesta matéria, no fundo, veio fazer, foi
estender aos titulares de cargos políticos o regime penal da corrupção consagrado
no CP.
Atenta esta extensão, não há dúvidas de que este regime penal da
corrupção se aplica ao caso dos autos, em que a pessoa que foi objecto da oferta
de vantagem patrimonial, o Assistente, é vereador da Câmara Municipal de
Lisboa e, portanto, titular de cargo político (art.º 3º/1-i) da Lei 34/87, de 16/07).
Também não há dúvidas de que o Arg. ofereceu uma vantagem
patrimonial ao Assistente, para que este praticasse um determinado acto.
O bem jurídico em causa neste tipo de crime é a autonomia intencional do
29 30 31
Estado , , .
28
Prof. A. M. Almeida e Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, vol. III,
Coimbra Editora, 2001, pp. 655 e 681.
29
Neste sentido e por todos, cf. A. M. Almeida e Costa, idem ibidem, p. 660 e 661, donde citamos:
“…Ao direito penal cumpre a preservação dos chamados bens jurídico-criminais, entendidos
como o conjunto dos valores considerados necessários à convivência comunitária e à livre
realização da Pessoa. Aí se incluem, por exemplo, a vida, a integridade física, a saúde, a
liberdade, o património. Segundo certa opinião, tal concepção logrou, inclusivamente,
consagração expressa no art. 18°, n° 2, da CRP (cf., por todos, FIGUEIREDO DIAS, ROA 1983
passim).
Ora, a par dos assinalados valores essenciais, tidos por imprescindíveis para a
realização humana, surgem outros que assumem um papel secundário, como "valores-meios" ou
sustentáculos da sua efectivação. Trata-se de bens jurídicos que, consubstanciando, em si
mesmos, objectivos organizatórios e funcionais, via de regra encontram o seu campo privilegiado
no direito de mera-ordenação-social. A respeito de alguns deles verifica-se, todavia, uma fusão
íntima com os bens jurídicos fundamentais a que servem de suportes, como consequência de se
mostrarem indispensáveis à respectiva conservação. Nesse caso, a sua protecção acaba por
confundir-se com a salvaguarda dos últimos, circunstância que justifica uma absorção pelo
direito penal e a correspondente qualificação como bens jurídico-criminais. Em tais
considerações se baseia, por exemplo, a tutela penal da soberania do Estado, da manutenção do
modelo do Estado de direito e, de um modo geral, da preservação da esfera da Autoridade
Pública. Os delitos que os ofendem não representam simples crimes de perigo, uma vez que,
embora revistam a natureza de "valores-meios", aquelas entidades, porque imprescindíveis à
organização social, têm uma "densidade" penal própria e integram bens jurídico-criminais
independentes, cuja violação constitui um crime de dano (a este propósito, cf. A. M. ALMEIDA
COSTA, Cit. 142 ss.).
Partindo do exposto, e não obstante o carácter instrumental que reveste, também a
própria Administração, atenta a relevância dos objectivos que serve, pode, em si mesma, assumir
a natureza de bem jurídico-criminal. Neste sentido aponta a sua imprescindibilidade para a
realização ou satisfação de finalidades fundamentais, indispensáveis em qualquer sociedade
organizada.
Posto isto, ao transaccionar como cargo, o empregado público corrupto coloca os
poderes funcionais ao serviço dos seus interesses privados, o que equivale a dizer que, abusando
da posição que ocupa, se"sub-roga" ou "substitui" ao Estado, invadindo a respectiva esfera de
actividade. A corrupção - (própria e imprópria) traduz-se, por isso, numa manipulação do
aparelho de Estado pelo funcionário que, assim, viola a autonomia intencional do último, ou
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seja, em sentido material, infringe as exigências de legalidade, objectividade e independência
que, num Estado de direito, sempre têm de presidir ao desempenho das funções públicas.
Sintetizando: o bem jurídico da corrupção consiste na autonomia intencional do Estado,
entendida nos termos descritos. Evitando os artificialismos em que incorrem as teses maioritárias
italiana e alemã (supra § 8), tal concepção harmoniza-se com o direito positivo português.
Acresce que apresenta pontos de contacto, não só com a teoria germânica que via na Reinlialtung
der Amtsausübung (supra §7)o objecto de protecção da corrupção, mas sobretudo com nossa
tradição jurídica, que expressamente apontava, como finalidade dos tipos em apreço, a tutela da
"legalidade no exercício das funções públicas" (cf. A. M.ALMEIDA COSTA, cit. 145 nota 250).
…”.
30
Expressando concordância com o entendimento do Prof. Almeida Costa, cf. Cláudia Santos, in
“A CORRUPÇÃO - [DA LUTA CONTRA O CRIME NA INTERSECÇÃODE ALGUNS
(DISTINTOS) ENTENDIMENTOSDA DOUTRINA, DA JURISPRUDÊNCIA E DO
LEGISLADOR”, Liber Disciplinorum para Jorge Figueiredo Dias, pp. 970 e 971, donde citamos:
“… Mas, porque uma opção quanto a esta questão condiciona decisivamente tudo o que a seguir
se dirá, esclareça-se apenas a concordância com ALMEIDA COSTA na afirmação de que"a
corrupção (própria e imprópria) traduz-se numa manipulação do aparelho de Estado pelo
funcionário que, assim, viola a autonomia intencional do último, ou seja, em sentido material,
infringe as exigências de legalidade, objectividade e independência que, num Estado de direito,
sempre têm de presidir ao desempenho das funções públicas"(22). Cremos que, dito agora de uma
forma simplificada, o que o legislador pretende evitar com a incriminação da corrupção é
sobretudo a criação da mera possibilidade de actuação, por parte do agente público, de acordo
com critérios outros que não os estritamente objectivos. Quando solicita ou aceita o recebimento
de um suborno, o funcionário ou titular de cargo político fica de imediato coma sua
imparcialidade prejudicada. Independentemente da prática de qualquer acto, a sua autonomia
intencional está já condicionada. O resultado desvalioso para o bem jurídico ocorreu já, quer o
acto que se pretendia praticar não venha a ocorrer por uma qualquer razão, quer não se consiga
sequer demonstrar a intenção de praticar um acto concreto e determinado. Talvez seja mais difícil
a compreensão do dano para aquele bem jurídico aquando da corrupção activa. Julgamos,
todavia, que ainda aqui o mero oferecimento de uma qualquer vantagem a um agente público cria
a possibilidade objectiva - por mais que este esteja intimamente decidido a actuar de acordo com
a legalidade - de que os critérios decisionais sejam outros que não o mero interesse estadual(23).
Em síntese apertada: a consideração dos delitos de corrupção como crimes de resultado
dano, que visam tutelar um bem jurídico definido como "a autonomia intencional do Estado", leva
à consideração como típicas de várias condutas, porque lesivas daquele bem jurídico e não
excluídas do âmbito de aplicação da norma pela letra da lei. Extraiamos daqui as conclusões
devidas e exemplifiquemos — sempre à luz desta concepção doutrinal —, apenas com algumas
das hipóteses que mais dúvidas têm suscitado aos aplicadores:(1) pode haver crime de corrupção
passiva e activa ainda que o valor da peita não seja proporcional ao valor ou importância do acto
a praticar; (2) pode haver crime de corrupção passiva e activa sem que o acto acordado ou
almejado venha a ter lugar; (3) pode haver crime de corrupção passiva e activa sem que fique
demonstrado que a solicitação, aceitação ou oferta da peita têm por objectivo a prática de uma
acto concreto e determinado; (4) por maioria de razões, pode haver crime de corrupção passiva e
activa quer a oferta/recebimento sejam anteriores à prática do acto, quer sejam posteriores; (5)
pode, em certas circunstâncias, haver crime consumado de corrupção, quer activa, quer passiva,
mesmo que o agente público não chegue efectivamente a receber a vantagem prometida ou
solicitada.”.
31
Quanto ao bem jurídico em causa na corrupção, importa reter a actualização conceitual que o
Prof. Faria e Costa elaborou, tendo em conta as posteriores incriminações como corrupção de actos
praticados ou a praticar por pessoas que não são funcionários, expressa no parecer junto a estes
autos, a fls. 2354 e 2355, donde citamos: “… Chegados a este ponto, munidos de todo um universo
de elementos relevantes para o tipo, analisamos"todos" os "crimes de corrupção" e verificamos
109
Por outro lado, não sendo a corrupção activa um crime específico, para se
estar perante um tal crime, mostra-se necessário que a conduta do funcionário
visada pelo suborno preencha os mesmos requisitos exigidos para a corrupção
passiva.
Mas, nem todos os actos praticados pelos funcionários se mostram,
susceptíveis de preencher os requisitos da corrupção passiva.
Para que tal aconteça, é necessário que os actos a praticar, ou que se
pretende sejam praticados, pelo funcionário estejam dentro da esfera dos poderes
do cargo que ocupa.
“A demarcação precisa das situações relevantes analisa-se, no presente
domínio, por duas vertentes: uma que amplia e outra que restringe o âmbito da
responsabilidade do funcionário:
a) A primeira não levanta grandes dificuldades, uma vez que, por
definição, a corrupção se limita aos casos em que a gratificação representa a
contrapartida de um acto realizado no exercício do cargo, i. e., do munus
estadual em que o seu titular se encontra investido. Na correspondente fattispecie
não cabem, assim, as hipóteses em que a dádiva respeita a uma actividade ou
prestação não efectuada no desempenho das suas competências públicas, ainda
que a conduta a que, em concreto, se dirige a remuneração se apresente material
e tecnicamente idêntica às que o agente executa nessa veste. O que se afirma
afigura-se válido mesmo para as situações em que a referida actividade
"privada" do funcionário se encontra proibida por motivos relacionados com o
próprio cargo. O recebimento de tais gratificações pode integrar um qualquer
ilícito, mas não o que subjaz à corrupção passiva. O seu objecto não é constituído
por"actos de serviço" e, portanto, não ocorre nenhuma transacção com a
autoridade do Estado - circunstância indispensável para a verificação de um
delito daquela espécie.
que, afinal, o bem jurídico se revela idêntico nesse universo. Na verdade, todos os crimes de
corrupção lidam com o poder c como seu exercícios'.Tanto a corrupção no sector público, como a
corrupção no sector privado. Acrescente-se: tanto a corrupção intra-fronteiras, como a corrupção
transnacional. Em causa está sempre um desequilíbrio no exercício do poder por parte de quem o
tem. Para sermos ainda mais claros: em causa está sempre a compra do poder. Não se trata, deste
modo, apenas da capacidade de funcionamento do aparelho de Estado ou mesmo da autonomia
intencional do Estado. O valor que transparece nas diferentes incriminações é outro e apenas um:
a pretensão colectiva a urna decisão livre, in-condicionada, correcta e imparcial por parte de
todos aqueles a quem o direito atribui o "poder" de intervir na definição ou realização de relações
públicas juridicamente relevantes.”.
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b) Mais complexa se revela a segunda vertente em que se delimitam as
condutas que podem integrar o crime de corrupção passiva. Sem dúvida que elas
têm de consubstanciar o exercício do cargo. Mas deverão corresponder às
específicas competências legais ou, pelo contrário, poderão importar a simples
actuação de meros "poderes de facto" decorrentes da posição "funcional" do
agente? A pesar da falta de clareza resultante das contradições em que muitas
vezes caem os autores, detectam-se, a este nível, duas orientações opostas.
De uma parte, surgem os que exigem, para se falar de corrupção passiva,
que a actividade visada pelo suborno se encontre abrangida nas atribuições ou
competências do concreto funcionário. Fora do campo da infracção estaria, pois,
além do particular que se fizesse passar por empregado público e, assim,
beneficiasse de um suborno, o próprio funcionário que se arrogasse a
competência para praticar um acto que não cabe nas suas específicas atribuições
e, em troca, aceitasse uma gratificação. Qualquer dos casos apresentar-se-ia,
porventura, subsumível noutro tipo legal (v.g., usurpação de funções ou burla),
mas não no da corrupção passiva. Ao seu conceito estaria subjacente a violação
de um dever de "fidelidade ao cargo", pelo que apenas poderia figurar como
respectivo autor a pessoa sobre quem recaísse esse mesmo dever - i.e.,o indivíduo
formalmente investido para o desempenho das funções. Numa palavra, a
perspectiva descrita parece, à primeira vista, afirmar-se como a única conforme
à natureza de crime especifico assumida pela corrupção passiva.
Embora concordando na parte em que se retiram do campo da corrupção
passiva todos os não-funcionários, contra a posição exposta prescindem outros
autores do facto de a conduta prometida ou efectuada pelo empregado público
pertencer à esfera das suas específicas atribuições ou competência, bastando-se
com a simples circunstância de a actividade em causa se encontrar numa relação
funcional imediata com o desempenho do respectivo cargo. Assim acontecerá
sempre que a realização do acto subornado caiba no âmbito "fáctico" das suas
possibilidades de intervenção, i.e., dos "poderes de facto"inerentes ao exercício
das correspondentes funções. Quer dizer, não de quaisquer possibilidades
111
fácticas - que também um particular pode possuir -, mas apenas das que, apesar
de o exorbitarem, são propiciadas pelo cumprimento"normal" das suas
atribuições legais.
Posto isto, excluem-se da corrupção passiva as hipóteses em que o agente,
não obstante revista a qualidade de funcionário e, em virtude dela, goze da
capacidade "fáctica" para efectuar a conduta a que se destina a peita, não
pertença ao serviço ou departamento a que está adstrito aquele sector de
actividade social, nem com ele mantenha conexões institucionais directas. Na
medida em que não participa da aludida "relação funcional imediata", aquele
empregado público apresenta-se como "estranho" ao serviço e, portanto, numa
posição equiparável à de um particular, não se enquadrando na órbita do ilícito
acima referenciado. Ao invés, integra uma situação de corrupção passiva, por
exemplo, o pagamento de um suborno ao contínuo de certo departamento
administrativo, como contrapartida de ele haver subtraído determinado processo
que estava para ser decidido pelo seu director. A circunstância de a análise ou a
custódia daquele processo não estarem abrangidas nas suas atribuições não
afecta a "relação funcional imediata" do agente com o acto, circunstância que o
coloca na órbita do tipo legal da corrupção passiva.
De resto, a favor da tese da "relação funcional imediata" e dos "poderes
de facto", assinale-se que, ao menos na corrupção própria, só com base naquele
critério se pode punir o funcionário dito "competente" para a prática da
actividade pretendida com o suborno. Na verdade, a lei nunca confere
competência para a realização de actos injustos ou ilícitos, pelo que, também aí,
a sua efectivação se fica a dever, única e exclusivamente, aos "poderes Tácticos"
decorrentes da "relação funcional imediata" do agente com o cargo. Esta a
doutrina aceita pela jurisprudência no âmbito do CP de 1886 (cf.,a título
exemplificativo, os Acs. do STJ de 4 de Março de 1953,BMJ 36°89ss., e de 15 de
Julho de 1970,BMJ199° 139ss., e MA1A GONÇALVES 1982 515) e que parece de
seguir na esfera do direito vigente. No plano material, a "autonomia intencional
do Estado" resulta ofendida com igual intensidade, quer o acto subornado tenha
sido realizado pelo próprio funcionário "competente", quer provenha de outro
que, possuindo uma relação funcional directa com o serviço, apenas o levou a
cabo na actuação de meros "poderes de facto". Na medida em que estes decorrem
de uma relação funcional do agente, i.e.,do posto que ocupa, o recebimento da
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peita pelo (ou para o) seu exercício constitui, ainda, uma transacção com o seu
cargo e, por isso, uma situação de corrupção passiva.
O texto do art. 372° ss. favorece, aliás, uma interpretação concordante
coma presente perspectiva. Neles, sanciona-se o simples mercadejar com o cargo
- com independência de a actividade a que se destina a gratificação assumir
carácter lícito (art. 372°) ou ilícito (art. 373°). Dado que, conforme se referiu, a
actuação de "poderes fácticos" a troco de suborno integra, ainda, uma
verdadeira transacção com as suas funções, nenhuma dúvida suscita a afirmação
de que tais casos cabem na esfera de previsão do art. 372°ss.Aliás, em
consonância com o acima exposto, só aceitando-se o ponto de vista adoptado se
explica a punição de todas as hipóteses de corrupção própria.”.
Portanto, na síntese do Prof. Costa Andrade32, “Só podem colher esta
qualificação, …, as acções que o funcionário não poderia levar a cabo se não
estivesse investido no seu cargo público. Dito pela positiva, só merecerão a
qualificação as acções que o funcionário só pode praticar precisamente porque é
funcionário. Para além disso, fica toda a pletora das acções privadas do
funcionário, irrelevantes e indiferentes no contexto e para efeito de
preenchimento da incriminação de qualquer forma de corrupção.”33.
32
No parecer junto a estes autos, a fls. 2231.
Importa reter a doutrina e a jurisprudência citadas pelo Prof. Costa Andrade, no referido parecer,
a fls. 2229 a 2231: “…a) Comum às diferentes formas de corrupção é, desde logo, o bem jurídico
típico. Que podemos, com ALMEIDA COSTA, referenciar como a"autonomia intencional do
Estado",a Administração Pública incluída. Noutra direcção, o acto ilícito a praticar pelo
funcionário "tem de consubstanciar o exercício do cargo" (ALMEIDA COSTA). Tem, noutros
termos, de corresponder às competências do agente ou, ao menos, estar dentro dos seus "poderes
de facto".Quanto a esta última exigência típica, não se exige que o acto pertença "à esfera das
suas específicas atribuições ou competência, bastando-se com a simples circunstância de a
actividade em causa se encontrar numa relação funcional imediata com o desempenho do cargo.
Assim acontecerá sempre que a realização do acto subornado caiba no âmbito fáctico das suas
possibilidades de intervenção, i. e., dos poderes de facto inerentes ao exercício das
correspondentes funções"3.Numa ou noutra hipótese, o acto tem de ser um acto de serviço e do
serviço e praticado nesta veste e nesta qualidade.
É por isso, recorda por exemplo HEINE, que não relevam para efeitos de corrupção "as
acções privadas de um funcionário, mesmo que sejam levadas a cabo com violação dos próprios
deveres do cargo"'`. Assim, exemplifica o mesmo autor, não releva para efeitos de corrupção o
facto de um professor do ensino oficial, contra as normas do seu serviço, dar explicações
particulares em sua casa; o mesmo valendo para o agente da polícia criminal que, contra as
33
113
Em conclusão, os actos dos funcionários, para serem relevantes para o
preenchimento dos tipos da corrupção, hão-de caber dentro das suas específicas
competências legais ou dos poderes de facto decorrentes do cargo que
desempenham.
A este entendimento não se opõem as alterações dos art.ºs 373º/2 do CP e
do art.º 17º/2 da Lei 34/87, de 16/07, operadas pela Lei 108/2001, de 28/11, que
vieram consagrar, respectivamente, as seguintes normas: “Na mesma pena incorre
o funcionário que por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou
ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida,
vantagem patrimonial ou não patrimonial de pessoa que perante ele tenha tido,
tenha ou venha a ter qualquer pretensão dependente do exercício das suas
funções públicas.” e “Na mesma pena incorre o titular de cargo político que por
normas e as regras emanadas dos seus superiores, faz, fora das horas de serviço, trabalho de
investigação privada'.Num caso e noutro, precisa HEINE, o funcionário pode incorrer em
ilícitos(vários) de diferente índole: nunca, porém num acto de corrupção passiva para acto lícito
ou ilícito. Porque não está a praticar actos pertinentes ao exercício das suas funções qua
funcionário.
b) É um topos que merece uma menção mais detida e explícita. Logo porquanto, como
RUDOLPHI pertinentemente assinala, ele configura "o conceito central de todos os tipos legais
de corrupção, já que é com ele que se descreve o comportamento do funcionário a que se reporta
a oferta de vantagens'''.Ao que acresce o seu relevo directo na perspectiva do caso que aqui
directamente nos ocupa. O que faremos acolhendo-nos para tanto à lição da mais credenciada
doutrina e da mais prestigiada jurisprudência.
A este propósito pode hoje contar-se com uma estabilizada compreensão das coisas, que conta
com a adesão consensual e pacífica tanto de autores como de tribunais. A começar, de todos os
lados se converge em torno de uma formulação do género: ao exercício do cargo só pertencem as
acções "através das quais o funcionário prossegue a realização das tarefas do cargo que lhe foi
cometido". Numa aproximação mais analítica, autores e tribunais convergem na exigência de
uma"conexão funcional"entre a acção solicitada e o exercício do cargo. O que, por sua vez, se
desdobra em duas exigências autónomas e complementares, cuja verificação cumulativa é
necessária para definir as acções pertinentes ao exercício cio cargo, contrapondo-as e
extremando-as face às acções privadas dos funcionários. Assim, exige-se, em primeiro lugar, que,
pela sua natureza, as acções pertençam ao cumprimento e prossecução do cargo em que o
funcionário foi investido; e, em segundo lugar, que aquelas mesma acções sejam levadas a cabo
na veste de funcionário8.
Numa formulação do tribunal federal - recorrentemente citada na doutrina e na jurisprudência—
precisa o supremo tribunal alemão que a acção terá de "pertencer aos espectro de obrigações
funcionais do funcionário e seja por ele levada a cabo na qualidade de acção do serviço". Na
síntese convergente de HOHMANN, "em primeiro lugar, a acção tem de pertencer à área de
competências fácticas ou potenciais do funcionário ou autoridade … em segundo lugar, ela tem de
ser levada a cabo na sua qualidade de funcionário. Dito noutros termos, tem de tratar-se de uma
acção que, pela sua natureza, só possa ser praticada por causa da assunção do cargo (de
funcionário ou autoridade) e, para além disso, que ela esteja funcionalmente integrada no
espectro de obrigações/competências do titular do serviço público".
c) Por ser assim, não pertencerão ao exercício do cargo nem relevarão como momento
típico para qualquer forma de corrupção - activa ou passiva, própria ou imprópria — as acções
praticadas pelos funcionários que não satisfaçam cumulativamente aquelas duas ordens de
exigências. Mesmo que sejam praticadas no lugar e no tempo do exercício do cargo ou só sejam
possíveis a partir dos dados, informações ou meios que só o exercício do cargo permite alcançar.
Tais circunstâncias não são, na verdade, decisivas para converter uma acção em acção do cargo.
…”.
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si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou
aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial
ou não patrimonial de pessoa que perante ele tenha tido, tenha ou venha a ter
qualquer pretensão dependente do exercício das suas funções.”.
Na
verdade,
estas
normas
não
consagram
verdadeiros
tipos
incriminadores, apresentando-se antes como normas de conteúdo essencialmente
clarificador de normas anteriores34.
34
Nesse sentido, cf. Cláudia Santos, in “A CORRUPÇÃO - [DA LUTA CONTRA O CRIME NA
INTERSECÇÃODE ALGUNS (DISTINTOS) ENTENDIMENTOSDA DOUTRINA, DA
JURISPRUDÊNCIA E DO LEGISLADOR”, Liber Disciplinorum para Jorge Figueiredo Dias, pp.
981 e ss., donde citamos: “…Um dos vectores condicionantes da Lei n.° 108/2001, de 28 de
Novembro, terá sido, assim, o da eficácia, procurando-se combater a corrupção através da
erradicação, na medida do possível, de decisões absolutórias consideradas materialmente
injustas.
O outro vector considerado pelo legislador não nos merecerá aqui mais do que uma
brevíssima nota. Referimo-nos a alguns"compromissos inter-nacionais"a que o Estado português
se vinculara em matéria de luta contra a corrupção.
…
O que se pretende salientar na alteração legislativa é, porém, o primeiro daqueles
vectores e a intenção, que parece manifesta, de esclarecer, sem margem para dúvidas, o âmbito
de incriminação das normas relativas à corrupção, comum sentido próximo ao que já era
defendido, há muito, pela doutrina referida supra.
…
Uma interessante novidade [ainda que só relativa (Nota 39: Na verdade, a solução agora
adoptada tem raízes na tradição jurídico-penal portuguesa de regulamentação da corrupção,
sendo que o Código Penal de 1886 já considerava, no seu artigo 322.° [Aceitação de oferecimento
ou promessa], aplicáveis as molduras penais da corrupção"se o empregado público aceitar por si
ou por outrem oferecimento ou promessa, ou receber dádiva, ou presente de pessoa que perante
ele requeira desembargo ou despacho, ou que tenha negócio ou pretensão dependente do
exercício das suas funções públicas".)] trazida pela Lei n.° 108/2001, de 28 de Novembro, parece
ser o actual n.° 2 do artigo 373.°CP, segundo o qual "na mesma pena [a pena de prisão até 2
anos ou a pena de multa até 240 dias, previstas no n.° 1 do artigo 373.° CP para a corrupção
passiva imprópria] incorre o funcionário que por si, ou por interposta pessoa com o seu
consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja
devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial de pessoa que perante ele tenha tido, tenha ou
venha a ter qualquer pretensão dependente do exercício das suas funções públicas".
A questão para cuja clarificação terá surgido esta norma prende-se coma possibilidade
de considerar como ilícito típico o mero recebimento ou solicitação de uma qualquer vantagem
por parte de um agente público, independentemente da demonstração de que essa vantagem visa a
compensação de uma qualquer conduta, já adoptada ou a adoptar no futuro. Mesmo à luz do
direito anterior, havia já quem defendesse, ainda que a título excepcional, a relevância típica
deste comportamento. Assim, ALMEIDA COSTA (…) afirmava, como regra, a exclusão da
«hipótese de punir, a título de corrupção passiva, as dádivas realizadas, não com o objectivo
imediato de conseguir um acto determinado, mas tão-só com a finalidade de criar um clima de
"permeabilidade"ou de "simpatia" para eventuais diligências que venham a requerer-se no
futuro». Todavia, a título excepcional - como de resto se referiu supra - admitia-se já a
115
Vejamos então se os actos que o Arg. queria que o Assistente praticasse
estão dentro da esfera dos poderes do cargo que este ocupava.
Relembrando, de acordo com a matéria de facto fixada, o que apurou foi
que o Arg. pretendia que o Assistente desistisse da acção popular que havia
interposto e que fizesse uma declaração justificando a alteração da sua posição,
possibilidade de punição «sempre que, à luz dos critérios da experiência comum, a simples dádiva
(...)não se mostre justificável de outro modo assumindo, inequivocamente, o aludido significado
de criar um clima de"permeabilidade"ou"simpatia"para posteriores diligências».
Sendo assim, existindo já doutrina que, perante o direito anterior, considerava esta espécie de
comportamentos abrangidos pelo âmbito de incriminação da norma do artigo 373.° CP, é
legítima a interrogação sobre se o legislador de 2001 terá pretendido ir mais longe, alargando as
margens de punibilidade da corrupção passiva imprópria. Concretizando esta dúvida metódica:
ter-se-á pretendido, doravante, a punição de qualquer agente público que receba um qualquer
"presente",ainda que se demonstre claramente a absoluta inexistência de uma qualquer conexão
com a prática de um qualquer acto? Ter-se-á, através desta norma, interditado em absoluto o
recebimento de qualquer oferta por um agente público, sob pena de sobre ele recaírem as
particularmente gravosas sanções criminais?
Por razões várias, a resposta às questões anteriores terá de ser negativa. O que equivale
a afirmar que o n.° 2 do artigo 373.0 CP não consagra um verdadeiro tipo incriminador,
apresentando-se antes como uma norma sobre a norma anterior, com um conteúdo
essencialmente clarificador. E com um conteúdo que julgamos, no essencial, coincidente com o
que a doutrina referida já considerava, antes da alteração legislativa, passível de enquadramento
na corrupção passiva para acto lícito. Poder-se-ia, todavia, considerar surpreendente uma tal
afirmação, aduzindo o seguinte argumento: se já era assim, como se explica a necessidade de
mudar a lei? A resposta, com base na análise jurisprudencial que antes se esboçou, parece
simples: na prática, entendia-se com alguma frequência que não era assim.
A conclusão de que não se pretendeu incriminar, sem mais, a aceitação de uma oferta ou
a formulação de um pedido pelo funcionário decorre, porém, ainda de outros elementos.
Atendamos, primeiramente, aos literais. Ao exigir que a vantagem provenha de"pessoa que
perante ele [o funcionário] tenha tido, tenha ou venha a ter qualquer pretensão dependente do
exercício das suas funções públicas",o legislador exclui, como não podia deixar de ser, todas as
ofertas que não têm qualquer relação com a actividade profissional do agente público (assim
será, v. g., se uma magistrada recebe, no Tribunal, um ramo de flores que o seu namorado, no Dia
de São Valentim, lhe enviou). Sob uma outra perspectiva, este imperativo de que a vantagem
advenha de pessoa que mantém uma qualquer relação funcional como agente público demonstra
que, ainda aqui, o que se pretende evitar é o mercadejar com o cargo e a negociação de um acto
praticado ou a praticar, ainda que hipotético(…).
Por a punição continuar a não prescindir da demonstração de que o recebimento ou a
solicitação da vantagem não têm uma qualquer outra justificação que não seja o mercadejar com
o cargo, subsistirá inevitavelmente na praxis judiciária um espaço de alguma indeterminação.
Esta terá de continuara ser colmatada pelo recurso a critérios(42)como o do valor da coisa, as
circunstâncias em que a vantagem foi recebida e a situação e características de quem a ofereceu.
A estes critérios deverão juntar-se outras ideias orientadoras, como a de temporalidade
abrangendo-se no n.° 2 do artigo 373.º CP, v.g.,casos em que o agente público recebe uma
vantagem de alguém que só no futuro virá a ter perante ele uma pretensão, devem considerar-se
atípicas as situações em que aquela pretensão só vem a surgir decorrido um lapso de tempo de tal
modo longo que era imprevisível, no momento da solicitação ou oferta, que tal sucedesse.
Por força da importância prática de que manifestamente se reveste, justifica-se uma
referência adicional ao critério do valor. Razões de maior determinabilidade da norma [idênticas
às que estiveram na génese do modelo da dupla indexação adoptado no artigo 202.°
CP(…)]poderiam ter levado o legislador a indicar uma "fasquia"para a relevância jurídico-penal
da vantagem recebida ou solicitada. Esta teria sido, porém, uma opção -a nosso ver desadequada. E a justificação é só uma, na medida em que tal solução poderia conduzir a
injustiças materiais (quer decorrentes de absolvições, quer decorrentes de condenações), porque digamo-lo da forma mais crua - aquilo que é suficiente para corromper um funcionário que
recebe pouco mais do que o salário mínimo é certamente diverso daquilo que é necessário para
corromper um agente público de elevado estatuto sócio-económico(…). …”.
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Processo n.º 263/06.8JFLSB.L1
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sabendo que essa declaração condicionaria publicamente as suas futuras tomadas
de posição, quer como cidadão quer como vereador.
Para nos ajudar no raciocino e na exposição, analisemos alguns exemplos:
1º) Um juiz recebe uma quantia em dinheiro para decidir em determinado
sentido, num processo que lhe foi distribuído.
2º) Um juiz recebe uma quantia em dinheiro para esconder por 30 dias um
processo, que se encontra distribuído a um colega, com quem partilha o mesmo
gabinete, uma vez que, se não houvesse decisão no prazo de uma semana, o
procedimento criminal respectivo prescreveria.
3º) Um juiz recebe uma quantia em dinheiro para ajudar um advogado a
fazer uma motivação de recurso, num processo em que não tem qualquer
intervenção, como juiz, e para defender publicamente, na televisão, uma
determinada solução jurídica para o caso.
4º) Um juiz recebe uma quantia em dinheiro para ir prestar falso
testemunho no julgamento de um processo em que não tem qualquer intervenção
como juiz.
Atenta a exposição feita sobre o que deve considerar-se a esfera dos
poderes do cargo do funcionário, sem dúvida que, no 1º exemplo estamos perante
um caso de corrupção: o acto pretendido insere-se na competência funcional do
juiz.
Também no 2º exemplo, não temos dúvidas de que o acto pretendido se
insere nos poderes fácticos que o juiz tem, porque partilha o gabinete com o
titular do processo e porque partilha esse gabinete, precisamente, por ser juiz.
Já no 3º exemplo, o juiz comete uma série de ilícitos disciplinares e, por
exprimir publicamente determinada opinião jurídica, fica condicionado quando no
futuro tiver que decidir questão similar, mas não existe corrupção, porque os actos
pretendidos não cabem dentro da esfera dos poderes do seu cargo: ele não tem
qualquer poder de decisão no referido processo.
Por último, também no 4º exemplo teremos forçosamente que concluir
que, cometendo, embora, o juiz, pelo menos, um ilícito disciplinar e um ilícito
117
criminal (o falso testemunho), não existe corrupção, porque os actos pretendidos
não cabem dentro da esfera dos poderes do seu cargo: ele não tem qualquer poder
de decisão no referido processo.
Não se apurou o concreto conteúdo funcional do cargo de vereador que o
Assistente desempenhava, mas, uma vez que o que estava em causa era um
negócio que havia sido feito pela Câmara Municipal de Lisboa em momento
anterior, podemos concluir que tais concretos negócios não estavam dentro da
esfera dos poderes do seu cargo.
A declaração que o Arg. pretendia que o Assistente fizesse, também não
estava dentro dessa esfera, pela mesma razão.
Quanto ao condicionamento que provocaria nas futuras tomadas de
posição do Assistente, diremos que, como para o 3º exemplo supra referido, que
também esse acto não faz parte da esfera dos seus poderes.
Certamente que os actos pretendidos são susceptíveis de forte crítica moral
e, provavelmente, de punição disciplinar, e, portanto ilícitos35, mas isso, por si só,
não faz com que os mesmos passem a caber nas específicas competências legais
ou poderes fácticos do cargo do funcionário ou titular do cargo político.
Não se pode fazer corresponder a ilicitude do acto pretendido com a sua
pertinência a essa esfera: o acto pode ser ilícito e não caber nesses competência ou
poderes fácticos. É, justamente, o que se passa no 4º exemplo supra referido.
Temos, pois, que concluir que os actos que o Arg. queria que o Assistente
praticasse, para o que lhe fez uma oferta de 200 000,00€, não integravam a esfera
das competências legais nem das poderes de facto do cargo do Assistente, pelo
que não preenchem a factualidade típica do crime de corrupção activa de titular de
cargo político.
*
35
Mas, como afirma o Prof. Figueiredo Dias, in “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra
Editora, 2001, pp. 42 e 43, a propósito da função de tutela subsidiária do direito penal: “… A
controvérsia acabada de referir conduziu à introdução, na temática da função do direito penal
ligada ao conceito material de crime, de uma perspectiva que, com particular razão, se pode
qualificar de teleológico-funcional e racional. De teleológico-funcional, na medida em que se
reconheceu definitivamente que o conceito material de crime não podia ser deduzido das ideias
vigentes a se em qualquer ordem extra-jurídica e extra-penal, mas tinha de ser encontrado no
horizonte de compreensão imposto ou permitido pela própria função que ao direito penal se
adscrevesse no sistema jurídico-social. De racional, na medida em que o conceito material de
crime vem assim a resultar da função do direito penal de tutela subsidiária (ou de "ultima ratio ")
de bens jurídicos (…) dotados de dignidade penal (de "bens jurídico-penais"); ou, o que é dizer o
mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revela digna de pena. Bens jurídicos nos quais afinal se
concretiza jurídico-penalmente, em último termo, a noção sociológica fluida da danosidade ou da
ofensividade sociais supra aludida. …”.
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Processo n.º 263/06.8JFLSB.L1
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A conclusão a que acabamos de chegar, prejudica o conhecimento das
restantes questões suscitadas porque leva, necessariamente à absolvição do Arg..
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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos parcialmente
procedente o recurso do Arg. e improcedentes os restantes, pelo que
absolvemos o Arg. do crime pelo qual vinha condenado.
Vai o Assistente condenado nas custas do recurso respectivo, com taxa
de justiça que se fixa no mínimo legal.
*
Notifique.
D.N..
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Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).
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Lisboa, …/…/2010
______________________
(Abrunhosa de Carvalho)
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(Dr. Maria do Carmo Ferreira)
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