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Transcrição

RSTJ 221.indd - Superior Tribunal de Justiça
Sexta Turma
HABEAS CORPUS N. 92.194-CE (2007/0237686-6)
Relatora: Ministra Maria Thereza de Assis Moura
Impetrante: Paulo Napoleão Gonçalves Quezado e outro
Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Ceará
Paciente: Frederico Antônio Araújo Bezerra
EMENTA
Habeas corpus. Penal e Processual Penal. Exploração de prestígio.
1. Atipicidade. Não ocorrência. 2. Competência. Justiça Estadual.
Interesse da União. Inexistência. Ordem denegada.
1. Em se tratando do crime de exploração de prestígio, não é
necessário que o funcionário exista, podendo ser uma figura puramente
imaginária.
2. Constatada, no caso, a inexistência do servidor federal que
supostamente seria influenciado pelo paciente, a competência é da
Justiça Estadual.
3. Ordem denegada.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça: “A
Turma, por unanimidade, denegou a ordem de habeas corpus, nos termos do voto
da Sra. Ministra Relatora.” Os Srs. Ministros Og Fernandes, Celso Limongi
(Desembargador convocado do TJ-SP) e Haroldo Rodrigues (Desembargador
convocado do TJ-CE) votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura.
Brasília (DF), 18 de agosto de 2010 (data do julgamento).
Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Relatora
DJe 06.09.2010
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura: Cuida-se de habeas corpus,
com pedido liminar, impetrado em favor de Frederico Antônio Araújo Bezerra,
apontando como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará
(HC n. 2007.0010.4566-9/0)
Consta dos autos que o paciente foi denunciado como incurso no art.
357, parágrafo único, do Código Penal, por supostamente ter exigido de um
cliente valores para manipular processo em curso na 11ª Vara da Justiça Federal
do Ceará, sob a alegação de que influenciaria um servidor na referida unidade
judiciária.
O juízo de primeiro grau recebeu a denúncia e determinou a citação do
paciente para interrogatório e a quebra de seu sigilo bancário.
A defesa, irresignada, ajuizou prévio writ, perante o Tribunal de origem,
mas não obteve êxito. O tribunal a quo, ao denegar a ordem, ementou (fl. 20):
Habeas corpus. Penal e Processo Penal. Crime de exploração de prestígio.
Incompetência absoluta da Justiça Estadual para o processo e julgamento da
causa penal. Não configuração. Inaplicabilidade ao caso do artigo 109, IV, da
CF/1988. Negativa de autoria. Sede inviável para apreciação desta alegação.
1. Para que se aplique o artigo 109, IV, da CF/1988, estabelecendo-se, por
ilação, a competência da Justiça Federal para o processamento de causa penal é
necessária a ocorrência de lesão direta e específica a bens, serviços ou interesse
da União, de suas entidades autárquicas ou de empresa pública, fato que não
ocorreu nos presentes autos, tendo havido tão somente para a perpetração do
delito menção de falso prestígio junto a servidor público federal que sequer
existia.
2. Não se afigura possível a análise da alegação de negativa de autoria do
paciente, uma vez que ensejaria, necessariamente, ampla dilação probatória, o
que se afigura inviável nesta sede.
3. Ordem denegada.
Alegam os impetrantes a ausência de justa causa para a ação penal, tendo
em vista a atipicidade da conduta narrada na denúncia, já que o servidor federal
a ser influenciado sequer existia.
Sustentam que, caso configurada a justa causa, a competência para
processar e julgar a citada ação penal é da Justiça Federal.
Pretendem, liminarmente, seja sustado o andamento da Ação Penal n.
2007.0004.4116-1, em curso na 2ª Vara de Crateús-CE, até o julgamento final
do presente writ.
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Jurisprudência da SEXTA TURMA
No mérito, requerem o trancamento da ação penal por ausência de justa
causa ou o reconhecimento da incompetência da Justiça Estadual para processar
e julgar a referida ação penal, com a conseqüente anulação de todos os atos
praticados a partir da denúncia.
O pleito liminar foi indeferido às fls. 66-67.
As informações prestadas pela autoridade apontada como coatora
encontram-se às fls. 73-88.
O Ministério Público Federal, às fls. 90-94, manifestou-se pela denegação
da ordem.
Em resposta ao despacho de fl. 96, o Tribunal de origem prestou
informações complementares às fls. 119-156, destacando-se as seguintes:
a) ainda não foi proferida sentença na ação penal em apreço;
b) o paciente encontra-se em liberdade.
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura (Relatora): As questões a
serem enfrentadas no presente habeas corpus consistem na atipicidade da conduta
descrita na denúncia e na incompetência da Justiça Estadual para processar e
julgar a ação penal em apreço.
Conforme relatado, o paciente foi denunciado como incurso no art. 357,
parágrafo único, do Código Penal, por supostamente, no exercício da advocacia,
ter exigido de um cliente valores para manipular processo em curso na 11ª Vara
da Justiça Federal do Ceará, sob a alegação de que influenciaria um servidor na
referida unidade judiciária.
Segundo a impetração, a atipicidade da conduta residiria na inexistência do
referido servidor federal.
Razão não assiste ao impetrante.
Segundo doutrina de escol, “não se exige que o funcionário seja determinado
nem que seja competente para o ato em que tenha interesse o lesado, podendo
também ser uma figura puramente imaginária” (Heleno Cláudio Fragoso. Lições
de Direito Penal, parte especial, vol. II, 6. ed., atualizada por Fernando Fragoso.
Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1988, p. 488).
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
No mesmo sentido, Magalhães Noronha, em Direito Penal, parte especial,
11. ed., Ed. Saraiva, 1979, p. 326, quando afirma que “não se desnatura o delito
se o funcionário pseudocorrupto não existe ou é imaginário”.
A jurisprudência segue no mesmo trilho:
Penal. Recurso especial. Exploração de prestígio. Configuração.
1. O crime de exploração de prestígio exige, à sua configuração, apenas a
obtenção de vantagem, ou promessa desta, junto a funcionário público no
exercício da função. Dispensável a identificação expressa do servidor.
2. Recurso Especial provido. (REsp n. 76.211-PE, DJ de 06.09.1999).
Assim, tem-se que a impetração não prospera em relação à primeira
insurgência.
No que se refere à alegada incompetência da Justiça Comum, melhor sorte
não assiste aos impetrantes.
Como cediço, a fixação da competência da Justiça Federal para o
processamento e julgamento da ação penal pressupõe a ocorrência de lesão
direta e específica a bens, serviços ou interesse da União, de suas entidades
autárquicas ou de empresa pública.
Nesse sentido, o CC n. 37.073-PR, de minha relatoria, DJ de 26.03.2007,
assim sintetizado:
Conflito negativo de competência. Processual Penal. Estelionato. Prejuízo ao
patrimônio alheio. Ausência de detrimento de bens, serviços ou interesses da
União e de suas entidades. Competência da Justiça Estadual.
1. Para delinear-se a competência da Justiça Federal o interesse requerido no
preceito constitucional, art. 109, IV, tem de ser de tal sorte que resulte em prejuízo
potencial à União ou a seus entes, não cabendo a afetação por via intermediária.
2. In casu, inexistindo prejuízo ao patrimônio público, já que os agentes, sem
qualquer vinculação com a Administração, buscaram tão-somente conseguir
vantagem indevida de particular, não caracteriza hipótese de competência da
Justiça Federal, pois incogitável o detrimento de bens, serviços ou interesses da
União e de suas entidades.
2. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da Comarca
de Rio Negro, PR, suscitado.
Repise-se: o funcionário público que supostamente seria influenciado
sequer existe. Transcrevo, por oportuno, o seguinte trecho do acórdão
impugnado:
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Jurisprudência da SEXTA TURMA
Segundo a denúncia o suposto delito teria sido praticado em detrimento dos
interesses de Francisco das Chagas Nunes, à época cliente do ora paciente.
Na exordial delatória, o Ministério Público Estadual afirma que o ora paciente
ludibriou a vítima, aplicando-lhe um golpe para dela subtrair a quantia de R$
7.000,00 (sete mil reais), sob a alegação de que conseguiria a revogação de uma
prisão preventiva contra si decretada, através de um servidor que seria assessor
do Juiz Federal atuante na 11ª Vara Federal do Estado do Ceará.
Segundo o Parquet, restou apurado que referido servidor, o qual supostamente
seria corrompido, sequer existe, não havendo nenhum servidor do sexo masculino
que seja magistrado titular da 11ª Vara Federal do Estado do Ceará.
Não se vislumbra, portanto, o interesse da União na apuração dos fatos
narrados na inicial.
O comportamento irrogado, penso, não afeta a esfera da União, dada a misen-scène supostamente encetada pelo paciente.
Assinalou o Ministério Público Federal que “o que se protege no delito
mencionado é a dignidade e o prestígio da justiça, que não foram ofendidos,
pois a conduta praticada não foi apta a tanto” (fls. 91-92).
Assim, percebe-se que as irresignações não se amparam na doutrina e na
jurisprudência desta Corte.
Ante o exposto, denego a ordem.
É como voto.
HABEAS CORPUS N. 96.601-MS (2007/0296925-4)
Relator: Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do
TJ-CE)
Impetrante: Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul
Advogado: Elizabeth Fátima Costa - Defensora Pública
Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul
Paciente: Ademir Ciriaco Duarte (preso)
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
EMENTA
Habeas corpus. Violência doméstica. Lesões corporais leves. Lei
Maria da Penha. Ação penal pública condicionada. Representação.
Prescindibilidade de rigor formal. Audiência prevista no artigo 16 da
Lei n. 11.340/2006. Obrigatoriedade apenas no caso de manifestação
de interesse da vítima em se retratar.
1. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no
julgamento do REsp n. 1.097.042-DF, ocorrido em 24 de fevereiro
do corrente ano, firmou a compreensão de que, para propositura da
ação penal pelo Ministério Público, é necessária a representação da
vítima de violência doméstica nos casos de lesões corporais leves, pois
se cuida de ação penal pública condicionada.
2. A representação não exige qualquer formalidade específica,
sendo suficiente a simples manifestação da vítima de que deseja ver
apurado o fato delitivo, ainda que concretizada perante a autoridade
policial.
3. A obrigatoriedade da audiência em Juízo, prevista no artigo
16 da Lei n. 11.340/2006, dá-se tão somente no caso de prévia
manifestação expressa ou tácita da ofendida que evidencie a intenção
de se retratar antes do recebimento da denúncia.
4. Habeas corpus denegado.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Sexta
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas a seguir, por maioria, denegar a ordem de habeas corpus, nos termos
do voto do Sr. Ministro Relator. Vencida a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis
Moura.
Os Srs. Ministros Og Fernandes e Celso Limongi (Desembargador
convocado do TJ-SP) votaram com o Sr. Ministro Relator.
Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura.
Brasília (DF), 16 de setembro de 2010 (data do julgamento).
Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-CE),
Relator
DJe 22.11.2010
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Jurisprudência da SEXTA TURMA
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJCE): Cuida-se de habeas corpus impetrado em favor de Ademir Ciriaco Duarte,
denunciado pela suposta prática de crime de lesão corporal de natureza leve no
âmbito familiar, previsto no artigo 129, § 9º, do Código Penal, apontada como
autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul.
Busca a impetração o “trancamento da ação penal por falta de condição
de procedibilidade, visto que o crime de lesão corporal leve é de ação pública
condicionada, ou seja, a denúncia só pode ser oferecida e recebida, com a
representação das partes, e em audiência judicial especialmente designada para
esse fim, à luz da norma consubstanciada no artigo 16 da Lei n. 11.340/2006”
(fl. 05).
A liminar foi indeferida pelo Ministro Arnaldo Esteves Lima, antigo
relator, à fl. 78.
Dispensada as informações, a douta Subprocuradoria-Geral da República,
ao manifestar-se (fls. 81-84), opinou pela denegação da ordem.
Posteriormente, os autos foram atribuídos à minha Relatoria (fl. 102).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJCE) (Relator): Inicialmente, cabe registrar que a Terceira Seção do Superior
Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n. 1.097.042-DF,
ocorrido em 24 de fevereiro do corrente ano, firmou a compreensão de que, para
propositura da ação penal pelo Ministério Público, é necessária a representação
da vítima de violência doméstica nos casos de lesões corporais leves, pois se
cuida de ação pública condicionada. O julgado restou assim ementado:
Recurso especial repetitivo representativo da controvérsia. Processo Penal. Lei
Maria da Penha. Crime de lesão corporal leve. Ação penal pública condicionada à
representação da vítima. Irresignação improvida.
1. A ação penal nos crimes de lesão corporal leve cometidos em detrimento da
mulher, no âmbito doméstico e familiar, é pública condicionada à representação da
vítima.
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2. O disposto no art. 41 da Lei n. 11.340/2006, que veda a aplicação da Lei n.
9.099/1995, restringe-se à exclusão do procedimento sumaríssimo e das medidas
despenalizadoras.
3. Nos termos do art. 16 da Lei Maria da Penha, a retratação da ofendida
somente poderá ser realizada perante o magistrado, o qual terá condições de
aferir a real espontaneidade da manifestação apresentada.
4. Recurso especial improvido.
(REsp n. 1.097.042-DF, Relator para Acórdão o Ministro Jorge Mussi, DJe de
21.05.2010).
Entendo, contudo, que tal representação não depende de qualquer
formalidade específica, sendo suficiente a simples manifestação da vítima de que
deseja ver apurado o fato delitivo, ainda que concretizada perante a autoridade
policial.
Nesse sentido:
A - Habeas corpus. Lei Maria da Penha. Crime de lesão corporal leve. Alegação
de ausência de representação. Tese de falta de condição de procedibilidade.
Não ocorrência. Inequívoca manifestação de vontade da vítima. Oferecimento
de notitia criminis perante a autoridade policial. Validade como exercício do
direito de representação. Inexigibilidade de rigores formais. Precedentes. Pleito
de concessão do benefício do sursis processual. Impossibilidade. Não-incidência
da Lei n. 9.099/1995.
1. A representação, condição de procedibilidade exigida nos crimes de ação
penal pública condicionada, prescinde de rigores formais, bastando a inequívoca
manifestação de vontade da vítima ou de seu representante legal no sentido de que
se promova a responsabilidade penal do agente, como evidenciado, in casu, com a
notitia criminis levada à autoridade policial, materializada no boletim de ocorrência.
2. Por força do disposto no art. 41 da Lei n. 11.340/2006, resta inaplicável, em
toda sua extensão, a Lei n. 9.099/1995.
3. Ordem denegada.
(HC n. 130.000-SP, Relatora a Ministra Laurita Vaz, DJe de 08.09.2009)
B - Penal. Processual Penal. Habeas corpus. Art. 214, c.c. 224, alínea a, do
Código Penal. Ação penal pública condicionada. Representação. Desnecessidade
de rigor formal. Crime hediondo. Progressão de regime. Possibilidade.
Inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei n. 8.072/1990 declarada pelo STF.
Requisitos. Necessidade de apreciação prévia pelo juízo da execução. Agravante
da reincidência.
I - Em se tratando de crime de ação penal pública condicionada, não se exige rigor
formal na representação do ofendido ou de seu representante legal, bastando a sua
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Jurisprudência da SEXTA TURMA
manifestação de vontade para que se promova a responsabilização do autor do
delito.
II - O Pretório Excelso, nos termos da decisão Plenária proferida por ocasião do
julgamento do HC n. 82.959-SP, concluiu que o § 1º do art. 2º da Lei n. 8.072/1990
é inconstitucional.
III - Assim, o condenado por crime hediondo ou a ele equiparado pode obter
o direito à progressão de regime prisional, desde que preenchidos os demais
requisitos.
IV - Decorridos mais de cinco anos da extinção da pena da condenação anterior
e a prática do novo delito, deve ser afastada a agravante da reincidência (art. 64,
inciso I, do CP).
Ordem parcialmente concedida.
(HC n. 86.232-SP, Relator o Ministro Felix Fischer, DJU de 05.11.2007)
C - Recurso especial. Lesão corporal. Representação. Registro de ocorrência
perante a autoridade policial. Validade. Conhecimento e provimento do apelo.
O Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que o simples registro da
ocorrência perante a autoridade policial equivale a representação para fins de
instauração da instância penal.
Recurso conhecido e provido.
(REsp n. 541.807-SC, Relator o Ministro José Arnaldo da Fonseca, DJU de
09.12.2003)
No caso, disse o Tribunal de Justiça:
Quanto à tese de ausência de representação, consoante sobressai dos autos, às
fls. 11, 12 e 13, consta, respectivamente, Boletim de Ocorrência, laudo referente às
lesões corporais sofridas pela vítima e Termo de Declaração desta, demonstrando,
com tal procedimento, a inquestionável vontade de ver seu agressor processado.
A intenção da vítima para que o delito fosse apurado já foi demonstrada, e
devem ser consideradas válidas, para tanto, as declarações firmadas nesse sentido
perante a autoridade policial.
Além disso, é cediço que a representação, como condição de procedibilidade,
prescinde de rigor formal, e basta a demonstração inequívoca da vontade
do ofendido, de que sejam tomadas providências em relação ao fato e à
responsabilização do autor, sendo, portanto, aceitável formulação perante a
autoridade policial, ainda que essa se dê em forma de Boletim de Ocorrência e
Termo de Declaração.
(...)
Assim, entendo que a vítima, ao procurar a Delegacia de Polícia Civil e registrar
Boletim de Ocorrência, prestar Declarações e se submeter a exame de corpo de
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
delito, demonstra de maneira inequívoca a vontade de representar contra seu
agressor. (fls. 72-73)
Assim, conforme visto no acórdão atacado, restou demonstrada a
inequívoca intenção da vítima no sentido de que se promova a responsabilidade
penal do ofensor, notadamente pelo registro do Boletim de Ocorrência na
Delegacia de Polícia, bem como por ter se submetido a exame de corpo de
delito a fim de comprovar a materialidade do suposto crime, ausente, portanto, o
alegado constrangimento ilegal nesse ponto.
De outro lado, quanto à tese de nulidade do procedimento ante a ausência
de designação da audiência prevista no artigo 16 da Lei n. 11.340/2006, também
não assiste razão à impetrante.
Veja-se o teor do referido artigo:
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida
de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz,
em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento
da denúncia e ouvido o Ministério Público.
Com efeito, extrai-se desse dispositivo que a obrigatoriedade da audiência
em Juízo se dá tão somente se houver prévia manifestação expressa ou tácita da
vítima que evidencie a intenção de se retratar antes do recebimento da denúncia,
o que não se verificou no caso dos autos.
Em outras palavras, não é necessário que o Juiz de primeiro grau designe
audiência antes de receber a denúncia em todos os casos de ação penal pública
condicionada para que a vítima ratifique ou renuncie à representação.
A razão desta audiência é justamente para que o magistrado possa analisar
acerca da real intenção da vítima em se retratar da representação, ou seja, para
garantir a livre e espontânea manifestação da ofendida.
Ante o exposto, em consonância com o parecer do douto Ministério
Público Federal, denego o habeas corpus.
É como voto.
VOTO
O Sr. Ministro Og Fernandes: Sra. Ministra Presidente, a condição para a
realização dessa audiência – pelo que se depreende do art. 16 – é garantir que,
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Jurisprudência da SEXTA TURMA
feita a representação, o arrependimento que se produza em seguida, faça-se de
forma a que o juiz perceba sinceridade e ausência de coação.
Se feita a representação, em nenhum instante houve um gesto de
arrependimento no sentido de movimentar a máquina estatal para processar o
eventual causador da ofensa, essa audiência é despicienda.
De modo que peço vênia a Sra. Ministra Maria Thereza para acompanhar
o voto do Sr. Ministro Relator, denegando a ordem de habeas corpus.
HABEAS CORPUS N. 101.570-RJ (2008/0050242-7)
Relatora: Ministra Maria Thereza de Assis Moura
Impetrante: José Carlos Dias e outro
Impetrado: Tribunal Regional Federal da 2ª Região
Paciente: Ricardo Sérgio de Oliveira
EMENTA
Processo Penal. Habeas corpus. Gestão temerária. Falta de justa
causa. Atipicidade. (1) Ação penal. Vários investigados. Um deles, o
artífice do indigitado plano, possuidor de prerrogativa de foro, sobre
cuja específica conduta houve manifestação do PGR pela atipicidade.
Impossibilidade lógica de prosseguimento da ação em relação aos
demais. Princípio da indivisibilidade. (2) Crime doloso. Descrição
de fato culposo. Atipicidade. (3) Ordem concedida. Outras alegações
prejudicadas.
1. A manifestação da Procuradoria Geral da República, destacando
a atipicidade da conduta daquele que seria considerado o principal
artífice da operação financeira em foco, inviabiliza, logicamente, a
responsabilização daqueles que seriam apenas partícipes. Quando
o Parquet se pronuncia em relação a um, ou alguns dos corréus,
destacando a atipicidade do fato, tal manifestação, de caráter objetivo,
estende-se aos demais, pelo princípio da indivisibilidade da ação penal.
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2. A denúncia que emprega os termos imprudência e negligência,
descrevendo, pois, comportamento culposo, apesar da imputação de
crime punível apenas a título de dolo, conduz ao reconhecimento da
atipicidade.
3. Concedida a ordem em razão de dada alegação, o exame das
demais resta prejudicado.
4. Sendo o motivo da concessão do writ de caráter objetivo atipicidade do fato - devem seus efeitos ser estendidos aos demais
corréus.
5. Ordem concedida para trancar a Ação Penal n.
2002.5101.501869-1, da 3ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária
do Rio de Janeiro, estendido o trancamento, nos moldes do art. 580 do
CPP, aos demais corréus.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de
Justiça: “Prosseguindo no julgamento após voto-vista do Sr. Ministro Og
Fernandes concedendo a ordem de habeas corpus, com extensão aos corréus, e
os votos dos Srs. Ministros Celso Limongi (Desembargador convocado do TJSP) e Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-CE) no mesmo
sentido, a Turma, por unanimidade, concedeu a ordem de habeas corpus, com
extensão aos demais corréus, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.” Os
Srs. Ministros Og Fernandes, Celso Limongi (Desembargador convocado do
TJ-SP) e Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-CE) votaram
com a Sra. Ministra Relatora.
Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura.
Brasília (DF), 21 de setembro de 2010 (data do julgamento).
Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Relatora
DJe 11.10.2010
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura: Trata-se de habeas corpus,
substitutivo de recurso ordinário, impetrado contra acórdão da Primeira Turma
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Jurisprudência da SEXTA TURMA
do Tribunal Regional Federal da 2ª Região que, denegando anterior writ em
favor de Ricardo Sérgio de Oliveira, manteve o regular processamento da Ação
Penal n. 2002.51.01.501869-1, em trâmite perante a 3ª Vara Federal Criminal
da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, cuja denúncia o traz como incurso nas
sanções do art. 4º, parágrafo único, da Lei n. 7.492/1986, juntamente com mais
onze co-réus.
Aduzem os impetrantes que o paciente foi denunciado pela prática do
crime de gestão temerária de instituição financeira, tendo em vista que teve
participação, juntamente com os demais co-réus, na qualidade de representantes
do Banco do Brasil S.A., na concessão de carta de fiança no valor de R$
874.200.000,00 (oitocentos e setenta e quatro milhões e duzentos mil reais)
da referida instituição bancária em favor da empresa Solpart Participações S.A.,
em 28.07.1998, para fins de participação no leilão de privatização da estatal
Telecomunicações Brasileiras S.A. - Telebrás, ocorrido em 29.07.1998.
Segundo a denúncia, a suposta conduta delituosa atribuída ao paciente
residiria na irregular concessão da referida carta de fiança, por falta de
observância de critérios fixados pelo Banco Central do Brasil - Bacen, a qual
teria colocado em risco tanto o patrimônio do Banco do Brasil S.A., como o
próprio Sistema Financeiro Nacional globalmente, configurando gerenciamento
temerário da referida instituição, tipificado no art. 4º, parágrafo único, da Lei n.
7.492/1986.
Em apertada síntese, a alegada irregularidade se verificou no processo de
concessão da carta de fiança à empresa Solpart Participações S.A., eis que esta
apresentava capital social de R$ 1.000,00 (mil reais), considerado incompatível
com a soma garantida pelo Banco do Brasil S.A. para sua participação no leilão
de privatização da Telebrás. Somado a este fato, a referida empresa apresentou
como garantia apenas o aval de outra empresa, denominada Techold Participações
S.A., cujo capital social alcançava o montante de R$ 20.000,00 (vinte mil
reais), igualmente inapto à satisfação do crédito do Banco do Brasil S.A, caso a
instituição tivesse que honrar a fiança prestada.
A denúncia aponta, ainda, displicência por parte dos denunciados no
procedimento de concessão da referida carta de fiança, tendo em vista que todo
seu trâmite se deu no prazo de vinte e quatro horas, tempo insuficiente para a
análise das “questões necessárias com o grau de atenção e seriedade devidos.” (fl.
522)
Alegam os impetrantes que não existiu qualquer irregularidade no
procedimento de concessão da carta de fiança à referida empresa, tendo em vista
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que esta apresentava-se como um consórcio, ou uma Sociedade de Propósito
Específico, constituída apenas para a participação no leilão de privatização da
Telebrás, da qual faziam parte, dentre outras empresas de grande porte, a Previ
- Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil - e a Sistel, fundo
de pensão dos funcionários do Sistema Telebrás, os quais possuíam expressivo
volume de recursos aplicados no Banco do Brasil S.A.
Sustentam, ainda, que a operação, ao final, mostrou-se exitosa e lucrativa,
tendo em vista que neste curto espaço de tempo o Banco do Brasil S.A. auferiu
lucro de R$ 218.575,80 (duzentos e dezoito mil, quinhentos e setenta e cinco
reais e oitenta centavos), a título de comissão remuneratória previamente
estipulada, circunstância que foi reconhecida pelo Tribunal de Contas da União
ao julgar tal operação, que considerou aceitável o risco assumido pelo Banco do
Brasil S.A, inerente à sua atividade empresarial. E, com base na regularidade
da operação reconhecida pelo Tribunal de Contas da União, que absolveu os
denunciados na via administrativa, alegam que a ação penal acabaria prejudicada,
por falta de justa causa.
Defendem, também, que o fato narrado na denúncia pelo Ministério
Público não constitui crime, o que ensejaria a declaração de inépcia da denúncia,
nos moldes do disposto no art. 43, I, do Código de Processo Penal, tendo
em vista que a carta de fiança foi concedida à empresa Solpart Participações
S.A. com base na solidez financeira dos fundos de pensão que a integravam,
que asseguravam ao Banco do Brasil S.A. a lisura na atuação do consórcio no
leilão da estatal, os quais, por si sós, tinham capacidade de honrar eventual
compromisso assumido perante a União, caso fossem detentores da melhor
oferta.
Sustentam que a prática de um ato isolado, como foi a operação realizada
para a concessão da carta de fiança à empresa Solpart Participações S.A., não pode
ser considerado como gestão temerária de instituição financeira, cujo conceito
seria bem mais amplo, vinculado à uma continuidade temporal, argumentando,
ainda, que a referida operação não trouxe qualquer prejuízo ao Banco do Brasil
S.A., tampouco ao Sistema Financeiro Nacional.
O Tribunal de origem, por ocasião do julgamento do prévio writ impetrado
em favor do paciente, assentou:
4. Os impetrantes sustentam a presença de constrangimento ilegal devido
ao processo penal instaurado contra o Paciente que, segundo alegam, teria se
baseado em denúncia inepta por falta de descrição dos requisitos e elementos
796
Jurisprudência da SEXTA TURMA
previstos no art. 41, do Código de Processo Penal, não havendo justa causa para
a deflagração e desenvolvimento da ação penal (art. 43, do mesmo diploma
processual penal).
5. Assim dispõe o art. 4º, caput, e seu parágrafo único da Lei n. 7.492/1986:
(...)
6. Como se vê, o tipo, ao conceituar a infração, é extremamente amplo e
genérico, dando margem a interpretações extremamente subjetivas. Manoel
Pedro Pimentel, após tecer ásperas críticas ao dispositivo legal em apreço, traça
parâmetros para interpretação do que seja gestão temerária fraudulenta:
(...)
7. Essa é, a meu ver, a única interpretação possível para o artigo, e à luz da
qual cabe examinar a conduta do Paciente, que, inclusive, se assemelha àquela
atribuída aos Pacientes de que tratava o Habeas Corpus n. 2007.02.01.002320-5
(DJ 19.06.2007 - trânsito em julgado: 1º.08.2007), de minha relatoria, originário
da mesma ação penal e impetrado pelo Banco do Brasil em favor de ex-diretores.
Esta 1ª Turma, naqueles autos, denegou, à unanimidade, o habeas corpus, cujos
fundamentos a seguir transcritos adoto como razões de decidir:
(...)
8. A conclusão que se impõe é que, ao menos em tese, a operação, de cuja
aprovação o Paciente participou, foi realizada com assunção de riscos que
extrapolam os limites da prudência que se espera do administrador de uma
instituição financeira.
9. Não procede a alegação de que, para o fim de configuração do crime de
gestão temerária, seria necessária a presença de várias operações financeiras,
e não apenas uma única concessão de carta-fiança. O crime descrito no art.
4º, parágrafo único, da Lei n. 7.492/1986, é classificado como crime habitual
impróprio, ou acidentalmente habitual, em que apenas uma ação pode ter
relevância para a configuração do tipo penal, ainda que a reiteração da mesma
prática não enseje a consideração de que haveria pluralidade de crimes.
10. Apesar de alegar não possuir atribuição estatutária para a gestão das
operações ora incriminadas, teve sua ligação com os fatos atestada, pelo fato
de ter participado de reunião da diretoria executiva, e votado, na condição de
diretor, à concessão de fiança bancária de alto risco, previsivelmente lesiva aos
interesses da instituição financeira.
(...)
13. Há forte indício da materialidade delitiva, bem como de ser seu co-autor o
ora Paciente, o quanto basta para a formação do juízo de deliberação, suficiente
ao recebimento da denúncia, conferindo justa causa para a instauração da ação
penal contra o mesmo.
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14. O certo é que o remédio jurídico do habeas corpus - com toda a sua
importância - somente pode ser concedido na eventualidade de verificação de
manifesta ilegalidade ou constrangimento abusivo por parte das autoridades
públicas, o que não se verifica no caso em tela. A culpabilidade, ou não, do
Paciente, é matéria que depende da produção e cotejo de provas complexas,
inclusive periciais, somente cabíveis no curso da ação penal. (fls. 46-51)
Contrariamente, os impetrantes aduzem que a matéria não demanda
exame de questões de prova, eis que a alegada ausência de justa causa
defluiria da atipicidade da conduta irrogada, que foi radicalmente afirmada
em outro procedimento. O Subprocurador-Geral da República Flávio Giron
e o, então, Procurador-Geral da República, Geraldo Brindeiro, analisando
o comportamento de Pedro Pullen Parente, Presidente do Conselho de
Administração, dotado de prerrogativa de foro, determinaram o arquivamento
do feito, em razão da ausência de justa causa. Daí, a irresignação decorrente do
desrespeito ao princípio da indivisibilidade da ação penal. Não seria lógica a
instauração de inquérito policial e de respectiva ação penal quando o Ministério
Público Federal, por seus órgãos de cúpula, reconheceu a atipicidade.
Apontaram que, contestando o discurso do governo Fernando Henrique,
lideranças políticas e sindicais associaram-no a um projeto desnacionalizador
de nossa economia e o repeliram mediante manifestações públicas. Teriam,
então, tais lideranças promovido verdadeiras batalhas judiciais para impedir a
concretização das medidas propostas. Prosseguem, então, destacando que o leilão
da holding Tele Centro Sul, uma das 12 empresas que se encontravam em vias
de privatização, foi intenso e uma guerra judicial foi desencadeada. Concluído
o certame, ainda houve a tentativa de anulá-lo. Não se conseguiu, entretanto, e
a Tele Centro Sul foi comprada pelo Consórcio Solpart Participações S.A. O
quadro político conflitivo gerado por aquelas iniciativas governamentais teria
motivado a deflagração de vários processos administrativos e criminais contra
pessoas identificadas com a operacionalização das ações privatizantes - o caso
do paciente, diretor do Banco do Brasil.
Pontuaram que o aresto guerreado passou ao largo de opiniões de experts
do mercado financeiro, que depuseram indicando que outras instituições
financeiras também forneceram cartas de fiança à Solpart, como o Unibanco, o
Citibank e o BFB.
A pedido dos impetrantes, foi colhido parecer do Professor Modesto
Carvalhosa, no qual foi asseverdado:
798
Jurisprudência da SEXTA TURMA
A regulamentação então vigente, como se extrai de seu exame, impunha regras
somente em relação à instituição financeira concedente da fiança, determinando
a observância de certos princípios e fixando um limite percentual de diversificação
de risco em relação ao seu próprio patrimônio, nada especificando quanto à
magnitude ou espécie de garantias e nem efetuando exigências dirigidas ao
afiançado.
(...) a concessão de Carta de Fiança pelo Banco do Brasil S/A à Solpart
Participações S/A, consideradas a forma e as condições em que foi realizada,
não caracteriza nenhuma ilicitude face às normas pertinentes à área de atuação
do Banco Central do Brasil vigentes à época, cujas exigências dirigidas ao fiador
(Banco do Brasil) restaram devidamente cumpridas.
Por fim, salientaram que a conduta dos denunciados não possui o elemento
subjetivo requerido pelo tipo da gestão temerária, que é o dolo direto ou
eventual.
Pretendem, liminarmente, a suspensão do trâmite da Ação Penal n.
2002.51.01.501869-1, até o julgamento do mérito do writ, no qual se requer
o reconhecimento de inépcia da denúncia com o conseqüente trancamento da
ação penal por ausência de justa causa.
Em favor de co-réus do ora paciente foi impetrado prévio writ perante
esta Corte, autuado como HC n. 86.075-RJ, através do qual pretende-se o
trancamento da aludida ação penal, cujo pleito liminar foi indeferido.
A liminar foi indeferida às fls. 1.364-1.367.
As informações foram prestadas às fls. 1.376-1.393.
O Ministério Público Federal apresentou parecer, fls. 1.395-1.402, da lavra
do Subprocurador-Geral da República Francisco Dias Teixeira, opinando pela
denegação da ordem.
Foi requerida a intimação da sessão de julgamento, fl. 1.404, o que foi
deferido à fl. 1.405.
Em consulta telefônica à Vara de origem, obteve-se a informação de
que ainda não se ultimou a instrução. Já o processo administrativo punitivo,
instaurado perante o Banco Central, já teve sua primeira instância concluída,
com a condenação dos administradores do Banco do Brasil à multa de vinte
e cinco mil reais. Irresignados, interpuseram recurso, encontrando-se os autos
conclusos com o relator, Dr. Raul Jorge de Pinho Curro.
É o relatório.
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VOTO
A Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura (Relatora): O objeto da
impetração cinge-se ao trancamento da ação penal, alegando-se a ausência de
justa causa, em razão da atipicidade da conduta.
Eis, no que interessa, o teor da incoativa:
Em 28.07.1998, os denunciados, na condição de funcionários do Banco do
Brasil, concederam Carta de Fiança à empresa Solpart Participações S/A, no valor
de R$ 874.200.000,00 (oitocentos e setenta e quatro milhões e duzentos mil reais),
para que esta participasse do leilão de privatização da estatal Telecomunicações
Brasileiras S/A - Telebrás, ocorrido em 29.07.1998.
Ocorre que a concessão da referida garantia foi feita de forma flagrantemente
irregular, porquanto não observou os critérios fixados pelo Banco Central do
Brasil - Bacen, expondo a risco o patrimônio do Banco do Brasil e o Sistema
Financeiro Nacional como um todo, através do gerenciamento temerário daquela
instituição bancária, como se demonstrará a seguir.
Primeiramente, há que se destacar que, quando da concessão da Carta de
Fiança, o capital social da empresa Solpart Participações S/A era de míseros R$
1.000,00 (mil reais), conforme registro na Junta Comercial do Estado do Rio de
Janeiro - Jucerja, o que já denota irregularidade, vez que a garantia concedida era
absolutamente incompatível com o porte da empresa afiançada.
Ademais, a única garantia que a Solpart apresentou foi o aval da empresa
Techold Participações S/A cujo capital social era de R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
Logo, percebe-se que não havia garantias suficientes para assegurar ao Banco do
Brasil a satisfação de seu crédito, caso a fiança tivesse de ser honrada. Ouvidos em
sede policial, os ora denunciados argumentaram que foram uníssonos em aprovar
a operação, por que constataram a participação de grandes agentes econômicos,
tais como o Grupo Opportunity, a Caixa de Previdência dos Funcionários do
Banco do Brasil - Previ e a Fundação Sistel de Seguridade Social; situação que,
na ótica dos mesmos, minimizaria os riscos e dava credibilidade à Solpart,
recomendando o negócio. Tal argumentação pode ser facilmente refutada, à
medida que estes fundos participavam apenas indiretamente do consórcio e,
assim sua responsabilidade era limitada ao preço de emissão das ações subscritas
ou adquiridas, conforme dispõe o art. 1º da Lei n. 6.404/1976. Note-se, ainda,
que as assertivas dos ora denunciados no sentido de que se Solpart S/A não
honrasse o negócio, os agentes econômicos indiretamente envolvidos teriam
suas credibilidades afetadas no mercado financeiro em geral, revela-se mera
elucubração, já que suas capacidades econômico-financeiras continuariam
integralmente preservadas.
Neste contexto, há de se dar razão às conclusões expressas no parecer do
Bacen (fls. 10-26). Os técnicos do órgão fiscalizador consideraram subjetivos os
critérios levados em conta pelos funcionários do Banco do Brasil na concessão
800
Jurisprudência da SEXTA TURMA
da Carta de Fiança, porquanto os mesmos se prenderam aos nomes das grandes
empresas que figuravam indiretamente na operação, ao invés de averiguar a
existência de capital e patrimônio próprios da Solpart. Como bem disse a analista
do Bacen, Ormina de Almeida Ferreira, fls. 197-190, para o deferimento de um
negócio dessa monta, deve ser analisado o comportamento da empresa em uma
situação em que esta não conseguisse honrar seus compromissos. E, na hipótese,
em caso de dificuldades financeiras da Solpart, o Banco do Brasil não teria meios
de resgatar todo o seu investimento, uma vez que as empresas que a integram
pagariam apenas no limite de suas participações.
(...)
Por outro lado, entre a elaboração da “Súmula de Estudo de Operações Prestação de Garantia” - documento resultante da análise do risco da operação,
fruto de decisão conjunta do Comitê de Crédito da Superintendência Estadual
do Rio de Janeiro, ambas do Banco do Brasil aprovada pela Diretoria do órgão, e
a celebração do contrato de fiança, passaram-se menos de vinte e quatro horas,
o que, de antemão, já revela que os responsáveis agiram displicentemente, não
analisando todas as questões necessárias com o grau de atenção e seriedade devidos.
Da mesma forma, o ora denunciado Ricardo Sérgio de Oliveira, em depoimento
de fls. 355, afirmou que muitos riscos e limites não precisavam ser apurados,
pois já se encontravam previamente definidos em documentos internos do
Banco do Brasil. Algumas empresas poderiam eventualmente nem mesmo estar
catalogadas, mas por serem largamente conhecidas no mercado, dispensavam
um processo formal e prévio de aprovação de crédito.
Deve-se destacar ainda que, por conta da magnitude do valor envolvido, a
competência para a aprovação, em última análise, da garantia era do Conselho
de Administração do Banco do Brasil. Sob a justificativa da exigüidade temporal,
a concessão da garantia foi aprovada ad referendum por Pedro Pullen Parente,
na qualidade de Presidente daquele Conselho, tal qual confirma o depoimento
de João Batista de Camargo, às fls. 196. Note-se que tal aprovação contrariou o
procedimento previsto no Estatuto daquela sociedade; qual seja, a convocação
de reunião extraordinária para casos urgentes.
Por fim, cabe ressaltar que o crime de gestão temerária de instituição financeira
não exige, para a sua consumação, tenha havido o efetivo prejuízo ao Sistema
Financeiro, mas apenas o risco causado à sua higidez e estabilidade, por um atuar
imprudente ou negligente. (fls. 521-523, destaquei).
Motivam a pretensão os seguintes pilares:
1) Violação do princípio da indivisibilidade da ação penal, visto que o autor
da concessão da fiança, Pedro Pullen Parente, foi eximido de responsabilidade
pela Procuradoria Geral da República, que teve por atípico o fato descrito na
inicial acusatória;
2) Ausência de elemento subjetivo do tipo: dolo direto ou eventual;
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801
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
3) A operação financeira foi vantajosa para o Banco do Brasil, que já
alcançou significativo lucro a partir de então. Ademais, outras instituições
financeiras também concederam cartas de fiança à Solpart;
4) As normas do Banco Central, vigentes à época, referiam-se ao
concedente e, não, à concedida, logo, as particularidades da Solpart - por
exemplo, o inexpressivo capital social - não seriam obstáculo para o fechamento
do negócio. As sócias da Solpart representariam solidez suficiente para embasar
o negócio jurídico;
5) Prolação de acórdão do Tribunal de Contas da União, que afastou a
ilegalidade da assunção de risco na operação de concessão de carta de fiança; e,
6) Inexistência de habitualidade na conduta irrogada;
1) MANIFESTAÇÃO DO PROCURADOR GERAL DA
REPÚBLICA RECONHECENDO A ATIPICIDADE DO FATO E A
INDIVISIBILIDADE DA AÇÃO PENAL
Os fatos estampados na denúncia envolvem condutas dos denunciados e
de Pedro Pullen Parente, então Presidente do Conselho de Administração do
Banco do Brasil. Todavia, como este último assumira o cargo de Ministro Chefe
da Casa Civil, passou, então, a dispor de prerrogativa de foro. Em razão disso,
foram encaminhadas cópias do inquérito ao Procurador-Geral da República,
que arquivou o protocolado, acolhendo o parecer do Subprocurador-Geral da
República Flavio Giron, lançado nos seguintes termos
Trata-se de cópia de procedimento administrativo, posteriormente
transformado em inquérito civil público, instaurado no âmbito da Procuradoria
da República do Estado do Rio de Janeiro com o escopo de apurar eventual
improbidade administrativa por parte dos representados.
Após o ajuizamento da ação de improbidade os membros daquele Parquet
Federal remeteram à Procuradoria-Geral da República cópia do mencionado
procedimento administrativo onde entenderam, além dos ilícitos civis, poder
existir condutas criminosas (tipos penais descritos nos artigos 321, 319 e 335
do Código Penal e artigo 4º, parágrafo único, da Lei n. 7.492/1986) que, em face
das normas constitucionais que concedem foro por prerrogativa de função aos
representados [Pedro Pullen Parente (Ministro-Chefe da Casa Civil) e Luiz Carlos
Mendonça de Barros (Ministro das Comunicações)], não teriam atribuição para
analisá-las, ou mesmo, se for o caso, oferecer denúncia.
(...)
No entanto, após acurada análise dos autos verifica-se que não há elementos
(documentos, depoimentos prestados pelos depoentes ...) para que se possa
802
Jurisprudência da SEXTA TURMA
inferir que o senhor Pedro Pullen Parente cometera os crimes de advocacia
administrativa; impedimento, perturbação ou fraude de concorrência e
crime contra o sistema financeiro nacional. De fato, consta apenas afirmação
do Ministério Público Federal no Estado do Rio de Janeiro no sentido de que
o mesmo, por ocasião do leilão de privatização da empresa Tele Norte Leste
Participações Ltda., teria favorecido o consórcio integrado pelo grupo Opportunity
mediante a concessão de carta de fiança à empresa Solpart Participações Ltda.
que fazia parte desse grupo, sem as devidas contragarantias.
É certo que essa conduta poderia, em tese, configurar ato de improbidade
administrativa; todavia, consta que o mesmo já está sendo alvo de ação de
improbidade proposta pela Procuradoria da República no Estado do Rio de
Janeiro, já que, como é cediço, em sede de ação de improbidade administrativa,
não existe foro por prerrogativa de função, devendo as causas serem conhecidas
e julgadas, em primeiro grau, pelo Juízo Federal de 1ª instância, onde atuam os
Procuradores da República.
Especificamente quanto à notícia do cometimento do crime de prevaricação
por parte do atual Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da
República, que teria como Presidente do Conselho de Administração do Banco
do Brasil aprovado carta de fiança em favor da Solpart Participações Ltda., em
desconformidade com instruções internas desse Banco e resoluções do Banco
Central do Brasil; verifica-se que o tipo penal do aludido crime exige o elemento
subjetivo do tipo expresso pela especial finalidade de agir (para satisfazer
interesse ou sentimento pessoal), o que na doutrina tradicional denomina-se dolo
específico. Não restou configurada a presença do elemento tradicional necessário
à configuração do ilícito penal, já que em nenhum momento ficou caracterizado
que esse ato foi realizado para a satisfação de interesse ou sentimento pessoal.
Também é atípica a conduta porquanto o tipo penal exige que a conduta seja
realizada contra disposição expressa de lei (elemento objetivo do tipo); o que não
é o caso já que o ato, no máximo, pode ter infringido normas internas do Banco
do Brasil e do Banco Central.
Desta forma, a autorização da aludida carta de fiança, mesmo que entendendose realizada em desacordo com normas internas do Banco do Brasil e do Banco
Central, não configura o crime de prevaricação, o que, todavia, não afasta a
hipótese de configurar ato de improbidade administrativa movida pelo Parquet
Federal no Estado do Rio de Janeiro.
Nessa esteira de pensamento, a instauração de inquérito policial para apuração
de fato penalmente atípico configurar-se-ia em constrangimento ilegal, que o
Parquet repele e certamente não há de patrocinar.
(...)
Isto posto, opina o Ministério Público Federal, por seu órgão, pelo arquivamento
do presente procedimento administrativo no tocante ao Ministro Pedro Pullen
Parente, contudo, no que se refere ao cometimento, em tese, dos crimes de
advocacia administrativa, prevaricação, impedimento, perturbação ou fraude
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803
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
concorrência e crime contra o sistema nacional, que teriam sido praticados pelo
ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, opina no sentido de que volvam-se
os presentes autos à Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro para
que tome as medidas que entender cabíveis, já que o mesmo não goza de foro
privilegiado. (fls. 245-246 e 248-249).
Seguiu-se, então, o despacho do Procurador-Geral da República:
Nos termos da manifestação do eminente Subprocurador-Geral da República
Flávio Giron, (fls. 236 a 240), que adoto como razão de decidir, Determino o
arquivamento do presente feito no tocante às acusações contra o Ministro Pedro
Pullen Parente. (fl. 251).
Não ignoro a existência de precedentes desta Corte, afastando a incidência
do princípio da indivisibilidade em relação à ação penal de iniciativa pública:
Habeas corpus. Processual Penal. Crime de tortura. Pedido de trancamento.
Alegação de arquivamento implícito. Paciente não denunciado na primeira
exordial acusatória oferecida pelo Parquet Estadual. Não ocorrência de
constrangimento ilegal quanto a este tocante. Ausência de intimação do
advogado para a audiência de oitiva de testemunhas no juízo deprecado, a
despeito de despacho judicial que determinou a realização de tal diligência.
Cerceamento de defesa configurado. Ordem concedida.
1. O não oferecimento imediato da denúncia com relação ao Paciente não implica
na renúncia tácita ao jus puniendi estatal, pois o princípio da indivisibilidade não
é aplicável à ação penal pública incondicionada, diferentemente da ação penal
privada. Segundo o ordenamento jurídico pátrio, o arquivamento da ação penal
pública depende de pedido expresso do Ministério Público, e somente pode ser
determinado pelo Juiz.
2. O Juízo deprecado proferiu despacho determinando a intimação do
Advogado da nova data de realização da audiência de oitiva de testemunhas, que
não se realizou na primeira oportunidade.
Entretanto, a audiência foi realizada posteriormente, sem a intimação do
Causídico. Evidente o prejuízo para a Defesa no caso, que foi desonerada da
incumbência de acompanhar a tramitação da carta precatória perante o Juízo
deprecado.
3. Ordem concedida, tão-somente para anular o processo-crime desde a
audiência de oitiva de testemunhas no Juízo deprecado, garantindo-se a
intimação do Advogado de defesa da realização do ato.
(HC n. 95.344-RJ, Rel. Ministro Jorge Mussi, Rel. p/ Acórdão Ministra Laurita Vaz,
Quinta Turma, julgado em 15.10.2009, DJe 15.12.2009, destaquei).
804
Jurisprudência da SEXTA TURMA
Penal. Processual Penal. Habeas corpus. Falsidade ideológica. Peculato. Lavagem
de dinheiro. Quebra do sigilo fiscal. Falta de prévia decisão judicial. Matéria
não examinada pela Corte de origem. Supressão de instância. Investigações
preliminares realizadas pelo Parquet Estadual. Possibilidade. Denúncia, ademais,
baseada em inquérito policial. Ausência de nulidade. Ofensa ao princípio da
indivisibilidade da ação penal. Falta de comprovação. Observância necessária
apenas na ação penal privada. Trancamento da ação penal. Ex-governador do
Estado do Rio Grande do Norte. Desvio de verbas públicas (representação de
gabinete) em proveito próprio e de terceiros. Anterior posse do quantum. Termo
que deve ser interpretado em sentido amplo, abrangendo a disponibilidade
jurídica da res. Falta de provas quanto à falsidade ideológica. Estreita via do writ.
Necessidade de revolvimento do conjunto fático-probatório. Ordem denegada.
1. Inviável o exame originário por este Superior Tribunal de Justiça de tese
não debatida perante o Tribunal de origem (quebra do sigilo fiscal de terceiros
sem prévia decisão judicial), sob pena de inequívoca e indevida supressão de
instância, vedada pelo ordenamento jurídico pátrio. Precedentes.
2. Em que pese o entendimento pessoal desta Relatora em sentido contrário,
os precedentes desta Corte são uníssonos em admitir a legitimidade das
investigações preliminares por parte do Ministério Público, como titular da ação
penal pública.
3. Ademais, a denúncia, in casu, encontra-se escorada por inquérito policial.
4. O princípio da indivisibilidade da ação penal aplica-se apenas à ação penal
privada, mas não à pública. Precedentes.
5. O termo “posse” contido no tipo penal descrito no caput do artigo 312 do
Código de Processo Penal deve ser interpretado de maneira ampla, abarcando,
assim, qualquer tipo de disponibilidade jurídica da res apropriada/desviada.
Precedente.
6. Evidenciando-se que o agente teria a anterior disponibilidade jurídica do
quantum em tese desviado em proveito próprio e de terceiros, mostra-se viável a
acusação pelo delito de peculato.
7. A estreita via do habeas corpus, carente de dilação probatória, não comporta
o exame de questões que demandem o profundo revolvimento do conjunto
fático-probatório colhido nos autos do inquérito policial instaurado contra o
paciente, bem como da ação penal que o seguiu. Precedentes.
8. Evidenciando-se que a tese de falta de justa causa para sua persecução
penal em juízo quanto ao crime de falsidade ideológica por falta de provas
demanda o aprofundado exame dos elementos de convicção até então colhidos,
porquanto não demonstrada cabal e inequivocamente por aqueles colacionados
aos autos, mostra-se inviável seu acolhimento por meio da via eleita.
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805
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
9. Ordem denegada, ressalvando-se posicionamento contrário da Relatora
quanto à ilegitimidade do poder investigatório do Parquet.
(HC n. 92.952-RN, Rel. Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do TJMG), Sexta Turma, julgado em 19.08.2008, DJe 08.09.2008, destaquei).
De fato, trata-se de cânone normalmente invocado para o fim de evidenciar
a extinção da punibilidade decorrente do perdão do ofendido. Ou seja, o perdão
da vítima conferido a um dos ofensores, aos demais aproveita.
Contudo, em hipóteses como a presente, na qual o Parquet se pronunciou de
forma objetiva acerca do fato, apontando, de maneira objetiva, a sua atipicidade,
tem-se, também, a meu sentir, a incidência do princípio da indivisibilidade
em relação à ação penal de iniciativa pública, já que não é dado ao Ministério
Público escolher, dentre os supostos autores de ilícitos penais, apenas alguns
para responderem criminalmente, sob pena de se infringir o princípio da
obrigatoriedade da ação penal.
Lembre-se, a propósito, a seguinte lição de EMIR DUCLERC:
O princípio da indisponibilidade, consagrado no art. 42 do CPP, é um
desdobramento da obrigatoriedade. O Ministério Público não pode dispor da
ação penal, desistindo, transigindo ou acordando, porque ela é obrigatória.
O princípio da indivisibilidade reza que a ação penal deve ser exercida em face
de todos os autores e partícipes do fato criminoso. Veja-se, ademais, que mesmo a
ação penal privada está sujeita ao princípio da indivisibilidade, nos exatos termos
do art. 48 do CPP (...).
Em relação à ação penal pública, todavia, seria totalmente desnecessária a
existência de um dispositivo legal com semelhante teor, porque também ele, na
ação penal pública, é consequência do princípio da obrigatoriedade. Em suma: a
ação penal privada é indivisível por força de um artigo de lei; a ação penal pública
é indivisível porque é obrigatória contra todos. (Direito processual penal. 2. ed. Rio
de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2006, v. I, p. 199-200).
Lembre-se, ademais, o caráter uno do Ministério Público. Tendo
havido a manifestação do chefe da instituição, reconhecendo a atipicidade
do comportamento de quem seria o principal artífice do evento articulado na
inicial, torna-se inviável prosperar a ação penal apenas em relação aos partícipes
do mesmo fato.
Não bastasse tal argumento, a atipicidade se mostra, ainda, por meio da
narrativa constante da inicial acusatória, que não descreve comportamento
doloso.
806
Jurisprudência da SEXTA TURMA
2) AUSÊNCIA DO ELEMENTO SUBJETIVO DOLO
Tal irresignação foi assim enfrentada pela Corte de origem:
(...) Não merece, outrossim, acolhimento a alegação de que, a despeito do
tipo penal do art. 4º, parágrafo único, da Lei n. 7.492/1986, conter o dolo como
elemento subjetivo, a narração feita na denúncia teria imputado a modalidade
culposa, o que não existe em relação a tal crime. Como foi bem explicitado pelo
MPF no seu parecer, as expressões empregadas na denúncia, do tipo “atuação
imprudente ou negligente”, não foram utilizadas de modo a indicar a imputação
de conduta culposa dos pacientes, e sim de apontar “a atuação leviana, impetuosa
e ilícita dos mesmos que tinham por dever observar os fatos e as normas
existentes para a concessão da fiança em questão, o que não afasta a consciência
e vontade de realização do tipo penal do artigo 4º, parágrafo único, da Lei n.
7.492/1986” (fl. 1.234). Ademais, as circunstâncias em que ocorreram as operações
podem ser consideradas indicativas da descrição contida na denúncia a respeito
da presença do dolo devido à anormalidade da operação conscientemente
realizada pelos pacientes. (fls. 1.387-1.388).
Houve, na doutrina, quem chegasse até a apontar a previsão de modalidade
culposo no seio do parágrafo único do art. 4º da Lei n. 7.492/1986 (COSTA JR.
Paulo José da, et al. Crimes de colarinho branco. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002,
p. 78). Contudo, não passou de entendimento isolado diante dos significativos
avanços democráticos alcançados pela Reforma da Parte Geral do Código Penal
de 1984. Neste cenário, somente é possível a responsabilização a título de culpa
quando tal circunstância for expressamente prevista, sob pena de se instalar
tremenda insegurança - cf. art. 18, parágrafo único, do Codex.
A impetração, a fim de afastar a tipicidade, baseia-se no emprego, pelo
Parquet, de expressões que denotariam a existência de crime culposo.
De fato, a denúncia enuncia um comportamento negligente, açodado, o
que se torna patente com a expressa referência a termos próprios da violação do
cuidado objetivo necessário nas circunstâncias.
Em casos como o presente, esta Corte tem determinado o trancamento da
ação penal:
Habeas corpus. Processual Penal. Crime de desobediência. Pedido de
trancamento da ação penal. Denúncia. Atipicidade manifesta. Descrição de crime
culposo. Ausência de imputação a título de dolo. Inépcia. Precedente do STJ.
1. O trancamento da ação penal por ausência de justa causa é uma medida
excepcional, somente cabível em situações, nas quais, de plano, seja perceptível o
constrangimento ilegal.
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
807
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2. Reputa-se inepta a denúncia que não trata do elemento volitivo necessário
à configuração do delito de desobediência, qual seja, o dolo, limitandose à narrativa de uma conduta eminente culposa, decorrente de obstáculos
burocráticos, e da negligência de funcionários subordinados.
3. Ordem concedida.
(HC n. 82.589-MS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em
09.10.2007, DJ 19.11.2007, p. 257).
Note-se que a denúncia emprega os seguintes termos: “agiram
displicentemente” e que o comportamento dos corréus seria desprovido de
“atenção e seriedade devidos”. Tem-se, portanto, terreno fértil para verificar que
a denúncia malogrou em termos de estabelecimento do aspecto subjetivo da
imputação.
A denúncia como lançada gera perplexidade, porquanto irroga acusação
de delito doloso, contudo, alinha elementos constitutivos de crime culposo,
revelando, desta forma, patente carência de justa causa.
Havendo, portanto, lastro para ser trancada ação penal em razão da
atipicidade, resta prejudicado o exame das demais questões agitadas na presente
impetração.
Por se encontrarem os corréus em situação análoga, por força do art. 580
do Código de Processo Penal, é de se lhes estender a concessão.
Ante o exposto, concedo a ordem para trancar a Ação Penal n.
2002.5101.501869-1, da 3ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio
de Janeiro, estendendo-se os efeitos aos demais corréus.
É como voto.
VOTO-VISTA
O Sr. Ministro Og Fernandes: Em sessão de 18 de março do corrente ano,
a Eminente Ministra Maria Thereza, relatora do presente habeas corpus, concluiu
pela concessão da ordem, salientando serem atípicas as condutas atribuídas ao ora
paciente. Trilhou, ainda, pelo deferimento da extensão dos efeitos aos corréus,
por vislumbrar a incidência do disposto no art. 580 do Código de Processo
Penal.
Segundo a peça acusatória, teria sido concedida, por representantes do
Banco do Brasil, carta de fiança no valor de R$ 784.000.000,00 (setecentos e
808
Jurisprudência da SEXTA TURMA
oitenta e quatro) milhões de reais a uma empresa cujo capital social seria de
apenas R$ 1.000,00 (mil reais).
Pedi vista dos autos por conta dos valores superlativos envolvidos na ação
penal de que aqui se cuida.
Não é de hoje que o crime previsto no art. 4º da Lei dos Crimes contra o
Sistema Financeiro Nacional é alvo de severas críticas doutrinárias.
Aponta-se violação ao princípio da taxatividade (ou reserva legal, ou
legalidade), em razão de o tipo ser por demais aberto, não havendo a indicação,
“no texto normativo, [de] quais os comportamentos humanos que caracterizam
a gestão temerária” (Costa Jr., Paulo José da. Crimes do Colarinho Branco. 2ª
edição. Saraiva: São Paulo. 2002, p. 80).
Feito esse delineamento, passo à análise da questão, cingindo-me à
apreciação da suposta ausência de indicação do dolo na conduta do ora paciente.
Penso não ser necessário, nesse momento, avançarmos na tese por meio da
qual é defendida a aplicação do princípio da indivisibilidade em se tratando de
ação penal pública.
Ressalto, ademais, que a alegação de que a conduta supostamente praticada
teria trazido lucro à instituição financeira (Banco do Brasil) em nada interfere
na apreciação do caso.
Com efeito, filio-me à corrente doutrinária segundo a qual “mesmo que as
condutas temerárias do gestor de instituição financeira, por sorte, dêem lucro, o
crime restará configurado desde que tenha havido comprovado risco de causar
dano relevante à instituição financeira e, correlatamente, ao sistema financeiro
nacional” (DELMANTO, Roberto. Leis Penais Especiais Comentadas.
Renovar: Recife, 2006, p. 143).
É fato que, na dicção majoritária, o preceito vazado no art. 4º da Lei n.
7.492/1986 exige a comprovação de dolo para sua caracterização, não havendo a
punição da gestão temerária na forma culposa. A esse respeito, lembro a lição de
Áureo Natal de Paula:
Não é possível a forma culposa, pois não foi prevista legalmente.
Além disso, o projeto da lei em comento continha previsão no art. 24 de que
todos os crimes nela previstos que fossem praticados culposamente teriam a pena
reduzida de um terço. Porém, o referido artigo foi completamente vetado e nas
razões do veto se justificou que “impossível é conceber a forma culposa na maioria
das condutas sancionadas penalmente”, e também se afirmou que havia conflito
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
809
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
com o princípio consagrado no parágrafo único, do art. 18, do Código Penal,
que prevê a excepcionalidade do crime culposo. (PAULA, Áureo Natal de. Crimes
contra o Sistema Financeiro Nacional e o Mercado de Capitais. 3ª edição.
Juruá: Paraná. 2008, p. 113).
Trago, também, o que escreveu José Carlos Tórtima em sua obra Crimes
contra o Sistema Financeiro Nacional (Lumen Juris: Rio de Janeiro. 2000, p.
58-59), quando invocou a doutrina e também precedentes desta Corte:
Tipo subjetivo:
Quanto à gestão temerária, cuida-se (...) do dolo eventual, consistente em assumir
o agente o risco do resultado danoso ou perigoso. Ao contrário do que pode sugerir a
expressão temerária, a mera imprudência do agente não chega a configurar o ilícito
penal em tela, por ser inadmissível a punição penal de conduta apenas culposa, salvo
quando a lei expressamente o permite (art. 18, parágrafo único, do Código Penal).
Tem sido esta, aliás, a orientação da melhor doutrina, como se pode recolher do
precioso ensinamento de Miguel Reale Júnior:
De relevar, também, que a conduta deve ser informada pela
intencionalidade manifesta do agente de colocar a integridade econômicafinanceira da instituição sob grave e iminente risco (...) O sujeito do delito,
assim, deve agir com dolo, antecipando mentalmente e querendo a situação
de alto risco, extraordinário risco para a saúde da instituição e do sistema
financeiro.
Este, aliás, o entendimento dominante na jurisprudência, tendo afirmado a 6ª
Turma do STJ, relator o eminente Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro: A gestão
temerária (crime contra o Sistema Financeiro Nacional) pressupõe dolo eventual.
O agente tem previsão do resultado, todavia, sem o desejar, a ele é indiferente,
arrostando sem a cautela devida, a ocorrência do evento (RHC n. 6.368-SP, DJU
22.09.1997, in Alfredo de Oliveira Garcindo Filho, Jurisprudência Criminal do STF e
do STJ, 1998, Edição do Autor, p. 130).
De forma não menos incisiva decidiu a Colenda 5ª Turma, em acórdão da lavra
do Ministro Felix Fischer:
I. Se os fatos narrados na denúncia descrevem negligência, imprudência
e imperícia, e o tipo penal da gestão temerária refere-se a crime comissivo
doloso, não prevendo a forma culposa, inexiste crime a priori, sendo inepta a
exordial acusatória.
II. A expressão temerária significa que a gestão criminalmente relevante
deve implicar necessariamente num liame subjetivo entre a conduta do
paciente e o resultado danoso - o que não restou demonstrado in casu.
810
Jurisprudência da SEXTA TURMA
III. Recurso provido para determinar-se o trancamento da ação penal,
por inépcia da denúncia.
(STJ, RHC n. 7.982-RJ, DJ 29.11.1999, p. 176).
De fato, tratando-se de tipo punido somente na modalidade dolosa, não se
revela viável o prosseguimento da persecução penal quando, tal qual ocorreu na
hipótese presente, a peça acusatória narra condutas culposas.
A fim de espancar eventuais dúvidas, relembro o que consta na denúncia
(fls. 521-523):
Em 28.07.1998, os denunciados, na condição de funcionários do Banco do Brasil,
concederam Carta de Fiança à empresa Solpart Participações S/A, no valor de R$
874.200.000,00 (oitocentos e setenta e quatro milhões e duzentos mil reais), para que
esta participasse do leilão de privatização da estatal Telecomunicações Brasileiras S/A
– Telebrás, ocorrido em 29.07.1998.
Ocorre que a concessão da referida garantia foi feita de forma flagrantemente
irregular, porquanto não observou os critérios fixados pelo Banco Central do Brasil
- Bacen, expondo a risco o patrimônio do Banco do Brasil e o Sistema Financeiro
Nacional como um todo, através do gerenciamento temerário daquela instituição
bancária, como se demonstrará a seguir.
Primeiramente, há que se destacar que, quando da concessão da Carta de
Fiança, o capital social da empresa Solpart Participações S/A era de míseros R$
1.000,00 (mil reais), conforme registro na Junta Comercial do Estado do Rio de
Janeiro - Jucerja, o que já denota irregularidade, vez que a garantia concedida era
absolutamente incompatível com o porte da empresa afiançada.
Ademais, a única garantia que a Solpart apresentou foi o aval da empresa Techold
Participações S/A cujo capital social era de R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Logo,
percebe-se que não havia garantias suficientes para assegurar ao Banco do Brasil
a satisfação de seu crédito, caso a fiança tivesse de ser honrada. Ouvidos em sede
policial, os ora denunciados argumentaram que foram uníssonos em aprovar a
operação, por que constataram a participação de grandes agentes econômicos,
tais como o Grupo Opportunity, a Caixa de Previdência dos Funcionários do
Banco do Brasil - Previ e a Fundação Sistel de Seguridade Social; situação que,
na ótica dos mesmos, minimizaria os riscos e dava credibilidade à Solpart,
recomendando o negócio. Tal argumentação pode ser facilmente refutada, à
medida que estes fundos participavam apenas indiretamente do consórcio e,
assim sua responsabilidade era limitada ao preço de emissão das ações subscritas
ou adquiridas, conforme dispõe o art. 1º da Lei n. 6.404/1976. Note-se, ainda,
que as assertivas dos ora denunciados no sentido de que se Solpart S/A não
honrasse o negócio, os agentes econômicos indiretamente envolvidos teriam
suas credibilidades afetadas no mercado financeiro em geral, revela-se mera
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
811
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
elucubração, já que suas capacidades econômico-financeiras continuariam
integralmente preservadas.
Neste contexto, há de se dar razão às conclusões expressas no parecer do
Bacen (fls. 10-26). Os técnicos do órgão fiscalizador consideraram subjetivos os
critérios levados em conta pelos funcionários do Banco do Brasil na concessão
da Carta de Fiança, porquanto os mesmos se prenderam aos nomes das grandes
empresas que figuravam indiretamente na operação, ao invés de averiguar a
existência de capital e patrimônio próprios da Solpart. Como bem disse a analista
do Bacen, Ormina de Almeida Ferreira, fls. 197-190, para o deferimento de um
negócio dessa monta, deve ser analisado o comportamento da empresa em uma
situação em que esta não conseguisse honrar seus compromissos. E, na hipótese,
em caso de dificuldades financeiras da Solpart, o Banco do Brasil não teria meios de
resgatar todo o seu investimento, uma vez que as empresas que a integram pagariam
apenas no limite de suas participações.
(...)
Por outro lado, entre a elaboração da “Súmula de Estudo de Operações Prestação de Garantia” - documento resultante da análise do risco da operação,
fruto de decisão conjunta do Comitê de Crédito da Superintendência Estadual
do Rio de Janeiro, ambas do Banco do Brasil aprovada pela Diretoria do órgão, e
a celebração do contrato de fiança, passaram-se menos de vinte e quatro horas,
o que, de antemão, já revela que os responsáveis agiram displicentemente, não
analisando todas as questões necessárias com o grau de atenção e seriedade devidos.
Da mesma forma, o ora denunciado Ricardo Sérgio de Oliveira, em depoimento
de fls. 355, afirmou que muitos riscos e limites não precisavam ser apurados, pois já
se encontravam previamente definidos em documentos internos do Banco do Brasil.
Algumas empresas poderiam eventualmente nem mesmo estar catalogadas, mas
por serem largamente conhecidas no mercado, dispensavam um processo formal
e prévio de aprovação de crédito.
Deve-se destacar ainda que, por conta da magnitude do valor envolvido, a
competência para a aprovação, em última análise, da garantia era do Conselho de
Administração do Banco do Brasil. Sob a justificativa da exigüidade temporal, a
concessão da garantia foi aprovada ad referendum por Pedro Pullen Parente, na
qualidade de Presidente daquele Conselho, tal qual confirma o depoimento de
João Batista de Camargo, às fls. 196. Note-se que tal aprovação contrariou o
procedimento previsto no Estatuto daquela sociedade; qual seja, a convocação
de reunião extraordinária para casos urgentes.
Por fim, cabe ressaltar que o crime de gestão temerária de instituição financeira
não exige, para a sua consumação, tenha havido o efetivo prejuízo ao Sistema
Financeiro, mas apenas o risco causado à sua higidez e estabilidade, por um atuar
imprudente ou negligente. (sem destaques no original).
812
Jurisprudência da SEXTA TURMA
Como visto, há referências a uma atuação displicente, à imprudência, à
negligência, vetores ligados à ideia da culpa, o que macula a incoativa.
Por tais circunstâncias, voto também eu pela concessão da ordem, para
trancar a ação penal, dada a inépcia da denúncia. Havendo similitude de
situações, estendo os efeitos desta decisão aos corréus.
HABEAS CORPUS N. 109.447-RJ (2008/0137650-0)
Relator: Ministro Og Fernandes
Impetrante: Marcos AS Aragão
Impetrado: Tribunal Regional Federal da 2ª Região
Paciente: Guido Crocchi
EMENTA
Habeas corpus. Crime contra o Sistema Financeiro e apropriação
indébita. Justa causa. Ocorrência. Aplicação diversa da contratualmente
prevista de recursos obtidos mediante financiamento público.
Desvio de finalidade. Crime comum. Trancamento da ação penal.
Impossibilidade.
1. O trancamento da ação penal, consoante reiterada
jurisprudência desta Corte, é medida de índole excepcional, cabível
apenas nas hipóteses em que desponte, de plano, a atipicidade da
conduta, a inexistência de qualquer elemento indiciário demonstrativo
de autoria ou da materialidade do delito ou, ainda, causa excludente
de punibilidade.
2. O tipo penal descrito no art. 20 da Lei n. 7.492/1986
tem, como objetivo principal, evitar que os recursos provenientes
de financiamento concedido por instituição financeira oficial ou
credenciada para repassá-los sejam destinados a finalidade diversa
daquela que serviu de fundamento – em lei ou contrato – para a
liberação do numerário.
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
813
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
3. Não há, em relação a tal crime, especificidade quanto a
qualidade do sujeito ativo – que pode ser o tomador ou qualquer
outra pessoa a quem seja disponibilizada a verba – bastando, para sua
configuração, que seja aplicado, com desvio de finalidade, o numerário
obtido mediante financiamento público. Trata-se, portanto, de crime
comum.
4. Assim, conquanto o paciente não tenha contraído diretamente
o financiamento público, o fato é que a denúncia revela que sua
utilização se deu com destino diverso daquele contratualmente
pactuado.
5. Ordem denegada.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima
indicadas, prosseguindo no julgamento, após voto-vista do Sr. Ministro Celso
Limongi denegando a ordem, e os votos dos Srs. Ministros Haroldo Rodrigues
(Desembargador convocado do TJ-CE) e Maria Thereza de Assis Moura no
mesmo sentido, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal
de Justiça, por unanimidade, denegar a ordem de habeas corpus, nos termos do
voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Celso Limongi (Desembargador
convocado do TJ-SP), Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJCE) e Maria Thereza de Assis Moura votaram com o Sr. Ministro Relator.
Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura.
Brasília (DF), 09 de novembro de 2010 (data do julgamento).
Ministro Og Fernandes, Relator
DJe 06.12.2010
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Og Fernandes: Trata-se de habeas corpus impetrado em
benefício de Guido Crocchi – denunciado como incurso no art. 20 da Lei n.
7.492/1986 e art. 168, caput, do Código Penal – contra o v. acórdão proferido
pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região que denegou a ordem lá impetrada
nos termos desta ementa (fls. 52-53):
814
Jurisprudência da SEXTA TURMA
Direito Penal. Habeas corpus. Art. 20 da Lei n. 7.492/1986. Crime comum.
Elemento subjetivo do tipo. Sujeito ativo. Dolo. Exame de provas. Impossibilidade
em sede de habeas corpus. Justa causa para a ação penal.
1. Trata-se de habeas corpus objetivando seja o Paciente excluído da Ação
Penal tombada sob o n. 97.0060903-0 no Juízo da 5ª Vara Federal Criminal do
Rio de Janeiro, na qual foi denunciado pela prática do crime previsto no artigo
20 da Lei n. 7.492/1986. Alega que o delito objeto da denúncia é crime próprio
do tomador de recursos e que o Paciente é Diretor-Presidente da empresa com
a qual a empresa tomadora de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social - Navegação Mansur -, firmou contrato para construção de
determinada embarcação com recursos tomados; sendo os dirigentes desta,
portanto, os supostos sujeitos ativos do delito. Conclui que, a ausência de
circunstância elementar integrante do tipo a ensejar comunicação entre sujeito
ativo do crime próprio e o Paciente, configura falta de justa causa para a ação
penal a que o paciente responde.
2. O impetrante sustenta a ausência de justa causa para a ação penal instaurada
contra o paciente, porquanto baseada em denúncia por suposto cometimento de
crime próprio - art. 20 da Lei n. 7.492/1986; sendo que o paciente não integrava a
empresa tomadora dos recursos para construção da embarcação.
3. Primeiramente, é posição desta Corte que o trancamento da ação penal,
normalmente, é inviável em sede de writ, pois depende do exame da matéria
fática e probatória. A alegação de ausência de justa causa para o prosseguimento
do feito deve ser reconhecida quando, sem a necessidade de exame aprofundado
e valorativo dos fatos, indícios e provas, restar inequivocamente demonstrada,
pela impetração, a atipicidade flagrante do fato.
4. Ao contrário do alegado, o delito tipificado no artigo 20 da Lei n. 7.492/1986
não cuida de crime próprio, mas descreve conduta típica que pode ser cometida
por qualquer pessoa, tratando-se, pois de crime comum.
5. Não é correto afirmar que somente o tomador dos recursos junto à
instituição financeira oficial pode ser sujeito ativo do crime previsto no art. 20
da Lei n. 7.492/1986, conforme alegado pelo Impetrante. Os administradores de
pessoa jurídica beneficiária do financiamento, ainda que diversa da tomadora
dos recursos, poderão incorrer nas penas cominadas no referido artigo, caso
apliquem a verba em finalidade diversa da prevista no contrato.
6. O valor concedido pela instituição financeira oficial foi aplicado em
atividade diversa daquela estabelecida no contrato. Nada impede que responda,
como partícipe, o Diretor Industrial do Estaleiro Caneco - ora paciente, quando,
ciente da destinação ilícita dos componentes da embarcação (dolo) ou ainda,
quando não observados os cuidados necessários à destinação dos mesmos, com
a ciência de que, em conseqüência desta inobservância, os mesmos poderiam ser
desviados (dolo eventual).
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
815
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
7. Por não constatar, no caso concreto, ausência de justa causa por manifesta
atipicidade da conduta e diante da necessidade de discussões acerca da existência
do dolo, matéria que demanda dilação probatória, inadequada em sede de
habeas corpus, não se justifica a concessão da ordem vindicada.
Habeas corpus denegado.
Alega o impetrante, em síntese, ausência de justa causa para a ação penal
na medida em que “o delito previsto no artigo 20 da Lei n. 7.492/1986 é
próprio, cujo sujeito ativo só pode ser o tomador dos recursos” ou seja, “aquele
que firmou contrato com a instituição financeira” (fl. 23). Requer, diante disso, o
trancamento da ação penal.
Dispensadas as informações, foram os autos ao Ministério Público Federal
que, em parecer da lavra da Procuradora Regional da República Solange Mendes
de Souza, no exercício do cargo de Subprocuradora-Geral da República,
manifestou-se pela denegação da ordem.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Og Fernandes (Relator): Depreende-se dos autos que a
empresa (um estaleiro) na qual o paciente figura como Diretor-Presidente foi
contratada por outra empresa – Navegação Mansur S/A – para construção de
um navio de casco identificado pelo número EC-337, cujo aporte financeiro
foi obtido por meio de repasse efetivado pelo BNDES - Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social.
Entretanto, conforme se vê na peça inaugural, após receber os recursos
destinados para essa finalidade, utilizou-os na montagem de outro navio, de
casco número EC-338, de propriedade de outra empresa. Nesse particular, para
melhor compreensão do caso, convém que se transcreva os seguintes trechos da
denúncia (fls. 55-65):
Consta dos autos do IPL em epígrafe que, no ano de 1995, entre os meses de
maio e julho, os denunciados, o primeiro na qualidade de Diretor-Presidente,
o segundo na condição de Diretor-Técnico e o terceiro na condição de Diretor
industrial da empresa Indústrias Reunidas Caneco S/A (Estaleiro Caneco),
determinaram que esse estaleiro, por eles dirigido, e contratado pela Empresa de
Navegação Mansur S/A para construir o navio de casco identificado pelo número
EC-337, com recursos repassados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento
816
Jurisprudência da SEXTA TURMA
Econômico e Social - BNDES, empresa pública federal atuando na qualidade de
agente financeiro do Fundo de Marinha Mercante - FMM, após receber os recursos
destinados para essa finalidade, utilizasse, como de fato utilizou, a maior parte
dos blocos de aço do casco EC-337 e comprados com os referidos recursos,
na montagem de outro navio, de casco número EC-338, de propriedade de
outra empresa (Cia. de Navegação Norsul S/A), caracterizando, assim, a aplicação,
em finalidade diversa do contrato, dos recursos repassados pela instituição
financeira oficial BNDES, bem como a apropriação indébita dos blocos de casco
pertencentes à Empresa de Navegação Mansur S/A.
(...)
Assim agindo, ao praticarem, voluntariamente, as condutas anteriormente
descritas, caracterizadas como aplicação, em finalidade diversa do contrato, dos
recursos repassados pela instituição financeira oficial BNDES, provenientes do
FMM, incorreram nas penas cominadas ao artigo 20, da Lei n. 7.492/1986, além
de se apropriarem indevidamente dos blocos de casco pertencentes à empresa
Mansur, desviando-os em proveito da empresa Norsul, incorrendo, por sua vez,
nas panas cominadas ao artigo 168, caput, do CPB.
O quadro fático, portanto, é o seguinte: a empresa de navegação Mansur
S/A tomou empréstimo junto ao BNDES e o repassou à empresa do paciente.
Esta, por sua vez, aplicou-o em destinação diversa da prevista no contrato, daí a
sua incursão no art. 20 da Lei n. 7.492/1986 que diz o seguinte:
Art. 20. Aplicar, em finalidade diversa da prevista em lei ou contrato, recursos
provenientes de financiamento concedido por instituição financeira oficial ou por
instituição credenciada para repassá-lo:
Pena - reclusão, de 02 (dois) a 06 (seis) anos, e multa.
Cinge-se a impetração, portanto, na alegação de que o referido artigo
contém crime próprio, vale dizer, exige, para sua configuração, determinada
qualidade pessoal do agente, como ocorre, por exemplo, no peculato ou
prevaricação.
Assim, segundo a impetração, somente o tomador do financiamento
perante o BNDES – Empresa de Navegação Mansur S/A – pode ser sujeito
ativo do crime e não o paciente que figura como representante de outra empresa
que apenas recebeu o repasse do importe financeiro. Daí o pleito de trancamento
da ação penal.
Tenho comigo que o pedido improcede.
O trancamento da ação penal, consoante reiterada jurisprudência desta
Corte, é medida de índole excepcional, cabível apenas nas hipóteses em que
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
817
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
desponte, de plano, a atipicidade da conduta, a inexistência de qualquer elemento
indiciário demonstrativo de autoria ou da materialidade do delito ou, ainda,
causa excludente de punibilidade.
No caso, a denúncia descreve, com clareza, que a Empresa de Navegação
Mansur S/A, após contrair financiamento de fundo federal gerenciado pelo
BNDES, contratou as Indústrias Reunidas Caneco S/A, da qual o paciente
é o Diretor-Presidente, para construir um navio do tipo graneleiro, tudo
devidamente especificado em contrato firmado por ambas as empresas.
Diversamente do pactuado, a empresa do paciente destinou tais verbas para
outra finalidade.
O tipo penal descrito no art. 20 da Lei n. 7.492/1986 tem, como objetivo
principal, evitar que os recursos provenientes de financiamento concedido por
instituição financeira oficial ou credenciada para repassá-los sejam destinados a
finalidade diversa daquela que serviu de fundamento – em lei ou contrato – para
a liberação do numerário. Como salienta GUILHERME NUCCI:
O objeto da conduta é o recurso (numerário) originário de financiamento
(importância destinada a custear a despesa de algo, antecipando-se quantia, a
ser paga posteriormente) concedido por instituição financeira oficial (estatal) ou
outra, devidamente credenciada pelo Estado para repassá-lo. Busca-se proteger o
recurso levantado em órgão oficial - ou controlado pelo Estado - do emprego em
finalidade diversa para a qual foi liberado. Com isso, mantém-se a credibilidade no
mercado financeiro, com instituições fortalecidas e investidores protegidos. Se os
recursos provenientes de financiamento forem desviados, não há política estatal
de controle de gastos e emprego racional de verbas que se sustente.
(c.f. in Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 4. ed. rev. atual. e ampl.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 1.111).
Não há, em relação a tal crime, especificidade quanto a qualidade do
sujeito ativo – que pode ser o tomador ou qualquer outra pessoa a quem seja
disponibilizada a verba – bastando, para sua configuração, que seja aplicado, com
desvio de finalidade, o numerário obtido mediante financiamento público.
Trata-se, portanto, de crime comum e, nesse sentido, encontra-se a doutrina
abalizada, como por exemplo, de LUIZ REGIS PRADO, quando afirma:
2. Bem jurídico e sujeitos do delito
Tutelam-se a execução da política de crédito do estado, bem como o
patrimônio da instituição e dos investidores (delito pluriofensivo).
818
Jurisprudência da SEXTA TURMA
Sujeito ativo do delito é qualquer pessoa que, tendo obtido o financiamento,
desvia-o de sua finalidade (delito comum).
Sujeitos passivos são o Estado e a própria instituição financeira.
(in Direito Penal Econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 320).
Nesse diapasão, ainda, PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR (in “Crimes
do Colarinho Branco”. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 131), GUILHERME
DE SOUZA NUCCI (in Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 4ª
ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 1.111) e JOSÉ
CARLOS TÓRTIMA (in Crimes Contra o Sistema Financeiro. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 137).
Assim, conquanto o paciente não tenha contraído diretamente o
financiamento público, o fato é que a denúncia revela que a sua utilização se deu
com destino diverso daquele contratualmente pactuado.
A propósito, convém destacar o seguinte aresto desta Corte:
Penal. Processual. Crime contra o Sistema Financeiro Nacional. Capitulação.
Habeas corpus.
1. Comete o crime previsto na Lei n. 7.492/1986, art. 20, o agente que autoriza
a aplicação, em finalidade diversa daquela prevista em Lei ou contrato, recursos
provenientes de financiamento concedido por instituição financeira.
2. Habeas corpus conhecido; pedido indeferido.
(HC n. 11.394-MS, Rel. Ministro Edson Vidigal, DJ de 08.03.2000).
Estou, portanto, de acordo com o que disse o Relator na origem, nestas
passagens (fls. 46-47):
Não é correto afirmar que somente o tomador dos recursos junto à instituição
financeira oficial pode ser sujeito ativo do crime previsto no art. 20 da Lei n.
7.492/1986, conforme alegado pelo impetrante. Os administradores de pessoa
jurídica beneficiária do financiamento, ainda que diversa da tomadora dos
recursos, poderão incorrer nas penas cominadas no referido artigo, caso apliquem
a verba em finalidade diversa da prevista no contrato.
(...)
O valor concedido pela instituição oficial foi aplicado em atividade diversa
daquela estabelecida no contrato. Nada impede que responda, como partícipe, o
Diretor Industrial do Estaleiro Caneco - ora paciente, quando ciente da destinação
ilícita dos componentes da embarcação (dolo) ou ainda, quando não observados
os cuidados necessários à destinação dos mesmos, com a ciência de que, em
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
819
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
conseqüência desta inobservância, os mesmos poderiam ser desviados (dolo
eventual).
Tais as considerações, denego a ordem.
VOTO-VISTA
O Sr. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP): A
discussão se circunvolve a saber se o sujeito ativo na prática do delito descrito
no art. 20 da Lei n. 7.492/1986 pode ser qualquer pessoa ou somente o tomador
de recursos, isto é, se se trata de crime próprio ou crime comum. E tudo, porque
a tomadora de recursos, a Navegação Mansur SA., se comprometera a fabricar
um modelo de navio, tipo graneleiro, identificado pelo código EC-337, mas
construiu navio com o casco EC-338, encomendado às Indústrias Reunidas
Caneco SA., do que resultou denúncia do paciente, Diretor industrial do
Estaleiro Caneco. Os recursos financeiros foram obtidos junto ao Banco de
Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, daí a proibição de utilizálos com outra finalidade, a caracterizar o delito descrito no art. 20 da lei acima
referida.
O ilustre impetrante postula, pois, o reconhecimento da inépcia da
denúncia, porquanto o paciente, na condição de Diretor do Estaleiro, não
poderia praticar esse crime, porque não integrava a diretoria da Navegação
Mansur SA. Crime próprio, cabe o trancamento da ação penal, por falta de justa
causa.
Formulado o pedido perante o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, foi
denegado, razão pela qual agora formula o mesmo pedido perante esta Corte
Superior.
O Ministro Og Fernandes, na condição de relator, denegou a ordem.
Pedi vista, para apreciar, em especial, a alegação de que se tratava de crime
próprio.
No entanto, não é o que a jurisprudência e a doutrina têm entendido, como,
aliás, bem o demonstrou o culto Relator. Há convergência de entendimento,
segundo os precedentes trazidos e conforme a doutrina, em especial, Guilherme
Nucci.
Conforme comentários de Cezar Roberto Bittencourt sobre o art. 20
da Lei n. 7.492/1986: “Sujeito ativo do crime de desvio de financiamento
820
Jurisprudência da SEXTA TURMA
para finalidade diversa da prevista pode ser qualquer pessoa que obtenha
financiamento nessas condições, sem a exigência de qualquer qualidade ou
condição especial (crime comum)”. (Crimes contra o sistema financeiros
nacional & contra o mercado de capitais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010).
De acordo com ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci: “São
considerados comuns os delitos que podem ser cometidos por qualquer pessoa;
são próprios os crimes que exigem sujeito ativo especial e qualificado, isto é,
somente podem ser praticados por determinadas pessoas.” (Manual de Direito
Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006).
Não vejo, de tal arte, como considerar a inépcia da denúncia: o delito
imputado ao paciente não é crime próprio, de modo que, podendo ser praticado
por qualquer pessoa, não fica excluído o paciente.
A questão, em meu sentir, resolve-se pela prova a ser produzida em juízo:
se o paciente participou conscientemente da fraude, sabedor de que utilizava
recursos financeiros para destinação distinta daquela proposta ao BNDES.
Meu voto, assim, acompanho o do eminente Relator.
HABEAS CORPUS N. 137.628-RJ (2009/0103503-9)
Relator: Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do
TJ-CE)
Impetrante: Fernando Augusto Fernandes e outros
Impetrado: Tribunal Regional Federal da 2ª Região
Paciente: Rebeca Daylac
EMENTA
Penal. Habeas corpus. Descaminho. Formação de quadrilha.
Lavagem de dinheiro. Inexistência de processo administrativo fiscal
encerrado em relação ao descaminho. Mesmo tratamento conferido
aos crimes contra ordem tributária. Trancamento da ação penal relativa
ao descaminho com extensão dos efeitos da decisão aos corréus.
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821
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Lavagem de dinheiro. Autonomia em relação ao crime antecedente.
Origem dos valores ilícitos. Exame aprofundado do conjunto fáticoprobatório. Existência de crimes praticados em organização criminosa.
Fundamento suficiente à manutenção do curso da ação penal sobre
lavagem de dinheiro. Trancamento em sede de habeas corpus. Medida
excepcional. Ordem concedida em parte.
1 - A Sexta Turma desta Corte firmou o entendimento de
que o tratamento conferido aos delitos previstos no art. 1º da Lei n.
8.137/1990 deve também ser aplicado ao descaminho, por se tratarem
todos, em última análise, de crimes contra a ordem tributária.
2 - Se na data do oferecimento da denúncia não havia se
encerrado o processo administrativo fiscal falta condição objetiva
de punibilidade exigida pelo tipo penal, devendo ser trancada a ação
penal que apura o descaminho, sem prejuízo de que nova denúncia
seja oferecida após o trânsito em julgado na esfera administrativa e a
respectiva constituição definitiva do crédito tributário.
3 - Inexistindo distinção entre a situação fático-processual
da paciente e dos demais acusados, no tocante ao descaminho, e
sendo aplicável a eles os mesmos fundamentos adotados em relação
à acusada, deve ser estendido a eles os efeitos da concessão da ordem,
nos termos do art. 580 do Código de Processo Penal.
4 - A majoritária jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
é no sentido de que a apuração do crime de lavagem de dinheiro é
autônoma e independe do processamento e da condenação em crime
antecedente, sendo necessário apenas sejam apontados os indícios
suficientes da prática do delito anterior.
5 - Impossibilidade de trancamento do crime de lavagem de
dinheiro, pois não há como se afirmar sem um exame aprofundado
do conjunto fático-probatório que os valores de origem ilícita são
oriundos única e exclusiva no descaminho imputado na denúncia.
6 - Somente pelo exame detalhado das provas, procedimento
próprio da instrução criminal, é que se esclarecerá se houve a
participação da paciente nos delitos imputados pelo parquet, sendo
certo que a denúncia fez menção expressa sobre a existência, em
tese, de locações simuladas nas 90 lojas do grupo, de sonegações
fiscais milionárias e “blindagem patrimonial” visando à ocultação de
822
Jurisprudência da SEXTA TURMA
patrimônio dos envolvidos. Devem os fatos apontados e as provas
constantes dos autos ser melhor analisados no bojo da respectiva
ação penal, onde a paciente poderá exercer amplamente seu direito
de defesa requerendo, inclusive, a realização de diligências e perícias,
procedimentos que sabidamente são incompatíveis com a estreita via
do mandamus.
8 - Por outro ponto, também mostra-se inviável o trancamento
da ação penal em relação ao crime de lavagem de capitais se a denúncia
imputa à paciente a prática de crimes de lavagem de dinheiro, formação
de quadrilha e descaminho, todos praticados dentro de estruturada
organização criminosa, adequando-se as condutas na previsão do
inciso VII do art. 1º da Lei n. 9.613/1998.
9 - O trancamento da ação em sede de habeas corpus é medida
excepcional que somente pode ser deferida quando se mostrar
evidente a atipicidade do fato, se verifique a absoluta falta de indícios
de materialidade e de autoria do delito ou que esteja presente uma
causa extintiva da punibilidade, hipóteses não encontradas no presente
caso, pois são apresentados na denúncia fatos que, em tese, podem
caracterizar a participação da paciente na prática de crimes em
organização criminosa e contra a administração pública, inviabilizado,
portanto, o encerramento prematuro do processo criminal em relação
ao crime previsto no art. 1º da Lei n. 9.613/1998.
10 - Habeas corpus concedido em parte para trancar a ação penal
que apura o crime de descaminho na Ação Penal n. 2006.51.01.5237229, da 2ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro,
sem prejuízo de que nova denúncia seja oferecida após o encerramento
do processo administrativo fiscal, estendo, de ofício, os efeitos desta
decisão aos corréus, nos termos do art. 580 do Código de Processo
Penal, mantido o curso da referida ação penal em relação aos demais
delitos.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Sexta
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas a seguir, por unanimidade, conceder em parte ordem de habeas
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
823
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
corpus, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator, com extensão aos corréus
Attílio Milone, Luigi Fernando Milone, Marcio Caio Roberto Buchsman,
Paulo Eduardo Laurenz Buschbaum, Josemar Luiz Torres da Silva, Samuel
Gorberg, Armando Antonio Pires Ferreira, Délio Valderato Júnior, Mariza
Gorberg, Vanuza Jardim Miranda e Maria Fernanda Moura, nos termos do voto
do Sr. Ministro Relator.
A Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura e os Srs. Ministros, Og
Fernandes e Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP) votaram
com o Sr. Ministro Relator.
Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura.
Brasília (DF), 26 de outubro de 2010 (data do julgamento).
Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-CE),
Relator
DJe 17.12.2010
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do
TJ-CE): Trata-se de habeas corpus, impetrado em favor de Rebeca Daylac,
apontando como autoridade coatora o Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
Colhe-se dos autos que a paciente foi denunciada como incursa nos arts.
288 e 334 do Código Penal e art. 1º, incisos V e VII, da Lei n. 9.613/1998, em
continuidade delitiva.
Alegam os impetrantes que falta condição objetiva de punibilidade para
os crimes de descaminho e de lavagem de dinheiro, provenientes dos supostos
descaminhos, tendo em vista que inexistia, ao tempo do oferecimento da
denúncia, procedimento administrativo fiscal encerrado.
Aduzem que a Sexta Turma firmou entendimento dispensando igual
tratamento aos crimes de contrabando e descaminho, por se tratarem, em última
análise, de crimes de natureza tributária, embora não alcançados pela Lei n.
8.137/1990.
Afirmam que a “chamada autonomia processual e de punibilidade do
crime de lavagem em relação ao crime antecedente (art. 2º, II, e art. 2º, § 1º, da
Lei n. 9.613/1998) não afasta, por óbvio, a exigência, absolutamente essencial à
824
Jurisprudência da SEXTA TURMA
formação do tipo, de que exista, ao menos em tese, o crime antecedente” e que
“acolhida a tese de inexistência desta condição para o crime de descaminho,
no caso em tela, inevitável é o reconhecimento da atipicidade do dito crime
antecedente” (fl. 32).
Pretendem nesse habeas corpus, exclusivamente, o trancamento da ação
penal em relação aos crimes de descaminho e de lavagem de dinheiro e a
anulação de todas as medidas cautelares decretadas com fundamento na suposta
prática dos delitos acima mencionados.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJCE) (Relator): Tenho que a ordem deve ser parcialmente concedida, pois esta
Turma entende que o mesmo tratamento conferido aos delitos previstos no art.
1º da Lei n. 8.137/1990 deve ser aplicado ao descaminho, por se tratarem todos,
em última análise, de crimes contra a ordem tributária.
Na conclusão da representação da Polícia Federal pela expedição de
mandados de busca e apreensão, sequestro de bens e decretação das prisões
preventivas e provisórias, pode extrair-se que inexistia procedimento
administrativo fiscal instaurado sobre o crime de descaminho apontado na
presente denúncia, verbis:
Como medida cautelar, e visando evitar futuros questionamentos de ordem
processual, solicito a Vossa Excelência que seja expressamente autorizado o
acesso aos bancos de dados dos HD’s (memória dos computadores), mídias
avulsas e celulares que venham a ser apreendidos, para que todo material possa
ser analisado pela perícia técnica, integrando o conjunto probatório.
Também represento, com lastro no art. 1º, V e VII e art. 4º, da Lei n. 9.613/1998,
pelo sequestro dos bens e valores pertencentes aos investigados, em especial
os veículos, valores em espécie acima de R$ 10 mil, e ainda dos bens imóveis,
declarando, na decisão, nulo de pleno direito qualquer ato posterior de disposição
dos referidos bens, oficiando-se na sequência aos órgãos de registro respectivos.
Sob o mesmo fundamento, represento ainda pelo bloqueio, através do sistema
disponibilizado pelo Banco Central do Brasil, das contas bancárias tituladas pelos
investigados pessoas físicas e pessoas jurídicas nas instituições que fazem parte
do Sistema Financeiro Nacional. Devendo, ainda, ser informado pelas instituições
financeiras acerca de existências de cofres mantidos pelos representados e o
conteúdo dos mesmos.
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
825
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
No que tange aos produtos comercializados nas lojas Casa & Vídeo que
sejam fruto do crime de descaminho, reiteradamente praticado pela empresa
importadora Asian Center, solicito autorização para que Auditores da Receita
Federal acompanhem as diligências e se encarreguem da apreensão das
mercadorias.
Outrossim, represento que, simultaneamente a esta operação policial, seja
determinado à Receita Federal que instaure uma ação fiscal, uma vez que as
mercadorias correm risco de serem comercializadas ou mesmo desaparecer das lojas
e depósitos.
Considerando o grande número de lojas do grupo Casa & Vídeo, represento
pela expedição de ordem judicial determinando aos diretores da Casa & Vídeo
que entreguem todas as mercadorias importadas pela empresa Asian Center,
existentes nos estoques das lojas ou em depósitos, e, ainda, informação contendo
todo o estoque real dos produtos comercializados, especificando os produtos,
preços de aquisição, fornecedores e quantidade, em formato digital, à Receita
Federal.
Por fim, solicito que a Receita Federal seja autorizada a utilizar todo material
produzido nessa investigação nos procedimentos administrativos e fiscais que forem
instaurados para apurar os crimes de descaminho, sonegação fiscal, entre outros,
vinculados às empresas mencionadas acima. (fls. 423) - g.n.
Como visto, em 10 de novembro de 2008, data da representação do setor
de inteligência da Polícia Federal, é que foi requerido o início dos procedimentos
administrativos e fiscais relativos à verificação do crime de descaminho. A
denúncia oferecida é de 03 de dezembro de 2008, sendo certo que naquela data
não havia se encerrado o processo administrativo com a respectiva constituição
definitiva do crédito tributário, inexistindo, portanto, a condição objetiva de
punibilidade exigida pelo tipo penal.
Dessa forma, deve ser trancada a ação penal que apura o descaminho,
sem prejuízo de que nova denúncia seja oferecida após o trânsito em julgado
na esfera administrativa com a respectiva constituição definitiva do crédito
tributário.
Nesse sentido é a nossa jurisprudência:
A - Descaminho (caso). Habeas corpus (cabimento). Matéria de prova
(distinção). Esfera administrativa (Lei n. 9.430/1996). Processo administrativofiscal (pendência). Ação penal (extinção).
1. Determina a norma (constitucional e infraconstitucional) que se conceda
habeas corpus sempre que alguém esteja sofrendo ou se ache ameaçado de sofrer
violência ou coação; trata-se de dar proteção à liberdade de ir, ficar e vir, liberdade
826
Jurisprudência da SEXTA TURMA
induvidosamente possível em todo o seu alcance. Assim, não procedem censuras
a que nele se faça exame de provas. Precedentes do STJ.
2. A propósito da natureza e do conteúdo da norma inscrita no art. 83 da Lei n.
9.430/1996, há de se entender que a condição ali existente é condição objetiva de
punibilidade, e tal entendimento também se aplica ao crime de descaminho (Cód.
Penal, art. 334).
3. Em hipótese que tal, o descaminho se identifica com o crime contra a ordem
tributária. Precedentes do STJ: HCs n. 48.805, de 2007, e n. 109.205, de 2008.
4. Na pendência de processo administrativo no qual se discute a exigibilidade do
débito fiscal, não há falar em procedimento penal.
5. Recurso ordinário provido para se extinguir, relativamente ao crime de
descaminho, a ação penal.
(RHC n. 25.228-RS, Relator o Ministro Nilson Naves, DJe de 08.02.2010).
B - Processo Penal. Habeas corpus. Crimes de falso, descaminho e quadrilha.
1. Inépcia formal. Falta de individualização das condutas. Constrangimento
ilegal. Ocorrência. Extensão aos corréus. 2. Descaminho. Pendência de recurso
administrativo. Ubi eadem ratio, ubi idem ius. Trancamento. Necessidade.
1. Cumpre ao acusador individualizar o comportamento típico, sob pena de
enveredar pelos sombrios caminhos da responsabilidade penal objetiva, fazendose tábula rasa da garantia constitucional da ampla defesa.
2. Não há razão lógica para se tratar o crime de descaminho de maneira distinta
daquela dispensada aos crimes tributários em geral. Com a anulação do processo
penal ab initio, verifica-se, desta forma, que o pagamento do tributo se insere
anteriormente ao recebimento de eventual nova incoativa. Assim, é de se determinar
o trancamento da ação penal no tocante ao descaminho.
3. Ordem concedida em parte, acolhido o parecer do Ministério Público
Federal, para, apenas no tocante ao Processo n. 2006.50.01.007773-8: a) anular
o processo, dada a inépcia formal de denúncia; estendendo-se os efeitos aos
demais corréus, nos moldes do art. 580 do Código de Processo Penal, e, b) em
relação ao crime de descaminho, trancar a ação penal, em razão da falta de justa
causa - pagamento do tributo antes do recebimento de eventual nova denúncia.
(HC n. 67.415-ES, Relatora a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe de
28.09.2009).
C - Penal. Habeas corpus. Descaminho. Trancamento da ação penal. Ausência
de prévia constituição do crédito tributário na esfera administrativa. Natureza
tributária do delito. Ordem concedida.
1. Consoante recente orientação jurisprudencial do egrégio Supremo Tribunal
Federal, seguida por esta Corte, eventual crime contra a ordem tributária depende,
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
827
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
para sua caracterização, do lançamento definitivo do tributo devido pela autoridade
administrativa.
2. O crime de descaminho, por também possuir natureza tributária, eis que tutela,
dentre outros bens jurídicos, o erário público, deve seguir a mesma orientação, já que
pressupõe a existência de um tributo que o agente logrou êxito em reduzir ou suprimir
(iludir). Precedente.
3. Ordem concedida para trancar a ação penal ajuizada contra os pacientes no
que tange ao delito de descaminho, suspendendo-se, também, o curso do prazo
prescricional.
(HC n. 109.205-PR, Relatora a Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada
do TJMG), DJe de 09.12.2008).
Presentes os requisitos do art. 580 do Código de Processo Penal, pois
inexiste distinção na situação fático-processual dos demais acusados, em relação
ao crime de descaminho, bem como por ser aplicável a todos os fundamentos
ora expostos, estendo aos corréus os efeitos da presente decisão para trancar o
curso da presente ação penal que apura o crime do art. 334 do Código Penal,
sem prejuízo que nova denúncia seja oferecida após o encerramento do processo
administrativo fiscal.
De outro lado, não merece prosperar o pedido de trancamento do crime
previsto no art. 1º, incisos V e VII, da Lei n. 9.613/1998.
Alegam os impetrantes que, sendo trancada a ação penal em relação
ao crime de descaminho, deixa de existir o pressuposto necessário ao
reconhecimento do crime de lavagem de dinheiro, qual seja, o crime antecedente
previsto no rol taxativo do art. 1º da referida lei.
Por primeiro, a majoritária jurisprudência desta Corte é no sentido de
que a apuração do crime de lavagem de dinheiro é autônoma e independe do
processamento e da condenação no crime antecedente, sendo necessário apenas
sejam apontados os indícios suficientes da prática do crime antecedentes.
Vejam-se:
A - Habeas corpus impetrado visando ao trancamento da ação penal em relação
aos delitos de “lavagem” de dinheiro e evasão de divisas, sob o fundamento de que o
delito tributário, seu antecedente lógico, tivera trancada a ação penal respectiva, por
falta de condição de punibilidade.
Autonomia concreta entre os três delitos.
Descabe o trancamento da ação penal que tem por objeto os delitos de evasão
de divisas, lavagem de dinheiro.
828
Jurisprudência da SEXTA TURMA
Ordem denegada.
(HC n. 133.274-RJ, Relator o Ministro Celso Limongi (Desembargador
convocado do TJSP), DJe de 31.05.2010).
B - Penal e Processual Penal. Recurso especial. Lavagem de dinheiro. Alegação
de inocorrência de continuidade delitiva e habitualidade criminosa. Ausência de
comprovação do crime antecedente. Inocorrência. Impossibilidade de apreciação
de matérias não debatidas pela Corte a quo. Falta de prequestionamento. Não
demonstração de como se deu a violação alegada ao art. 157 do CPP (antiga
redação). Súmula n. 284-STF. Detração penal. Matéria de competência do juízo de
execução penal. Violação ao princípio do ne reformatio in pejus. Regime prisional
fechado.
(...)
IV - Para a configuração do crime de lavagem de dinheiro, não é necessária a
prova cabal do crime antecedente, mas a demonstração de “indícios suficientes
da existência do crime antecedente”, conforme o teor do § 1º do art. 2º da Lei n.
9.613/1998. (Precedentes do STF e desta Corte)
V - O recurso excepcional, quanto ao permissivo da alínea a, deve apresentar
a indicação do texto infra-constitucional violado e a demonstração do alegado
error, sob pena de esbarrar no óbice do Verbete insculpido na Súmula n. 284-STF
(Precedentes).
(...)
Não conhecidos os recursos do MPF e de CAP. Conhecido parcialmente e
parcialmente provido o recurso de LRB.
(REsp n. 1.133.944-PR, Relator o Ministro Felix Fischer, DJe de 17.05.2010)
C - Habeas corpus. Lavagem de dinheiro. Supressão de instância. Inocorrência.
Mandamus conhecido. Crimes antecedentes. Indícios suficientes. Pressupostos da
lei especial atendidos. Alegação de ilicitude de provas. Necessidade de dilação
probatória. Inadequação da via eleita. Trancamento da ação penal incabível.
Ordem denegada.
1. Não há de se falar em supressão de instância, porquanto todas as questões
tratadas no mandamus também foram submetidas ao juízo a quo em defesa
prévia e apreciadas pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, por ocasião do
recebimento da denúncia ofertada contra o Prefeito, ora paciente.
2. Pela simples leitura da exordial verifica-se que o órgão acusador cumpriu a
disposição processual especial do artigo 2º, § 1º, da Lei n. 9.613/1998. Ressalte-se,
ainda, que a teor do que dispõe o inciso II do mesmo dispositivo legal, a denúncia
pelo crime de lavagem de dinheiro independe do processamento do acusado pelas
infrações que a antecedem.
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
829
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(...)
4. Ordem conhecida e denegada.
(HC n. 103.097-SP, Relatora a Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada
do TJMG), DJe de 24.11.2008)
Em segundo e não menos importante ponto, constata-se a impossibilidade
de trancamento do crime de lavagem de dinheiro, pois não há como se afirmar
sem um exame aprofundado do conjunto fático-probatório que os valores
de origem ilícita são oriundos única e exclusiva do descaminho imputado na
denúncia.
Com efeito, pode perfeitamente o capital ilícito ser oriundo de outros
crimes e somente pelo detalhamento das provas próprio da instrução criminal
que se esclarecerá se houve a participação da paciente nos delitos imputados
pelo parquet, sendo certo que a denúncia faz menção expressa sobre a existência,
em tese, de locações simuladas nas 90 lojas do grupo, de sonegações fiscais
milionárias e “blindagem patrimonial” visando à ocultação de patrimônio dos
envolvidos.
Devem os fatos apontados e as provas constantes dos autos ser melhor
analisados no bojo da respectiva ação penal, onde a acusada poderá exercer
amplamente o seu direito de defesa requerendo, inclusive, a realização de
diligências e perícias, procedimentos que sabidamente são incompatíveis com a
estreita via do mandamus.
Por outro lado e reforçando a inviabilidade de trancamento da ação penal
em relação ao crime de lavagem de capitais, constata-se pela simples leitura
da denúncia que são imputados à paciente a prática de crimes de lavagem de
dinheiro, formação de quadrilha e descaminho, todos praticados dentro de
estruturada organização criminosa.
Nesse ponto, temos a adequação das condutas na hipótese do inciso VII
da referida lei, circunstância que, por si só, já autoriza a manutenção da referida
ação penal, inexistindo, nesse ponto, qualquer constrangimento a ser sanado.
Por fim, o trancamento da ação em sede de habeas corpus é medida
excepcional que somente pode ser deferida quando se mostrar evidente a
atipicidade do fato, se verifique a absoluta falta de indícios de materialidade e
de autoria do delito ou que esteja presente uma causa extintiva da punibilidade,
hipóteses não encontradas no presente caso, pois são apresentados na denúncia
fatos que, em tese, podem caracterizar a participação da paciente na prática de
830
Jurisprudência da SEXTA TURMA
crimes em organização criminosa e contra a administração pública, conforme
já explicitado, inviabilizado, portanto, o encerramento prematuro do processo
criminal em relação ao crime previsto no art. 1º da Lei n. 9.613/1998.
Nesse sentido:
A - Habeas corpus. Formação de quadrilha e concussão. Incompetência. Questão
não analisada pelo Tribunal Estadual. Supressão de instância. Trancamento da
ação penal. Inépcia da denúncia. Inocorrência. Falta de justa causa. Hipótese não
demonstrada. Exame aprofundado das provas.
(...)
4. A teor da jurisprudência desta Corte Superior de Justiça, o trancamento da ação
penal em sede de habeas corpus é medida excepcional, somente se justificando se
demonstrada, inequivocamente, a absoluta falta de provas, a atipicidade da conduta
ou a ocorrência de causa extintiva da punibilidade, inocorrente na espécie.
5. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa extensão, denegado.
(HC n. 89.696-SP, Relatora a Minitra Maria Thereza de Assis Moura, DJe de
23.08.2010).
B - Penal e Processual Penal. Habeas corpus. Crime de receptação dolosa.
Alegado cerceamento de defesa. Supressão de instância. Não conhecimento.
Trancamento da ação penal. Alegação de ausência de justa causa. Atipicidade da
conduta não demonstrada de plano. Nulidade. Inobservância de rito. Inocorrência.
Imputação de crimes conexos. Rito determinado pela infração mais grave.
(...)
III - O trancamento da ação penal por meio do habeas corpus se situa no campo
da excepcionalidade (HC n. 901.320-MG, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio,
DJU de 25.05.2007), sendo medida que somente deve ser adotada quando houver
comprovação, de plano, da atipicidade da conduta, da incidência de causa de
extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a
materialidade do delito (HC n. 87.324-SP, Primeira Turma, Relª. Minª. Cármen Lúcia,
DJU de 18.05.2007).
(...)
Habeas corpus parcialmente conhecido e, nesta parte, denegado.
(HC n. 89.472-PR, Relator o Ministro Felix Fischer, DJe de 03.08.2009).
B - Penal. Processo Penal. Prescrição em perspectiva ou antecipada. Extinção
da punibilidade. Descabimento. Falta de previsão legal. Trancamento da ação
penal. Negativa de autoria e atipicidade. Ausência de justa causa não-evidenciada
de plano.
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
831
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1. A jurisprudência desta Corte já se firmou no sentido de não reconhecer
prescrição antecipada ou em perspectiva, em face da suposta condenação.
2. De acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, “o trancamento
da ação penal pela via de habeas corpus é medida de exceção, que só é admissível
quando emerge dos autos, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto
fático ou probatório, a atipicidade do fato, a ausência de indícios a fundamentarem
a acusação ou, ainda, a incidência de causa extintiva da punibilidade.” (HC n. 82.515SC, Relatora a Ministra Laurita Vaz, DJU 16.06.2008)
(...)
6. Habeas corpus denegado.
(HC n. 102.292-SP, Relator o Ministro Og Fernandes, DJe de 22.09.2008).
No mesmo sentido entende o Supremo Tribunal Federal:
A - Habeas corpus. Direito Penal e Processual Penal. Inexistência de fato típico.
Exame aprofundado de prova. Impossibilidade na via eleita. Trancamento da ação
penal. Excepcionalidade. Denúncia. Cumprimento ao art. 41 do CPP. Prescrição
antecipada. Inadmissibilidade. Writ parcialmente conhecido e denegado.
1. Esta Corte possui orientação pacífica no sentido da incompatibilidade
do habeas corpus quando houver necessidade de apurado reexame de fatos e
provas, não podendo o remédio constitucional servir como espécie de recurso
que devolva completamente toda a matéria decidida pelas instâncias ordinárias
ao Supremo Tribunal Federal. Precedentes.
2. A questão da inexistência de fato típico merece análise mais detida na
oportunidade do julgamento do processo, com amparo nas provas produzidas
durante a instrução processual, sob o crivo do contraditório, o que impede o
conhecimento do presente writ quanto a esse ponto.
3. O trancamento da ação penal, em habeas corpus, constitui medida
excepcional que só deve ser aplicada quando indiscutível a ausência de justa
causa ou quando há flagrante ilegalidade demonstrada em inequívoca prova préconstituída. Precedentes.
4. As condutas dos pacientes foram suficientemente individualizadas, ao
menos para o fim de se concluir pelo juízo positivo de admissibilidade da
imputação feita na denúncia.
5. É inadmissível a extinção da punibilidade em virtude de prescrição da
pretensão punitiva com base em previsão da pena que hipoteticamente seria
aplicada, independentemente da existência ou sorte do processo criminal.
Precedentes.
6. Habeas corpus parcialmente conhecido e denegado.
(HC n. 100.637, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJe de 24.06.2010).
832
Jurisprudência da SEXTA TURMA
Ação penal. Trancamento. Inadmissibilidade. Atipicidade não aparente.
Conduta atribuída que corresponde ao delito previsto no art. 333 do Código
Penal. Indícios de materialidade e autoria de eventual delito. Impossibilidade
de cognição profunda da prova no âmbito de habeas corpus. Justa causa
reconhecida. HC denegado. Precedentes.
O reconhecimento de justa causa, para trancamento de ação penal por
atipicidade do fato imputado, é inviável em sede de habeas corpus, quando dependa
de cognição profunda das provas.
(HC n. 91.516, Relator o Ministro Cezar Peluso, Dje de 04.12.2008).
Diante do exposto, concedo em parte o habeas corpus apenas para
trancar a ação penal que apura o crime de descaminho na Ação Penal n.
2006.51.01.523722-9, da 2ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do
Rio de Janeiro, sem prejuízo de que nova denúncia seja oferecida após o
encerramento do processo administrativo fiscal, estendendo, de ofício, os efeitos
desta decisão aos corréus Attílio Milone, Luigi Fernando Milone, Marcio Caio
Roberto Buschbaum, Paulo Eduardo Laurenz Buchsbaum, Josemar Luiz Torres
da Silva, Samuel Gorberg, Armando Antonio Pires Ferreira, Délio Valderato
Júnior, Marisa Gorberg, Vanuza Miranda e Maria Fernanda Moura, nos termos
do art. 580 do Código de Processo Penal, mantido o curso da referida ação penal
em relação aos demais crimes.
É como voto.
HABEAS CORPUS N. 156.668-RJ (2009/0241766-2)
Relator: Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP)
Impetrante: Marcelo Bustamante - Defensor Público
Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
Paciente: Billie Lowe
EMENTA
Habeas corpus. Tráfico de entorpecentes. Execução penal.
Estrangeiro com decreto de expulsão do país. Livramento condicional.
Impossibilidade. Ordem denegada.
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
833
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1. Um dos requisitos para obtenção do livramento condicional,
previsto no artigo 83, inciso III, do Código Penal, é a aptidão do preso
de manter a própria subsistência, mediante trabalho honesto.
2. No caso em exame, o decreto de expulsão será cumprido após
o término da prisão, de sorte que não terá o paciente oportunidade de
exercer nenhuma atividade em solo brasileiro.
3. A negativa do benefício não implica descumprimento da
Constituição Federal, que não faz distinção entre presos brasileiros e
estrangeiros. A questão é que o paciente não preenche os requisitos
para o atendimento de sua pretensão.
4. Coação ilegal não caracterizada.
5. Ordem denegada.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, denegar a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJCE) e Og Fernandes votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Og Fernandes.
Brasília (DF), 02 de dezembro de 2010 (data do julgamento).
Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), Relator
DJe 17.12.2010
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP):
Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de Billie Lowe, sob alegação
de coação ilegal por parte do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Consta dos autos que o paciente, de nacionalidade norte-americana, fora
834
Jurisprudência da SEXTA TURMA
condenado a cinco anos, sete meses e quinze dias de reclusão, pela prática do
delito previsto no artigo 12; combinado com o artigo 18, inciso I, ambos da
Lei n. 6.368/1976, tendo em trâmite na Vara das Execuções Penais uma carta
de execução de sentença expedida pela Sétima Vara Federal Criminal. A defesa
pleiteou, perante o juízo da execução, o benefício do livramento condicional, o
qual foi indeferido. Impetrado habeas corpus perante o Tribunal a quo, a ordem
foi denegada. Aduz o impetrante que o paciente está sofrendo coação ilegal,
porquanto o fundamento do indeferimento do pedido foi a existência de decreto
de expulsão em seu desfavor. Pleiteia o deferimento de medida liminar, para
que seja afastado o óbice e determinado ao juízo da execução a reapreciação do
pedido; e a concessão da ordem, ao final, para tornar definitiva tal medida (fls.
02 a 09).
A liminar foi indeferida a fls. 18-19.
O Tribunal apontado como autoridade coatora prestou as informações de
fls. 26-28.
O Ministério Público Federal opinou pela denegação da ordem (fls. 3942). O parecer portou a seguinte ementa
Habeas corpus. Execução penal. Tráfico ilícito de drogas. Paciente estrangeiro.
Existência de decreto de expulsão. Pedido de livramento condicional.
Improcedência. Requisito objetivo-temporal de 2/3 da pena não satisfeito (CP,
art. 83, V). Divergência jurisprudencial existente entre a Quinta e a Sexta Turma
do Superior Tribunal de Justiça quanto à questão consistente em definir se a
existência de decreto de expulsão contra condenado obsta ou não o cumprimento
de requisito subjetivo para a concessão de livramento condicional. Parecer no
sentido da denegação da ordem, e, evidenciado o dissídio jurisprudencial, no
sentido de que o debate acerca da controvérsia jurídica apontada seja afetado à
Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP)
(Relator): O v. acórdão hostilizado foi assim ementado
Habeas corpus. Livramento condicional. Paciente condenado por infração ao art.
12 c.c. art. 18, I, da Lei n. 6.368/1976, alegando constrangimento perpetrado pelo
Juiz de Direito da Vara das Execuções Penais, que indeferiu o pleito de livramento
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
835
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
condicional, ante o decreto de expulsão em desfavor do paciente. Agiu com
acerto o D. Juiz, eis que inviável a concessão do livramento condicional, uma
vez que em sendo o ora paciente estrangeiro e não possuindo nenhum vínculo
com o país, poderia frustrar a aplicação da lei penal. Ademais, já exise decreto de
expulsão do país (fls. 27), cuja efetivação condiciona o integral cumprimento da
pena, como bem asseverou ao L. Procuradoria de Justiça: “Consta que o apenado
foi expulso do país - fls. 27, o que inviabiliza a obtenção do benefício, que exige
dentre outros requisitos, ocupação lícita - art. 312, § 1º, a, LEP”. Inexistência de
constrangimento ilegal. Ordem denegada.
Anoto, em primeiro lugar, que o requisito objetivo - cumprimento de dois
terços da pena - foi preenchido em 27 de maio de 2010. Cf. fls. 26 e o parecer do
Ministério Público Federal.
Há precedente desta e. Sexta Turma, do qual foi relator o eminente Ministro
Haroldo Rodrigues, no qual foi reconhecida a possibilidade de concessão do
livramento condicional ao preso estrangeiro, com decreto de expulsão.
Confira-se:
Agravo regimental. Habeas corpus. Execução penal. Estrangeiro. Livramento
condicional. Posssibilidade.
1. A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça firmou compreensão no
sentido de ser cabível a concessão do livramento condicional ao estrangeiro preso e
condenado no Brasil, a despeito de haver decreto de expulsão, sob pena de violação
do princípio constitucional da individualização da pena.
2. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no HC n. 113.080-RJ, relator Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador
convocado do TJ-CE) (8.195), DJe 31.08.2009).
A matéria não é pacífica, porém.
Consultar a turma, no sentido de se afetar a matéria, para que seja discutida
na terceira sessão).
Com efeito, dispõe o artigo 83 do Código Penal
Art. 83 - O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena
privativa de liberdade igual ou superior a 02 (dois) anos, desde que: (Alterado pela
L-007.209-1984)
I - cumprida mais de um terço da pena se o condenado não for reincidente em
crime doloso e tiver bons antecedentes;
II - cumprida mais da metade se o condenado for reincidente em crime doloso;
836
Jurisprudência da SEXTA TURMA
obs.dji.grau.4: Reincidência
III - comprovado comportamento satisfatório durante a execução da pena,
bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover à
própria subsistência mediante trabalho honesto;
IV - tenha reparado, salvo efetiva impossibilidade de fazê-lo, o dano causado
pela infração;
V - cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime
hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e
terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza.
(Acrescentado pela L-008.072-1990).
Da leitura dos requisitos acima verifica-se que, no tocante ao inciso III,
é impossível ao paciente preenchê-lo. E isto, porque, se possui ele decreto de
expulsão, não poderá exercer nenhuma atividade em solo brasileiro, porquanto
após a cumprimento da pena, será ele efetivamente expulso do país.
Anoto que a negativa do benefício do livramento condicional não implica,
no caso em exame, descumprimento da Constituição Federal, a qual não faz
diferença entre presos brasileiros e estrangeiros. A situação do preso estrangeiro
com decreto de expulsão é diversa em relação ao estrangeiro irregular. A situação
irregular não impede a concessão do livramento condicional, porquanto poderá
o agente regularizar sua situação. E isto não ocorre com o preso com decreto de
expulsão, pois ele não poderá permanecer no país.
Confiram-se, a propósito, os seguintes precedentes
Execução penal. Habeas corpus. Estrangeiro. Inquérito para fins de expulsão
instaurado. Livramento condicional. Impossibilidade de preenchimento de
requisito subjetivo. Ordem denegada.
1. O art. 83, inciso III, do Código Penal exige, como requisito para a obtenção do
livramento condicional, a “aptidão para prover à própria subsistência, mediante
trabalho honesto”.
2. O estrangeiro com decreto de expulsão formalizado não supre o requisito
subjetivo, dada a impossibilidade do exercício profissional. Precedentes do STJ.
3. A permanência do estrangeiro no meio livre constitui afronta ao próprio
interesse do Estado, já que a sua presença foi declarada como indesejada.
4. Ordem denegada.
(HC n. 134.997-RJ, relator Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, DJe
14.12.2009).
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
837
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Habeas corpus. Paciente estrangeiro, com decreto de expulsão expedido contra
si. Livramento condicional. Ausência dos requisitos autorizadores da medida.
Inadmissibilidade da concessão do benefício. Precedentes desta Corte Superior.
Parecer do MPF pela denegação da ordem. Ordem denegada.
1. Conforme orientação há muito sedimentada nesta Corte Superior, se o
estrangeiro já tem contra si um decreto de expulsão, falta-lhe um dos requisitos para
o livramento condicional, pois a permanência irregular no mercado de trabalho é
contrariar o interesse do próprio Estado que a determinou. Precedentes deste STJ.
2. O benefício pleiteado pelo paciente lhe foi negado em função da
impossibilidade de se sujeitar o cumprimento das condições próprias ao exercício
do livramento condicional, uma vez que pesa sobre si decreto de expulsão,
condicionado ao cumprimento da pena.
3. Parecer do MPF pela denegação da ordem.
4. Ordem denegada.
(HC n. 114.497-RJ, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 18.05.2009).
Execução penal. Habeas corpus. Livramento condicional. Estrangeiro com
decreto de expulsão. Impossibilidade do exercício de profissão honesta no meio
livre. Ausência de requisito legal para o benefício. Pedido não conhecido.
1 - Inexiste óbice ao estrangeiro para obtenção do livramento condicional,
desde que reúna os requisitos objetivos e subjetivos para sua obtenção.
2 - O estrangeiro que já teve determinada a sua expulsão, mas cumpre pena,
está apenas a aguardar esse cumprimento para sair do país, posto que não é
possível executar sua sentença condenatória noutro Estado.
3 - Se o estrangeiro já tem contra si um decreto de expulsão, falta-lhe a aptidão
de exercer no meio livre um trabalho honesto, necessário ao seu sustento, um dos
requisitos para o livramento condicional.
4 - Permitir que o estrangeiro, cuja presença foi considerada indesejável, ante um
decreto de expulsão, permaneça irregularmente no meio livre é contrariar o interesse
do próprio Estado que a determinou.
5 - Pedido não conhecido.
(HC n. 99.530-SP, relatora Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do
TJ-MG), DJe 06.10.2008).
O Supremo Tribunal Federal já decidiu
Habeas corpus. Execução penal. Decreto de expulsão de estrangeiro. Pedido de
livramento condicional. Inadmissibilidade. Ordem denegada.
1. É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de que o decreto
de expulsão, de cumprimento subordinado à prévia execução da pena imposta no
País, constitui empecilho ao livramento condicional do estrangeiro condenado.
838
Jurisprudência da SEXTA TURMA
2. A análise dos requisitos para concessão do benefício de livramento
condicional ultrapassa os limites estreitos do procedimento sumário e
documental do habeas corpus.
3. Ordem denegada.
(HC n. 99.400, relatora Ministra Carmen Lúcia, DJe. 28.05.2010).
Execução penal. Livramento condicional: inadmissibilidade.
O decreto de expulsão, de cumprimento subordinado à prévia execução
da pena imposta no País, constitui empecilho ao livramento condicional de
estrangeiro condenado.
(HC n. 83.723, relator Ministro Sepúlveda Pertence, J. 09.03.2004).
Não está, pois, caracterizada na espécie a coação ilegal descrita na inicial,
pois as instâncias inferiores indeferiram o pedido de livramento condicional,
porque o paciente, com decreto de expulsão do país, não preenche os requisitos
para o atendimento de sua pretensão.
Em face do exposto, denego a ordem.
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N. 14.874-MS
(2002/0058367-2)
Relator: Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP)
Recorrente: Munir Yusef Jabbar
Advogado: André Luiz Borges Netto
Tribunal de Origem: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do
Sul
Impetrado: Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça do Estado
de Mato Grosso do Sul
Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul
Recorrido: Estado de Mato Grosso do Sul
Procurador: Wilson Vieira Loubet e outro(s)
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
839
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
EMENTA
Recurso ordinário em mandado de segurança. Juiz de direito
substituto. Inaptidão para o vitaliciamento observada durante
o procedimento administrativo. Inexistência de ilegalidade a ser
reparada. Recurso ordinário a que se nega provimento.
1. O não vitaliciamento de juiz de direito substituto, em razão
de omissão de informação quanto a práticas de crimes, não se mostra
dezarrazoado nem desproporcional, mas sim, condizente com a busca
da ética na magistratura.
2. Recurso ordinário em mandado de segurança a que se nega
provimento.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro
Relator.
Os Srs. Ministros Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do
TJ-CE), Maria Thereza de Assis Moura e Og Fernandes votaram com o Sr.
Ministro Relator.
Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura.
Brasília (DF), 07 de dezembro de 2010 (data do julgamento).
Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), Relator
DJe 17.12.2010
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP):
Trata-se de recurso ordinário em mandado de segurança interposto por Munir
Yusef Jabbar contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do
Mato Grosso do Sul, assim ementado (fls. 1.264):
840
Jurisprudência da SEXTA TURMA
Mandado de segurança. Autoridade coatora. Pessoa jurídica de direito público.
Ilegitimidade passiva. Atuação funcional e defesa de suas atribuições. Preliminar
rejeitada.
Aquele que age com dominação, mesmo que seja órgão público
despersonalizado, mas com prerrogativas próprias de autoridade, é parte legítima
passiva para o mandado de segurança.
Mandado de segurança. Processo administrativo disciplinar. Magistrado.
Estágio probatório. Análise da idoneidade moral, aptidão, disciplina, eficiência
e outros atributos profissional e pessoal. Conhecimento de fatos que denotam
conduta incompatível com a dignidade, com a honra e com o decoro da
função judicante. Omitidos na fase concursal e após nomeação. Mérito do
ato administrativo. Conveniência e oportunidade. Apenado com demissão.
Ilegalidade e direito líquido e certo inexistentes. Obediência ao princípio
da razoabilidade e ao da proporcionalidade. Inc. II do art. 299 do Código de
Organização e Divisão Judiciária e inc. II do art. 47 da Lei Complementar n.
35/1979 (Loman). Segurança denegada.
O estágio probatório, a que é submetido o servidor público, tem por escopo
a avaliação e a análise, pela administração pública, não só do desempenho
profissional do analisando, mas, também, as características e atributos pessoais
que possam influenciar na carreira judicante.
A omissão a fatos e procedimentos na atuação profissional e pessoal do
candidato, na fase de concurso e mesmo após a nomeação para o cargo de
juiz, que tenham o condão de repercutir, negativamente, na dignidade, honra e
decoro do servidor e para a administração pública, por serem incompatíveis com
o exercício judicante, é questão de mérito do ato administrativo, significando
oportunidade e conveniência dele.
A aplicação da pena de acordo com a norma vigente e com a gravidade dos
fatos, não ofende os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
Em suas razões de recurso ordinário (fls. 1.267-1.295), sustenta o
recorrente:
1) a decisão pelo seu não vitaliciamento como Magistrado não se mostra
razoável, muito menos proporcional, podendo às condutas praticadas ser
aplicada sanção menos gravosa como advertência ou censura, previstas no art.
293 da Lei Estadual n. 1.511/1994 e art. 42 da Loman, como ocorreu no caso
do RMS n. 4.012-MG, da Sexta Turma, Relator o Ministro Adhemar Maciel;
2) as hipóteses elencadas pela Lei Estadual n. 1.511/1994, art. 299,
destinam-se a regular condutas praticadas no exercício da Magistratura, mas
na espécie se está diante de fatos supostamente praticados antes do exercício da
judicatura;
RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011
841
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
3) no tocante à prática do crime de peculato, quando exerceu o cargo de
procurador do município de São Pedro do Sul-RS, ajuizou revisão criminal, a
qual foi provida, decretando-se a nulidade do processo penal a partir da sentença
condenatória, estando tramitando, no presente momento, novo processo penal,
para apuração dos mesmos fatos;
4) já quanto ao outro processo penal, cuja tramitação se deu na comarca de
Chapecó-SC, os fatos apurados como apropriação indébita, praticados quando
foi advogado da Sadia, não poderiam ter sido tipificados como crime, pois se
teriam dado em razão da desorganização da tesouraria da empresa Sadia;
5) após a investidura no cargo de juiz substituto sempre teve boa conduta e
atuação profissional ilibada;
6) em procedimentos administrativos disciplinares instaurados para apurar
condutas cuja pena era a de demissão, outros servidores do Tribunal de Justiça
do Estado de Mato Grosso do Sul obtiveram penas menos gravosas;
7) não existia à época do concurso para juiz, cláusula do edital do certame
que exigisse do candidato apresentação de declaração de que o candidato não
está respondendo a inquérito policial e que não tem contra si ação penal por
crime de qualquer natureza.
O prazo para apresentação das contrarrazões ao recurso ordinário em
mandado de segurança decorreu in albis, conforme certificado a fls. 1.303.
Noticiam os autos que o recorrente, após aprovação em concurso público,
foi nomeado para o cargo de Juiz de Direito substituto do Tribunal de Justiça
do Estado do Mato Grosso do Sul, tendo exercido suas funções nas comarcas de
Coxim, Chapadão do Sul e Amabaí.
Após o Corregedor Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado
de Mato Grosso do Sul tomar conhecimento (fls. 32-37) de documentos que
atestavam a existência de dois fatos: prática de crime capitulado no art. 312
do CP e do crime capitulado no art. 171, caput, do CP, por trinta vezes, na
forma continuada, em concurso material com o art. 168, § 1º, III, do CP, por
duas vezes, também na forma continuada, práticas essas que comprometiam
o vitaliciamento do Juiz, ora recorrente, foi oferecida ao Presidente do TJMS representação pela Corregedoria Geral de Justiça, para instauração de
procedimento administrativo destinado ao não vitaliciamento do recorrente no
cargo de Juiz de Direito.
Instaurado o procedimento administrativo (fls. 492), concluiu-se pelo não
vitaliciamento e consequente exoneração do recorrente (fls. 842).
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Jurisprudência da SEXTA TURMA
Contra o resultado final do procedimento administrativo de não
vitaliciamento do recorrente, que levou à sua exoneração do cargo de Juiz de
Direito Estadual, se impetrou mandado de segurança.
As informações prestadas pela autoridade tida coatora (fls. 1.163-1.223),
concluiram não se afigurar possível constranger o Poder Judiciário do Estado de
Mato Grosso do Sul a manter em seus quadros quem ali ingressou por omissão
dolosa acerca de fatos relevantes que impediriam seu acesso à magistratura do
Estado.
Ao julgar o mandamus, o Tribunal a quo denegou a segurança, nos termos
da ementa supra transcrita.
Interposto o recurso ordinário em mandado de segurança, os autos
ascenderam ao STJ.
O Ministério Público Federal, em seu parecer constante a fls. 1.313-1.322,
opina pelo não provimento do recurso ordinário.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP)
(Relator): O presente recurso ordinário em mandado de segurança ataca acórdão
proferido pelo Tribunal Pleno do TJ-MS, o qual manteve decisão administrativa
de não vitaliciamento no cargo de Juiz de Direito do Estado do Mato Grosso
do Sul.
As razões de recorrer se pautam, em síntese, nos seguintes argumentos:
a) os fatos motivadores do não vitaliciamento e da demissão foram anteriores
ao exercício da judicatura; b) inexistência de sentença penal condenatória
transitada em julgado, por força de decisão judicial, em tema de revisão criminal,
que reconheceu nulidade no processo penal pelo crime de peculato; c) a pena de
demissão é violadora dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
A argumentação do recorrente para embasar a alegação de ilegalidade do
ato administrativo de seu não vitaliciamento recai sobre o tempo em que as
condutas ilícitas foram cometidas, isto é, antes de sua investidura no cargo de
Juiz de Direito substituto.
Neste ponto, cumpre registrar que a existência de condenação penal pela
prática de crime de peculato, art. 312 do CP, com sentença transitada em
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
julgado, é fato incontroverso, como também o é a ação penal, ainda, em trâmite
na Justiça Estadual de Santa Catarina, na qual se apura a prática de crime de
estelionato, art. 171 do CP, por trinta vezes, na forma continuada e em concurso
material com o crime tipificado no art. 168, § 1º, III, do CP, apropriação
indébita.
No meu modo de sentir o fundamento apontado compromete indelevel
e inexoravelmente, conforme afirmado pelo Ministério Público Federal em
seu parecer, o exercício da função judicante. É por si só, suficientemente forte
para que o Tribunal de Justiça, ao avaliar a conveniência do vitaliciamento do
Magistrado, decida por negá-lo ao recorrente.
A despeito da procedência da revisão criminal para desconstituir sentença
penal condenatória do crime de peculato, entendo que mesmo desconstituído o
título por nulidade de forma, a prática do fato não fica afastada.
Acrescente-se que o processo penal para apuração da prática de peculato
está em curso na Quarta Câmara do TJ-RS, em tema de apelação, tendo
sido impetrado habeas corpus no STJ, para reclamar contra o cálculo da pena,
distribuído a minha Relatoria, cuja ordem fora denegada nos autos HC n.
173.060-RS, autos já arquivados.
De igual modo, a omissão acerca da prática das condutas tipificadas
como estelionato e apropriação indébita, ainda apuradas em processo penal
em tramitação na comarca de Chapecó-SC, revela-se reprovável e contrária à
conduta de um Magistrado.
A Constituição Federal, em seu art. 95, I, prevê que a garantia de
vitaliciedade dos Magistrados, no primeiro grau de jurisdição, “só será adquirida
após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de
deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado.
Não há na Constituição Federal e nem na Lei Orgânica da Magistratura
Nacional diretrizes ou princípios norteadores específicos ao período de estágio
probatório dos juízes.
Inexiste no Brasil a formação institucionalizada de magistrados, o que
ocorre em Portugal, na França e na Espanha. O acompanhamento do novo juiz
deve ser aprimorado e efetivado por cada Tribunal. É aos Estados-membros que
compete a organização de suas Justiças.
Feitas essas digressões, cumpre observar que no Estado do Mato Grosso
do Sul, o procedimento de vitaliciamento do juiz substituto é estabelecido pelo
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Jurisprudência da SEXTA TURMA
art. 191 e seguintes do Código de Organização e Divisão Judiciária do Estado
do Mato Grosso do Sul.
De feito, o Código de Organização e Divisão Judiciária do Estado do
Mato Grosso do Sul, Lei Estadual n. 1.511/1994 reza em seus arts. 191 e 197
in verbis:
Art. 191. A vitaliciedade será adquirida pelo magistrado mediante aprovação
em estágio probatório de dois anos de efetivo exercício do cargo, a ser cumprido
de conformidade com o exposto neste capítulo.
Parágrafo único. Além do desempenho funcional, será considerada a conduta
pessoal e pública do estagiário, na medida em que comprometa a dignidade da
instituição, ao critério do Tribunal Pleno.
Art. 197. Constatada, a qualquer tempo, a ocorrência de fato que desde logo
comprometa a aprovação do estagiário, devidamente comprovado através
de sindicância promovida pela Corregedoria-Geral de Justiça, o Presidente
do Conselho Superior da Magistratura deverá solicitar ao Tribunal Pleno,
fundamentadamente, a exoneração do magistrado estagiário.
Frise-se, ainda, que consta do edital do certame, art. 15, item destinado aos
requisitos para inscrição definitiva, dos quais se destacam: a alínea c que exige a
apresentação de certidão do órgão disciplinar a que estiver sujeito o requerente,
comprovando não estar sendo processado, nem ter sido punido por faltas no
exercício da profissão, cargo ou função; alínea d que exige a apresentação de
certidão dos distribuidores criminais das Justiças Federal, Estadual, Eleitoral,
Militar Estadual e Federal, dos lugares em que haja residido nos últimos dez
anos (fls. 38; 577-578); alínea g que exigiu do candidato apresentação de
curriculum vitae detalhado e rigorosamente cronológico, com indicação dos
lugares em que teve residência nos últimos dez anos, com exata indicação dos
períodos e locais de atuação como advogado, magistrado, membro do Ministério
Público ou da Defensoria Pública, bem como empregos particulares e outras
funções públicas exercidas, nomeando as principais autoridades com as quais
serviu ou atuou.
Na espécie, o recorrente era Juiz de Direito em estágio probatório. Omitiu,
quando da inscrição no concurso público, que estava sendo processado pelos
crimes de peculato (fls. 503), estelionato e apropriação indébita.
Ainda, há registro nos autos (fls. 503) de que o recorrente não indicou
nenhuma autoridade judicial que tivesse em exercício, quando de sua atuação
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como advogado da Sadia, e como procurador do município de São Pedro do
Sul-SC, dificultando as atividades de investigação da Corregedoria Geral de
Justiça, quando da avaliação de investigação de sua vida profissional.
É de ver que, além de ter omitido tais fatos tanto da banca examinadora
do concurso a que se submeteu o recorrente, quanto do Tribunal, os processos
a que respondeu e responde, em ambos já condenado, comprometem,
irremediavelmente, a função judicante.
Os fatos tidos delituosos, existentes já ao tempo em que ocorreu a inscrição
do candidato, comprometem, deveras, o vitaliciamento do Juiz.
Colhe-se do depoimento do recorrente (fls. 706) que o interrogado
reconheceu:
1) que, ao tempo da inscrição para o concurso de Juiz de Direito substituto
do Estado do Mato Grosso do Sul, tinha conhecimento da existência da ação
penal que resultou em sua condenação;
2) que, ao tempo da entrevista, após as provas escritas, tinha conhecimento
da ação penal, para apuração do crime de peculato, embora ainda não existisse a
sentença;
3) que não mencionou esses fatos à banca examinadora porque o edital
exigia apenas a entrega de certidões negativas criminais e, no Rio Grande do
Sul as certidões criminais negativas são expedidas ainda que em curso processo
crime, sem condenação com trânsito em julgado;
4) que não mencionou à banca examinadora os fatos relacionados ao
crime de estelionato, praticado em Chapecó-SC, porque à época da inscrição
definitiva, tramitava, apenas, o inquérito policial.
Outrossim, conforme anotado na conclusão do procedimento
administrativo de não vitaliciamento que o fato de que o recorrente sempre se
portou como Magistrado cumpridor de suas funções; que jamais teve sanção
disciplinar, ou alguma anotação em sua ficha funcional, e que sempre teve boa
conduta e atuação profissional o que nem de longe o beneficia. Isto, porque tais
registros não passam de dever inerente ao exercício da função da magistratura.
Ninguém pode ser beneficiado pela própria torpeza, de sorte que a
omissão dos fatos delituosos e a existência de procedimento e processo penal
prejudicaram, totalmente, o vitaliciamento do recorrente como Juiz de Direito e
legitimou o consequente ato de demissão.
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Jurisprudência da SEXTA TURMA
O tema ultrapassa o ordenamento jurídico e alcança a ética e a moral da
figura do Magistrado.
Nos dizeres do doutor pela Universidade de São Paulo José Raimundo
Gomes da Cruz, “o necessário prestígio das funções do magistrado não só exige
que ele tenha conduta funcional incensurável, como sua conduta particular
deverá ser exemplar”. ( José Raimundo Gomes da Cruz, in Lei Orgânica da
Magistratura Nacional Interpretada, Editora Oliveira Mendes, 1998, p. 47).
Colhe-se do professor de filosofia do Direito na Universidade Pompeu
Fabre, de Barcelona, Espanha, Jorge F. Malem Seña, a lição de que “o juiz deve
ser mais sábio que engenhoso, mais respeitável que simpático e popular, e mais
circunspecto que presunçoso. Mas antes de tudo deve ser íntegro, sendo esta
para ele uma virtude principal, e a qualidade própria do seu ofício”. ( Jorge F.
Malem Seña, Revista de Direito Mercantil, volume 108, Editora Malheiros, p.
158).
Indaga José Eduardo Faria, no tocante à formação de magistrados no
Brasil, se basta para a magistratura uma formação profissional, simplesmente,
normativista, apta a valorizar basicamente os lógico-formais do direito positivo.
( José Eduardo Faria, citado por Vicente de Paula Ataide Junior, in O Novo Juiz
e a Administração da Justiça. Repensando a Seleção, a Formação e a Avaliação
dos Magistrados no Brasil, Editora Juruá, 2006, p. 69)
José Renato Nalini, um dos maiores conhecedores do tema relativo à
formação de magistrados no Brasil, estimula o pensar quanto à postura mental
do magistrado. Entende o jurista que a verdadeira e única reforma possível
do Judiciário brasileiro é a remodelação da consciência do juiz. Construção
individual, lenta e contínua. Derivada de um compromisso assumido pelo juiz
inicialmente para consigo mesmo. Para só então exteriorizar-se nas dimensões
de seu relacionamento com o próximo, com a comunidade, com o ambiente e
com a Providência. ( José Renato Nalini é citado por Vítor Barboza Lenza, in
Magistratura Ativa, Editora AB, 2000, p. 107).
Merece destaque o desabafo do jurista José Renato Nalini in verbis:
A ética está em todos os discursos. A propósito de qualquer acontecimento,
levantam-se as vozes dos moralistas a invocar a necessidade de reforço ético.
Ética, infelizmente, é moeda em curso até para os que não costumam se portar
eticamente. Por isso, compreensível que muitos já não acreditem no termo ética.
Trivializou-se o chamado à ética, para servir a qualquer objetivo. Além disso, a
utilização excessiva de certas expressões compromete o seu sentido, como se o
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
emprego freqüente implicasse em debilidade semântica. Isso parece ocorrer com
os vocábulos justiça, liberdade, igualdade, solidariedade, direitos humanos e
também com o termo ética.
A invocação exagerada a tais palavras, em contextos os mais diversos,
conseguiu banalizar seu conteúdo. Situam-se em todos os discursos, ensaios e
manifestações. Não há mais fronteiras ideológicas entre elas: todos se valem do
prestígio de seu conteúdo. Ante seu pronunciamento, os ouvidos se amparam
em certa insensibilidade, pois acredita-se não mais haver necessidade dessa
reiteração.
(...)
Entretanto, nunca foi tão urgente, como hoje se evidencia, reabilitar a ética. A
crise da Humanidade é uma crise de ordem moral.
(...)
Ética é a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. (...) O
objeto da Ética é a moral. (...)
Todas as profissões reclamam proceder ético. (...)
Na atividade profissional jurídica, porém, essa importância avulta. Pois o
homem das leis “examina o torto e o direito do cidadão no mundo social em
que opera; é, a um tempo, homem de estudo e homem público, persuasivo
e psicólogo, orador e escritor. A sua ação defensiva e a sua conduta incidem
profundamente sobre o contexto social em que atua. Mercê da intensa intimidade
entre ética e direito, não é fácil delimitar a fronteira entre o moral e o jurídico.
É nas ciências jurídicas que as normas dos deveres morais se põem com toda a
nitidez. (...)
Numa época de moral em frangalhos, tantos maus exemplos em todas as
esferas de atuação pública, o Brasil precisa de juízes essencialmente éticos,
irrepreensivelmente éticos, não de juízes que apenas dominam a técnica. (...)
Por último, a virtude como dever legal. A lei exige que o juiz brasileiro mantenha
conduta irrepreensível na vida pública e particular. Conduta irrepreensível
é conceito que não se encontra na doutrina. Seria a conduta insuscetível de
repreensão, aqui entendida como admoestação, repúdio, reprovação ou censura
de parte da comunidade. O legislador retomou, para o Judiciário no Brasil, a
noção desprestigiada de virtude, como qualidade que deveria alcançá-lo a uma
condição de melhor julgar os seus semelhantes. Espera-se daquele que julga, se
acautele para não dar maus exemplos. Quem faz incidir sobre os outros a rigidez
da lei, deveria situar-se num patamar condigno, senão incólume, ao menos
aparentemente blindado por seus atributos de pessoa de bem. A qualidade
da justiça está indissoluvelmente vinculada à qualidade dos que receberam a
atribuição legal de concretizá-la. (José Renato Nalini, in Ética Geral e Profissional,
Editora Revista dos Tribunais, 5ª edição, 2006, páginas 23; 24; 25; 297; 411 e 412).
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Jurisprudência da SEXTA TURMA
As práticas delituosas foram omitidas da banca examinadora do concurso
pelo recorrente, as quais somente foram descobertas pela Corregedoria por
provocação de terceiros, que fizeram chegar ao Tribunal de Justiça os registros
de prática delitiva por parte do recorrente.
Há, portanto, perfeita equivalência entre a demissão do recorrente e a
conduta por ele realizada, conforme apurado no processo de avaliação de seu
estágio probatório. Ademais, o ato de não vitaliciamento tem por consequência
lógica a demissão.
Não se verifica ter havido afronta aos princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade em razão da demissão. Neste ponto, cumpre salientar que os
fatos apurados no procedimento administrativo de não vitaliciamento são de
extrema gravidade, fatos esses devidamente apurados, os quais demonstram a
inadequação funcional do recorrente para permanecer na magistratura.
Acreditar no ser humano, antes de analisar a necessidade de sancioná-lo, é
tarefa que se impõe. E, o Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul
acreditou no candidato recorrente. Todavia, a conduta deste em omitir a prática
de crimes é, deveras, repreensível ao juiz em estágio probatório que pretende seu
vitaliciamento.
O juiz há de ser visceralmente ético e vocacionado.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso ordinário em mandado de
segurança.
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