o estado islâmico e o xadrez geopolítico dos conflitos na síria

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o estado islâmico e o xadrez geopolítico dos conflitos na síria
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
O ESTADO ISLÂMICO E O XADREZ GEOPOLÍTICO DOS
CONFLITOS NA SÍRIA E NO IRAQUE
William Fujii1
RESUMO: Este trabalho busca discutir como o avanço do grupo fundamentalista Estado
Islâmico da Síria e do Iraque (EI) afetou as relações e interesses dos principais atores
envolvidos no conflito sírio-iraquiano, entendidos aqui como o regime de Bashar alAssad, um bloco amplo e heterogêneo chamado de oposição síria, Arábia Saudita, Irã,
Estados Unidos, governo iraquiano, curdos e Turquia. Como metodologia, recorreu-se à
leitura crítica de fontes secundárias como livros, jornais e periódicos sobre o assunto,
realizando uma análise da guerra civil síria e da insurgência iraquiana através de uma
perspectiva essencialmente geopolítica, sem perder de vista os elementos étnicoreligiosos presentes nesses conflitos.
PALAVRAS-CHAVE: Guerra civil na Síria; Insurgência no Iraque; Estado Islâmico;
Jihadismo.
INTRODUÇÃO
No dia 29 de julho de 2014, o grupo fundamentalista sunita Estado Islâmico da
Síria e do Iraque (EI, ISIS ou DAESH, sua sigla em árabe) anunciou a criação de um
califado e proclamou seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi, como califa e líder dos
muçulmanos de todo o mundo. Surgido no Iraque em 2006, no âmbito da insurgência
contra a ocupação anglo-americana, o grupo entrou na guerra civil síria e rapidamente
avançou contra outras facções envolvidas no conflito, surpreendendo tanto as forças do
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Mestrando em História pela Universidade de Brasília e bacharel em Ciência Política pela Universidade
de Greenwich.
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presidente Bashar al-Assad quanto os exércitos rebeldes que as combatiam, causando
grande impacto nos objetivos e nas relações entre os países e atores não-estatais
envolvidos nessa guerra.
O objetivo deste artigo é discutir o impacto da ascensão, aparentemente irresistível
em um primeiro momento, do Estado Islâmico nas estratégias e nos objetivos dos
beligerantes da guerra em território sírio e iraquiano. Dado o envolvimento de mais de
uma centena de atores estatais e não-estatais nas hostilidades, seria inviável discutir todos
em um artigo com esta extensão. Sendo assim, optou-se por estabelecer como escopo
algumas das principais partes envolvidas, focando sobretudo no regime Assad, na
oposição síria, na Arábia Saudita, no Irã, no governo iraquiano, nos curdos e na Turquia,
levando em conta o papel dos Estados Unidos. Começando por uma breve explicação da
construção da Síria e do Iraque modernos, o trabalho apresentará o pano de fundo da
guerra síria para colocar a pesquisa em contexto, para então iniciar a discussão da forma
como o avanço do Estado Islâmico está influenciando a atual guerra sírio-iraquiana e
impactando na geopolítica desses países.
A CONFIGURAÇÃO MODERNA DA SÍRIA E DO IRAQUE
Os territórios que atualmente correspondem à Síria e ao Iraque formavam parte
do Império Turco-Otomano desde o século 16, quando o mesmo atingiu seu apogeu após
anexar extensas áreas na região do Levante e da Mesopotâmia. Com a derrota dos
otomanos na Primeira Guerra Mundial, suas províncias árabes foram divididas e
colocadas sob a administração das potências europeias aliadas, ficando Líbano e Síria sob
o controle francês, enquanto a Grã-Bretanha recebeu Palestina, Transjordânia e as
províncias de Bagdá, Basra e Mossul, que viriam a constituir o Iraque. A ocupação francobritânica foi legitimada pela Liga das Nações, que instituiu o sistema de mandatos e
conferiu aos territórios ocupados um status legal através do qual se administraria os
antigos territórios otomanos na região. Nasciam, assim, de forma artificial e como parte
de uma política expansionista europeia, as atuais fronteiras políticas do Oriente Médio.
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Seguindo a lógica de ‘dividir para conquistar’, as autoridades francesas dividiram
o território em seis entidades políticas, cinco na Síria e um no Líbano, tomando como
critério as divisões étnico-religiosas das populações locais: Estado Alauíta (alauítas),
Estado de Alepo (árabes sunitas), Estado de Damasco (árabes sunitas), Grande Líbano
(cristãos maronitas e outras minorias), Jabal al-Druze (drusos) e Sandjak de Alexandretta
(turcos sunitas). Em maioria e tendo historicamente constituído a classe dominante na
região, os sunitas questionaram a estratégia de divisão dos franceses e ofereceram grande
resistência à ocupação francesa (THOMAS, 2005, p.44), deflagrando revoltas armadas
durante os anos 1920 e 1930.
Por outro lado, as populações minoritárias, como os drusos e os alauítas, viam a
administração francesa de forma mais positiva2, dado o tratamento favorável e a
autonomia que a mesma havia lhes concedido (NISAN, 2002, p.118). Um ponto de
convergência entre os franceses e as minorias muçulmanas heterodoxas estava no receio
que ambos tinham com relação ao nacionalismo árabe, fomentado pelos próprios aliados
durante a guerra contra os turcos e manifestado sobretudo nas comunidades sunitas. Para
minar o nacionalismo árabe e ao mesmo tempo evitar que ele se espalhasse entre alauítas
e drusos, o Alto Comissariado Francês os manteve fora do Estado Sírio, fundado em 1925
como resultado da fusão entre os Estados de Alepo e Damasco. Uma das consequências
da divisão promovida pelas autoridades coloniais foi a erosão da já frágil união entre as
diversas comunidades étnico-religiosas sírias, levando ao aprofundamento do sectarismo
entre sunitas de um lado e grupos minoritários de outro.
Nesse processo, os alauítas foram particularmente beneficiados pela ocupação
francesa durante o mandato. Além da autonomia recebida por meio da criação de um
Estado autônomo e independente da Síria, os alauítas foram favorecidos nessa entidade
política através de políticas públicas favoráveis de uma administração colonial
relativamente benigna (MINAHAN, 2002, p.82). Tornaram-se, assim, o grupo mais pró-
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O que não significa que não tenha havido resistência, sobretudo nos primeiros anos do Mandato Francês.
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francês do Mandato para a Síria e o Líbano, levando ao alistamento em massa de alauítas
nas forças coloniais francesas.
Não obstante, como concessão aos nacionalistas árabes após anos de pressão, o
Estado Alauíta e o Jabal al-Druze foram incorporados à República Síria, que havia sido
fundada em 1930. O Sandjak de Alexandretta formaria um Estado independente do
Mandato Francês em 1937, sendo anexado pela Turquia dois anos depois. Ao final dos
anos 1930, as autoridades francesas haviam concordado em tornar a Síria independente,
embora sua concretização só ocorresse em 1946 com o fim da Segunda Guerra Mundial.
Após a retirada das tropas francesas, a Síria continuou sendo palco de grande
instabilidade nos anos que se seguiram, testemunhando uma série de incidentes e golpes
de Estado até 1971, quando o militar e político alauíta Hafez al-Assad chegou ao poder.
Assad havia se beneficiado tanto da política francesa para os alauítas quanto da extinção
de todos os partidos sírios decretada em 1958, quando Síria e Egito formaram a breve
República Árabe Unida (1958-1961) sob a liderança do líder egípcio Gamal Abdel
Nasser. Essa união mostrou-se notoriamente desfavorável à Síria, já que a mesma perdeu
parte de sua autonomia e foi colocada em situação de subordinação ao Egito (TESSLER,
1994, p.359).
Reagindo a essa situação, um grupo de oficiais sírios planejou clandestinamente
o fim da união com o Egito, iniciando um golpe de Estado e separando a Síria da R.A.U.
em 1961. A separação síria foi seguida por uma violenta disputa pelo poder entre diversas
facções e grupos religiosos, dentre as quais as minorias heterodoxas estavam em melhores
condições de vencer, pois a comunidade sunita, além de sub-representada nas Forças
Armadas, havia sido desorganizada durante o período de ocupação francesa e de união
com o Egito.
Mais tarde, liderados por Assad, os alauítas instalaram um regime autoritário no
país, cujo presidente não foi capaz de conquistar a lealdade das lideranças sunitas ao longo
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das décadas seguintes. Constituindo menos de um quinto da população, os alauítas
passavam a dominar a política e as Forças Armadas do país, marginalizando os sunitas
que representavam mais de 60 por cento dos habitantes da Síria (AYOOB, 2013, p.42).
No Iraque, as autoridades britânicas enfrentaram violenta resistência da população
árabe desde o início. Insatisfeitos com a ocupação britânica, clãs sunitas e xiitas iniciaram
uma série de protestos que culminaram na revolta iraquiana de 1920, com pesadas baixas
para os dois lados. As autoridades coloniais desistiram do mandato e cederam às
demandas das lideranças locais de criar um reino árabe, o qual foi fundado em 1921, tendo
Faisal Ibn Hussein como rei. Membro da dinastia Hashemita, Faisal havia se refugiado
em Londres após sua expulsão de Damasco pelos franceses no ano anterior, e era visto
por Londres como figura simpática aos interesses britânicos. A monarquia iraquiana seria
derrubada em 1958, quando grupos militares comandaram um golpe contra o rei Hussein,
fundando a República do Iraque no mesmo ano. Após uma onda de golpes de Estado, o
sunita secular Saddam Hussein subiria ao poder em 1979, instalando um regime ditatorial
que duraria até 2003.
PANO DE FUNDO DA GUERRA NA SÍRIA
A guerra civil na Síria teve início no contexto da Primavera Árabe que irrompeu
na Tunísia, em dezembro de 2010, espalhando-se rapidamente pelo mundo árabe. O
movimento começou com manifestações pacíficas que defendiam pautas variadas, com
destaque para as reivindicações com caráter socioeconômico e as que giravam em torno
de reformas democráticas. Em pouco tempo, a pauta predominante dos manifestantes
passou a ser o fim do regime Assad, independentemente do que cada grupo defendia para
um eventual período pós-Assad. Filho de Hafez al-Assad, o presidente Bashar al-Assad
mantém um governo autoritário desde que subiu ao poder em 2000, apesar de breves
sinais de liberalização do regime que o mesmo emitiu no início.
Na medida em que os protestos anti-Assad aumentaram durante os primeiros
meses de 2011, as forças de segurança sírias passaram a responder com maior violência,
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o que serviu para radicalizar as tensões ainda mais. Nas primeiras semanas, porém, Assad
reagiu de forma conciliatória, tentando negociar com as lideranças oposicionistas e
prometendo reformas e outras concessões. No entanto, não foram tomadas medidas
práticas nessa direção e nenhum cronograma para as reformas foi estabelecido pelo
presidente, sendo discutível se em algum momento houve de fato qualquer intenção de se
implementar reformas democráticas.
Longe de se chegar a uma solução para a crise, a repressão do regime aumentou
ao ponto de acarretar uma deserção em massa por parte de soldados sírios solidários à
população civil, resultando na criação do Exército Livre da Síria em julho de 2011 pelo
coronel Riad Mousa al-Asaad e outros ex-oficiais do Exército Sírio. Era o fim da
Primavera Árabe e o início da resistência armada das oposições sírias.
Em que pese os eventos que representaram a causa imediata do início da guerra,
o conflito na Síria deve ser visto dentro de um contexto histórico mais amplo marcado
pelas divisões sectárias no país, incluindo a distorção existente na distribuição de poder
há mais de 40 anos. Diante do quadro de marginalização da maioria da população síria,
onde uma minoria passou a controlar as principais instituições estatais e as Forças
Armadas (NISAN, 2002, p.123), boa parte das lideranças sunitas sírias jamais se
conformou com a chegada dos alauítas ao poder, o que levou ao questionamento da
legitimidade do regime Assad ainda nos anos 1970. Dentre os grupos sunitas que se
opuseram ao governo de Hafez al-Assad, a Irmandade Muçulmana foi o que mais se
destacou, comandando uma série de atentados e insurgências entre 1976 e 1982.
A rivalidade entre a Irmandade Muçulmana e o Partido Baath teve início ainda na
década de 1950, quando ambos disputavam o poder na Síria em meio a outras forças
políticas. Diferentemente do secular regime Assad, a Irmandade Muçulmana tinha caráter
islamista e fundamentalista, tendo como base social sunitas conservadores dos centros
urbanos. Para seus membros e sunitas em geral, Hafez al-Assad e os alauítas eram infiéis
(kuffars) que não seguiam o caminho do Islã, e como tal deveriam ser combatidos e
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retirados do poder. Esse discurso, por sua vez, teve o efeito de aumentar ainda mais o
apoio das comunidades alauítas ao regime Assad, pois ele passou a ser visto por elas como
única forma de protegê-las. Em outras palavras, se as lideranças sunitas consideravam os
alauítas infiéis, e tendo em vista o histórico de opressão contra essa minoria, então a queda
de Assad poderia significar uma perseguição em grande escala a esse grupo minoritário.
Dessa maneira, a permanência da família Assad no poder passou a ser vista pelos
alauítas como sinônimo de garantia de sua sobrevivência, não apenas política, mas
possivelmente também física (KAMRAVA, 2014), visão esta reforçada após o massacre
de Hama de 1982, onde pelo menos 10 mil sunitas, em sua maioria civis, foram
assassinados por tropas sírias, enterrando qualquer possibilidade de reconciliação entre
as duas populações. Em grande medida, tal percepção permanece no cálculo político de
Bashar al-Assad na atual guerra civil. O presidente tem usado o velho temor dos alauítas
com relação à maioria sunita para justificar a repressão do regime e fortalecer o apoio ao
seu governo, com razoável grau de sucesso até o momento.
Ainda assim, fora das comunidades alauítas, o apoio a Assad é baixo. Após o
início da guerra, muitos grupos de oposição se organizaram na luta contra o governo sírio,
constituindo um bloco heterogêneo que tem em comum o objetivo de derrubar o regime
Assad. Para dar maior legitimidade ao bloco e na tentativa de formar uma espécie de
governo em exílio, a Coalizão Nacional Síria da Oposição e das Forças Revolucionárias
foi formada, tendo sido reconhecida como único representante legítimo do povo sírio por
mais de 140 países e algumas organizações internacionais, incluindo Estados Unidos,
França, Grã-Bretanha, Turquia, Liga Árabe e União Europeia (CQ RESEARCHER,
2013, p.85).
A TEIA DE RELAÇÕES NA SÍRIA E NO IRAQUE
De um modo geral, a guerra civil síria está configurada pelo envolvimento direto
e predominante do regime Assad, uma coalizão ampla chamada genericamente de
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oposição síria e vários grupos jihadistas, dos quais o Estado Islâmico do Iraque e da Síria
é o que está causando o maior impacto na geopolítica do país. Além de uma guerra civil,
contudo, o atual conflito na Síria também se caracteriza como guerra por procuração,
dado o envolvimento direto ou indireto de vários atores internacionais.
Já no Iraque, o atual conflito é uma continuação da insurgência iniciada após a
invasão da coalizão internacional liderada por Estados Unidos e Grã-Bretanha, em 2003.
Pouco tempo depois, diversos grupos iniciaram uma longa resistência armada contra as
forças de ocupação, dentre os quais se destacam remanescentes do Partido Baath leais a
Saddam Hussein, milícias tribais e fundamentalistas sunitas (RUVALCABA, 2004, p.8).
Opondo-se ao governo xiita em Bagdá, facções jihadistas continuaram a insurgência após
a retirada das últimas tropas norte-americanas em dezembro de 2011, intensificando a
luta armada no país a partir de então. Como na Síria, o conflito iraquiano também é
marcado pela participação direta e indireta de outros países.
Nesse sentido, o confronto entre duas das três maiores potências do mundo
islâmico, Arábia Saudita e Irã, ganha uma dimensão de central importância. Os dois
países disputam a liderança da comunidade islâmica internacional e possuem
significantes diferenças religiosas, políticas, de visão de mundo e de interesses. Berço do
ultraconservador wahabismo3, o regime saudita vê com preocupação a influência do Irã
na região, principalmente no Iraque pós-Saddam Hussein e nos países do Golfo, mas
também internamente, já que mais de 10 por cento de sua população é xiita. Durante a
Guerra Irã-Iraque (1980-1988), a Arábia Saudita forneceu vultosos auxílios financeiros
ao país governado pelo ditador iraquiano na esperança de derrubar a República Islâmica,
cuja exportação da revolução islâmica constitui uma das maiores preocupações de Riad
– que, aliás, a Primavera Árabe parecia confirmar (ISKANDER, 2011, p.3).
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Movimento religioso sunita baseado no puritanismo islâmico extremo e intimamente associado ao Estado
e sociedade sauditas.
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Além disso, o regime saudita possui uma aliança estratégica com os Estados
Unidos, a quem cedeu parte de suas bases militares durante a Guerra do Golfo e nos 13
anos subsequentes, enquanto o Irã mantém um discurso anti-imperialista e é visto por
Washington como um adversário permanente na região desde 1979.
Apesar da grande diferença no relacionamento dos dois países com os Estados
Unidos, ironicamente a invasão do Iraque de 2003 liderada por Washington beneficiou o
Irã e colocou a Arábia Saudita na defensiva, pois um governo xiita pró-Teerã foi eleito
em Bagdá após a derrubada de Saddam Hussein, que, embora fosse visto com
desconfiança pelos sauditas por sua inclinação secular e pan-arabista, comandava um
governo ditatorial que garantia o controle do Iraque pela minoria sunita e contribuía para
conter a disseminação da revolução islâmica pelo Irã. Com sua queda e posterior ascensão
do governo de Nouri al-Maliki, o Iraque se tornou o primeiro país árabe a ser governado
majoritariamente por xiitas4, servindo como inspiração para a população xiita da Arábia
Saudita (HABEEB, 2012, p.166), o que concorreu para aumentar a tensão entre Riad e
Teerã.
Por outro lado, o Estado persa se opõe ao wahabismo saudita e vê nos árabes e na
Arábia Saudita um agressor histórico e em potencial, respectivamente, dada a longa
relação conflituosa que o Irã tem com seus vizinhos árabes, a exemplo da invasão
iraquiana iniciada em 1980, que marcou profundamente a psique iraniana. O conflito, que
matou mais de 260 mil iranianos (RAJAEE, 1997, p.2), foi altamente traumático para a
República Islâmica, que teve como invasor um país árabe, que por sua vez recebeu U$ 25
bilhões em auxílio da Arábia Saudita (Wilson, Graham, 1994, p.104). Portanto, o
sentimento de desconfiança com relação a uma parte dos países árabes existe em Teerã
parcialmente como consequência de séculos de relações difíceis com os mesmos. E a
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O Bahrein, cuja população é em sua maioria xiita, é governado por uma monarquia constitucional sunita.
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Arábia Saudita é a maior potência árabe e berço do islamismo, o que a torna aspirante
natural à liderança do mundo muçulmano.
Na Síria, o Irã, que se aproximou do regime Assad desde que este o apoiou contra
a ofensiva de Saddam Hussein nos anos 1980, colabora com Damasco no conflito contra
as forças rebeldes. Na perspectiva de Teerã, a manutenção de Assad no poder é essencial
para sua estratégia no Oriente Médio, que consiste prioritariamente na contensão dos
Estados Unidos e na disputa com a Arábia Saudita, além do confronto com Israel, não
necessariamente direto, mas por meio de apoio a grupos como Hamas e Hezbollah. Nessa
óptica, a Síria de Assad aparece como uma peça-chave para os iranianos, pois o presidente
sírio representa um bastião contra o fundamentalismo sunita no país, além de contribuir
para evitar o isolamento do Irã no mundo árabe.
Em que pese essas diferenças, a relação entre os dois países manteve-se
relativamente estável durante os anos 1990 e a primeira metade da década seguinte,
deteriorando após o assassinato do primeiro ministro libanês Rafik Hariri, que era
próximo dos sauditas e cuja morte foi atribuída por seus aliados a Assad (PHARES, 2010
p.195). Com o início da guerra síria em 2011, os dois países se distanciaram ao ponto de
romperem relações diplomáticas, já que a Arábia Saudita posicionou-se ao lado da
oposição síria, ainda que não tenha simpatia pelos grupos pró-democracia que integravam
o bloco de oposição ao presidente.
Em vista do wahabismo que domina todas as esferas da vida política e social
saudita, o país vê a possibilidade de derrocada do Partido Baath como uma oportunidade
para tirar de cena um regime secular liderado por alauítas, vistos como hereges pela
liderança saudita, e de ver um regime sunita instalado em Damasco, hipótese mais
provável num eventual cenário pós-Assad. Mais importante para Riad, no entanto, é a
diminuição da influência do Irã que a queda de Assad representaria, visto que os dois
países formam a aliança mais sólida e duradoura entre os países da região (GOORDAZI,
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2009). Assim, o Irã tem fornecido ajuda financeira, militar e de inteligência ao regime
Assad, embora negue o envolvimento direto de suas tropas no campo de batalha.
Para além das fronteiras do Oriente Médio, o conflito na Síria envolve potências
globais como os Estados Unidos e a Rússia. Aliado da Síria desde os tempos da União
Soviética, a Rússia tem bloqueado a aprovação de resoluções contra o regime Assad no
Conselho de Segurança das Nações Unidas, vetando iniciativas do órgão que buscam
aprovar medidas severas contra Damasco. No front interno, Moscou é o maior fornecedor
de ajuda militar à Síria juntamente com o Irã, tendo atuado, também, no sentido de
dissuadir o governo sírio de usar armas químicas contra os rebeldes em grande escala, o
que provavelmente teria acarretado uma intervenção militar direta dos Estados Unidos
(CASEY-MASLEM, 2013, p.449). No fim, a Rússia teve papel fundamental nas
negociações de Genebra que levaram o governo sírio a abrir mão de seu estoque de armas
desse tipo, transferindo-o para países europeus neutros como Dinamarca e Noruega.
Por sua vez, os Estados Unidos mostraram-se um dos países mais críticos ao
governo Assad desde o início das hostilidades, demandando repetidamente o fim do
regime e a instalação de um governo de transição. Para Washington, a Primavera Árabe
e a conflagração que se seguiu criaram uma ocasião propícia para a queda do regime sírio,
objetivo dos norte-americanos desde pelo menos 2003. Fundamentalmente, a política
externa norte-americana para Damasco é influenciada pelo papel da Síria no longo
conflito Árabe-Israelense, em sua interferência constante nas questões internas do Líbano
e na aliança de Assad com o Irã (CEBECI, 2011, p.146).
Seguindo essa lógica e com o intuito de derrubar Assad, os Estados Unidos
inicialmente ofereceram ajuda não letal aos rebeldes na resistência contra as Forças
Armadas sírias, passando a fornecer armas em um segundo momento. Contudo, a ajuda
aos rebeldes sírios não é livre de preocupações para os Estados Unidos, já que existe o
risco de as mesmas caírem em mãos de grupos considerados não confiáveis, dado o
caráter heterogêneo da oposição síria.
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Desse modo, durante seus primeiros dois anos, a guerra civil síria dividiu dois
campos principais e um minoritário: de um lado, o Estado sírio controlado pelo regime
Assad, aliado ao Irã e à Rússia e auxiliado pelo Hezbollah e outras milícias xiitas no
campo de batalha; de outro, a oposição síria apoiada por Arábia Saudita, Estados Unidos
e Turquia, além de outros países da região e de fora. Um terceiro ator, os curdos sírios,
entrou no conflito em um segundo momento. A partir de abril de 2013, o rápido avanço
do Estado Islâmico inseriu um novo elemento no conflito, impactando na estratégia e
interesses dos principais atores envolvidos na guerra e o transformando em uma das
principais forças na Síria.
O ESTADO ISLÂMICO E SEU IMPACTO NOS PRINCIPAIS ATORES
ENVOLVIDOS NO CONFLITO
Sem ligações nem com o regime Assad, nem com a oposição, o ISIS surgiu como
uma terceira grande força no conflito e avançou tanto sobre as Forças Armadas quanto os
grupos rebeldes, chegando a ocupar 35 por cento do território sírio e a controlar 60 por
cento do petróleo do país em julho de 2014 (FAYAD, 2014). Organização
fundamentalista, tem como base religiosa e ideológica o salafismo, movimento
ultraconservador que defende uma interpretação literal do Alcorão e o retorno dos
muçulmanos às práticas do Islã do século sétimo. Diferentemente dos demais grupos que
se opõem ao governo sírio, o EI não tem como objetivo primordial a derrubada de Assad,
tendendo a priorizar a conquista territorial e, nessa perspectiva, todos os demais
beligerantes são considerados inimigos, até mesmo outros grupos fundamentalistas
salafistas, caso não lhe jurem lealdade.
Para o regime Assad, o advento do Estado Islâmico teve dois impactos de grande
importância, um negativo, outro, positivo. Naturalmente, o fato de o grupo salafista lutar
contra o governo representou um revés para Bashar al-Assad, sobretudo quando se leva
em conta que esse grupo tomou extensas áreas ao Estado sírio. Apesar disso,
surpreendentemente, o resultado do avanço do Estado Islâmico beneficiou o regime
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Assad mais do que o prejudicou, pelo menos em um primeiro momento. À medida que o
grupo jihadista tornava-se uma força que não poderia mais ser ignorada, ameaçando
virtualmente todas as partes envolvidas na guerra de forma indistinta, o bloco de oposição
ao governo sírio passou a reconhecê-lo como ameaça mais imediata (SACKELMORE,
2014), relativizando os riscos que Assad representa para os interesses da maioria dos
atores que participa da guerra civil.
Em face da expansão avassaladora do Estado Islâmico na Síria e posteriormente
no Iraque, o próprio governo norte-americano mudou sua atitude e retórica com relação
a Assad, deixando de exigir sua saída como vinha fazendo desde o início do conflito.
Enquanto até outubro de 2014 Washington insistia que ‘não haveria paz sem que Assad
deixasse o poder’, em janeiro de 2015, o Secretário de Estado John Kerry apresentou um
discurso diferente, dizendo:
É hora de o Presidente Assad, o regime Assad, colocar seu povo em primeiro
lugar e pensar sobre as consequências de suas ações, que estão atraindo mais
terroristas para a Síria, basicamente devido a seus esforços para remover Assad
(TISDALL, 2015).
Como se constata, a exigência do fim do regime Assad foi retirada do discurso
oficial do governo norte-americano, que aos poucos viu sua prioridade na guerra mudar.
No campo da ação, a política dos Estados Unidos para a Síria também se alterou de
maneira considerável, uma vez que o país se lançou em uma intervenção militar direta
contra alvos ligados ao ISIS por meio de bombardeios aéreos, liderando a coalizão
internacional5 contra o grupo fundamentalista e ao mesmo tempo garantindo a Assad que
não atacaria áreas controladas pelo governo (BASSAN, WESTALL, 2014). Desse modo,
não há dúvida de que a entrada do grupo extremista na contenda favoreceu o governo
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Composta, atualmente (Abril de 2015), também por Arábia Saudita, Bahrein, Canadá, Catar, Emirados
Árabes, Jordânia, Marrocos e Reino Unido.
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sírio, dividindo e desorganizando a oposição nacional, desviando a atenção e os esforços
dos adversários internacionais e, em última instância, dando mais fôlego ao regime Assad.
Ao mesmo tempo, a despeito dos ganhos relativos que o avanço do EI
proporcionou ao governo, é certo que o fato de ele ter se estabelecido firmemente em
mais de um terço do território do país, além da incapacidade do Exército Sírio de contêlo, tornou-se fator de preocupação para Damasco. A isso se deve somar questões
religiosas, que possuem importância fundamental para os jihadistas. Afinal, Assad, além
de comandar um regime laico, pertence à seita alauíta, cujos adeptos são vistos como
hereges pelos fundamentalistas sunitas.
Portanto, afora questões óbvias de geopolítica, resistir ao Estado Islâmico
representa uma questão de sobrevivência religiosa e física para membros do regime Assad
e o próprio presidente, receio este reforçado pelos numerosos relatos e imagens das
atrocidades cometidas pelos militantes fundamentalistas contra soldados sírios. Como
agravante, há, ainda, o histórico de repressão do governo contra as comunidades sunitas,
que serve simultaneamente para aumentar a apreensão de Assad e o ímpeto jihadista dos
membros do Estado Islâmico, todos sunitas por definição.
Para a oposição síria representada pela Coalizão Nacional, o crescimento do EI
representou um duro golpe desde seus sucessos iniciais, quer do ponto de vista territorial,
tendo forças rebeldes moderadas recuado de várias áreas após sofrerem duras derrotas,
quer de uma perspectiva estratégica, pois a já desorganizada oposição foi desbaratada
ainda mais, com alguns grupos desertando para o Estado Islâmico, que realiza intensa
campanha para atrair membros e radicalizar sunitas moderados (CASEY-MASLEN,
2013, p.215). Até o momento, sabe-se que algumas facções do Exército Livre Síria se
uniram ao EI, jurando lealdade ao seu califa e passando a lutar nas fileiras do grupo. No
entanto, apesar de uma inicial série de derrotas, os grupos rebeldes sírios recuperaram
parte do território perdido para o Estado Islâmico, criando uma situação de impasse tático
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e estratégico no tabuleiro da guerra civil síria a partir do final de 2014, embora o DAESH
ainda esteja em vantagem significativa com relação aos mesmos.
Fora da Síria, a entrada do EI no conflito e a visibilidade que o mesmo passou a
ter expuseram as ambíguas relações existentes entre o grupo jihadista e a Arábia Saudita.
Embora estejam em lados diferentes na guerra, o reino saudita possui afinidades
ideológicas com o Estado Islâmico, sendo o wahabismo uma corrente dentro do
movimento salafista ao qual adere ao EI (MOGHADAM, 2008, p.95).
Controlada por uma monarquia absolutista e governada com base em princípios
fundamentalistas islâmicos, a Arábia Saudita possui uma longa história de apoio ao
movimento jihadista internacional (TURNER, 2014), tendo financiado e tolerado durante
anos, por exemplo, a al-Qaeda em seu próprio território. Na verdade, o país foi um dos
principais responsáveis pelo crescimento do jihadismo em nível global, uma vez que
serviu tanto como fonte de financiamento quanto fonte de inspiração ideológica e
religiosa, gastando bilhões de dólares promovendo a disseminação de uma interpretação
radical do Islã no mundo islâmico e além.
Assim, na esteira de sua estratégia de financiar grupos rebeldes contra Assad, a
Arábia Saudita forneceu apoio financeiro a grupos fundamentalistas na tentativa de
derrubar o governo e instalar um regime sunita em Damasco, dentre os quais se encontra
o Estado Islâmico. Embora Riad não admita que tenha financiado o ISIS e não se tenha
evidências do envolvimento direto do governo saudita até o momento, é certo que
cidadãos sauditas estiveram e estão entre os patrocinadores desse grupo (HALL, 2015),
contando com a conivência de Riad nesse processo.
Ao mesmo tempo, a Arábia Saudita participa dos esforços internacionais de
combate ao terrorismo, tendo derrotado a al-Qaeda em seu território após anos de
repressão ao grupo terrorista. É importante ressaltar, porém, que a campanha do governo
saudita contra grupos terroristas em seu solo só teve início depois que eles passaram a
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ameaçar o próprio regime saudita, já que durante décadas Riad tolerou a presença de
células jihadistas, desde que estas não desafiassem a autoridade da monarquia absolutista
do país. Em outras palavras, durante um longo período a política saudita para grupos
fundamentalistas se baseou em um duplo padrão moral de apoiá-los internacionalmente
e contê-los internamente. Tal política de combate ao fundamentalismo doméstico, por sua
vez, decorreu do objetivo central e maior prioridade do regime saudita: a sobrevivência
da monarquia da Casa de Saud, no poder desde a fundação da Arábia Saudita em 1932.
Em última análise, é esse o princípio basilar que guia todas as ações de Riad nos conflitos
na Síria e no Iraque.
Deste modo, o sucesso do DAESH nesses dois países fez com que o governo
saudita repensasse sua estratégia, ao mesmo tempo em que tornou claro o fracasso de sua
política com relação a facções fundamentalistas, uma vez que o fundamentalismo salafista
patrocinado durante anos pela próspera monarquia árabe voltou-se contra ela. Dentre as
causas do embate entre o EI e a Arábia Saudita está a liderança que o regime saudita
tradicionalmente exerce no movimento salafista, tendo em vista que o Estado Islâmico
não reconhece a autoridade da monarquia saudita e se apresenta como competidor pela
liderança do mundo islâmico.
Obviamente, o fato de o EI se colocar como líder do Islã internacional implica um
desafio à posição da Arábia Saudita, contenda agravada após a proclamação de um
Califado Islâmico pelo grupo fundamentalista na cidade síria de Raqqa, em 30 de junho
de 2014. Nessa data, o EI declarou fundar um califado cuja autoridade se estendia a todos
os muçulmanos do mundo, nomeando Abu Bakr al-Baghdadi seu califa, autoridade
suprema desse novo ‘Estado’ cujo território era, em setembro de 2014, equivalente ao do
Reino Unido (SANCHEZ, 2014).
Para o regime saudita, o Estado Islâmico de al-Baghdadi tornou-se um alvo a ser
derrubado tão importante quanto o regime Assad, se não ainda mais importante e
imediato, considerando as ligações incômodas entre Riad e o grupo fundamentalista
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autointitulado de califado, além das ramificações que este tem na Arábia Saudita. Ao
contrário da Síria de Assad, que não possui presença significativa no reino saudita, o EI
está intimamente presente nele, tendo milhares de cidadãos sauditas se alistado no grupo
e muitos que simpatizam com ele vivendo no país. Logo, a Arábia Saudita procura
destruir o Estado Islâmico externamente enquanto convive com uma ameaça do grupo
fundamentalista internamente, ambos objetivos sendo consequência, em parte, da política
de financiamento e exportação do wahabismo levado a cabo pelo regime saudita durante
um longo período.
Em face disso, é possível que o regime saudita já não veja o Irã como ameaça mais
imediata à sobrevivência de sua monarquia absolutista, pelo menos não de forma
inequívoca e não no contexto da guerra síria6. Há, hoje, um elemento que deve ser levado
em conta no cálculo político e estratégico saudita que parece reduzir o grau de ameaça
que Teerã representa, com algum impacto na política de Riad para Assad, política esta
que tende a se moderar no conflito na Síria devido ao fato de a Arábia Saudita ter se
juntado à coalizão internacional que atualmente bombardeia o DAESH nesse país.
Mas se o governo saudita possui uma complexa relação com os atores envolvidos
na guerra síria, o mesmo ocorre na insurgência no Iraque, onde a Arábia Saudita também
está envolvida, tendo apoiado grupos radicais sunitas contra o governo de Nouri alMaliki. Como na Síria, a Arábia Saudita tem interesse em fomentar uma insurreição
contra o governo iraquiano, que é aliado do Irã e que aumentou a perseguição aos sunitas
após a retirada das tropas norte-americanas do país. Não obstante, a política saudita no
Iraque terminou por voltar-se contra o reino após um avanço espetacular do EI no norte
do país que levou à debandada em massa das tropas iraquianas e à captura de duas das
mais importantes cidades iraquianas, Tikrit e Mossul, em junho de 2014. As tropas
6
Atualmente, os dois países se enfrentam no Iêmen, onde não há, até o momento, uma terceira força capaz
de impactar na estratégia de Riad e Teerã como ocorreu na Síria e no Iraque.
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iraquianas não foram capazes de conter o avanço do Estado Islâmico, recorrendo, para
tanto, ao apoio do Irã na resistência contra o grupo jihadista.
Mais uma vez, os saudistas se veem diante um dilema: por um lado, desejam
derrubar o governo xiita iraquiano e diminuir a influência do Irã no país; por outro, há
claros sinais de que o ISIS é uma ameaça mais imediata para a segurança da Arábia
Saudita, cujo posto militar na fronteira com o Iraque foi atacado por militantes do EI em
janeiro de 2015 (RASHED, 2015). É fato que esse incidente por si só não constitui,
necessariamente, evidência de que o Estado Islâmico planeja invadir o território saudita
no curto prazo, mas, quando considerado em conjunto com sua retórica de que o regime
saudita será destruído, ele ganha uma dimensão que não pode ser ignorada.
Do outro lado do Golfo Pérsico, a posição do Irã com relação ao DAESH é menos
ambígua e controversa do que a dos sauditas. Como na Síria, Teerã apoia o governo
central iraquiano contra os insurgentes, mas sua entrada no conflito iraquiano se deu mais
tardiamente. Após o rápido avanço dos jihadistas no norte do país, o Estado Persa
interveio no conflito através do fornecimento de ajuda financeira e militar ao governo
iraquiano, inclusive direta por meio do envio de membros da Força Quds7 (FASSIHI,
2015). Mais do que a Síria, o Iraque possui vital importância para os interesses iranianos
por sua proximidade geográfica e por ser um dos dois únicos países árabes do mundo com
população majoritariamente xiita, o outro sendo o Bahrein. Somadas a isso, as estreitas
ligações existentes entre o Irã e o governo iraquiano fazem com que sua sobrevivência
seja prioridade para Teerã.
Essencialmente, os objetivos da República Islâmica na atual insurgência iraquiana
é a manutenção não só de um regime predominantemente controlado por xiitas em Bagdá,
mas também da unidade do Iraque como um todo, dada a condição de Estado fracassado
no qual o país se encontra atualmente. Para o regime iraniano, a estabilidade de seu
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Força de elite do Exército dos Guardiões da Revolução Islâmica.
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vizinho, com quem divide uma fronteira de 1500 km, é crucial para a estabilidade do
próprio Irã. Ao mesmo tempo, o país também busca sufocar o fundamentalismo salafista
no território iraquiano e evitar que o mesmo se espalhe para dentro de suas fronteiras e,
para isso, conter o avanço e eventualmente destruir o EI torna-se imprescindível.
De fato, se o governo iraquiano continua resistindo ao Estado Islâmico, isso se
deve parcialmente à ajuda intensa do Irã e das milícias xiitas financiadas por ele na
campanha contra o avanço do grupo fundamentalista. Por outro lado, o fato de o Irã estar
expandindo sua influência militar no Iraque por meio do fortalecimento das milícias xiitas
iraquianas, que se tornaram praticamente tão fortes quanto as Forças Armadas oficiais do
país, preocupa grande parte da população sunita iraquiana, bem como a Arábia Saudita,
os Estados Unidos, Israel e uma série de outros países, a exemplo das monarquias do
Golfo Pérsico.
É importante também não ignorar o papel dos Estados Unidos no esforço de guerra
iraquiano contra o ISIS. Por convite do governo iraquiano, os Estados Unidos intervieram
na insurgência do Iraque em junho de 2014, inicialmente com o envio de tropas terrestres
em missões eminentemente defensivas em Bagdá, passando a realizar bombardeios
aéreos a partir de agosto do mesmo ano. Com isso, surgiu outro fator complicador no
tabuleiro da região. Da mesma forma que os Estados Unidos se preocupam com a
crescente influência iraniana em solo iraquiano, o Irã também tem sérias restrições à
presença militar norte-americana no país, o que levou o Líder Supremo Ali Khamenei a
condenar a intervenção militar ordenada pelo presidente Barack Obama.
Mesmo assim, contrariando uma lógica já consolidada na política externa de Teerã
e de Washington, o envolvimento dos dois atores no conflito iraquiano contra o mesmo
inimigo os colocam do mesmo lado da guerra, ainda que não haja colaboração direta entre
eles. Na prática, há uma cooperação de facto entre os dois adversários, ainda que nenhum
dos dois admita qualquer possibilidade de ação conjunta. Ainda assim, na campanha para
retomar Tikrit em março de 2015, os Estados Unidos chegaram a bombardear o Estado
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Islâmico durante alguns dias enquanto milícias xiitas apoiadas pelo Irã e lideradas por
oficiais iranianos lutavam por terra em conjunto com as Forças Armadas iraquianas.
É preciso enfatizar, porém, que a intervenção norte-americana nessa batalha foi
limitada e tardia, ocorrendo três semanas após seu início e depois que o EI estava na
defensiva, durando pouco mais de uma semana, e o motivo pode ter sido justamente a
relutância em colaborar diretamente com um bloco pró-Irã. Em um sinal do incômodo
que isso representa para os Estados Unidos, após solicitação do governo iraquiano para
que a coalizão internacional se juntasse à campanha, o presidente Obama condicionou a
participação do país na operação à freada das milícias xiitas, demonstrando seu desejo de
não trabalhar com elas (FORDHAM, 2015).
Indo além das aparências, no entanto, é possível interpretar a posição dos
Estados Unidos não como simplesmente uma hesitação em trabalhar com o Irã, mas
também como uma forma de tentar diminuir o prestígio que a campanha de Tikrit
representaria para o Estado persa. Cumpre não perder de vista que, ao mesmo tempo em
que Teerã e Washington estão do mesmo lado do conflito militar contra o DAESH, os
dois governos travam uma batalha estratégica por influência e prestígio junto ao governo
e populações iraquianas. Em grande medida, a campanha de Tikrit foi planejada e
comandada pelo Irã, tendo o general Qasem Soleimani8 liderado a contraofensiva para
expulsar os fundamentalistas da cidade, e os Estados Unidos corriam o risco de perder
terreno para Teerã caso não participassem desse triunfo. O mesmo vale para o governo
iraniano, que não desejava ver os norte-americanos envolvidos nessa batalha justamente
para reforçar a imagem de que o Irã é o principal aliado do Iraque.
Apesar do sucesso recente, a crise que se instalou no Iraque criou um problema
para Bagdá e Teerã; ou, para ser mais preciso, concorreu para acelerá-lo: a questão dos
curdos. Mais numerosa etnia do mundo sem Estado próprio, e correspondendo a quase
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Comandante da Força Quds, força de elite do Exército dos Guardiões da Revolução Islâmica.
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um quarto da população iraquiana (O’LEARY, MACGARRY, SALIH, 2005, p.11), os
curdos possuem uma longa tradição autonomista nesse país, conquistada efetivamente
mediante a Constituição iraquiana de 2005. Historicamente, a relação dos curdos
iraquianos com Bagdá foi marcada por tensão e repressão, sobretudo no período em que
Saddam Hussein governou o país. Mesmo após sua queda e a instalação de um governo
democrático, os curdos continuaram mantendo relações difíceis com o governo central
iraquiano devido em grande parte a questões territoriais e econômicas ligadas às áreas de
maioria curda fora do Curdistão e à exploração de petróleo, respectivamente (AHMED,
2011, p.207).
Tendo as Forças Armadas iraquianas se retirado em grande quantidade diante o
avanço do Estado Islâmico e de outros grupos extremistas no norte do país – muitas vezes
sem oferecer qualquer resistência –, forças curdas ocuparam parte desses territórios
abandonados, como a cidade de Kirkuk, objeto de disputa entre o Governo Regional do
Curdistão (CRG) e Bagdá. Nesse processo, além de atacar alvos iraquianos, o EI invadiu
parte do Curdistão, o que colocou antigos adversários do mesmo lado também neste caso.
Aos poucos, as Forças Armadas curdas, conhecidas como Peshmerga9, conseguiram
expulsar os fundamentalistas de parte dos territórios invadidos, não só no Curdistão, mas
também no Iraque. Previsivelmente, o papel fundamental que os curdos passaram a ter na
luta contra o Estado Islâmico avigorou ainda mais seu desejo por autodeterminação
(PHILLIPS, 2015), aumentando igualmente a preocupação do governo central iraquiano.
Por sua vez, para o governo iraniano, tal fato implicou o surgimento de mais um elemento
de apreensão no contexto da guerra iraquiana, visto que o país é um dos quatro com
grande população curda, os outros sendo a Síria, a Turquia e, naturalmente, o Iraque.
Cerca de cinco milhões de cidadãos iranianos são curdos (FAST, 2005, p.19),
havendo, no país, movimentos nacionalistas curdos como no Iraque. Na visão do governo
da República Islâmica, o surgimento de um Curdistão independente no Iraque poderia
9
‘Aqueles que enfrentam a morte’, na língua curda.
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influenciar o separatismo curdo do Irã, ameaçando, portanto, a estabilidade e a unidade
do país. Ainda que a relação entre a maioria persa e a minoria curda seja
consideravelmente melhor do que a existente no Iraque, devido à semelhança cultural e
linguística entre esses dois povos, não há como negar que a consolidação de um Estado
independente curdo poderia ter consequências negativas para o Irã, algo que nem o
presidente Hassan Rouhani, nem o Líder Supremo Khamenei ambicionam. Em vista
disso, todo ganho que o Irã tem obtido na guerra no Iraque até o momento tem sido
acompanhado pela inquietação com relação aos ganhos dos curdos iraquianos, que estão,
ironicamente, do mesmo lado que as milícias xiitas apoiadas por Teerã no que tange ao
Estado Islâmico e seus satélites salafistas.
Para alívio do regime iraniano, a Arábia Saudita e os Estados Unidos têm o mesmo
objetivo com relação ao separatismo curdo no Iraque. É verdade que Riad e Washington
têm fornecido armas à Peshmerga na luta contra o EI, havendo particular simpatia dos
norte-americanos pelos curdos iraquianos por estes constituírem uma democracia em uma
região pouco democrática. Porém, o governo norte-americano sabe que uma eventual
separação curda significaria o fim do Iraque como ele foi desenhado após o fim da
Primeira Guerra Mundial (PHILLIPS, 2015), acarretando uma profunda instabilidade no
país e afetando a produção de petróleo no Curdistão iraquiano, justamente onde estão
grandes reservas de petróleo. Para a Arábia Saudita, a independência do Curdistão levaria
ao surgimento de outros dois países, um majoritariamente sunita, outro, xiita. Dada a
influência do Irã nas áreas xiitas iraquianas, a possibilidade de o novo país xiita ser um
Estado-cliente de Teerã dificilmente não se confirmaria, o que colocaria o Irã ao alcance
das fronteiras sauditas, além de criar um fator de instabilidade internamente entre a
população xiita da Arábia Saudita. Ou seja, no que diz respeito à questão curda no Iraque,
o Irã tem o mesmo interesse que seus adversários sauditas e norte-americanos.
Desse modo, apesar de estarem prontos para a independência, os curdos têm receio
de alienar seus aliados dos quais depende atualmente na resistência contra o Estado
Islâmico. Mas e os territórios ocupados no Iraque? Estariam os curdos dispostos a
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simplesmente se retirar das áreas que conquistaram após expulsarem o EI? E, caso o
separatismo curdo avance, o governo central em Bagdá aceitaria pacificamente a
desintegração do Iraque? O Irã, que busca manter a unidade territorial iraquiana e que
convive com sua própria questão curda, concordaria com alguma saída política que
pudesse agravar esses problemas? São perguntas que precisarão ser respondidas mais
cedo ou mais tarde.
Na Síria, o envolvimento dos curdos na guerra, apesar de ter se iniciado antes, é
relativamente menor do que o no Iraque. Comparados aos grupos rebeldes de oposição
ao governo, os curdos sírios tiveram uma participação mais discreta nas manifestações
anti-Assad e nos conflitos que se seguiram em 2011, apesar de serem um antigo alvo de
discriminação de Damasco.
Com a radicalização do conflito, a maior parte das milícias curdas se juntou aos
demais rebeldes contra as forças de Assad, passando a combater grupos fundamentalistas
na medida em que as diferenças entre estes e os rebeldes moderados se acirraram.
Ademais, conforme as Forças Armadas sírias foram deixando a Rojava10 para combater
os rebeldes em outras áreas do país, o foco dos curdos sírios foi transferido para os
extremistas salafistas, como a Frente al-Nusra, e depois para o Estado Islâmico à medida
que este dominou a maior parte do território próximo às áreas curdas.
Como no Iraque, a retirada em massa das forças do governo de áreas habitadas
pela população curda criou oportunidades para os curdos do país, que instituíram a
autonomia da Rojava em 2012, criando seu próprio órgão governamental, o Conselho
Supremo Curdo – ao contrário do Curdistão iraquiano, a região não possuía qualquer
autonomia até então (PHILLIPS, 2015). Desde então, organizações políticas como o
Partido da União Democrática e o Conselho Nacional Curdo, bem como braços militares
10
Ou Curdistão sírio, região de população majoritariamente curda na Síria constituída por três cantões
separados por faixas de terra, Afrin, Jazira, Kobanê.
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como as Unidades de Proteção Popular11 (YPG), vêm criando as bases para uma eventual
independência da Rojava. Desta maneira, o enfraquecimento do governo Assad significou
ganhos efetivos para os curdos do país, que adquiriram um grau de autonomia que jamais
tiveram, ainda que à custa de pesadas perdas e de uma das maiores crises humanitárias da
atualidade.
Em contrapartida, há sérios entraves para maiores avanços nesse sentido, a
começar pelo próprio EI, que controla os territórios entre os três cantões que formam a
Rojava. Sem ligações diretas entre as três unidades políticas que constituem essa região
autônoma, não há como vislumbrar a independência curda no curto prazo, ainda mais
quando os exércitos do Estado Islâmico continuam em estado de beligerância contra a
Rojava, buscando anexá-la ao seu califado. Mas é a oposição da Turquia que constitui o
maior obstáculo à autodeterminação dos curdos da Síria, e, para sua adversidade, a
hostilidade de Ankara tem consequências diretas e graves para o esforço de guerra curdo
contra o DAESH.
A Turquia posicionou-se contra Assad desde o início da guerra, concedendo
refúgio a dissidentes sírios e apoiando a criação do Exército Livre da Síria. Como os
governos saudita e norte-americano, o governo turco apresentou um discurso anti-Assad
e repetidamente exigiu sua saída. Ao contrário desses países, entretanto, a Turquia se
recusou a integrar a coalizão internacional que realiza bombardeios aéreos contra alvos
do Estado Islâmico, mantendo, até março de 2015, relações relativamente cordiais com o
grupo salafista.
Na verdade, a Turquia tem se mostrado um dos países mais favoráveis ao EI até
agora, não em seu discurso oficial, evidentemente, mas sim na prática. Quando declinou
de participar da coalizão contra o grupo salafista, Ankara também se recusou a ceder suas
bases aéreas para serem utilizadas nos bombardeios aéreos (THE DAILY STAR, 2014),
11
Milícias armadas curdas.
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em que pese o fato de ser um membro da OTAN. Ainda, é pela Turquia que as facções
jihadistas anti-Assad receberam boa parte dos suprimentos que chegaram à Síria durantes
os anos iniciais da guerra, incluindo o EI, que fez intenso uso da fronteira entre os dois
países. Hoje, embora o fluxo tenha diminuído, em parte devido à pressão internacional, o
governo turco continua sendo criticado por seu suposto apoio tácito ao Estado Islâmico.
Isso não quer dizer que o governo turco esteja efetiva e diretamente colaborando
com os jihadistas desse grupo, uma vez que não se sabe até que ponto isso é verdade; nem
que qualquer ato favorável que ele tenha tomado com relação ao EI seja em decorrência
de simpatia pelos salafistas. O que há, no cálculo geopolítico turco, é a percepção de que
os curdos representam uma ameaça maior para a Turquia do que os fundamentalistas do
EI, tendo em vista que uma eventual independência da Rojava poderia colocar em xeque
a própria integridade territorial turca. Possuindo uma população curda equivalente a cerca
de 18 por cento de sua população total, a Turquia tem fortes restrições a qualquer
movimento independentista curdo na Síria em uma situação parecida à do Irã com relação
aos curdos iraquianos.
Diferentemente do caso iraniano, no entanto, a Turquia carrega um longo e
bastante violento histórico de conflito com os separatistas curdos, principalmente com o
Partido dos Trabalhadores do Curdistão12 (PKK), com quem esteve em guerra de 1984
até 2013, quando um cessar-fogo foi acordado entre as duas partes. Como resultado, o
PKK retirou parte de suas forças da Turquia, mas a breve trégua terminou já em 2014 e
comprometeu o frágil processo de paz, e a principal razão foi o avanço do Estado Islâmico
na Rojava, mais especificamente o sítio de Kobanê, iniciado em setembro de 2014.
Os militantes fundamentalistas tomaram centenas de cidades e vilas na região,
impondo uma série de derrotas às milícias curdas e criando uma grave crise humanitária
12
Organização nacionalista curda fundada em 1978 com orientação marxista-leninista, cujo objetivo oscila
entre a autonomia e a separação do Curdistão. A partir de 1999, o grupo gradualmente abandonou o
marxismo-leninismo e adotou o confederalismo democrático como base ideológica.
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entre os curdos sírios. Diante da crise que se instalou, criaram-se expectativas sobre uma
possível intervenção por parte da Turquia, cuja fronteira se localiza a poucos quilômetros
de Kobanê. Ao mesmo tempo, a crise colocou o governo turco em uma difícil situação
em razão do fortalecimento do movimento separatista curdo na Síria e do envolvimento
do PKK na resistência contra o Estado Islâmico após guerrilheiros do grupo entrarem no
conflito contra os salafistas (RETHINK INSTITUTE, 2015). Assim, Ankara viu-se diante
de um dilema: de um lado, os fundamentalistas atuando perto de suas fronteiras e o desejo
de não ser associado a eles pela comunidade internacional; de outro, seu antigo inimigo
combatendo esses extremistas e o temor do surgimento de uma Rojava independente após
o fim do Estado Islâmico.
Após um período de inação, o governo turco acabou optando por agir contra os
curdos, e em outubro de 2014 bombardeou alvos do PKK ao invés de atacar o EI
(ZALEWSKI, 2014), opção que contava com a simpatia dos seus aliados da OTAN. Na
decisão de Ankara, é provável que tenha pesado o fato de a questão curda representar um
risco maior à estabilidade do país, em parte porque há mais de 14 milhões de curdos
vivendo dentro das fronteiras turcas, enquanto o fundamentalismo islâmico não possui
um grande número de adeptos entre a população turca.
Soma-se a isso o escasso apoio que o EI tem na comunidade internacional, ao
passo que os curdos são vistos de forma mais favorável, o que significa que a Turquia
teria, ao menos em tese, menos dificuldade para destruir o DAESH do que o separatismo
curdo. Em outras palavras, na atual guerra entre fundamentalistas e curdos, o governo
turco vê aqueles como um mal menor, seguindo a estratégia de primeiro sufocar o
crescente sentimento separatista curdo para depois lidar com o Estado Islâmico. Ao
mesmo tempo, após pressões externas, o governo turco assinou um acordo com os Estados
Unidos em março de 2015 para treinar e armar rebeldes moderados não-curdos para
combater o ISIS e Assad, apesar de a ênfase de Ankara ser contra o governo sírio,
enquanto Washington prioriza a destruição dos fundamentalistas (BEKDIL, 2015).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A guerra sírio-iraquiana em curso constitui um dos conflitos mais complexos da
atualidade, seja pelo grande número de atores envolvidos, seja pela teia de interesses e
alianças existentes. O regime Assad, principal protagonista no início da guerra, teve seu
papel redefinido a partir do momento em que o Estado Islâmico ingressou no conflito,
inserindo um novo fator que foi incorporado no cálculo geopolítico dos principais
beligerantes. Como resultado, Assad deixou de ser o único alvo para os grupos rebeldes
sírios e seus apoiadores como a Arábia Saudita e os Estados Unidos, principalmente para
este, que teve sua visão do regime sírio alterada, passando a vê-lo como um mal menor e
como uma força capaz de conter o fundamentalismo islâmico na Síria.
Da mesma maneira, o rápido avanço dos extremistas no Iraque concorreu para
colocar os arquirrivais Arábia Saudita e Irã do mesmo lado, assim como levou
Washington a reconsiderar sua política para Teerã em face da ameaça que o EI passou a
representar para a estabilidade do país. O mesmo ocorreu com os curdos, tanto da Síria
quanto do Iraque, e a Turquia, na medida em que o Estado Islâmico afetou esses atores
significativamente. Desse modo, pode-se concluir que o avanço desse grupo está afetando
profundamente a geopolítica da Síria e do Iraque, mas também do Oriente Médio como
um todo, colocando em xeque a própria existência da Síria e do Iraque da forma como
foram concebidos após a partilha do Império Turco-Otomano. Embora não se possa
prever os exatos desdobramentos desses conflitos, é possível concluir que existe uma
guerra antes e outra depois do advento do Estado Islâmico como uma das forças
dominantes no jogo geopolítico da Síria e do Iraque.
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