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14.:Layout 1 10/4/10 7:41 PM Page 102 Clube Náutico Belém Novo Porto Alegre, Rio Grande do Sul Maré de campeão O bairro de Belém Novo, às margens do rio Guaíba, no sul de Porto Alegre, preserva o estilo de vida pacata, como se fosse uma cidade do interior. O local, que sediou no século XIX uma colônia de pescadores, já no início de sua ocupação teve uma forte cultura náutica. Hoje essa tradição é resgatada pelo projeto Vela Social, ação que traz ventos de renovação para a vida de muitos adolescentes da comunidade. Maikou André Brunhera, de 14 anos, conta que, desde sua entrada no projeto, há dois anos, sente que sua vida progrediu: “Meu comportamento melhorou em casa e na escola. Antes ficava só dormindo de tarde, não fazia nada de bom”. Preocupada com tantas horas vagas, a mãe de Maikou direcionou-o para a vela, mas o garoto não encarou isso como castigo. Ao contrário. Abraçou a oportunidade – afinal velejar é um esporte de elite e poucos adolescentes de comunidades pobres têm a chance de praticá-lo. Vela, para essa garotada das periferias, é esporte que se vê na televisão. “Aprendi muito e fiz amigos”, diz ele. Para Sérgio Benatto Pacheco, de 49 anos, ex-competidor da categoria Laser e criador do projeto instalado no Clube Náutico Belém Novo, a vela ajuda no desenvolvimento dos meninos. “Velejar faz a criançada pensar com precisão e tomar decisões o tempo todo; não dá para parar”. Na escola, Maikou é um dos alunos mais velhos da turma. Está no 7º ano do Ensino Fundamental. “Mas agora sou cobrado pelo Benatto e preciso ficar mais esperto nas aulas”, diz o menino. O empenho, ele mesmo explica: “Quero ser velejador profissional”. Independentemente de vir a ser um medalhista, Maikou já coleciona ensinamentos campeões. Aprendeu a nadar no Guaíba e a pescar, duas atividades fundamentais 14anos para meninos que são vizinhos de um rio. “Hoje, velejo, nado e pesco. Sei costurar uma rede e tirar o peixe de lá, sei jogar essa mesma rede no rio. Aprendi até os nomes dos peixes que já fizemos de almoço e que já levei pra casa”, orgulha-se o garoto, integrado ao meio ambiente do bairro em que vive. Maikou André Brunhera 14.:Layout 1 10/4/10 7:42 PM Page 103 14.:Layout 1 10/4/10 7:42 PM Page 104 “Mesmo que Maikou não seja um campeão, certa- volva o turismo náutico por aqui, e que esse projeto mente vai ter muito que ensinar a outros meninos aqui tenha atividades capazes de gerar emprego e renda do projeto, que, no futuro, serão seus alunos”, diz para os meninos”. Para isso, há aulas de marinharia, Limeidior Oreste Barcelos, de 20 anos. Ele mesmo é um noções de navegação e carpintaria náutica. Outro obje- exemplo disso. Fez parte da primeira turma de tivo, diz Benatto, é formar campeões de vela. “E por que velejadores-mirins, quando tinha 14 anos, e hoje é não?”, pergunta-se, orgulhoso. instrutor. “Éramos uma turminha de bagunceiros. O Benatto deve os cabelos brancos a nós”, lembra, rindo. Ecossistema “Hoje pego no pé dessa turma para que tenham O rico ecossistema da região é outro viés de for- disciplina. Aqui nos divertimos, e o ambiente é muito mação para os meninos de Belém Novo. Quem conta é descontraído, mas tem a hora de falar sério”. Amaniú Fetter, 31 anos, educador ambiental. Ele explica que, na época das cheias, as mudas da vegetação Tradição que brotam durante a seca ficam cobertas de água e Maikou, Limeidior e os outros garotos do projeto acabam se afogando. Por isso, os futuros velejadores aprendem que a história da comunidade é toda ligada são instruídos a retirá-las e replantá-las na ocasião às águas do Guaíba. Na praia, há uma canoa, talhada em apropriada, recuperando a mata ciliar das margens da timbaúba, que pertenceu a um lendário pescador local, região, onde há belos exemplares de sarandis, ingás, conhecido como Bagre, bisavô de “seu Pituca”, ainda corticeiras e jacarandás, a árvore-símbolo de Porto Alegre. vivo e morador da comunidade. Reza a lenda que, em Nos últimos meses, os alunos do projeto abraçaram 1961, a imponente embarcação de cinco metros com- novo desafio: começaram entre a vizinhança um projeto pletou 100 anos e que foi reformada naquela ocasião. de educação ambiental, para evitar que o rio fosse Uma nova operação de restauro está marcada para este poluído gradativamente por óleo de cozinha usado. Um ano para simbolizar o renascimento da cultura náutica, litro de óleo usado é capaz de contaminar um milhão de que passou anos desvalorizada. litros de água. Inspirado no Instituto Rumo Náutico, projeto dos A missão era convencer os vizinhos a não mais jogar campeões de vela dos irmãos Grael, em Niterói, no Rio óleo usado nas águas do rio. Hoje, 100 litros de óleo de Janeiro, que também contou com o apoio do Criança usado por mês deixaram de poluir as águas e são Esperança, Benatto enxerga além do horizonte atual de redirecionados para uma empresa que faz a transfor- Belém Novo. “Nossa intenção é que, no futuro, se desen- mação em biodiesel. “Repetimos tantas e tantas vezes 104 14.:Layout 1 10/4/10 7:42 PM Page 105 Projeto une esporte a atividades de conservação ambiental. Objetivo é evitar que óleo de cozinha usado seja despejado nas águas do rio, causando ainda mais poluição. que o rio é único e que estas são as águas que eles usarão a vida inteira deles para velejar e para pescar, que eles finalmente entenderam o conceito de que o rio é um patrimônio”, diz Amaniú. Os alunos também velejam até praias distantes para recolher o lixo que, sem a participação dos meninos, seria trazido para o rio pelas marés. “Tudo vira brincadeira, a gente não vai só recolher lixo. Para chegar até lá, a gente faz um velejo, segue uma trilha”, conta Maikou. Para grande parte dos oitenta alunos do projeto, as práticas ambientais misturam-se ao sonho de subir ao pódio. Com os oito barcos da categoria Open BIC – um intermediário entre o Optimist e o Laser – comprados com recursos do Criança Esperança, os meninos de Belém Novo já dominam a categoria no Rio Grande do Sul. Entre novembro e dezembro deste ano, três deles irão a Porto Rico disputar o Mundial. Nosso personagem Maikou está brigando pela vaga. É aí que entra a garra de tantos Maikous Brasil afora. Mesmo no inverno rigoroso de Porto Alegre, que, além de frio, é úmido, nenhum deles se esquiva de se lançar às águas com temperatura de até 3 graus. “Para quem nasce nas periferias das grandes cidades, o esporte surge como uma opção de vida”, diz Benatto, ressaltando a garra dos meninos. Bons ventos na água e na vida! 105 14.:Layout 1 10/4/10 7:42 PM Page 106 CONTEXTO 1999 Jovens elegem violência e desemprego como principais problemas do país A TV Globo e suas afiliadas lançam o programa Amigos da Escola com o objetivo de contribuir com o fortalecimento da escola pública Esse foi o ano em que institutos de pesquisa, fundações e organizações internacionais começaram a divulgar estudos sobre a realidade dos jovens brasileiros. A ideia de que a educação é capaz de transformar uma sociedade começava a ser debatida no Brasil – os jornais de circulação nacional, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo dedicaram espaço ao tema em sua cobertura diária. A Rede Globo e suas afiliadas criaram o programa Amigos da Escola, com o objetivo de contribuir para o fortalecimento da educação e da escola pública de educação básica. O Brasil viu a taxa de analfabetismo cair 22,6% em relação a 1992, passando de 17,2% para 13,3%. Entre os adolescentes de 15 a 17 anos, a queda foi de 54,8%, passando de 8,2% para 3,7%. A despeito disso, a gravidez precoce, sinal de falta de projeto de vida entre as jovens e uma das maiores causas de evasão escolar, mostrava-se um problema de grandes proporções: 27% dos partos realizados em 1999 no Sistema Único de Saúde (SUS) eram de jovens entre 10 e 19 anos, o que, em números absolutos, significava aproximadamente 705 mil adolescentes. aprofundando a discussão sobre o tema. As publicações, com ampla visibilidade na mídia, contribuíram para que a sociedade passasse a refinar sua percepção sobre os direitos das crianças e dos adolescentes. As violências sexual e doméstica, até então tratadas como assuntos de esfera privada, deixavam de ser vistas como “parte da ordem natural das coisas”, para se enquadrar em questões de natureza criminal. No mesmo ano, a UNESCO publicou a pesquisa “Gangues, galeras, chegados e rappers”, um estudo de caso sobre os jovens nas cidades-satélite de Brasília. O trabalho demonstrou a realidade de meninos e meninas, a forma como se organizavam e suas constatações acerca da violência e da exclusão social. Era o início de uma série de estudos que passariam a ser feitos tendo a escola como centro. Novembro ficou marcado pela Campanha Nacional do Registro Civil, com o objetivo de registrar todas as crianças logo depois do nascimento. À época, mais de um milhão de meninas e meninos brasileiros não tinham assegurado seu direito a um nome. Desemprego Homicídios Enquanto isso, cresceu no país o número de homicídios que tinham os jovens como protagonistas – na condição de autor ou vítima – e o trabalho infantil consolidou-se como uma das principais mazelas da infância no país. A UNESCO lançou a segunda edição do “Mapa da Violência”, revelando o envolvimento dos jovens em episódios de mortes violentas e Em dezembro, pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo em nove regiões metropolitanas do país revelou que a maioria dos jovens de 15 a 24 anos afirmou estar trabalhando ou procurando algum tipo de ocupação profissional. O desemprego e a violência foram considerados por eles como os principais problemas do país, seguidos de administração política, fome e miséria, edu106 cação e drogas. A maior preocupação tinha razão de ser: de 1989 a 1999, o número de óbitos por homicídios de jovens aumentou 51,6% – taxa em muito superior ao aumento de homicídios na população total, que foi de 45,5%. Os rapazes foram as maiores vítimas desse tipo de crime (em apenas 7% dos homicídios registrados em 1998 nessa faixa da população, a vítima era do sexo feminino). Trabalho Ainda em 1999, foi lançado o Plano Nacional de Enfrentamento do Trabalho Infantil e da Violência Sexual. Mais de 618 mil meninas e adolescentes eram empregadas domésticas no Brasil, trabalhando em casas de famílias de classe média. A exploração, em muitos casos, começava bem cedo: 18,6% dessas brasileiras tinham de 10 a 15 anos, enquanto 27,9% tinham 16 e 17 anos. Além disso, milhares de crianças trabalhavam na coleta de lixo ou diretamente nos lixões. Quando o UNICEF lançou a campanha Criança no Lixo, Nunca Mais – pela erradicação do trabalho infantil nos lixões e na coleta de lixo nas ruas –, 15 crianças que viviam essa realidade passaram a participar do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, com pagamento de bolsa-escola para suas famílias. Era só o começo. O especial Criança Esperança denunciou a violência contra a criança, o abandono e a presença delas em lixões. Com o clima do Brasil 500 Anos, participaram do evento os atletas da equipe brasileira de ginástica rítmica, ganhadora da medalha de ouro nos Jogos PanAmericanos de Winnipeg, no Canadá. 14.:Layout 1 10/4/10 7:42 PM Page 107 Foto: Arquivo UNESCO Márcio Barbosa Diretor-geral adjunto da UNESCO de 2001 a 2010 “Ao longo dos últimos anos como diretor geral adjunto da UNESCO, em Paris, conheci diversas iniciativas de mobilização de muitos países do mundo. O Criança Esperança me impressiona pelo seu potencial para transformar a realidade. Um dos meus primeiros contatos com o Programa foi quando assisti a uma apresentação de dança do Grupo Edisca, ONG apoiada pelo Criança Esperança. Quando ouvi a história daquelas meninas – muitas haviam se prostituído nas ruas de Fortaleza, e estavam ali cheias de orgulho, se apresentando na França –, fiquei encantado. O contato com os beneficiários me deu a dimensão e a importância do Criança Esperança. A parceria entre a TV Globo e a UNESCO vem amadurecendo muito e é um modelo de sucesso que pode perfeitamente ser replicada em outros países do mundo.” 107
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