Boris Vian - L-Dopa Publicações

Transcrição

Boris Vian - L-Dopa Publicações
Boris Vian
Blues para um
gato preto
Tradução: Nils Skare
Peter Gna saiu do cinema com sua irmã. O ar fresco da
noite, perfumado de limão, fazia bem depois da atmosfera
ressentida da sala, pintada de azul de Auvergne. Ali havia
sido exibido um desenho animado profundamente imoral e
Peter Gna, enfurecido, torceu e girou seu paletó forrado de
pele, envolvendo uma velha senhora ainda intacta. Os
odores procediam das pessoas nas calçadas. A rua
iluminada pelos postes, pelas luzes dos cinemas e dos
carros, ondulava um pouco. Isso sossegou nas ruas laterais
e eles viraram em direção a Folies-Bergère. Um bar a cada
duas casas, duas garotas em frente a cada bar.
- Tudo sífilis, resmungou Gna.
- Todas? perguntou sua irmã.
- Todas, assegurou Gna, e elas às vezes oferecem a
bunda sob o pretexto de que estão limpas.
Sua irmã sentiu um frio na espinha.
- O que você quer dizer com limpas?
- É quando não há mais reação de Wasserman 1,
disse Gna. Mas isso não prova nada.
- Os homens não são muito delicados, disse sua
irmã.
Eles viraram à direita e logo depois à esquerda, e
algo miou debaixo da calçada, então pararam para ver do
que se tratava.
II
No começo, o gato não tinha vontade alguma de
brigar, mas, a cada dez minutos, o galo soltava um
cacarejo estridente. Era o galo da mulher do primeiro
andar. Ele era engordado para ser comido numa ocasião
1
N. do T.: reação que consiste em evidenciar os anticorpos da sífilis.
especial. Os judeus comem sempre um galo numa certa
data e ele se deixa comer, é preciso dizer. O gato já estava
cheio do galo. Se ao menos ele só cantasse, mas não, ele o
fazia sobre duas patas, ao invés de quatro, só para
provocar.
- Tome isto, e ele acertou um belo chute na cabeça
do galo.
Isso acontecia no peitoril da janela do porteiro. O
galo não gostava de brigar, mas afinal sua dignidade... Ele
soltou um grande grito e pôs-se a atacar as laterais do gato
com o bico.
- Seu ordinário, disse o gato, você me toma por um
coleóptero!... Mas logo vai mudar de opinião!
Pum! Deu uma cabeçada no esterno do galo.
Animal piolhento! Novamente uma bicada do galo na
coluna vertebral do gato e também em seu lombo.
- Vamos ver! disse o gato.
E ele lhe mordeu o pescoço, mas só conseguiu
cuspir um punhado de penas e, antes que pudesse enxergar
direito, levou duas asadas e caiu na calçada. Um homem
passa. Ele pisa no rabo do gato.
O gato pulou no ar, caiu novamente na rua, evitou
uma bicicleta que passava disparado e constatou que o
esgoto media cerca de um metro e sessenta de
profundidade, com um ângulo de um metro e vinte na
abertura, mas muito estreito no fundo e cheio de lixo.
III
- É um gato, disse Peter Gna.
Era pouco provável que um outro animal alçasse a
perfídia a ponto de imitar o grito do gato, chamado
habitualmente de miado por onomatopalização.
- Como é que ele caiu lá?
- Foi o ordinário do galo, disse o gato, e uma
bicicleta subseqüente.
- Foi você quem começou? perguntou a irmã de
Peter Gna.
- Não. Ele me provocava cantando o tempo todo,
ele sabe que eu tenho horror disso.
- Você não devia se zangar com ele, disse Peter
Gna. Logo vão cortar-lhe o pescoço.
- Bem feito, disse o gato em tom de chacota,
satisfeito.
- É muito mau, disse Peter Gna, se regozijar com a
infelicidade alheia.
- Não, disse o gato, porque eu mesmo estou numa
enrascada.
E chorou amargamente.
- Um pouquinho mais de coragem, disse
severamente a irmã de Peter Gna, você não é o primeiro
gato a quem ocorre cair num esgoto.
- Não dou a mínima para os outros, resmungou o
gato, e acrescentou: Vocês não querem tentar me tirar
daqui?
- Claro que sim, disse a irmã de Peter Gna, mas se
você vai voltar a brigar com o galo, não vale a pena.
- Oh!... Eu deixarei o galo tranqüilo, disse o gato
num tom neutro. Ele teve o que merecia.
O galo, do interior da portaria, cacarejou de júbilo.
O gato não o ouviu, felizmente.
Peter Gna tirou seu cachecol e deitou de barriga
para baixo na rua.
Toda esse alvoroço havia chamado a atenção dos
passantes e um grupo se formava em torno da boca do
esgoto. Havia uma transeunte com um casaco de pele e
que usava um vestido rosa com pregas que se podia ver
pelo entalhe. Ela cheirava muito bem. Havia dois soldados
americanos com ela, um de cada lado. Não se via a mão
esquerda do da direita, nem tampouco a do da esquerda,
mas ele era canhoto. Havia também a porteira da casa da
frente, a empregada do botequim da frente, dois cafetões
com chapéus moles, uma outra porteira e uma velha
senhora dona de gatos.
- Que horror! disse a puta. O pobre animalzinho,
eu não quero ver isto.
Ela escondeu o rosto detrás das mãos. Um dos
cafetões lhe passou obsequiosamente um jornal no qual
podia-se ler: “Dresden reduzida a pedacinhos, ao menos
120 mil mortos.”
- Os homens, disse a velha dona de gatos que lia o
título, isso não é nada, pouco me importa, mas ver sofrer
um animal.
- Um animal! protestou o gato. Fale por si
mesma!...
Mas no momento, somente Peter Gna, sua irmã e
os americanos compreendiam o gato, por causa de seu
forte sotaque britânico, e os americanos se sentiam
repelidos por isso.
- À merda com este gato sujo! disse o maior deles.
Que tal uma bebida nalgum lugar2?
- Sim, meu querido, disse a puta. Eles certamente
vão tirá-lo de lá.
- Acho que não, disse Peter Gna se levantando,
meu cachecol é muito curto e ele não consegue se agarrar
nele.
- Que horror! gemeu o coro de vozes apiedadas.
- Então fechem a boca, murmurou o gato. Deixem
ele refletir.
- Ninguém tem um barbante? perguntou a irmã de
Gna.
Achou-se um barbante, mas testemunharam que
ele não podia se segurarranhar3 nele.
- Assim não dá, disse o gato, ele me passa entre as
garras e é muito desagradável. Se eu pegasse esse galo
ordinário eu lhe enfiaria o nariz neste lixo. Tem um cheiro
horroroso de rato neste buraco.
- Pobrezinho, disse a empregada da frente. Seus
miados cortam a alma. Isso me comove.
- Comove mais do que um bebê, observou a puta, é
muito atroz, vou embora.
- Pro inferno com o gato, disse o segundo
americano. Onde nós podemos tomar um conhaque?...
- Você bebeu conhaque demais, ralhou a moça.
Vocês são terríveis também... Venham, não quero ouvir
esse gato.
- Oh!... protestou a empregada, vocês poderiam
muito bem ajudar essas pessoas!...
- Mas eu, eu bem que gostaria!... disse a puta se
desfazendo em lágrimas.
- Se vocês fecharem a boca, aí em cima, repetiu o
gato. E apressem-se... estou ficando com frio...
2
N. do T.: Vian originalmente escreve as falas dos americanos em
inglês; optei por traduzi-las também.
3
N. do T.: mot-valise de Vian, mistura de agripper e griffer.
Um homem atravessou a rua. Ele não estava de
chapéu nem tinha gravata, e estava de alpargatas. Fumava
um cigarro antes de ir se deitar.
- O que se passa, senhora Pioche? perguntou ele à
porteira.
- Um pobre gatinho que moleques devem ter
atirado no esgoto, interferiu a velha dos gatos. Esses
moleques!... Deveriam colocar todos eles em
reformatórios até os vinte e um anos.
- São os galos que deveriam ficar lá, sugeriu o
gato. Os moleques não cantam todo dia sob o pretexto de
que o sol talvez vai nascer...
- Vou voltar para casa, disse o homem. Tenho uma
coisa que talvez sirva para tirá-lo de lá. Esperem um
minuto.
- Espero que não seja uma piada, disse o gato.
Começo a compreender por que a água não sai jamais dos
esgotos. É fácil de entrar, mas a manobra inversa é um
tantinho delicada.
- Não vejo o que se poderia fazer, disse Peter Gna.
Você está num lugar muito ruim, é quase inacessível.
- Sei muito bem, disse o gato. Se pudesse, sairia
sozinho.
Um outro americano se aproximou, vindo reto até
eles. Peter Gna lhe explicou a coisa.
- Posso ajudá-lo? disse o americano.
- Me empreste sua lanterna, por favor, disse Peter
Gna.
- Ah sim!... disse o americano e lhe passou sua
lanterna portátil.
Peter Gna ficou de barriga no chão novamente e
conseguiu dar uma olhadela no gato. Este exclamou:
- Me passe esse troço aí... Parece que funciona. É
de um ianque, né?
- É, disse Peter Gna. Eu vou te passar meu paletó.
Tente se agarrar nele.
Ele tirou seu paletó forrado de pele e o deixou
pender no esgoto, segurando-o por uma manga. As
pessoas começavam a entender o sotaque do gato.
- Mais uma tentativazinha, disse o gato.
E pulou para se agarrar no casaco. Ouviu-se, desta
vez, um terrível xingamento do gato. O paletó escapou de
Peter Gna e desapareceu no esgoto.
- Está tudo bem? perguntou Peter Gna inquieto.
- Santo Deus! disse o gato, acabei de bater a
cabeça num treco que eu não tinha visto. Acredite, está
doendo!...
- E meu paletó? disse Peter.
- Vou te dar minhas calças, disse o americano, e
começou a se despir para ajudar no salvamento.
A irmã de Peter Gna o fez parar.
- É impossível com o paletó, disse ela. E não vai
ser melhor com as tuas calças.
- Ah sim!... disse o americano, que se pôs a
reabotoar as calças.
- O que ele está fazendo? disse a puta. Não deixem
ele tirar as calças no meio da rua. Que porco!
Individualidades imprecisas continuavam a se
aglomerar no pequeno grupo. A boca do esgoto assumia,
sob a luz elétrica do poste, uma feição bizarra. O gato
praguejava e os ecos de seus xingamentos chegavam,
curiosamente amplificados, aos ouvidos dos últimos que
chegavam.
- Eu gostaria de reaver meu paletó, disse Peter
Gna.
O homem de alpargatas abriu a cotovelos seu
caminho pela multidão. Ele trazia uma longa vassoura.
- Ahá! disse Peter Gna, talvez isso funcione.
Mas na entrada do esgoto, o bastão ficou preso e o
arco formado pelo cotovelo impediu de introduzi-lo.
- Precisaria procurar a grade do esgoto e
desatarraxá-la, sugeriu a irmã de Peter Gna.
Ela traduziu ao americano sua proposta.
- Ah sim! disse ele.
E ele se pôs imediatamente a procurar a grade. Ele
passou a mão na abertura retangular, puxou, soltou,
escorregou e acabou indo bater a cabeça no muro.
- Cuidem dele, Peter Gna mandou a duas mulheres
da multidão, que o pegaram e o levaram à casa delas para
verificar os conteúdos dos bolsos de seu blusão de
marinheiro. Elas encontraram particularmente um
sabonete Lux e uma gorda barra de chocolate cremoso
O’Henry. Em compensação, ele lhes passou uma boa
blenorragia que ele havia pegado de uma loira estonteante
que conhecera dois dias antes em Pigalle.
O homem da vassoura bateu na testa com a palma
da mão e disse: - Eurégato4!... e voltou para sua casa.
- Ele está se lixando para mim, disse o gato.
Escutem, vocês aí em cima, se vocês não se apressarem,
vou embora. Encontrarei uma saída de algum jeito.
- E se começar a chover, disse a irmã de Peter Gna,
você vai se afogar.
- Não vai chover, afirmou o gato.
4
N. do T.: outro mot-valise de Vian.
- Mas você encontrará ratos.
- Dá na mesma.
- Tá bom, vá então, disse Peter Gna. Mas, você
sabe, tem ratos maiores que você. E eles são nojentos.
Além disso, não mije no meu paletó!
- Se eles são sujos, disse o gato, então é outra
coisa. De qualquer forma, o fato é que eles fedem. Agora
falando sério, virem-se aí em cima. E não se preocupe
com o teu paletó, estou de olho nele.
Ele se foi e não se podia mais ouvi-lo. O homem
reapareceu. Ele trazia uma sacola de mercado no fim de
um longo barbante.
- Maravilhoso! disse Peter Gna. Ele certamente vai
poder se segurar.
- O que foi? perguntou o gato.
- Aí está, disse Peter Gna, atirando-lhe.
- Ah! É melhor, aprovou o gato. Não puxem rápido
demais. Eu pego o paletó.
Alguns segundos mais tarde, a sacola reapareceu, o
gato estava comodamente instalado em seu interior.
- Até que enfim! disse ele assim que saiu da sacola.
Quanto ao seu paletó, você vai ter que se virar. Ache um
gancho ou algo assim. Ele era pesado demais.
- Seu miserável! grunhiu Peter Gna.
Um clamor de satisfação acolheu o gato ao sair da
sacola. Era passado de mão em mão.
- Que belo gato! Pobrezinho! Ele está cheio de
lama...
Ele cheirava horrivelmente mal.
- Sequem ele com isto, disse a puta estendendo seu
cachecol de seda azul-lavanda.
- Vai estragar, disse a irmã de Peter Gna.
- Ah ! Isso não é nada, disse a puta num grande
momento de generosidade. Ele não é meu.
O gato distribuía apertos de mão a todos e a
multidão começou a se dispersar.
- Então, disse o gato vendo todo mundo ir embora,
agora que estou aqui fora eu não sou mais interessante?
Por sinal, onde está o galo?
- Pare com isso, disse Peter Gna. Venha beber um
pouco e não pense mais no galo.
Restavam ao redor do gato o homem de alpargatas,
Peter Gna, sua irmã, a puta e os dois americanos.
- Vamos todos beber juntos, disse a puta, em
homenagem ao gato.
- Ela não é de todo má, disse o gato, e que
corpinho ela tem!... No fundo, eu bem que dormiria com
ela esta noite.
- Se acalme, disse a irmã de Peter Gna.
A puta sacudiu seus dois homens.
- Venham! Beber!... Conhaque!... enunciou ela
laboriosamente.
- Sim !... Conhaque!... responderam os dois
homens, se animando simultaneamente.
Peter Gna andava na frente levando o gato e os
outros o seguiram.
Um boteco estava aberto na rua Richer.
- Sete conhaques! pediu a puta. A rodada é minha.
- Você é uma ganhadora! disse o gato com
admiração. Um pouquinho de erva-gato no meu, garçom!
O garçom os serviu e todos brindaram
alegremente.
- O pobre gato deve ter pego uma gripe, disse a
puta. Que tal se a gente lhe desse um caldo de carne?
Ouvindo isso, o gato quase se engasgou e cuspiu
um pouco de conhaque por tudo.
- Quem ela pensa que sou? perguntou ele a Peter
Gna. Eu sou um gato ou não sou?
À luz das lâmpadas fluorescentes, via-se agora de
que tipo o gato era. Era um gato terrivelmente gordo, com
olhos verdes e um bigode à la Guilherme II. Suas orelhas
rendilhadas provavam toda sua virilidade e uma grande
cicatriz branca desprovida de pêlos, coquetemente
acentuada por uma borda violeta, percorria-lhe as costas.
- O que é isso? perguntou um americano tocando o
lugar. Foi ferido, senhor?
- Sim! respondeu o gato. F.F.I.5 ...
Pronunciou: Éf, Éf, Ai, como devia.
- Ótimo, disse o outro americano lhe apertando
vigorosamente a mão. Que tal outra bebida?
- OK! disse o gato. Tem um careto?
O americano lhe estendeu seu estojo de cigarros,
sem ressentimento algum pelo horrível sotaque britânico
do gato que acreditava poder ser agradável soltando uma
gíria americana. O gato escolheu o cigarro mais comprido
e o acendeu com o isqueiro de Gna. Cada um pegou um
cigarro.
- Conte a história do seu ferimento, disse a puta.
Peter Gna achou um gancho no fundo do seu copo
e partiu rápido para pescar seu paletó forrado de pele.
O gato resmungou e baixou a cabeça.
- Não gosto de falar de mim mesmo, disse ele. Me
dêem um outro conhaque.
5
N.do.T.: Forces Françaises de l’Interieur, as Forças Francesas do
Interior, formadas por soldados clandestinos durante a ocupação
alemã e que mais tarde participaram da ofensiva contra a Alemanha.
- Isso vai te fazer mal, disse a irmã de Peter Gna.
- De forma alguma, protestou o gato. Eu tenho as
tripas blindadas. Verdadeiras tripas de gato. E além disso
depois daquele esgoto... Ugh! Como aquilo fedia a rato!...
Ele tomou o conhaque todo de uma vez.
- Nossa! Tomou tudo de um gole só!... disse o
homem das alpargatas em tom admirado.
- O próximo num copo com casca de laranja,
especificou o gato.
O segundo americano saiu do grupo e foi se
instalar nas banquetas do botequim. Ele pôs a cabeça no
meio das pernas e começou a vomitar entre os pés.
- Era, disse o gato, abril de 44. Eu vinha de Lyon
onde eu tinha contatado o gato de Léon Plouc que também
fazia parte da resistência. Um gato à altura do serviço,
mas, depois, ele foi pego pela Gestapo dos gatos e
deportado para Buchenkatze6.
- Que pena! disse a puta.
- Não estou preocupado com ele, disse o gato, ele
se virou. Deixando ele, então, voltei a Paris e, no trem, eu
tive a infelicidade de encontrar uma gata... aquela
ordinária!... aquela puta!...
- Olhe a língua, disse severamente a irmã de Peter
Gna.
- Desculpe! disse o gato, e tomou um grande gole
de conhaque.
Seus olhos se acenderam como dois lampiões e seu
bigode se eriçou.
6
N. do T.: outro mot-valise, misturando Buchenwald, onde mais de 50
mil deportados morreram, com katze, que em alemão significa gato.
- Passei uma dessa noites, no trem, disse ele,
espreguiçando-se com complacência. Meu Deus! Que
golpe nos rins! Hic-cup!... concluiu, porque estava com
soluços.
- E então? perguntou a puta.
- Então é isso! disse o gato falsamente modesto.
- Mas e a sua ferida? Perguntou a irmã de Peter
Gna.
- O dono da gata tinha sapatos com cravos de ferro,
ele viu meu rabo, mas acabou errando. Hic-cup!...
- É só isso? perguntou a puta, desapontada.
- Você queria que ele tivesse dado cabo de mim,
hein? o gato caçoou sarcasticamente. Bem, você tem uma
mente sagaz, você, hein! Você nunca vai no PaxVobiscum?
Era uma boate do quarteirão. Em suma, uma zona.
- Sim, respondeu sem pestanejar a puta.
- Eu sou amigo da empregada de lá, disse o gato.
Ela sempre me arranja algo para tomar.
- Ah? disse a puta. Germaine?...
- Isso, disse o gato, Ger-hic-cup-maine...
Ele virou seu copo num gole só.
- Eu me daria bem com uma tricolor, disse ele.
- Uma o que? perguntou a puta.
- Uma gata tricolor. Ou então uma gatinha ainda
inexperiente.
Ele soltou uma risada desprezível e piscou o olho
direito.
- Ou o galo! Hic-cup!...
O gato ficou nas quatro patas, as costas arqueadas,
o rabo esticado e eriçou a coluna.
- Aquele galo tem sangue de barata! disse ele.
Incomodada, a irmã de Peter Gna vasculhou sua
bolsa.
- Você não conhece nenhuma? perguntou o gato à
puta. Você não tem nenhuma amiga que conheça umas
gatinhas?
- Você é um porco, respondeu a puta. Falando
assim na frente dessas pessoas !...
O sujeito das alpargatas não falava muito, mas,
enervado pela conversa do gato, se aproximou da puta.
- Você cheira bem, ele lhe disse. O que é?
- Flor de enxofre, de Vieuxcopain7, disse ela.
- E isso? perguntou colocando ali a mão, o que é?
Ele tinha se colocado no lugar deixado vago pelo
americano que passava mal.
- Vamos, meu querido, disse a puta, não dê uma de
inocente.
- Garçom! disse o gato. Um licor de menta!
- Ah não! protestou a irmã de Peter Gna. Até que
enfim!... disse ela ao ver a porta se abrir.
Peter voltava com seu paletó cheio de detritos.
- Faça-o parar de beber, disse ela, ele está
totalmente pilecado!...
- Espere! disse Peter Gna. Preciso arrumar meu
paletó. Garçom! Dois sifões!...
Ele colocou seu paletó forrado de pele sobre o
encosto de uma cadeira e o sifonizou copiosamente.
- Garçom! disse o gato, está estranho... esse licor
de menta... Hic-cup. Você é meu salvador, exclamou
assim que disse isso, abraçando Peter Gna. Venha, eu te
pago a zona.
- Não, meu velho, disse Peter Gna. Você vai ter
uma congestão.
- Ele me salvou!... rugiu o gato. Ele me tirou de um
buraco cheio de ratos onde eu certamente iria morrer.
Comovida, a puta deixou cair a cabeça sobre os
ombros do homem das alpargatas que a deixou e foi
terminar num canto...
O gato saltou sobre o balcão e esvaziou o
conhaque que ainda restava.
- Brrr !... ele fez, girando a cabeça para a direita e
para a esquerda. Esse desceu difícil. Sem ele, uivou, eu
estaria fudido, fudido!...
A puta deitou a cabeça sobre o balcão com a
cabeça entre os braços. O segundo americano a deixou e
se instalou perto de seu compatriota. O vômito deles era
sincronizado e desenhava a bandeira americana no chão.
O segundo se encarregou das quarenta e oito estrelas8.
- Venha nos meus braços... Hic-cup! acenou o
gato.
A puta deixou cair uma lágrima e disse:
- Como ele é gentil!...
Para não o vexar, Peter Gna lhe deu um beijo na
testa. O gato o apertou entre as patas, subitamente o soltou
e desmoronou.
- O que é que ele tem? perguntou, inquieta, a irmã
de Peter Gna.
Peter Gna tirou um espéculo de seu bolso e o
introduziu na orelha do gato.
8
7
N. do T.: alusão à marca Cheramy, que fazia perfumes baratos.
N. do T.: até 1959 a bandeira americana só tinha 48 estrelas, antes do
Alasca e do Havaí serem incorporados.
- Ele está morto, disse ele após tê-lo examinado. O
conhaque subiu para o cérebro. Podia-se vê-lo saindo.
- Oh! disse a irmã de Peter Gna, e ela se pôs a
chorar.
- O que é que ele tem? perguntou, inquieta, a puta.
- Ele está morto, repetiu Peter Gna.
- Oh!... disse ela, após todo o trabalho que
tivemos!
- Era um gato tão bom!... E ele sabia conversar!...
disse o homem das alpargatas que voltava.
- Sim! disse a irmã de Peter Gna.
O garçom do boteco ainda não tinha dito nada, mas
ele pareceu sair de seu torpor.
- São oitocentos francos!...
- Ah! disse Peter Gna, inquieto.
- É a minha vez de pagar, disse a puta, que tirou
mil francos de sua bela bolsa de couro vermelha. Fique
com o troco, garçom!
- Obrigado, disse o garçom. O que eu devo fazer
com isso?
Ele designava o gato com um ar enojado. Um filete
de licor de menta percorria o pêlo do gato formando um
intrincado padrão.
- Pobrezinho!... soluçou a puta.
- Não o deixe assim, disse a irmã de Peter Gna. É
preciso fazer algo...
- Ele bebeu como um buraco, disse Peter Gna. É
idiota. Não há nada a fazer.
O barulho do Niágara que formava o fundo sonoro
depois da retirada dos americanos parou. Eles se
levantaram juntos e se reaproximaram do grupo.
- Conhaque!... pediu o primeiro.
- Dodo, meu garotão!... disse a puta. Venha!...
Ela os abraçou cada um com um braço.
- Com licença senhoras e senhores, disse ela. Eu
preciso colocar meus bebês para dormir... Pobrezinho do
gato, ainda assim... uma noitada que começou tão bem.
- Adeus madame, disse a irmã de Peter Gna.
O homem das alpargatas batia amigavelmente nos
ombros de Peter Gna, sem nada dizer, com um ar de
condolência. Ele sacudiu a cabeça, aparentemente
desolado, e saiu na ponta dos pés.
Visivelmente, o garçom estava com sono.
- O que é que nós vamos fazer? disse Peter Gna, e
sua irmã não respondeu nada.
Assim, Peter Gna colocou o gato no seu paletó e
eles saíram pela noite. O ar estava frio e as estrelas
brilhavam, intensamente, uma a uma. A marcha fúnebre
de Chopin, tocada pelos sinos das igrejas, anunciava à
população que era uma hora da manhã. Com passos
lentos, eles abriram caminho pela atmosfera cortante.
Eles chegaram à esquina da rua. Negro, ávido, o
esgoto esperava aos seus pés. Peter Gna abriu seu paletó.
Ele pegou com cuidado o gato rígido e sua irmã o
acariciou sem nada dizer. E depois, docemente,
desapontados, o gato desapareceu no buraco. Ele fez
“Glup!” e, com um sorriso de satisfação, a boca do esgoto
voltou a se fechar.