Boris Vian - L-Dopa Publicações
Transcrição
Boris Vian - L-Dopa Publicações
Boris Vian Blues para um gato preto Tradução: Nils Skare Peter Gna saiu do cinema com sua irmã. O ar fresco da noite, perfumado de limão, fazia bem depois da atmosfera ressentida da sala, pintada de azul de Auvergne. Ali havia sido exibido um desenho animado profundamente imoral e Peter Gna, enfurecido, torceu e girou seu paletó forrado de pele, envolvendo uma velha senhora ainda intacta. Os odores procediam das pessoas nas calçadas. A rua iluminada pelos postes, pelas luzes dos cinemas e dos carros, ondulava um pouco. Isso sossegou nas ruas laterais e eles viraram em direção a Folies-Bergère. Um bar a cada duas casas, duas garotas em frente a cada bar. - Tudo sífilis, resmungou Gna. - Todas? perguntou sua irmã. - Todas, assegurou Gna, e elas às vezes oferecem a bunda sob o pretexto de que estão limpas. Sua irmã sentiu um frio na espinha. - O que você quer dizer com limpas? - É quando não há mais reação de Wasserman 1, disse Gna. Mas isso não prova nada. - Os homens não são muito delicados, disse sua irmã. Eles viraram à direita e logo depois à esquerda, e algo miou debaixo da calçada, então pararam para ver do que se tratava. II No começo, o gato não tinha vontade alguma de brigar, mas, a cada dez minutos, o galo soltava um cacarejo estridente. Era o galo da mulher do primeiro andar. Ele era engordado para ser comido numa ocasião 1 N. do T.: reação que consiste em evidenciar os anticorpos da sífilis. especial. Os judeus comem sempre um galo numa certa data e ele se deixa comer, é preciso dizer. O gato já estava cheio do galo. Se ao menos ele só cantasse, mas não, ele o fazia sobre duas patas, ao invés de quatro, só para provocar. - Tome isto, e ele acertou um belo chute na cabeça do galo. Isso acontecia no peitoril da janela do porteiro. O galo não gostava de brigar, mas afinal sua dignidade... Ele soltou um grande grito e pôs-se a atacar as laterais do gato com o bico. - Seu ordinário, disse o gato, você me toma por um coleóptero!... Mas logo vai mudar de opinião! Pum! Deu uma cabeçada no esterno do galo. Animal piolhento! Novamente uma bicada do galo na coluna vertebral do gato e também em seu lombo. - Vamos ver! disse o gato. E ele lhe mordeu o pescoço, mas só conseguiu cuspir um punhado de penas e, antes que pudesse enxergar direito, levou duas asadas e caiu na calçada. Um homem passa. Ele pisa no rabo do gato. O gato pulou no ar, caiu novamente na rua, evitou uma bicicleta que passava disparado e constatou que o esgoto media cerca de um metro e sessenta de profundidade, com um ângulo de um metro e vinte na abertura, mas muito estreito no fundo e cheio de lixo. III - É um gato, disse Peter Gna. Era pouco provável que um outro animal alçasse a perfídia a ponto de imitar o grito do gato, chamado habitualmente de miado por onomatopalização. - Como é que ele caiu lá? - Foi o ordinário do galo, disse o gato, e uma bicicleta subseqüente. - Foi você quem começou? perguntou a irmã de Peter Gna. - Não. Ele me provocava cantando o tempo todo, ele sabe que eu tenho horror disso. - Você não devia se zangar com ele, disse Peter Gna. Logo vão cortar-lhe o pescoço. - Bem feito, disse o gato em tom de chacota, satisfeito. - É muito mau, disse Peter Gna, se regozijar com a infelicidade alheia. - Não, disse o gato, porque eu mesmo estou numa enrascada. E chorou amargamente. - Um pouquinho mais de coragem, disse severamente a irmã de Peter Gna, você não é o primeiro gato a quem ocorre cair num esgoto. - Não dou a mínima para os outros, resmungou o gato, e acrescentou: Vocês não querem tentar me tirar daqui? - Claro que sim, disse a irmã de Peter Gna, mas se você vai voltar a brigar com o galo, não vale a pena. - Oh!... Eu deixarei o galo tranqüilo, disse o gato num tom neutro. Ele teve o que merecia. O galo, do interior da portaria, cacarejou de júbilo. O gato não o ouviu, felizmente. Peter Gna tirou seu cachecol e deitou de barriga para baixo na rua. Toda esse alvoroço havia chamado a atenção dos passantes e um grupo se formava em torno da boca do esgoto. Havia uma transeunte com um casaco de pele e que usava um vestido rosa com pregas que se podia ver pelo entalhe. Ela cheirava muito bem. Havia dois soldados americanos com ela, um de cada lado. Não se via a mão esquerda do da direita, nem tampouco a do da esquerda, mas ele era canhoto. Havia também a porteira da casa da frente, a empregada do botequim da frente, dois cafetões com chapéus moles, uma outra porteira e uma velha senhora dona de gatos. - Que horror! disse a puta. O pobre animalzinho, eu não quero ver isto. Ela escondeu o rosto detrás das mãos. Um dos cafetões lhe passou obsequiosamente um jornal no qual podia-se ler: “Dresden reduzida a pedacinhos, ao menos 120 mil mortos.” - Os homens, disse a velha dona de gatos que lia o título, isso não é nada, pouco me importa, mas ver sofrer um animal. - Um animal! protestou o gato. Fale por si mesma!... Mas no momento, somente Peter Gna, sua irmã e os americanos compreendiam o gato, por causa de seu forte sotaque britânico, e os americanos se sentiam repelidos por isso. - À merda com este gato sujo! disse o maior deles. Que tal uma bebida nalgum lugar2? - Sim, meu querido, disse a puta. Eles certamente vão tirá-lo de lá. - Acho que não, disse Peter Gna se levantando, meu cachecol é muito curto e ele não consegue se agarrar nele. - Que horror! gemeu o coro de vozes apiedadas. - Então fechem a boca, murmurou o gato. Deixem ele refletir. - Ninguém tem um barbante? perguntou a irmã de Gna. Achou-se um barbante, mas testemunharam que ele não podia se segurarranhar3 nele. - Assim não dá, disse o gato, ele me passa entre as garras e é muito desagradável. Se eu pegasse esse galo ordinário eu lhe enfiaria o nariz neste lixo. Tem um cheiro horroroso de rato neste buraco. - Pobrezinho, disse a empregada da frente. Seus miados cortam a alma. Isso me comove. - Comove mais do que um bebê, observou a puta, é muito atroz, vou embora. - Pro inferno com o gato, disse o segundo americano. Onde nós podemos tomar um conhaque?... - Você bebeu conhaque demais, ralhou a moça. Vocês são terríveis também... Venham, não quero ouvir esse gato. - Oh!... protestou a empregada, vocês poderiam muito bem ajudar essas pessoas!... - Mas eu, eu bem que gostaria!... disse a puta se desfazendo em lágrimas. - Se vocês fecharem a boca, aí em cima, repetiu o gato. E apressem-se... estou ficando com frio... 2 N. do T.: Vian originalmente escreve as falas dos americanos em inglês; optei por traduzi-las também. 3 N. do T.: mot-valise de Vian, mistura de agripper e griffer. Um homem atravessou a rua. Ele não estava de chapéu nem tinha gravata, e estava de alpargatas. Fumava um cigarro antes de ir se deitar. - O que se passa, senhora Pioche? perguntou ele à porteira. - Um pobre gatinho que moleques devem ter atirado no esgoto, interferiu a velha dos gatos. Esses moleques!... Deveriam colocar todos eles em reformatórios até os vinte e um anos. - São os galos que deveriam ficar lá, sugeriu o gato. Os moleques não cantam todo dia sob o pretexto de que o sol talvez vai nascer... - Vou voltar para casa, disse o homem. Tenho uma coisa que talvez sirva para tirá-lo de lá. Esperem um minuto. - Espero que não seja uma piada, disse o gato. Começo a compreender por que a água não sai jamais dos esgotos. É fácil de entrar, mas a manobra inversa é um tantinho delicada. - Não vejo o que se poderia fazer, disse Peter Gna. Você está num lugar muito ruim, é quase inacessível. - Sei muito bem, disse o gato. Se pudesse, sairia sozinho. Um outro americano se aproximou, vindo reto até eles. Peter Gna lhe explicou a coisa. - Posso ajudá-lo? disse o americano. - Me empreste sua lanterna, por favor, disse Peter Gna. - Ah sim!... disse o americano e lhe passou sua lanterna portátil. Peter Gna ficou de barriga no chão novamente e conseguiu dar uma olhadela no gato. Este exclamou: - Me passe esse troço aí... Parece que funciona. É de um ianque, né? - É, disse Peter Gna. Eu vou te passar meu paletó. Tente se agarrar nele. Ele tirou seu paletó forrado de pele e o deixou pender no esgoto, segurando-o por uma manga. As pessoas começavam a entender o sotaque do gato. - Mais uma tentativazinha, disse o gato. E pulou para se agarrar no casaco. Ouviu-se, desta vez, um terrível xingamento do gato. O paletó escapou de Peter Gna e desapareceu no esgoto. - Está tudo bem? perguntou Peter Gna inquieto. - Santo Deus! disse o gato, acabei de bater a cabeça num treco que eu não tinha visto. Acredite, está doendo!... - E meu paletó? disse Peter. - Vou te dar minhas calças, disse o americano, e começou a se despir para ajudar no salvamento. A irmã de Peter Gna o fez parar. - É impossível com o paletó, disse ela. E não vai ser melhor com as tuas calças. - Ah sim!... disse o americano, que se pôs a reabotoar as calças. - O que ele está fazendo? disse a puta. Não deixem ele tirar as calças no meio da rua. Que porco! Individualidades imprecisas continuavam a se aglomerar no pequeno grupo. A boca do esgoto assumia, sob a luz elétrica do poste, uma feição bizarra. O gato praguejava e os ecos de seus xingamentos chegavam, curiosamente amplificados, aos ouvidos dos últimos que chegavam. - Eu gostaria de reaver meu paletó, disse Peter Gna. O homem de alpargatas abriu a cotovelos seu caminho pela multidão. Ele trazia uma longa vassoura. - Ahá! disse Peter Gna, talvez isso funcione. Mas na entrada do esgoto, o bastão ficou preso e o arco formado pelo cotovelo impediu de introduzi-lo. - Precisaria procurar a grade do esgoto e desatarraxá-la, sugeriu a irmã de Peter Gna. Ela traduziu ao americano sua proposta. - Ah sim! disse ele. E ele se pôs imediatamente a procurar a grade. Ele passou a mão na abertura retangular, puxou, soltou, escorregou e acabou indo bater a cabeça no muro. - Cuidem dele, Peter Gna mandou a duas mulheres da multidão, que o pegaram e o levaram à casa delas para verificar os conteúdos dos bolsos de seu blusão de marinheiro. Elas encontraram particularmente um sabonete Lux e uma gorda barra de chocolate cremoso O’Henry. Em compensação, ele lhes passou uma boa blenorragia que ele havia pegado de uma loira estonteante que conhecera dois dias antes em Pigalle. O homem da vassoura bateu na testa com a palma da mão e disse: - Eurégato4!... e voltou para sua casa. - Ele está se lixando para mim, disse o gato. Escutem, vocês aí em cima, se vocês não se apressarem, vou embora. Encontrarei uma saída de algum jeito. - E se começar a chover, disse a irmã de Peter Gna, você vai se afogar. - Não vai chover, afirmou o gato. 4 N. do T.: outro mot-valise de Vian. - Mas você encontrará ratos. - Dá na mesma. - Tá bom, vá então, disse Peter Gna. Mas, você sabe, tem ratos maiores que você. E eles são nojentos. Além disso, não mije no meu paletó! - Se eles são sujos, disse o gato, então é outra coisa. De qualquer forma, o fato é que eles fedem. Agora falando sério, virem-se aí em cima. E não se preocupe com o teu paletó, estou de olho nele. Ele se foi e não se podia mais ouvi-lo. O homem reapareceu. Ele trazia uma sacola de mercado no fim de um longo barbante. - Maravilhoso! disse Peter Gna. Ele certamente vai poder se segurar. - O que foi? perguntou o gato. - Aí está, disse Peter Gna, atirando-lhe. - Ah! É melhor, aprovou o gato. Não puxem rápido demais. Eu pego o paletó. Alguns segundos mais tarde, a sacola reapareceu, o gato estava comodamente instalado em seu interior. - Até que enfim! disse ele assim que saiu da sacola. Quanto ao seu paletó, você vai ter que se virar. Ache um gancho ou algo assim. Ele era pesado demais. - Seu miserável! grunhiu Peter Gna. Um clamor de satisfação acolheu o gato ao sair da sacola. Era passado de mão em mão. - Que belo gato! Pobrezinho! Ele está cheio de lama... Ele cheirava horrivelmente mal. - Sequem ele com isto, disse a puta estendendo seu cachecol de seda azul-lavanda. - Vai estragar, disse a irmã de Peter Gna. - Ah ! Isso não é nada, disse a puta num grande momento de generosidade. Ele não é meu. O gato distribuía apertos de mão a todos e a multidão começou a se dispersar. - Então, disse o gato vendo todo mundo ir embora, agora que estou aqui fora eu não sou mais interessante? Por sinal, onde está o galo? - Pare com isso, disse Peter Gna. Venha beber um pouco e não pense mais no galo. Restavam ao redor do gato o homem de alpargatas, Peter Gna, sua irmã, a puta e os dois americanos. - Vamos todos beber juntos, disse a puta, em homenagem ao gato. - Ela não é de todo má, disse o gato, e que corpinho ela tem!... No fundo, eu bem que dormiria com ela esta noite. - Se acalme, disse a irmã de Peter Gna. A puta sacudiu seus dois homens. - Venham! Beber!... Conhaque!... enunciou ela laboriosamente. - Sim !... Conhaque!... responderam os dois homens, se animando simultaneamente. Peter Gna andava na frente levando o gato e os outros o seguiram. Um boteco estava aberto na rua Richer. - Sete conhaques! pediu a puta. A rodada é minha. - Você é uma ganhadora! disse o gato com admiração. Um pouquinho de erva-gato no meu, garçom! O garçom os serviu e todos brindaram alegremente. - O pobre gato deve ter pego uma gripe, disse a puta. Que tal se a gente lhe desse um caldo de carne? Ouvindo isso, o gato quase se engasgou e cuspiu um pouco de conhaque por tudo. - Quem ela pensa que sou? perguntou ele a Peter Gna. Eu sou um gato ou não sou? À luz das lâmpadas fluorescentes, via-se agora de que tipo o gato era. Era um gato terrivelmente gordo, com olhos verdes e um bigode à la Guilherme II. Suas orelhas rendilhadas provavam toda sua virilidade e uma grande cicatriz branca desprovida de pêlos, coquetemente acentuada por uma borda violeta, percorria-lhe as costas. - O que é isso? perguntou um americano tocando o lugar. Foi ferido, senhor? - Sim! respondeu o gato. F.F.I.5 ... Pronunciou: Éf, Éf, Ai, como devia. - Ótimo, disse o outro americano lhe apertando vigorosamente a mão. Que tal outra bebida? - OK! disse o gato. Tem um careto? O americano lhe estendeu seu estojo de cigarros, sem ressentimento algum pelo horrível sotaque britânico do gato que acreditava poder ser agradável soltando uma gíria americana. O gato escolheu o cigarro mais comprido e o acendeu com o isqueiro de Gna. Cada um pegou um cigarro. - Conte a história do seu ferimento, disse a puta. Peter Gna achou um gancho no fundo do seu copo e partiu rápido para pescar seu paletó forrado de pele. O gato resmungou e baixou a cabeça. - Não gosto de falar de mim mesmo, disse ele. Me dêem um outro conhaque. 5 N.do.T.: Forces Françaises de l’Interieur, as Forças Francesas do Interior, formadas por soldados clandestinos durante a ocupação alemã e que mais tarde participaram da ofensiva contra a Alemanha. - Isso vai te fazer mal, disse a irmã de Peter Gna. - De forma alguma, protestou o gato. Eu tenho as tripas blindadas. Verdadeiras tripas de gato. E além disso depois daquele esgoto... Ugh! Como aquilo fedia a rato!... Ele tomou o conhaque todo de uma vez. - Nossa! Tomou tudo de um gole só!... disse o homem das alpargatas em tom admirado. - O próximo num copo com casca de laranja, especificou o gato. O segundo americano saiu do grupo e foi se instalar nas banquetas do botequim. Ele pôs a cabeça no meio das pernas e começou a vomitar entre os pés. - Era, disse o gato, abril de 44. Eu vinha de Lyon onde eu tinha contatado o gato de Léon Plouc que também fazia parte da resistência. Um gato à altura do serviço, mas, depois, ele foi pego pela Gestapo dos gatos e deportado para Buchenkatze6. - Que pena! disse a puta. - Não estou preocupado com ele, disse o gato, ele se virou. Deixando ele, então, voltei a Paris e, no trem, eu tive a infelicidade de encontrar uma gata... aquela ordinária!... aquela puta!... - Olhe a língua, disse severamente a irmã de Peter Gna. - Desculpe! disse o gato, e tomou um grande gole de conhaque. Seus olhos se acenderam como dois lampiões e seu bigode se eriçou. 6 N. do T.: outro mot-valise, misturando Buchenwald, onde mais de 50 mil deportados morreram, com katze, que em alemão significa gato. - Passei uma dessa noites, no trem, disse ele, espreguiçando-se com complacência. Meu Deus! Que golpe nos rins! Hic-cup!... concluiu, porque estava com soluços. - E então? perguntou a puta. - Então é isso! disse o gato falsamente modesto. - Mas e a sua ferida? Perguntou a irmã de Peter Gna. - O dono da gata tinha sapatos com cravos de ferro, ele viu meu rabo, mas acabou errando. Hic-cup!... - É só isso? perguntou a puta, desapontada. - Você queria que ele tivesse dado cabo de mim, hein? o gato caçoou sarcasticamente. Bem, você tem uma mente sagaz, você, hein! Você nunca vai no PaxVobiscum? Era uma boate do quarteirão. Em suma, uma zona. - Sim, respondeu sem pestanejar a puta. - Eu sou amigo da empregada de lá, disse o gato. Ela sempre me arranja algo para tomar. - Ah? disse a puta. Germaine?... - Isso, disse o gato, Ger-hic-cup-maine... Ele virou seu copo num gole só. - Eu me daria bem com uma tricolor, disse ele. - Uma o que? perguntou a puta. - Uma gata tricolor. Ou então uma gatinha ainda inexperiente. Ele soltou uma risada desprezível e piscou o olho direito. - Ou o galo! Hic-cup!... O gato ficou nas quatro patas, as costas arqueadas, o rabo esticado e eriçou a coluna. - Aquele galo tem sangue de barata! disse ele. Incomodada, a irmã de Peter Gna vasculhou sua bolsa. - Você não conhece nenhuma? perguntou o gato à puta. Você não tem nenhuma amiga que conheça umas gatinhas? - Você é um porco, respondeu a puta. Falando assim na frente dessas pessoas !... O sujeito das alpargatas não falava muito, mas, enervado pela conversa do gato, se aproximou da puta. - Você cheira bem, ele lhe disse. O que é? - Flor de enxofre, de Vieuxcopain7, disse ela. - E isso? perguntou colocando ali a mão, o que é? Ele tinha se colocado no lugar deixado vago pelo americano que passava mal. - Vamos, meu querido, disse a puta, não dê uma de inocente. - Garçom! disse o gato. Um licor de menta! - Ah não! protestou a irmã de Peter Gna. Até que enfim!... disse ela ao ver a porta se abrir. Peter voltava com seu paletó cheio de detritos. - Faça-o parar de beber, disse ela, ele está totalmente pilecado!... - Espere! disse Peter Gna. Preciso arrumar meu paletó. Garçom! Dois sifões!... Ele colocou seu paletó forrado de pele sobre o encosto de uma cadeira e o sifonizou copiosamente. - Garçom! disse o gato, está estranho... esse licor de menta... Hic-cup. Você é meu salvador, exclamou assim que disse isso, abraçando Peter Gna. Venha, eu te pago a zona. - Não, meu velho, disse Peter Gna. Você vai ter uma congestão. - Ele me salvou!... rugiu o gato. Ele me tirou de um buraco cheio de ratos onde eu certamente iria morrer. Comovida, a puta deixou cair a cabeça sobre os ombros do homem das alpargatas que a deixou e foi terminar num canto... O gato saltou sobre o balcão e esvaziou o conhaque que ainda restava. - Brrr !... ele fez, girando a cabeça para a direita e para a esquerda. Esse desceu difícil. Sem ele, uivou, eu estaria fudido, fudido!... A puta deitou a cabeça sobre o balcão com a cabeça entre os braços. O segundo americano a deixou e se instalou perto de seu compatriota. O vômito deles era sincronizado e desenhava a bandeira americana no chão. O segundo se encarregou das quarenta e oito estrelas8. - Venha nos meus braços... Hic-cup! acenou o gato. A puta deixou cair uma lágrima e disse: - Como ele é gentil!... Para não o vexar, Peter Gna lhe deu um beijo na testa. O gato o apertou entre as patas, subitamente o soltou e desmoronou. - O que é que ele tem? perguntou, inquieta, a irmã de Peter Gna. Peter Gna tirou um espéculo de seu bolso e o introduziu na orelha do gato. 8 7 N. do T.: alusão à marca Cheramy, que fazia perfumes baratos. N. do T.: até 1959 a bandeira americana só tinha 48 estrelas, antes do Alasca e do Havaí serem incorporados. - Ele está morto, disse ele após tê-lo examinado. O conhaque subiu para o cérebro. Podia-se vê-lo saindo. - Oh! disse a irmã de Peter Gna, e ela se pôs a chorar. - O que é que ele tem? perguntou, inquieta, a puta. - Ele está morto, repetiu Peter Gna. - Oh!... disse ela, após todo o trabalho que tivemos! - Era um gato tão bom!... E ele sabia conversar!... disse o homem das alpargatas que voltava. - Sim! disse a irmã de Peter Gna. O garçom do boteco ainda não tinha dito nada, mas ele pareceu sair de seu torpor. - São oitocentos francos!... - Ah! disse Peter Gna, inquieto. - É a minha vez de pagar, disse a puta, que tirou mil francos de sua bela bolsa de couro vermelha. Fique com o troco, garçom! - Obrigado, disse o garçom. O que eu devo fazer com isso? Ele designava o gato com um ar enojado. Um filete de licor de menta percorria o pêlo do gato formando um intrincado padrão. - Pobrezinho!... soluçou a puta. - Não o deixe assim, disse a irmã de Peter Gna. É preciso fazer algo... - Ele bebeu como um buraco, disse Peter Gna. É idiota. Não há nada a fazer. O barulho do Niágara que formava o fundo sonoro depois da retirada dos americanos parou. Eles se levantaram juntos e se reaproximaram do grupo. - Conhaque!... pediu o primeiro. - Dodo, meu garotão!... disse a puta. Venha!... Ela os abraçou cada um com um braço. - Com licença senhoras e senhores, disse ela. Eu preciso colocar meus bebês para dormir... Pobrezinho do gato, ainda assim... uma noitada que começou tão bem. - Adeus madame, disse a irmã de Peter Gna. O homem das alpargatas batia amigavelmente nos ombros de Peter Gna, sem nada dizer, com um ar de condolência. Ele sacudiu a cabeça, aparentemente desolado, e saiu na ponta dos pés. Visivelmente, o garçom estava com sono. - O que é que nós vamos fazer? disse Peter Gna, e sua irmã não respondeu nada. Assim, Peter Gna colocou o gato no seu paletó e eles saíram pela noite. O ar estava frio e as estrelas brilhavam, intensamente, uma a uma. A marcha fúnebre de Chopin, tocada pelos sinos das igrejas, anunciava à população que era uma hora da manhã. Com passos lentos, eles abriram caminho pela atmosfera cortante. Eles chegaram à esquina da rua. Negro, ávido, o esgoto esperava aos seus pés. Peter Gna abriu seu paletó. Ele pegou com cuidado o gato rígido e sua irmã o acariciou sem nada dizer. E depois, docemente, desapontados, o gato desapareceu no buraco. Ele fez “Glup!” e, com um sorriso de satisfação, a boca do esgoto voltou a se fechar.