A Orchestra Ba África e

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A Orchestra Ba África e
ID: 31356522
06-08-2010 | Ípsilon
Tiragem: 50121
Pág: 24
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Semanal
Área: 26,92 x 33,25 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 2
A Orchestra Ba
África e
É Junho e estamos em Loulé, nos bastidores do palco principal do Festival
Med, montado sob o olhar da Igreja
Matriz. Os músicos fazem tempo enquanto não chega a hora do concerto.
Um baterista faz o aquecimento batucando as baquetas nas pernas. Um
saxofonista entrega-se a um último
ensaio, assegurando que tudo está em
condições. Perante o olhar dos jornalistas que esperam uma entrevista,
dos promotores de imprensa e pessoal da organização do festival, um outro
apertará os braços sobre o corpo e,
no calor de uma noite de Verão algarvia, lançará em inglês, com um sorriso: “Tanto frio, demasiado frio”.
Aponta para o céu, como se a lua tão
alva fosse prova do clima “gélido”: “No
meu país, nunca sinto este frio”. O
homem que aponta para o céu chamase Rudy Gomis e é um dos vocalistas
da Orchestra Baobab, banda histórica
do Senegal que foi nos anos 70 a mais
importante e popular do país (e, provavelmente, da África Ocidental). Gomis nasceu na província de Casamansa, no sul do Senegal, mas a sua ascendência é guineense. Guiné-Bissau:
pouco depois, ouvimo-lo cantar no
concerto em crioulo português. Vemos também o saxofonista Issa Cissokho, descendente de famílias griot
do Mali (os griot são os portadores da
tradição poética e musical, e também
os comentadores musicais da actualidade). E seguimos os movimentos de
Barthélemy Attiso, chefe de orquestra
e guitarrista extraordinário, togolês
que na década de 60 viajou até Dacar,
a capital senegalesa, para frequentar
o curso de Direito. Próximo dele, o
homem que lhe serve de contraponto,
o guitarrista ritmo Lafti Benjeloum.
“Eu próprio não sou de Dacar, sou
de Saint-Louis, no norte do Senegal.
E se investigarmos mais fundo, posso
até dizer que não originário do Senegal, porque os meus pais são marroquinos”. É Lafti que fala ao Ípsilon,
pouco antes de a Orchestra Baobab
dar um magnífico concerto, o melhor
de todo o festival Med. É ele que nos
guia pela história de uma banda que
nasceu como reunião dos melhores
músicos que Dacar tinha para oferecer, representando uma identidade
pan-africana nascida sob a influência
da Negritude de Léopold Senghor.
Hoje, 40 anos depois da fundação, a
Orchestra Baobab mantém a sua formação praticamente inalterada (“um
bom músico é sempre difícil de encontrar e não temos tempo para lutas
e discussões”, dir-nos-á Lefti) e a sua
música é ainda fiel à descoberta cris-
talizada na década de 70. Lafti Benjeloum: “Adorava Jimi Hendrix, os Cream ou os Beatles. Adorava Ray Charles e Umm Kulthoum, uma cantora
árebe [egípcia] fantástica. Mas nenhum deles era realmente eu. Tinha
a sensação de que, se alguma vez conseguíssemos conjugar todas as nossas
influências, as nossas raízes, teríamos
a nossa música, não a música deles
feita por nós.”
A questão da identidade é importantíssima em todo o discurso de Benjeloum. Num determinado momento,
explodirá: “Ouça, a África nunca foi
respeitada. A forma como as pessoas
pensam África é completamente influenciada pelas imagens que vêem
na televisão. Tentem vir a África. O
que é uma pessoa pobre? Um pobre
é alguém a tentar viver exactamente
da forma que os detentores do dinhei-
Em 1987
a Orchestra
Baobab
desapareceu,
em 1989
começou a
ressuscitar:
“Era
importante
para nós fazer
música que
sobrevivesse
à passagem
do tempo. É
por isso que
ainda estamos
aqui, hoje”
Nasceu quando os melhores músicos de Dacar se reuniram para tocar num clube selecto,
colonialismo europeu. Hoje, 40 anos depois, ainda é um tesouro africano.O Ípsilon falou com o
ID: 31356522
06-08-2010 | Ípsilon
Tiragem: 50121
Pág: 25
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Semanal
Área: 26,92 x 33,33 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 2 de 2
obab inventou
m Dacar
O mundo que é Dacar
O baobab (baobá ou embondeiro, em
português), árvore de grande porte
que pode atingir 25 metros de altura
e dez de diâmetro e cuja longevidade
chega a ultrapassar um milénio, é o
símbolo do Senegal. Em 1970, quando um conjunto de jovens políticos e
empresários do Senegal, independente da França há dez anos, decidiu
abrir um clube moderno e sofisticado
que reflectisse o novo rumo do país,
chamou-lhe Baobab. Clube Baobab.
No primeiro andar, a sala de refeições. Abaixo, o clube propriamente
dito, com música tocada ao vivo todas
as noites, um bar de dimensões consideráveis construído, precisamente,
em forma de embondeiro. O seu proprietário principal era Adrien Senghor, ministro da Agricultura e irmão
mais novo do primeiro Presidente do
Senegal independente, Léopold Sédar
Senghor, intelectual africano e teórico da Negritude. Adrien, que fundara
um clube onde receberia políticos,
artistas e homens de negócios dos
países africanos circundantes e do
Ocidente, ambicionava a excelência.
Por isso, os músicos que ali tocariam
teriam de ser os melhores. Mais do
que isso, teriam de representar o melhor de África na sua diversidade.
“Dacar é um grande porto, o ponto
mais ocidental de África, e tem gente
vinda de todo o mundo. De certa forma, é o mundo num pequeno espaço”, descreve Lafty Benjeloum. A
Orchestra Baobab foi a banda que encontrou a forma perfeita de representar esse caldo cultural. As suas origens
remontam a outra banda histórica, a
Star Band – era a mais importante da
cidade e dela saíram vários músicos
para formar a Baobab.
Lafty fala-nos de uma banda formada por jovens músicos que encontraram o cenário perfeito para que as
suas ideias frutificassem. Um grupo
procurando afirmar uma identidade.
Contextualiza, recorrendo à sua própria experiência: “Vens de Marrocos
e os teus pais falam árabe, mas os teus
amigos são senegaleses e falam wolof
[a língua franca do país]. Depois, vais
para a escola, onde falas francês e
aprendes inglês”.
Na banda, que reunia malianos,
senegaleses, togoleses, filhos de marroquinos ou guineenses, o resultado
foi música que cruzava várias línguas
e que fundia harmoniosamente o highlife ganês e nigeriano, as melodias
wolof e as baladas da Guiné, os ritmos
luxuriantes, incessantes, da região
de Casamansa, e, ingrediente fundamental, o “son” cubano que era à
época a grande sensação em Dacar.
Na banda, que homenageou em canção o herói revolucionário Amílcar
Música
ro querem que viva. Se te mantiveres
fiel ao que és, com consciência das
tuas raízes, não serás pobre. Serás
rico”.
A Orchestra Baobab escavou até
encontrar a sua riqueza. O resultado
foi tão brilhante que, até hoje, não
houve necessidade de mudar o que
quer que fosse.
“Ouça, a África
nunca foi respeitada.
A forma como as
pessoas pensam
África é
completamente
influenciada pelas
imagens que vêem na
televisão. Tentem vir
a África. O que é uma
pessoa pobre? Um
pobre é alguém
a tentar viver
exactamente
da forma que
os detentores
do dinheiro
querem que viva”
Lafty Benjeloum
Cabral (“Cabral”) ou o músico
Ibrahim Ferrer (“Hommage à Tonton
Ferrer”), mesmo a decisiva influência
cubana era uma busca identitária:
“Levaram os nossos ritmos [para as
Caraíbas] e puseram-lhe harmonias
clássicas espanholas por cima. Nós
decidimos recuperar esses ritmos e
enquadrá-lo nas nossas linguagens
clássicas”.
Ouvindo Lefty tocar nos Baobab,
onde o requebro caribenho ganha,
pela repetição, pela dinâmica ondulante, traços de hipnose magrebina,
percebemos perfeitamente o que ambicionava.
Queda e renascimento
Tocando quase diariamente no Clube
Baobab para um público selecto, tornaram-se primeiro a banda mais falada da capital. Depois, extravasaram.
“Todos os três meses saíamos em digressão durante 15 dias, parte de um
plano de cooperação entre o Senegal
e vários países africanos que tinha por
objectivo levar a música moderna senegalesa a outras nações”. No final da
década de 70, esgotavam estádios em
todo o continente e mantinham uma
edição regular de álbuns – editaram
cerca de 20 entre 1970 e 1985. Em
1979, o Clube Baobab encerrou, mas
a banda já continuara sem ele. Deixara de ser a banda residente dois anos
antes porque ambicionava um melhor
“cachet” e porque, diziam os seus
membros, frustrava-os que os seus
amigos tivessem entrada barrada no
selecto estabelecimento.
Em 1987, porém, separaram-se. Tinham sido ultrapassados pelos acontecimentos. A Star Band, que estivera
na génese da sua formação, fora regenerada e os seus membros mais
jovens, incluindo a futura estrela
Youssou N’Dour, saíram para fundar
um novo grupo, os Etoile de Dakar, e
um novo estilo, o mbalax, mais agressivamente ritmado e que rapidamente se transformou no preferido da
juventude senegalesa. De repente, a
Orchestra Baobab parecia velha e anacrónica. Os seus músicos, porém, recusaram forçar uma modernização.
“Decidimos não seguir a moda”, explicou Barthélemy Attisso ao “Guardian”, em 2007. “Isso significou o
nosso declínio gradual, mas aceitámolo para proteger a nossa originalidade, a nossa identidade”.
Attiso regressou ao Togo e à advocacia, actividade que mantém até hoje – metade do tempo é advogado no
seu país de nascença, no restante é
um inesperado “guitar-hero” de óculos e fato formal percorrendo o mun-
do com a Orchestra Baobab. Rudy
Gomis iniciou uma carreira a solo,
partilhada com a fundação de uma
escola de línguas africanas para residentes estrangeiros – é formado em
Línguas. Os restantes mantiveram-se
ligados à música. Lafty, o licenciado
em Filosofia que era suposto ter-se
tornado professor – “Tentei dois anos,
mas não era a minha vocação estar
numa sala em frente aos alunos” -, foi
tocando em hotéis com o vocalista
Balla Sidibe e o baixista Charlie
N’Diaye.
Até que, em 1989, a editora World
Circuit reeditou “Pirates Choice”, álbum de 1982, e a Orchestra Baobab
começou a ser conhecida no Ocidente. Em 1996, a World Circuit, tendo
em conta a influência do “son” cubano na música da Orchestra Baobab,
promoveu um encontro em Havana
entre africanos e caribenhos que,
frustrada essa primeira intenção, resultaria no célebre Buena Vista Social
Club.
Em 2001, “Pirates Choice” foi reeditado novamente, com canções extra, e o sucesso foi tal que a banda,
separada há década e meia, recebeu
um convite para actuar no Barbican,
em Londres. Daí para cá, correram o
mundo em digressão e editaram dois
álbuns, “Specialist In All Styles” (de
2002 e produzido, curiosamente, por
Youssou N’Dour), e “Made In Dakar”
(2007). O mbalax é género que passou
e a Orchestra Baobab mantém-se firme, tão ricamente lúdica, fascinante
e elegante como sempre.
Rudy Gomis, recordando os primeiros tempos da Orchestra Baobab, disse certa vez: “Tocávamos para ter
alguns francos nos nossos bolsos. Não
éramos casados. Não tínhamos responsabilidades. A vida era bonita”.
Lafty Benjeloum sorri quando citamos o companheiro de banda. “Não
queríamos tocar música só por tocar,
ou só para ganhar dinheiro. Era importante para nós fazer música que
durasse, que sobrevivesse à passagem
do tempo. É por isso que ainda estamos aqui, hoje”.
Vendo o concerto da Orchestra,
aquelas duas horas de concerto, aquelas canções que se prolongam admiravelmente, aqueles ritmos cubanos
que já não o são, aquele fluxo contínuo de línguas e expressões musicais
fundidas com mestria, não duvidamos.
Os cavalheiros sábios, os músicos
de talento ímpar da Orchestra Baobab, são uma lição de história e de
vida. São exactamente a música que
nos oferecem.
mas transformou-se numa banda pan-africana, símbolo de um continente a libertar-se do
guitarrista Lafti Benjeloum quando da sua passagem pelo Festival Med. Mário Lopes

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