O Outro Loteador Popular - MOM. Morar de Outras Maneiras.

Transcrição

O Outro Loteador Popular - MOM. Morar de Outras Maneiras.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Arquitetura e Urbanismo
Rebekah Brito Montenegro Campos
Belo Horizonte
2013
Rebekah Brito Montenegro Campos
Monografia apresentada ao Curso de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais
como requisito parcial para obtenção do título de
Bacharel em Arquitetura e Urbanismo.
Orientadora: Profa. Dra. Silke Kapp
Belo Horizonte
2013
Rebekah Brito Montenegro Campos
O OUTRO LOTEADOR POPULAR:
os loteamentos populares associativos sob a participação e a liderança do Padre Piggi
Bernareggi
Monografia apresentada ao Curso de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais
como requisito parcial para obtenção do título de
Bacharel em Arquitetura e Urbanismo.
----------------------------------------------------------------------------------------Profa. Dra. Silke Kapp (Orientadora) ─ UFMG
------------------------------------------------------------------------------------------Profa. Dra. Heloísa Soares de Moura Costa ─ UFMG
------------------------------------------------------------------------------------------Tiago Castelo Branco Lourenço ─ mestrando UFMG
Belo Horizonte, 4 de dezembro de 2013
A meus pais, Mario e Patricia,
as minhas irmãs, Rachel e Hannah,
e ao meu amado André.
AGRADECIMENTOS
Graças te rendemos, ó Deus; graças te rendemos, e invocamos o teu nome, e declaramos as tuas
maravilhas. (Salmo 75:1)
Meus sinceros agradecimentos:
Ao Senhor Jesus, a verdadeira Sabedoria, por meio de quem todas as coisas subsistem. Dou gra ças
a Ele por cada pessoa com quem tive a honra de conviver nesses cinco anos;
A Silke pelo conhecimento compartilhado, pelas discussões proporcionadas nesses últimos anos do
grupo MOM e, também, pelo entusiasmo transmitido nas investigações que resultaram esta
monografia;
Aos meus pais, Mario e Patrícia, por criarem todas as condições para que eu chegasse até aqui.
Obrigada por todo consolo, ensino, correção, amor e pela presença de vocês;
As minhas irmãs e eternas amigas, Rachel e Hannah, por me compreenderem e me divertirem por
todos esses anos;
Ao André pelo amor sincero, pela cumplicidade e pelo companheirismo;
A irmã e amiga Marina Coutinho, por todo apoio dispensado, principalmente na fase final desse
trabalho;
Às (aos) queridas (os) Yaçana, Fernanda, Bárbara Groppo, Barbara Olyntho, Lívia, Tiago, Lucas,
Maria Clara, Mariane Lin: foi um grande prazer conhecê-los e compartilhar com vocês todos os
dramas e conquistas nesses cinco anos;
Aos entrevistados sem os quais esta monografia não existiria: Pe. Piggi Bernareggi, José Laender,
Gladis Oliveira, Cornélia de Souza, Cláudio Beleza, Maria da Silva, Antônio Castro, Antônio Ruas,
Jair e Mari, Raimundo, Fernando Raimundo. Muito obrigada pela paciência!
À professora Ana Paula Baltazar por tornar o primeiro período em um “divisor de águas”. Agradeço
também por compartilhar suas discussões e criticas sobre a Arquitetura;
Ao grupo de pesquisa MOM, por compartilhar comigo de suas ricas discussões. Por ampliar as
possibilidades de atuação do arquiteto e, principalmente, dos usuários na produção mais autônoma
do espaço;
Ao Rodrigo pela amizade e solicitude por esses dois anos e meio de MOM;
Ao Pedro pelas conversas e companhia nas descobertas feitas neste trabalho;
A Ligia pelas ricas conversas proporcionadas;
À professora Heloísa Costa pelo ensino ministrado nas aulas de Planejamento Regional que muito
me instigou a ter uma visão mais critica quanto ao processo de desenvolvimento da Região
Metropolitana de Belo Horizonte. Sua contribuição foi indispensável para esta monografia;
Ao Thiago Lourenço pela rica troca de saber teórico pratico durante esse ano;
Por fim, aos queridos familiares, irmãos em Cristo, professores, colegas, funcionários: muito
obrigada!
O que oprime ao pobre insulta ao seu Criador;
mas honra-o aquele que se compadece do necessitado.
(Prov.14, 31)
O que para aumentar o seu lucro oprime o pobre, e dá ao rico,
certamente chegará à penúria.
(Prov. 22, 16)
RESUMO
A produção de loteamentos residenciais periféricos destinados à população de menor renda
constituiu uma forma comum de expansão urbana em Belo Horizonte e em municípios vizinhos. A
maior parte deles foi promovida pelo pequeno capital imobiliário (loteador privado), com lucros
exorbitantes, extraídos da combinação de preços unitários altos e ausência quase total de
infraestrutura urbana. A literatura especializada inclui descrições detalhadas desse processo, tanto
na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) quanto em outras metrópoles brasileiras. No
entanto, há outro tipo de produção de loteamentos populares, bem menos conhecido e estudado,
mas igualmente relevante na formação da RMBH: os loteamentos realizados por associações de
sem-casa, cuja atuação não visa ao lucro, mas ao provimento de terra urbana e de moradia. O
trabalho aqui apresentado tem por objetivo reconstruir, historicamente, o processo de produção
desses loteamentos associativos. Mais especificamente, investigam-se quatro deles, liderados ou
iniciados pelo padre Pier Luigi Bernareggi, o chamado padre Piggi, nas décadas de 1980 e 1990. Por
meio de levantamento físico, documental e cartográfico, e de entrevistas não estruturadas e semi estruturadas, procura-se compreender os procedimentos internos das associações, suas relações
com agentes externos (tais como prefeituras, proprietários de terras, igrejas, arquitetos e outros) e as
características sócio-espaciais dos bairros resultantes. A história desses loteamentos associativos,
com todas as suas limitações e percalços, mostra indícios de uma urbanização de caráter
autogestionário – algo que nenhum programa habitacional ou urbano (municipal ou federal)
conseguiu fazer até agora. Nesse sentido, conhecer seus processos pode ajudar a informar futuras
ações de produção da cidade mais democrática.
Palavras-chave: Autogestão. Autoprodução. Habitação de Interesse Social. Loteamentos Populares.
Loteamentos Associativos.Participação.
ABSTRACT
The production of peripheral residential land developments for the low income population was a
common form of urban expansion in Belo Horizonte and surrounding counties in the past decades.
Small real estate capital (private housing developer) has fostered most of these productions resulting
in excessive capital gains from the combination of high unit prices and the almost total absence of
urban infrastructure. Specialized literature includes detailed descriptions of this process both in the
Greater Belo Horizonte Metropolitan Area and in other Brazilian metropolises. However, there is
another kind of production of popular residential land developments, though less known and studied,
but equally important in shaping the Greater Belo Horizonte: the associations of homeless citizens
which are non-profit organizations that seek to provide them with urban land and housing. The work
presented here aims to reconstruct historically the production process of some of these associative
land developments. More specifically, it aims to investigate four of them which were led or initiated by
Fr. Pier Luigi Bernareggi (known as Fr. Piggi) in the 1980´s and 1990´s. In order to understand the
internal procedures of those associations, as well as their relations with the external agents (such as
municipal governments, landowners, churches, architects and others) and the socio-spatial
characteristics of the resulting developments, physical, documentary and cartographic survey were
conducted, as well as unstructured and semi-structured interviews. The history of those associative
settlements, with all their limitations and drawbacks, shows evidence of a self-managed urbanization
of character – something that no housing or urban program (local or federal) managed to accomplish
so far. In this sense, the understanding of their processes may help to assist future actions towards a
more democratic production of the city.
Keywords: Self-management. Self-production. Social interest housing. Popular residential land
developments. Associative residential land developments. Participation.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 ─ Sistematização esquemática das associações em que o Pe. Piggi atuou ........... 25
FIGURA 2 ─ Esquema da trajetória de Piggi pelos movimentos (quando liderança) ................ 34
FIGURA 3 ─ Localização dos loteamentos associativos do Pe. Piggi feitos de 1980 a 1990 .... 38
FIGURA 4 ─ Localização do Bairro (Conjunto) Jardim Felicidade.............................................. 55
FIGURA 5 ─ Demarcação aproximada das seções do Bairro Felicidade ................................... 56
FIGURA 6 ─ Evolução da ocupação do Jardim Felicidade ......................................................... 57
FIGURA 7 ─ Simulação esquemática do caminho das águas (Jardim Felicidade) .................... 58
FIGURA 8 ─ Ocupação às margens do córrego em destaque .................................................... 59
FIGURA 9 ─ Fotos do início da ocupação do Felicidade ............................................................ 60
FIGURA 10 ─ Situação atual do Bairro Jardim Felicidade ─ Expansão vertical e horizontal ... 61
FIGURA 11 ─ Localização do Bairro Novo Aarão Reis ................................................................ 82
FIGURA 12 ─ Provável localização da primeira ocupação do Bairro Novo Aarão Reis ............ 83
FIGURA 13 ─ Provável localização do barraco de lona onde Maria e sua família moraram ..... 83
FIGURA 14 ─ Casas populares no Conjunto Habitacional Novo Aarão Reis, 1993 ................... 84
FIGURA 15 ─ Situação atual do local registrado da figura anterior (Novo Aarão Reis) ............ 85
FIGURA 16 ─ Situação atual do Bairro Novo Aarão Reis ............................................................ 86
FIGURA 17 ─ Evolução da invasão da área verde e ribeirinha (Novo Aarão Reis) .................... 87
FIGURA 18 ─ Simulação esquemática do caminho das águas (Novo Aarão Reis) .................... 88
FIGURA 19 ─ Localização do Bairro Metropolitano, Ribeirão das Neves .................................. 98
FIGURA 20 ─ Projeto final para o Metropolitano – lotes de 400 m2 (proposta aprovada) ......... 99
FIGURA 21 ─ Projeto Inicial do Bairro Metropolitano, de 1996 (esquerda) e projeto final para
aprovação, de 1998 (direita) ........................................................................................................ 100
FIGURA 22 ─ Projeto final para o Metropolitano ....................................................................... 101
FIGURA 23 ─ Comparação do projeto e a situação real da ocupação (Bairro Metropolitano) 102
FIGURA 24 ─ Fotos do início da ocupação do Bairro Metropolitano ....................................... 103
FIGURA 25 ─ Fotos antigas referentes à implementação de infraestrutura, contratos e outros
(Bairro Metropolitano) ................................................................................................................. 104
FIGURA 26 ─ Vista panorâmica do Bairro Metropolitano ......................................................... 105
FIGURA 27 ─ Situação atual das casas ─ Parte da AMABEL ................................................... 105
FIGURA 28 ─ Situação atual do Metropolitano .......................................................................... 106
FIGURA 29 ─ Vista geral do Metropolitano ................................................................................ 107
FIGURA 30 ─ Localização do loteamento Roma ........................................................................ 124
FIGURA 31 ─ Localização San Marino e Roma – vista aérea .................................................... 125
FIGURA 32 ─ Localização do San Marino e Roma – vista panorâmica .................................... 126
FIGURA 33 ─ Projeto Geométrico do Bairro Roma (2001) ........................................................ 127
FIGURA 34 ─ Projeto Inicial do parcelamento do Roma ........................................................... 127
FIGURA 35 ─ Zoneamento referente à Lei complementar 037/2006 (Bairro Roma) ................. 128
FIGURA 36 ─ Evolução da ocupação do Bairro Roma (2003 a 2011) ....................................... 129
FIGURA 37 ─ Evolução da ocupação do Bairro Roma (2011 a 2013) ....................................... 130
FIGURA 38 ─ Comparação do projeto e da situação real da ocupação do Bairro Roma ........ 131
FIGURA 39 ─ Simulação esquemática do caminho das águas (Bairro Roma) ......................... 132
FIGURA 40 ─ Condições precárias das casas no Bairro Roma, 2013 ...................................... 133
FIGURA 41 ─ Caracterização do espaço urbano do Roma ....................................................... 134
LISTA DE TABELAS
TABELA 1: Informações básicas dos quatro loteamentos avaliados ................................................ 21
TABELA 2: Relação entre associação e loteamentos feitos pelo Pe. Piggi (vínculo direto) .............. 36
TABELA 3: Andamento da coleta de dados específicos de cada loteamento. ................................. 42
TABELA 4: Dados gerais dos loteamentos. ..................................................................................... 53
LISTA DE SIGLAS
ABAFE
Associação Comunitária do Bairro Felicidade
ADE
Área de Diretrizes Especiais
AEIS
Área de Especial Interesse Social
AMABEL
Associação dos Moradores de Aluguel da Grande Belo Horizonte
APCBH
Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
ASCOM
Assessoria de Comunicação da Prefeitura de Belo Horizonte
ASMOBAM
Associação dos Moradores do Bairro Metropolitano
AVSI
Associação Voluntária Social Italiana (ONG italiana)
BH
Belo Horizonte
BNH
Banco Nacional da Habitação
CDI
Companhia dos Distritos Industriais
CEABRA-MC Coletivo de Empresários e Empreendedores Negros Afro-Brasileiros do Município de
Contagem
CEGIPAR
Centro de Informações Georreferenciadas, Pastorais e da Religião
CEMCASA
Central Metropolitana dos Sem-Casa
Cemig
Companhia de Energia Elétrica de Minas Gerais
CF
Campanha da Fraternidade
CNBB
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
Cohab Minas Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais
COPASA MG Companhia de Saneamento de Minas Gerais
DNIT
Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes
FAMOBH
Federação das Associações de Moradores de Bairros, Vilas e Favelas de Belo
Horizonte
FAVIFACO
Federação das Associações Comunitárias das Vilas, Favelas e Conjuntos Populares
de Belo Horizonte e Região Metropolitana
FINEP
Agência Brasileira da Inovação
FNHIS
Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social
IBGE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IPTU
Imposto Predial e Territorial Urbano
LUOS
Lei de Uso e Ocupação do Solo
MOM
Grupo de Pesquisa Morar de Outras Maneiras
NPGAU
Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo
ONG
Organização não governamental
OP
Orçamento Participativo
OSCIP
Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
PAC
Plano de Aceleração do Crescimento
PBH
Prefeitura de Belo Horizonte
PMCMV
Programa Minha Casa Minha Vida
PRJ
Departamento de Projetos
PRODABEL Empresa de Informática e Informação do Município de Belo Horizonte
PUC Minas
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
RMBH
Região Metropolitana de BH
SEAC
Secretaria Especial de Ação Comunitária
SMAPL
Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento da Prefeitura Municipal de Belo
Horizonte
UMEI
Unidade Municipal de Ensino Infantil
URBEL
Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte
UTP
União dos Trabalhadores de Periferia
ZEIS
Zona Especial de Interesse Social
ZEU
Zona de Expansão Urbana
ZUM
Zona de Uso Misto
ZUPP
Zona Urbana de Preservação Permanente
ZUR
Zona de Uso Preferencial Residencial
ÍNDICE
1 QUEM É “O OUTRO LOTEADOR POPULAR”? ........................................................................... 19
2 A TRAJETÓRIA DO PADRE PIGGI NA LUTA PELA MORADIA: BREVE PANORAMA ................ 24
3 LOTEAMENTOS ASSOCIATIVOS DO PADRE PIGGI ................................................................. 36
4 JARDIM FELICIDADE .................................................................................................................. 54
Processo de aquisição da gleba ....................................................................................................... 62
Definição dos papéis ......................................................................................................................... 64
Ocupação ......................................................................................................................................... 65
Construção das casas ...................................................................................................................... 67
Infraestrutura .................................................................................................................................... 69
Mobilização temporária ..................................................................................................................... 71
Ocupação da área de preservação e à margem do córrego .............................................................. 72
Corrupção interna ............................................................................................................................. 74
Processo de regularização e Isenção de imposto ............................................................................. 75
Considerações .................................................................................................................................. 77
5 NOVO AARÃO REIS .................................................................................................................... 81
O processo de ocupação na perspectiva de uma moradora .............................................................. 91
Ocupação à margem do córrego ....................................................................................................... 93
Segurança ........................................................................................................................................ 93
Planos para o futuro ......................................................................................................................... 94
Corrupção interna ............................................................................................................................. 94
Processo de regularização ................................................................................................................ 94
Considerações .................................................................................................................................. 95
6 METROPOLITANO ...................................................................................................................... 97
Definição dos papéis ....................................................................................................................... 108
Recursos ........................................................................................................................................ 109
Processo de aquisição da gleba ..................................................................................................... 109
Projeto de parcelamento ................................................................................................................. 110
Ocupação e construção das casas ................................................................................................. 111
Levantamento topográfico ............................................................................................................... 113
Ocupação da área de preservação e à margem do córrego ............................................................ 113
Infraestrutura .................................................................................................................................. 114
Reuniões com os moradores .......................................................................................................... 114
Cooperativas .................................................................................................................................. 115
Corrupção interna e externa ........................................................................................................... 115
Regularização ................................................................................................................................. 118
Considerações ................................................................................................................................ 120
7 ROMA ........................................................................................................................................ 123
Regulação do solo .......................................................................................................................... 136
Aquisição da gleba ......................................................................................................................... 137
Ocupação ....................................................................................................................................... 137
Definição dos papéis ....................................................................................................................... 142
Demarcação dos lotes .................................................................................................................... 143
Processo de aquisição do lote ........................................................................................................ 144
Ocupação da área de preservação e institucionais ......................................................................... 146
Construção das casas .................................................................................................................... 147
Infraestrutura .................................................................................................................................. 147
Abertura das vias ............................................................................................................................ 149
Serviços urbanos ............................................................................................................................ 149
Nova associação ............................................................................................................................ 150
Corrupção interna ........................................................................................................................... 151
Regularização ................................................................................................................................. 152
Planos futuros ................................................................................................................................. 153
Processo de regularização .............................................................................................................. 154
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS E APONTAMENTOS ...................................................................... 157
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................ 162
ENTREVISTAS REALIZADAS ........................................................................................................ 165
APÊNDICES ................................................................................................................................... 167
Apêndice 1
Linha do Tempo com Indicação do Recorte Temporal do Trabalho ........................ 168
Apêndice 2
Metodologia Desenvolvida para Entrevistas ........................................................... 169
ANEXOS......................................................................................................................................... 172
Anexo 1 Relação das vilas e conjuntos regularizados (1986 - 2012) .............................................. 172
Anexo 2 Regularização das Vilas e Conjuntos ............................................................................... 174
Anexo 3 Loteadores associativos: uma contextualização ............................................................... 175
19
1 QUEM É “O OUTRO LOTEADOR POPULAR”?
A questão da habitação popular no Brasil é marcada pela ineficácia dos programas desenvolvidos
pelo Poder Público em suas várias instâncias: federal, estadual e municipal. É possível observar pelo
menos duas tendências em alguns desses programas. A primeira é a tendência de se desvirtuar de
sua proposta inicial, como o Banco Nacional da Habitação (BNH) 1, favorecendo a acumulação de
capital por agentes privados. A segunda é a de se voltar para a produção de novos assentamentos e
a urbanização e a regularização de vilas e favelas.
Apesar dos esforços, nenhuma dessas políticas contemplou aqueles que de fato careciam – a
população de poder aquisitivo de 0 a 3 salários mínimos. Atribuí-se esse fato à incapacidade de esse
grupo arcar com qualquer tipo de financiamento – uma das condições, na maioria dos casos, para
ser contemplado pelos programas de habitação – ficando, a cargo do governo, o subsídio para tanto.
Se o acesso à moradia, e, portanto, à cidade, relaciona-se ao poder aquisitivo da pessoa, conclui-se
que fica cada vez mais distante a possibilidade para a população de baixa renda adquirir uma
moradia na cidade.
Dessa maneira, passam a serem duas as possibilidades para solucionar o problema: a ação
independente da população, individual ou coletivamente, por meio de ocupação de favelas, de
invasão de terrenos desocupados, de moradia de favor ou de aluguel e, em último caso, de moradia
de rua; ou a ação de agentes externos por meio de produção de loteamentos em várias porções da
cidade e suas imediações – motivadas pela obtenção de lucro (agente privado) ou, contrapondo-se
ao primeiro, associativamente, a favor dos pobres (“o outro” agente).
A produção desses loteamentos periféricos destinados à população de baixa renda constituiu em
uma forma comum de expansão urbana em Belo Horizonte e em municípios vizinhos,
particularmente, no período que antecede a implementação da “Lei dos loteamentos” (Lei Federal
6766/1979), das leis de uso e ocupação de solo e do Plano Diretor (Lei Federal 10.257/2001). A
maior parte desses loteamentos foi promovida pelo pequeno capital imobiliário (na figura do loteador
Santos (2006) faz uma revisão das diversas políticas habitacionais voltadas à população de baixa renda no Brasil, a fim
de compreender as formas de atuação dessas políticas na atualidade. Sua investigação foi norteada pela hipótese de
que “essas políticas contribuíram mais para aprofundar situações de desigualdades urbanas do que para minimizá -las”.
(SANTOS, 2006, p.134) Nesse sentido, ela observa a atuação da política do BNH (1964-1986) como um “divisor de
águas” que, ao se desvirtuar de sua proposta inicial (contemplar a população de baixa renda), passa a voltar -se para as
classes média e alta. Dessa maneira, favorece o crescimento econômico do país, alimentando o “sistema de acumulação
e da concentração de renda” por agentes privados (SANTOS, 2006, p.18).
1
20
privado)2, com lucros exorbitantes extraídos da combinação de preços unitários altos e ausência
quase total de infraestrutura urbana. A literatura especializada inclui descrições detalhadas desse
processo tanto em Belo Horizonte quanto em diversas outras capitais brasileiras (CHINELLI, 198 1;
COSTA, 1994; SOUSA, 2002; CAMPOS, 2009).
No entanto, é possível observar, em vários locais de Belo Horizonte, a atuação de outro tipo de
loteador popular, denominado neste trabalho de loteador associativo3. Ele atua sem a intenção de
obter lucro, para atender, á princípio, de forma bem intencionada, à população pobre da cidade.
Suas atuações são menos conhecidas, mas também fazem parte da história do processo de
produção da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), como discutimos mais
detalhadamente no artigo "Loteadores associativos: uma contextualização" (ver Anexo 3). É possível,
por exemplo, identificar loteamentos populares produzidos por associações de futuros moradores
com apoio, sobretudo, de agentes ligados à Igreja Católica. A existência desses loteamentos indica
que pode ter havido, na RMBH, empreendimentos de urbanização de características
autogestionárias, coisa que nenhum programa habitacional ou urbano (municipal ou federal)
conseguiu fazer até agora. Como há pouco material sobre esses loteamentos, busca-se, no presente
trabalho, investigar sua história: em que contexto político e econômico ocorreu e até que ponto foi
concebido e gerido com alguma autonomia dos moradores.
O objetivo geral desta pesquisa é reconstruir, historicamente, o processo de produção de
loteamentos associativos para a população de baixa renda entre os períodos de 1980 e 1990, na
RMBH, sob a liderança do padre Piggi, um dos principais agentes desse grupo, incluindo seus
procedimentos internos e suas relações com agentes externos (prefeituras, proprietários de terras,
igreja, dentre outros) (ver linha do tempo em Apêndice 1). Mais especificamente, pretendeu-se
descobrir como se deu o desenvolvimento urbano, a situação econômica, social e política das
associações e dos moradores em quatro dos nove loteamentos que tiveram liderança e/ou
participação do Pe. Piggi a fim de compreender melhor as peculiaridades e semelhanças existentes
Costa (1994), assim como outros autores, atribui, até o momento, à figura do loteador popular apenas o agente privado,
aquele que atua para obtenção de lucro à custa da expropriação da população de baixa ren da. No entanto, na pesquisa
em andamento – explicada mais adiante no Item 3 – foi possível identificar outro tipo de agente que também atuou como
loteador popular, sobretudo no período entre 1980 e 1990.
2
Surge assim o nome o “outro loteador popular” – outro loteador que não o loteador privado. Em o “outro loteador
popular” mencionado no presente trabalho, Pe. Piggi atuou por meio de associação ou em conjunto com outras
associações. Assim, usar-se-á a expressão “loteador associativo”, ao longo desse trabalho, para se referir a ele e,
portanto, “loteamentos associativos” aos loteamentos populares feitos por ele.
3
21
entre eles. Dois deles estão localizados em Belo Horizonte: o pioneiro, Jardim Felicidade (1986), e o
Novo Aarão Reis (1991). Os outros dois encontram-se em Ribeirão das Neves: o Metropolitano
(1996) e o Roma (1998) (Ver Tabela 1).
As características variavam, certamente, de um loteamento para outro, conforme os diversos
aspectos que definiram o contexto em que se inseriram: seja pelo modo de obtenção das glebas
(doadas, compradas ou invadidas), ou dos recursos para o empreendimento (federal, estadual,
municipal, de organizações não governamentais ou dos futuros moradores), ou a seleção dos
técnicos contratados (proximidade com alguns dos envolvidos no processo, seja por meio de
associações de moradores ou do Poder Público), ou do tempo em que ficou na clandestinidade
(desde a aquisição da gleba até o cadastramento dos lotes).
Constatou-se, por exemplo, que, em alguns casos, houve o consentimento inicial do Poder Público
(seja por meio de recursos federais e/ou estaduais cedidos) e recursos de organizações não
governamentais (nacionais e/ou internacionais), como foi o caso do Jardim Felicidade, durante a
gestão municipal de Sérgio Ferrara. Em outros, ao contrário deste, houve o apoio governamental
pós-invasões de terrenos públicos, como no caso do Bairro Novo Aarão Reis, com atuação do
governo estadual por meio da Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais (Cohab Minas).
Ainda, em outros casos, não houve qualquer apoio governamental, como no Bairro Metropolitano, em
que a associação se uniu a outras para realizar o loteamento, ou passou a atuar por conta própria,
como no caso do Roma.
Tabela 1 ─ Informações básicas dos quatro loteamentos avaliados
Associação Envolvida
Data de
Data de
Concepção Aprovação AMABEL CEMCASA FAVIFACO FAMOBH
Jardim Felicidade
1986/87
2005/06
Novo Aarão Reis
1992/94
-
Metropolitano
1996/97
1998
Roma
1998/99
-
AMABEL: Associação dos Moradores de Aluguel da Grande Belo Horizonte; CEMCASA: Central Metropolitana dos SemCasa; FAVIFACO: Federação das Associações Comunitárias das Vilas, Favelas e Conjuntos Populares de Belo Horizonte e
Região Metropolitana e FAMOBH: Federação das Associações de Moradores de Bairros, Vilas e Favelas de Belo Horizonte
Fonte: Elaborada pela autora
22
Considerou-se a seleção desses quatro loteamentos por representarem quatro momentos marcantes
do movimento do padre entre as décadas de 1980 e 1990 – o início, o apogeu e a queda. O marco
zero (referencial) é o Jardim Felicidade; sua continuidade é o Novo Aarão Reis; o ápice do
movimento é o Metropolitano; a “queda” é representada pelo Roma.
A metodologia utilizada foi desenvolvida pelo Morar de Outras Maneiras (MOM), grupo de pesquisa
do CNPq, criado em 2004, sediado pelo Departamento de Projetos (PRJ) e pelo Programa de Pósgraduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU) da Escola de Arquitetura da UFMG, durante as
investigações realizadas no contexto da Rede FINEP de Tecnologias Sociais para a Moradia (Rede
Morar TS). Essa metodologia é composta de revisão e levantamento bibliográficos; pesquisa
documental e de imagens – incluindo seleção, análise, sistematização, registro e avaliação;
levantamento de campo – incluindo observação direta, levantamento fotográfico e em vídeo e
entrevistas semiestruturadas e não estruturadas, com elaboração de roteiro, execução, registro e
avaliação (ver Apêndice 2).
Encontrar informações sobre esses loteamentos foi um processo um tanto quanto instigante: os
desafios enfrentados, por um lado, limitaram a abrangência do trabalho, mas, por outro, contribuíram
para o surgimento de alguns questionamentos, sobretudo relacionados ao acesso à informação.
Enquanto existe um acervo relativamente amplo de literatura relacionada às atuações dos loteadores
populares privados, poucas são as informações disponíveis sobre os loteamentos associativos. Seus
processos de produção não foram documentados sistematicamente nem pelas próprias associações,
nem pelo Poder Público.
Dos poucos documentos produzidos pelas associações ou por sua encomenda, a maior parte se
perdeu no caos cotidiano de seus pequenos escritórios-sede. Para elas, a documentação nunca foi
prioridade: “a gente não tinha essa preocupação de registrar. [...] Na verdade a gente tinha
ansiedade de ocupar e conquistar, mas não do registro em si” (OLIVEIRA, 2013, entrevista). Além
disso, havia poucos recursos tecnológicos (ou financeiros) para um registro sistemático: “Então era
muita adrenalina e tal, você não tinha tempo para essas coisas [registrar o processo], sabe? E ainda,
até mesmo a condição tecnológica não era igual à de hoje. Hoje você com o celular você [...] você
rapidinho está registrando, documentando, guardando. “Mas naquela época não, não tinha.”
(OLIVEIRA, 2013, entrevista).
23
Por outro lado, também não havia interesse do Poder Público em documentar o processo de atuação
dos loteadores associativos: “Porque dessa época [décadas de 1980 e 1990], desses locais [os
outros loteamentos mencionados] você não vai conseguir [materiais] não. Porque, igual esse pessoal
que está fazendo essas ocupações hoje. Hoje tem muitas documentações, porque tem interesse do
Ministério Público. [...] Naquela época não. Não tinha”. (OLIVEIRA, 2013, entrevista).
Soma-se a essa escassez de registros a dificuldade de acesso às informações nos órgãos públicos,
que enfrentamos durante toda a pesquisa. Foi necessário recorrer aos mais diversos meios para
obter mapas, plantas cadastrais, fotos, dados quantitativos, e outros documentos; o que leva a
imaginar que haja nesses órgãos, certa má vontade em relação aos pesquisadores, seja pela falta de
organização dos arquivos, seja porque representam alguma espécie de “ameaça”.
Sendo assim, as entrevistas com líderes das associações e com moradores dos loteamentos se
tornaram fontes imprescindíveis. Embora muitas vezes fornecessem informações pouco precisas no
que diz respeito a datas e relações institucionais, resultaram num rico levantamento de dados.
Juntamente com as visitas in loco, também possibilitaram à pesquisadora compartilhar um pouco das
experiências vividas por esses atores.
Apesar dos empecilhos e das limitações supracitados, foi possível coletar informações sufici entes
sobre quatro dos loteamentos, que permitem um vislumbre das estratégias embutidas na atuação do
Pe. Piggi que não são de meras repetições mecânicas. Procurou-se identificar os principais aspectos
que possibilitaram o desenvolvimento de cada um desses quatro loteamentos, evidenciando as
características em que se assemelham ou se diferenciam (contexto político, união entre associações,
incentivos, etc.).
24
2 A TRAJETÓRIA DO PADRE PIGGI NA LUTA PELA MORADIA: BREVE
PANORAMA
Objetiva-se contextualizar as atuações do loteador popular, definir quais os precedentes que
culminaram nesse tipo de atuação (político, econômico, legal, sócia) e, mais especificamente,
apontar alguns dos principais aspectos que viabilizaram ou dificultaram a sua atuação, e quais foram
as principais características dessa atuação. Por fim introduzir-se-á a figura do loteador popular
associativo.
O “outro loteador popular” considerado neste trabalho refere-se ao padre Pier Luigi Bernareggi – Pe.
Piggi. Para compreender suas atuações, busca-se, aqui, retomar sua história – de onde veio, quais
influências recebeu, quais foram suas motivações e quais atores participaram junto a ele em suas
lutas.
Pe. Piggi, nascido em 1939 e criado em Milão (Itália), engajou-se, desde a juventude, na década de
1950, no movimento estudantil católico e, a partir de então, começou a voltar-se para as ações
sociais da Igreja Católica. A vinda do Pe. Piggi ao Brasil em 1964 foi motivada por seus superiores –
sobretudo por Dom Luigi Giussani4 – para ingressar em um seminário, onde obteria o doutorado em
filosofia. É provável que sua vinda tenha alguma relação com a disseminação da Teologia da
Libertação nesse mesmo período (1950 e 1960) 5. Em 1967, o padre estabeleceu-se na paróquia
Primeiro de Maio, onde se encontra até hoje.
Seu engajamento pelos pobres pode ser dividido em duas fases. A primeira é voltada para a cau sa
dos favelados, quando atuou por meio da Pastoral de Favelas, entidade ligada à Arquidiocese de
Belo Horizonte, criada na década de 1970 com o apoio, também, da União dos Trabalhadores de
4 Dom Luigi Giussani foi o fundador do movimento Comunhão e Libertação, cujo nome inicial era Juventude Estudantil
(Gioventù Studentesca – GS) (1954). (CLOLINE, 2013) Disponível em <http://br.clonline.org/default.asp?id=518>.
Acesso em: 20 de maio de 2013. Ele foi também o responsável por enviar os padres Piggi e Virgilio Resi para o Brasil
(ao Bairro Primeiro de Maio em Belo Horizonte) com o apoio da Fundação AVSI – ONG italiana que atua segundo a
doutrina social católica.
5 Menezes Neto (2010) relata a criação da Teologia da Libertação entre as décadas de 1950 e 1960 . Tratou-se da
conjugação dos princípios socialistas de Marx com a doutrina social da igreja. O autor ainda aponta a influência dessa
teologia nos movimentos sociais no Brasil e na América Latina que surgiram, sobretudo, na década de 1980. É nesse
contexto que é mencionada a vinda de padres europeus ao Brasil os quais passam a estender suas atuações (trabalhos
sociais) em países latino-americanos. Essa pode ser uma das justificativas para a vinda do Pe. Piggi ao Brasil.
25
Periferia (UTP). Já a segunda fase volta-se para a situação dos sem-casa, que é o enfoque deste
trabalho. (Figura 1).
Figura 1 ─ Sistematização esquemática das associações em que o Pe. Piggi atuou
CF: Campanha da Fraternidade
Fonte: Autora, 2013
Primeira fase: as favelas
A primeira fase de atuação do Pe. Piggi foi marcada pela formação de favelas, como a Vila São
Miguel (na década de 1980) e a Comunidade Boa União (1978-1985). Foi durante essa fase que Pe.
Piggi conheceu algumas pessoas envolvidas nos movimentos populares que, em conjunto,
contribuíram para o desenvolvimento da Lei do Profavela 6 (Lei Municipal nº 3.532, de 6 de janeiro de
1983), a primeira lei no país a possibilitar a regularização fundiária nas favelas mediante a definição
de um zoneamento próprio (o chamado Setor Especial 4 ou SE-4). A freira italiana Rosetta Brambilla
e o arquiteto José Carlos Laender de Castro fizeram parte desse grupo e atuaram ao lado do Pe.
Piggi.
Rosetta Brambilla foi enviada ao Brasil pela Fundação AVSI (Associação Voluntária Social Italiana,
uma ONG italiana ligada à doutrina social da Igreja Católica) na mesma época que Pe. Piggi.
Atuaram juntos na Pastoral de Favelas de Belo Horizonte. Rosetta foi responsável pela fundação de
6
Mais informações sobre o contexto e processo de desenvolvimento dessa lei em Santos (2006).
26
três creches e do Centro Educacional Alvorada 7. Sabendo do envolvimento do Pe. Piggi na Vila Boa
União (no início da década de 1980), e no loteamento Jardim Felicidade (1986/87), a existência das
creches feitas por Rosetta em ambos os lugares indica uma provável coparticipação junto ao Pe.
Piggi.
José Carlos Laender de Castro, nascido em Teófilo Otoni, MG, em 1938, esteve engajado com as
obras sociais promovidas pela Igreja Católica desde a sua juventude, principalmente, quando fazia
parte da Juventude Universitária Católica (JUC) em Belo Horizonte. Seu engajamento com essas
questões foi um dos condicionantes para seu envolvimento com a causa da população de baixa
renda – sobretudo em relação à moradia. Ele associa o início de sua interação com Pe. Piggi ao
período em que foi presidente da Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte
(URBEL) em 1991 (LAENDER DE CASTRO, 2013, entrevista). Nessa época, eles puderam atuar em
conjunto quando fizeram parte da Pastoral de Favelas de Belo Horizonte. Laender de Castro foi o
arquiteto responsável pelo desenvolvimento dos projetos de algum dos loteamentos associativos
organizado pelo padre, como o do Bairro Metropolitano (1996).
A primeira foi a Creche Etelvina Caetano de Jesus criada em 1987 na antiga Vila Boa União (atual Bairro Primeiro de
Maio). Ela é conveniada à AVSI desde 1992. A segunda foi a Creche Comunitária Jardim Felicidade criada em 1991 no
bairro de mesmo nome e conveniada à AVSI desde 1993. Nesse caso, a obra foi realizada com recursos da AVSI, da
URBEL e da Secretaria do Estado, do Trabalho e Ação Social. A terceira foi a Creche Dora Ribeiro criada em 1998 no
Bairro Providência. Por sua vez, o Centro Educacional Alvorada foi criado em 1999 no Bairro Felicidade. (COEREZZA,
2001, p. 50-54).
7
27
Segunda fase: os loteamentos
A transição da fase em que Pe. Piggi atuava em favelas para a fase em que atuava em loteamentos
não é muito clara. Sabe-se, porém, que essa etapa ocorreu durante a construção do Bairro Mariano
de Abreu, em 1985. Tanto Pe. Piggi quanto Laender de Castro consideram esse bairro como um
loteamento. Enquanto o padre associa a construção do bairro a uma das atuações da Associação
dos Moradores de Aluguel da Grande Belo Horizonte (AMABEL), criada em 1986, Laender de Castro
responsabiliza a Pastoral de Favelas pela formação do mesmo local. É a partir da construção desse
bairro que o padre inicia seu trabalho com loteamentos.
A Pastoral de Favelas foi extinta entre 1986 e 1987, data próxima à criação da AMABEL (1986). Não
se sabe, no entanto, se o padre atuou pela Pastoral de Favelas até o momento da sua extinção ou
se ele deixou essa entidade previamente, para, só depois, criar a AMABEL 8. Seja qual for a situação,
a experiência adquirida pelo padre durante suas atuações com favelados permitiu que ele
começasse a se envolver com a situação dos sem-casa.
A cartilha elaborada pela Fundação AVSI, Projeto História Viva: Conjunto Jardim Felicidade,
FUNDAÇÃO AVSI (2007), data o engajamento do Pe. Piggi com os sem-casa em 1985, quando, em
sua paróquia, de Todos os Santos, próxima ao Primeiro de Maio, começou a instigar aqueles que
moravam de aluguel nas favelas (muitos dos quais sofriam ameaças de remoção) a se mobilizarem
para conquistar a casa própria.
Nasce assim o primeiro grupo de sem-casa da cidade, grupo que teve início com duas ou três
famílias. A primeira ação do grupo foi identificar no bairro todos os que se encontravam em situação
semelhante e convidá-los para reuniões semanais no salão da igreja. Dentro de poucos meses,
ainda em abril de 1985, foram contatadas 800 famílias de sem-casa que moravam na região do
Primeiro de Maio. Dando prosseguimento às reuniões semanais, o movimento cresceu e mais tarde
chegou a envolver pessoas de outros lugares da cidade. Foram criados núcleos em mais de seis
bairros: Aarão Reis, Suzana, Tupi/Floramar, São Bernardo, Guarani e Bairro da Lagoa. O movimento
8
Piggi atribui a extinção da Pastoral de Favelas à pressão das especulações imobiliárias catalisadas por grandes firmas.
Mais adiante, ele menciona o envolvimento de um desses especuladores, Dom Arnaldo Ribeiro. O padre acredita que ele
pertencia a uma grande família de especuladores que o pressionou a extinguir a Pastoral de Favelas. Mas essa é apenas
uma das hipóteses (BERNAREGGI, nov/2011, entrevista).
28
chegou a agregar mais de 3500 famílias e, quando se fez necessário formalizá-lo como entidade
jurídica, foi constituído como Associação dos Moradores de Aluguel da Grande Belo Horizonte –
AMABEL. (FUNDAÇÃO AVSI, 2007, p.8-9)
A Fundação AVSI (2007) ainda comenta que, concomitantemente a esse, outros movimentos e
organizações de cunho popular também surgem em todo o país: “eles surgem pela interação de
diversos fatores: condições objetivas de abandono dos setores mais pobres; crescimento da
consciência popular; abertura política concomitante ao enfraquecimento da ditadura”. (F UNDAÇÃO
AVSI, 2007, p.9)
Desde sua criação em 1986, a AMABEL mostrou interesse em estabelecer parceria com o Poder
Público. A primeira delas foi com o prefeito Sérgio Ferrara (1983-1986) e, em seguida, com o apoio
federal, por meio de “Manoel Costa [deputado federal que] fez a ligação do grupo dos sem -casa com
a Fundação Juscelino Kubitschek, entidade que agregava diversos políticos proeminentes como
Aníbal Teixeira (Ministro do Planejamento) e Eduardo Antunes (Secretário de Ação Comunitária de
Belo Horizonte)” 9. (AVSI, 2007, p.10) A partir de então, deu-se origem ao desenvolvimento do Bairro
Felicidade. Essa estratégia de aproximar o movimento dos sem-casa do Poder Público foi sempre
buscada, no entanto, as gestões seguintes não mantiveram as mesmas propostas de Ferrara – ainda
que tenha contemplado a alguma parcela da população de baixa-renda, foram muito criticadas por
seu caráter clientelista e paternalista (ver Anexo 3).
Desse ponto em diante, Pe. Piggi começou a dedicar-se ao movimento dos sem-casa marcando o
início da segunda grande fase de sua atuação que pode ser subdividida em três momentos conforme
a vinculação direta que teve com as associações. O primeiro, na década de 1980, por meio da
AMABEL; o segundo, na década de 1990, pela Central Metropolitana dos Sem-Casa (CEMCASA) e o
terceiro, a partir de 2011 até os dias de hoje, pela Pastoral Metropolitana dos Sem-Casa.
O primeiro momento inicia-se com o envolvimento de Pe. Piggi com os sem-casa, ocorrendo quase
que espontaneamente com a criação da AMABEL. No estatuto dessa associação consta que foi
Pe. Piggi responsabiliza Eduardo Antunes pela reaplicação da estratégia utilizada no Felicidade para o
desenvolvimento de outros loteamentos – como Paulo VI, Capitão Eduardo, Beija-Flor, Filadélfia, Mariano de Abreu,
Castanheiras III, Novo Aarão Reis, como visto a seguir: “Quem sabe toda a história direitinho é o Eduardo Antunes,
porque quem encabeçou tecnicamente isso tudo […] que a Prefeitura estava apoiando tudo, passava tudo pela mão do
Eduardo Antunes. Essa é a pessoa que mais entende da… eu só lancei a ideia, aí, fiz questão de acompanhar direitinho
esse aqui [Felicidade] por um ou dois anos, um ano e pouco e depois eu fui para Itália e eles fizeram isso tudo aí. […]
Em 1990 voltei da Itália e, naturalmente, tive que voltar à problemática” (BERNAREGGI, out/2013, entrevista).
9
29
“fundada em 1986, como uma entidade civil, sem fins lucrativos, tendo como uma das suas
finalidades unir e organizar a população de baixa renda que sejam moradores de aluguel ou de favor,
objetivando a obtenção de terreno, casa própria, ou mesmo conseguir melhorias de infraestr utura,
serviços de transporte, educação, saúde, etc.” (SOUSA, 2002, p.124).
Assim como na Pastoral de Favelas, Piggi obteve um apoio fundamental da Igreja Católica para a
criação da AMABEL, principalmente, com a Campanha da Fraternidade (CF), promovida pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) de 1980, cujo tema foi Para onde vais?,
relacionado às migrações que vinham acontecendo 10. O objetivo geral dessa campanha foi:
A intensificação da mobilidade humana em geral e mais particularmente das migrações
internas, a existência de imigrantes e mesmo a emigração de brasileiros propõem à
Igreja, como primeira atitude, uma mudança de mentalidade em vários níveis:
a) consciência mais viva de sua peregrinação na Fé para a Jerusalém Celeste (Hebreus
13:4) com as suas consequências de desapego e de disponibilidade;
b) consciência mais viva de sua “catolicidade”, isto é, da universalidade radical que o
Evangelho lhe confere: já não há estrangeiro ou hóspede, nem discriminação de
espécie alguma, sob a pena de mortificar a própria noção de Igreja e esvaziar o
conceito cristão de fraternidade;
c) um despertar de sua dimensão missionária que é a essência da “missão” que o
Senhor lhe confiou (Mateus 28:19-20);
d) uma adaptação das estruturas eclesiais e de sua ação pastoral e social, a fim de que
seu serviço seja testemunho e profecia da verdadeira libertação e promoção do homem.
(CNBB, 1980).
Inspirado por essas iniciativas e porque “ninguém tinha feito nada disso [...] começamos quase por
uma necessidade”. Piggi ainda aponta que muitas outras iniciativas como essa se deram a partir da
ligação existente entre os movimentos e as paróquias: “todos eles surgiram paralelamente a
campanhas da fraternidade que se faziam no Brasil todo”. (BERNAREGGI, maio/2013, entrevista).
Conforme mencionado, ele se instalou na Paróquia de Todos os Santos, no bairro Primeiro de Maio,
situada no bairro de mesmo nome. Ali existia uma vila, a Vila Primeiro de Maio, que foi removida pe la
prefeitura para implantar a Avenida Cristiano Machado. A maioria dos que moravam ali aceitou ser
10
A Campanha da Fraternidade (CF) surgiu a partir do incentivo do Concílio do Vaticano II e foi promovida no Brasil pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A CF acontece anualmente desde 1964 durante a Quare sma e cada
ano introduz uma nova temática. “Inicialmente, a igreja buscou rever sua parte interna, tanto que as primeiras
campanhas tinham por objetivo principal reaproximar os leigos das atividades comunitárias e pastorais, além de reforçar
a vivência na paróquia e na comunidade. Dessa forma, os primeiros temas da Campanha da Fraternidade contemplaram
mais a vida interna da Igreja. A partir dos anos de 1970, essa postura muda e a Igreja passa a Igreja preocupa-se com a
realidade social da população, denunciando o pecado social e promovendo a justiça.” (SANTOS, 2013)
30
indenizada e realocada pela prefeitura no Bairro Ribeiro de Abreu restando apenas alguns
moradores, cerca de 15 famílias, que resistiram. Tudo indica que o início do envolvimento do Pe.
Piggi com a causa dos sem-casa deu-se a partir desse episódio:
Me dirigi mais para o movimento dos sem-casa, vivendo na periferia, na Paróquia de
Todos os Santos, no Bairro Primeiro de Maio.[sic] Eu era tempestuado constantemente
pela pressão dessas famílias que ficavam nas ruas, despejadas, que não aguentavam
pagar aluguel – até hoje. Até hoje é uma tragédia, uma tragédia subliminar, porque é
uma tragédia totalmente desconhecida. Ninguém sabe que existem os sem-casa por
que estão morando nos fundos, nas casas dos pais [..] é contra a natureza humana.
Então a gente formou a primeira associação dos sem-casa, a AMABEL (Associação dos
Moradores de Aluguel da Grande Belo Horizonte). (BERNAREGGI, maio/2011,
entrevista).
Pe. Piggi conta que depois desse episódio conseguiu reassentar esses moradores no próprio Bairro
Primeiro de Maio. Ainda que não tenha sido um loteamento propriamente dito, é provável que esse
processo de reassentamento tenha sido o catalisador para iniciar seus loteamentos associativos pela
AMABEL.
A minha paróquia aqui tinha um lote lá embaixo, dos vicentinos, das famílias que
ficavam na rua, despejados e tal. Então mandavam lá para aquele lote. Só que o lote
cabia 10, 15 famílias no máximo, não cabia mais nada. Quando chegou a décima sexta
família o quê que eu ia fazer? Eu falava: Oh gente, eu não tenho mais nada, o quê que
eu vou fazer? Então junta os seus colegas, os seus amigos, que na sua situação lá do
seu cortiço, dos sobrados, gente que mora de aluguel, gente que mora num lote só,
pobres, miseráveis, o povo dava, discutiu aqui nesse salão aqui é... a ideia foi: Vamos
criar uma associação de luta pela moradia de baixa renda [AMABEL], vamos batalhar.
Que nós não temos terra aqui. Só se pode construir se tiver terreno. Então vamos
trabalhar. Então nós colocamos um encontro grande com o prefeito [Sérgio Ferrara] nós chamamos o prefeito - o presidente da Câmara dos Vereadores e tal e tal e o
Ferrara foi muito simpático à ideia, pegou o secretário de ação comunitária dele e jogou
em cima dessa problemática. De fato foi um choque. Em três anos construímos 20 mil
moradias, em Belo Horizonte, de baixa renda, de 0-3 salários mínimos. Coisa que nunca
aconteceu nessa cidade. (BERNAREGGI, maio/2013, entrevista).
Pela própria definição dada pelo Pe. Piggi, a AMABEL “era uma estrutura dos sem-casa, cada bairro
com seus coordenadores. Os coordenadores se reuniam toda a semana”. (BERNAREGGI,
maio/2013, entrevista). Por meio dela, foi feito o primeiro dos loteamentos de Pe. Piggi, o Bairro
Jardim Felicidade (1986/1987). O então prefeito de Belo Horizonte, Sérgio Ferrara (1986-1989), sob
a pressão da AMABEL, desapropriou parte da Fazenda Tamboril para dar lugar ao loteamento. Ficou
a cargo de a AMABEL correr atrás dos recursos nacional (federais e municipais) e internacional
(enviados pela Fundação AVSI). Assim, foi possível não somente doar os lotes aos moradores, mas
também comprar os materiais para a construção das casas no regime de autoconstrução.
No entanto, durante o processo, alguns dos coordenadores da associação se desvirtuaram da
proposta inicial do movimento passando, por exemplo, a beneficiar pessoas não contempladas pela
seleção estabelecida pelo Pe. Piggi. Então, um impasse foi gerado: se por um lado esses
31
coordenadores deram oportunidade para aqueles que também precisavam sair do aluguel, por outro
se enriqueciam à custa da situação dessas pessoas, uma vez que cobravam delas um valor para se
tornarem proprietários de um dos lotes – que, na proposta do Pe. Piggi, os lotes deveriam ser
doados e não vendidos. É provável que a corrupção interna à associação somada ao forte
temperamento do religioso tenham levado Pe. Piggi a desligar-se da AMABEL para, na década de
1990, criar a CEMCASA. Soma-se a essa hipótese a viagem do Pe. Piggi para a Itália entre 1988 e
1990 (SOUSA, 2002, p. 136).
As informações obtidas até o momento indicam que os loteamentos produzidos pelo Pe. Piggi na
década de 1980, quando vinculado à AMABEL, foram além do já mencionado Bairro Jardim
Felicidade: Novo Aarão Reis, Paulo VI, Castanheira-3, Capitão Eduardo, Beija-Flor e Jardim
Filadélfia.
O segundo momento se diferencia do primeiro, dentre outras questões, pelo fato de o padre deixar
de receber qualquer apoio de natureza política ou da administração pública (seja de instâncias
municipais, estaduais ou federais) e até mesmo da própria Igreja Católica 11.
A CEMCASA “foi fundada em 10 de outubro de 1993, como uma entidade civil, sem fins lucrativos,
sendo apartidária e filantrópica, com personalidade jurídica privada, tendo como área de abrangência
toda a Região Metropolitana de Belo Horizonte”. (SOUSA, 2002, p.126) Seu surgimento esteve
associado ao tema Onde Moras?, lançado pela Campanha da Fraternidade, em 1993, e organizado
da seguinte maneira:
A Central Metropolitana dos Sem-Casa, reúne grupos organizados dos “sem-casa” de
toda a Região Metropolitana de Belo Horizonte. São grupos de 200 famílias e outros
com 100; que se registram lá, e a Central toma conta daquele grupo. Os funcionários da
Central são dois advogados, que o próprio associado paga por mês, um contador, um
digitador. Agora nós, coordenadores de grupo, somos todos voluntários. Nós temos um
estatuto, registrado em cartório, que é proibido ter pagamento de salário. (SOUSA,
2002, p.127)11F.
11 Isso
é explicado por Sousa (2002) “[Pe. Piggi] comenta, com alguma amargura, o distanciamento do Poder Público do
atendimento às reivindicações dos movimentos, lembrando os inconvenientes da cooptação e a surdez para os que
“preferem correr sozinhos”. “Hoje, se você não é da turminha, da corriola, não faz parte dos ativistas deles, nem chance
tem de conversar com os homens”, diz ele referindo-se á Administração Municipal que, à época, tinha à frente o Partido
dos Trabalhadores. O entrevistado registra, ainda, a forma através da qual o movimento se articula com as esferas do
Poder Público: no nível federal, através do Programa Comunidade Solidária, no estadual junto à Secretaria de Habitação
e, no municipal, buscando interlocução com a Secretaria do Planejamento. “Nos três níveis nós provocamos reuniões, e
até manifestações no Congresso (...) mas não é nossa meta pegar nossos associados e mandar invadir. Nós somos
milhares, nosso problema é uma política habitacional, por isso nossa missão é muito lenta, muito improdutiva”. (SOUSA,
2002, p. 127) As informações foram extraídas por Sousa (2002) na entrevista que realizou com o Pe. Piggi em 30 de
agosto de 2001.
32
A principal estratégia da associação, até hoje defendida pelo Pe. Piggi, era o acesso à moradia por
meio da compra de terra (não por invasão ou por ocupação), em grandes glebas, para atender a
muitas famílias em um mesmo empreendimento. Inicialmente, a associação esteve ligada à
Arquidiocese de Belo Horizonte, desvinculando-se dessa três anos depois12. Sousa (2002) ainda
menciona dois condicionantes que levaram a CEMCASA a atuar por si mesma: dificuldades em criar
alianças com o Poder Público (municipal e estadual) – gestão do petista Patrus Ananias – e a
postura irredutível das pastorais da Igreja Católica em aceitar a produção de “grandes conjuntos”.
Uma vez que não tinha apoio político do Estado ou da Igreja, a CEMCASA comprou, em parceria
com outras duas associações, a Fazenda Castro (1996) em Ribeirão das Neves para o
desenvolvimento do Bairro Metropolitano (item 2.6). Em seguida, Pe. Piggi também teve uma
participação junto à CEMCASA na fase inicial do Bairro Roma (item 2.7), em Ribeirão das Neves.
Com a saída do Pe. Piggi dessa associação, por volta de 2001, outras lideranças assumiram seu
lugar.
Se, no segundo momento, a associação do Pe. Piggi (CEMCASA) se desliga da Igreja Católica, o
terceiro é marcado pelo retorno do movimento do Pe. Piggi aos cuidados dessa mesma instituição
religiosa. Frustrado com as duas tentativas, a alternativa encontrada pelo Pe. Piggi foi a de ligar-se à
Igreja Católica, com a criação da Pastoral Metropolitana dos Sem-Casa, talvez na esperança de não
mais ser importunado pela corrupção que grassava nas duas associações. Pe. Piggi alega, também,
que ele e outros parceiros do movimento já estavam cansados “de a gente mexer a nosso risco e
perigo” e por isso “nós criamos a pastoral dentro da própria Arquidiocese” (BERNAREGGI, nov/2012,
entrevista).
Gladis F. Oliveira, atual presidente da AMABEL, explica essa nova estratégia do padre, mas acredita
que logo ele perderá o controle da situação, assim como aconteceu nas demais associações por ele
organizadas: “Sabe o que foi que ele fez? Ele criou vários grupos. E no final, aí que dá os problemas,
né? Que aí acaba saindo do controle dele. Ele perde o controle totalmente. [...] Ele confia muito fácil
nas pessoas. [...] sempre foi assim. [...] Porque a intenção dele é uma. [...] O alvo dele é o seguinte:
pegar, negociar e atender famílias. Só que aí os grupetes veem uma oportunidade de ganhar
dinheiro ali e aí vai. E fica aquele inferno!” (OLIVEIRA, 2013, entrevista).
12
Entrevista com Padre Piggi realizada por Sousa (2002) em 30 de agosto de 2001.
33
É provável que ela esteja certa e que, além dos problemas mencionados, outros de diferente
natureza possam vir a ocorrer. Pela explicação do Pe. Piggi, a Pastoral Metropolitana dos Sem-Casa
pertence à Arquidiocese de Belo Horizonte e está vinculada a ela desde 2011 – sendo constituída,
basicamente, por vários núcleos espalhados pela cidade. Essa arquidiocese possui uma ONG,
Providência Nossa Senhora da Conceição, com mais de 60 anos de existência. No final do ano de
2012, foi pleiteado por Dom Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo metropolitano de Belo Horizonte,
(com a ajuda da PUC Minas) a transformação de ONG para Organização da Sociedade Civil de
Interesse Público (OSCIP). Piggi aponta vantagens nessa transformação porque facilitará a captação
de recursos do governo federal, sem a necessidade de prestação de contas à Caixa Econômica
Federal.
Embora Pe. Piggi tenha vários projetos em andamento, inclusive aqueles com o auxílio do corpo
acadêmico da PUC Minas, ainda encontra resistência.
Então nós fizemos um projetinho, todo técnico, todo com os valores e tudo, e demos pro
Dom Mol [Dom Joaquim Giovanni Mol Guimarães] pra ele apresentar lá na PUC...
Porque nós precisamos agora de trabalhar como arquidiocese, e não é possível
imaginar umas coisas dessas sem que a PUC estivesse engajada e responsabilizada e
tal e tal. Sobretudo a parte de engenharia, de urbanismo, e também a parte de
administração, informática, por exemplo, informatizando todo o cadastro, todo o... É
muita coisa [em] que podia existir, assim, uma parceria dentro dos trabalhos de
presença na comunidade que a PUC faz. [...] E ele pegou o nosso fascículo e pôs na
mão de técnicos lá de dentro, que não sei quem são, não faço questão nenhuma de
saber quem são. A resposta depois de uns seis meses – porque lá é tudo assim, né?
Ficou seis meses lá. É um projeto ambicioso, porque o nosso projeto visa o déficit... Nós
somos a Arquidiocese de Belo Horizonte e toda a Região Metropolitana, quase toda.
Então, um projeto que diz respeito ao déficit habitacional total a ser resolvido em 10, 12,
20 anos, mas que seja um projeto e haja uma estrutura certa, definida para levá-lo
adiante até o fim, em parceria com o Poder Público, as verbas lá da Dilma e tudo mais.
É um projeto ambicioso que certamente vai fracassar e vai jogar o nome da
arquidiocese lá embaixo. Assinado pelos técnicos mais abalizados da PUC. É isso que
nós recebemos, digamos, por enquanto, de assessoria da PUC. Agora, diante do que
está acontecendo, igual hoje, eles tinham razão, né? A gente ó, não pode falar nada. Eu
pedi a audiência ao Dom Mol mais ao Dom Walmor – tem que ser os dois juntos. Tem
três meses que estou esperando a chamada, e não chama. Essa é a minha situação.
(BERNAREGGI, ago/2013, entrevista).
De modo geral, os movimentos do Pe. Piggi iniciam-se com a intenção genuína de aliviar o déficit
habitacional, mas, facilmente, perde a força por falta de organização e fiscalização interna dos seus
movimentos. Ele tem utilizado das mesmas estratégias quando fundou a CEMCASA, mas com um
adicional: a busca por terras na própria capital Belo Horizonte (como fazia com AMABEL). Para
tanto, ele tem procurado auxílio, inclusive, no meio acadêmico, para legitimar seu pedido ao poder
municipal para obter concessão de mais áreas para habitação de interesse social, como será
mostrado adiante.
34
A figura a seguir tem como objetivo sintetizar, com base nas informações obtidas, a trajetór ia de
Piggi nos movimentos dos sem-casa. No primeiro período, Pe. Piggi atuava por meio da AMABEL,
período este marcado pelo apoio aos movimentos feitos com a “ajuda do povo” (futuros moradores),
organizações não governamentais (como a AVSI), outros movimentos populares dos sem-casa
(associações), do governo federal e municipal (gestão de Sérgio Ferrara). No segundo período atuou
por meio da CEMCASA, que, inicialmente, contava com o apoio da Igreja Católica, mas, ao final,
acabou lutando por conta própria. E, por fim, o terceiro período, quando atuou por meio da Pastoral
Metropolitana dos Sem-Casa, ligada à Igreja Católica. (Figura 2)
Figura 2 ─ Esquema da trajetória de Piggi pelos movimentos (quando liderança)
Fonte: Autora, 2013.
Uma vez que o foco do estudo em andamento é a reconstrução do processo de formação dos
loteamentos populares entre as décadas de 1980 e 1990 (
35
Tabela 2) sob a liderança do Pe. Piggi, não serão tratadas, aqui, aquelas atuações que ocorreram
antes e depois desse movimento – seja a luta do Pe. Piggi pelos favelados, sejam as lutas em
andamento por meio da Pastoral de Favelas e Pastoral Metropolitana dos Sem-Casa,
respectivamente.
36
Tabela 2 ─ Relação entre associação e loteamentos feitos pelo Pe. Piggi (vínculo direto)
Data de Concepção
Jardim Felicidade
1986/1988
Capitão Eduardo
Paulo VI
1987
Beija-Flor
Filadélfia
Castanheira-3
Novo Aarão Reis
1992/1994
Metropolitano
1996/1997
Roma
1998/1999
Fonte: Pesquisadora, 2013
Associação Envolvida
AMABEL
CEMCASA
37
Loteamentos associativos do padre Piggi
Como já mencionado, entre 1980 e 1990 foram nove os loteamentos associativos feitos sob a
liderança do Pe. Piggi ou com sua participação. Dois localizados no município de Ribeirão das Neves
(Bairro Metropolitano e Bairro Roma) e os outros sete em Belo Horizonte, distribuídos nas regionais
Norte (bairros Jardim Felicidade e Novo Aarão Reis); Nordeste (bairros Capitão Eduardo, Paulo VI e
Beija-Flor); Noroeste (Bairro Jardim Filadélfia) e Barreiro (Bairro Castanheiras-3). A Figura 3 indica a
posição dos loteamentos no mapa da Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Vale aqui fazer a primeira ressalva sobre a quantidade desses loteamentos. Em uma conversa com
Gladis, atual presidente da AMABEL e em outra conversa com o próprio Pe. Piggi, foi constatado que
Pe. Piggi teve participações diretas e indiretas nesses empreendimentos. O Pe. Piggi liderou apenas
os loteamentos Felicidade e Metropolitano. Nos demais casos o padre atuou em conjunto com outras
associações.
38
Figura 3 ─ Localização dos loteamentos associativos do Pe. Piggi feitos de 1980 a 1990
Fonte: Base Prodabel (2008), alterações próprias, 2013
39
Como já dito, o primeiro loteamento popular associativo organizado pelo Pe. Piggi em Belo Horizonte
foi o Bairro Jardim Felicidade. Ele diz ter feito "tudo mais na base da intuição". Por diversas vezes
deu a entender que era uma vantagem o fato de ainda não existir a Lei de Uso e Ocupação do Solo
de 1996, à qual ele se refere diversas vezes como a lei que coibiu os loteamentos. Nessa época
(década de 1980), já era inviável comprar e lotear uma fazenda no município de Belo Horizonte. A
saída foi pressionar a prefeitura a desapropriar as glebas. Sob a gestão estadual do “abominável"
Newton Cardoso, Piggi lembra que a única instância a acudi-lo nesse processo foi a Companhia
Energética de Minas Gerais (CEMIG), "porque num curto espaço de tempo há muitos consumidores,
então era lucrativo". A Cemig só fazia a ligação elétrica nos lotes e a iluminação pública quando as
construções das casas estavam terminadas.
Pe. Piggi conta que "quando teve a experiência do Bairro Felicidade, que o povo viu que deu certo,
aí quando a própria prefeitura se animou, encantou a iniciativa. Então se tornou bem mais fácil.
Quando você tem o Poder Público patrocinando, a coisa vai de acordo". Com isso, a prefeitura abriu
novas frentes de ação, por meio da AMABEL para, consequentemente, repetir essa experiências em
diversos pontos de Belo Horizonte. O apoio dado por Ferrara teve grande importância no processo,
como mostra a fala do padre:
Depois, com a ajuda da prefeitura da época que era o Ferrara, nós conseguimos que
multiplicasse essas experiências em vários cantos da cidade. De modo que, dentro de
três anos, foram construídas 20 mil moradias. O Bairro Felicidade, o Bairro Capitão
Eduardo, o Bairro Beija-Flor, o Bairro Novo Aarão Reis. Depois lá no Bairro Jatobá, o
bairro (esqueci o nome), é uma seção do Bairro Jatobá [Castanheiras-3]. (BERNAREGGI,
mai/2013, entrevista).
Além desses loteamentos, foram mencionados outros, como o Paulo VI, Filadélfia, Fazenda da s
Abóboras (Roma), Fazenda Castro (Metropolitano). Já outros, como Boa União (1985/88) e São
Miguel, são tidos por Pe. Piggi como “invasões”, porque deram origem a favelas.
Esses acontecimentos deram-se ao longo da década de 1980. Do ponto de vista de política
habitacional, essa década foi marcada pela difusão nacional do Programa Nacional de Mutirões
Habitacionais da Secretaria Especial de Ação Comunitária (SEAC). Belo Horizonte e outros
municípios da Região Metropolitana foram contemplados por esse programa, por meio de suas
prefeituras ou por meio do governo estadual:
Na maioria dos estados, o escritório local da SEAC realizava, diretamente, convênios
com as Prefeituras. Em alguns estados, como em Minas Gerais, as atividades da SEAC
envolveram também um órgão estadual que coordenava e promovia o programa,
normalmente com um nome de identificação estadual. No caso da Administração
Newton Cardoso o nome fantasiado [sic] SEAC foi “Pró-Habitação”. (SOUSA, 2002, p.33).
40
As 20 mil moradias mencionadas na fala de Piggi nada mais foram do que um resultado desse
programa. Sousa (2002) também aponta que um dos diferenciais da AMABEL em relação às demais
entidades da época era a habilidade de diálogo do padre, que facilitava a captação de recursos para
o movimento. No entanto, as gestões seguintes, estaduais e municipais, dificultaram a continuidade
do movimento. Pe. Piggi faz questão de mencionar “os petistas” entre seus opositores: “tiveram
sempre uma visão extremamente elitista e restritiva de política habitacional, pois priorizavam
conjuntos no máximo de 300 casas, situados dentro da malha urbana e nos lugares onde houvesse
serviços públicos disponíveis.” (SOUSA, 2002, p.32) Em oposição a essa prática, Pe. Piggi continuou
sua jornada em busca das condições necessárias para o processo de autoconstrução individual,
tendo como premissa a compra e, em seguida, a urbanização da gleba.
Voltando à década de 1980, Pe. Piggi compara a agilidade do processo do Jardim Felicidade com o
do Mariano de Abreu, feito um pouco antes:
Ah! Mariano de Abreu. O Bairro Mariano de Abreu. Uma pedreira em que foram feitas
1000 moradias em um dia. […] Com blocos pré-moldados. Em um dia. Isso foi um show
que eles deram lá. A prefeitura tinha, naquela época, tinha uma ligação com um
secretário de Ação Comunitária lá que se chamava Eduardo Antunes que era uma
maravilha. Vem de um centro espírita que tem como filosofia fazer o bem. E fazia o bem
que era uma maravilha. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
A tabela a seguir é uma sistematização dos dados encontrados até agora sobre os nove loteamentos
executados sob a liderança do Pe. Piggi ou com sua participação, indicando o ano de início, a data
de aprovação, o número de lotes e as associações envolvidas (ver Tabela 3).
Apesar das muitas conquistas do movimento do Pe. Piggi, nem todas as suas tentativas de
loteamentos foram bem sucedidas. Um exemplo é o caso da Fazenda Dom Orione. Por volta de
199513, o movimento havia desistido de procurar terrenos em Belo Horizonte, em razão ao elevado
preço da terra e das restrições legais, e passou a buscar glebas em outros municípios da RMBH;
Há uma inconsistência quanto a data em que aconteceu essa experiência, dificultando, assim, situá -la precisamente
no repertório dos loteamentos que o padre participou. Ora o padre fala 1995 (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista) ora
fala 1998. (BERNAREGGI, maio/2013, entrevista). Ou seja, ele poderia localizar-se entre o desenvolvimento do
Metropolitano (1996) e do Roma (1998/99). Da maneira que ele vinha narrando o acontecimento, dava a entender que o
desenvolvimento do loteamento era sequencial, ou seja, terminava um e começava outro logo em seguida. No entanto,
na entrevista mais recente com o Pe. Piggi (BERNAREGGI, out/2013, entrevista), ele revela que as iniciativas poderiam
acontecer também simultaneamente. Nessa ocasião, ele data a compra da Fazenda Dom Orione em 1997 e diz ter sido
concomitante ao Bairro Roma (outrora datado de 1998/99):
13
Eu só participei [do processo de desenvolvimento Roma] no sentido que fui lá visitar o terreno, todo mundo gostou, e tal
e tal e tal, e começaram a comprar lá do dono, e tal e tal e tal, e depois não ia lá mexer porque já estava pressionado lá
com a questão da Fazenda Dom Orione – porque foi uma tragédia. Portanto, em 1997 que compramos a fazenda Dom
Orione. (BERNAREGGI, out/2013,entrevista)
41
“como não se podia fazer mais nada dentro de Belo Horizonte, nós procuramos em volta”. As
conquistas em Belo Horizonte tornaram o movimento confiante para prosseguir na luta e atraíram
muitas famílias: “eu sei que em três anos foram feitas 20 mil moradias em Belo Horizonte dentro
desse sistema de autoconstrução. Então, diante disso, juntou muito mais gente ainda.”
(BERNAREGGI, nov/2012, entrevista). Segundo as estimativas do padre, nessa época, havia quase
seis mil famílias “prontas” para ocuparem um lote. Como de costume, procurou-se um local onde
essas famílias pudessem construir e viu-se uma possibilidade na Fazenda Dom Orione, uma gleba
no município de Betim, localizada entre as áreas industriais da Petrobrás e da Fiat. Mal sabia ele que
seria o caminho para um fracasso.
Vale ressaltar que é possível que essas experiências concomitantes tenham muito contribuído para o
descontrole do padre para com a associação, pois ora se ausentava de um lugar para resolver
questões de outro, confiando na retidão das lideranças.
Pe. Piggi se lembra de como era essa fazenda “os orionitas eram donos de uma fazenda, uma
grande fazenda... Eram mais de dois milhões e quatrocentos mil metros quadrados, uma fazenda
linda, maravilhosa, plana. Um rio corria dentro da fazenda com uma lagoa.” No entanto, os orionitas
tiveram de abrir mão da propriedade, do terreno à prefeitura local em troca da quitação da dívida que
tinham com o município. A partir de então, Pe. Piggi conta que a Companhia dos Distritos Industriais
(CDI) passou a ser a nova proprietária das terras, sem ter, aparentemente, nenhum plano em vista
para essas: “Aí o estado, CDI, dona da coisa, não pretendia fazer nada lá. Então pôs à venda , fez
um concurso público para quem quisesse comprar aquela fazenda.” (BERNAREGGI, mai/2013,
entrevista).
42
Tabela 3 ─ Andamento da coleta de dados específicos de cada loteamento
Data de Concepção
Data de Aprovação
do Parcelamento
Jardim Felicidade
Entre 1986 e 1987
Entre 2005 e 2006
Capitão Eduardo
Década de 80
24/08/2012
Paulo VI
1987
Beija-Flor
Década de 1980
Filadélfia
Década de 1980
Castanheira-III
Década de 1980
24/08/2009
Novo Aarão Reis
Entre 1992 e 1994
-
Metropolitano
Entre 1996 e 1997
1998
Roma
Entre 1998 e 1999
-
Associação Envolvida
AMABEL
CEMCASA FAVIFACO14 FAMOBH15
Fonte: Autora, 2013
14
FAVIFACO: Federação das Associações Comunitárias das Vilas, Favelas e Conjuntos Populares de Belo Horizonte e Região Metropolitana
15
FAMOBH: Federação das Associações de Moradores de Bairros, Vilas e Favelas de Belo Horizonte
43
Na função de líder da CEMCASA, o padre pediu apoio ao arquiteto José Carlos Laender de Castro,
ao engenheiro Eduardo Antunes e ao então deputado federal Vittorio Medioli para iniciar as
negociações com os proprietários da gleba. Chegaram à proposta de que a CEMCASA pagaria a
fazenda toda em um ano – com a ajuda do Eduardo Antunes – como Piggi explica:
E nós entramos na concorrência e ganhamos! Ganhamos! Propusemos em um ano
pagar a fazenda toda. Muito bem. Então começamos, demos R$ 350 mil de entrada
(inclusive o Eduardo Antunes, o secretário, que é dono de mineração, proprietário de
terreno em tudo quanto é canto de Minas Gerais para minerar), colocou-se os terrenos
como fiança, todos, para nós podermos pagar R$ 350 mil. Pediram mais de três milhões
de fiança. E nós conseguimos porque o Eduardo Antunes teve a coragem de colocar
isso como garantia do pagamento dos R$ 350 mil. E nós pagamos tirando do bolso dos
pobres, R$ 30 por mês; só que eram seis mil famílias, é um "dinheirão". Pagamos a
entrada, e todo mês tinha aquela prestação, que me parece que era de R$ 180 mil.
Todo mês, religiosamente, nós estávamos pagando. Isso continuou por 3 a 4 meses.
(BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
A CEMCASA chegou a fazer o projeto do loteamento, realizado por Laender de Castro, e a
encaminhá-lo à prefeitura, mesmo sabendo que a prefeitura planejava outros usos para a terra: “E
enrola, enrola, enrola, igual Neves. Porque estava em andamento a Lei de Uso do Solo, e, portanto,
nós estávamos fazendo a coisa contrária aos projetos da prefeitura.” O padre não perdeu tempo:
antes mesmo da aprovação do projeto do parcelamento, deu início ao pagamento do terreno: a
entrada de 350 mil reais e o restante seria pago no decorrer dos meses “180 mil por mês, todo mês,
religiosamente” – cada morador pagaria uma prestação de trinta reais por mês. E assim foi feito. Por
volta do quinto mês, a CDI autorizou o início da ocupação da gleba, começando com a marcação,
com auxílio dos topógrafos, e em seguida, a abertura das vias. Pe. Piggi afirma que a CDI “gostou do
projeto, eles gostaram muito. Tinha um tal de Napoleão não sei de que lá, o presidente da CDI. Um
cara legal, entusiasmado”. As famílias associadas começaram a limpar o terreno para a entrada dos
tratores:
Todo sábado e domingo, ia lá seis mil famílias, seis mil moradores, com faca, facão,
machado pra poder abrir os caminhos desses tratores. Era uma farra. Chegava lá 40, 50
ônibus cheios de gente. Aquilo ali parecia um formigueiro. Se bem que nós tentamos
localizar, por etapa, e não fazer tudo de uma vez porque seis mil famílias de uma vez
seria impossível. Era uma etapa de umas 500... 400... 500 famílias, e tudo bem.
(BERNAREGGI, nov/2012, entrevista).
Nós entrávamos lá toda sexta, sábado e domingo; era aquela festa: entrava lá dentro,
desmatava, pra abrir o caminho para os topógrafos marcarem. O José Carlos Laender
fez pra nós um belíssimo projeto pra abrigar seis mil famílias. Começamos com três mil,
mas quem estava pagando eram os seis mil. E nós, com os topógrafos, marcando as
ruas, conforme o projeto, os lotes, direitinho e tal. (BERNAREGGI, mai/2013,
entrevista).
Mas, para a surpresa do padre, logo a Prefeitura de Betim encontrou uma justificativa “qualquer” para
coibir o processo “fez uma ação no crime ambientalista porque nós jogamos no chão um pé de
44
pequi, um pé de pequi!”. Apesar dos esforços para esclarecer o ocorrido com a prefeita Maria do
Carmo Lara, Pe. Piggi suspeita que ela mesma fosse responsável por essa situação:
A Maria do Carmo Lara mandou invadir a sua fazenda dos sem-casa pelos sem-terra.
Seis famílias armadas até os dentes botaram as suas barracas dentro da fazenda, e
mandaram o recado “Quem entra aqui nós vamos matar!” […] Uma turma, amiga da
Maria do Carmo Lara, que queria aquela terra pra fazer horta! Horta pra... como e stá lá?
Lá hoje nessa fazenda tem seis família, dois milhões e quatrocentos... e seiscentos mil
metros quadrados. E tem seis famílias colhendo vagem ou colhendo rabanete. Seis
famílias! Lá era pra ficar seis mil famílias! (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista).
O padre lembra que em uma segunda-feira recebeu um telefonema informando-o sobre a invasão da
terra e dando-lhe o prazo para que até sexta-feira tirasse seus associados de lá. Eis o impasse: “Se
nós não conseguíssemos até sexta-feira a devolução do dinheiro, na sexta, sábado, domingo, aquilo
ali ia ser um campo de batalha, de morte”. Diante disso, Pe. Piggi não viu outra saída a não ser
solicitar a devolução da quantia já paga ao CDI, que, prontamente, atendeu ao seu pedido:
[...] porque senão sábado e domingo enchia de gente com faca, facão, machado. Ia dar
morte, ia dar morte. Não sei como, Deus nos ajudou e na sexta-feira nós conseguimos o
dinheiro todo de volta. Nunca vi o Estado de Minas devolver dinheiro pra ninguém, se
não fosse que... a não ser judicialmente! Mas o presidente da CDI, quando viu a
situação, que ali ia dar morte mesmo, mais do que depressa, nós pegamos nosso
dinheiro. E eu fiquei um ano inteiro aqui na porta, na igreja, toda quinta-feira de manhã,
de madrugada até de noitão, devolvendo dinheiro pra essa gente toda e ouvindo... Só
Deus sabe o que é que eu ouvi, o que é que eu tive que acatar aqui, nessa porta dessa
igreja. Tivemos que chamar escolta policial na porta. Fazia fila pra receber de novo o
dinheiro que tinham investido lá. (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista).
Diante do fracasso, quem iria se arriscar a seguir as lutas com Pe. Piggi? Muitas famílias se
desligaram da CEMCASA depois desse episódio. Não que o movimento tenha acabado, mas o padre
percebeu que era necessário reformular suas estratégias de atuação e reconquistar a confiança do
povo. Uma das novas estratégias foi à união com a AMABEL e a FAVIFACO, da qual nasceu, logo
no ano seguinte, o empreendimento do Bairro Metropolitano, isto é, em 1996.
Era só a Central Metropolitana dos Sem-Casa [para ocupar a Fazenda Dom Orione]. Por
isso que o Bairro Metropolitano, antigamente, nós tivemos que entrar com três
entidades, porque o choque que deu aquilo lá foi tão grande na Central Metropolitana
dos Sem-Casa (CEMCASA), que quando surgiu essa fazenda aqui nós tivemos que
chamar outra entidade pra tentar um número, porque ninguém acreditava mais na
gente. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
Nessa época, durante a gestão do prefeito Patrus Ananias em Belo Horizonte, foi implementada uma
nova regulação do solo que restringia ainda mais atuações como as de Piggi – a Lei de Uso e
Ocupação do Solo de 1996. Esse instrumento impeliu os novos loteamentos da associação para
municípios vizinhos, onde as brechas legais eram maiores:
Nós tentamos, dentro de Belo Horizonte, mas na época, 1996, em Belo Horizonte,
estava em andamento o processo do Patrus, da lei do uso do solo. Ele nos deu a
advertência de não ousar comprar nada dentro de Belo Horizonte que seríamos
45
expulsos com ordem judicial. Então, diante disso, abandonamos a ideia de construir
dentro de Belo Horizonte, e fomos caçar aí afora. Teve alguém que ficou sabendo e nos
propôs esta fazenda em Ribeirão das Neves. [...] Mas, infelizmente, esse processo de
lei de uso do solo em Belo Horizonte repercutiu lá em Neves. Só que eles não tinham
estrutura para criar lei do uso do solo, mas polícia para te obrigar a embargar os pobres
lá eles tinham, naquela época.
(BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
A líder atual da AMABEL menciona pelo menos outros dez loteamentos associativos em Belo
Horizonte, além daqueles nove que tiveram a participação do Pe. Piggi. Ela também afirma que a
união entre associações foi uma estratégia para fortalecer o movimento, diante das oposições
crescentes do Poder Público.
A exemplo disso, Pe. Piggi fala um pouco sobre a composição das associações que fizeram o Bairro
Metropolitano. Afinal, de onde vinham esses futuros moradores? Ele explica que vinham de lugares
distantes e que muitas vezes desanimavam em continuar no processo, já que o deslocamento até o
local era muito difícil:
A AMABEL era uma estrutura com muitos grupos. A FAVIFACO era um grupos da
região sudeste. E a CEMCASA eram uns dois ou três grupos lá da Cidade Industrial que
vieram morar aqui. Pra isso é um deslocamento muito grande; tanto assim que por certo
tempo muito lote lá ficou abandonado no Bairro Metropolitano, por causa da distância.
Pra quem já tinha uma vida organizada lá no Barreiro vir morar aqui no Ribeirão das
Neves... Então, tiveram vários casos que abandonaram lá, e gente conhecida, os
amigos, invadiram naturalmente. E registraram no nome próprio. (BERNAREGGI,
nov/2012, entrevista).
Esse fato reforça pelo menos duas questões. A primeira, da atuação conjunta de associações como
estratégia de fortalecer o movimento. A segunda, a falta de iniciativa, cada vez mais evidente, do
Poder Público em assumir sua função de atender ao déficit habitacional.
Apesar da experiência bem sucedida, há controvérsias.
Hoje os adversários dessa, dessa ideia de criar grandes conjuntos populares de baixa
renda - dizem que nós criamos lá um grande favelão. Mas eu falo: Então vai lá.
Pergunta eles o quê que eles acham. Se tivesse tido mais ajuda do governo municipal,
do governo estadual. [...] Por exemplo, a água lá foi uma tragédia. A nossa sorte foi que
lá existia o Córrego do Tamboril, desaguava do Isidoro num manancial ali perto e o cara
buscava a água no córrego, no córrego. Claro. Muitos lugares externos e tal, depois que
a COPASA resolveu. Agora todo mundo tem a água. Asfaltar, por exemplo, calçar as
ruas e tal, meio fio, nós não tínhamos capacidade, nós mesmos, de fazer esse negócio
todo. Isso era coisa do Poder Público. A batalha dos moradores, anos e anos, agora as
ruas asfaltadas - tem lugar lá que não é asfaltado. Meio fio essas coisas, drenagem
pluvial, senão não podia fazer. Mas o governo estadual, porteira fechada lá, o Newton
Cardoso. De todo jeito, entre trancos e barrancos, está lá, nesses lugares todos, a
demonstração de que é possível criar conjuntos habitacionais grandes pra caber a luta
contra o déficit habitacional, porque tudo o que a prefeitura está tentando fazer há anos
e anos, mal, mal chega a reduzir, nem a expectativa, reduzir o aumento vegetativo dos
sem-casa. Ela não ataca o problema. Atacar o problema dos sem-casa significa grandes
conjuntos habitacionais, equipados como todas as estruturas necessárias. Hoje em dia ,
conta muito também com o problema ecológico, respeitar os córregos, as nascentes,
mata ciliar, córrego, como se chama?… Parque linear que se chama que é um sucesso.
46
O parque linear, diferente do parque dos Mangabeiras, uma vez por ano faz um
piquenique. Aqui no nosso parque ecológico do Primeiro de Maio, todo dia tem gen te lá
fazendo cooper, as mães passeando com as crianças nos carrinhos - o verde faz parte
da vida da população. E é uma batalha muito grande dos ecologistas, por quê? Pra
eles, verde tem que ser parques, grandes parques com o objetivo: primeiro de separar
os pobres dos ricos, igual o parque das Mangabeiras - separa a favela do governante. E
o segundo, reserva de terrenos para quando as imobiliárias quiserem pagar
R$50.000,00 para cada vereador, mudar a lei de Uso do Solo lá dentro, igual fizeram no
Isidoro e fazer toda a especulação imobiliária que bem entender. Esse é o falso
ecologista. Ecologista comandado pela especulação. Tem até aquele ecologista que
trabalha, organiza o planejamento do território e tudo para que se possa, na vida normal
do povo, ter os seus parques - que são parques lineares, porque seguem os córregos,
as nascentes e... mas é uma batalha grande até hoje. (BERNAREGGI, mai/2013,
entrevista).
Por fim, o Roma, o último dos nove loteamentos, foi um completo fracasso. Pode-se referir a ele
como o marco do declínio do movimento do CEMCASA. Depois de muitas tensões que Piggi passou
no Metropolitano (incluindo sérias questões de saúde), ele participou somente na fase inicial do
Roma, deixando a CEMCASA logo depois de captar a gleba. O fracasso do movimento ali pode ser
explicado não somente pela saída do padre, mas pela somatória de diversos fatores, como será visto
adiante.
Estratégias para fazer os loteamentos antigamente x hoje
Piggi relembra, ainda, que encontrava as terras para ocupação quando os fazendeiros anunciavam a
venda. No entanto, como já mencionado, essa prática não é mais comum depois da Lei de Uso e
Ocupação do Solo (LUOS) de 1996. Segundo ele, a LUOS impedia que alguns projetos fossem
financiados pelo governo federal, pois era contrária à utilização dos terrenos como loteamentos para
população de baixa renda:
Você não pode comprar terra de nenhum fazendeiro, porque você tem que ficar com a
terra sem poder usar. Tem que ter a Lei de Uso do Solo para comprar a terra, porque
senão você fica com esse terreno sem poder fazer nada [...]. Essa é a Lei de Uso do
Solo atualmente, né? [...] Então vale a pena fazer uma luta mais demorada, mais
comprida, mais sofrida, mas com uma solução legal, justa para o direito à cidade que
todo mundo tem, e que infelizmente não acontece. Mas hoje lá em Brasília existem
esses projetos, [...]. Só que, enquanto a Lei de Uso do Solo ainda for contrária, você
não pode nem receber verba de Brasília. A primeira coisa que eles veem lá é a
documentação da prefeitura […]. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
Por diversas vezes Pe. Piggi atribui a Lei de Uso e Ocupação do Solo de 1996 como um dos maiores
entraves para o seu movimento. É provável que essa tenha sido a divisora de águas desse
movimento. Se antes desenvolvia os loteamentos dentro de Belo Horizonte, depois precisou recorrer
às terras nos demais municípios da RMBH. Ele relata que, na LUOS de 1996, não existe terreno
destinado à habitação de baixa renda em Belo Horizonte, o que dificulta a implementação de
47
loteamentos. Se, por um lado, quando atuava pelo CEMCASA, recorria a terrenos afastados da
capital, por outro, é observado uma mudança de estratégia quando passa a atuar pela Pastoral
Metropolitana dos Sem-Casa: esforços são despendidos para buscar terras em Belo Horizonte e,
assim, começa a lutar pela mudança na LUOS:
Até então não existia isso. Então era mais fácil que a gente comprava o terreno, loteava
lá, né? Registrava os lotes de todo mundo no cartório e cada um ia lá e fazia sua
traçagem da propriedade, eram todos proprietários. Hoje não. Hoje, com a Lei de Uso
do Solo, não admite que faça habitação de baixa renda em lugar nenhum. [...] Qualquer
tentativa de registrar em cartório, qualquer loteamento de pobres se torna impossível,
porque não tem o aval da prefeitura. [...] A tragédia está durando ainda porque,
legalmente, em toda a área da Região Metropolitana de Belo Horizonte, não tem,
legalmente, nenhum centímetro quadrado de terra destinado à habitação de baixa
renda. Não existe. Então qualquer habitação de baixa renda que a gente faça em
qualquer lugar, ou o próprio fazendeiro, ou tem aqui uma fazenda para fazer é sujeito à
prisão preventiva, além do processo por violar a Lei do Uso e Ocupação do Solo. Então
qual é, hoje, a batalha nossa que os sem-casa, pelo menos a Arquidiocese de Belo
Horizonte? Trabalhar para mudança das leis de Uso e Ocupação do Solo em Belo
Horizonte, nas cidades da Região Metropolitana. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
Para que a mudança da lei aconteça, o padre começa a procurar meios de legitimar sua proposta e
optando,
primeiramente,
pelo
respaldo
técnico/acadêmico
do
Centro
de
Informações
Georeferenciadas, Pastorais e da Religião (CEGIPAR) da PUC Minas, como visto na fala do padre a
seguir:
Nós fizemos um estudo dos terrenos livres em Belo Horizonte, no município. A
prefeitura sempre diz que não tem terreno. Terrenos livres no município de Belo
Horizonte chegam a quase 40 mil hectares: são 400 milhões de metros quadrados. Em
cada um desses milhões de metros quadrados, segundo os nossos projetos, com
ecologia, com tudo, cabem dois [sic] mil famílias, 80 mil vagas que são ignoradas, a
prefeitura não quer falar. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
Pelo jeito de dizer do padre dá a entender que nessa ocasião consegue o mapeamento das áreas
não ocupadas de Belo Horizonte passíveis de implementação de moradia para população de baixa renda. Dá a entender que esse mapeamento foi feito cuidadosamente pelo técnico que lhe prestou o
serviço, numa tentativa, talvez, de legitimar sua causa. No entanto, numa conversa com uma
geógrafa desse centro, a Izabella Faria Carvalho, essa “legitimidade” não aconteceu de fato. Na
realidade, Izabella conta que o tal do mapeamento foi muito mais simples do que o padre diz. Ela f ez
o mapeamento há um ano, pegando visualmente no Google Maps as áreas não ocupadas de BH. A
geógrafa afirma que não fez um estudo aprofundado dessas áreas (como, cruzar as imagens com a
LUOS), foi um procedimento bem simples que qualquer pessoa poderia fazê-lo. Apesar da
simplicidade dos estudos feitos, o padre parece bem informado quanto a esse procedimento que
vem buscado (mudança da lei) esforços do padre. Ele já procurou saber das experiências que São
Paulo tem passado para aplicar essa ideia e está bem esperançoso de que também dê certo aqui em
Belo Horizonte:
48
Sendo em São Paulo já tem a lei municipal que abre a zona ZEPAM (Zona Especial de
Proteção Ambiental) para a habitação de baixa renda de 0 a 4 salários 16. A lei que nós
estamos querendo, está tramitando agora na câmara, e o nosso maior adversário é o
Lacerda, porque ele é assim (próximo) com todas as empreiteiras. Vamos ver o futuro,
né? (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
15F
Produção privada x produção autonomia
Outra crítica feita pelo padre é a forma de produção habitacional segundo padrões de interesse
privado, comumente feita com unidades multifamiliares verticalizadas, com apartamentos de área
mínima e de baixa qualidade, para extração de lucro. Ele ainda lamenta incoerência do governo
federal em resolver a questão:
Quer dizer, a mentalidade capitalista, da exploração imobiliária da habitação, deixa de
ser uma função social e se torna uma fonte de lucro para as empreiteiras, para o
construtor, e para o empresário do setor de habitação. É uma coisa impressionante . Lá
na Itália não tem isso não. O que eles fazem para o pobre lá é o [Programa] "Minha
Casa Minha Vida": prédios verticalizados, mínimos, com o mínimo possível de tamanho,
para dar o máximo possível de lucro para as empreiteiras. O que está acontecendo aq ui
agora é isso. Agora, lá em Brasília a mentalidade é diversa. Brasília destina todo ano
uma certa porcentagem do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) para habitação
de baixa renda de 0 a 3 salários. Mas quem diz que chega projeto lá? Não chega
projeto lá, nem das prefeituras, nem das empreiteiras, nem de ninguém. É assim, no fim
da gestão eles têm que retirar de novo a verba toda porque essa parte não foi usada.
Nós temos sorte que mora aqui o Aníbal Teixeira, que na época era o ministro do
planejamento do Sarney, que está por dentro de tudo, e que nos informa tudo. Só que
enquanto nós não mudarmos a lei de uso do solo não podemos nem tentar ir lá a
Brasília. A primeira coisa que eles pedem é: cadê a lei de uso do solo? É desse jeito.
(BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
O Pe Piggi dá continuidade ao que já vinha pensando desde o início de sua luta pela moradia para
população de baixa renda. Ele ainda acredita que o melhor jeito para prover a moradia para a
população de baixa renda é por meio da autogestão e autonomia:
Porque bom senso manda. Sem isso a baixa renda nunca vai ter casa própria. Antes da
bendita lei do uso do solo, em Belo Horizonte, eram poucas as pessoas que viviam de
aluguel. Ou gente completamente desvairada, ou gente que escolheu viver de aluguel
porque pra ele era mais interessante. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
Ao menos no desenvolvimento dos loteamentos estudos nesse trabalho, a autonomia é expressa
pela autoconstrução das moradias, por meio da qual os próprios moradores constroem suas casas.
É provável que Pe. Piggi esteja se referindo ao Decreto nº 44.667, de 26 de abril de 2004 “que dispõe sobre normas
específicas para produção de Empreendimento de Habitação de Interesse social – EHIS, Habitação de Interesse Social –
HIS e Habitação do Mercado Popular – HMP” (SÃO PAULO, Decreto 44.667/2004). Detalhes específicos sobre a liberação
de áreas inclusas nas Zonas Especiais de Preservação Ambientam (ZEPAM) para esse três tipos de produção habitacional
encontram-se nos artigos 28 e 92 (atualizados pelo Decreto nº 54.074, de 5 de julho de 2013).
16
49
Para MARICATO (1979) a autoconstrução refere-se “ao processo da construção da casa (própria ou
não) seja apenas por seus moradores, seja pelos moradores auxiliados por parentes, amigos e
vizinhos, seja ainda pelos moradores auxiliados por algum profissional (pedreiro, encanador,
eletricista) remunerado” . (MARICATO, 1979, p. 73-74) Essa prática como alternativa de acesso à
moradia, por meio de mutirão, já foi veemente criticada por alguns estudiosos, como Maricato (1979),
Singer (1978), Oliveira (2006), Ferro (2006).
Oliveira (2006), por exemplo, deixa claro a dialética da autoconstrução por meio de mutirão,
sobretudo quando legitimada pelo Poder Público. Por um lado a autoconstrução é uma virtude da
população operária e de baixa renda em suprir sua moradia; por outro, quando o Poder Público se
apoia nessa força de trabalho gratuita para a produção da moradia dessa população, torna essa
suposta virtude em vício.
Quanto à gestão, três foram os tipos identificados por ABIKO (ABIKO; COELHO, 2004 apud
CARDOSO; ABIKO, 1994):
- Gestão institucional ou administração direta: [...] o agente público (prefeitura ou
governo estadual, diretamente ou por intermédio de suas empresas paraestatais) gera o
empreendimento, isto é, elabora os projetos, fornece a equipe técnica que gerencia a
obra e administra todos os recursos financeiros e não financeiros aportados;
- Cogestão: [...] empreendimentos nos quais o Poder Público repassa recursos às
comunidades, representadas e organizadas em associações comunitárias, as quais
contratam escritórios técnicos autônomos para assessorá-las na administração desses
recursos. Tais escritórios, também conhecidos como Assessorias Técnicas, elaboram os
projetos e exercem a direção técnica das obras, responsabilizando-se tecnicamente por
sua execução;
- Autogestão: [...] a modalidade na qual a comunidade, por meio das associações de
moradores, é a responsável pela administração geral do empreendimento, bem como
pela gerência de todos os recursos. (ABIKO; COELHO, 2004, p.13-14).
O padre, assim como outros envolvidos no processo (Laender de Castro, por exemplo) anseiam pela
implementação da autogestão em seus empreendimentos, no entanto não é tão simples encaixar o
tipo de gestão que de fato empregaram, em apenas um desses três tipos de gestão. Na prática não
parece ter realizado no sentido completo da autogestão. No Felicidade, como será tratado adiante, a
associação parece ter administrado o empreendimento e gerenciado os recursos repassados pelo
Poder Público e outras instituições, no entanto, as demandas não partiram todas da associação. As
casas embrião padronizadas e comumente difundidas pelo poder municipal, parecem ter sido
impostas aos futuros moradores, ou seja, eles mesmos não puderam escolher como iniciar sua
própria moradia, o que levou alguns a desistirem de permanecer até o fim do processo. Em suma,
era uma autogestão somada a algum grau de intervenção institucional.
50
Outro ponto observado na experiência do Bairro Metropolitano foi o grau de representatividade que
os moradores (a comunidade) têm pelas lideranças da associação. Como será mostrado no estudo
de caso adiante, é dito que era comum às lideranças fazerem reuniões com os associados,
chegando a comparecer até quatro mil pessoas, para discutir algumas decisões a serem tomadas.
Enquanto as lideranças se mostram convictas de que houve participação no processo de decisão,
fica difícil de acreditar que algum morador se arriscaria a dizer alguma coisa em meio à multidão.
De todo modo, como será visto nos estudos de caso, ainda que não tenham chegado a
implementação de um processo estritamente autogestionário, é possível dizer que as iniciativas
(umas mais que as outras) tenderam a autogestão.
Regulação do Solo
Dos que se encontram em Belo Horizonte, em todos, exceto o Beija-Flor, os loteamentos são
classificados pela Lei 9.959 de 20 de Julho de 2010 como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS 3), conforme dispõe o Art.24 (ver Tabela 3):
Art. 12 - São ZEISs as regiões nas quais há interesse público em ordenar a ocupação,
por meio de urbanização e regularização fundiária, ou em implantar ou complementar
programas habitacionais de interesse social, e que se sujeitam a critérios especiais de
parcelamento, ocupação e uso do solo, subdividindo-se nas seguintes categorias:
I - ZEISs-1, regiões ocupadas desordenadamente por população de baixa renda, nas
quais existe interesse público em promover programas habitacionais de urbanização e
regularização fundiária, urbanística e jurídica, visando à promoção da melhoria da
qualidade de vida de seus habitantes e a sua integração à malha urbana;
II - ZEISs-2, regiões não edificadas, subutilizadas ou não utilizadas, nas quais há
interesse público em promover programas habitacionais de produção de moradias, ou
terrenos urbanizados de interesse social;
III - ZEISs-3, regiões edificadas em que o Executivo tenha implantado conjuntos
habitacionais de interesse social.
Parágrafo único - As ZEISs ficam sujeitas a critérios especiais de parcelamento,
ocupação e uso do solo, visando à promoção da melhoria da qualidade de vida de seus
habitantes e à sua integração à malha urbana. (NR) (grifo nosso).
Conforme a citação acima, esses loteamentos são tidos como conjuntos habitacionais de interesse
social. E mais ainda, toda a atribuição do feito é dada ao Executivo, omitindo o empenho das
associações dos sem-casa, por exemplo. Foram, pelo menos, duas as leis que confirmaram a
disposição do Executivo a doar lotes. O primeiro bairro a ser beneficiado foi o Felicidade com a
promulgação da Lei Nº 6846 de 13 de março de 1995 17. Esse benefício foi estendido para outros
A Lei Nº 6846, de 13 de março de 1995 “AUTORIZA O EXECUTIVO A DOAR LOTES DO BAIRRO FELICIDADE” A
SABER:
17
51
bairros, inclusive para alguns dos loteamentos do Pe. Piggi, como o Capitão Eduardo, Paulo VI e
Filadélfia, com a Lei Nº 7611 de 14 de Novembro de 1998 que veio em seguida18.
Já a legislação que vigora em Ribeirão das Neves não é tão “avançada” quanto à de Belo Horizonte,
sobretudo em se tratando de assentamentos informais. Sua lógica de zoneamento remete àquela
emprega pela Lei de Uso e Ocupação do Solo de Belo Horizonte de 1985, tendo como parâmetro os
usos. Assim, o Bairro Metropolitano, por exemplo, é constituído por três zonas: Zona de Uso
Preferencial Residencial (ZUR 2) 19, Zona Urbana de Preservação Permanente (ZPP) 20 e Zona de
Uso Misto (ZUM)21. Segundo o plano aprovado na prefeitura seus lotes seriam de 400 m², mas, na
“ART.1º- Fica o Executivo autorizado a doar lotes no local denominado Bairro Felicidade, jurisdição da Administraçã o
Regional Norte, de propriedade do Município, para regularização de Programa de Habitação Popular.
ART.2º- Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando as disposições em contrário.” (Belo Horizonte, Lei
6846/1995, art. 1º e 2º).
Lei Nº 6846 de 13 de março de 1995: AUTORIZA O EXECUTIVO A DOAR LOTES DO BAIRRO FELICIDADE, a saber:
- ART.1º- Ficam estendidos os benefícios da Lei Nº6846, de 13 de marco de 1995, aos conjuntos Capitão Eduardo,
Paulo VI, Filadélfia, Jatobá I e II, Santa Rita, Castanheira I e II, Bonsucesso, Taquaril e à Vila Pinho.
18
- ART.2º- Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando as disposições em contrário.”(Belo Horizonte,
Lei 7611/1998, art. 1º e 2º).
"II- Zona de Uso Preferencialmente Residencial 2 – ZUR 2: Áreas com predominância de lotes de 360 m2,
característica da maior parte dos parcelamentos da malha urbana de Ribeirão das Neves, a serem ocupadas com baixa
e média densidade. Na ZUR 2, serão permitidas edificações para o uso residencial unifamiliar e multifamiliar, em lotes ≥
a 360 m2 e ≤ 1000 m2, bem como uso misto residencial, o uso comercial e de prestação de serviços de pequeno porte, o
uso institucional relacionado à saúde, educação, recreação e lazer, atividades religiosas, associativas e comu nitárias.”
(Ribeirão das Neves, Lei 037/2006, Art.7 o)
19
“A Zona Urbana de Preservação Permanente – ZUPP compreende áreas não parceladas e/ou não ocupadas dentro do
Perímetro Urbano, consideradas de preservação permanente pelo Código Florestal – Lei Federal 4771 de 15/09/65,
alterações e regulamento, pela Lei Florestal de Minas Gerais – Lei 14.309 de 19/06/2002 e regulamento, e demais leis
ambientais em vigor, as áreas reservadas para a implantação de praças e parques urbanos públicos, bem como as
praças e os parques urbanos públicos já implantados, áreas que pelas condições geológicas do solo, recursos hídricos e
paisagísticos não poderão ser parceladas, as faixas de servidão das linhas de transmissão de energia elétrica (LT) que
atravessam a área urbana, de acordo com as normas da CEMIG, as faixas de servidão das adutoras de abastecimento
de água, de acordo com as normas da COPASA, as áreas com declividade acima de 30% e as faixas de domínio de
rodovias e ferrovias.” (Ribeirão das Neves, Lei 037/2006, Art.14)
20
“ART. 9º - A Zona de Uso Misto – ZUM compreende áreas destinadas à média densidade de ocupação,
correspondendo aos principais corredores viários da cidade, existentes e previstos, constituídos pelas vias coletoras,
vias arteriais e vias de ligação regional, com exceção da BR 040 e do futuro anel rodoviário metropolitano, conforme
mapa de classificação viária integrante desta Lei. A ZUM é destinada preferencialmente a atividades comerciais e de
serviços com raio de abrangência de atendimento para o bairro e conjunto de bairros, nas vias coletoras, e com raio de
abrangência de atendimento para a cidade como um todo e cidades vizinhas, nas vias arteriais e vias de ligação
regional. Na ZUM serão permitidos o uso residencial multifamiliar com no máximo 3 (três) pavimentos, o uso institucional
em geral, serviços públicos, e incentivados o uso misto residencial e uso misto comercial e de serviços em edificações
com, no máximo, 4 (quatro) pavimentos em lotes ≥ 600 m 2 e no máximo 2 (dois) pavimentos em lotes ≥ 300 m 2 e 600
m2.” (Ribeirão das Neves, Lei 037/2006, Art.9)
21
52
realidade, são de 200 m². O processo de regularização, que foi retomado neste ano de 2013, será
feito por uma empresa contratada pela prefeitura municipal com recursos do Fundo Nacional de
Habitação de Interesse Social (FNHIS), como será visto adiante. Já a situação de ilegalidade do
Roma fica evidente quando se considera que pertence à Zona de Expansão Urbana 6 (ZEU 6) 22, cujo
lote mínimo é de 5.000 m².
Os nove loteamentos em que Pe. Piggi teve participação totalizam, pelas informações que foi
possível obter até agora, aproximadamente, 12 mil lotes, no entanto, nem todos estão regularizados.
“Zona de Expansão Urbana 6 – ZEU 6: área destinada exclusivamente a atividades econômicas de grande porte para
indústrias, depósitos, comércio atacadista, serviços como oficinas, transportadoras e similares, cujo parcelamento
deverá permitir módulos com, no mínimo, 5.000 m2, sendo proibido o desmembramento dos lotes localizados nesta
zona.” (Ribeirão das Neves, Lei 037/2006, Art.17)
22
53
Tabela 4 ─ Dados gerais dos loteamentos.
Zoneamento
Total de
lotes
Novo Aarão Reis
ZEIS-3
Sem
informação
-
Jardim Felicidade
ZEIS-3
3043
Castanheiras-III
ZEIS-3 e tem uma
parte com AEIS-1
(edificações na via
Chico Mendes)
Jardim Filadélfia
Paulo VI
Capitão Eduardo
Beija-Flor
Regularização
Obras em andamento
Responsável pela
regularização
Não
Não. Tem previsão de AEIS.
Provável aprovação por meio
da PGE e programas de
urbanização.
4 (Orçamento Participativo): escola
estadual, tratamento vale, urbanização de
vias.
Particular (talvez seja
URBEL)
3023
Sim
Parcial
10 (Vila Viva e Orçamento Participativo OP)
Particular (URBEL)
956
956
Não
Total
3 (OP): urbanização e escola
PBH por meio do programa
Cidade Legal
ZEIS-3
563
561
Não
Parcial
OP: escola, academia, drenagem, centro
de saúde, drenagem.
Talvez tenha sido pela PBH
por meio do BH Legal
ZEIS-3 e também
tem AEIS 2 (Conj.
Habitacional)
1220
-
Não
Não
Obras de projetos viários
Metade pela PBH por meio
do BH Legal
ZEIS-3
1920
300
Não
Parcial
3 UMEI: duas a licitar e uma em
andamento.
PBH por meio do BH Legal
Sem informação
805
-
Não
Não – em andamento
4 OP: urbanização, regularização viária,
galeria, passagem pedestre, contenção.
Sem informação.
3580
-
Sim
Não. Iniciará em outubro de
2013.
Serão utilizados recursos do PAC
direcionados para o FNHIS.
PRN por meio de empresa
terceirizada – a NMC com
recursos do FNHIS.
295
-
Sim
Não. Sem previsão de
aprovação.
Metropolitano ZUPP, ZUR 2, ZUM
Roma
Lotes
Registro
aprovados
ZEU 6
SUBTOTAL DE
LOTES FEITOS
PGE: Plano Global Específico
Fonte: PBH, 2013. Elaboração própria
12.378 (Não contempla Bairro Novo Aarão Reis)
–
–
54
3 JARDIM FELICIDADE
55
Figura 4 ─ Localização do Bairro (Conjunto) Jardim Felicidade
Fonte: IBGE, 2007; PRODABEL, 2008; SMAPL, 2011, com modificações próprias, 2013
56
Figura 5 ─ Demarcação aproximada das seções do Bairro Felicidade
Informações de limites fornecidas pelo morador Antônio Soares Ruas.
Fonte: Google Maps (modificado), 2013
57
Figura 6 ─ Evolução da ocupação do Jardim Felicidade
Desde 2003, o bairro já estava consolidado.
Fonte: Google Earth, 2003 a 2013
58
Figura 7 ─ Simulação esquemática do caminho das águas (Jardim Felicidade)
Fonte: Google Earth, 2013, alterações próprias, em 2013
59
Figura 8 ─ Ocupação às margens do córrego em destaque
Fonte: Pesquisadora, 2013
60
Figura 9 ─ Fotos do início da ocupação do Felicidade
Fonte: AVSI, s/d
61
Figura 10 ─ Situação atual do Bairro Jardim Felicidade ─ Expansão vertical e horizontal
Fonte: Autora, 2013
62
“Nós criamos, dentro do panorama de Belo Horizonte, a primeira experiência de autoconstrução,
conjunto grande, e foi feito no Bairro Felicidade”. (BERNAREGGI, maio/2013, entrevista). É assim
que o Pe. Piggi se refere ao pioneiro dos loteamentos que fez: o Bairro (ou Conjunto) Jardim
Felicidade, datado de 1986, quando lideranças de associações dos sem-casa pressionaram a PBH a
lhes conceder um local para as famílias obterem a casa própria. O bairro está localizado na Regional
Norte de Belo Horizonte, próximo à Área de Diretrizes Especiais (ADE) Isidoro e é cortado pelo
Córrego Fazenda Velha (popularmente conhecido como Tamboril), afluente do Ribeirão do Isidoro
que, por sua vez, deságua no Ribeirão do Onça. (Figura 4).
O Felicidade surgiu na gestão do prefeito Sérgio Ferrara (1986-1989) que, no âmbito do programa de
doação de terras que havia implantado – Programa Nacional de Mutirões Habitacionais da Secretaria
Especial de Ação Comunitária (SEAC) –, autorizou a desapropriação de parte da Fazenda Tamboril
em 1986. Em seguida, a Secretaria Municipal de Ação Comunitária (SMAC) encarregou a AMABEL,
então liderada pelo Pe. Piggi, de organizar a ocupação.
Os recursos financeiros vieram do governo federal – o ministro do planejamento, Aníbal Teixeira,
direcionou parte dos recursos da SEAC para a PBH –, do governo municipal e da ONG italiana
AVSI23. Tais recursos foram usados para a compra do terreno e dos materiais para os moradores
autoconstruírem uma casa embrião de dois cômodos, que depois deveriam expandir com seus
próprios recursos.
Processo de aquisição da gleba
Diferentemente dos outros loteamentos feitos com a participação do Pe. Piggi, o Jardim Felicidade
teve um importante apoio do Poder Público, tanto municipal quanto federal, como já dito. A Fazenda
Tamboril pertencia aos doze herdeiros da família Clemente e, assim, havia sido dividida em doze
glebas de 300 mil metros quadrados cada. A PBH comprou três dessas glebas, totalizando 900 mil
metros quadrados, para implantar o Jardim Felicidade: “[de] dois herdeiros nós compramos, na
negociação assim tranquila. O outro entrou na justiça e está brigando até hoje pra receber o que ele
queria. Mas [o preço] era um real o metro quadrado”. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
23 Na conversa com Laender de Castro em 04 de maio de 2013, o arquiteto menciona que os recursos da AVSI vinha de
0,6% do orçamento italiano – destinado para ajudar os países emergentes.
63
O processo de aquisição das glebas iniciou-se em 1986. Pe. Piggi usa o termo “nós” para se referir a
esse processo, mas não deixa claro se o pronome “nós” refere-se à equipe da AMABEL ou à união
de AMABEL e PBH. Fato é que, em todos os depoimentos (de Pe. Piggi, de Gladis F. Oliveira e do
morador Antônio Soares Ruas), transparece a proximidade entre o Poder Público e aquela
associação, e, em particular, a atuação do prefeito Sérgio Ferrara, lembrada positivamente. A
prefeitura encarregou-se do processo de negociação e de desapropriação das três glebas, enquanto
que a AMABEL direcionava suas ações para a ocupação propriamente dita:
Então nós compramos a primeira gleba, pagamos, e entramos com as máquinas.
Enquanto isso, já a prefeitura estava em negociação com a segunda gleba, porque tinha
o Ferrara lá, o prefeito, amigo da gente. Terminando a autoconstrução – que os cara
[sic] entrava lá dentro e já tava começando, no dia seguinte – já entravam os caminhões
na segunda área pra passar os caminhões e os tratores e tal e tal... E, imediatamente,
os caminhões começaram a levar os materiais, sábado e domingo construía, e era mais
350. E a última, 350. Quer dizer, nós fazíamos a..., praticamente, o Bairro Felicidade se
criou em menos de dois anos, encheu de gente. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
Piggi refere-se à doação de terra para o Jardim Felicidade como a primeira feita por Sérgio Ferrara.
Pelo sucesso que obteve com a ação, é possível que o prefeito tenha passado a ver com bons olhos
a colaboração com a associação de sem-casa, como indica o relato do padre:
Depois com a ajuda da prefeitura da época que era o Ferrara, nós conseguimos que
multiplicasse essas experiências [do Bairro Felicidade] em vários campos da cidade. De
modo que, dentro de três anos, foram construídas 20 mil moradias. O Bairro Felicidade,
o Bairro Capitão Eduardo, o Bairro Beija-Flor, o Bairro Novo Aarão Reis. Depois lá no
Bairro Jatobá [Castanheira-3]. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
Sobre a captação dos recursos federais, Pe. Piggi explica:
A verba vinha de Brasília da [Secretaria de] Ação Comunitária, de Brasília, que , na
época, o secretário era Aníbal Teixeira. Depois se tornou ministro de planejamento de
Sarney. Na época do governo Sarney. Então, vinha o cheque para nós que vinha buscar
aqui da Secretaria do Governo Federal, no edifício Acaiaca aí, então tinha um escritório
montado só para receber os comprovantes das despesas feitas. Recebíamos os
cheques feitos para os próximos 60 dias. Em 160 [dias], recebíamos todas as despesas
e recebíamos as verbas para as próximas 300 casas. Então em 45 dias nós fazemos
300 casas. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
O padre ainda menciona que os recursos empregados pela prefeitura deveriam ser devolvidos a ela,
mas não sabe explicar, precisamente, como seria. Ele menciona, em um das entrevistas, que seria
por meio da cobrança do Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) que veio a acontecer um tempo
depois da formação do bairro como visto em sua fala a seguir:
A prefeitura ficou de cobrar o que ela gastou com o imposto do IPTU. Acho que o Bairro
Felicidade acabou de pagar o deles não tem muito tempo, não. [...] Ela ficou no
prejuízo. Ela investiu só aquela grana para comprar a Fazenda, porque a prefeitura tem
a grande vantagem que ela pode entrar na justiça, o juiz determina o quanto que é,
coloca no banco 80% do valor estipulado. Se o cara achar ruim, entra na justiça contra
a prefeitura. Mas enquanto isso o juiz dá a emissão de posse, você pode começar a
trabalhar por dia. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
64
De todo modo, a cobrança nunca existiu: “a meta de que cada qual pagasse pelo lote recebido nunca
se concretizou.” (AVSI, 2007, p.14) O morador entrevistado sequer menciona essa possibilidade,
dando a entender que essa cobrança futura, que seria feita aos moradores, não aconteceu. (RUAS,
jun/2013, entrevista).
Definição dos papéis
A AMABEL faria a mediação entre moradores e agentes externos (Poder Público, organizações não
governamentais, etc.), indicaria a gleba escolhida à prefeitura e organizaria todo o processo de
ocupação do loteamento. Na cartilha organizada pela AVSI (AVSI, 2007) sobre a história do bairro,
constam os diversos papeis propostos para os agentes ligados ao Poder Público:
A proposta inicial era a de que o governo federal repassasse a verba para a compra de
materiais de construção; o governo estadual fornecesse a infraestrutura básica (água,
luz, esgoto, calçamento, educação, saúde, etc.); e o governo municipal realizasse e
aprovasse os projetos urbanísticos, além de desapropriar o terreno que seria pago
posteriormente pelos próprios moradores em prestações que corresponderiam a 10% do
salário mínimo. (AVSI, 2007, p.11).
Aos moradores, coube a execução das casas com os materiais doados no regime de
autoconstrução. Eles deveriam seguir as normas estipuladas pelas lideranças quanto aos prazos de
construção. Ao final da gestão da AMABEL, ficaria a cargo das associações de moradores a
administração dos recursos, a fiscalização das áreas verdes e a regularização dos lotes e das casas.
As várias instâncias do Poder Público não cumpriram, completamente, com suas propostas iniciais,
como exemplo, a demora em preparar projetos urbanísticos foi tamanha que a própria AMABEL teve
de assumir a contratação de técnicos ligados à AVSI para realizarem o levantamento topográfico e
as intervenções. Por parte dos moradores também houve falha: até 2007, ou seja, quase 20 anos
depois de feito o bairro, muitos ainda não havia pago pelo lote, tampouco recebido a titulação da
casa.
O governo estadual demorou na instalação das redes de água e esgoto, para realizar o
calçamento das ruas e investir na construção de escolas e postos de saúde. O governo
federal, por outro lado, forneceu a verba para a compra dos materiais, embora parte das
casas tenha sido construída com recursos dos próprios moradores, já que algun s
possuíam condições para tanto (AVSI, 2007, p.14).
65
Ocupação
Depois de adquirido o terreno, coube à AMABEL selecionar os sem-casa que seriam beneficiados.
“Os critérios adotados na seleção foram: ter renda até três salários mínimos; possuir maior número
de filhos; residir em moradia com menor quantidade de cômodos; morar de aluguel e participar, com
assiduidade, das reuniões dos núcleos.” (URBEL, 2001). Em três anos, quase três mil famílias
ocuparam a gleba. O processo foi dividido em quatro etapas sucessivas, cuja ocupação corresponde,
cronologicamente, às seções I a IV. (Figura 5). (RUAS, maio/2013, entrevista).
Essa estratégia está relacionada à desapropriação paulatina do terreno: as glebas eram liberadas
para a ocupação na medida em que era feito o pagamento aos proprietários (à família Clemente). A
cada etapa, eram sorteadas, aproximadamente, 300 famílias. Pe. Piggi, por meio da AMABEL,
liderou a ocupação das seções I e II e participou, em 1989, do início da ocupação da seção III.
A gestão do Pe. Piggi no Jardim Felicidade (1986-1989) coincide com a gestão do ministro Aníbal
Teixeira no governo do presidente Sarney (1985-1990). Aníbal Teixeira foi responsável pela
transferência de recursos do governo federal para a AMABEL. O apoio da AVSI consistiu na doação
de recursos à AMABEL para que contratasse serviços topográficos. A PBH emprestava o maquinário
para terraplenagem e a demarcação dos lotes e, por fim, fornecia, de segunda a sexta-feira, os
materiais para a construção das casas, que eram distribuídos aos moradores pela AMABEL. A
AMABEL, nessa época, era composta por uma diretoria de 12 líderes de núcleos de sem-casa,
provenientes de várias comunidades 24. Esses 12 diretores deveriam cooperar para manter a
organização do processo, mas, com o passar do tempo, alguns foram se desvirtuando, em busca de
benefício próprio, da missão inicial.
Pe. Piggi e a AMABEL, antes de saírem do bairro, incentivaram a formação das associações
comunitárias locais de cada uma das três seções, chamadas de Conselho da Terra. Nessa época, a
seção III estava em andamento e a seção IV ainda não havia sido iniciada. Ficou a cargo de essa
associação dar andamento ao desenvolvimento do bairro, dessa vez com recursos do programa Pró Habitação (criado na década de 1980), que acabaram sendo direcionados para o término da
construção das casas da seção III. No entanto, essa gestão foi marcada pela fragilização de controle
Disponível em:
<http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&app=urbel&tax=
8173&lang=pt_BR&pg=5580&taxp=0&idConteudo=39183&chPlc=39183# >. Acesso em: 09 de junho de 2013.
24
66
tanto de material e de recursos, quanto da ocupação de áreas de preservação e institucional. Mais
detalhe sobre o processo pode ser visto no trecho do Plano Global Específico (PGE) do Felicidade
(URBEL, 2001):
Oito meses depois, foi fundada a Sociedade Comunitária dos Moradores do Jardim
Felicidade (Scomfe), para representar as 210 famílias existentes e lutar pela melhoria
da infraestrutura da comunidade. No início de 1988, com mais recursos liberados pela
SEAC, foram concluídas as casas da segunda gleba, ao mesmo tempo em que a
AMABEL encerrou suas atividades no Conjunto Jardim Felicidade. Nesta época, o
Padre Piggi criou os Conselhos da Terra na 1ª, 2ª e 3ª gleba, para que estes
administrassem os recursos da SEAC, regularizassem a área em seu nome e pudessem
cobrar a taxa de 10% do salário mínimo de cada família durante cinco anos. Após este
prazo, as escrituras seriam repassadas aos moradores quites. Entretanto, a terra não foi
transferida aos Conselhos nem a comunidade pagou a taxa. Em agosto de 1989, foi
obtida verba do programa Pró-Habitação para término da construção das casas da
terceira gleba. No entanto, o controle do material pela Associação Comunitária nã o foi
tão rígido como antes. Os Conselhos da Terra não conseguiram evitar invasões em
áreas verdes e institucionais e houve até episódio do presidente de um dos Conselhos
que vendeu lotes em áreas verdes e de risco geológico e, por isto, foi obrigado a fug ir
do conjunto. Neste mesmo ano, Padre Piggi se ausentou, ficando o movimento acéfalo
e as lideranças divididas. (URBEL, 2001).
Quanto às associações formadas, Antônio Ruas relata que havia disputas entre as associações de
cada seção para serem beneficiadas pelas obras da PBH e, com o tempo, os moradores perceberam
que não havia mais necessidade de ter vários conselhos e, hoje, no bairro, o Conselho dos Direitos
Humanos é o que o representa, como visto a seguir:
Nós tivemos muitos problemas com as associações. Até que a gente conseguiu acabar
com esse numero de associação. A gente fez vários encontros e falamos assim, Oh!
Não justifica a gente ter várias associações brigando pela mesma coisa. Porque quando
eu encontro com um pedido na PBH para um beneficiar no bairro, e a outra associação
entra também, aí entra um interesse político. Eles vão atender quem? Então para não
magoar, ficar mau um com o outro, então não atendia ninguém. Então a gente
conseguiu fazer esse raciocínio e fazer o pessoal entender isso, e acabar com esses
números de associação que era para divisão de terreno. Como não tinha mais terreno,
então não justificaria essas outras associações. Foi muito difícil. Aí a gente conseguiu.
Aí ficou hoje é o conselho de direitos humanos que é um conselho, não é associação,
mas faz papel de associação […] para todas as seções. Para todas as seções. E pra a
ABAFE que é a associação do bairro, que deveria ser a associação do bairro ela não
faz papel de associação. Faz o papel de uma ONG, entendeu? Então inverteu os
papeis. O Conselho que era um conselho, exatamente, o Conselho de Direitos Humanos
que era para fazer mediação de conflito aqui dentro, né? Ela acabou virando uma
associação. Então, hoje, ele está com autonomia como associação do bairro. (RUAS,
jun/2013, entrevista).
Por outro lado, o morador Antônio Ruas, ao fazer a ponderação do processo, posiciona-se mais
criticamente. A seu ver, o movimento tem sido “ótimo” por ter trazido as pessoas para o bairro, mas
pecou por não os ter agraciado com um local preparado para recebê-los, isto é, com infraestrutura,
equipamentos coletivos e serviços urbanos. "A primeira coisa que eles [AMABEL] pensaram foi [sic] a
moradia. Só isso.” (RUAS, jun/2013, entrevista). É como se os moradores tivessem sido pegos de
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surpresa. São a essas condições que as numerosas futuras famílias são submetidas, culminando em
problemas sociais. (Figura 9).
O movimento foi ótimo? Foi. Mas ele desapropriou essa fazenda e trouxe essas
pessoas para cá. Dessa forma que eu te falei. Era quem ganhava casa era quem tinha
mais filho, né? Então você imagina que, 3600 moradores, né? 3600 e alguma coisa. […]
Para cada família dessa que tivesse – vamos reduzir para quem tivesse, três, quatro…
quatro filhos. Como cresceu essa população aqui, porque há 25 anos, 26, 28 anos,
quem tinha filho, dois anos, hoje está com 30. E aqueles que tinham filho com oito anos,
dez anos esses, assim, a família cresceu muito rápido, entendeu? E aí veio sem
nenhuma infraestrutura: não tinha luz, não tinha água, não tinha rede de esgoto, não
tinha escola, não tinha centro de saúde e essa população foi crescendo, inchando, e foi
pra onde? E aí foi entrando no mundo das drogas, aquela coisa toda e foi inchando, foi
inchando. Outro dia a gente estava até fazendo avaliação por causa de um processo
aqui e lembrando, assim, das pessoas que morreram aqui, né? Aí estava um grupo de
cinco pessoas aqui, aí um cara contando, contando, e de repente ele chegou num
número de 260 pessoas que já tinha morrido assassinado, entendeu? Aí o outro falou
assim: mas não teve nenhum pai de família nessa história, entendeu? Foi só jovem, só
filho de pessoas conhecidas, entendeu? Exatamente, por causa disso. A minha bronca
com o Pe. Piggi foi exatamente esta. De trazer um enxame de abelhas e colocar, e ela
produzir aqui dentro, foi inchando, inchando, sem apoio, sem nada. (RUAS, jun/2013,
entrevista).
Construção das casas
Cada família recebeu um lote de 180m², um pouco maior que os 125m² estipulados pela Lei Federal
6.766/7925. De 1987 a 1989, a produção das casas se deu, predominantemente, por autoconstrução.
Quando impossibilitados, os futuros moradores poderiam terceirizar a construção de suas casas: “No
caso das famílias com dificuldades de construírem por si mesmas, cerca de 70, geralmente,
constituídas por mulheres sozinhas ou pessoas doentes, foi contratada uma empreiteira pela SEAC
para edificar as casas.” (URBEL, 2001).
De todo modo, as casas foram feitas segundo um projeto padrão de 20m² (casa embrião), que havia
sido elaborado por uma empresa de arquitetura contratada pela PBH. Foram raros os casos de
construções fora desse padrão. Assim, o processo aconteceu em uma "velocidade incrível”: Com o
trabalho de seis fins de semana, os moradores concluíam suas casas (Figura 9).
A primeira etapa: cavava os alicerces; segunda etapa: preenchia os alicerces; terceira
etapa: levantava as paredes até a metade; a quarta etapa: esquadriar [instalação das
Informação obtida na planta de parcelamento do solo do Bairro Felicidade, aprovada segundo o Cadastro de Plantas
(CP). (Disponível em: < http://portal5.pbh.gov.br/plantacp/inicio.do>. Acesso em: 16 de maio 2013.)
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esquadrias]; a quinta etapa: o telhado; a sexta etapa, é claro: entrar dentro de casa, com o
chão puro e as paredes sem nada. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
Esse ritmo permitiu produzir cerca de 300 casas a cada ciclo de 45 dias. As famílias eram obrigadas
a acompanhar o processo, se quisessem permanecer no loteamento.
Quem não fizesse a tarefa daquele dia, era substituído, imediatamente, pela família que
estava esperando. E ele só entrava na próxima remessa das próximas 300 casas. Nós
tivemos casos de gente que foi trocada quando era para por telhado. Não apareceram
no dia do telhado, saíram fora, entrou a pessoa da casa. Era só pôr o telhado. [...]
Quem não desse conta da tarefa daquele sábado e domingo, tinha que sair fora .
(BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
Pode parecer uma medida um tanto quanto rígida, mas como fazer para manter a ordem de um
processo que envolvia 300 famílias (quase 1.500 pessoas)? Para garantir seu “bom” andamento, os
20 grupos que já se reuniam nos encontros dos sem-casa foram escolhidos pela AMABEL para
fiscalizarem o desenvolvimento das obras. Cada grupo ficava responsável por certa quantidade de
ruas e cada rua era fiscalizada por uma dupla:
Cada rua tinha dois fiscais. […] E dessa forma nós demos aquele show, aquele exemplo
para depois se repetir nesses bairros todos. Quer dizer, sem empreiteira, sem
financeira, sem as despesas de chamada, assim, de gestão. Que já é 40%, né? A
gestão pública era, exclusivamente, com esses materiais. [...] Os fiscais eram eleitos
pelos colegas. Nós tínhamos uns 20 grupos, naquela época, espalhados nessa região
toda aqui. E cada grupo era dono de cada uma, duas, três ruas [...] e dentro dos grupos ,
todos já se conheciam há bastante tempo, porque nós reuníamos toda semana no grupo
dos sem-casa. A motivação era grande porque o terreno apareceu, então foram vários
que ditaram o terreno, o terreno, uma maravilha, quer dizer, as pessoas se sentiram
muito motivadas. Naquela época, não tinha toda essa burocracia. (BERNAREGGI,
mai/2013, entrevista).
Nessa etapa, todo o material necessário foi doado para os moradores. A associação pleiteou
recursos públicos para adquiri-lo, comprava os materiais e os repassava:
O dinheiro do material vinha de Brasília. De segunda a sexta enchia de material nas
ruas, os caminhões. Trabalhava só sábado e domingo, no regime de autoconstrução,
cada um construindo a sua própria casa com seus amigos, parentes, conhecidos. Em
dois dias sumia o material todo, você não via mais nenhuma pedrinha no chão.
Rendimento cem por cento. Coisa que construtora nenhuma nunca fez.
(BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
Os materiais “mais valiosos” – como cimento, louça sanitária e esquadrias – eram armazenados nos
chamados “galpões azuis”, cada qual nas três primeiras seções. A associação comprava os
materiais sempre à vista:
Então nós planejamos mais ou menos na "valentona" as compras dessas coisas todas e
pagávamos antecipado. Nós não vamos pagar a prestação, nós não vamos, à entrega.
Nós pagamos antecipado. Conclusão: a velocidade de entrega era impressionante! [.. .]
de segunda a sexta os caminhões colocavam os materiais todos e quando tinha
materiais mais caros como essas janelas e tal colocava no galpão aonde [sic] esses
caras iam lá buscar. Quando era material grosso: areia, cimento - cimento era no
galpão, pedras, os tijolos. [...] Era tudo planejado de tantos a tantos metros lá, o
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negócio, os caras buscavam o número de tijolos necessários para construir a casa deles
e não desperdiçava um tijolo. Para vocês terem ideia, a média da construção civil ainda
hoje é assim: 30% de desperdício. Lá era 0,00% de desperdício. Quando chegava
domingo à tarde, lá à noitinha, aquilo estava limpinho, não tinha material nenhum,
porque em dois dias eles faziam a tarefa. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
Apesar da aparente organização do processo, não foi possível evitar alguns deslizes. Antônio Soares
Ruas, antigo morador do bairro, menciona as falcatruas que ocorriam nesse processo: grande parte
dos materiais foi desviada, inclusive por coordenadores da AMABEL (RUAS, 2013, entrevista). Ele
lembra uma situação marcante: no momento quando os moradores foram pegar as tampas das
caixas d'água no galpão, já não restava mais nenhuma “para contar a história”.
Concluída a casa embrião, partia-se para a segunda etapa da construção: a expansão das casas.
Como as famílias eram numerosas, expandir a casa, certamente, seria o próximo passo. Espaço
havia de sobra – recebiam lotes de 180m² para fazer o que bem entendessem. Vale aqui fazer uma
ressalva: como as famílias mais numerosas tinham prioridade na seleção dos beneficiados, pode-se
imaginar que esperassem ser contemplados com a construção de uma casa que fizesse jus à
situação deles. Em suma, devem ter pensado que receberiam o material suficiente para uma casa
que acomodasse a todos. Permanece, então, a dúvida de como a estratégia idealizada pela
associação – com sua casa embrião de apenas 20m² – foi comunicada aos moradores e se eles
estavam cientes do tamanho da casa que receberiam antes de se desligarem do antigo local onde
moravam. Será que foram pegos de surpresa? É bem provável que tenha havido uma falha de
comunicação (intencional ou não) entre os moradores e a associação e que dela tenham resultado
desentendimentos e até mesmo desistências.
Depois de quase 27 anos de formação do bairro, a maioria das casas foi expandida horizontal e
verticalmente, muitas chegando a ter até três andares (Figura 10). Os afastamentos laterais e de
fundos, estabelecidos no início da ocupação, são, praticamente, inexistentes.
Infraestrutura
Tanto a água quanto a energia elétrica foram conquistadas com muita luta. No entanto, o processo
no Jardim Felicidade, aparentemente, foi mais simples do que nos demais loteamentos. Pe. Piggi
atribui essa diferença ao apoio que tiveram do governo, principalmente, o federal.
70
Em se tratando da infraestrutura urbana, o padre lembra o contraste entre a presteza da Cemig,
responsável pela rede de energia elétrica, e a morosidade da COPASA, responsável pelas redes de
água e esgoto:
A Cemig sempre foi facílima. Porque é interesse imediato dela. Fazia aqueles padrões
simplificados que iam já prontos, ela mesma colocava o padrão. [...]. Agora, a água. A
água com a COPASA, nossa senhora, que sofrimento! A única que acudia era a Cemig,
porque, por incrível que pareça, esses lotes menores [...] é vantagem para ela, porque
num curto espaço de tempo há muitos consumidores, então, lucrativo para a Cemig.
Então, a única coisa que nós conseguíamos era a luz, porém primeiro tinha que ter a
casinha pronta e eles punham lá um padrão de luz chamado ‘centrificado’ que a Cemig
mesmo punha e ligava. Então, em três dias, eles ligavam trezentas casas. Com poste,
com tudo ligado e tal. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
As redes de água e esgoto foram implantadas lenta e parcialmente. Até os anos 2000, ainda havia
ruas sem acesso a eles. Nos primeiros anos, a COPASA apenas disponibilizou três chafarizes no
bairro, um em cada seção, que geravam imensas filas para pegar água. Com o tempo, os moradores
se mobilizaram para conduzir a água até as casas, de modo mais ou menos improvisado. Só então a
COPASA observou que havia um consumo considerável no bairro e, gradualmente, foi instalando a
rede ‘oficial’ de distribuição de água. Já a rede de esgoto chegou apenas muito recentemente com o
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que também possibilitou a pavimentação das
principais vias do bairro. (Figura 9).
Os detalhes do processo da chegada da infraestrutura no bairro podem ser visto a seguir no relato
de Antônio Ruas. Primeiro, foi a água, depois, a energia e, por fim, a rede de esgoto junto com o
calçamento das vias, como pode ser visto a seguir:
1) Água
A primeira que veio foi a água através de chafarizes. Então eles trouxeram, pegara de
algum lugar e trouxeram uma “encanação” e fizeram o chafariz. Aqui na Rua 59, né?
[…] Aí as pessoas viravam a noite na rua, porque para abastecer essa população toda,
pegando a água dos chafarizes. E como o abastecimento era muito fraquinho, a água
vinha mais a noite. Então era comum das famílias, à noite inteira, estar carregando as
água para abastecer. Um dia estava lá, no outro dia estava de novo. Era dessa forma.
[…] Então, aí, depois, as pessoas foram percebendo. "Olha! Se a água vem até o
chafariz, então, eu posso levar minha água até a minha casa!” Aí foram lá e cortaram a
mangueira do chafariz e compraram o mangueirão e espichou, né? Durante o tempo
que a pessoa não estava pegando a água no chafariz, a água estava indo até a minha
caixa d'água, eu queria levar até a minha caixa de água. […] Fazia um grupo de
pessoas, eu fiz isso, fazia um grupo de pessoas, compravam lá 200 m de mangueira,
entendeu? E aquelas mangueiras a gente ia dividindo, porque o tempo que o chafariz
estava fechado, a água podia estar descendo. Quando o pessoal pegava água no
chafariz, o pessoal cortava, entendeu? Então foi dessa forma, a água. (RUAS, jun/2013,
entrevista).
2) Luz
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Antônio Ruas recorda que a implementação foi motivo de rixa entre vereadores, pois queriam se
gabar com os feitos, tendo em vista, provavelmente, o apoio dos moradores:
A luz veio também através de movimento. Aí já tinham morador que já não tinha luz, e já
existiam os moradores que já tinha luz. Então, já foi um processo mesmo de luta e veio
naquele tempo que não tinha Orçamento Participativo. Tinha a melhoria através de um
vereador, através de um projeto de lei, um decreto uma coisa assim, né? Então tiveram
vários vereadores que teve essa contribuição, entendeu? De lutar por um pedac inho…
teve briga de vereadores, entendeu? Maria Elvira foi uma delas, entendeu? Que trouxe
um parque de luz, aí veio lá a Júnia Marisa e falou que ela que tinha trazido o processo
e tal e foi no dia da inauguração dessa luz, houve briga de vereadores. [risos]. Mas
cada um teve essa contribuição, né? […] O Tomás da Mata Machado, do Projeto
Manuelzão, não sei se você conhece, da Faculdade de Medicina, ele foi secretário de
infraestrutura por um tempo no governo do Patrus Ananias, né? Então a gente
conseguiu com ele a liberação ali, da parte dali, que não tinha luz, né? […] Então cada
um teve a sua contribuição. Mas foi através de luta e de movimento, de reivindicar e tal,
entendeu? […] quando começou esse processo, a COPASA, […] viu que o consumo
estava sendo grande, viu que não tinha retorno isso aí. “Aí, por ela mesma, por ela foi
fazendo instalação de água.” (RUAS, jun/2013, entrevista).
3) Rede de esgoto e calçamento
Esgoto já veio através do Orçamento Participativo, né? Que quando eu fazia
reivindicação em tal rua assim, aí já vinha, era incluído o orçamento de rua e já vinha
[sic] as redes de esgoto. Então foi dessa forma. Aí, foi fazendo as ruas principais […] e,
de repente, as ruas do lado foram ficando, então o próprio órgão público foi vendo que
tinha que fazer. Então aprovava uma quantidade de metro cúbico de rede de esgoto,
né? E dava para fazer algumas ruas, então foi dessa forma. Aí, até o ano de, acho que,
até 2000, tinha rua sem asfalto, sem esgoto, então que foi chegando depois. Mas foi
tudo através de movimento e luta e tudo. (RUAS, jun/2013, entrevista).
Mobilização temporária
A julgar pelo relato de um morador, esse foi um processo moroso e de muita luta, que aglutinou a
comunidade local por algum tempo. Antônio Ruas relembra que, antigamente, no auge da
mobilização, conseguiram levar à Regional Norte, às reuniões do Orçamento Participativo (OP),
quase 1000 moradores do bairro. A força que o movimento tinha era tal, que os demais bairros da
regional se sentiam intimidados, pois já sabiam que “perderiam”. Segundo ele, de todos os
Orçamentos Participativos, só perderam um. Hoje isso acabou – o número de moradores envolvidos
no último OP caiu para 50.
Mas, uma vez alcançadas as ‘conquistas’, tal mobilização se enfraqueceu. A maioria dos moradores
passou a não se interessar mais pelas causas coletivas. Inclusive, o mesmo entrevistado atribui o
comodismo atual dos jovens e até mesmo a condição atual de violência à falta de envolvimento
nessas lutas.
72
Aí, quando eu tive esgoto na minha rua, tive luz, tive asfalto, não vai brigar mais, né?
Então foi acomodando, né? Então foi isso que foi acabando os movimentos. Hoje, essa
juventude que vem hoje não acompanham isso, né? Quer só ficar na pracinha, fumando,
cheirando. […] Não participa [das lutas] porque tem muitas coisas para conseguir.
(RUAS, jun/2013, entrevista).
[…] As pessoas vai se acomodando, essa que é minha preocupação, as pessoas vai
[sic] conseguindo as coisas e já esquece que os outros precisa, entendeu? Já atendeu a
ele e aquele. No início, não tinha isso. As pessoas se preocupavam com o: Ah, não! Eu
já consegui, mas vou consegui para outro lá. Porque estou conseguindo para o meu
bairro. É uma melhora para o meu bairro, não importa – essa é a concepção – não
importa onde que vai ser feita essa melhoria, mas que vai ser feita no meu bairro, né? A
gente conseguiu dessa forma, né? Agora hoje as pessoas já não olham mais isso, né?
Essa questão da violência, por exemplo, né? Eu acho que se eu bater em cada casa
dessa, não tem uma família que teve um filho envolvido ou filho de um vizinho
envolvido, entendeu? Ele vai contar uma historia dessa. E hoje as pessoas preocupam
mais com isso. (RUAS, jun/2013, entrevista).
O morador ainda comenta sobre as lutas com as quais, atualmente, só poucos moradores tem se
envolvido. Como parte dessa minoria, Antônio tem lutado pela revitalização do Córrego Tamboril,
bem como pela desapropriação dos que moram à margem do mesmo. Há oito meses tem lutado, sem
sucesso, para transformar áreas degradadas em áreas públicas, para o uso comum e pela segurança
do bairro. Além disso, alguns desses moradores tem se envolvido, por meio do MOVE (Movimento
dos Impactados da Granja Werneck), contra a onda especulativa que está para acontecer na região
vizinha, a Granja Werneck:
Hoje tem o córrego, entendeu? Não é só o córrego, tem outras coisas, que eu poderia
estar melhorando, entendeu? Uma indústria, alguma coisa, que não pode ser
implantado aqui, porque é residencial, mas eu posso estar colocando do lado. […] Ess e
processo de desapropriação da Granja Werneck, né, que está vindo aí. Vai construir aí
um conjunto habitacional de grande porte, de luxo, lá dentro. Mas o que vai me trazer
de retorno, de trabalho dentro disso? Será que eu posso colocar alguma coisa assim?
Posso reivindicar? E aí você não vê luta dessa juventude. Eu participo desse movimento
[MOVE], eu e a Lu estamos numa guerrinha [ferrenha] com eles, né? E tem outros
movimentos de outras pessoas, mas, praticamente, você não vê jovens nesse
movimento. E eu me preocupo com isso. Quem preocupa com isso sou eu, que tenho
uma filha, a Lu que cresceu e está começando a crescer nisso e amanhã vai ter filho
[…] mas você não vê jovem participando disso, vai enfraquecendo. (RUAS, jun/2013,
entrevista).
Ocupação da área de preservação e à margem do córrego
A prefeitura não concedeu título de propriedade àqueles que se encontravam nas áreas destinadas à
preservação. Com exceção da seção IV, as demais seções foram cedendo, gradualmente, a área de
preservação para quem pedia. A área do córrego era para ser preservada e, atualmente, os
moradores estão brigando para remover e reassentar aquelas famílias que vivem no leito do córrego
(Figura 8). "Hoje são 3600 famílias que invadiram as áreas verdes, que invadiram as áreas
institucionais e um tanto de coisas – depois que o conjunto foi feito”, comenta Pe. Piggi.
73
(BERNAREGGI, maio/2013, entrevista). Antônio Ruas também denuncia esse problema e identifica
pelo menos duas tendências: a ocupação feita com o consentimento dos próprios moradores e a
ocupação espontânea.
A margem do córrego, ela foi invadida, entende? […] Essa área ocupadas foi entre
1987/1990, alguma coisa assim. Que aí foi dividida por associação. A associação da
primeira seção… aí cada associação teve uma associação de bairro, primeira seção,
segunda seção, terceira seção. […] Só a quarta seção que não teve. A quarta seção já
foi os direitos humanos, entendeu? Então a primeira, a segunda e a terceira seção teve
associação, entendeu? E essas pessoas da associação e que foi, dentro de seus
espaços da associação é que foi cedendo para alguém: ou colocando um parente, ou
colocando um amigo e em troca recebendo alguma coisa. E foi assim que foi ocupado
todo o restante das áreas verdes, entendeu? As margens do córrego já não foi dessa
forma. [sic] As margens do córrego foram ocupadas. O pessoal já via um pedacinho e aí
foi ocupado dessa forma. (RUAS, jun/2013, entrevista).
Inclusive, o morador chega a responsabilizar, também, até o padre por essas ocupações. Na visão
de Antônio Ruas, o padre deveria monitorar todo o processo de ocupação do bairro e conscientizar
os moradores de como fazê-lo, como visto a seguir:
Então, assim, era muito do Piggi, acho muito legal […]. A única coisa que fiquei receoso
com o Piggi foi, exatamente, isso, né? Porque hoje seria uma área de preservação, mas
como hoje já não está preservando também a outra parte, também não seria, né? Volta ,
penso e repenso dessa forma também, né? […] Hoje a coisa mais essencial é a água e
que está muito escassa. E essa região aqui é muito rica em água, muito rica em água.
Então, pra tudo quanto é cantinho, grotinha, tinha um corregozinho. Os primeiros
moradores aqui, eles construíram as suas casas tomando água desse córrego que era
limpinho e tudo. Eu vim pra cá com as pessoas, aqui tinha um espaço que não existe
mais, que chamava biquinha, né? Que era onde que tinha água e caia lá, né? O pessoal
pegava lá, regava, carregava água na cabeça pra fazer comida, pra lavar roupa. Final
de semana um monte de mulher ia pra lá lavar roupa, que tinha esse espaço né? Então
isso era rico aqui. E hoje não tem mais isso. Hoje tem esgoto a céu aberto, né? A gente
está brigando aí pra poder esperar, que ainda é possível, né? (RUAS, jun/2013,
entrevista).
[…] Então, ele [Pe. Piggi] poderia ter pensado nisso. Olha, vamos ter moradia, mas
também com qualidade de vida. Vamos preservar a natureza. Como posso preservar a
natureza? Vamos respeitar as margens do córrego, entendeu? Vamos respeitar as
nascentes. Isso deveria ser uma condicionante dentro do critério de desapropriação.
Então não teve isso, foi só desapropriou de todas as maneiras, foi tirando tudo que é
mato, tirando tudo o que é nascente, né? O esgoto foi arredando em tudo e qualquer
lugar. Então esta que é a minha bronca, né? Então ele poderia ter pensado um
pouquinho nisso, né? (RUAS, jun/2013, entrevista).
Atualmente, esse morador, juntamente com outros moradores, luta pela revitalização do córrego e pela
desapropriação dos que moram às margens desse.
A gente está brigando. A prefeitura está aqui com uma empresa fazendo o projeto do
córrego, né? Nós queremos, não conseguimos ainda sentar com a prefeitura para
negociar isso. Nós queremos que as famílias sejam desapropriadas, né? Entendeu?
Retire a terra que foi colocada lá e tire o espelho de água, porque é possível ainda
recuperar as nascentes. Ainda é possível fazer isso, né? Então, mas est á dentro desse
processo, né? Mas, hoje, nós estamos brigando para isso. Há um tempo, não precisava
[sic] de brigar por isso, porque já tinha o seu leito natural, entendeu? (RUAS, jun/2013,
entrevista).
74
Corrupção interna
Além do desvio de recursos e de materiais pelos coordenadores, o morador Antônio Ruas menciona
outra forma de corrupção interna na AMABEL: a venda clandestina de lotes. O próprio Antônio foi
beneficiado por esse esquema. No seu caso, parece que a pessoa que havia recebido o lote
inicialmente deixou de comparecer aos finais de semana para o trabalho de construção. Um dos
coordenadores viu que a casa não iria para frente e resolveu vender o lote, então, vago. Antônio diz
não saber quem era o antigo proprietário e quem recebeu o dinheiro. Segundo informou em
entrevista, um conhecido seu o colocou em contato com o tal coordenador, que foi, na época, até a
casa onde Antônio morava de aluguel no Bairro Renascença. Ali chegou com uma “carteira” (uma
espécie de registro do lote) em nome de Antônio. Tudo estava devidamente esquematizado e ali
mesmo efetuou o pagamento do lote. Antônio vê nessa corrupção um dos motivos que levaram Piggi
a se afastar do movimento. De fato, o padre se refere a tais episódios com pesar:
Teve lá uma parte muito triste da associação comunitária corrupta vender as áreas
verdes, vender as áreas institucionais, lote... por conta própria. Os coordenadores da
associação comunitária vendiam terreno, pegavam o dinheiro. Coisa terrível isso. De um
jeito ou do outro, o pessoal tá lá, né? (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista).
O Felicidade, infelizmente, foi a primeira tentativa nossa... Infelizmente, em 1988 eu tive
de viajar para a Itália, fiquei lá até 1990, e deixei aqui em andamento. E eles
terminaram o bairro e o coordenador da associação começou a receber para enfiar os
favelados em tudo quanto é área […], área proibida. (BERNAREGGI, maio/2013,
entrevista).
Os futuros moradores do Jardim Felicidade, conforme já mencionado, faziam parte de diferentes
grupos de sem-casa ligados à AMABEL. Como esses grupos eram muito numerosos, foi preciso
estabelecer critérios de seleção: as famílias deveriam ter renda mensal de até três salários mínimos
e pelo menos quatro filhos, deveriam morar em poucos cômodos, de aluguel e deveriam participar
com assiduidade das reuniões dos núcleos. 26 Com o esquema de venda de lotes pelos
coordenadores, esses critérios foram violados paulatinamente (o próprio Antônio, na época em que
adquiriu seu lote, era solteiro). Hoje, é impossível saber quantas famílias do Jardim Felicidade
pertenciam à seleção original da AMABEL e quantas chegaram ali por outros meios, não se
enquadrando naqueles critérios.
26 Plano Global Específico (PGE) da URBEL - julho/2001
75
Dando sequência a essa denúncia, Antônio Ruas revela o envolvimento nesses ciclos de
enriquecimento sucessivos de agentes ligados a instituições públicas. O entrevistado julga ter sido
essa a maior decepção do padre:
Quando eu coloquei aqui do Pe. Piggi ter uma decepção com a associação, mas atrás
dessas pessoas existia [sic] muitas pessoas que muito material aqui foi desviado.
Caminhão, caminhão de tijolos, entendeu que vinham foi desviado. Porque, acima
dessas pessoas de associação, existia o Pe. Piggi. Acima do Pe. Piggi existia outras
pessoas que era o presidente da Urbel que construía vilas e favelas de Belo Horizonte –
que são gerenciadas por eles né? Então existia pessoas desse nível, a nível de
prefeitura, entendeu? […] Teve gente da alta que ficou rico aqui dentro. Ficou rico. […]
A decepção com o padre Piggi com alguns moradores, ela foi grande. Mas maior com
essas pessoas que estavam por trás. Porque isso aqui não chegava para os moradores
daqui, eles ia [sic] lá e... Eles vinham de uma organização. Esta organização italiana
[AVSI] era séria que doou esse material todo, existiu o Aníbal Teixeira que foi o mentor
de buscar esse recurso, entendeu? Ele também tinha ele. Mas nesse meio de caminho,
aí, existia muitas falcatruas, entendeu? (RUAS, jun/2013, entrevista).
Outro tipo de desvirtuamento, talvez não associado à lógica dos que foram mencionados como
enriquecimento próprio, é relatado por Antônio. Segundo ele, aconteceu quase como um jogo de
poder entre as lideranças da associação. Em sua opinião, a suposta área destinada, inicialmente,
para ser um centro de saúde, passou a sediar a Creche Comunitária Jardim Felicidade/Centro
Alvorada, à custa também de desapropriações:
Da mesma forma que eu elogio o movimento do Pe. Piggi e de Rosa [Brambilla] e de
tudo, eu tenho umas críticas. [...] Onde foi construída a creche [Creche Comunitária
Jardim Felicidade/Centro Alvorada], foi desapropriada 16 famílias. Era para ser um
centro de saúde ali, entendeu? Esse centro de saúde teve o projeto, ele foi orçado, o
recurso veio e foi construído aquilo lá. Então, querendo ou não, a mesma instituição que
fez tudo isso, ela se beneficiou de alguma coisa, entendeu. (RUAS, jun/2013,
entrevista).
Processo de regularização e Isenção de imposto
Antônio relembra que, à época da implantação do Jardim Felicidade, o prefeito Sérgio Ferrara
estabeleceu a isenção de IPTU às famílias de moradores por um período de dez anos, até se
estabilizarem na nova condição de vida. 27
Dentro da implantação do conjunto, aí veio desde o Sérgio Ferrara, todos os prefeitos
tinham acordo com isso, que o Felicidade teria dez anos de isenção de imposto, né?
Porque naquele tempo as famílias não tinham condições nenhuma de pagar imposto e
Antônio comenta que esse acordo do Ferrara foi conservado, passado de gestão em gestão. Atualmente, o processo
estabelecido para a regulação para Zeis-3, que constitui de cinco etapas (Anexo 2) confirma a manutenção do suposto
acordo do Ferrara: “Na quinta e última etapa, o morador beneficiado faz o registro da escritura em cartório, de forma
gratuita. O único ônus é o recolhimento de uma taxa à prefeitura no valor de R$ 30,00. A cobrança de IPTU só vai
acontecer 10 anos depois da finalização do processo de regularização fundiária.” (PBH, 2013)
27
76
tal. Então ficou isso, ficou documentando isso, que haveria dez anos de isenção, até as
famílias se constituir, se estabilizar e tal e começarem a cobrar imposto. [Isso seria
entre 1985/1988]. Dentro daquele período, entregava o conjunto, dava o título de
propriedade, eu seria dono do lote, né? (RUAS, jun/2013, entrevista).
No entanto, o registro dos terrenos não foi efetivado até 2005, por problemas com os antigos
proprietários:
Como isso não aconteceu, essa entrega de documento só foi arrastando, entendeu? Aí,
me parece que teve o processo na justiça também, porque parece que […] teve uma
parte que não foi paga, né? Foi desapropriado, foi negociado, mas não recebeu; ou
alguém que recebeu, mas veio a falecer, e depois veio o segundo herdeiro, terceiro
herdeiro e entrou com processo que não foi recebido e tal. Então foi isso, né? Então
isso tudo contribuiu para não sair a documentação de propriedade. (RUAS, jun/2013,
entrevista).
Como mencionado, os lotes do Bairro Felicidade foram doados pelo Executivo por meio da Lei Nº
6846 de 13 de março de 1995, legitimando, assim, a doação dos mesmos para os moradores. As
plantas cadastrais do bairro indicam que a maioria dos lotes – cerca de 2.141 – tiveram a aprovação
retificada durante a gestão do prefeito Fernando Damata Pimentel (2002-2009), pelos processos
Nº12.193, de 20 de Outubro de 2005 e Nº12.497, de 20 de Outubro de 2006.
As escrituras começaram a ser emitidas a partir de 2010, inclusive a do próprio Antônio. Sendo
assim, os dez anos passaram a ser contados a partir daí, ou seja, a isenção acabará em 2020. Mas,
para que essa aconteça, é preciso que o acordo se mantenha pelas futuras gestões:
Então, só no ano de 2010 que foi entregue o título de propriedade […] então, como tinha
aquela cláusula lá que eram 10 anos de isenção, então, os dez anos foi a partir da
entrega do título de propriedade pra gente. Pode ser que… isso foi, já foi, no governo do
Márcio Lacerda, entendeu? Pode ser que, no governo, no próximo governo, pode
chegar e achar que não. E manda um projeto de lei para a câmara e pode acabar com
isso, entendeu? […] Não tem uma lei específica para isso, é um acordo, né? Então,
querendo ou não, a gente tem oito anos de isenção. (RUAS, jun/2013, entrevista).
Diante disso, ainda resta outra preocupação para Antônio Ruas. Ele teme que o empreendimento da
Região do Isidoro e, consequentemente, a valorização imobiliária façam com que as taxas de IPTU,
no Jardim Felicidade, sejam elevadas. Fato que já começou a repercutir no bairro. Uma "casa aqui
que custava 50 mil, hoje, está valendo 120 mil, quer dizer, foi um pulo." (RUAS, jun/2013, entrevista).
Com essa nova situação, esse e outros temores têm levado alguns dos moradores mais ativos do
bairro a se mobilizarem para impedir, de alguma maneira, que esse empreendimento e uma nova
onda especulativa venham a prejudicar ambientalmente28 os bairros adjacentes ao Isidoro.
28
A proposta do grande empreendimento imobiliário pelo consórcio Santa Margarida na Granja Werneck. “A prefeitura
da Capital pretende transformar o local, conhecido como Isidoro ou Granja Werneck (Região do Isidoro), na 10ª regional
77
Como mencionado, a incompatibilidade de informações dificulta, em alguns momentos, a conclusão
de alguns fatos. A relação de vilas e conjuntos regularizados no período de 1986 e 2012 (PBH, 2013)
informa que são 4762 domicílios cadastrados e 2255 escrituras emitidas – ou seja, restariam ainda
2507 escrituras a serem emitidas, um pouco mais de 52% do total de domicílios existentes. (Anexo
1). No entanto, em setembro de 2013, o número de lotes não condiz com os 3043 lotes estimados
pela prefeitura (vide Tabela 3) em setembro desse ano (2013). Se essa última contagem estiver
correta, apenas 20 desses 3043 lotes não foram regularizados. De todo modo, esse tem sido um
processo demorado e, finalmente, concluído por meio de muita luta por parte dos moradores.
Considerações
Apesar de bem sucedida em vários aspectos, a experiência apresentou falhas em alguns pontos –
como exemplo, a demora foi tamanha para preparar projetos urbanísticos que a própria AMABEL
teve de assumir a contratação de técnicos ligados à AVSI para realizarem o levantamento
topográfico e as intervenções. Ainda que não tenham cumprido, plenamente, suas propostas iniciais,
foi uma iniciativa surpreendente para prover a população de baixa renda de moradias. De fato, é
necessário que haja o envolvimento dessas instâncias para legitimar esse movimento. Por exemplo,
outros bairros foram feitos e beneficiados com a conquista adquirida no Bairro Felicidade. Para que
essa iniciativa evolua, é necessário que as gestões governamentais seguintes deem continuidade a
esse processo.
de BH, abrindo as portas para a construção de 72 mil apartamentos, shopping, hipermercado, escolas, postos de saúde,
entre outros empreendimentos. O projeto é do prefeito Marcio Lacerda (PSB) [...] foi aprovado pela Câmara Municipal de
BH.” (Disponível em: < http://www.bhaz.com.br>. Acesso em: 16 nov. de 2013). Já, no Estudo Básico da Região do
Isidoro feito pela Prefeitura (2012), a descrição é mais vaga: De acordo com o Estudo de Impacto Ambiental do
empreendimento Granja Werneck, por meio deste instrumento de regulação urbana, pretende -se promover ampliação e
a ocupação ordenada da região Norte baseada em diretrizes de sustentabilidade ambiental. Desta forma, serão
construídas cerca de 17,5 mil unidades habitacionais pelas construtoras Rossi Residencial e Direcional Engenharia, que
juntas formam a empresa Santa Margarida Empreendimentos Imobiliários a qual é a responsável pela constr ução da
Granja Werneck durante um período de aproximadamente 12 anos. Em contrapartida, deste negócio imobiliário, os
empreendedores entregarão à Prefeitura equipamentos públicos urbanos tais como: unidades municipais de educação
infantil, escolas de ensino fundamental e médio, escola profissionalizante, centros de saúde, terminal de integração de
transporte coletivo e parques municipais. (PBH, 2012) Esse empreendimento poderia afetar as ocupações ali já
existentes como a comunidade quilombola de Mangueiras. Atualmente, a região já conta com, pelo menos, outras três
ocupações: Rosa Leão, Esperança e Vitória, deixando os acionistas descontentes. A reportagem do Estado de Minas de
29/08/2013 reforça essa questão: “A Granja Werneck tem 400 hectares e a metade já está ocupada por barracas de
lonas, segundo Fernando [Werneck, um dos herdeiros da área]. "Os invasores já estão construindo casas de alvenaria e
desmatando uma área verde que minha família preservou por 90 anos”. Essa ocupação compromete o projeto que vai
ocupar 356 hectares de toda a granja", disse o engenheiro. "Estão acabando com a parte ambiental, que é a cereja do
bolo do empreendimento", lamentou.” (Disponível em:<www.em.com.br>. Acesso em: 16 nov. de 2013).
78
Também, é questionável o envolvimento dos moradores no processo de decisão em que foram
submetidos. As informações obtidas tendem a dar um foco maior às lideranças da associação. A
impressão é que elas sempre estiveram mais à frente das decisões e negociações com os demais
agentes, decidindo, aparentemente, por conta própria, haja vista as raras menções quanto à
participação efetiva dos moradores associados.
As entrevistas também não deixam claro se houve negociação quanto ao tipo de casa que seria
implementada. Aparentemente, foi uma decisão feita pelo Poder Público, utilizando de uma casa
embrião padronizada como solução para o problema. Como já foi dito, as famílias mais numerosas
que se mostraram dispostas a enfrentar o processo, ficariam, um tempo, espremidas nessa casa, até
ter condição para expandi-la. No entanto, não há duvida quanto às facilidades trazidas pelo Estado
referentes à provisão de moradia por meio de doação de materiais e de um lote (que os moradores
poderiam preencher como quisessem). É provável que, se os moradores, desde o início, fizessem do
seu jeito, de acordo com suas necessidades, teria sido melhor, ainda mais pelo fato do bairro
apresentar uma grande variação de declividades.
Mesmo não sendo a melhor opção, no caso de padronizar o projeto, seria mais adequado produzir
alternativas levando em consideração o relevo. Na melhor das hipóteses, que fosse dado aos
moradores liberdade em fazer a construção em etapas como bem entendessem – cada um criaria
sua casa embrião, conforme suas necessidades. De todo modo, é imprescindível que haja um
esforço por parte dos envolvidos (Estado, liderança da associação e associados) para ampliar um
espaço de discussão e decisão conjunta.
A autoconstrução, nesse caso, assim como nos demais loteamentos analisados a seguir, foi a
modalidade, aparentemente, escolhida pelo Estado e, provavelmente, pelas lideranças. Ainda que
seja uma prática comum para vários dos envolvidos, seria interessante também abrir essa decisão
aos moradores. Além dos fisicamente incapacitados a fazê-lo, é possível que alguns prefiram
terceirizar a construção. Deve haver abertura para a escolha, ainda que a decisão seja a autonomia
no construir (como conjuntos habitacionais). De todo modo, já foi um avanço o fato de a prefeitura
prontificar e direcionar recursos para terceirização da construção para os impossibilitados de se
submeterem à construção de suas casas.
A rigidez quanto ao prazo de construção das casas também é questionável. Correr o risco de perder
a casa por não poder comparecer no dia determinado parece ser um tanto radical. Por outro lado,
como manter organizado um processo que envolve 300 pessoas de cada vez?
79
A mobilização também não passa de uma idealização projetada sobre a população de baixa renda. É
comum alguns pensarem que, uma vez na condição de pobreza, o indivíduo, naturalmente, terá uma
mentalidade voltada para o coletivo, para a ajuda mútua. A maioria dos moradores se acomodou
com a própria situação quando resolvida; alguns persistiram na luta pelo interesse coletivo,
conquistando a implantação de creches comunitárias e posto de saúde, e continuam reivindicando a
titulação das casas e a revitalização do Córrego Fazenda Velha, o “Tamboril”. (AVSI, 2007, p.15). A
partir desse exemplo e dos que virão a seguir, é notório que o aglutinador dos movimentos se dissipa
na medida em que as reivindicações comuns são, aos poucos, conquistadas. A mobilização tende a
reduzir-se, na melhor das hipóteses, a uma minoria.
É possível que o envolvimento do Pe. Piggi, nesse processo, tenha sido determinante. Seu espírito
firme pode ter sido muito conveniente para pressionar o Poder Público e até mesmo manter a
organização do processo. Ainda assim, pode ser visto que ele não conseguiu ter o controle de tudo
como comprovado nos deslizes de algumas das lideranças da AMABEL. No Felicidade, assim como
nos demais casos aqui estudados, o padre parece atuar como catalisador no desenvolvimento do
bairro. Ele é quem inicia o processo e, antes de completá-lo, afasta-se, passando seu encargo aos
moradores – atitude reprovada por Antônio Ruas. A criação da associação dos moradores comprova
essa hipótese e, de certa maneira, um cuidado de conceder aos moradores a autonomia para gerir o
bairro. Talvez seja essa a principal atuação do Pe. Piggi.
É marcante também a confusão que o morador entrevistado, Antônio Ruas, faz ao relatar a função
de cada agente envolvido no processo. O padre, além de providenciar o terreno e conduzir os semcasa para lá, deveria ter provido, previamente, todas as condições mínimas de urbanização e
serviços públicos. Ora, tal responsabilidade por essas questões repousa sobre o Poder Público que
só serviu de facilitador para captação de recursos e desapropriação do terreno. Com a omissão
desse agente, a culpa recai sobre a AMABEL. Ela até pode só ter pensado nas casas, mas não seria
função do Poder Público prover moradia digna para todos? A AMABEL atua à custa da omissão do
Poder Público. Será que esse argumento do morador não é o mesmo pregado pela prefeitura, em
outras palavras, é possível que moradores, até os mais engajados nas lutas, reproduzam o discurso
do público. Não questiono, aqui, a articulação e a capacidade crítica do morador, mas é um tanto
curioso observar que, possivelmente, sem mesmo saber, ele se apropria de certos discursos sem
nem mesmo questioná-los.
Diante dessas questões, tendo a pensar que esse processo foi mais por cogestão do que por
autogestão propriamente dita. Ainda que tenha havido um interesse por parte das AMABEL de
80
incentivar a criação de associações dos moradores antes de sair de lá, parece que não houve
acompanhamento necessário. Os futuros moradores parecem não ter se envolvido, de fato, nas
decisões e sim as lideranças, conformando-se assim, em um movimento com articulação mediana,
pseudo autogestionário.
81
4 NOVO AARÃO REIS
82
Figura 11 ─ Localização do Bairro Novo Aarão Reis
Fonte: IBGE, 2007; PRODABEL, 2008; SMAPL, 2011 com modificações próprias, 2013
83
Figura 12 ─ Provável localização da primeira ocupação do Bairro Novo Aarão Reis
Figura 13 ─ Provável localização do barraco de lona onde Maria e sua família moraram
Fonte: Autora, 2013
Fonte: Maria Pinheiro da Silva, moradora do bairro, cedida em 2013
84
Figura 14 ─ Casas populares no Conjunto Habitacional Novo Aarão Reis, 1993
Fonte: Acervo APCBH. Fundo ASCOM (GR1014/Env.2153)
85
Figura 15 ─ Situação atual do local registrado da figura anterior (Novo Aarão Reis)
Fonte: Autora, 2013.
86
Figura 16 ─ Situação atual do Bairro Novo Aarão Reis
Fonte: Autora, 2013
87
Figura 17 ─ Evolução da invasão da área verde e ribeirinha (Novo Aarão Reis)
Fonte: Google Earth, 2009
88
Figura 18 ─ Simulação esquemática do caminho das águas (Novo Aarão Reis)
Fonte: Google Earth, 2013, alterações próprias em 2013
89
O Novo Aarão Reis localiza-se na Regional Norte, à margem da Rodovia MG-020 (que leva à Santa
Luzia) e é cortado pelo Ribeirão do Onça, que o separa do Bairro Belmonte. Não há consenso
quanto ao processo de sua formação, que teria iniciado em 1992 (data incerta). (
90
Figura 11). A antiga moradora, Maria, com a qual se deu nosso primeiro contato com esse
loteamento, acredita que tenha se tratado de mais uma doação do prefeito Sérgio Ferrara (o que é
improvável, porque seu mandato terminou em 1989, mas indica que se criou um mito em torno da
doação de terras por esse prefeito). Durval, também um morador antigo, recorda que a ocupação foi
durante a gestão do Patrus Ananias e que a “Noema da Cohab” e um “coronel Leônidas” sorteavam
os lotes. Além da Cohab Minas, menciona a participação da Federação das Associações de
Moradores de Belo Horizonte (FAMOBH). Já Pe. Piggi atribui a formação do loteamento a uma
cooperação entre a AMABEL e aquela federação, particularmente, à figura de seu presidente,
conhecido como Toninho da FAMOBH.
Apenas Gladis, atual presidente da AMABEL, parece se recordar melhor dos detalhes do processo:
segundo ela, tudo foi feito pela AMABEL em conjunto com a FAMOBH e a União dos Trabalhadores
de Periferia (UTP). Ela relata que a gleba era de propriedade do estado de Minas Gerais e que as
associações organizaram a ocupação com a estratégia de depois forçar a regularização. (OLIVEIRA,
ago/2013, entrevista). Assim, os futuros moradores ficaram encarregados de entrar na área, capinála e montar suas barracas de lona. Inicialmente, não havia nenhum plano urbano do parcelamento,
de modo que a ocupação em barracas limitou-se a uma parte da gleba (um morador se recorda que
seria a área entre as ruas 42, 40, 45 e 47; algumas delas não constam no mapa). (Figura 12). Essa
configuração persistiu até 1993.
Não há informações de quantas famílias participaram da ocupação inicial, mas foi o suficiente para
que o Estado se visse pressionado a tomar providências, já que o terreno era sua propriedade. Foi o
Estado que acionou a Cohab Minas para que direcionasse a conformação do novo bairro. A Cohab
Minas, então, fez um projeto de parcelamento e se encarregou da distribuição dos lotes, assim como
da construção de algumas casas. (OLIVEIRA,ago/2013, entrevista). A PBH, por sua vez, recebeu a
incumbência de implantar a infraestrutura; o que, pelo depoimento de moradores, foi feito,
prontamente, um ano depois de sorteados os lotes. Apenas na fase inicial, tiveram o suprimento de
água por um chafariz, com os costumeiros conflitos na “fila da água”. Em 1994, toda a infraestrutura
estava concluída e, em 1995, o Decreto 8305 do prefeito Patrus Ananias aprovou o loteamento do
Novo Aarão Reis e parte do Bairro Tupi.
A memória relativamente confusa desse processo pode ser explicada pelo fato de no Novo Aarão
Reis não ter havido nenhuma divisão em subáreas de responsabilidade das diferentes associações,
como mais tarde iria ocorrer no Bairro Metropolitano (que, nesse sentido parece ter sido uma
91
exceção). Assim, cada entrevistado parece lembrar-se das pessoas e entidades com que teve mais
contato ou dos eventos que foram mais marcantes na sua própria trajetória.
O processo de ocupação na perspectiva de uma moradora
A moradora Maria Pinheiro da Silva relata a sua trajetória no Novo Aarão Reis. Morava de aluguel na
casa da mãe, no Bairro Nova Gameleira, quando sua cunhada, um dia, mencionou sobre a ocupação
e, prontamente, decidiu que seria uma boa oportunidade para construir "seu próprio canto". Como
Maria estava grávida, o marido iria à frente e faria todo o serviço braçal, e, assim que a barraca
estivesse pronta, ela se mudaria para lá. (Figura 13). Ela se lembra de que foi um processo bem
sofrido. Tudo “era só poeira” e “não tinha nada” por lá. Os ocupantes da primeira hora improvisavam
abrigos com lona preta, geralmente, de um único cômodo, sem acesso à rede de água ou de esgoto.
Maria conta que cada um capinou o lugar onde iria instalar sua barraca; “cada um que foi chegando
foi fazendo o seu canto”. Essa descrição indica uma forma de ocupação mais individualista. A
organização coletiva (na forma de mutirão, por exemplo) não aparece como uma prática “natural” ou
espontânea entre a população mais pobre.
As famílias reunidas na ocupação provinham de regiões e origens muito diferentes, sem laços de
amizade ou solidariedade anterior a essa data. Se houve mutirão espontâneo ou ajuda mútua foi
entre grupos de pessoas que vinham de um mesmo lugar.
Na foto disponibilizada pela moradora, é possível perceber duas partes contrastantes da ocupação:
uma de barracas de lona e, logo ao lado, um grande conjunto de casas homogêneas em blocos de
concreto. (Figura 14 e Figura 15). A origem desse contraste não pôde ser inteiramente esclarecida,
mas parece tratar-se de uma parte do loteamento em que os moradores recebiam seus terrenos com
uma típica unidade embrião construída pela Cohab Minas. Depois, muito “beneficiários” demoliram
essas casas para construírem a seu gosto.
Os relatos de Maria também indicam que o processo de distribuição dos lotes foi aleatório. Ela se
lembra de que muitos permaneceram no local da primeira ocupação, recebendo seus lotes por ali
mesmo. Outros, como ela, foram contemplados com lotes um pouco distante. Gladis F. Oliveira
confirma isso dizendo que a distribuição dos lotes foi feita conforme os locais que os moradores já
estavam ocupando e, em alguns casos, houve sorteio, mas não foi algo muito burocrático porque a
maioria já estava “no seu espaço bem próximo ali”. Apesar do deslocamento, o sorteio permit iu que
92
Maria continuasse a ter os mesmo vizinhos (e então amigos) da época da ocupação inicial. O sorteio
foi feito pela Cohab Minas, ela se lembra de que, em seu caso, foi organizado por alguém de nome
Suely.
Para a construção das casas, diferentemente do ocorrido no Bairro Jardim Felicidade, não houve
qualquer organização ou estratégia por parte da associação ficando a cargo dos moradores a
compra dos materiais e a execução. Na época em que construiu sua casa, Maria trabalhava na
Empresa de Ônibus Gontijo. Depois que levantaram as paredes, ela e o marido resolveram pedir
demissão de seus respectivos trabalhos para finalizar a casa. Seus sete filhos eram pequenos e
todos dormiam no mesmo cômodo: “Era uma coisa horrorosa!” A casa, então, foi levantada de uma
só vez, e não por etapas: “Se a gente não levantar tudo de uma vez a gente não vai conseguir fazer”.
Todo final de semana o irmão de Maria ajudava na obra. Ela estima que gastaram em torno de seis
meses até saírem da barraca (que ficava onde hoje é o seu quintal) e entrarem na casa, ainda em
fase de construção. Assim que tiraram o escoramento, taparam as aberturas com tábua. Depois de
um tempo, contrataram um pedreiro para forrar o teto e instalar cerâmica no piso da casa toda.
Nessa época, os recursos vinham do novo trabalho do marido. Mais tarde, expandiram a casa,
acrescentando a área de serviço e a cozinha do jeito que está hoje. Um de seus filhos, que é
pedreiro, ajudou a fazer a cozinha e o banheiro. Hoje Maria diz gostar muito da casa onde mora, uma
vez que pôde construí-la exatamente como quis – com três quartos, sala, banheiro, cozinha e quintal.
A moradora também considera que o bairro passou por muitas melhorias desde então. Menciona,
positivamente, a presença de mercearia, supermercado, posto de saúde, farmácia – todos
localizados na Avenida Um, avenida principal do bairro, além da existência de sistema de transporte.
Há uma linha de ônibus que sai da Estação Vilarinho e serve todo o bairro. A moradora não
apresentou qualquer queixa sobre as condições da escola do bairro, a UMEI Herbert José de Souza,
que oferece creche, pré-escola, ensino fundamental e Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Segundo Maria, os aspectos institucionais, jurídicos e políticos do processo de implantação do Bairro
Novo Aarão Reis parecem ter bem pouca importância; o que indica que o envolvimento dos
moradores comuns (Maria não é, nem nunca foi, uma liderança local) com a organização em si foi
pequeno. Assim, não se trata de um processo autogestionário no sentido estrito do termo.
93
Ocupação à margem do córrego
A casa de Maria localiza-se próximo ao Ribeirão do Onça (que atravessa o bairro), exatamente na
última fileira de lotes antes do córrego, a uma distância suficiente para não ser afetada pelas
enchentes. No entanto, as margens desse ribeirão foram invadidas por ocupação precária, sobretudo
por casebres de madeira e lona. Apesar do risco, alguns insistiram e começaram a construir suas
“casinhas” ali, área afetada pelas chuvas de maio de 2013. Hoje, o córrego está repleto de lixo e,
apesar de muitos moradores já terem acionado a prefeitura, essa ainda não fez nada a respeito.
Correm boatos sobre a intenção da prefeitura de remover as pessoas dali e o que não afetaria
apenas a elas, mas também aos moradores legalmente instalados. Maria acredita que, as pessoas,
por gostarem do local onde moram, não aceitarão serem alocados em “prediozinhos” feitos pelo
Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Se for preciso, eles se mobilizarão para impedir que
isso aconteça. Isso revela que, apesar de não ter uma relação de proximidade com os vizinhos, a
estratégia é de se mobilizar, e não se render ou se submeter às ameaças do Poder Público. Na
sequência de imagens aéreas a seguir (Figura 16, Figura 17 e Figura 18), é possível constatar uma
invasão gradual da área verde da parte sul do bairro. Mais adiante na conversa, a moradora
menciona que a entrada do bairro também foi uma invasão recente.
Segurança
Maria diz gostar muito do bairro, mas lamenta apenas uma questão crescente que muito a incomoda:
a “bandidagem”. Quando perguntada sobre quando essa questão começou a aparecer no bairro, ela
logo associou com a remoção da favela do Bairro Primeiro de Maio em decorrência da abertura da
Avenida Cristiano Machado. Segundo ela, grande parte daqueles moradores foi para o Ribeiro de
Abreu e os bandidos subiram todos para o Novo Aarão Reis.
Os traficantes “mandam” no bairro e a moradora diz que todos tentam ao máximo “andar na linha”
com eles – os problemas devem ser resolvidos entre eles e “chamar a polícia seria algo fora de
cogitação”. A moradora sente-se ameaçada. À noite, cada um fica no “seu canto”. Embora não tenha
problema para sair, evita. Só saí, quando necessário, até às 20h. Até mesmo durante o dia, quando
visitei o bairro com ela, Maria mostrou-se muito apreensiva – ela também teme aqueles que moram
nas ocupações ribeirinhas. Se comparado com as outras partes do bairro, ela considera a região
94
onde mora como sendo uma área mais calma. Ela conhece os moradores dali, mas não interage
muito com eles.
Planos para o futuro
Se tivesse condições financeiras, ela sairia dali prontamente. Compraria ou no Bairro Guarani ou no
Bairro Tupi “um lugar maravilhoso de morar”. Fez menção, ainda, ao Ribeiro de Abreu por ser um
local bom, cheio de plantação e de árvore: “lá é bom, bom assim, que é lote...”. (SILVA, jul / 2013,
entrevista).
Corrupção interna
No termo de compromisso disponibilizado pela moradora, foi possível identificar um descumprimento
in loco. Maria se recorda que algumas pessoas se mudaram do bairro e, portanto, disponibilizaram
os lotes para outras pessoas os ocuparem. A filha de Maria foi uma das beneficiadas. Hoje, sua filha
mora na mesma rua que ela.
Processo de regularização
Gladis F. Oliveira menciona que ficou a cargo da Cohab Minas regularizar o Novo Aarão Reis, já os
demais loteamentos mencionados, ficou a cargo da prefeitura. No entanto, no mapa dos loteamentos
aprovados, o bairro não se encontra em situação de aprovação – ele não foi contemplado pela Lei
7611/98 supracitada.
Em conversa com funcionários da prefeitura no setor de Gestão de Projetos, foi informado que a
revisão da Lei 9959/2010 em que será indicado, para loteamentos informais, como é o caso do
estudado, classificações que variam entre AEIS e ZEIS estão em andamento. Como essa revisão
ainda se encontra em fase de estudo, só se pode dizer que a área em questão está prevista para
receber obras de programas de urbanização.
95
Considerações
É preciso levar em consideração que apenas com os relatos das entrevistadas não foi possível
compreender todo o processo de desenvolvimento do bairro. Seria necessário realizar entrevistas
com outros moradores antigos e agentes envolvidos no processo. A priori, teremos apenas
conclusões preliminares ou apontamentos a partir das informações coletadas.
Os depoimentos dados permitiram vislumbrar como se dá o processo de transição do jeito de morar
de um sem-casa: do aluguel à casa própria. É uma situação permeada por várias dificuldades e
lutas. É um processo demorado – no caso da Maria foi um longo período de dois anos. No entanto,
quando se trata do processo de formação do bairro como um todo, foi deixada uma grande lacuna
pelos entrevistados. Quais foram os agentes envolvidos (moradores, associações, técnicos, Poder
Público, organizações não governamentais, etc.)? Qual foi a função de cada um? Por ora, não se
pode concluir se houve ou não uma definição dos papéis de cada envolvido. Por exemplo, a foto das
casas padronizadas em bloco de concreto sugere a existência de algum programa habitacional em
plena década de 1990, aos moldes do Pró-Habitação. Em conversa com o arquiteto Cláudio Beleza
da Cohab Minas29, ele não se recorda do envolvimento da mesma no processo. Se ele estiver certo,
qual foi o agente responsável pelo projeto de parcelamento? Esse projeto já existia antes da
ocupação? Quanto às associações envolvidas, além da ocupação do terreno, qual foi sua função no
processo?
É notável a alienação da moradora entrevistada quanto à suposta existência desses papeis. Fica
evidente seu não envolvimento nas organizações internas do bairro ou até mesmo nas relações com
os demais moradores. Suas relações limitam-se, basicamente, a alguns vizinhos imediatos. De inicio,
parece não se tratar de um grupo de moradores articulado. Seria necessário conversar com outros
moradores para confirmar essa hipótese. Essa falta de envolvimento pode indicar que não houve
nenhuma iniciativa durante o processo, por parte dos envolvidos, que apontasse para a autogestão.
Maria, por exemplo, sequer se lembra da associação que atuou ali. Ou o movimento foi desarticulado
ou a moradora optou por não se envolver. De todo modo, isso revela também a falta de comunicação
entre os futuros moradores e as lideranças das associações.
29
Cláudio Beleza entrevistado em 24 de setembro de 2013 por Rebekah Campos.
96
Outra questão observada é como o jeito de pensa e de agir da população de baixa renda são
idealizados. Um exemplo seria a ajuda mútua como o estigma do acesso à moradia, em outras
palavras, se a pessoa é pobre sempre pensará no bem comum. O relato de Maria surge como
contraponto a essa suposição. Para ela, o processo de ocupação do bairro não dá qualquer indício
de um trabalho voltado para o coletivo. Cada um ficou encarregado de roçar seu próprio lugar e
construir sua própria casa. Esse processo inicial de ocupação revela que o processo de mutirão
espontâneo ou ajuda mútua não parecem ser tão natural para pessoas de baixa renda, quanto se
imagina. O mutirão pode até aglutinar, em algum grau, as pessoas, até que “o bem comum” ou
“individual” seja conquistado, esmorecendo, a seguir, a mobilização – como foi no caso do Bairro
Felicidade. Outra idealização é o jeito de morar. É comum que se crie um padrão de morar como
característico dessa classe social a partir da visão de alguém fora desse grupo, cheio de concepções
equivocadas. Por exemplo, as famosas casas embrião ou a casa mínima são impostas como solução
padronizada de se morar, com mobiliários padronizados (apresentando dimensões incompatíveis
com o que é ofertado no mercado) para indivíduos padronizados. Alguns tentam se encaixar nesses
moldes, mas outros não. Ao demolirem as casas recebidas, os moradores beneficiados anunciam a
incompatibilidade desse jeito de morar que lhes é imposto. É preciso que técnicos, políticos e até
mesmo associações repensem nessa estratégia estigmatizada e “viciada” associada a essa parcela
da população, principalmente, em se tratando da provisão habitacional para elas.
Se o depoimento da moradora estiver certo, comparado aos demais loteamentos estudados nesta
pesquisa, a implementação de infraestrutura no Novo Aarão Reis foi o mais bem sucedido. Maria
estima que, em um período aproximado de dois anos, todos já estavam servidos. No entanto, ela não
entra em detalhe ao falar sobre esse processo, dando a entender que a implementação de
infraestrutura no bairro tenha sido eficiente e tranquila. Esse relato pode supervalorizar a eficiência
da PBH em sanar o problema. Se não for esse o caso, é provável que tenha sido fruto da
mobilização dos próprios moradores do bairro (como no Felicidade e no Metropolitano) – da qual,
aparentemente, Maria sequer menciona (ou não soube ou não quis se envolver). Imagino que para
quem está à frente dessas mobilizações o “tempo de espera” para a realização da demanda deve ser
bem mais longo do que para aquele que recebe sem nenhum esforço.
A moradora indica que a porção superior do bairro que visitamos é conhecida pelo tráfico de drogas
e criminalidade. Essa talvez seja a maior ameaça para os moradores e a justificativa para pensarem
em sair de lá. Além dessa, que outras questões levariam os moradores dessa área a mudarem-se
dali? Para quais lugares essas pessoas se mudariam?
97
5 METROPOLITANO
98
Figura 19 ─ Localização do Bairro Metropolitano, Ribeirão das Neves
Fonte: IBGE, 2007; PRODABEL, 2008; SMAPL, 2011 com alterações próprias, 2013
99
Figura 20 ─ Projeto final para o Metropolitano – lotes de 400 m2 (proposta aprovada)
Indicação aproximada das áreas de domínio de cada associação.
Fonte: Arquivo da AMABEL, 1998, alterações próprias, 2013
100
Figura 21 ─ Projeto Inicial do Bairro Metropolitano, de 1996 (esquerda) e projeto final para aprovação, de 1998 (direita)
Fonte: Arquivo da AMABEL, 1996/98
101
Figura 22 ─ Projeto final para o Metropolitano
Lotes de 400 m2 (proposta aprovada)
Fonte: Arquivo da AMABEL, 1998; alterações próprias
102
Figura 23 ─ Comparação do projeto e a situação real da ocupação (Bairro Metropolitano)
.
Pode ser observado que o projeto é, de modo geral, compatível com as condições naturais do terreno.
Da esquerda para direita: vista da ocupação atual do Metropolitano, com indicação esquemática do caminho das águas.
Projeto de parcelamento com indicação das áreas de preservação permanente, área verde, açude e área remanescente.
Projeto de parcelamento com indicação das áreas institucionais
Fonte: AMABEL,1998; Google Earth, 2013, alterações próprias em 2013
103
Figura 24 ─ Fotos do início da ocupação do Bairro Metropolitano
Fonte: AMABEL, s/d
104
Figura 25 ─ Fotos antigas referentes à implementação de infraestrutura, contratos e outros (Bairro Metropolitano)
Fonte: CEMCASA, s/d
105
Figura 26 ─ Vista panorâmica do Bairro Metropolitano
Fonte: Autora, 2013
Figura 27 ─ Situação atual das casas ─ Parte da AMABEL
Fonte: Autora, 2013
106
Figura 28 ─ Situação atual do Metropolitano
Fonte: Autora, 2013 e LOURENÇO, 2013
107
Figura 29 ─ Vista geral do Metropolitano
Fonte: LOURENÇO, 2013
108
O Bairro Metropolitano localiza-se à margem da BR 040, no município de Ribeirão das Neves
(próximo aos bairros Veneza, Florença e San Genaro), na divisa com o município de Esmeraldas. O
arquiteto Laender de Castro menciona, com certo orgulho, a criação desse bairro como sendo uma
“cidade pioneira”, autogerida e autofinanciada. Tratava-se da Fazenda Castro, uma gleba de
1.000.400 m² que pertencia a um amigo da família do arquiteto responsável pelo projeto de
parcelamento do bairro, Sandoval de Castro. (Figura 19). A compra do lote foi efetivada em 1996 e
só foi possível por dois fatores: a proximidade de Laender de Castro com o antigo proprietário e a
união de três associações de sem-casa: a AMABEL, a FAVIFACO e a CEMCASA. A ideia inicial era
a de se criar um bairro para, aproximadamente, 4000 famílias – segundo a planta da proposta inicial,
o número exato seria 3580. A distribuição dos lotes deu-se da seguinte maneira: a AMABEL, liderada
por Ângelo Silva e Gladis, recebeu 640 lotes (que acabaram sendo os primeiros lotes a serem
regularizados); a FAVIFACO, liderada por Hermes Lima, recebeu 740 lotes; e a CEMCASA, liderada
por Piggi e Maria Salomé, recebeu 2.200 lotes. A Figura 20 mostra a distribuição das casas segundo
as terras pertencentes a cada associação.
Definição dos papéis
A iniciativa para a execução desse loteamento partiu da associação CEMCASA, então, sob a
liderança de Pe. Piggi. O padre equipou-se da assessoria do arquiteto José Carlos Laender de
Castro para auxiliá-lo na escolha do terreno e no desenvolvimento do projeto do loteamento. Vale
lembrar que dessa vez, ao contrário do Bairro Felicidade, Pe. Piggi não teve qualquer apoio político,
governamental ou religioso. Assim, para fortalecer o movimento, a estratégia foi unir-se a outros dois
movimentos dos sem-casa: a AMABEL e a FAVIFACO. Cada associação envolvida recebeu uma
quantidade determinada de lotes e deveria organizar todo o processo de ocupação daqueles que lhe
eram devidos. Os moradores, então, foram responsáveis por cavar os locais por onde passariam os
dutos de água e esgoto (no sistema de mutirão) e pela construção de suas moradias
(autoconstrução).
109
Recursos
...no Bairro Metropolitano, já não tivemos verba de ninguém. Era tudo comprado. Nós
compramos a fazenda, pagamos as construtoras pra abrir as ruas, fazer drenagem,
fazer tudo, e depois, cada um chegava com o seu material e construía lá. Ficava
debaixo de uma lona preta e construía. Teve uma época que a prefeitura mandava os
fiscais virem e embargar aquilo tudo lá. Só que ainda não tinha Lei de Uso do Solo pra
proibir. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
Laender de Castro completa que “lá [Bairro Metropolitano] fizeram tudo, sem nenhum apoio estatal
dos órgãos públicos”30. Em suma, foi autofinanciado. Nesse contexto, Piggi liderou os futuros
moradores para implementação do Bairro Metropolitano, no processo de autoajuda e
autoconstrução, o que acontecia nos finais de semana com ajuda de parentes e amigos. Pe. Piggi
lembra o que sofreu:
lá no Bairro Metropolitano porque, logo que o pessoal começou a construir – porque lá
todo mundo construiu com meios próprios, o governo federal não tinha mais esses
programas do Sarney, depois de 10 anos, né? Então todo mundo construía com recursos
próprios, de amigos, de patrões, de firma onde trabalhava. (BERNAREGGI, mai/2013,
entrevista).
Processo de aquisição da gleba
Como já introduzido no item 2.2 - Apresentação Geral dos Loteamentos, em meio às restrições
acentuadas referentes à regulação do uso do solo em Belo Horizonte, o movimento do Pe. Piggi – e
provavelmente, muitos outros desse tipo – foram impelidos para diversos municípios além de Belo
Horizonte, já que nesses locais ainda não havia estabelecido leis tão rigorosas de uso e ocupação do
solo. Mas essa brecha durou por pouco tempo. Piggi lembra que “esse processo de lei de uso do
solo em Belo Horizonte repercutiu lá em Neves. Só que eles não tinham estrutura para criar lei do
uso do solo. Mas, polícia para te obrigar a embargar os pobres, isso eles tinham naquela época.”
(BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
Em 2001, foi aprovado o Estatuto da Cidade e a consequente obrigatoriedade de Planos Diretores
para municípios “com mais de vinte mil habitantes”31. Os futuros moradores chegaram à Fazenda
Castro depois de muito “perambular”. O preço foi em torno de R$0,60/m².
30
Documento escrito por José Carlos Laender de Castro, Movimentos Populares dos sem-casa, pag.1.
Consta no Estatuto da Cidade, no Capítulo III, § 5º “Art. 41. O plano diretor é obrigatório para cidades: I – com mais de
vinte mil habitantes; [...]”, (BRASIL,, Lei No 10.257, DE 10 DE JULHO DE 2001.)
31
110
Os envolvidos no processo tinham costume de visitar o terreno, inclusive o próprio arquiteto. Laender
de Castro lembra que Pe. Piggi tinha a preocupação de envolver os futuros moradores na decisão da
escolha da gleba “o Padre Piggi tinha uma consciência coletiva muito interessante, ele levava o
pessoal lá pra ver se o terreno servia. O pessoal falava assim: “Aqui passa ônibus?” “Passa”.“Então
pronto, tá aprovado.” (LAENDER, maio/2013, entrevista).
Em entrevista, Gladis menciona que não poderia desmembrar a fazenda e vendê-la em porções
separadas. Logo, a única possibilidade para comprá-la seria em sua totalidade. A união das três
associações também foi justificada para tanto.
Gladis conta que o pagamento do lote foi dividido em doze parcelas. Nos primeiros dois meses, era
cobrada dos moradores uma taxa de R$20,00 por mês, e depois houve um acréscimo de R$13,00
para obras de urbanização. No período de um ano, os moradores quitaram a compra. O valor era
repassado para Sandoval de Castro, antigo dono da Fazenda Castro, que só transferiu a escritura às
entidades depois de terem pago metade da gleba. Logo, o preço final do lote, em 1996, ficou em
aproximadamente R$240,00.
Projeto de parcelamento
No projeto inicial de Laender de Castro cada lote tinha 200m², medida aquém àquela requerida pela
prefeitura. Para fins de aprovação, os lotes foram unidos de dois em dois apenas no desenho,
resultando lotes de 400 m2. (Figura 21 e Figura 22). Houve, então, uma incompatibilidade intencional
entre a situação real do loteamento em relação àquela apresenta na planta de aprovação enviada à
prefeitura. Uma vez ocupado, não teria como retroceder.
Comparando, atentamente, as duas plantas e comparando-as com a situação atual da ocupação, é
possível perceber a mesclagem daquelas duas plantas. Da primeira, ficou o tamanho dos lotes de
200 m2, da segunda, exceto o tamanho dos lotes, tudo o mais foi implementado.
O segundo projeto, datado de 1998, foi o aprovado pela prefeitura. Nele constavam áreas previstas
para preservação permanente, área verde, açude e área remanescente. (Figura 29).
Comparando ainda o caminho das águas e o que foi previsto no projeto, os pontos críticos podem
ser vistos na Figura 23 (números indicados 1 e 2). De modo geral, o projeto é coerente com o terreno
natural.
111
Ocupação e construção das casas
Paralelamente, a execução prevista no projeto do loteamento já vinha acontecendo, antes mesmo de
ter sido aprovado na prefeitura. Esse fato exemplifica um dos tipos de loteamento categorizados. O
desenvolvimento do loteamento ocorreu em quatro etapas – a ocupação aconteceu,
simultaneamente, a todas essas. Na primeira, pagou-se pela terra (1996/97); na segunda, pagou-se
pelo projeto de parcelamento; na terceira, ocorreu a abertura de vias, o cascalhamento e, a quarta, a
instalação de infraestrutura, a execução do projeto de rede de esgoto (2008), de água (1998) e de
luz (2008). Assim como no Novo Aarão Reis e em muitas outras ocupações, o processo de
construção da casa foi posterior aos barracos de lona, como descrito a seguir por Laender de Castro:
Que que aconteceu? Era uma cumbuca, o pessoal tirava um lote, o lote tal, com a área
tal. Aí, ele era permitido a ele levar, como lona era caro, era plástico preto, era o mais
barato. Você comprava um plástico preto, punha uma forquilha e fazia o primeiro, a
primeira casa dele provisória. Aí vem um grande, um grande mote, ele tinha trezentos
reais por mês que ele pagava de aluguel passou a ser a poupança dele. Ele morando
aqui durante seis meses, nessa casa provisória de lona preta, não, de plástico, né?
Plástico preto mesmo no calorão danado, ele não conseguia nem entrar direito dentro
da casa durante o dia. Mas era ali que ele morava pra sair do aluguel. Com esses
trezentos por mês ele ia, comprava um tijolo, comprava o cimento e já fazia o embrião,
o embrião era de vinte metros, o embrião era cozinha, banheiro, sala/quarto.
(LAENDER, mai/2013, entrevista).
O embrião mencionado na fala do arquiteto referia-se ao projeto padrão da casa embrião que era
ofereciada aos moradores. Aparentemente, não havia imposição por parte dele, ele o fazia quando
solicitado. A impressão gerada foi que, na verdade, era uma minoria que se submetia a um desenho
pré-estabelecido da casa. Muitas casas já se expandiram horizontal e verticalmente, algumas
chegam a três andares. (Figura 28 e Figura 29) Em se tratando da lógica de autoconstrução
comumente feita nesses processos, as decisões da execução da casa cabem ao seu proprietário,
conferindo-lhe alguma autonomia dentro desse processo.
Sousa (2002) conta que, em 1997, houve um embargo judicial por parte da prefeitura, alegando que
o loteamento estava infringindo a legislação vigente 32. Esse episódio durou cerca de um ano,
forçando moradores a parar com as obras. Alguns desistiram, outros que não tinham outra opção de
32
Vide SOUSA, 2002, p. 138 e 139.
112
moradia ignoraram a ameaça e deram continuidade à construção. Laender de Castro conta, em uma
entrevista feita por SOUSA (2002), que o processo de aprovação é muito custoso, uma vez que a
Prefeitura de Neves posiciona-se, contrariamente, ao desenvolvimento do Metropolitano,
confabulando justificativas para o indeferimento do pedido de aprovação da primeira proposta de
parcelamento apresentada. O arquiteto, então, atina que o motivo para oposições provinha das
pressões feitas pelos agentes imobiliários à prefeitura, por terem sido prejudicados com o
desenvolvimento do Metropolitano, conforme a fala a seguir:
Nessa alternativa, eu compro a fazenda e vendo os lotes, as pessoas param de pagar o
aluguel, aí terão condições de comprar material para fazer um cômodo e vai o segundo,
o terceiro, e o quarto. Acaba fazendo a sua casa. E o povo, na sua inteligência do dia a
dia, sabe fazer a casa, ele não sabe é fazer o lote. Porque o lote tem uma série de
processos técnicos que ele não dispõe, então eu me dispus a fazer o lote. Eles não
aprovaram o lote de 200 metros. Poderíamos acomodar mais gente e sobrava um
terreno para fazer uma hortinha, que é fundamental para o pessoal de baixa renda.
O prefeito, junto com a Câmara, baixou um decreto que definia como tamanho do lote
250 metros quadrados. Tivemos que refazer o loteamento, diminuímos a largura da rua
para poder aumentar o lote. A prefeitura, em vez de ajudar estava querendo era criar
uma dificuldade maior. Eu não entendi o porquê dessa perseguição. Quando fui à
Câmara conversar com os vereadores fui agredido de todas as maneiras. Não entendia
essa agressão total, mas depois, pensando, eu descobri que não só o prefeito e os
vereadores estavam juntos, mas também as imobiliárias, ou alguém financiado por elas.
Nós tínhamos destruído o mercado imobiliário de Ribeirão das Neves. Um lote custava
R$400,00, ou R$240,00, dentro da Fazenda Castro, e o lote do lado custava R$4000,00,
R$5 000,00, R$6 000,00. Eu criei um completo desordenamento no mercado imobiliário,
daí eu ser taxado de inimigo. Pois vou deixar de comprar um lote de R$ 4000,00 a
R$6000,00, para comprar um de R$240,00 na Fazenda Castro? (Entrevista de Sousa
com Laender de Castro, s/d., SOUSA, 2002, p. 140 e 141).
Em 1997, foi dado o encaminhamento da aprovação do loteamento, ficando a cargo de cada
associação o registro dos imóveis de cada associado. “E apenas em 19/06/1998 o loteamento do
Bairro Fazenda Castro foi, efetivamente, aprovado, tendo em vista a anuência prévia da SEPLAN
emitida, individualmente, para cada entidade em 20/04/1998.” (SOUSA, 2002, p.140).
Algumas lideranças das associações envolviam-se tanto com o processo que deixavam a família em
segundo plano. Gladis lembra que ficava na Fazenda Castro três, quatro dias e até uma semana
inteira para ajudar na ocupação – como se fazia no Novo Aarão Reis.
Cada associação era responsável pelo sorteio dos lotes para seus respectivos associados. Laender
de Castro, em entrevista, disse que já previa alguns percalços que poderiam acontecer: “e se
dependesse da diretoria ele ia por os primos, punha mesmo! Infelizmente, a maldade, o utilitarismo
ou a vivacidade desse povo é muito complicado. A diretoria colocaria os primos, os filhos, os irmãos,
os vizinhos, tudo nos lotes melhores. Mas não tenha dúvida que era isso!“.
113
Gladis, quando descreve o processo, logo aponta certo sucesso da porção da CEMCASA em relação
às demais associações. Segundo ela, a CEMCASA tinha a “grande vantagem” por ter, na época, o
apoio da igreja, por isso, era a associação mais desenvolvida comercialmente. Laender de Castro
também tem a mesma impressão que Gladis: “isso é tudo graças ao Padre Piggi. Ele levava mil,
duas mil pessoas lá pra Ribeirão das Neves pra fazer isso". Já as outras associações, FAVIFACO e
AMABEL, por não terem esse respaldo, eram organizações mais simples, menos desenvolvidas.
Mesmo assim, as áreas destinadas às três associações já têm seus projetos garantidos, como o
calçamento que abrangerá todo o bairro.
Gladis menciona que, atualmente, houve uma mudança drástica no valor do lote. Se na década de
1990 um lote poderia ser adquirido por R$240,00, hoje, há quem o venda por R$150.000,00. Talvez
o bairro esteja “valorizando” não só pelas especulações feitas por alguns, inclusive dentro das
associações (como será tratado adiante), mas, provavelmente, pelo processo de regularização que
está prestes a acontecer. “Em termos de comércio é só comércio bom” relata Gladis. Logo em
seguida comenta ter sido surpreendida por uma casa muito boa, a do Antônio Castro, corretor de
imóveis com quem conversamos na primeira visita ao Bairro Metropolitano.
Levantamento topográfico
Contratavam-se e remuneravam-se técnicos para executarem a análise topográfica - inclusive Carlos
Alberto, um conhecido de Laender de Castro. Laender relembra que o procedimento foi bem simples:
tomava-se nota das curvas de nível para fazer o projeto geométrico em seguida, não havendo um
estudo exaustivo das condições geomorfológicas do terreno. Então, o projeto de parcelamento foi
feito em conformidade com as condições naturais, ao contrário do Roma, por exemplo. Esse cuidado
que Laender de Castro teve foi observado por Gladis “A ideia de fazer o loteamento paralelo ao
terreno foi ideia do Laender de Castro”.
Ocupação da área de preservação e à margem do córrego
Na visita guiada por Gladis, ela menciona a tendência de invasão gradual das áreas verdes. Todas
as três áreas existentes no bairro começaram a ser suprimidas para dar lugar às novas moradias.
O açude de onde os moradores retiravam água para a construção, hoje encontra-se poluído:
114
É dele que é retirada a água para as obras em construção. Às margens dessa lagoa vê se [sic], ao longo do dia, inúmeras carroças sendo carregadas com tambores para
conduzir água para os moradores da parte mais elevada. Algumas pessoas furaram
cisternas nessa mesma área, mantendo-as a cadeado. A economia da água ensejou os
conflitos mais evidentes entre moradores. (SOUSA, 202, p. 164 e 165).
Ainda sobre o açude, Gladis comenta que “há quem crie peixe”.
Infraestrutura
Toda a obra de infraestrutura foi realizada em um período curto de um ano e meio. Primeiramente,
fez-se a distribuição de água e, em seguida, a rede de esgoto.
Mas nós fizemos muito trabalho lá. Nós mesmos, com as nossas forças abrimos as
ruas, fizemos toda a drenagem pluvial, e toda a parte de contenção de encostas.
Chegamos a fazer poços artesianos: um, dois, três, quatro... Cinco poços artesianos
aqui. Aqui fizemos uma grande caixa d'água no alto da montanha pra poder distribuir...
Mas, depois, graças a Deus, a COPASA chegou. E agora todo mundo tem água
encanada, mas é da COPASA. (BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
“Tudo foi feito com projeto”, diz Laender de Castro. Como o loteamento não havia sido, previamente,
aprovado, foi necessário recorrer a meios alternativos para implementar a abertura das vias.
Primeiramente, Laender de Castro acionou seu amigo para o empréstimo do maquinário para abrir
as ruas. Esse processo ocorria no período em que não havia possibilidade de fiscalização – das 18
horas da noite às 8 horas da manhã. Em seguida, Pe. Piggi organizou um mutirão de quase mil
pessoas para roçar o pasto e cavar a terra para dispor os dutos de água e de esgoto e, em seguida,
o cascalhamento das vias. (Figura 24 e Figura 25). A Figura 26 mostra a infraestrutura do bairro
atualmente que aparenta estar, de modo geral, bem encaminhada, no entanto, algumas porções
ainda não foram contempladas com esses serviços, como se vê na Figura 28.
Reuniões com os moradores
Laender de Castro lembra que se fazia “uma reunião com quatro mil pessoas. Na época não sabia
quem era candidato, aí o máximo que conseguia no comício dele era mil pessoas, nós todo dia
reuníamos quatro mil.” O arquiteto refere-se a esse processo como participativo, mas será que era
mesmo? Como envolver quatro mil pessoas num processo de decisão? Laender de Castro,
contratado pela associação, fazia o projeto urbano, o traçado viário e tentava explicar a importância
de se preservar as áreas verdes. Será que os moradores, realmente, entendiam?
115
Cooperativas
Apesar da insistência de Laender de Castro em dizer que foi um projeto participativo, o passar do
tempo revelou o contrário. Uma das evidências foram as tais cooperativas propostas (impostas) por
ele – de trabalho, industrial. A ideia em si era interessante, no entanto, os moradores não compraram
essa ideia, talvez por estarem envolvidos com questões pessoais, voltadas para a construção de sua
própria casa, como visto na fala do arquiteto a seguir:
A ânsia deles era fazer a casa, esqueceram a cooperativa de consumo, a horta
comunitária, etc.. O centro social e a cooperativa, uma fitoterápica, pra fazer chás, né?
[…]Tudo isso foi pensado e planejado, mas eles não pensaram nisso, e o filho único
deles era a casa. Mal, mal nós conseguimos segurar até que viesse a rua própria pra
eles poderem entrar. (LAENDER, mai/2013, entrevista).
Sobre o assunto, Gladis menciona que a ideia “não vingou não”. Ela entende que foi algo trazido por
Laender. No entanto, sua difusão foi um pouco barrada por alguns integrantes das associações, os
líderes “espírito de porco que liderava coisas na cabeça do pessoal, aí não fazia nada e acabava
atrapalhando”. Por fim, Laender comenta que os moradores "assenhorearam-se" da terra e
esqueceram tudo. Não quiseram saber mais dele nem do Piggi.
Corrupção interna e externa
A corrupção de agentes internos ao processo foi recorrente em todas as três associações. Isso não
só ocorria dentro da associação, como também fora – por parte dos moradores. No primeiro caso,
houve quem usufruísse da posição privilegiada dentro da associação (como a filha do ex-presidente)
e tirasse proveito da situação para benefício próprio. Alguns dos líderes entrevistados relacionam o
início dessa tendência com a saída do Pe. Piggi da CEMCASA. Segundo Cornélia de Souza, expresidente do CEMCASA, “a especulação virou desde quando o Pe. Piggi saiu, por volta de 2000.
Ele já saiu por causa disso, né? Por causa da tal das falcatruas”. Laender de Castro também
confirma a hipótese de Cornélia: “a tesoureira do Padre Piggi passou ele pra trás”. Em outra
conversa, Cornélia menciona que a decepção do padre foi tamanha que ele acabou tendo dois
derrames. Nessa ocasião, a mãe do Pe. Piggi o orientou a se afastar do movimento por um tempo. É
de se esperar que o padre não revele tantos detalhes sobre o assunto quando perguntado.
Pelos depoimentos obtidos, é possível observar pelo menos três tendências de corrupção. As duas
primeiras davam-se dentro da associação, principalmente, por alguém que gozava de uma posição
privilegiada. O “mau elemento” poderia surgir ali dentro, assumindo cargo de presidência ou
116
tesouraria (como a herdeira da FAVIFACO), por exemplo, e se uniria a outras pessoas,
internamente, à associação e/ou até mesmo com indivíduos externos, como moradores, integrantes
de outras associações e pessoas vinculadas a outras esferas de poder (municipal, por exemplo).
Já a terceira tendência partia do futuro morador que, no primeiro contato com a associação, se
passava de maltrapilho para ganhar um lote. Logo quando o ocupava, revelava uma posição
completamente oposta. A esse caso, Laender de Castro exemplifica:
Tinha até futuros moradores que se passavam de maltrapilhos para tirar vantagem. Ou
seja, havia falhas de ambos os lados. Olha, nesse meio tempo a gente foi muito
enganado, entendeu? Chegava um cara todo maltrapilho, de ônibus [risos], eu mesmo
presenciei isso várias vezes, pra comprar o terreno, pra comprar o lote dele. E contava
família pobre, paupérrima, salário paupérrimo, tudo declarado sem comprovante , né?
No dia que ele tinha o lote, que já era dele, chegava lá com o carro do último tipo, né? E
aí construía uma mansão no meio do conjunto. [...] Normalmente eles compravam não
era um lote não, comprava era cinco porque tinha que ter um pro irmão, um pra mãe,
outro dá pro primo... Na realidade era especulação imobiliária. (LAENDER DE CASTRO,
mai/2013, entrevista).
Sobre as primeiras duas tendências, Gladis se lembra de um episódio em que uma das lideranças
fez “mil e uma coisas erradas [...] Vendeu lotes para duas, três pessoas e está lá até hoje vivendo de
especulação imobiliária”. Ela pondera o fato e reconhece a perpetuação desse tipo de prática dentro
de outras associações envolvidas na Fazenda Castro. Havia, inclusive, agentes externos que se
beneficiavam com as falcatruas, como a esposa de um vereador do município e até mesmo
funcionários da Prefeitura de Neves.
Havia na associação CEMCASA, por exemplo, uma figura bem polêmica, Luzia (tesoureira da
associação), que se juntava a outras pessoas e até mesmo a outras associações para se enriquecer
à custa da situação. As consequências disso foram as mais diversas. Cornélia, que assumiu a
presidência da CEMCASA logo depois de Pe. Piggi ter deixado o cargo, foi alvo de inúmeras
ameaças por parte dos moradores do Metropolitano devido às atuações de Luzia. Há uns três anos,
Cornélia teve que sair às pressas de lá. Embora Cornélia não estivesse envolvida nesses
procedimentos ilícitos, tentou permanecer ali sendo, por fim, forçada a se desligar da associação. No
entanto continua lutando pela causa dos sem-casa de outras maneiras
Analisando a situação mais a fundo, Cornélia acredita que era conveniente para Luzia tê-la como
presidente da associação, pois, no final, toda a responsabilidade das coisas feitas por Luíza cairia
sobre ela. Mesmo não oficialmente, ela permaneceu como tesoureira da CEMCASA por muitos anos.
A isso, Cornélia comenta:
Ela [Luzia] vendia um lote e quando dava um pepino, ela falava ‘a presidente! a
presidente, você sabe como ela é! a presidente!’. Aí quando eles iam lá na Central
117
(Central Metropolitana dos Sem-Casa, CEMCASA), né? Quantas vezes me taxaram de
ladrona. E eu falava “Luzia, não faz isso não!” né? “Isso é terrível para fazer com o
associado. Porque ela criou uma bola de neve, né? Pegava um lote aqui...
Cornélia via-se impotente para impedir a situação. Luzia parecia intimidá-la a tal ponto de Cornélia
não conseguir denunciá-la:
Eu via ela fazer tudo. E eu só não reagia porque não tinha condição financeira para,
porque o dinheiro ficava na mão dela. Porque o dinheiro... o poder é o dinheiro. Sem
dinheiro você não faz nada. Aí eu não tinha como pagar advogado para..., né? Estava
tudo no nome dela. Eu não sabia nem como era a conta do banco que ela trocou de
banco várias vezes só para eu não descobrir. Porque ela ia fazendo as coisas, mas eu
descobria. Cem por cento eu descobria. Entendeu? Mas não adiantava. Eu ia fazer uma
ação contra ela? O filho dela é advogado – o filho dela e ela. Os associados não
ajudavam. [...] e eu corria um grande risco ali dentro. Um risco enorme! (SOUZA,
ago/2013, entrevista).
Uma das estratégias que Luzia utilizava era de enganar o mesmo morador e fazê-lo pagar mais de
uma vez pelo lote:
Então ela pegava, a gente ia fazer um trabalho lá para os associados, ela pegava lá o
boleto. [e Cornélia dizia:] “Luzia, não faz isso não, não faz isso não, pelo amor de
Deus!” Porque ela [a pessoa] tinha que pagar pelo boleto de novo. Eu não achava justo.
[...] Aí ela falava comigo “Que justo o quê? Quer ser justiceira, não dá para você
consertar o mundo”. Aí eu [Cornélia] falava “Não vou consertar, mas não quero
atrapalhar também não! (SOUZA, ago/2013, entrevista).
Por outro lado, Laender de Castro tenta justificar essa tendência de beneficiamentos individuais
dentro das associações na seguinte explanação:
O conselho era liderado, mas tá falando do tesoureiro, aí vem o grande problema do
tesoureiro, o tesoureiro, normalmente, era uma pessoa honesta, séria, este dava pra ser
o tesoureiro. Ele tava acostumado a ganhar um salário mínimo ou dois salários mínimos
no máximo. De repente ele tava recebendo milhões por mês, não sabia o que fazer com
esse dinheiro. […] Aí, comprava carro pra associação, mas no fundo era pra ele, largava
a mulher[…]. (LAENDER DE CASTRO, mai/2013, entrevista).
Embora a atuação de Luzia se estendesse às demais associações, mesmo assim não era
denunciada. Cornélia conta que:
Depois que ela [Luzia] morreu, aí o povo quando começou a me procurar, aí eu falava
não, eu sei que sou responsável porque eu era presidente, eu era presidente era três
meses quando ela morreu que eu tinha abandonado meu cargo, depois de quatorze anos.
Tinha três meses! E foi a minha valência!
Já Gladis, presidente da AMABEL, posicionou-se da seguinte forma: “Aí eu falava assim: Você
comprou o lote na mão de quem? [aí a pessoa respondia] Na mão da Luzia. Então você vai lá na
delegacia e faz a denuncia contra a Luzia. Era a orientação que eu dava para o pessoal.”
Até hoje, esse ainda é um problema recorrente por lá. O entrevistado Antônio Castro, corretor e
morador do bairro, fazia uma espécie de parceria com Luzia - junção entre um morador mal
118
intencionado com a tesoureira de associação. Depois da morte de Luzia, Antônio assumiu o
negócio. Cornélia, Vanda e Denise da CEMCASA foram as primeiras corretoras no local. Um tio de
Antônio também atuava como corretor. Foi assim que Antônio conseguiu se infiltrar no bairro. Gladis
acredita que o fato de ele residir ali contribua para dar continuidade ao ciclo de enriquecimento.
Desde quando Luzia era viva, Antônio Castro33 e Luzia eram responsáveis pela venda dos lotes.
Depois de fechada a transação, levavam os documentos para Cornélia assinar, mas ela não o fazia.
Nessa época, Antônio estava na AMABEL, mas logo o mandaram embora. Parecia estar ali infiltrado,
só para “pegar os lotes para ir vendendo.” Depois que foi expulso da AMABEL, foi para a CEMCASA
e juntou-se a Luzia. Desde 2007, é presidente da Associação do Bairro Metropolitano (ASMOBAM) –
associação fundada em 1998/99 por Salomé e Cornélia, antigas associadas da CEMCASA. Ao que
tudo indica, continua se enriquecendo à custa dos moradores.
Regularização
Quando a prefeitura viu aquilo lá - porque o cara se mudava do aluguel para uma
barraca de lona, aí não pagava mais aluguel. Assim podia comprar o material, chamava
um trabalhador pra trabalhar pra ele... Quando a prefeitura viu isso mandou espalhar um
folheto pra todo mundo: proibido construir, multa de mil reais por dia. Mas deu uma
mancada, porque para nós foi uma piada. Então todo mundo continuou a construir, e
eles não puderam fazer nada porque eram três mil famílias construindo. Multa? Como é
que você vai cobrar mil reais por dia dessa gente? Aí, ficou por isso mesmo.
(BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
Mais à frente, o prefeito municipal Ailton de Oliveira, apoiou o andamento do processo, assinando um
termo de concordância provisório, que permitiu o registro do terreno no cartório:
Com esse termo de concordância do prefeito nós pudemos registrar o terreninho em
cartório. E começou as pessoas que quisessem ir lá, e recebia a escritura, recebia o
registro. A Central Metropolitana (dos Sem-Casa) dava a minuta, assinada pela
presidente, [e a pessoa] chegava lá no cartório de Neves e registrava; porque não tinha
ainda a lei de uso do solo estabelecida. Demorou até 2009-2010 a aprovação da lei de
uso do solo de Neves. [...] Tá vendo? Ailton de Oliveira, prefeito municipal. Essa aqui é
a documentação que ele deixou pra nós podermos registrar em cartório o loteamento.
(BERNAREGGI, mai/2013, entrevista).
Numa conversa com um dos funcionários da Superintendência de Aprovação da Prefeitura de
Ribeirão das Neves, fica evidente a surpresa tamanha que esse arranjo repercutiu ali dentro. Ele
Em entrevista Antônio Castro conta sua trajetória como corretor de imóveis e loteador popular privado. Ele tem se
aproveitado da carência de moradia de alguns e vendido lotes numa suposta área antigamente pertencente à família de
Antônio Castro. Esse fato revela que a exploração acontece até mesmo entre os próprios pobres. (Ver José Carlos
Laender de Castro, Gladis F. Oliveira, Antônio Castro entrevistados em 30 de maio de 2013 por Silke Kapp, Rebekah
Campos e Tiago Lourenço).
33
119
relata que recebeu moradores do Metropolitano que buscavam regularizar a situação deles no bairro.
Um tinha o lote 5A e outro 5B. No entanto, essa informação é incompatível com aquela
disponibilizada à prefeitura, ou seja, só existe lote um cinco. Além dessa questão, a infraestrutura
não foi compatível com os parâmetros estipulados pela prefeitura. Um exemplo é que algumas vias
eram para ter 11 metros de largura, mas in loco é 8 metros. Outro exemplo dessa irregularidade foi a
incompatibilidade entre o projeto de infraestrutura com a situação real: aos olhos da prefeitura era
para 1800 famílias, mas na realidade a demanda era para o dobro de pessoas.
Para efeitos de organização, Gladis já deu andamento no processo de recadastramento das famílias,
iniciado em 2006. A convocatória foi feita por meio de jornais populares voltados ao público de baixa
renda, estratégia essa também adotada pela FAVIFACO.
Toninho da Superintendência de Regulação do Solo de Ribeirão das Neves menciona que o
loteamento já fora aprovado em 1998, mas as escrituras dos lotes não haviam sido emitidos. A
prefeitura captou recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) por meio do
Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) a fim de regularizar a situação. O serviço de
regularização e urbanização será terceirizado. Ficará a cargo da empresa NMC Projetos e
Consultoria Ltda. a execução do levantamento nas três instâncias: arquitetônica, jurídica e
topográfica. O serviço se iniciará a partir do fim do mês de outubro desse ano (2013).
Aqui, tudo isso aqui são 4 mil lotes. E hoje quem vai lá fica admirado, porque a nova
administração, além de fazer a lei de uso do solo - contemplando isso como habitação
de baixa renda, no conjunto, reconhecendo isso na lei de uso do solo com parte
integrante; agora está fazendo a pavimentação, toda com paviés [sic], aqueles blocos
quadrados de concreto que são permeáveis à água, ecologicamente corretos. Estão
fazendo todos os meios fios e tal. Quem vai lá hoje... E aqui está em obras, porque está
fazendo... Aqui não é lote não. Aqui são terrenos onde os "caras" plantam. Só que
agora fizeram a barragem aqui, isso aqui virou uma grande lagoa. Com os patos, os
peixes. Aqui já tem outra lagoa. E aqui é um brejo que é preservado como brejo, que é
onde a fazenda respira praticamente. O brejo tem um valor ecológico muito grande.
120
Agora, nós estamos animados com essa parte aí, só que não é mais construir, comprar
terra, construir; mas é modificar a lei do uso do solo. Essas são coisas que nem no
primeiro mundo existe. No sul de Milão, na Itália, habitação popular de baixa renda é
coisa raríssima. Um tanto de conjunto, só de gente de aluguel. Não digo pobres, mas
existe um tanto de aluguel, que é uma coisa impressionante. (BERNAREGGI, mai/2013,
entrevista).
Considerações
Dos loteamentos analisados, o Metropolitano é o mais bem sucedido em termos de autogestão e
autonomia. Apesar dos diversos percalços enfrentados, em dois anos, 4000 famílias de sem-casa
foram beneficiadas com essa iniciativa. Os diversos atributos do Metropolitano diferem tanto do
loteamento do Bairro Felicidade quanto do Novo Aarão Reis. Esses últimos tenderam a uma
autogestão consentida pelo Poder Público. No entanto, o Metropolitano se assemelha ao Roma,
sobretudo, pelo fato de ambos não receberem qualquer apoio do Poder Público, por serem feitos em
épocas próximas e no mesmo município. Diferenciam-se, porém, na organização interna da
associação envolvida e no grau de resistência legal sofrida para sua execução (como será visto no
capítulo a seguir).
Os entrevistados conseguem apresentar, detalhadamente, as dificuldades enfrentadas durante o
processo. Não se pode negar que os vários contatos feitos por Laender de Castro e por Pe. Piggi, ao
longo de suas vidas, foram essenciais para o desenrolar do processo, a começar pela aquisição da
gleba. É possível que ainda existam pessoas como o Sandoval de Castro ou o topógrafo contratado
que se prontifiquem a colaborar com esse tipo de iniciativa.
Ainda assim, desconfio que a autogestão, nesse caso, não tenha sido plena – quando os moradores
se envolvem conscientemente e criticamente de todo o processo de decisão. A impressão passada
pelos entrevistados é que as decisões não são representativas. Essas parecem partir das próprias
ideias das lideranças, sem que haja uma contribuição dos próprios moradores.
No que se refere à comunicação e ao processo de decisão conjunta (morador e lideranças da
associação) parece ser bem vaga. As lideranças dão a entender que os moradores, de fato,
participaram de todo o processo de decisão nas costumeiras reuniões em que se reuniam pelo
menos 4.000 moradores. Como discutir alguma coisa em uma reunião desse porte? Quem ousaria
contrariar as lideranças no meio de tantas pessoas? É possível que as decisões se resumissem em
meras votações.
121
Outro ponto é a relação arquiteto-morador. Laender de Castro insiste, em diversas ocasiões, que
“falava a língua do povo”. Tanto é que, depois de “fazê-los entender” a importância de preservar as
áreas verdes do bairro, logo foram invadidas. Outro exemplo foi a insistência do arquiteto em
implementar as cooperativas que seriam válidas se não passasse de uma projeção de seu ideal
referente à população pobre – ou seja, as ideias alternativas idealizadas e trazidas pelos técnicos
devem ser bem sucedidas quando aplicadas à população de baixa renda. Esses dois exemplos
revelam o jeito característico dos arquitetos se apegarem à autoria do projeto: essa ideia
escrupulosa de que o arquiteto é quem sabe o que é melhor e, por isso, o projeto é uma obra prima,
intocável, da qual os clientes/moradores devem se manter a distância e se submeter às imposições
daquele profissional.
Uma vez que o Metropolitano não recebeu apoio do Poder Público, todo o processo de infraestrutura
tornou-se mais difícil, talvez um pouco mais do que o ocorrido no Felicidade. Dentre os quatro
loteamentos, esse é o primeiro em que é o morador é explorado ao extremo. Seja nas obras de
infraestrutura do bairro (abertura de vias, cascalhamento, abertura de valas para encanamento, etc.);
seja na construção das casas (autoconstrução) ou seja no financiamento dos custos (por meio do
autofinanciamento).
A conversa com Antônio Castro, morador do bairro foi um tanto curiosa. Ele, por meio de seu
discurso, gaba-se de sua “boa pessoa”para justificar o enriquecimento que vem maquinando à custa
de pessoas pobres como ele. Isso reforça que a ideia do bem coletivo, da ajuda mútua não são tão
naturais a essa população. Sempre haverá alguém que se aproveitará da situação de miséria para
se beneficiar.
Observa-se, também, que o loteamento foi feito em meio a certo grau de clandestinidade.
Simultaneamente, enquanto o loteamento era traçado e ocupado, a associação buscava que o
projeto fosse aprovado. Outra estratégia “ilegal” foi a informação enganosa fornecida ao Poder
Público, ao apresentar a planta do bairro para aprovação, que era incompatível com a realidade.
O bairro também foi um exemplo da estratégia que surgiu depois da LUOS de Belo Horizonte de
1996 utilizada, até hoje, pelo padre: agir em massa e em lugares distantes. É difícil concluir qual a
melhor estratégia, mas, sem dúvida, um movimento massivo pode melhor pressionar o Poder Público
haja vista as conquistas alcançadas pelo movimento como: o abastecimento de rede de esgoto e
água; a disponibilização de professores para a escola do bairro e o processo de regularização do
122
loteamento nesse ano (2013). Isso mostra o sucesso do empreendimento, apesar de todos os seus
percalços.
123
6 ROMA
124
Figura 30 ─ Localização do loteamento Roma
Situado próximo à BR-040 e vizinho aos municípios de Contagem e Belo Horizonte.
Fonte: Prodabel, 2008 (Esquerda); Google Earth, 2013 (Direita), com alterações próprias, 2013
125
Figura 31 ─ Localização San Marino e Roma – vista aérea
Fonte: MOM, 2012
126
Figura 32 ─ Localização do San Marino e Roma – vista panorâmica
Fonte: MOM, 2012
127
Figura 33 ─ Projeto Geométrico do Bairro Roma (2001)
Figura 34 ─ Projeto Inicial do parcelamento do Roma
Fonte: CEMCASA, 2001
Concedido por Fernando Raimundo.
Segundo ele, as lideranças da associação alteraram, recentemente, o projeto, mas ninguém além deles tem acesso a esse.
Fonte: CEMCASA, 2001
128
Figura 35 ─ Zoneamento referente à Lei complementar 037/2006 (Bairro Roma)
Atualizado em 2012.
Fonte: Prodabel, 2008 (Esquerda); Google Earth, 2013 (Direita), com alterações próprias, 2013
129
Figura 36 ─ Evolução da ocupação do Bairro Roma (2003 a 2011)
Pode ser observado que a ocupação aconteceu entre 2009 e 2011. Cornélia assegura que tenha sido em 2010.
De qualquer maneira, houve um longo período de quase doze anos entre a compra do terreno (1998/99) e sua ocupação (2010).
Fonte: Google Earth, 2003 a 2013
130
Figura 37 ─ Evolução da ocupação do Bairro Roma (2011 a 2013)
Depois de quase três anos de ocupação, observa-se que a área remanescente permaneceu, praticamente, intacta.
O mesmo não pode ser dito quanto às demais porções verdes do loteamento que só tendem a desaparecer.
Fonte: Google Earth, 2011 e 2013
131
Figura 38 ─ Comparação do projeto e da situação real da ocupação do Bairro Roma
Fonte: CEMCASA, s/d; Google Earth, 2013, alterações próprias em 2013
132
Figura 39 ─ Simulação esquemática do caminho das águas (Bairro Roma)
Fonte: CEMCASA, s/d; Google Earth, 2013, alterações próprias em 2013
133
Figura 40 ─ Condições precárias das casas no Bairro Roma, 2013
Fonte: MOM, 2012
134
Figura 41 ─ Caracterização do espaço urbano do Roma
Fonte: MOM, 2012
135
O Bairro Roma é um loteamento periférico irregular, situado na Fazenda das Abóboras do Tomé (ou
apenas, Fazenda das Abóboras) em Ribeirão das Neves, próximo à BR-040 (Figura 30). O
loteamento não é legalmente reconhecido como um bairro, apesar de os moradores referirem a ele
assim. Talvez seja por essa razão que Pe. Piggi prefere referenciá-lo como Fazenda das Abóboras.
Neste trabalho, o loteamento será chamado de Bairro Roma, para alinhamento com a tratativa dada
pelos moradores.
Fazendo uma análise mais profunda, foi constatado que, na realidade, a Fazenda das Abóboras do
Tomé não é sinônimo do Bairro Roma. Segundo o relato dos moradores, ela foi fracionada em duas
porções. A primeira porção, comprada, resultou no Bairro San Marino, e o Roma, feito em seguida,
na porção remanescente. O San Marino, ao contrario do Roma, foi feito por loteador popular privado
(Figura 31 e Figura 32).
O Roma é o mais recente dos nove loteamentos. Ele surgiu logo depois do Bairro Metropolitano no
final da década de 1990 (entre 1997 e 1999). Apesar de ter atendido muitas famílias, ainda havia
uma quantidade significativa de famílias à espera de uma nova ação do CEMCASA. O Roma, então,
foi concebido por parte dos membros da associação CEMCASA, ainda com a rápida participação do
Pe. Piggi, com o intuito de contemplar 600 famílias:
Primeiro nós compramos a fazenda Castro, onde hoje é o Bairro Metropolitano, que são
quatro mil lotes. E essa deu um pouco de problema e tal, mas essa não foi tão grave
assim não. Nós tínhamos mais 600 famílias sem nada, então compramos essa outra
fazenda aí, que cabia 600 famílias. (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista).
Aproximadamente, no mesmo ano em que a CEMCASA iniciou a ocupação do Roma, já havia um
loteador popular privado iniciado, realizado por CONTRIA (Construções e Consultoria Ltda.), um
empreendimento na outra porção da Fazenda das Abóboras que acabou com um desfecho diferente
ao San Marino. Com a propriedade em mãos, fez-se o loteamento vizinho ao Roma, o San Marino,
aprovado em setembro de 1999 com um número de 1910 lotes (de aproximadamente 250 m² cada).
O Roma, como sabemos, não teve a mesma “sorte” que o San Marino, pois, até hoje não foi
aprovado. Pe. Piggi lembra, precisamente, que o Roma “foi a última fatia” dessa fazenda:
Essa [parte da] Fazenda das Abóboras, a turma foi embargada pela Prefeitura de
Neves, foi proibido e obrigado a vender a metade para fazer um grande
empreendimento industrial [a PERFA] que está sendo feito lá. O resto que é mais na
mata, eles continuam querendo construir, deram, embargaram, fizeram um processo por
violação da lei do solo para preservação ambiental e os coordenadores lá ficaram com
prisão preventiva.[...]. Apesar que o pessoal continua a fazer suas casinhas lá.
(BERNAREGGI, nov/2012, entrevista).
136
Ao contrário dos outros três loteamentos analisados anteriormente, este não tem qualquer previsão de
ser aprovado. O loteamento permanece em situação irregular e precária (sem qualquer tipo de
infraestrutura básica) mesmo depois de quase quinze anos de existência. É provável que assim
persista por mais tempo. Antes mesmo de ser concebido, já havia um projeto que previa a passagem
de um rodoanel34, exatamente, na área compreendida pelo Roma. O fato não era surpresa para
ninguém, com exceção dos moradores, como será tratado posteriormente. A proprietária legal do Bairro
Roma continua sendo a Central Metropolitana dos Sem-Casa (CEMCASA). Como será tratado adiante,
funcionários de Prefeitura de Neves apontam que a primeira e única prancha entregue a eles em todos
esses anos refere-se ao levantamento topográfico de 2001 (Figura 33). Depois disso, segundo eles,
nunca mais ninguém apareceu. O projeto inicial do loteamento ocupava uma área de 77 mil metros
quadrados, distribuídos em 12 quadras, 295 lotes, 2 praças, área verde e institucional (Figura 34).
Regulação do solo
Até o início de 2000, não havia ainda em Ribeirão das Neves nenhum tipo de rigidez legal quanto ao
parcelamento do solo. Talvez o mais forte dos instrumentos apareceu a partir das exigências
estabelecidas pelo Estatuto da Cidade quando, então, os municípios com até 20.000 habitantes
foram pressionados a fazer o Plano Diretor. O de Ribeirão das Neves surgiu apenas em 2006. Esse
Plano Diretor, por meio da Lei Complementar de Nº 37/2006, dispõe sobre normas de uso e
ocupação do solo para o município e classifica a área compreendida pelo Roma como ZEU 6 (Zona
de Expansão Urbana), sendo essa referida na Seção III do Art. 17 f). (Figura 35):
Área destinada exclusivamente a atividades econômicas de grande porte para
indústrias, depósitos, comércio atacadista, serviços como oficinas, transportadoras e
similares, cujo parcelamento deverá permitir módulos com, no mínimo, 5.000m², sendo
proibido o desmembramento dos lotes localizados nesta zona. (Prefeitura de Ribeirão
das Neves, 2006).
Pe. Piggi acredita que esse tipo de zoneamento específico foi implementado no Roma
propositalmente. Ele disse que desde quando apresentou à prefeitura do município a intenção de
ocupar aquele terreno, a Prefeitura de Neves embargou o processo para logo, em 2006, transformá-
Funcionários da Superintendência de Regulação Urbana datam o projeto do rodoanel, de autoria do Departamento
Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), de 1983/84. Desde então, poucas alterações foram feitas, a última há ,
aproximadamente, cinco anos. Não há qualquer previsão de quando será implementado.
34
137
la em área industrial. Dessa maneira, o Roma foi obrigado a ceder uma parte do loteamento para a
PERFA – que até hoje não tem nada construído. Coincidentemente ou não, essa porção é,
exatamente, uma das que não será afetada pelas obras do rodoanel, caso venha a ser
implementado.
Aquisição da gleba
Ainda há controvérsias quanto ao procedimento para aquisição da gleba. Um dos entrevistados,
Fernando Raimundo, ouviu dizer que foi doada pela igreja, “por um padre”. Enquanto Cornélia diz
que foi comprada. De qualquer maneira, Cornélia garante que, até hoje, a propriedade da gleba está
no nome da associação CEMCASA.
Ocupação
Imprecisões sobre o processo de formação do loteamento acontecem desde o princípio dos relatos
emitidos por cada um dos entrevistados. Quando perguntados sobre a data que associam à
formação do bairro, todos – Gladis F. Oliveira, Cornélia e Pe. Piggi – referem-se a data final da
ocupação inicial do Bairro Metropolitano, por volta de 1998/99. O padre parece confuso quanto
essas datas, com foi comentado no item 3.
138
Loteamentos associativos do padre Piggi.
No entanto, essas informações são confrontadas com as imagens aéreas disponibilizadas pelo
Google Earth 35. As investigações partiram da análise da ocupação indicada por essas imagens:
34F
2003, 2006, 2007, 2008, 2009, 2011 e 2013 (Figura 36 e
Figura 37). Curiosamente, até o ano 2009 não existia nenhum sinal de ocupação do Roma, enquanto
o San Marino já estava mais desenvolvido – imagens de 2003 já mostram esse fato. No entanto, do
ano 2009 ao 2011 acontece uma mudança do local. Pode-se dizer que, no período de dois anos, o
Roma não só tinha seu parcelamento implementado parcialmente, tomando-se com área referência
aquela prevista pelo Projeto Geométrico mencionado anteriormente, como estava com uma
ocupação bem desenvolvida. A antiga porção “pertencente” ao Roma fora cedida e, nesse ínterim de
ocupação do bairro, a área da PERFA já havia sido completamente desmatada. Apenas essas
ocupações simultâneas sugerem várias suposições. Seria um tanto ingênuo se não se pensasse em
uma possível relação entre as obras do loteamento e dá área industrial. Será que, nesse intervalo de
quase doze anos (entre a compra do terreno e da ocupação), houve algum acordo entre as
lideranças desses dois empreendimentos? Depois da descoberta, a procedência das informações
obtidas foi averiguada com Cornélia. Surpreendentemente, ela confirma essa ocupação tardia do
loteamento e, ainda, diz que é datada de 2010.
Nas vistas aéreas de 2011 e 2013, é possível ver que a ocupação mudou consideravelmente no
pequeno intervalo de dois anos. Na porção mais baixa do loteamento, a área verde foi suprimida pela
implementação gradual do restante das quadras e das moradias.
De todo modo, todo o processo de formação do Roma – aquisição e ocupação – foi estimulada pela
Central Metropolitana dos Sem-Casa (CEMCASA), com uma participação ínfima do Pe. Piggi, já que
se encontrava envolvido com os problemas da Fazenda Dom Orione (ver item 3.2). Ainda que o
padre não reconheça, alguns dos entrevistados associam o recuo de Piggi com o frequente problema
de corrupção interna, somado à sua debilidade de saúde. As principais lideranças da associação
foram Valéria, Luzia e Manuel, lideranças que passaram a assumir, até mesmo a atuar de má fé,
Pelo menos para a área onde se localiza o bairro em questão, o acervo é constituído de imagens desde 2002, no
entanto, os registros não são feitos anualmente.
35
139
como será falado adiante. A proposta do loteamento fora projetada por um escritório indicado por
Laender de Castro.
Na intenção de obter informações sobre esse projeto, os próprios funcionários da prefeitura alegam
nunca terem recebido tal projeto. A única prancha apresentada à Prefeitura de Neves em 2001
correspondia a um levantamento topográfico – o projeto geométrico -, que ficou arquivado ali por
quase dez anos até o advento do Plano Diretor (2006) que impossibilitou a implementação do
mesmo. Aparentemente, o padre e outros membros da associação foram pegos de surpresa, pois
ninguém entendia o que estava acontecendo. Mais detalhes sobre a situação pode ser constatado na
fala de Pe. Piggi a seguir:
Então o prefeito de Neves segurou o nosso pedido de aprovação do loteamento por dez
anos. Mudava prefeito, e um passava o recado pro outro, pra não... pra esperar a Lei do
Uso do Solo ser definida em Neves. Definiu a Lei do Uso do Solo, imediatamente,
entrou com mandado de segurança em cima dos pobre [sic] coitados que estavam
fazendo as casinhas deles lá. (BERNAREGGI, nov/2012, entrevista).
Em uma conversa com Cornélia, ex-presidente da CEMCASA, ela comenta que os líderes não
estavam nenhum pouco desavisados quanto à possível reprovação do loteamento pela prefeitura.
Cabe, aqui, fazer uma distinção importante entre os grupos envolvidos. Como já foi dito no item
anterior (sobre o Metropolitano), havia desentendimentos, internamente, à associação CEMCASA. O
principal motivo foi o fato de alguns se aproveitarem de suas posições para lucrarem,
desenfreadamente, à custa dos moradores. A CEMCASA não escapou desse tipo de aproveitadores.
Logo, por desavenças ideológicos e morais, o grupo acabaria se subdividindo, ainda que não
oficialmente, entre os que tinham a real intenção de ajudar os moradores e aqueles que se
aproveitavam deles. Assim, Cornélia se lembra de que o Roma foi um divisor de águas. Cornélia, por
assim dizer, fazia parte do primeiro subgrupo, já Valéria e Manuel faziam parte do segundo . Luzia
oscilou entre os dois grupos, mas suas ações evidenciavam sua afinidade com o estilo do segundo
subgrupo. Essa posição dobre sugere que nada mais era que uma estratégia para continuar atuando
e se enriquecendo em ambos os loteamentos. O outro grupo passou, então, a ser formado por
Valéria, antiga presidente da CEMCASA, e Manuel que também fazia parte dessa associação. A
partir do momento em que Cornélia se recusou a apoiar o desbravamento do Roma, essa facção
passou a ser, então, declarada.
Ela recorda, ainda, que o projeto do Roma seria “um espelho que refletisse a Fazenda Castro” e fora
comprado um pouco antes do Pe. Piggi sair da CEMCASA. “A Valéria mais o Manuel invadiram,
140
ocupou, né? Porque o terreno era deles – e a Valéria desembestou a vender lote.” Gladis F. Oliveira,
presidente da AMABEL, desconfia que filhos da Luzia tenham lotes, não só no Metropolitano mas
também no Roma.
Na realidade, Cornélia, inicialmente, desconhecia o motivo pelo qual a prefeitura não aprovava o
loteamento. Ninguém na associação tinha uma resposta (ou talvez não quisessem se manifestar a
respeito). Diante disso, ela não viu outro meio a não ser ela própria tomar a iniciativa e desvendar,
em 2001, esse grande mistério. Nesse mesmo ano ela entrou em contato com Secretaria do Meio
Ambiente de Ribeirão das Neves e com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes
(DNIT) e notificou a todos os envolvidos no Roma que já era previsto a execução de um rodoanel
que atravessaria o bairro. Hoje se sabe que a previsão não passou de um projeto. Com isso, só será
permitida a ocupação à 15 metros de distância de cada lado do rodoanel. Cornélia relata que passou
essa informação a Valéria que, por sua vez, seguiu a orientação e selecionou seus lotes respeitando
essa distância.
Não só a associação foi notificada, mas também a própria PERFA, como visto no depoimento de
Cornélia:
Quando foi comprar a parte da frente, quem comprou [do Roma, próximo à BR 040] já
sabia que ia passar o rodoanel já. Porque, inclusive, ele comprou afastado da... porque
o rodoanel, ele passa no meio, aí depois ele faz aquele bico. Você olha no croqui,[...] sai
do lado do Liberdade[...]. Vai ser um rodoanel ali, na 040, né? Ali vai ter um rodoanel.
Então ele pega no final e faz um bico, atrás da fazenda. Só que 100 metros de cada
lado não pode construir. Então o quê que o governo federal fez? ‘Vocês não construam
agora em lugar nenhum.’ É tanto que a Valeria pegou um canto da fazenda. Ela não
pegou o meio, ela pegou um canto. Porque eu dei essa informação para ela. Ela brigou,
brigou, brigou e falou que era mentira e tal, mas quando ela foi ocupar, eles pegaram
um canto. Agora não sei – que seria a sobra. Porque na beirada do rodoanel, depois
que, futuramente, daqui a uns vinte anos, vai ter que tirar, indenizar, né? (SOUZA,
ago/2013, entrevista).
Apesar das evidências em mãos, Cornélia não conseguiu impedir que o grupo de Valéria desse
continuidade ao plano que tinham em mente. Chegaram até a acusá-la de falsificar provas. Muito
além disso, Valéria sequer notificou os futuros moradores sobre a descoberta, afinal de contas, era
sua grande chance de se enriquecer à custa deles. O discurso de Cornélia dá margem a mais uma
hipótese. A gleba tornou-se propriedade do CEMCASA em 2001, mesmo ano em que Cornélia diz
desconhecer as peculiaridades do embargo. Segundo ela, foi pega de surpresa. Ora, se a
associação já estava com um grupo mal intencionado (o de Valéria) é bem provável que esse tenha
adquirido a propriedade às escondidas (ao menos de Cornélia) ou é possível, até mesmo, que Pe.
141
Piggi tenha sido persuadido por esse mesmo grupo a apoiar a nova frente de ação. Quanto ao Pe.
Piggi, não seria de se estranhar que ele fosse induzido com facilidade. Uma das lideranças comenta
que o problema do padre é acreditar demais nas pessoas e, obviamente, há quem se aproveite
disso.
Quanto ao andamento da questão, Cornélia acredita que o processo será longo. Conforme as
informações por ela coletadas, não há previsão de indenização para os moradores, mas sim para a
própria associação. Ela explica a seguir:
Vai ser um rolo! Sabe por quê? Porque para indenizar, a diretoria da central tem que
estar organizada. E para organizar, tem que buscar os núcleos dos coordenadores. Foi
essa a informação que eu tive. O conselho que eu tive. Tem que juntar os
coordenadores [...] O governo federal vai indenizar a Central (CEMCASA), a Central, a
diretoria. Então ali [Roma] é uma confusão. Eu não tenho boa lembrança dali não e
aquilo ali não vai resolver tão cedo. Quando o rodoanel construir... (SOUZA, ago/2013,
entrevista).
O mandado de segurança impetrado contra os moradores ocorreu na gestão da associação (a
mesma desde 1999) da CEMCASA, sendo Valéria e Antônio, respectivamente, presidente e
coordenador, que receberam o mandado de prisão. Fato esse que os levou a receber intervenção
jurídica da PUC para apaziguar a situação.
Nós tiramos, pedi a PUC para nos ajudar - a Assistência Jurídica da PUC - para ir lá
obrigar o juiz para retirar essa prisão preventiva e deixar o processo correr de for ma
mais, vamos dizer assim, jurídica. No entanto, eles tinham entrado com o pedido de
aprovação do projeto, 10 anos antes que a lei de uso do solo fosse aprovada em Minas.
Então eles engavetaram por 10 anos, depois de 10 anos vieram com esta novidade que
era contrária à Lei de Uso [e Ocupação] do Solo. Isso foi há 2 anos atrás. [...] eles
continuam fazendo suas casinhas lá, com muita dificuldade, porém o processo contra
eles na Prefeitura de Neves. Estão com o processo contra os diretores. (BERNAREGGI,
nov/2012, entrevista).
Apesar de tudo, Cornélia já deu andamento nas documentações sem apoio dos demais envolvidos e
acredita que a associação já tenha chegado ao seu fim:
A Central já acabou, né? Quem fala que ela existe, é mentira. Acabou! Porque a
Prefeitura de Ribeirão das Neves mandou um telefone para mim, para eu apresentar
toda a documentação [naquela época]. Aí fiquei desorientada, pedi para alguns
companheiros para me ajudar. Aí eles falaram “você vai. Abre o jogo!”. Aí eu fui. Tive
que ir sozinha. Ninguém quis ir comigo. (SOUZA, ago/2013, entrevista).
142
Definição dos papéis
Duas associações externas atuaram ali: a dos CEMCASA, na fase inicial e, em seguida, a CEABRA
– ao que tudo indica substituiu a primeira. Inicialmente, a primeira associação, quando Pe. Piggi
estava envolvido, aparentava ter a intenção de dar continuidade à lógica seguida no Bairro
Metropolitano – oferecer um local para que os sem-casa pudessem se instalar. Essas associações
seriam responsáveis pela venda/doação, sorteio dos lotes, controle e manutenção do loteamento.
Ainda não é muito clara a relação existente entre as associações CEMCASA e CEABRA.
Depoimentos diversos revelam que ambas compartilham de uma mesma tendência: a de se
desvirtuarem da proposta inicial de contribuir para a melhoria do bairro. Segundo entrevista
concedida por Raimundo em outubro de 2012, a CEABRA, associação vigente no Roma desde maio
ou junho de 2012 tem se revelado como beneficiadora de interesses particulares, internos a ela, ao
invés daqueles relacionados ao loteamento e aos moradores, como um todo.
Pe. Piggi comenta que há muito tempo não interage com as lideranças atuais da associação:
Então, deve ter mais de uns 12 ou 13 anos que eu não vejo mais essa gente. Já houve
várias mudanças de diretoria, inclusive a atual diretoria tá na mão do filho de uma que
morreu, talvez por causa do stress [risos] de mexer com isso. Morreu, a Luzia morreu. E
o filho dela ficou no lugar dela pra coordenar toda a papelada. Só que tá mexendo com
uma bomba relógio. Qualquer hora pode até ser preso, se voltar a linha dura lá na
justiça. Por enquanto, não tem solução, essa coisa, não. Eles tão fazendo lá de
favelado, né? Antigamente, eles são considerados gente invadida, no próprio terreno.
(BERNAREGGI, nov/2012, entrevista).
As investigações evidenciam que aos moradores não coube um papel muito bem definido. Raimundo
(morador do Roma), por exemplo, nem sabia direito o nome da associação, o que mostra a falta de
articulação entre essa e os moradores. Aparentemente, pelas entrevistas feitas com os moradores, o
loteamento foi todo traçado por empresas terceirizadas pela associação, não havendo qualquer
espaço para discussões. No entanto, como será tratado mais adiante, com a saída do padre e as
sucessivas mudanças de gestões, as ações dessas não passaram de ambições para se beneficiarem
à custa dos moradores. A função dos moradores seria acatar as ordens da associação (das quais
pareciam não ter consciência) e pagar pelo lote ou por melhorias urbanas que se quer efetivaram.
Ficaram a cargo dos moradores a capina de seus lotes e autoconstrução de suas casas, sem
qualquer auxílio técnico ou doação de materiais.
143
Ao Poder Público restou manter sua postura contrária ao loteamento, resistindo por força legal o
desenvolvimento do mesmo. Em uma conversa rápida com um dos funcionários da Superintendência
de Regulação Urbana do município, foi mencionado que as lideranças do CEABRA não conseguem
estabelecer nenhum tipo de diálogo com eles. Aparentemente, é possível que elas não saibam como
lidar com o assunto.
Demarcação dos lotes
As dimensões dos lotes foram padronizadas, 10 m de frente e 25 m de fundo, totalizando 250 m 2 de
área. Fernando Raimundo (proprietário de casa no Roma) lembra que o procedimento não era muito
preciso. Fernando junto com Joãozinho (um senhor que morava no local anterior à implantação do
Roma) adentravam as áreas a serem demarcadas.
Na hora de medir os lotes, era 10 por 25 [metros], mas o fundo não media. [...] Aí media,
que eu levava reto, dava 25 e depois registrava, media 10 aí vinha reto. E eu vinha de
ré, pela mata [...] certinho falando aqui 10 metros, certinho não. Saía um pouquinho cá,
meio lá, no fundo, meio estreito, e batia estaca. (Fernando Raimundo, out/2013,
entrevista).
Ele media o fundo. Ficava a cargo dos futuros moradores corrigirem a largura do fundo, o que
acarretavam muitos problemas entre os vizinhos, pois um recebia um lote com a largura de fundo de
12 metros, e o vizinho, 8 metros.
Assim que terminava a demarcação dos lotes, a ocupação acontecia gradualmente. Fernando
Raimundo conta que, terminada a demarcação dos lotes de uma quadra, logo, em seguida, o sorteio
desses lotes acontecia: "Vinha 20 pessoas, depois vinha dez pessoas. Então sempre tava vindo
pessoas procurando. Mas, assim, de forma até gradativa. Não era um tumulto de uma vez."
(Raimundo, out/2013, entrevista).
Raimundo conta que, com o passar do tempo, a associação (CEABRA) propôs dividir os lotes ao
meio, com a justificativa de adequá-los à demanda futura. No entanto, vendo a forma de atuar da
associação, é bem provável que a principal razão do desmembramento dos lotes seria arrecadar
mais verba à custa dos futuros moradores.
144
O mesmo morador ainda justifica a intensificação da ocupação depois que Luzia, ex-presidente da
CEMCASA, vendeu o terreno para a PERFA por quase 700 mil reais. Essa atuação de Luzia revela
como a CEMCASA afastou-se de sua proposta inicial: doar terras.
Processo de aquisição do lote
Como já foi dito, a CEMCASA, ainda proprietária do Roma, foi a primeira associação a atuar no
loteamento. Raimundo lembra que, inicialmente, a fazenda deveria ser repassada aos moradores
sem extração de lucro. Nessa época, os lotes foram doados, no primeiro momento, mas em seguida,
ao que tudo indica, na gestão da CEABRA, alguns moradores acabaram pagando valores diferentes
pelo lote e sem saberem ao certo a finalidade, uns pagaram 11 mil outros 7 mil reais, pagos em
prestações. Segundo Raimundo, (Raimundo, out/2012, entrevista), ao contrário do que os moradores
pensavam, essas quantias eram destinadas às obras de infraestrutura e não para lhes conferir a
propriedade do terreno. Por outro lado, Fernando Raimundo relata “[os moradores] não pagavam
nada. Só tinha um plano onde já tivesse organizado, com o barraco pronto, já pagava uma taxa
mensal. [...] pouquíssimo dinheiro, quantia pouca mesmo. Até dar 7mil a 8 mil reais. Assim
falavam.”(Fernando Raimundo, out/2014, entrevista). Aparentemente, o dinheiro deveria ir para a
associação para ser utilizado na compra de outra fazenda, que seria doada novamente. Não se sabe
se isso deu certo, mas parece que ainda está em andamento.
Depoimentos dos moradores evidenciam aleatoriedade no processo de aquisição dos lotes. Uns
adquiriram por preços exorbitantes, outros invadiram simplesmente, outros ganharam e outros
trocaram por trabalho braçal. Moradores como Jair e Mari, mais atentos, aos poucos, desvendam
essas intenções, mas, obviamente, nem todos pensam assim (como é o caso de Fernando e da mãe
de Jair).
O casal de moradores entrevistado, Jair e Mari, relatam como descobriram a farsa. Jair chegou ao
Roma depois de sua mãe. Ela havia recebido 40 mil reais por indenização ao ser removida do local
onde morava anteriormente, uma área de preservação no Bairro Taquaril. Sua mãe comprou uma
casa de um dos membros da atual associação do Bairro Roma, Joaquim, sem que a esposa dele
soubesse. Quando sua esposa tomou conhecimento da venda, posicionou-se contrariamente,
forçando o marido a desfazer o acordo. Para não perder a oportunidade de se beneficiar com a
145
situação, ele então lhe propôs, em vez da devolução do dinheiro, a troca por dois lotes no Bairro
Roma. Aparentemente, não foi muito difícil convencê-la da proposta. Joaquim disse que o lugar era
regularizado e garantiu que a infraestrutura (esgoto, água, luz e asfalto) já estava a caminho.
Somado a isso, Jair conta que o discurso de Joaquim foi ainda mais certeiro “olha, a senhora vai ter
um lotão aqui, a senhora vai poder criar galinha, fazer uma hortinha, e tal. Aí eu acho que o olho dela
brilhou na hora, né?” Recém-chegada ao bairro, não demorou muito para perceber que tinha se
envolvido em uma cilada. Nesse ínterim, descobriu que alguns moradores ganharam os lotes. Logo,
não é difícil imaginar que o próprio Joaquim, na verdade, tenha vendido lotes pelos quais não pagou.
Jair conta que sua mãe, quando caiu em si, entrou com processo judicial contra Joaquim, mas, por
ora, esse assunto não teve um desfecho.
Ao contrário de sua mãe, Jair chegou ao Roma um pouco mais ciente da situação. Antigamente,
morava no Jatobá VI (no Barreiro), onde pagava 400 reais de aluguel. Como não conseguia emprego
na área de construção civil, resolveu mudar-se para Mariana onde seus sogros moram. Logo em
seguida, em uma visita à mãe, Jair começou a ver o Roma como um lugar propício para se mudar
com sua família, como pode ser visto em seu relato a seguir:
Eu tenho que conseguir um lote aqui, porque acho que eu também mereço, né? Estou
vendo o pessoal todo com lotezinho e tudo. Aí eu comprei um lote em cima, ali. Não deu
certo, porque o cara me vendeu um lote que já era de uma outra pessoa. Nesse meio
tempo eu fui descobrir que aquele lote ali onde eu estou, não tinha Domo. O cara veio,
cercou e sumiu, foi embora. E como ele era um lote que estava mais dentro de um
buraco e tinha árvores no meio da rua, ninguém estava interessado nele. Fui lá e
cerquei, falei: é aqui mesmo que eu vou ficar! E estou aí até hoje. (Jair e Mari, 2012,
entrevista).
Na primeira tentativa, uma pessoa lhe vendeu um lote. Só depois veio a saber que o terreno já
possuía dono. Chegou a pagar mil reais de entrada, mas, quando soube que pertencia a outra
pessoa, conseguiu, com dificuldade, receber o dinheiro de volta. O lote atual, abandonado, onde se
instalou há pouco mais de um ano, foi conseguido por meio de invasão, não precisando pagar nada
por ele. Fernando Raimundo estima que dos 291 lotes, aproximadamente, vinte e cinco foram
invadidos.
Cornélia e Fernando Raimundo defendem a versão de que os lotes foram doados. Fernando
Raimundo é tão convicto quanto à doação dos lotes feita por Valéria, que chega a elogiá-la dizendo
que ela é “ótima e [que] mandou doar tudo” [...] “foi tudo doado! A associação não vendeu, só que
exigiu do povo um pouquinho quase mil, mil e quinhentos, (porque não podia dar) para poder coloca r
146
poço artesiano, abrir rua que era mata”. (FERNANDO,out2013, entrevista). Em suma, o lote,
propriamente dito, pode até não ter custado nada aos moradores que o receberam, mas, com o
tempo, foram cobrados valore questionáveis para a suposta implementação de infraestrutura.
Já o próprio Fernando recebeu o lote em troca de serviço braçal na execução do próprio loteamento.
Ele, anteriormente, morava perto do Roma, em um sítio depois do Bairro San Remo. A princípio,
quando soube do início da formação do Roma, não teve interesse, porque achava que não
necessitava. Depois, quando o loteamento já se encontrava na metade do período de
desenvolvimento, viu que todo mundo estava ganhando um lote e resolveu conseguir um para ele
também. Em troca, Fernando trabalhou por quase um ano e meio no desenvolvimento do
loteamento: pagou e ajudou a fazer a caixa d’água, pagou pela água do poço artesiano,
mensalmente, ajudou a abrir rua, a medir os lotes (da quadra 1, 2 e 3 toda; a 4, ajudou a medir a
parte da frente) e a roçar.
Ocupação da área de preservação e institucionais
A única área prevista no projeto de parcelamento, além das quadras, dos lotes e das vias, é a área
remanescente. Dessa forma, o desenho não contava com áreas de equipamentos urbanos, de
preservação permanente ou de área verde, faixa non aedificandi, etc. Moradores identificam que o
processo de invasão foi gradual: na área remanescente (denominada por eles como área verde) pela
incorporação feita pelos fundos de lote e na borda superior da ocupação, adjacente ao limite préestabelecido para o bairro (Figura 38). Eles até mesmo acusam as lideranças de negligenciarem
essas ocupações. Mas as queixas não passam disso, pois nada tem sido feito para mudar a
situação, tanto por parte dos moradores, quanto por parte das lideranças.
Em uma análise física, superficial, do loteamento por meio do dispositivo Google Earth (ver esquema
do caminho das águas na Figura 39) é possível observar que as ocupações recentes, na porção
inferior do bairro, estabeleceram-se em áreas potenciais de inundação. Esse fato e até mesmo o
traçado de algumas vias (que será visto adiante) indicam que há uma incompatibilidade entre o
projeto e a situação real.
147
Construção das casas
É por meio do regime de autoconstrução que os moradores fazem suas casas. Os próprios
moradores arcaram com todos os custos referentes a essas. A maioria das casas encontra-se em
situação deplorável. Compostas por tapumes ou, quando em alvenaria, raramente, são rebocadas
e/ou pintadas. Além disso, as casas possuem poucos cômodos.
Já que não houve qualquer iniciativa de doação de materiais, ficou a cargo dos próprios moradores a
sua compra para a construção das casas. Na maioria dos casos eles recorrem aos depósitos do
Bairro San Marino onde os produtos apresentam preços mais elevados que aqueles oferecidos por
depósitos em Belo Horizonte. Em compensação, não é cobrada taxa de entrega. Em nível de
comparação, alguns moradores comentaram o preço de uma barra de ferro (5/16'') que custa 21
reais, enquanto que em um depósito na Av. Pedro II, em Belo Horizonte, orçou-se por 14 reais. Jair
ficou sabendo dessa diferença depois que começou a construir. Disse que não tem muita noção de
preço, pois nos trabalhos que faz quem compra o material é seu "patrão". Há três meses, abriu um
depósito na Avenida A, que está cobrindo os orçamentos da região e "agora não se vê caminhão de
outro depósito".
A Figura 40 mostra, pelo menos, dois estágios que as moradias apresentavam na visita feita em
2012: uma feita, improvisadamente, com tapumes e sobras de materiais diversos; a outra, mais
predominantemente, feita com tijolos e blocos de concreto, finalizadas com laje exposta. Essa
variedade confirma o caráter gradual da ocupação.
Infraestrutura
Depois das repetidas promessas de melhorias para o loteamento, nada ainda foi feito pelas
lideranças da associação. Os moradores, a seu jeito, tentam amenizar a situação com improvis os
diversos. O loteamento não possui: iluminação pública, assim, os moradores precisam fazer uso de
lanternas ou até mesmo de lâmpadas instaladas no limite de cada lote (voltadas para a rua); rede de
energia nas casas, apenas clandestina; rede de esgoto que é despejado na rua e coleta de lixo que é
incinerado pelos moradores (Figura 41).
148
Como se não bastasse a associação explorar os moradores, técnicos e até mesmo os próprios
moradores se aproveitam da fragilidade, precariedade e falta de informação entre os que ali residem.
Ainda que fruto de ligações clandestinas, cobram-se caro pela água e pela luz. Um provável técnico
da Cemig (como os próprios moradores o identifica) é responsável pelas ligações elétricas das
casas. Ele instalou um transformador numa rede de alta tensão que passa pelo loteamento –
começou cobrando R$250,00, depois passou para R$500,00, valor pago por Jair e Mari. Mais
recentemente já se ouviu o valor de até R$1200,00. Não há nenhuma lógica aparente na atribuição
do valor estipulado pelo técnico para o serviço. Jair e Mari, depois de conversar com outros
moradores, descobriram que há uma variação, de fato, do preço cobrado. Eles observam que o
preço cobrado é estipulado levando em consideração a localização do imóvel e o poder de compra
de cada morador. Assim, na "parte de baixo" do loteamento o valor é mais caro, talvez devido à
distância em relação ao transformador. Hoje esse técnico quer cobrar uma taxa de manutenção, no
valor de R$20,00, fora do combinado anterior. Embora tenham pagado um preço alto, Jair diz que a
luz costuma cair nos horários de pico.
Já, no loteamento, a questão do abastecimento de água evidencia, além do mencionado (técnico),
outro tipo de explorador: os próprios moradores. A obtenção de água é feita, basicamente, de duas
maneiras: poço artesiano e cisterna (distribuídas por moradores do bairro) e um “clandestino”,
instalado por um ‘provável’ técnico da COPASA.
A maioria das pessoas é suprida pelo sistema do poço artesiano. Um dos moradores do bairro,
Juvenal, é remunerado pela associação para controlar a distribuição da água para cada lado do
loteamento. Alguns dos entrevistados disseram que Juvenal, além de ligar a bomba pela manhã e a
desligar à noite, ainda controla os registros que direcionam a água para diferentes locais do
loteamento. É comum ele cobre um valor quando requisitam seu serviço para conduzir a água para
um determinado lado da vizinhança.
Já aqueles poucos não contemplados pela água de poço artesiano (provavelmente, devido ao
desnível do terreno somado ao mau desempenho da bomba) estão tendo uma saída não muito
diferente: há uma pessoa que cavou um poço artesiano com 12 metros de profundidade e utiliza uma
bomba doméstica para puxar a água (pseudo cisterna). Esse indivíduo cobra R$15,00 por tambor ou
R$150,00 por mês. Essa talvez seja a água mais cara da cidade. Por não terem opção, as pessoas
acabam aceitam o valor, como relata Mari: “o pessoal precisa, né? Fazer o quê…”
149
A terceira e mais recente das opções foi feita por um morador (provável técnico da COPASA). Ele fez
um "gato" na rede da COPASA e já está fornecendo água para alguns moradores. Mas, no trecho
onde fez instalações, não há pressão suficiente para mandar água para todas as cotas do
loteamento. Mesmo assim, cobra R$400,00 para fazer a ligação.
Abertura das vias
As próprias ruas do bairro são um problema à parte. A lógica de arruamento é incompatível com o
terreno natural. Além disso, vários cortes no terreno foram feitos displicentemente, sem qualquer
preocupação com os futuros riscos aos quais os moradores seriam submetidos.
A construção das vias resume-se apenas à retirada da vegetação na área delimitada para o
logradouro, sem passar por qualquer tratamento posterior. Não apresenta qualquer intervenção, não
há capeamento. Quando o tempo está seco, a poeira incomoda muito os moradores. Mari diz que,
quando chove, as ruas ficam melhores. Ela tem esperança que, com a saída da associação atual, o
bairro, em algum tempo, fique bom.
Serviços urbanos
Quanto aos serviços urbanos, o bairro é bastante precário, não possuindo escola ou posto de saúde.
Os moradores mencionam a previsão de uma área institucional que, teoricamente, seria destinada a
usos não residenciais de apoio ao bairro (como equipamentos públicos), no entanto, essa informação
não consta do projeto de parcelamento mencionado anteriormente. No entanto, como já foi dito,
aconteceram ocupações no local sem que houvesse posicionamento por parte da associação.
A escola em que o filho de Jair e Mari estuda não é tão distante, mas, para levá-lo à escola, é
preciso subir um morro e caminhar por meio de um matagal. O período em que está só tem aulas à
tarde, o que piora a situação, já que têm que caminhar sob o sol forte. O posto de saúde mais
próximo fica na parte central de Neves (na Sede), de difícil acesso para quem não possui meio
próprio de locomoção.
150
Jair comenta que, no loteamento, as pessoas não jogam lixo na rua, mas, também, não há coleta.
Normalmente, os moradores fazem um pequeno buraco no terreiro, juntam o lixo ali, e depois
queimam. Contrapondo ao comentário do morador, in loco foi constatado o despejo de resíduos em
algumas porções do bairro. É provável, que o morador tenha restringido sua análise à porção
imediata a sua casa ou a situação verificada seria o jeito desorganizado de ajuntarem o lixo antes de
o queimarem.
O transporte coletivo é outra dificuldade com a qual os moradores têm que lidar. Diversos moradores
comentaram que a única alternativa é pegar o ônibus na BR, porque nem mesmo o Bairro San
Marino possui linha própria. “Eu tenho que andar quatro quilômetros, até no asfalto, para pegar o
ônibus que, geralmente, passa lotado”.
Nova associação
Alguns dos moradores entrevistados veem a necessidade de mudar a forma de atuação das
lideranças atuais da associação. Mari, por exemplo, vê a necessidade de ter alguma liderança que
enfrente as lutas lado a lado com os moradores. Ela critica o distanciamento da associação atual
com os moradores:
Não, senhor Joaquim, nós estamos cansado desse povo engravatado que vem trabalhar
fim de semana na associação. Põem um sapato ali e volta todo limpo. Isso não está
certo". A gente quer gente que bota o pé na terra e que trabalha junto com a gente,
pega bicho de pé e tal e é isso mesmo, né?! (Mari, na conversa com Raimundo,
out/2012, entrevista).
Tanto Jair quanto Mari demonstram vontade de participar da associação, mas apenas com o intuito
de realizar melhorias para os moradores, diferentemente da intenção da associação atual. Durante a
conversa, Jair apontou as deficiências da associação e quis mostrar que propunha uma solução e
não queria apenas apresentar aos pesquisadores os problemas a serem resolvidos. Eles pensam em
criar uma nova associação, independente da existente, que realize essas mudanças necessárias no
assentamento.
O quê que seria mais viável? Eu acho que os moradores aqui poderiam fazer uma reunião entre os
moradores mesmo. A gente faz um encartezinho, vai na casa de um por um: “gente, tem reunião tal dia,
mas é só os moradores, só as pessoas que tenham lote aqui”. E, a partir daí, a gente fazer uma eleição e
eleger membros de moradores aqui do bairro, pessoas que tem disponibilidade , de tempo de correr atrás
de uma prefeitura [...], que tão realmente focadas em trazer melhoria para o bairro.
(Jair e Mari, 2012, entrevista).
151
Corrupção interna
Nas reuniões promovidas pela CEABRA 36, associação vigente, evidencia-se, claramente, dois tipos
35F
de discursos contrastantes: o da associação, titubeantes, impugnando aos dos moradores, que é
mais despachado e aberto. Diante dos relatos, torna-se cada vez mais difícil evitar um julgamento
imparcial da situação.
Mari e Jair, moradores do Roma, começaram a desconfiar das reais intenções dos líderes da
associação que forjam suas reais intenções por meio de premissas reais, para beneficiamento
próprio. A primeira evidência disso deu-se enquanto frequentavam as reuniões aos domingos.
Sempre ouviam discursos repetitivos, com promessas de melhorias para o loteamento. No entanto, a
suposição dos moradores veio à tona quando Jair foi depositar o dinheiro do cadastro e a conta
bancária estava no nome do próprio Márcio. Como se não bastasse, nessa mesma época, um amigo
de Jair tentou comprar, com o Márcio, um lote de 12 mil reais da associação. Ele entrou em contato
com o Márcio, que em um primeiro momento disse que só possuía lotes no valor de 30 e 35 mil reais.
O amigo tentou, sem sucesso, negociar a inclusão de um carro na forma de pagamento, reforçando
ainda que só poderia comprar um lote no valor de até 12 mil reais. A primeira reação de Márcio foi de
negar a existência do lote desse valor, mas logo em seguida, retornou a ligação para o amigo de Jair
dizendo que havia encontrado um lote, com pior localização, no valor de 12 mil reais. O amigo de
Jair não comprou o lote, mas a negociação serviu para Jair desconfiar ainda mais das artimanhas de
Márcio.
Somado a esse episódio, esses mesmos moradores atinaram para outra estratégia dos membros da
associação. De tempos em tempos essa atualiza os cadastros dos moradores, basicamente, por dois
motivos. O primeiro tem a finalidade de identificar aqueles lotes sem dono ou devolutos – pessoas
que se mudaram, ou morreram, ou que especulam ou, ainda, que possuem mais de uma propriedade
e vão ao Roma esporadicamente. Uma vez identificados – muitas vezes sem sequer contatar o
antigo Domo – esses lotes são reavidos pela associação que logo os venderão novamente. Esse é
um ciclo sem fim. As vendas desses, por sua vez, são feitas sob o falso pretexto de promover
36
Sob a liderança de Márcio, Manuel, Zizele (esposa de Márcio) e Joaquim.
152
melhorias para o loteamento e até mesmo para a suposta construção da sede da associação. As
“melhorias”, na realidade, acontecem somente para os membros da associação.
Como se não bastasse essa estratégia de enriquecimento particular, dentro do ciclo de
enriquecimento sucessivo, há outro meio de arrecadação de dinheiro: o cadastro de novos
moradores. Para tanto, é cobrado uma taxa de 100 reais, isto é, a antiga prática de doação de
terrenos feita antigamente (provavelmente na gestão dos CEMCASA quando Pe. Piggi ainda atuava)
foi substituída por essa prática. Moradores comprovam essa hipótese de beneficiamento particular à
associação com a aquisição de carros novos por alguns de seus membros.
O desinteresse da associação ainda é expresso pela deplorável condição em que o loteamento se
encontra, incluindo ainda a negligência apresentada perante a invasão de áreas verdes,
institucionais e viárias.
Apesar da desconfiança apontada pelos moradores, fica clara a dificuldade deles em desenvolver
estratégias eficazes para reverter o quadro. Não há um confrontamento ou questionamento direto
aos suspeitos. O posicionamento dos moradores resume-se em recuar-se – como faltas às reuniões
da associação. A hostilidade manifestada pelas lideranças só reforçam essa atitude. Além de não
questionarem as próprias lideranças, o acesso à informação quanto aos seus direitos (procuradoria,
prefeitura) parece ser uma realidade ainda bem distante. Um dos moradores, Jair, demonstra um
tímido interesse em reunir, apenas, os moradores, em uma espécie de associação.
Eles já
conseguem identificar aqueles que compartilham da mesma opinião como as suas. Depois das
queixas pontuais e/ou pessoais apresentadas, de recorrer às diversas instâncias (prefeitura, Cemig,
COPASA e outros) seria o próximo passo. No entanto, ainda falta disposição para “tomar o boi pelo
chifre”.
Regularização
Como já foi dito anteriormente, não há qualquer previsão de regularização, sob a justificativa da
existência de um projeto do rodoanel – que “cortaria” o Roma ao meio. Em uma rápida conversa com
a equipe da Superintendência de Regulação Urbana de Ribeirão das Neves, foi mencionado que o
projeto é datado de 1983, aproximadamente, ou seja, já se passaram trinta anos e não há qualquer
manifestação visível da procedência prevista. Mas em 2001, conforme mencionado inicialmente,
153
Cornélia já sabia da proposta desse projeto e tentou avisar os colegas (Valéria e Manuel). No
entanto, ao que tudo indica, os moradores ficam à parte dessas informações, pois, intencionalmente,
a associação não divulga o fato. Logo, quanto aos motivos pelos quais não há sinais de melhorias no
loteamento, os moradores permanecem alheios.
Joaquim, inclusive, conta que a prefeitura já embargou o loteamento, chegando até mesmo a instalar
uma placa no Roma denunciando o empreendimento – que logo foi destruída por um caminhão. Ele
se lembra de que, na época, Luzia estava envolvida na associação, no entanto, ele não sabe dizer
qual foi o desfecho desse episodio.
Os moradores sofrem com isso, pois sem registro do endereço não se pode ter acesso a quase
nenhum serviço ou até mesmo conseguir trabalho. Há casos em que os moradores “emprestam”
endereço de parentes para conseguir atendimento em postos de saúde ou para se candidatarem a
uma vaga de emprego. É bem possível que essa lentidão do processo de regularização do
loteamento relacione-se à estratégia das lideranças para continuarem seus ciclos infinitos de lucros,
“porque com o endereço o pessoal poderia se organizar para ir atrás de energia”.
Por outro lado, funcionários da Prefeitura de Ribeirão das Neves apontam a impossibilidade de
regularização do Roma. Segundo eles, a associação apresentou apenas a desenho do levantamento
e nunca mais retornou para encaminhar as alterações.
Planos futuros
Um dos entrevistados, Jair, revelou ter uma visão bem otimista para seu futuro profissional. Ele
entende que muitas possibilidades de trabalho poderão surgir nas imediações do Roma, dessa
maneira, ele não precisará se submeter mais a grandes deslocamentos como fazia antigamente:
Ah, é, assim, eu vejo que a gente tem essa grande possibilidade; pelo menos para mim
que trabalha na área de construção civil, vai ser muito bom. Porque hoje construção civil
é o que há, tem muita gente aqui empreendedor, vai lá e compra um lote no valor “X” e
constrói apartamentos lá, quatro apartamentos e um apartamento paga o lote. Eu tenho
certeza que essa parte de baixo aqui vai vir esse pessoal, não sei se vocês conhecem,
do Bairro Castelo aqui próximo, né? Lá tem muito desses pessoal que compra o lote
para fazer prediozinhos. E para mim, vai ser bom, porque eu vou estar pertinho de casa.
Eu, para eu trabalhar para o lado de Belo Horizonte, igual eu estava fazendo serviço lá
no Belvedere, fica muito fora de mão. Estava saindo daqui cinco horas da manhã e
chegando às vezes oito e meia, nove horas da noite. E se começar as construções, na
parte de baixo, ali, para mim vai ser excelente. (Jair e Mari, 2012, entrevista).
154
Processo de regularização
Como já foi comentado, o parcelamento do Roma sequer fora cadastrado e/ou aprovado junto à
prefeitura do município, quiçá a titulação dos lotes. Funcionários da Superintendência de Regulação
Urbana de Ribeirão das Neves afirmaram que o único documento entregue a eles pela associação foi
um levantamento topográfico do terreno feito por uma empresa terceirizada. Cornélia, antiga líder de
uma das associações (CEMCASA) confirma a informação desses funcionários: o Roma não tem
qualquer previsão de aprovação. Antes mesmo de Valéria e Manuel iniciarem o desenvolvimento do
Roma, Cornélia os havia notificado sobre as condições futuras a que a gleba estaria submetida.
Informações cedidas pela prefeitura previam desde aquela época (por volta de 1998) a construção de
um rodoanel que passaria no meio da gleba que hoje é o Roma. Dessa maneira, a entrevistada
recorda que é decretado um afastamento mínimo de 100 metros para cada lado do rodoanel – uma
distancia grande se comparada àquela mencionada na própria Lei Complementar n o 082/2009 que
dispões sobre o Parcelamento do Solo no município de Ribeirão das Neves:
Art. 11 – Os loteamentos em Ribeirão das Neves deverão atender, ainda, aos seguintes
requisitos urbanísticos:
Ao longo das faixas de domínio público das rodovias e ferrovias e das faixas de
servidão de dutos e linhas de transmissão de energia elétrica, a Prefeitura exigirá a
reserva de uma faixa non aedificandi de 15 m (quinze metros) de largura mínima de
cada lado, podendo integrar o sistema viário. (RIBEIRÃO DAS NEVES, Lei
Complementar n o 082/2009, grifo nosso).
Ainda não foram iniciadas as obras do empreendimento, mas quando assim o for, será necessário
um processo de remoção dos que residem no Roma. Cornélia já tinha conhecimento dessa situação
e, apesar dos esforços despendidos, foi ignorada.
Considerações
O Roma, como já foi dito, é o mais recente e o pior dos quatro loteamentos analisados. Não houve
qualquer previsão de autogestão por parte da associação e dos associados, seguindo, praticamente,
a lógica de um loteador popular privado mas, muito mal articulado. Consiste em um loteamento cuja
precariedade é extrema, sem infraestrutura e casas improvisadas construídas com, até mesmo,
sobras de materiais de construção. Em nível de comparação: o Metropolitano, sob as mesmas
ausências do Poder Público, conseguiu, em três anos, assentar a população e providenciar
infraestrutura para o bairro.
155
As conversas com os moradores e com as lideranças revelam o esperado: não há qualquer
preocupação de esclarecer os procedimentos acordados pelas lideranças da associação. A retenção
proposital da informação é tida também como um dos grandes elementos estratégicos para
manipulação e dominação dos moradores – mesmo que Cornélia acredite que a associação não
soubesse sobre os planos para a área, por exemplo, o rodoanel.
Outra forma de dominação é evidenciada na aleatoriedade das regras quanto a se ter acesso a um
lote. Ora um morador o recebe por doação, outro é submetido a intensos trabalhos braçais, outro
paga preços exorbitantes. A retenção do projeto do loteamento dentro da cúpula da lideranç a só
contribui para as explorações as quais a população tem sofrido sejam justificadas.
Ao deparar com o caso do Roma, a tendência é de, talvez, optar-se pela situação antiga em que se
encontravam os moradores. O fato de terem recebido o lote (seja por doação ou ocupação), isto é,
não despendeu de qualquer recurso pessoal no processo de aquisição do lote, talvez seja a única
vantagem de alguém se mudar para lá. Talvez a urgência para sair do aluguel ou livrar-se de viver de
favor seja tal que compense, mas não por muito tempo. Chegaram ali na informalidade e assim
permanecerão. Não há qualquer possibilidade de aprovação do loteamento, quiçá a titulação dos
lotes e das casas. Hoje moram ali sem qualquer infraestrutura básica, serviços públicos,
institucionais e/ou comerciais, sujeitando-se, talvez, a condições muito mais precárias dos locais em
que viviam anteriormente. Além disso, como os demais loteamentos analisados, provavelmente pela
incompreensão de sua importância, os moradores não se preocupam com a preservação dessas
áreas,
A falta de mobilização dos moradores é marcante. Apesar de alguns terem consciência dos jogos de
poderes que as lideranças exercem, parecem não saber, ao certo, as medidas a serem tomadas
para lutarem contra essas forças opressoras. Falta algo para que de fato se unam e tomem iniciativa
a esse respeito. Por exemplo, alguns moradores, inclusive alguns dos entrevistados, veem a
importância de lutar para a implementação da infraestrutura, já que a associação nada tem feito em
relação a isso. Essa, enquanto se enriquece à custa dos desavisados, utiliza de discursos falazes,
com promessas de futuras melhorias que parecem cada vez mais distante de se concretizarem,.
Apesar disso, alguns moradores acreditam que morar no Roma ainda seja a melhor opção. A saída
do aluguel está vinculada à melhoria de vida, ainda que não envolva melhor qualidade de vida.
156
Os preconceitos gerados pelo empreendimento repercutem nos loteamentos vizinhos como o San
Marino. Qual seria a diferença entre esse e o Roma (excluindo o fato desse ser feito por loteador
popular privado)? É curiosa também que é nesse loteamento vizinho onde alguns dos moradores
entrevistados conheceram algumas das lideranças. Assim, mais uma vez, evidencia-se a exploração
do pobre pelo pobre.
São vários os motivos que podem ter colaborado para a desarticulação desse movimento: a má fé
das lideranças,; o fato de a CEMCASA atuar por conta própria, sem apoio de outras associações e
,até mesmo, o pequeno contingente de moradores envolvidos, por volta de 600 pessoas
(contrastando com as 20.000 do Metropolitano).
Não há qualquer manifestação de intenção para autogestão. A lógica de atuação aproxima-se
daquela feita pelo loteador popular privado, talvez numa modalidade ainda mais desorganizada e
precária. As decisões são feitas informal e ocultamente. Em um contexto em que lucrar é o maior
objetivo, não há qualquer possibilidade de autogestão.
157
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS E APONTAMENTOS
Diante do processo de formação dos loteamentos associativos estudados, chama a atenção à
eficácia das atuações desvinculadas, em sua maioria, da iniciativa do Poder Público (salvo raras
exceções). Se por um lado os programas habitacionais já introduzidos pelo Poder Público ao longo
dos anos deixaram uma lacuna – a provisão de moradias para população de baixa renda de zero a
três salários mínimos, por outro se constata que essa lacuna tem sido preenchida, ao longo dos
anos, pelas várias atuações de entidades por meio de muita luta. Sendo assim, até que ponto o
Poder Público já se acomodou com essa situação? Pode ser conveniente para ele deixar que outros
“sujem” as mãos para resolver a situação.
Minha aproximação dos moradores contribuiu muito para a compreensão do lugar em que vivem na
medida em que os estudos acadêmicos e técnicos em fontes oficiais foram sempre complementados
e contrapostos sob o ponto de vista daqueles que habitam nos loteamentos e dos que estiveram à
frente de sua ocupação. Ambos são os que melhor conhecem esse processo.
Nos quatro estudos de caso apresentados, o padre Piggi mostrou diferentes graus de participação.
Sua função de “catalisador” do processo também se manifesta com durações diferentes de um caso
para o outro. No Felicidade e no Metropolitano, ele atua como liderança e permanece ali por um
período de tempo, ajudando nos processos de assentamento. Em sua “matemática”, ele calcula o
nível de maturidade dos moradores, ajuda na formação da associação e logo parte para outro
trabalho, outro loteamento. Ele sai de cena, e abre espaço para que os moradores possam gerir o
bairro recém-criado. Este modus operandi de Piggi pode ser motivado pela intenção de que os
moradores adquiram, o mais rapidamente possível, uma independência em relação a quaisquer
agentes externos, mas também pode ser resultado de sua própria frustração, ao se ver impotente
para manter o processo íntegro e controlado.
Essa falta de controle do movimento pode ser justificada, também, pelo fato de o Pe. Piggi atuar
simultaneamente em muitas frentes, tendo que dividir responsabilidades às lideranças, sem
conseguir apoiá-las ou supervisioná-las. O mesmo, no entanto, não ocorreu no Novo Aarão Reis,
onde ele disse ter apenas orientado, sem se envolver diretamente na luta.
158
Nas visitas in loco observou-se, com exceção do bairro Roma, que os loteamentos encontram-se
praticamente consolidados. As casas se expandiram com o tempo, a infraestrutura estendeu-se
pelos conjuntos contemplando moradores com energia elétrica, abastecimento de água e rede de
esgoto. Já houve programas com distribuição de lotes, gleba, material de construção, auxilio técnico
(Felicidade), em forma de autogestão. No entanto, a autogestão não pressupõe autoconstrução ou
mutirão, uma vez que possível que haja, por exemplo, a terceirização da construção ou mesmo a
contratação de técnicos. Isso mostra ser possível reproduzi-los, com as devidas correções ou
ajustes, caso haja uma postura mais favorável do Poder Público em manter diálogo com as
associações. Apesar das importantes conquistas, ainda há muito por fazer. Por exemplo, ainda há
situações de ilegalidade em diversos níveis dado ao advento de novos instrumentos de regularização
do solo. Será que faz sentido postergar ainda mais esse processo? É preciso que haja maior
abertura por parte do Poder Público para novas possibilidades.
Ao longo dessa pesquisa constatou-se, também, o cuidado da associação em escolher locais de fácil
acesso por transporte público, como também preocupação do próprio projetista em conformar, dentro
das limitações existentes, adequadamente os parcelamentos ao terreno disponível. Por exemplo, no
Novo Aarão Reis, no Metropolitano e no Felicidade preocupou-se com o acesso fácil, e a
proximidade aos córregos. Isso seria proposital ou devido ao fato de serem áreas preteridas pelo
capital privado?
É interessante reparar que, ainda que o padre preze pela produção consentida pelo Poder Público e
manter a integridade do procedimento, dificilmente conseguiu manter os loteamentos conformes à
legislação vigente. Os quatro loteamentos apresentam diferentes graus de clandestinidade (por
exemplo, iniciava a ocupação antes da aprovação do loteamento). Isso vem a mostrar que a
clandestinidade não se restringe apenas ao loteador popular privado 37.
A própria existência desses loteamentos associativos revela, também, ser possível prover moradia
para a população de baixa renda utilizando estratégias de característica autogestionária, onde
futuros moradores, em alguma medida, participem das decisões durante o processo.
37
Ver CHINELLI (1980).
159
A sistematização do processo de formação de loteamentos populares nas décadas de 1980 e 1990
pode ser um ponto de partida para se alcançar soluções mais coerentes com a demanda real da
população de zero a três salários mínimos. Se esses movimentos sociais pró-moradia têm sido
responsáveis pelo provimento de moradias aos excluídos, faz-se necessário analisar com mais
cuidado essas atuações. Se esse é o melhor caminho, quais seriam os atributos de cada experiência
de loteamento que poderiam ser reaplicados? O que fazer para potencializá-los? Caso o Poder
Público se proponha a cooperar nesse processo, poderia ser essa uma estratégia passível de
substituição da lógica dos programas habitacionais públicos atuais, como o Minha Casa Minha Vida?
Conforme Oliveira (2006) há uma questão perversa da autoconstrução: a dialética subjacente à
solução alternativa pelos próprios moradores e a maneira de o Estado durante algum tempo
transformou essa precariedade em uma suposta virtude 38. Como pode ser visto na literatura, a
autoconstrução foi tida como solucionadora, e a principal premissa para dar acesso à moradia à
população de baixa renda. No entanto, deve ser opcional, e se a opção for a da autoconstrução, é
fundamental que se disponibilizem recursos adequados, para que não se perpetue o processo
vigente da exploração dos futuros moradores. Portanto, o futuro morador deve ter a liberdade de
adotar alguma forma de autoconstrução ou mesmo terceirizar a construção da sua moradia.
Talvez caiba à academia pensar em novas maneiras de se criar espaços abertos que facilitem o
encontro e as reuniões com os futuros moradores para discussões. É fundamental que eles
compreendam suas próprias condições, limitações, e percebam a necessidade de apoio e auxilio
técnico. A academia também deve contribuir para facilitar a comunicação entre moradores e entre
moradores e técnicos e agentes públicos, pois da sinergia entre as ideias e resultados de
investigação acadêmica e a ampla experiência e lutas que poderão surgir abordagens inovadoras.
Espera-se que os contatos feitos durante a presente pesquisa catalisem uma atuação conjunta da
academia com essas associações. É necessário, também, que haja na associação, mediadores entre
os associados e agentes externos (órgãos públicos, técnicos, escolas). Em tudo isso é preciso
pensar em maneiras mais eficientes para que os associados sejam envolvidos mais efetivamente,
dentro da própria associação, nos processos decisórios.
Hoje, a autoconstrução não é mais promovida pelo Estado como foi na década de 1980. A conversa do Chico de
Oliveira é anacrônica nesse sentido. Se refere muito mais a uma discussão daquela época.
38
160
Esta pesquisa mostrou ainda que a luta continua e que, pelo menos para Piggi, é patente a
necessidade de respaldo técnico e acadêmico. A complexidade dos processos envolvidos na criação
desses loteamentos, por diversas vezes foi além da capacidade de gerenciamento e administração
de Piggi, fazendo com que ele perdesse o controle da situação, e se retirasse da associação.
Atualmente, com a criação da Pastoral Metropolitana dos Sem-Casa, o padre afirma estar sendo
mais cauteloso. Por exemplo, ao perceber que um dos núcleos do movimento começa a atuar sem
conformidade com a proposta inicial, ele solicita que esse grupo se desvincule do movimento pa ra
não denegrir a imagem da Pastoral e, consequentemente, não enfraquecer o movimento. Essa
posição de Piggi, no entanto, não é corroborada por Gladis, que não vê mudança na forma em que
ele lida com novas situações, pois deposita confiança demasiada nas lideranças, confiança essa que
nem sempre se justifica. Como o movimento da Pastoral iniciou suas atividades apenas em 2011,
não há informação suficiente para se afirmar nada de forma conclusiva. Seria, portanto, importante
acompanhar-se o andamento de suas ações ao longo do tempo para posteriormente avaliar se essa
estratégia trouxe impactos positivos e se houve de fato mudanças desde a atuação de Piggi na
AMABEL.
Ressalta-se que o fato de se lutar pela alteração das leis já significa um grande avanço para se
legitimar o movimento. É preciso pressionar o Poder Público e questionar o ciclo infinito de
favorecimentos sucessivos aos interesses privados. É possível ver limitações quanto ao acesso à
informação e sobre o que é ou não factível, bem como sobre as leis e os procedimentos melhores a
serem adotados. Piggi faz tudo de maneira empírica. A iniciativa de aproximação de instituições
públicas de ensino pode vir ser um grande divisor de águas para o movimento.
Espera-se que este trabalho de pesquisa sirva de um convite à reflexão do meio acadêmico e teórico
para uma nova modalidade de ensino, onde a experiência prática dos movimentos pela moradia
possa ser combinada e potencializada pelo conhecimento teórico próprio da academia.
É surpreendente a constatação de que pelo menos sete dos loteamentos do Piggi e pelo menos mais
10 da AMABEL, feitos nas décadas de 1980 e 1990 tenham resultado em bairros de Belo Horizonte,
o que corresponde a cerca de aproximadamente 4% dos 425 bairros da capital 39. Surge a questão:
39Disponível
em: <http://portalpbh.pbh.gov.br/>. Acesso em: 15 nov 2013.
161
quantos bairros foram, de fato, feitos dessa maneira? Tendo em vista a tendência da produção
capitalista do espaço urbano movida pelos interesses privados, o qual visa atender uma parcela
minoritária da cidade, especula-se que um grande percentual dos loteamentos da RMBH tenha sido
resultado das lutas de movimentos como os descritos aqui. Quantos foram os “Pe. Piggis” e “Laender
de Castros”, quantas “Gladis”, “Cornélias” que lutaram e continuam lutando pelo direito à moradia,
direito humano mínimo?
Finalmente, espera-se que este trabalho possa, de alguma forma, representar uma contribuição para
o entendimento da atuação do outro loteador popular e de sua contribuição para a formação da
metrópole belo-horizontina, o que certamente possibilitou o acesso à moradia a milhares de
cidadãos; e encorajar outras pessoas para serem transmissores da história vivida que nunca terá
tempo de ser escrita pelos envolvidos.
162
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<http://portalpbh.pbh.gov.br/>. Acesso em: 15 nov. 2013.
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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 16 de nov. de 2013
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164
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URBEL. Relatórios internos e atas de reunião de diretoria da URBEL – Arquivo da Supervisão de
Informações Técnicas (SIT) da URBEL. Disponível em:< http://portalpbh.pbh.gov.br>. Acesso em: 9
out. 2013.
165
ENTREVISTAS REALIZADAS
Como mencionado, as bases cartográficas e os escassos registros documentais sobre os processos
analisados não seriam suficientes para reconstruir a história proposta. Nesse sentido, as entrevistas
contribuíram, grandemente, para preencher essa lacuna deixada por esses documentos. Essa fonte
primária além de crucial deu o tom à fala daquelas pessoas que tiveram participação direta no
processo.
Legenda:
I: Entrevista individual
C: Entrevista coletiva
LIDERANÇAS (ANTIGAS E ATUAIS)
Pe. Pier Luigi Bernareggi, Pe. Piggi
I
Pe. Piggi Bernareggi entrevistado em 03 de novembro de 2011 por frei Gilvander Luís Moreira
no
programa TV Comunitária de BH. (Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=aMZuph1Bag >. Acesso em: 26 de abril, 2013).
I
Pe. Piggi Bernareggi entrevistado em 13 de novembro de 2012 por Silke e Pedro Arthur
Magalhães.
I
Pe. Piggi Bernareggi entrevistado em 02 de maio de 2013 por Rebekah Campos e Pedro
Arthur.
Cornélia de Souza (ex-presidente da CEMCASA)
C
I
Gladis F. Oliveira e Cornélia de Souza entrevistadas em 08 de agosto de 2013 por Rebekah
Campos.
Cornélia de Souza entrevistada em 03 de outubro de 2013 por Rebekah Campos e Pedro
Arthur Magalhães.
Gladis F. Oliveira (atual presidente da AMABEL)
C
José Carlos Laender de Castro, Gladis F. Oliveira, Antônio Castro entrevistados em 30 de
maio de 2013 por Silke Kapp, Rebekah Campos e Tiago Lourenço.
C
Gladis F. Oliveira e Cornélia de Souza entrevistadas em 08 de agosto de 2013 por Rebekah
Campos.
166
ASSESSORIA TÉCNICA
José Carlos Laender de Castro (arquiteto e urbanista responsável pelo projeto do Bairro
Metropolitano)
I
José Carlos Laender de Castro entrevistado em 04 de maio de 2013 por Silke Kapp, Rebekah
Campos e Tiago Lourenço.
C
José Carlos Laender de Castro, Gladis F. Oliveira, Antônio Castro entrevistados em 30 de
maio de 2013 por Silke Kapp, Rebekah Campos e Tiago Lourenço.
Cláudio Beleza (arquiteto da Cohab Minas há 37 anos)
I
Cláudio Beleza entrevistado em 24 de setembro de 2013 por Rebekah Campos
MORADORES DOS LOTEAMENTOS
Maria Pinheiro da Silva (Novo Aarão Reis)
I
Maria Pinheiro da Silva entrevistada em 17 de julho de 2013 por Rebekah Campos.
Antônio Castro (Metropolitano)
C
José Carlos Laender de Castro, Gladis F. Oliveira, Antônio Castro entrevistados em 30 de
maio de 2013 por Silke Kapp, Rebekah Campos e Tiago Lourenço.
Antônio Soares Ruas (Felicidade)
I
Antônio Soares Ruas entrevistado em 01 de junho de 2013 por Rebekah Campos.
Jair e Mari (Roma)
I
Jair e Mari entrevistados em 21 de outubro de 2012 por Silke Kapp e Pedro Arthur Magalhães.
Raimundo (Roma)
I
Raimundo entrevistado em 27 de outubro de 2010 por Pedro Arthur Magalhães e Débora
Andrade.
Fernando Raimundo (Roma)
I
Fernando Raimundo entrevistado em 04 de outubro de 2013 por Rebekah Campos.
167
APÊNDICES
168
APÊNDICE 1
─ LINHA DO TEMPO COM INDICAÇÃO DO RECORTE TEMPORAL DO TRABALHO
169
APÊNDICE 2
METODOLOGIA DESENVOLVIDA PARA ENTREVISTAS
Os métodos de coleta de dados incluem: visitas de campo para observação direta; pesquisa
documental e de imagens (bibliografia, arquivos, série histórica de imagens aéreas); e entrevistas
com agentes envolvidos na produção de loteamentos (líderes de associações, moradores, técnicos
que prestaram assessorias, técnicos das administrações municipais, moradores, o próprio Pe. Piggi e
outros agentes da Igreja Católica).
O método para o desenvolvimento desse trabalho é o desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa MOM e
aplicado, sistematicamente, durante a pesquisa de “Desenvolvimento de tecnologias sociais para a
moradia” da Rede Finep de Moradia e Tecnologia Social 40. Em suma, parte-se do pressuposto de que,
38F
antes de qualquer atuação (se é que deve haver) em um lugar, deve-se compreender o seu processo
de formação por meio de várias perspectivas. Para tanto, divide-se o procedimento em, basicamente,
duas grandes etapas: a Coleta de Informações e a Sistematização de Informações.
A Coleta de Informações é dividida em cinco etapas que podem ocorrer simultaneamente:
Levantamento de dados, Conversas Estruturadas, Visita in loco, Relato Imediato e Transcrição das
entrevistas. O Levantamento de dados, como o próprio nome diz, é o processo em que são
garimpados textos, mapas, vídeos e imagens sobre o assunto em questão. Geralmente, acontece
antes das outras duas etapas, como uma maneira de compreender, por alto, o contexto do local e os
prováveis atores envolvidos no processo. No entanto, é comum descobrir outras informações durante
as Conversas Estruturadas.
As Conversas Estruturadas
41
não são entrevistas com perguntas e respostas, que, geralmente,
seguem à risca o roteiro. Analisando esse procedimento tão comumente empregado, foi possível
chegar à conclusão de que não seria a melhor estratégia para se obter informações sobre a história
de um lugar, pois, como se tem observado, no decorrer da conversa, o entrevistado contribui com
informações que não seguem à lógica pré-estabelecida pelo entrevistador nem tampouco imaginadas
por ele. Nesse caso, optou-se por subdividi-las em duas partes: o Desenvolvimento do Roteiro de
40
Mais informações podem ser obtidas no site: http://www.mom.arq.ufmg.br/
Os roteiros desenvolvidos para as entrevistas contidas nesse trabalho encontram-se em Anexo, bem como a
metodologia completa.
41
170
Perguntas e a Conversa propriamente dita. O Roteiro de Perguntas trata-se de um repertório de
perguntas desenvolvido a partir das informações obtidas no Levantamento de dados. Esse é
estruturado, obviamente, seguindo a lógica de quem o elabora. A intenção é que o entrevistado
memorize o que ali está escrito para conduzir a conversa, pois dessa maneira é possível criar uma
situação menos formal do que aquela que, geralmente, ocorre quando torna visível a lista de
perguntas ao entrevistado. É bom, também, não ficar muito preso à ordem das perguntas na
Conversa, pois ainda que tenham sido ordenadas pela lógica do pesquisador, pode ser que não
ocorra da mesma forma para com o entrevistado. Pode ser que esse se lembre de assuntos
inesperados na lógica de raciocínio que lhe for própria. No entanto, é importante que o entrevistador
fique atento para não fugir do assunto que precisa ser extraído.
A Visita in loco geralmente ocorre no mesmo dia em que acontece a Conversa Estruturada. Se assim
o for, o entrevistado poderá contar histórias sobre o local à medida que caminha com o pesquisador,
podendo acontecer antes ou depois da Conversa Estruturada.
Uma vez concluídas a Visita in loco e a Conversa Estruturada, elabora-se o Relato Imediato. Tratase de um texto que apresenta as impressões geradas no formato digital, podendo conter imagens
(desenhos, fotos, mapas, vídeos) e áudios como referências.
A etapa seguinte, a Transcrição das entrevistas, envolve duas fases: a Transcrição Propriamente dita
e a Revisão. A Transcrição geralmente é feita por uma pessoa apenas, podendo ser mais, caso o
áudio seja muito extenso (ou se o prazo para o trabalho for curto). Na Revisão, o revisor é
encarregado de ouvir o áudio e fazer as correções que achar pertinente (acrescentar, excluir e/ou
reorganizar palavras), além de se dedicar a resolver as dúvidas e os trechos não compreendidos
pelo transcritor. O ideal é que o revisor seja um dos entrevistadores, pois ele pode recorrer à
memória para completar a transcrição. É recomendado, ainda, que somente uma pessoa seja
responsável pela revisão, para dar uniformidade ao texto.
171
Concluída a subetapa de Transcrição, passa-se para a segunda grande etapa da metodologia: a
Sistematização da informação coletada in loco, que é a organização do material que agora se tem
em mãos. Essa subdivide-se em duas etapas: o Resumo da Conversa e os Apontamentos. O
Resumo da Conversa é a disposição organizada nos tópicos contemplados na Conversa Estruturada.
Finalmente, em seguida, faz-se uma análise crítica sobre as questões abordadas ou não nas
entrevistas que são inseridas na etapa Apontamentos. Esses apontamentos são bem úteis para
nortear as próximas entrevistas.
172
ANEXOS
ANEXO 1
RELAÇÃO DAS VILAS E CONJUNTOS REGULARIZADOS (1986 - 2012)
173
Fonte: PBH, 2013
174
ANEXO 2
REGULARIZAÇÃO DAS VILAS E CONJUNTOS
175
ANEXO 3
LOTEADORES ASSOCIATIVOS: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO
LOTEADORES ASSOCIATIVOS: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO
Silke Kapp, Rebekah Campos, Pedro Arthur Novaes Magalhães, Tiago Castelo Branco Lourenço
O loteador e seu negócio
O loteador se tornou uma espécie de personagem da literatura especializada sobre a urbanização
das cidades brasileira e suas mazelas. Formalmente, ele equivale ao incorporador: pessoa física ou
jurídica, com ou sem fins lucrativos, individual ou coletivo, atuante em qualquer faixa de renda. Mas
no senso comum – popular e acadêmico – o loteador figura como pequeno capitalista fundiário que
produz lotes na periferia para vendê-los a trabalhadores pobres com lucros exorbitantes, sendo
assim responsável direto pela expansão da cidade precária. Tanto é, que o termo loteador raramente
comparece quando se trata de imóveis caros – o agente aí se chama ‘empreendedor’.
Nos anos 1970 e 1980, a produção de loteamentos periurbanos populares por loteadores privados
foi objeto de pesquisas nas regiões metropolitanas de São Paulo (Bonduki e Rolnik, 1982), Rio de
Janeiro (Chinelli, 1980) e Belo Horizonte (Costa, 1983). Essas pesquisas mostram como funcionava
o negócio imobiliário dos loteamentos até aquele período e a visão que dele tinham os moradores e
os próprios loteadores. Tomem-se por exemplo, os loteadores do Rio de Janeiro entrevistados por
Filippina Chinelli. Haviam iniciado suas atividades na década de 1950, quando existiam poucas
restrições e exigências legais. Compravam glebas baratas, abriam ruas e demarcavam lotes,
dispensando a infraestrutura urbana. O pagamento pelas famílias se fazia em inúmeras prestações,
sem entrada, fiadores, garantias e formalidades, mas a um preço alto em vista dos poucos
dispêndios de produção. Um dos entrevistados explicita essa lógica sem constrangimento: “Eu,
como comerciante que sou, tenho uma função específica, que é comprar barato e vender
caro” (Chinelli, 1980, p.56). Em outras palavras, a (baixa) solvabilidade da demanda e a (alta) taxa
de lucro esperada determinam o (baixíssimo) custo de produção e a (má) qualidade do produto. Mas
os loteadores viam a si mesmos como promotores de justiça social, em contraposição a um Estado
incompetente para suprir a demanda habitacional. E os moradores dos loteamentos tendiam a
2
pensar de modo semelhante: consideravam mais fácil a negociação direta com o loteador do que o
trato com instituições abstratas como bancos e orgãos públicos. Chinelli também indica que o
incremento das exigências legais ao longo da década de 1970 vinha impelindo os loteadores a
operar irregular ou clandestinamente, quando não abandonavam o ramo. 1 Como resume um deles,
“não adianta [a lei] exigir obras de infra-estrutura que o povo não pode pagar” (Chinelli, 1980, p.54).
Conivência e corrupção das instâncias de aprovação e fiscalização fazem parte desse contexto de
loteamento da periferia.
Embora as pesquisas citadas tenham tido o cuidado de evidenciar as contradições de tal processo e
não demonizar a figura do loteador per se, elas forneceram elementos para que esse agente e seu
negócio se tornassem, como já dito, uma espécie de senso comum da literatura especializada.
Muitos trabalhos tomam ainda por pressuposto suas operações especulativas, ‘inescrupulosas’ ou
‘selvagens’ (por exemplo: Pasternak, 2010; Lima, 2009; Coelho, 2005; Costa e Gonsalves, 2005).
Essa perspectiva não é falsa – porque de fato existem inúmeros loteamentos populares produzidos
por loteadores privados – mas é incompleta. Na expansão periférica do espaço de moradia dos
pobres houve outros agentes loteadores que comparecem com menos frequência na discussão
acadêmica. Um deles é o Estado, outro são movimentos sociais e associações populares. 2
Iniciamos a pesquisa a esse respeito quase por acaso. Num pequeno protesto contra a polarização
das discussões sobre a habitação entre o Programa Minha Casa Minha Vida e as intervenções em
favelas, decidimos retomar a investigação empírica da periferia loteada, que ainda é a forma mais
comum de moradia popular. E esperávamos encontrar na Região Metropolitana de Belo Horizonte
(RMBH) loteamentos feitos pelos clássicos loteadores privados. Mas no trabalho de campo
constatamos que vários dos loteamentos iniciados nas décadas de 1980 e 1990 haviam sido
produzidos por associações. Percebemos também que esses loteadores associativos – como
De fato, pesquisas posteriores confirmam a progressiva ilegalidade e clandestinidade, que à época da pesquisa de Chinelli
estava começando a se delinear (ver Ribeiro e Lago, 1992; Costa, 1994).
1
Evidentemente, além dos loteamentos, a expansão periférica se produziu também por ocupações ‘espontâneas’, isto é,
favelas, que não são objeto deste estudo. Lago (2003) argumenta que a distinção entre favelas e loteamentos se tornou
nebulosa, porque já não se aplicam as contraposições que antes os diferenciavam, tais como legal versus ilegal ou traçado
ordenado versus traçado desordenado. Para o presente texto, mantivemos a tipologia adotada em outras ocasiões: no tipo
parcelamento (ao qual pertencem os loteamentos), as decisões sobre configuração urbana e delimitação de parcelas é
tomada num momento determinado e por um único agente (que pode ser coletivo); no tipo aglomerado (ao qual pertencem
as favelas) essas mesmas decisões são tomadas ao longo do tempo e por muitos agentes (Kapp, 2012).
2
3
sugerimos denominá-los – tiveram pelo menos duas peculiaridades: a busca do valor de uso da
moradia e da cidade, em vez de lucro ou renda fundiária; e experiências de gestão independentes
do capital privado e do Estado.
A tentativa de reconstituir a história desses loteadores associativos ainda está em curso, mas os
documentos, depoimentos e observações reunidos até agora nos permitem apresentar o tema e
contextualizá-lo para uma discussão mais ampla.3 Com esse objetivo, o presente texto procura
delinear o cenário econômico e político em que os loteadores associativos surgiram e os
procedimentos que usaram, além de tentar apontar por que sua história foi quase ignorada, embora
contenha elementos que interessam à discussão de políticas urbanas e habitacionais com o objetivo
da autonomia coletiva.
O cenário dos loteadores associativos
A produção de loteamentos populares na RMBH da 1970 é descrita por Heloísa Costa (1994, p.62)
como “fruto de uma ação claramente orquestrada por parte de uma fração específica do capital
imobiliário”, que alcança “dimensões alarmantes”: na RMBH há 80 mil lotes sem infraestrutura ou
quaisquer facilidades urbanas produzidos por loteadores privados entre 1975 e 1979. A autora
também constata que o ramo se retrai na década de 1980, em razão da inflação, do preço da terra,
da queda generalizada do poder aquisitivo e das legislações mais rígidas (Costa, 1994, p.67). Sua
conclusão é de que a acelerada expansão urbana periférica da década de 1970 é sucedida por uma
fase de ocupação e adensamento das áreas já loteadas.
Sem excluir tal processo de adensamento, compreendemos que os loteadores associativos
começam a se organizar justamente nesse período de retração econômica. Se para os agentes do
capital imobiliário o ramo dos loteamentos se torna inviável porque pouco lucrativo, o mesmo não
vale para as associações. Com uma equação sem lucro, chegam a realizar empreendimentos em
que a pequena capacidade de poupança dos associados cobre os custos de aquisição de um gleba,
A pesquisa que resultou nos dados aqui apresentados está sendo desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa MOM (Morar de
Outras Maneiras) da Escola de Arquitetura da UFMG, ao qual pertencem os autores. Cabe destacar o Trabalho de
Conclusão de Curso de Rebekah Campos (2013), que aprofunda, no âmbito dessa temática, a história dos loteamentos
associativos liderados ou apoiados diretamente pelo Padre Pier Luigi Bernareggi, o Padre Piggi.
3
4
contratação de projetos e serviços de topografia e abertura de ruas. E mesmo assumindo tais
custos, os associados pagam contribuições mensais muito inferiores às prestações cobradas por
loteadores privados, considerando-se localização e infraestrutura equivalentes. 4 Portanto, as
décadas que os economistas costumam chamar de ‘perdidas’ ofereceram brechas para uma
produção não capitalista do espaço urbano que chegou a incluir projetos cooperativistas, tentativas
de geração de renda, preservação ambiental e outros ideais para além da simples reprodução da
força de trabalho assalariada.
O surgimento dos loteadores associativos é condicionado pelas próprias políticas habitacionais da
década de 1980. Essas são, como se sabe, poucas, eventuais e até oportunistas. O Banco Nacional
da Habitação (BNH), que na década de 1960 ainda destinava parte substancial dos recursos ao
atendimento de famílias com renda mensal inferior a três salários mínimos, depois disso passa a
favorecer mutuários de renda mais alta, mesmo para as unidades produzidas pelas Cohabs, isto é,
pelas companhias habitacionais criadas para suprir o então chamado “mercado popular”, exercendo
nele o papel que as cooperativas e os incorporadores cumpriam no “mercado econômico” e no
“mercado médio”, respectivamente (Azevedo, 1988). Como medida compensatória para atender a
pelo menos algumas das famílias mais pobres e não abandonar por completo seus objetivos sociais,
o BNH lança a partir de 1975 os chamados programas alternativos, baseados no apoio à
autoconstrução e à ajuda mútua mediante financiamento ou doação de material de construção e de
lotes urbanizados.5 Nenhum desses programas chega a ter relevância quantitativa6 , mas eles
cumprem importantes funções ideológicas. Por um lado, se alinham com diretrizes então
preconizadas pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano do Desenvolvimento, funcionando
como paliativos para abrandar o potencial de revolta que a precariedade habitacional implica. Por
Os valores que nos foram informados por lideranças de associações e outros envolvidos são cerca de cinco vezes
menores: enquanto loteadores privados cobravam prestações em torno de um salário mínimo, os associados pagavam 20%
desse valor. Não temos fontes documentais para verificar essa informação, mas mesmo que haja distorções e exageros, é
plausível que a discrepância tenha sido expressiva. Ela ficou marcada na memória dos informantes porque foi motivo de
indignação na época.
4
Os programas alternativos do BNH foram: Programa de Erradicação da Sub-habitação (Promorar), Programa de
Autoconstrução (João-de-Barro), Financiamento para Construção, Ampliação e Melhoria da Habitação (Ficam) e Programa
de Financiamento de Lotes Urbanizados (Profilurb).
5
6
Os programas alternativos foram responsáveis por 5,9% das unidades financiadas pelo BNH (Azevedo, 1988, p. 117).
5
outro lado, são relativamente bem vistos por grupos engajados, incluindo os próprios movimentos
sociais. Alguns vislumbram na auto-ajuda assistida uma possibilidade de emancipação popular.
À ambivalência desses programas – entre expediente conservador e semente emancipatória –
corresponde a polêmica acerca de qualquer autoconstrução em sociedades capitalistas, que foi mais
acirrada nos anos 1970, mas nunca desapareceu por completo. O arquiteto britânico John F. Turner
introduz o tema da auto-ajuda no debate e na agenda dos organismos internacionais a partir de seu
trabalho nas barriadas peruanas nos anos 1960. Ele mostra, de modo bastante pragmático, que as
necessidades cotidianas costumam ser melhor atendidas por moradias e espaços urbanos que a
população mais pobre cria para si mesma do que por conjuntos habitacionais e outros expedientes
do Estado (Turner, 1976). Mas Turner não submete essas constatações empíricas a nenhuma
análise econômico-política mais ampla. Seus argumentos acabam legitimando desde reduções dos
investimentos públicos em habitação até apologias da pequena propriedade privada.
Análises mais sistemáticas acerca da autoconstrução são apresentadas por teóricos brasileiros. O
principal argumento contrário parte da composição dos salários numa economia capitalista: em tese,
eles deveriam cobrir a totalidade dos custos de reprodução da força de trabalho, incluindo a
moradia. Mas a autoconstrução reduz os custos de reprodução justamente por subtrair deles a
parcela correspondente à moradia. Os trabalhadores que constroem suas casas nas horas ‘vagas’
beneficiam o capital, que passa a poder empregá-los por salários mais baixos, e ainda beneficiam o
Estado, que pode ignorar o problema habitacional (Oliveira, 1972 e 2006; Singer, 1974; Maricato,
1982). O contra-argumento a esse raciocínio parte da constatação de que o capitalismo no Brasil
nunca operou com salários que correspondessem ao custo real de reprodução dos trabalhadores e
sempre manteve um enorme ‘exército de reserva’ de desempregados, de modo que a
autoconstrução se tornou uma necessidade, não uma opção (Ferro, 2006; Azevedo e Andrade,
[1982] 2011). Além disso, apoiá-la técnica e economicamente pode representar um avanço porque o
trabalho nela realizado tende a ser menos alienado do que o trabalho diretamente subordinado ao
capital: o autoconstrutor é mentor do processo e proprietário do produto de seu trabalho. Finalmente,
há a perspectiva de que a autoconstrução organizada na forma de mutirão autogestionário gere uma
coesão entre os participantes e aumente seu poder político coletivo (Bonduki, 1987; Lopes, 2006).
6
Essas são, grosso modo, as posições acerca da autoconstrução que se configuram em meados da
década de 1980.
No mesmo período, o fim do regime militar e a incorporação do BNH à Caixa Econômica Federal
criam “um vácuo com relação às políticas habitacionais” (Cardoso, 2003). A responsabilidade pela
habitação e pelo desenvolvimento urbano é empurrada entre ministérios e secretarias federais por
mais de uma década, com enormes incongruências e dificuldades operacionais, o que tem dois
efeitos importantes para a nossa questão: a transferência de parte da responsabilidade pela
habitação popular a estados e municípios; e a criação de novos programas alternativos, também
pautados nos princípios de autoconstrução e ajuda mútua, mas livres do aparato institucional do
BNH e fomentados por recursos que não provêm do Sistema Financeiro da Habitação. O mais
relevante desses novos programas alternativos é o Programa Nacional de Mutirões Habitacionais da
Secretaria Especial de Ações Comunitárias (SEAC; Azevedo, 1996). Ele se caracteriza por conveniar
sempre três entidades: a própria SEAC; uma prefeitura ou um orgão da administração estadual; e as
chamadas “sociedades comunitárias”, isto é, associações populares (Souza, 2002). Essa inclusão
formal dos beneficiários no convênio e no processo de decisão reflete o fortalecimento dos
movimentos sociais a partir da abertura política e, nesse sentido, pode ser considerado positivo. Mas
não se deve esquecer que tal inclusão também é uma saída para os entraves administrativos dos
governos, particularmente do governo federal. Os empreendimentos são realizados conforme a
capacidade de organização e articulação política das associações, não segundo um plano nacional,
uma lógica urbana e uma escala racional de urgências.
O cenário de meados da década de 1980 apresenta, portanto: um déficit habitacional cada vez
maior; uma conjuntura econômica desfavorável aos loteadores privados e à produção habitacional
pelo capital da construção; uma desarticulação dos orgãos públicos antes responsáveis por
programas habitacionais e urbanos; organismos internacionais que apoiam a auto-ajuda; e um clima
de mobilização, renovação política e confiança na capacidade organizacional da própria população,
que também legitima aplicações incongruentes dos recursos públicos.
A Associação dos Moradores de Aluguel da Grande Belo Horizonte (Amabel), que aqui tomamos
como exemplo de loteador associativo, é fundada nesse contexto. Segundo relatos do padre Pier
7
Luigi Bernareggi, responsável pela paróquia do bairro Primeiro de Maio e pivô do movimento, a ideia
nasce da necessidade de reassentar famílias removidas em razão de obras viárias.7
A minha paróquia aqui tinha um lote lá embaixo, dos vicentinos, das famílias que
ficavam na rua, despejados e tal. Então mandavam lá pra aquele lote. Só que o lote
cabia dez, quinze famílias no máximo, não cabia mais nada. Quando chegou a
décima sexta família, o que é que eu ia fazer? Eu falava: Ó gente, eu não tenho
mais nada, o que que eu vou fazer? Então junta os seus colegas, os seus amigos na
sua situação, lá do seu cortiço, dos sobrados, gente que mora de aluguel, gente que
mora num lote só, pobres, miseráveis. O povo discutiu aqui nesse salão aqui... A
ideia foi: vamos criar uma associação de luta pela moradia de baixa renda, vamos
batalhar, que nós não temos terra aqui. Só se pode construir se tiver terreno. Então
vamos trabalhar. Então nós colocamos um encontro grande com o prefeito. Nós
chamamos o prefeito, o presidente da câmara dos vereadores e tal e tal. E o
[prefeito Sérgio] Ferrara foi muito simpático à ideia, pegou o secretário de ação
comunitária dele e jogou em cima dessa problemática. De fato foi um choque. Em
três anos [1986 a 1988] construímos 20 mil moradias em Belo Horizonte, de baixa
renda, de zero a três salários mínimos – coisa que nunca aconteceu nessa cidade.
(Bernareggi, 2013, entrevista).
Outras fontes narram o episódio de modo semelhante: a ação iniciada na paróquia do Padre Piggi
consegue reunir 800 famílias em poucos meses, e depois se expande a outros bairros, chegando a
mais de três mil famílias em sete núcleos, que formalizam a associação em 1986 (Fundação AVSI,
2007; Urbel, 2001). No entanto, o que Padre Piggi relata como uma negociação direta e quase
pessoal da Amabel com o prefeito Sérgio Ferrara tem um pano de fundo político mais amplo.
Ferrara, filiado ao PMDB, é o primeiro prefeito eleito de Belo Horizonte depois de 1964. Ele havia
prometido moradias na campanha eleitoral, distribuindo até certificados de inscrição à casa própria.
Logo que é empossado, cria o Programa Municipal de Habitação Popular, que inclui a distribuição de
lotes urbanizados e de materiais de (auto)construção. A execução do programa fica sob
responsabilidade da Secretaria Municipal de Ação Comunitária (SMAC), o equivalente local da
SEAC. “Dá-se início, então, a uma experiência possivelmente exemplar em termos de
desorganização e vulnerabilidade às oscilações do jogo político” (Guimarães, 1990, p.5). Em 1986,
Parece ter havido pelo menos dois antecedente: a ocupação no bairro Mariano de Abreu, organizada pela União dos
Trabalhadores de Periferia e pela Pastoral de Favelas (então coordenada pelo Padre Piggi) em 1985; e o movimento pelo
loteamento da região do Taquaril, iniciado em 1984. Mas em nenhum dos dois casos existe uma gestão do próprio processo
de loteamento pelas respectivas associações.
7
8
diversos grupos já vinham pressionando para que o Programa começasse a funcionar de fato. É
então que se estabelece um acordo entre a Prefeitura e as associações.
Os termos desse acordo são nebulosos, porque cada agente os relembra a seu modo. Segundo a
presidente da Amabel, a associação deveria indicar as áreas a serem desapropriadas, definir o
parcelamento e organizar a autoconstrução das casas, ficando a cargo da Prefeitura a
desapropriação e a regularização documental. Mas, formalmente, o Programa previa que o registro
final dos lotes fosse feito pelas famílias e que essas pagassem à associação contribuições no valor
mensal de um décimo do salário mínimo durante cinco anos. Com o dinheiro arrecadado, a
associação deveria construir equipamentos públicos (Guimarães, 1990, p.6).
O primeiro empreendimento da Amabel foi o Jardim Felicidade. As lideranças relatam que a própria
associação teria levantado recursos da SEAC e da Fundação AVSI (Associação Voluntária Social
Italiana, uma organização não-governamental), contratado topógrafos e projetistas, organizado a
autoconstrução das casas-embrião e ocupado metade da área (cerca de mil lotes), para então, em
1988, transferir a responsabilidade pela ocupação do restante da área para a recém fundada
Sociedade Comunitária dos Moradores do Jardim Felicidade. Um dos motivos para essa ‘retirada’ da
Amabel parece estar em desentendimentos e corrupção interna da associação, mas a data também
coincide com a interrupção do Programa Municipal de Habitação Popular, por um embate do
governo municipal com o recém eleito governo estadual de Newton Cardoso. O Programa, que deu
origem a outros oito loteamentos além do Jardim Felicidade, passa a ser alvo de ferrenhas críticas,
seja em razão da precariedade urbana dos espaços resultantes, seja pelo clientelismo a que teria
dado margem. Mas
também cabe notar que a política de Ferrara continua sendo lembrada
positivamente por algumas lideranças das associações daquela época. Os agentes que
entrevistamos estão convencidos de que “o governo” deveria disponibilizar lotes, material e
assessoria técnica, como fez esse prefeito, em vez de condicionar os benefícios à integração das
famílias em processos de gestão e produtos arquitetônicos predefinidos.
Em 1989, com a substituição da administração do PMDB de Ferrara pelo PSDB de Pimenta da Veiga
e Eduardo Azeredo, as associações de sem casa perdem o apoio da Prefeitura de Belo Horizonte e
começam a agir de maneira bem menos organizada do que na fase anterior. A ‘conquista’ da terra se
torna tarefa mais importante do que a organização do processo de ocupação. Um exemplo dessa
9
fase é o loteamento Novo Aarão Reis, iniciado em 1992. Numa ação conjunta, a Amabel, a
Federação das Associações de Moradores de Belo Horizonte (Famobh) e a União dos Trabalhadores
de Periferia (UTP), organizam a ocupação em terras públicas estaduais para tentar forçar a
regularização. Sem plano urbano, abertura de vias ou recursos externos, os moradores
simplesmente entram na área, capinam e montam suas barracas de lona. O governo do estado se
vê forçado a tomar providências e aciona a Cohab, que então passa a coordenar os projetos
urbanos, a distribuição dos lotes e a construção de parte das casas. E, dada essa constelação, a
Prefeitura acaba assumindo a execução das obras de infraestrutura (Oliveira, 2013b, entrevista).
Mas importa acentuar que os prefeitos Pimenta da Veiga e Eduardo Azeredo rechaçam a
‘distribuição de lotes’ praticada pela prefeitura anterior e se recusam a implantar qualquer política
habitacional para substituí-la, com o argumento de que isso atrairia mais migrantes pobres
(Guimarães, 1990; Bedê, 2005).
Contudo, se essa postura representou uma mudança para as associações, o que transforma mais
profundamente sua situação é a eleição da Frente BH Popular, encabeçada pelo prefeito Patrus
Ananias, em 1993.8 O vácuo institucional das políticas habitacionais e de desenvolvimento urbano
em Belo Horizonte é preenchido por uma administração mais democrática e progressista que todas
as anteriores. O Fundo Municipal de Habitação Popular, existente desde 1955, recebe nova
regulamentação em 1993, determinando a criação do Conselho Municipal de Habitação e
designando a Urbel como executora de políticas propostas e aprovadas pelo Conselho. Esse último,
com participação de movimentos populares e de outros segmentos da sociedade civil, é
regulamentado em 1994 e, no mesmo ano, aprova a Política Municipal de Habitação. Mônica Bedê,
que faz uma análise detalhada desse processo, descreve a formulação da nova política nos
seguintes termos:
A Política Municipal de Habitação é concebida num contexto muito marcado pela
mobilização social em torno de uma sucessão de eventos políticos como o processo
constituinte, o projeto de lei de iniciativa popular criando um sistema nacional de
habitação, o impeachment do Presidente Collor de Melo e, localmente, pela
elaboração da Lei Orgânica Municipal, que faz da Câmara Municipal de Belo
Patrus Ananias é filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), mas a Frente BH Popular compõe-se, além do PT, dos
partidos Socialista Brasileiro (PSB), Comunista do Brasil (PC do B), Comunista Brasileiro (PCB) e Verde (PV).
8
10
Horizonte, então composta por uma expressiva bancada de partidos de esquerda, o
espaço central do debate sobre a questão urbana no início da década de 90. Fruto
desse contexto, a Política Municipal de Habitação nasce na segunda geração de
administrações municipais progressistas que se sucedem após a Constituição
Federal de 1988 e sua concepção se referencia, principalmente, no ideário do
movimento da reforma urbana e no “modo petista de governar”, bíblia dos militantes
do Partido dos Trabalhadores que se lançam na aventura da administração pública
naquele período. (Bedê, 2005, p.78)
Não é objetivo deste texto a discussão da gestão da Frente BH Popular entre 1993 e 1996 ou de
suas consequências nos anos seguintes. Importa que a estruturação da nova política habitacional,
ao mesmo tempo que inclui institucionalmente uma parte significativa dos movimentos populares de
luta pela moradia, inviabiliza a atuação de outra parte desses movimentos, seja por sua aliança com
a prefeitura do PMDB, por sua relação com a igreja católica ou por sua insistência no modelo de
lotes e casas individuais em empreendimentos de milhares de unidades. 9 As lideranças desses
movimentos consideram inútil procurar terrenos em Belo Horizonte, em razão do preço, das
restrições legais e, principalmente, da falta de apoio político: “Ele [o prefeito Patrus Ananias] nos deu
a advertência de não ousar comprar nada dentro de Belo Horizonte, porque seríamos expulsos com
ordem judicial. Então, diante disso, abandonamos a ideia de construir dentro de Belo Horizonte e
fomos caçar aí afora.” (Bernareggi, 2013, entrevista). Começa aí a fase mais importante da história
dos loteadores associativos, que migram para municípios vizinhos e passam a operar de forma
independente, sem apoio ou co-gestão de orgãos públicos municipais, estaduais ou federais.
A prática dos loteadores associativos
O bairro Metropolitano no município de Ribeirão da Neves é, salvo engano, o maior empreendimento
de loteadores associativos na RMBH.10 Nele se cristalizam práticas sem a participação de governos
A produção habitacional preconizada na nova constelação política, incluindo parte dos movimentos sociais e a assessoria
técnica da Usina (de São Paulo), era mais próxima do exemplo uruguaio, seguindo os princípios do cooperativismo para
mutirões autogestionários de edifícios multifamiliares ou unifamiliares construídos coletivamente. O limite que perdurou por
muito tempo na política habitacional de Belo Horizonte era de cerca 300 unidades por empreendimento, na perspectiva de
que assim se poderia inserir os novos conjuntos na malha urbana existente.
9
Esse empreendimento foi objeto de uma pesquisa detalhada, de autoria de Elieth Amélia de Sousa (2002), o que é uma
exceção ao ‘esquecimento’ dos loteadores associativos na academia. Note-se, no entanto, que tal pesquisa não foi
realizado a partir das áreas de Arquitetura, Urbanismo ou Planejamento Urbano, mas a partir das Ciências Sociais.
10
11
e outras instituições. A iniciativa parte de uma nova associação, a Central Metropolitana dos Sem
Casa (CemCasa), fundada em 1993 pelo Padre Piggi – que então já havia se desligado da Amabel –
e por lideranças leigas de pastorais arquidiocesanas. A estratégia intencionada pela CemCasa é
comprar glebas rurais e loteá-las, em vez de esperar ou forçar doações do Estado. Ao mesmo
tempo, o relativo sucesso dos loteamentos de fases anteriores atrai milhares de famílias que
esperam obter a casa própria mais rapidamente por essa via do que pela recém-criada política
habitacional de Belo Horizonte.
Em 1995 surge a primeira possibilidade de um grande empreendimento desse tipo: a aquisição da
Fazenda Dom Orione no município de Betim. A CemCasa consegue uma negociação com a
Companhia de Distritos Industriais de Minas Gerais (CDI-MG), proprietária do terreno, e seis mil
famílias iniciam o pagamento das prestações, no valor correspondente a 30% do salário mínimo.
Com apoio do arquiteto José Carlos Laender e do engenheiro Eduardo Antunes, a CemCasa produz
os projetos técnicos e chega a encaminhá-los à prefeitura de Betim, embora saiba que as chances
de aprovação são quase nulas. Depois de cinco meses e metade do valor quitado, a CDI autoriza o
início da ocupação. As famílias começam a limpar o terreno para a entrada dos tratores e a
demarcação pelos topógrafos: “Todo sábado e domingo ia lá […] 40, 50 ônibus cheios de gente.
Aquilo ali parecia um formigueiro” (Bernareggi, 2012, entrevista). No entanto, a prefeitura interdita o
empreendimento com a alegação de crime ambiental. 11 Em poucos dias, as lideranças da CemCasa
se vêem obrigadas retirar seus equipamentos e a solicitar a devolução da quantia já paga à CDI
para ressarcir os associados; “fiquei um ano inteiro aqui na porta, na igreja, toda quinta-feira de
manhã, de madrugada até de noitão, devolvendo dinheiro pra essa gente toda e ouvindo... Só Deus
sabe o que eu ouvi, o que eu tive que acatar aqui” (Bernareggi, 2012, entrevista).
Muitas famílias se desligam da CemCasa depois desse episódio. Para recuperar sua confiança,
fortalecer o movimento diante da oposição crescente do poder público e reunir um número suficiente
de famílias para um novo grande empreendimento, a CemCasa se associa à Amabel e à Federação
O padre diz que a prefeita “mandou invadir a sua fazenda dos sem-casa pelos sem-terra. Seis famílias armadas até os
dentes botaram as suas barracas dentro da fazenda, e mandaram o recado ‘Quem entra aqui nós vamos matar!’ […] Lá
hoje nessa fazenda, tem seis família, dois milhões e quatrocentos... e seiscentos mil metros quadrados. E tem seis famílias
colhendo vagem ou colhendo rabanete. Seis famílias! Lá era pra ficar seis mil famílias!” (Bernareggi, 2012, entrevista). De
fato, a fazenda Dom Orione de tornou um assentamento de Reforma Agrária em 1997, abrigando 39 famílias filiadas à
Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (Fetaemg; Mazzetto Silva, 2008).
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das Associações de Vilas, Favelas e Conjuntos (Favifaco), que também havia participado do
programa de Ferrara alguns anos antes. Além de resultar nessa congregação de associações,
podemos supor que o fracasso do loteamento na Fazenda Dom Orione teve um efeito de abertura
entre as lideranças: elas passam a procurar formas de compartilhar com as famílias a
responsabilidade pelas decisões – bem ou mal sucedidas.
Em 1996 as três associações em conjunto conseguem negociar a Fazenda Castro no município de
Ribeirão das Neves, depois que o local é inspecionado e aprovado pelos associados. Inicia-se o
pagamento de prestações no valor de 20% do salário mínimo para cada família durante um ano,
mais tarde acrescido de uma taxa de 10% do salário mínimo destinada aos serviços técnicos. O
projeto urbano fica novamente a cargo do arquiteto José Carlos Laender, contratado pelos
participantes (“muitas vezes saí de lá com bolos de notas de cinco”; Laender, 2013, entrevista). No
processo de elaboração desse projeto, as famílias são melhor informadas acerca de possibilidades e
condicionantes técnicos do que parece ter ocorrido em empreendimentos anteriores; as lendárias
reuniões de quatro mil pessoas indicam um processo participativo, ainda que não coletivo.12 O plano
resultante, com 3580 lotes de 200 metros quadrados em 10 hectares, configura um padrão de
urbanização relativamente generoso, respeitando o relevo e os caminhos d’água, e incluindo áreas
verdes e áreas para equipamentos públicos.
No ano seguinte os associados realizam parte das obras de infraestrutura do bairro Metropolitano
em regime de mutirão. Limpam o terreno, abrem ruas, fazem contenções de encostas, cavam poços
artesianos, constroem uma caixa d’água comunitária. Também contratam alguns serviços, como a
retroescavadeira. Essa só pode trabalhar durante à noite porque a prefeitura de Ribeirão das Neves
está a par dos planos e fiscaliza o local com frequência. Quando, em 1997, as famílias começam a
construção das casas e muitas se instalam ali em barracas de lona para economizar o aluguel, a
prefeitura faz uma última tentativa de impedir a ocupação:
Quando a Prefeitura viu isso mandou espalhar um folheto pra todo mundo: proibido
construir, multa de mil reais por dia. […] para nós foi uma piada. Então todo mundo
Entendemos como participativos os processos de projeto em que o comando fica a cargo de uma instância (no caso, o
arquiteto) e as demais instâncias “participam” desse processo com informações ou mesmo interferências nas decisões. Em
contrapartida, um processo coletivo implica que todos os participantes estão em igualdade de condições para definir a
estrutura do processo, independentemente do fato de não disporem dos mesmos conhecimentos técnicos.
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continuou a construir, e eles não puderam fazer nada porque eram três mil famílias
construindo. Multa? Como é que você vai cobrar mil reais por dia dessa gente? Aí,
ficou por isso mesmo”. (Bernareggi, 2013, entrevista)
Nessa fase de ocupação, o loteamento é dividido em três setores, cada um sob responsabilidade de
uma das três associações. Mas essas se encarregam principalmente da distribuição de lotes,
enquanto a construção das casas se faz individualmente, com cada família concebendo o seu
próprio espaço sem um padrão geral e – pelas informações que obtivemos até agora – sem ajuda
dos vizinhos, compartilhamento de compras de material e coisas semelhantes. 13 As famílias
entendem sua coesão como temporária e instrumental, sem a idealização do mutirão que foi
alimentada no Brasil sobretudo a partir do modelo uruguaio. Nesse sentido, confirmam a crítica de
Francisco de Oliveira:
É preciso que exista um ente místico chamado povo para o mutirão funcionar, e
esse povo é a comunidade. Cria-se aquela comunidade ilusória, que não resiste um
dia depois de concluídas as casas, para obrigar cada um a doar o próprio trabalho:
isso não é formação de cidadania. Sinto muito, está no pólo oposto. [...]. O método
da ilusão necessária para forjar uma identidade que não é real, que não subsiste
senão pelo lado das carências. Quando essa ilusão desaparece, assim que a casa
foi enfim conseguida, desaparece a coesão, desaparece a identidade com aquele
projeto. São formas, portanto, que estão na linha limítrofe, às vezes aparecendo
como exercício de cidadania, às vezes como forma de violência. Refiro-me aqui não
aos processos desses mutirões virtuosos, não faria essa ofensa a quem faz esse
enorme esforço, mas à generalização dessas soluções, que é uma espécie de
estado de exceção, caracterizado por aquilo que Giorgio Agamben chama de “a vida
nua”: você inclui pela exclusão. (Oliveira, 2006, p.73)
No bairro Metropolitano, o arquiteto e parte das lideranças previam espaços para cooperativas de
consumo, um centro social, hortas comunitárias e outras possibilidades de sustentação econômica.
No entanto, isso “não vingou não” (Oliveira, entrevista, 2013). As obras coletivas que conseguiram
realizar são de uma igreja e uma escola. À diferenças dos “movimentos sociais clássico” que lutam
por bens imateriais e não negociáveis (igualdade racial, paz, meio ambiente etc.; Sousa, 2002, p.
15), os loteadores associativos não almejam uma transformação social, mas sua integração na
Laender chega a elaborar um projeto de casa embrião, mas não há nenhuma exigência nesse sentido como havia no
caso do Jardim Felicidade.
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sociedade existente. Assim, mesmo os que hoje consideram o bairro Metropolitano uma “cidade
pioneira, autogerida e autofinanciada” (Laender, 2013, entrevista), admitem que a prioridade
absoluta das famílias sempre foi a casa própria. De certa maneira, eles reproduziram o que os
loteadores privados vinham praticando nas décadas anteriores, apenas com a consciência de que
poderiam, coletivamente, escapar de uma parte da costumeira exploração econômica. A coesão
entre os associados constituiu um meio para esse fim, não um fim em si mesma.
Nos anos seguintes à ocupação, as associações procuram obter a aprovação do loteamento junto à
prefeitura de Ribeirão das Neves, que de fato a concede em 1998, mas sem regularizar as
escrituras. A água chega ao bairro também em 1998, as obras de saneamento, apenas em 2008. Há
indícios de que a provisão desses serviços para os loteamentos associativos foi muito mais
demorada do que para aqueles produzidos por loteadores privados no mesmo município, ou seja,
que houve maior conivência do poder público com esses últimos.
Hoje existe um projeto do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para melhorar a
infraestrutura, calçar ruas, definir parques nas áreas não ocupadas e regularizar juridicamente as
propriedades. Mas a regularização enfrenta dois problemas maiores. Um deles é que cada lote
cadastral corresponde a dois lotes reais (400m2 e 200m2, respectivamente), e os moradores não
querem escrituras conjuntas com um vizinho. Além disso, houve complicações que hoje dificultam a
regularização, como ocupação de áreas não edificáveis e “falcatruas” das lideranças (venda dupla
de lotes, favorecimento nos sorteios e malversação do dinheiro pago pelas famílias; Souza, 2013,
entrevista). Várias lideranças abandonaram o processo, seja porque estavam envolvidas nos
abusos, seja porque queriam combatê-los.
Não se pode dizer o processo do bairro Metropolitano tenha sido exemplar. À primeira vista, nem
mesmo a sua configuração física difere da de loteamentos privados, com cada família construindo
no seu pequeno lote e à sua maneira. O bairro não propicia imagens de uma coletividade coesa
(como em alguns empreendimentos cooperativos), nem imagens de ordem padronizada (como nos
conjuntos habitacionais de gestão pública). Porém, apesar de todos esses problemas, o espaço
urbano desse loteamento popular associativo é de melhor qualidade do que o de loteamentos
populares privados, pelo simples fato de não ter sido condicionado pela utilização máxima da área
disponível. As áreas preservadas da ocupação ao longo do tempo, bem como o arruamento e os
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espaços destinados a equipamentos públicos, permitiriam transformá-lo num ambiente urbano
satisfatório com investimentos relativamente baixos. Note-se que essa possibilidade não tem
nenhuma relação com o aparato legal. O bairro Metropolitano foi feito sem aprovação da prefeitura,
assim como a maioria dos loteamentos populares privados. O que gera sua relativa qualidade
urbana é sua lógica de produção e a diferença dessa lógica em relação à dos loteadores privados. A
prioridade do valor de uso se expressa no resultado urbano. Nesse sentido, bem como no que diz
respeito ao desenvolvimento socioeconômico dos moradores, interessaria a sua comparação, hoje,
com loteamentos privados e empreendimentos da Prefeitura de Belo Horizonte implantados no
mesmo período.
O esquecimento dos loteadores associativos
Loteadores e loteamentos associativos surgem num momento em que o Estado e os organismos
internacionais preconizam os ‘programas alternativos’ e são favoráveis a que a associações
assumam a responsabilidade pelos resultados e, assim, os legitimem. Mais tarde, com a abertura
política, a Constituição Brasileira de 1988 e a eleição da Frente BH popular, Belo Horizonte institui,
pela primeira vez, uma política habitacional com alguma consistência e sistematicidade, que teve
continuidade nos anos seguintes com as prefeituras de Célio de Castro e Fernando Pimentel. A
administração municipal deixa de ter interesse por esses loteadores, cuja ação contradiz o ideal de
um Estado provedor de habitação e regente do desenvolvimento urbano, no qual movimentos
populares assumem o papel da chamada ‘sociedade civil organizada’. Os loteadores associativos
aparecem nesse novo contexto como urbanizadores irresponsáveis, predatórios, que se recusam a
abrir mão da casa e do lote individuais, criam periferias à maneira dos loteadores privados, dão
margem à corrupção interna e assim por diante.
A imensa maioria das pesquisas sobre a RMBH, seu processo de expansão periférica e sua carência
habitacional foi realizada em universidades de Belo Horizonte e ao longo dos últimos vinte anos, isto
é, sob o pano de fundo da gestão municipal da Frente BH Popular e das gestões seguintes, nas
quais diversos pesquisadores se engajaram diretamente. Assim, o pouco interesse por iniciativas de
produção habitacional anteriores ou concomitantes mas independentes também se reproduziu nos
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temas de pesquisa e discussão. Tanto a ‘distribuição de lotes’ pelo prefeito Sérgio Ferrara, quanto os
loteamentos associativos da década seguinte tenderam a ser rechaçados a priori, em vez de
submetidos a análises realmente críticas.
Mas a institucionalização dos movimentos populares também significou sua conformação ao
Estado14 , assim como a provisão habitacional por programas públicos significou a inclusão do capital
de construção e da respectiva lógica monetária. Em contrapartida, o ideal da autogestão, que fazia
parte da política habitacional de Belo Horizonte na sua melhor fase, foi inteiramente abandonado na
década seguinte, porque sempre se enquadrou mal no aparato burocrático, nos procedimentos de
controle e nos expedientes administrativos. Outros dispositivos potencialmente democráticos, como
o Orçamento Participativo em geral e o Orçamento Participativo da Habitação em particular, não
geraram os resultados prometidos. A produção de novas unidades habitacionais foi baixa em vista
da demanda e os seus tipos arquitetônicos nunca foram escolha dos beneficiários. E, por fim, o
desenvolvimento mais recente das políticas habitacionais tem criado periferias que em precariedade
urbana não ficam nada a dever aos loteamentos populares.
Por essas razões e também pelo fato de elas terem motivado novas ocupações organizadas à
revelia das prefeituras da RMBH (Dandara, Camilo Torres, Eliana Silva, Emanuel Guarani Kaiowá,
Rosa Leão etc.) entendemos que a experiência dos loteadores associativos merece pesquisas e
discussões aprofundadas. Talvez elas possam contribuir para uma compreensão melhor e menos
idealizada de processos que favoreçam a autonomia da população e, assim, superem sua
participação em programas e decisões que não determinam por si mesma. Como já argumentamos
em outras ocasiões, a relativa independência dos produtores informais é a sua vantagem, não o seu
problema. Problema é a falta de acesso à terra e a recursos financeiros, técnicos e jurídicos.
Esse processo de conformação e submissão dos movimentos ao Estado, com sua consequente desmobilização, foi
analisado no contexto específico do Conselho Municipal de Habitação de Belo Horizonte por Clara Bois (2013).
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Agradecimentos
Agradecemos aos entrevistados pela disponibilidade e paciência, bem como aos colegas do Grupo
de Pesquisa MOM (Morar de Outras Maneiras) pelas discussões e sugestões. As pesquisas que
geraram esta publicação foram realizadas com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos
(FINEP), da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) e do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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Entrevistas
BERNAREGGI, Pier Luigi. Padre, fundador das associações Amabel e CemCasa. Entrevistado por Silke Kapp
e Pedro Arthur Magalhães em 13.11.2012; entrevistado por Rebekah Campos e Pedro Arthur Magalhães em
02.05.2013.
LAENDER, José Carlos. Arquiteto, ex-presidente da Urbel. Entrevistados por Silke Kapp, Tiago Castelo
Branco e Rebekah Campos em 04.05.2013.
OLIVEIRA, Gladis F. Líder comunitária e atual presidente da Amabel. Entrevistada por Rebekah Campos em
08.08.2013.
SOUZA, Cornélia. Líder comunitária e ex-presidente da CemCasa. Entrevistada por Rebekah Campos e
Pedro Arthur Magalhães em 03.10.2013.

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