001-008-introd ANPUR v9_n2

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001-008-introd ANPUR v9_n2
REVISTA BRASILEIRA DE
ESTUDOS
URBANOS
publicação da associação nacional de pós-graduação
e pesquisa em planejamento urbano e regional
E REGIONAIS
ISSN 1517-4115
REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS
Publicação semestral da ANPUR
Volume 9, número 2, novembro de 2007
EDITOR RESPONSÁVEL
Geraldo Magela Costa (UFMG)
COMISSÃO EDITORIAL
Leila Christina Duarte Dias (UFSC),
Lilian Fessler Vaz (UFRJ), Maria Flora Gonçalves (Unicamp)
CONSELHO EDITORIAL
Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ), Ângela Lúcia de Araújo Ferreira (UFRN), Brasilmar Ferreira Nunes (UnB),
Carlos Antonio Brandão (Unicamp), Ermínia Maricato (USP), Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG), João Rovati (UFRS),
Lia Osorio Machado (UFRJ), Linda Maria de Pontes Gondim (UFC), Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBA),
Margareth Pereira (UFRJ), Maria Cristina da Silva Leme (USP), Nadia Somekh (Mackenzie), Norma Lacerda Gonçalves
(UFPE), Paola Berenstein Jacques (UFBA), Ricardo Cesar Pereira Lira (UERJ), Roberto Monte-Mór (UFMG),
Rosa Acevedo (UFPA), Sandra Lencioni (USP), Sarah Feldman (USP), Wrana Maria Panizzi (UFRS)
COLABORADORES
Ana Lucia Nogueira de Paiva Britto (UFRJ), Angela Maria Gordilho Souza (UFBA), Brasilmar Ferreira Nunes (UnB),
Carlos Antônio Brandão (Unicamp), Claudio Antônio Gonçalves Egler (UFRJ), Emilio Haddad (USP), Ermínia Maricato
(USP), Ester Limonad (UFF), Fausto Reynaldo Alves de Brito (UFMG), Flávio Villaça (USP), Helena Maria Menna Barreto
Silva (USP), Helion Povoa Neto (UFRJ), Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG), Jeanne Marie Ferreira Freitas (PUC Minas),
João Farias Rovati (UFRGS), Klemens Laschfski (UFV), Luciana Correa do Lago (UFRJ), Marcos Antônio Pedlowski (UENF),
Margareth de Castro Afeche Pimenta (UFSC), Maria Julieta Nunes de Souza (UFRJ), Maria Lais Pereira da Silva (UFF),
Maria Lucia Refinetti Rodrigues Martins (USP), Nádia Somekh (Mackenzie), Paola Berenstein Jacques (UFBA),
Ralfo Edmundo da Silva Matos (UFMG), Ricardo Farret (UnB), Roberto Luís de Melo Monte-Mór (UFMG),
Rosana Baeninger (Unicamp), Rose Compans (Prefeitura do Rio de Janeiro), Tamara Benakouche (UFSC)
PROJETO GRÁFICO
João Baptista da Costa Aguiar
CAPA, COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO
Ana Basaglia
REVISÃO
Ana Paula Gomes
IMPRESSÃO CTP
Assahi Gráfica e Editora
Indexada na Library of Congress (EUA)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais – v.9, n.2,
2007. – Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editor
responsável Geraldo Magela Costa : A Associação, 2007.
v.
Semestral.
ISSN 1517-4115
O nº 1 foi publicado em maio de 1999.
1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento
Urbano e Regional). II. Costa, Geraldo Magela
711.4(05) CDU (2.Ed.)
711.405 CDD (21.Ed.)
UFBA
BC-2001-098
REVISTA BRASILEIRA DE
ESTUDOS
URBANOS
publicação da associação nacional de pós-graduação
e pesquisa em planejamento urbano e regional
E REGIONAIS
S
U
M
ARTIGOS
9 O M ERCADO DE T ERRAS EM S ÃO PAULO E A
C ONTINUADA E XPANSÃO DA P ERIFERIA – Haroldo
da Gama Torres e Renata Gonçalves
25 A C IDADE COM-FUSA: A M ÃO I NOXIDÁVEL
DO M ERCADO E A P RODUÇÃO DA E STRUTURA
U RBANA NAS G RANDES M ETRÓPOLES L ATINO AMERICANAS – Pedro Abramo
Á
R
I
O
95 U RBANISMO E MODERNIDADE – R EFLEXÕES
EM TORNO DO P LANO A GACHE PARA O R IO DE
J ANEIRO – Fernando Diniz Moreira
115 Q UATRO H ISTÓRIAS DE T ERRAS P ERDIDAS
– M ODERNIZAÇÃO A GRÁRIA E P RIVATIZAÇÃO DE
C AMPOS C OMUNS EM M INAS G ERAIS – Eduardo
Magalhães Ribeiro e Flávia Maria Galizoni
RESENHAS
55 I NFORMALIDAD Y R EGULARIZACIÓN DEL
S UELO U RBANO EM A MÉRICA L ATINA – A LGUNAS
R EFLEXIONES – Nora Clichevsky
73 A O UTORGA O NEROSA DO D IREITO DE
C ONSTRUIR APÓS O E STATUTO DA C IDADE : U M
PANORAMA DE I MPLEMENTAÇÃO NOS M UNICÍPIOS
B RASILEIROS – Renato Cymbalista, Paula Pollini,
Patrícia Cobra e Paula Santoro
133 La favela d’un siècle à l’autre: Mythes d’origine,
discours scientifiques et représentations virtuelles, de Licia
Valladares – por Michel Marié (tradução de Margareth
da Silva Pereira)
137 Paisagem estrangeira. Memórias de um bairro
judeu no Rio de Janeiro, de Fania Fridman – por Sarah
Feldman
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ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL
–
ANPUR
GESTÃO 2007-2009
PRESIDENTE
Edna Castro (NAEA/UFPA)
SECRETÁRIO EXECUTIVO
Luiz Aragon (NAEA/UFPA)
SECRETÁRIO ADJUNTO
José Júlio Lima (FAU/UFPA)
DIRETORES
Adauto Lúcio Cardoso (IPPUR/UFRJ)
Leila Dias (CFH/UFSC)
Roberto Monte-Mór (CEDEPLAR/UFMG)
Virgínia Pontual (MDU/UFPE)
CONSELHO FISCAL
Brasilmar Nunes (SOC/UNB)
João Rovati (PROPUR/UFRS)
Renato Anelli (EESC/USP)
Apoio
EDITORIAL
Observa-se no momento um ressurgimento da discussão sobre o mercado de terras urbanas no contexto da análise e do planejamento urbanos nas formações sociais
capitalistas periféricas. Instrumentos de gestão urbana, até certo ponto inovadores,
têm sido propostos como tentativa de controlar e/ou evitar a socialização de efeitos
perversos da operação deste mercado e promover a apropriação social das terras urbanas. Essa problemática revisitada permeia a maior parte dos artigos que compõem o
presente número da Revista.
O artigo de Haroldo Torres e Renata Gonçalves explora a relação entre centralidade e a dinâmica do mercado imobiliário habitacional formal na cidade de São Paulo. Por meio de análise empírica, os autores chegam a uma conclusão que reafirma a
formação da configuração centro-periferia da cidade de São Paulo e mostra um gradiente de valorização das terras decrescente de um “centro expandido” para a periferia: observa-se um esvaziamento do centro e uma persistente expansão da ocupação
de áreas periféricas. Os autores enfatizam a necessidade de políticas públicas que sejam efetivas no processo de controlar o mercado da terra habitacional e facilitar o acesso ao centro expandido.
Os dois artigos seguintes avançam na discussão da problemática do mercado da
terra urbana, estendendo-a para processos observados em outros países latino-americanos. O artigo de Pedro Abramo mostra preocupação, no contexto de crise do fordismo, com a questão da regulamentação do mercado imobiliário nas cidades da região. Com o retorno do que o autor denomina “mão inoxidável do mercado” atuando
no processo de produção e reprodução do espaço urbano formal e informal, o que se
observa é a formação de uma cidade ao mesmo tempo compacta e difusa. O texto procura então enfatizar o imprescindível controle do poder público, com participação popular, sobre a liberdade de mercado para a construção de cidades socialmente mais
igualitárias e justas.
O artigo de Nora Clichevsky faz uma avaliação comparativa e crítica dos programas de regularização fundiária em diversas cidades latino-americanas. A diversidade
de casos analisados tem como mérito principal as possibilidades que oferece para o diálogo com pesquisadores que trabalham com o mesmo tema. De forma complementar ao artigo de Pedro Abramo, o texto traz contribuição relevante para se pensar instrumentos atualmente disponíveis para o controle dos processos de reprodução social
do espaço nas áreas urbanas. A autora destaca a complexidade das formas de produção e apropriação do espaço quanto à grande variedade de situações de informalidade
que são objeto de programas de regularização fundiária urbana na América Latina. Por
um lado, o artigo reconhece que resultados sociais importantes podem ser creditados
às experiências de regularização na região. Por outro, chama a atenção para uma abordagem essencialmente jurídica da propriedade em muitos dos casos analisados, relegando a um segundo plano a função social da propriedade.
O artigo de Renato Cymbalista, Paula Pollini e Patrícia Cobra completa este
conjunto de quatro textos sobre a ação do mercado imobiliário e as possibilidades de
seu controle social. Os autores identificam e avaliam a aplicação em municípios braR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
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sileiros do instrumento “Outorga Onerosa do Direito de Construir”, especialmente
após a sua regulamentação por meio do Estatuto da Cidade de 2001. Tendo como
fonte de dados pesquisa sobre informações básicas municipais do IBGE, o artigo traz
importante contribuição para se pensar a eficácia desse instrumento, que é considerado essencial para o processo de captura da mais valia urbana por parte do poder público e, conseqüentemente, para formas mais justas de ocupação e apropriação social
do espaço das cidades. Se, por um lado, a pesquisa realizada aponta para uma significativa incidência do instrumento em novos planos diretores municipais, por outro,
constata também a fragilidade de administrações municipais – especialmente nos municípios menores – para dar conta da aplicação efetiva do instrumento. O artigo constitui um primeiro passo para se avaliar a eficácia social do instrumento, ao mesmo
tempo em que sugere a necessidade de pesquisas futuras, quando forem identificados
resultados concretos de sua aplicação.
Completam o presente número da Revista dois outros artigos. O primeiro, de
Fernando Diniz Moreira, insere-se na área da história do urbanismo e tem como objeto o Plano Agache, elaborado para a cidade do Rio de Janeiro na primeira metade
do século passado. Trata-se de importante registro do processo de concepção de um
plano urbanístico identificado com os princípios da modernidade européia. O autor
procura refletir sobre as tensões entre o nacional e o estrangeiro e as contradições do
processo de modernização brasileiro quando avalia a relação de Agache com as elites
profissionais da época.
No último artigo deste número, Eduardo Magalhães Ribeiro e Flávia Maria Galizoni, ancorados em resultados de suas pesquisas, elaboram, por meio de narrativa
inovadora, reflexões valiosas sobre as conseqüências da modernização agrária e da privatização de campos comuns em Minas Gerais. Elaborada depois de passados 30 anos
da onda modernizadora, a análise dos autores conclui que, entre perdas e compensações mitigadoras, os sitiantes continuam pensando seus campos como referência cultural, enquanto “o campo privatizado continua a impedir a unificação da produção
com a vida, separadas nos anos de 1970”.
Duas resenhas compõem a presente edição da Revista: a primeira, uma tradução
feita por Margareth da Silva Pereira de notas de leitura produzidas por Michel Marié
sobre o livro La favela d’un siècle à l’autre : Mythes d’origine, discours scientifiques et représentations virtuelles, de Licia Valladares, publicado em 2006. A segunda, elaborada
por Sarah Feldman sobre o livro Paisagem estrangeira. Memórias de um bairro judeu no
Rio de Janeiro, de Fânia Fridman.
GERALDO MAGELA COSTA
Editor responsável
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A RTIGOS
O MERCADO DE TERRAS
EM SÃO PAULO
EA
CONTINUADA EXPANSÃO DA PERIFERIA
HAROLDO DA GAMA TORRES
R E N ATA G O N Ç A LV E S
R
E S U M O Este artigo investiga aspectos da evolução da produção imobiliária habitacional formal na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) nos últimos quinze anos.
A partir de uma breve reflexão sobre a idéia de centralidade e da utilização de dados de lançamentos imobiliários (Embraesp), elabora-se um modelo de formação do preço da terra que
evidencia a grande importância da localização geográfica do imóvel. Os dados apontam também para um incremento significativo do preço dos imóveis residenciais ao longo da década
de 1990 nas áreas urbanas mais centrais, o que poderia, em parte, explicar o processo de esvaziamento demográfico do chamado “centro expandido” e a persistente expansão das áreas
periféricas, uma vez que um número menor de moradores tem tido acesso às áreas centrais,
mais valorizadas.
PA
L AV R A S - C H AV E
Mercado de Terras; segregação residencial; São
Paulo; planejamento urbano e áreas metropolitanas.
INTRODUÇÃO
Na literatura sobre a questão urbana no Brasil, muitas vezes se tomou como um fato o nexo causal entre a dinâmica do mercado formal de terras e a expansão continuada
das áreas periféricas. Considera-se que o elevado preço das terras localizadas nas áreas centrais e mais bem dotadas de infra-estrutura permitiria aos grupos de renda mais elevada
monopolizar frações importantes do território das cidades brasileiras.1 Sobraria assim, aos
grupos de menor renda, residir nas periferias distantes, menos dotadas de infra-estrutura,
em soluções de moradia autoconstruídas e de baixo custo, freqüentemente localizadas em
áreas de ocupação irregular.2
De acordo com esse argumento, a reduzida oferta de terras e o preço excessivamente elevado do solo urbano teriam contribuído para que grande parte da população, sem
acesso ao mercado formal de habitação ou a alternativas públicas de provisão de habitação social, fosse levada a morar em regiões desprezadas pelo mercado imobiliário formal,
em áreas públicas, em locais nos quais a legislação restringia a ocupação, como as áreas de
proteção ambiental. Maricato (1997), por exemplo, aponta que a regulação do acesso a
terra se traduz em uma complexa legislação que contribuiu para a formação de um mercado imobiliário restrito e especulativo. O mercado imobiliário seria caracterizado como
vetor responsável pela produção e reprodução da segregação residencial (Smolka, 1992) e,
de maneira geral, não se interessaria em atender a maior parte da demanda por habitação,
que não se configura como demanda solvável (Maricato, 1996). Assim, para as classes
mais pobres, a forma de acesso ao solo urbano se daria essencialmente de maneira precária e ao largo da legislação existente.
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1 Villaça (1998) aponta
duas forças que influenciariam as estruturas urbanas:
a localização dos bairros
residenciais de alta renda e
o desenho do sistema de
transportes.
2 Vários autores abordaram
a questão da iniqüidade de
acesso e a diferenciação do
uso e apropriação do solo
urbano entre as distintas
classes sociais. Ver, dentre
eles: Maricato, 1996 e outros; Smolka, 1987 e outros;
Bonduki e Rolnik, 1982.
O
3 Tal perspectiva analítica
tem por inspiração modelos
de renda da terra de origem
marxista.
4 O texto de Smolka (1992)
é uma importante exceção.
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Embora essa literatura não ignore a relevância de aspectos propriamente urbanísticos – como os sistemas de transportes – e institucionais – como a regulação do uso e ocupação do solo – na configuração do chamado gradiente de terra urbano, há uma ênfase
significativa atribuída ao papel da localização geográfica da moradia das famílias de alta
renda como elemento central da lógica urbana.3 Boa parte dos estudos na área são ensaios, cuja base empírica fundamenta-se numa observação “impressionista” da distribuição
do preço da terra nas diferentes áreas urbanas, bem como da distribuição dos grupos sociais no espaço.4 As hipóteses presentes nessa literatura estruturam um certo modo de
pensar a cidade que teve grande impacto sobre toda uma geração de pensadores sobre a
questão urbana no Brasil. Nesse sentido, o principal objetivo desse artigo é retornar a esses argumentos a partir de um novo conjunto de fontes de dados e de métodos estatísticos viabilizados pelo recurso aos modernos Sistemas de Informações Geográficas (SIG).
Pretendemos empreender essa reflexão a partir de três perspectivas principais. Na
primeira Seção, refletimos sobre a idéia de centralidade, conceito essencial para operacionalização empírica de qualquer modelo de renda da terra. Na segunda Seção, buscamos
testar até que ponto a idéia de distância em relação à centralidade pode ser utilizada, ou
não, como variável explicativa principal para o preço da terra em São Paulo. Discutiremos
tal argumento a partir de um modelo de regressão onde consideramos diferentes hipóteses alternativas. Na terceira Seção, buscamos avaliar a evolução temporal da distribuição
espacial do preço da terra em São Paulo nos últimos vinte anos, procurando avaliar o impacto dessa dinâmica para a expansão da periferia metropolitana. Por fim, apresentamos
algumas considerações finais, além de um anexo.
EVOLUÇÃO DA CENTRALIDADE URBANA EM
SÃO PAULO
5 Em termos empíricos,
podemos considerar tanto
modelos com uma única
centralidade, como com
múltiplas centralidades. Discutiremos esse elemento
mais à frente.
O conceito de centralidade urbana é polifônico, quando se refere, por exemplo, à
localização das principais atividades econômicas, à localização dos serviços terciários sofisticados ou, ainda, à localização da moradia das famílias de alta renda. Segundo Frúgoli (2000), a realidade de uma metrópole como São Paulo seria marcada pela competição
entre várias centralidades ou pólos. A força dessas centralidades em disputa dependeria
dos investimentos e dos distintos intuitos de empresas, do poder público, de instituições
bancárias e dos grupos sociais nelas localizados. Dependeria, sobretudo, do dinamismo
econômico e da força política desses atores sociais que se localizam e interferem em diferentes áreas da cidade, assim como de projetos e concepções urbanísticas que propõem
visões divergentes a respeito da vida urbana, das relações sociais, do tipo de metrópole e
de seus usos.
Em vista das complexidades envolvidas em tal definição, em vez de tomar algum
marco urbano a priori – seja a Praça da Sé, a Avenida Paulista ou a Avenida Faria Lima –
como referência de centralidade urbana, trataremos a centralidade como uma categoria
empírica, relacionada à distribuição do preço da terra na cidade. Na prática, buscaremos
operacionalizar um indicador de centralidade que seja dinâmico, isto é, que varie ao longo do tempo e do espaço, refletindo, de certo modo, as disputas pela centralidade urbana mencionadas acima.5
Para uma aproximação da questão da centralidade urbana, apresentamos uma breve
descrição da dinâmica espacial dos lançamentos imobiliários a partir de meados da déca10
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da de 1980.6 A idéia de utilizarmos lançamentos imobiliários como unidade de informação se justifica porque estamos preocupados com a dinâmica do mercado residencial e
com seus impactos sobre a expansão periférica.7 Na prática, embora a concentração espacial das atividades econômicas possa ter impacto significativo para a distribuição espacial
do custo da moradia, as centralidades econômica e residencial estão fortemente imbricadas no caso de São Paulo, sendo que ambas convergiriam – segundo a literatura – para o
chamado quadrante Sudoeste da cidade.8
Podemos observar no Mapa 1, a seguir, uma notável mudança no perfil de localização dos lançamentos imobiliários na Região Metropolitana de São Paulo. Esse mapa mostra a evolução da dinâmica espacial dos lançamentos imobiliários entre 1985 e 2003, tendo como referência o percentual da área construída na área de ponderação em relação ao
total de área construída na região metropolitana no período.9 Para uma melhor observação espacial de tal dinâmica de expansão urbana, os lançamentos foram divididos em quatro períodos: 1985-1989; 1990-1994; 1995-1999 e 2000-2003.
Mapa 1 – Distribuição do percentual da área construída em lançamentos imobiliários segundo Áreas de Ponderação do Censo Demográfico.10 RMSP, 1985-2003
6 Utilizamos o banco de lançamentos imobiliários resida
Empresa
denciais
Brasileira de Estudos do
Patrimônio – Embraesp. As
informações disponíveis no
banco abarcam os empreendimentos imobiliários divulgados nos meios de comunicação de massa (jornais,
revistas, panfletos, assim
como os aprovados pela
Secretaria da Habitação do
MSP), lançados entre 1985
e 2003 na RMSP.
7 Os lançamentos constantes na base utilizada abrangem apenas uma parte da
produção imobiliária residencial na metrópole. Destacase que o banco de registros
da Embraesp não representa a totalidade do mercado
residencial formal, sobretudo porque não abrange o
mercado secundário, de
compra e venda de imóveis
usados, assim como, infelizmente, não dispomos de dados para outros tipos de
habitação, tais como habitações autoconstruídas em
favelas e loteamentos irregulares e outros tipos de autoconstrução, domicílios construídos
por
pequenas
empresas, entre outros.
8 De todo modo, ambas as
dimensões serão consideradas na análise realizada.
9 Escolhemos a área de ponderação como unidade de
análise por ser uma unidade
espacial mais homogênea
que o distrito e mais abrangente que o setor censitário,
o que nos permite evitar erros de geocodificação.
10 As Áreas de Ponderação
correspondem à menor unidade geográfica para divulgação dos resultados da
Amostra do Censo Demográfico do IBGE, na qual
foram imputados os dados
relativos à base de lançamentos imobiliários da Embraesp, uma base de pontos georreferenciados.
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Fonte: Embraesp, 1985-2003.
Podemos constatar que as maiores proporções de lançamentos têm efetivamente se
concentrado no setor sudoeste do Município de São Paulo – especialmente nos distritos
do Morumbi, parte da Vila Andrade e de Santo Amaro, Itaim Bibi e Moema. Em outras
palavras, esses dados não parecem sugerir, ao menos do ponto de vista dos lançamentos
imobiliários, uma situação de múltiplas centralidades. Existe um núcleo central claro, embora ocorrências descontínuas importantes possam ser observadas nos distritos de Santana e Tatuapé e nos municípios do ABC, além do entorno de Barueri.
Vale observar, no entanto, que houve um notável espraiamento dos lançamentos
imobiliários para outras áreas da cidade. De fato, constatamos, por um lado, um aumento importante na freqüência de lançamentos na direção noroeste (Lapa, Alto de Pinheiros, Vila Leopoldina). Notamos também, em certos períodos, uma expansão significativa
do volume de lançamentos na Zona Leste de São Paulo e nos municípios do ABC.
Os dados espacializados evidenciam que houve uma expansão importante da área
urbana relevante do ponto de vista do mercado imobiliário, argumento que já havia sido
formulado anteriormente pela literatura (Marques, 2005). Enquanto, no passado, o setor
privado da construção imobiliária – responsável pelos lançamentos imobiliários aqui con12
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siderados – concentrava fortemente esses lançamentos do ponto de vista espacial, observava-se claramente um processo de descentralização. Esse dado constitui uma primeira
evidência relevante de que a centralidade do volume de lançamentos imobiliários residenciais poderia estar em movimento nesse período.11
Vale também notar que os lançamentos imobiliários não se expandem de forma regular para todo o entorno da área central. Se existem claramente áreas privilegiadas para
a expansão desses lançamentos, como as mencionadas acima, parece também existirem
barreiras espaciais significativas. Na verdade, como no caso de São Paulo as barreiras físicas são menos relevantes – a não ser no extremo norte e sul da região –, vale argumentar
que as principais barreiras à expansão dos lançamentos imobiliários devem ter necessariamente um caráter sócio-urbanístico. Para refletir sobre esse argumento, apresentamos no
Mapa 2 a distribuição desses lançamentos imobiliários sobreposta à localização de favelas,
loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais.
Mapa 2 – Distribuição espacial dos lançamentos imobiliários, favelas, loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais. RMSP, 1985-2003
Nota: Os dados relativos a favelas e loteamentos irregulares se referem apenas ao MSP.
Fontes: Embraesp e Sehab-PMSP.
De fato, podemos observar no Mapa 2 que os lançamentos imobiliários parecem
contidos espacialmente ao sul, norte e leste do Município de São Paulo por uma presença significativa de áreas de moradia popular com regularização precária: favelas ou loteamentos. Tal distribuição implica que, embora o espraiamento mencionado anteriormente esteja efetivamente se verificando, os vetores desse espraiamento de certa maneira
influenciam e são influenciados pela presença de bolsões de moradia irregular nos interstícios urbanos e periferias (Marques e Bitar, 2002; Smolka, 1992). Em outras palavras, a
presença dessas barreiras também interfere na conformação da centralidade residencial, se
as considerarmos como referência para análise dos lançamentos imobiliários.
Para avançar nessa discussão, adotamos uma aproximação empírica do conceito de
centralidade a partir do chamado “centro de massa” dos lançamentos imobiliários produR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
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11 Apesar de as periferias
mais extremas serem marcadas, de modo geral, por
baixa ou nenhuma atividade
imobiliária, mesmo alojando
aproximadamente metade
da população metropolitana
(Marques, 2005).
O
12 Em termos matemáticos, o centro de massa adotado corresponde a: {∑ (LAT
ou LON * preço do m2)/
∑ preço do m2}; em que LAT
e LON se referem à latitude
e longitude do empreendimento em questão.
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zidos no período analisado. O centro de massa aqui apresentado corresponde à localização geográfica média do conjunto de lançamentos para um dado período, ponderada pelo preço do metro quadrado dos lançamentos em questão.12
Em outras palavras, a centralidade, conforme aqui definida, é influenciada simultaneamente pelo volume de lançamentos imobiliários localizados em um dado local e pelo
valor unitário desses lançamentos. Nesse sentido, se os preços da área construída fossem
constantes em toda cidade, o centro de massa seria influenciado exclusivamente pela distribuição geométrica dos lançamentos na cidade. Como isso não acontece, as áreas com
preços mais elevados “puxam” o centro de massa, mesmo quando não têm um volume de
lançamentos muito expressivo.
A partir desse modelo de centralidade, podemos observar, no Mapa 3, a seguir, a
localização do indicador de centro de massa para os quatro períodos considerados anteriormente.
Mapa 3 – Centro de Massa dos Lançamentos Imobiliários Residenciais em São Paulo,
segundo período. RMSP, 1985-2003
Fonte: Elaboração a partir de dados da Embraesp.
Essa evolução nos permite algumas observações relevantes. Em primeiro lugar, a centralidade medida a partir do centro de massa corresponde, em grande medida, ao senso
comum a respeito da dinâmica do mercado de terras. O centro de massas encontrava-se,
nos quatro períodos, em locais próximos ao Parque do Ibirapuera, área nobre da cidade,
com elevado valor da terra.
Em segundo lugar, essa centralidade variou pouco nos quatro períodos considerados.
Embora tenha ocorrido o referido espraiamento dos lançamentos imobiliários, o centro
geográfico desses lançamentos variou pouco, sugerindo que tais lançamentos estejam se
espraiando de modo relativamente homogêneo para diferentes direções da cidade. No entanto, cabe também notar que houve um discreto deslocamento no centro de massa na
direção leste. Em outras palavras, o volume de novos lançamentos na Zona Leste e no ABC
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parecem ter produzido algum deslocamento da centralidade na direção leste, sendo que o
elevado preço dos imóveis no vetor sudoeste não contrabalançou esse efeito.
Evidentemente, um indicador desse tipo tem limitações relevantes. Por exemplo, poderíamos – em vez de considerar o preço – construir um centro de massa referido ao número de unidades habitacionais lançadas ou à área total construída. Além disso, seria desejável obter dados que nos permitissem considerar todos os diferentes produtos
imobiliários da cidade, em áreas regulares e irregulares. Apesar dessas limitações, o indicador aqui construído torna possível avaliar empiricamente os efeitos da localização do
imóvel sobre seu preço, num modelo que também leva em conta outros possíveis determinantes. Detalhamos esses elementos a seguir.
DETERMINANTES DO PREÇO DOS LANÇAMENTOS
IMOBILIÁRIOS
Na literatura brasileira e internacional, podemos encontrar um conjunto diversificado de hipóteses explicativas a respeito da formação do preço da moradia formal. Como
mencionado, boa parte dos estudos urbanos brasileiros atribui importância central aos fatores de localização, embora aspectos como as formas de regulação do uso do solo (Maricato, 1997), o papel do Estado na provisão de infra-estrutura e serviços urbanos e a disputa pela apropriação dos bens e serviços coletivos (Vetter e Massena, 1981; Villaça,
1998), assim como aspectos relativos às demandas e à ação organizada dos capitais privados em busca de valorização (Ribeiro, 1997) também possam ser mencionados.
Vale notar que Smolka (1992) destaca que, embora por motivos diferentes, “as abordagens neoclássicas e clássico-marxistas (...) reconhecem o mercado imobiliário como instrumento eficaz, através do qual as acessibilidades (...) são ‘discricionariamente’ distribuídas”. De fato, na literatura de recorte mais neoclássico, argumentos análogos podem ser
observados. Ao lado dos efeitos da localização e dos custos de transporte e mobilidade,
também exercem papel importante na dinâmica desse mercado a presença de economias
de aglomeração e alguns aspectos institucionais, relacionados a formas de regulação do
uso da terra – tais como o zoneamento urbano, assim como os impostos imobiliários. O
mercado influenciaria também nos fenômenos urbanos que parecem ter origem e caráter
essencialmente sociais, como a expansão de favelas e periferias (Richardson, 1971). Outros autores destacam ainda o papel das preferências do consumidor por amenidades urbanas que, aliadas aos efeitos de localização e aos custos de transporte, induziriam à escolha, por exemplo, de imóveis em áreas próximas a parques urbanos (Henderson, 1988), e
destaca-se ainda a atribuição de maior peso à capacidade financeira das famílias – reconhecendo-se que grupos sociais distintos têm preferências diferenciadas no consumo do
espaço; grupos de mais alta renda, por exemplo, valorizariam uma certa forma de vida associada a baixas densidades demográficas e um consumo de uma grande quantidade de
área (Alonso, 1964).
Para testar alguns desses argumentos no caso do mercado imobiliário de São Paulo, realizamos uma regressão múltipla, em que a variável dependente era o preço do
metro quadrado dos lançamentos imobiliários realizados em São Paulo entre 1985 e
2003. A unidade de análise da regressão era o próprio lançamento imobiliário, sendo
que contamos na base de dados com 7.397 registros de lançamentos realizados entre
1985 e 2003.13
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15
13 Devido à significativa
variabilidade de preços,
consideramos como variável dependente o logaritmo
neperiano do preço do
metro quadrado de lançamento imobiliário. Devido à
inflação, os valores nominais foram convertidos para
dólares americanos.
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Adotamos diferentes variáveis explicativas (independentes) construídas a partir das
referências na literatura mencionadas acima. As variáveis explicativas testadas no modelo
foram as seguintes:
14 Inicialmente foram testadas as distâncias em relação a vários centros de
massa, a saber: os quatro
centros relacionados aos
períodos (1985-1989; 19901994; 1995-1999 e 20002003); os dois centros de
massa relacionados a dois
grandes períodos (19851994 e 1995-2003), e, por
fim, o centro de massa adotado no modelo, relacionado
a todo o período analisado
(1985-2003).
15 A fonte de dados original
foi o cadastro da RAIS de
2000 geocodificado. Todas
as áreas com elevado volume de empregos de alta
escolaridade estavam localizadas no Município de São
Paulo, nos distritos Itaim
Bibi, Vila Mariana, Pinheiros,
Consolação, Sé, Santo
Amaro, Pari, Barra Funda e
República.
16 A variável foi construída
a partir da fórmula: {(área
total do empreendimento/
unidade) - área útil da unidade}. Inicialmente utilizamos
a variável contínua da área
útil da unidade residencial.
Em seguida, buscamos
construir uma variável relacionada ao padrão do imóvel
que representasse uma
classificação de alto padrão
versus restante. Esta variável {(área útil > 120m2 e vagas de garagem >1) = 1 e
restante = 0} também acabou não entrando no modelo, pois optamos por trabalhar com outra variável que
pudesse exprimir o que considerávamos fator “padrão
do imóvel”: área externa/
lazer.
• Distância linear de cada lançamento do centro de massa dos lançamentos imobiliários (dist_cmt). Essa distância do centro de massa, calculado para os lançamentos verificados em todo o período de 1985 a 2003, busca captar o efeito da localização do
imóvel sobre o preço. Trata-se de uma variável referida ao que poderíamos chamar de
“centralidade residencial”.14
• Distância do imóvel de pólos de empregos de alta escolaridade (dalesc3). Essa variável foi transformada em variável dummy com duas categorias (até 5km e mais de
5km). Para tanto, tomou-se a distância do lançamento até o centróide das áreas de
ponderação que aglomerassem mais de 2% do total de empregos de alta escolaridade
(2º grau completo, superior incompleto e superior completo).15 Essa variável foi elaborada de modo a testar a importância dos efeitos de aglomeração, ou o que poderíamos chamar de “centralidade econômica”.
• Distância do imóvel de estações de metrô (dmetro2). Também construída enquanto
variável dummy, dividida em duas categorias (até 1km e mais de 1km). Trata-se de
uma variável que testa o impacto do sistema de transportes.
• Distância do imóvel das Zonas Residenciais do tipo Z1 (bandz1). Tais zonas, estritamente residenciais, determinadas no zoneamento municipal, correspondem em geral a
áreas de moradia predominantemente de alta renda, onde é vedada a verticalização das
construções. Em tese, as proximidades das zonas Z1 tendem a ser valorizadas, tanto
por constituírem áreas pouco adensadas, assim como pela idéia de tranqüilidade que
oferecem. Dividimos também essa variável em duas categorias: os empreendimentos
localizados dentro e fora de um raio de 500m de uma Z1.
• Distância do imóvel de praças e parques com mais de 4.000m2 (dverde2). Tratadas
também enquanto uma variável dummy, consideramos duas categorias (até 1km e mais
de 1km das áreas verdes de grande porte). Trata-se de uma variável relativa às chamadas amenidades ou, na linguagem da economia neoclássica, referida às preferências dos
consumidores por certas localizações devido às qualidades que o entorno oferece.
• Distância do imóvel de favelas (dist_fav3). Essa variável, criada a partir da distância do lançamento ao centróide da favela, também foi dividida em duas categorias
(até 300m e mais de 300m de favela). Trata-se de uma variável que dialoga também
com a lógica das preferências, com a proximidade, nesse caso, representando um fator negativo.
• Área externa do imóvel (padrao). Essa variável permite uma aproximação com a chamada “área de lazer” de uso comum dos imóveis, dimensão que provavelmente afeta o
custo dos empreendimentos e o chamado “padrão” dos imóveis.16
• Imóvel do tipo flat (flat). Também inserido como variável dummy (flat ou não), esse
tipo de imóvel tem certamente uma dinâmica de valorização diferente dos imóveis residenciais convencionais.
• Período do lançamento, antes e depois do Plano Real (antes_depo). Essa variável
buscava captar variações no preço dos imóveis em função de oscilações macro-econômicas mais extremas, como a observada a partir do Plano Real.
Na prática, diversos modelos alternativos foram avaliados, com variações tanto no
que diz respeito às variáveis dependentes consideradas, quanto na forma de construção da
16
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variável dependente e das independentes.17 Para o modelo final, excluímos os lançamentos imobiliários anteriores a 1990, cujos preços apresentavam oscilações muito acentuadas em função das elevadas taxas inflacionárias do período.
O modelo final se mostrou adequado, segundo os parâmetros regulares da análise de
regressão (R2 de 68%). Todas as variáveis do modelo se comportaram do modo esperado. Das nove variáveis consideradas acima, apenas a distância do metrô não foi significativa. Um sumário dos resultados é apresentado na Tabela 1, a seguir.
17 Para mais informações
sobre como as variáveis
independentes foram construídas, ver o Anexo.
Tabela 1 – Resultados do Modelo de Regressão Múltipla: coeficientes e significância
Model
Unstandardized
Standardized
t
Sig.
Coeficientes
Coeficientes
B
Std. Error
Beta
8 (Constant)
6.747
dist_cmt
-0.015
0.414
flat
bandz1
0.176
antes_depo
0.205
padrao
0.757
dalesc3
0.149
dist_fav3
-0.108
dverde2
0.048
a Dependent Variable: ln_pre
0.026
0.001
0.025
0.011
0.009
0.042
0.011
0.012
0.011
-0.241
0.172
0.176
0.236
0.196
0.185
-0.097
0.053
258.484
-16.691
16.285
15.780
22.687
17.896
13.788
-9.332
4.277
0.000
0.000
0.000
0.000
0.000
0.000
0.000
0.000
0.000
De modo agregado, esses resultados mostram que os imóveis com preços mais altos por metro quadrado são aqueles mais próximos da chamada “centralidade residencial”; localizam-se em áreas próximas às Z1; foram lançados depois do Plano Real; têm
uma área de lazer extensa; ficam próximos dos pólos de emprego de alta escolaridade; estão distantes de favelas e ficam próximos de áreas verdes. Tais resultados convergem com
o que foi encontrado, por exemplo, no estudo de Hermann e Hadad (2005), que estima os preços implícitos das amenidades urbanas no MSP.18 Os imóveis do tipo flat também têm um valor mais elevado.
O resíduo não explicado pelo modelo (32%) pode ser possivelmente referido a fatores micro locacionais não considerados entre as variáveis aqui apresentadas, como, por
exemplo, a localização do imóvel em avenidas movimentadas e a circulação de ônibus na
rua do imóvel. Esses elementos não foram considerados por falta de dados. Outros aspectos relacionados às características do imóvel também não puderam ser testados, tais como
o número de garagens, as características construtivas do imóvel (estilo arquitetônico, tipo
de material empregado etc).
De modo resumido, esses resultados sugerem que a formação do preço dos imóveis residenciais é um fenômeno relativamente complexo, atribuído a diferentes aspectos relativamente heterogêneos, tais como: a distância da centralidade, a proximidade de amenidades,
o padrão construtivo etc. Cabe, porém, destacar que no caso da Região Metropolitana de
São Paulo, a variável mais importante para esse modelo é a distância do centro de massa
(dist_cmt), sendo este entendido como centralidade residencial, que explica isoladamente
49% da variabilidade observada. Esse resultado pode ser observado na Tabela 2, a seguir.
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17
18 Os autores constataram
que “a presença de (...)
áreas verdes e zonas estritamente residenciais contribuem para a elevação do
preço (...). A baixa significância das estações de
metrô e da atividade comercial pode ser duplamente
explicada pela forte multicolinearidade das variáveis
que compõem o vetor e pelo próprio efeito ambíguo
dos fenômenos, que contribuem ao mesmo tempo
positiva e negativamente
para a valorização dos imóveis. (...) O modelo (...) revela a implicação da oferta de
infra-estrutura urbana sobre
a moradia, o que leva à conclusão de que as regiões
mais centralizadas apresentam valores proporcionalmente mais elevados”. (Hermann e Hadad, 2005).
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Tabela 2 – Resultados do Modelo de Regressão Múltipla: R2
Variável
dist_cmt
flat
bandz1
antes_depo
padrao
dalesc3
dist_fav3
dverde2
Total
Distância do centro de massa
Imóvel tipo flat
Proximidade de Zonas Exclusivamente Residenciais
Lançamento ocorrido antes e depois do Plano Real
Indicador de área externa do imóvel
Proximidade a pólo de emprego de alta escolaridade
Distância de favelas
Distância de áreas verdes
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R2
48,88%
5,96%
4,05%
3,45%
3,43%
1,55%
0,64%
0,14%
68,10%
Tal resultado indica que a ênfase colocada na literatura brasileira a respeito do impacto da localização da moradia de alta renda para a formação do gradiente do preço da
terra urbana é bastante correta, embora, como é possível constatar, outros fatores também
concorram para a formação do preço. A não inclusão da variável relacionada à proximidade ao sistema de transporte (metrô) não indica necessariamente a irrelevância da dimensão transportes. A não relevância dessa variável está possivelmente associada às limitações do sistema de metrô na cidade, inclusive por não chegar ao setor sudoeste, onde o
preço da terra é mais elevado.
Em vista da importância da variável de distância do centro de massa, vale a pena discutir a evolução temporal da relação entre preço e distância da centralidade. A rigor, se o
adicional de preço pago pela centralidade cair ao longo do tempo, a pressão pela expansão periférica será menor, uma vez que grupos de renda intermediária poderiam passar a
residir em áreas anteriormente inacessíveis. Se, ao contrário, o adicional de preço pago pela centralidade aumentar ao longo do tempo, as áreas centrais se tornariam ainda mais
“exclusivas”. Exploramos essa dinâmica na próxima seção.
EVOLUÇÃO TEMPORAL DA RELAÇÃO PREÇO
DOS LANÇAMENTOS E DISTÂNCIA DA
CENTRALIDADE
Ao longo da década de 1990, o preço dos lançamentos imobiliários cresceu substancialmente nas áreas mais próximas à centralidade urbana; enquanto, no período entre
1990-1994, os preços dos lançamentos imobiliários nas áreas mais centrais da cidade –
aquelas mais próximas do centro de massa considerado – custavam aproximadamente um
mil e setecentos dólares americanos o metro quadrado. No período entre 2000-2003, esse preço tinha crescido para, aproximadamente, dois mil e quinhentos dólares. Trata-se de
um aumento médio superior a 50%. Esses resultados são apresentados no Gráfico 1.
18
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Gráfico 1 – Relação entre preço do m2 de lançamento residencial e distância do centro de
massa. RMSP, 1990-200319
19 P = ax + Β (onde: P =
preço do metro quadrado
(em dólar); ax = distância
teórica x coeficiente da
regressão, e Β = constante).
Fonte: Elaboração a partir de dados da Embraesp.
As curvas apresentadas nesse Gráfico 1 são fruto de regressões simples entre o preço
do metro quadrado do lançamento e a distância do centro de massa. Consideramos aqui
três períodos distintos: 1990-1994, 1995-1999 e 2000-2003.20 Por meio desse gráfico,
podemos observar também que a o diferencial entre o preço do metro quadrado próximo
à centralidade e aquele localizado a 25km da centralidade, por exemplo, cresceu substancialmente. Enquanto no primeiro período um imóvel próximo ao centro de massa tinha
um preço por metro quadrado 2,5 vezes superior ao preço de um lançamento localizado
a 25km desse centro, no período 2000-2003, esse diferencial tinha crescido para 3,2 vezes. Esse resultado é, sem dúvida, inquietante, e sugere que as áreas centrais estão se tornando, no âmbito do mercado residencial formal de terras, mais restritivas à localização
de grupos de renda intermediária ou baixa.21
Em outras palavras, para além do aspecto discutido anteriormente, relacionado ao
gradiente do preço em função da localização do imóvel, constata-se que os preços do solo urbano continuam aumentando nos últimos quinze anos, sobretudo nas áreas mais
centrais da metrópole. Esse aumento excessivo e constante de preços da terra nas áreas
mais centrais tem conseqüências diretas para a estruturação urbana e especialmente no
que diz respeito ao acesso a terra no mercado formal.
É importante ressaltar que, não por acaso, o volume de lançamentos imobiliários nas
áreas mais centrais de São Paulo foi acompanhado de um significativo decréscimo populacional dessas áreas mais consolidadas (Torres, 2005). Aparentemente, também se pode
dizer que esse aumento contínuo tem contribuído para a ocorrência de um processo já
descrito na literatura como “gentrificação”, caracterizado, em termos gerais, por uma dinâmica de expulsão de moradores que pertencem a classes sociais menos favorecidas de
certas áreas urbanas, comumente em decorrência de valorização imobiliária dessas áreas.
Ocorre, assim, um processo de troca populacional, em que os mais pobres não podem
mais se manter no local, que passa a ser ocupado por camadas de renda intermediária ou
mais elevadas (Smith, 1996; Arantes, 2000). No caso de São Paulo, apesar da maior verticalização, a população de diferentes bairros do centro-expandido tem diminuído (TorR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
19
20 Nos três casos, o R2
das regressões simples foi
superior a 48%.
21 Não por acaso, os indicadores de segregação residencial mostram que a
segregação aumentou na
década passada em São
Paulo (Torres, 2004).
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res, 2005; Villaça, 1998). Esse é o caso de bairros como Pinheiros, Vila Mariana, Perdizes, Vila Madalena, Aclimação, Vila Olímpia, Brooklin e Pompéia.
Evidentemente, essa lógica de valorização sistemática dos ativos imobiliários nas áreas mais nobres da cidade tem impactos substanciais para toda a dinâmica urbana, uma vez
que menos moradores terão acesso a essas áreas. Como conseqüência, um grupo maior de
famílias terá que buscar as áreas mais distantes como alternativa de moradia. Analogamente, na ausência de um mercado formal de moradias acessível para os grupos de menor renda e de políticas públicas de provisão habitacional eficazes, mais pessoas terão que
residir em áreas irregulares, como favelas e loteamentos clandestinos. Não por acaso, as
taxas de crescimento demográfico em áreas periféricas e em favelas e loteamentos clandestinos e/ou irregulares, em geral caracterizados pela precariedade habitacional e pela situação de irregularidade fundiária, foram muito superiores à média da Região Metropolitana entre 1991 e 2000 (HABI/PMSP, 2004).
Embora não seja o caso, no âmbito desse artigo, analisar exaustivamente as razões
associadas ao aumento do preço da terra nas áreas urbanas mais próximas à centralidade,
vale a pena aqui formular algumas hipóteses principais:
• O ambicioso projeto, em curso há várias gestões municipais, de ampliação do sistema
viário no setor sudoeste, particularmente nos eixos das avenidas Juscelino Kubitschek,
Engenheiro Luis Carlos Berrini e Roberto Marinho – acompanhado por remoções de
favelas e mudanças no padrão do uso do solo – implicou, provavelmente, em aumento do preço da terra em áreas onde a valorização imobiliária já era elevada.
• A estagnação do investimento no sistema de transporte público ao longo da década de
1990, particularmente na expansão do metrô, acompanhada do aumento dos congestionamentos, possivelmente implicou em aumento do custo efetivo do transporte de
áreas mais distantes da centralidade. Nesse sentido, é possível que a moradia em locais
próximos ao trabalho tenha se tornado um elemento ainda mais valorizado do que anteriormente.
• A estabilização econômica, num cenário de ausência de financiamento imobiliário adequado, aparentemente implicou em especialização de boa parte do setor imobiliário no
chamado mercado de “alto padrão”. A baixa capacidade de poupança e a ausência de
financiamento adequado para casa própria em função das elevadas taxas de juros contribuem para o estancamento da produção imobiliária para a classe média.
Infelizmente, não temos condições de apresentar, nesse artigo, subsídios mais palpáveis a respeito da validade dessas hipóteses. De todo modo, discutimos alguns significados desses resultados do ponto de vista de políticas públicas na próxima seção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como apresentado, o presente artigo foi elaborado em torno de três perspectivas
principais. Inicialmente, buscamos definir um conceito operacional de centralidade. A
partir do indicador de centro de massa do preço dos lançamentos imobiliários, pudemos
observar que, embora esses lançamentos estivessem se espraiando mais, a centralidade residencial variou pouco na metrópole paulistana nos últimos anos, localizada em uma região consolidada, dotada de infra-estrutura, serviços e sistemas de transportes (Seção 1).
20
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Em segundo lugar, buscamos operacionalizar um modelo que refletisse a formação
do preço dos novos lançamentos imobiliários no mercado formal de terras. Embora um
conjunto diversificado de elementos convergisse para a formação desse preço, a variável
distância da centralidade residencial mostrou-se como sendo a mais relevante (Seção 2).
Esse resultado confirma vários argumentos presentes na literatura urbana brasileira.
Em terceiro lugar, buscamos avaliar como se deu a evolução da relação entre preço
da terra e distância da centralidade nos últimos quinze anos (Seção 3). Os dados levantados apontam para um substancial incremento do preço médio do metro quadrado de lançamento residencial nas áreas mais próximas da centralidade. Trata-se de um resultado
surpreendente, ainda não observado na literatura, com extensas conseqüências para a vida urbana.
Ressalta-se que, a rigor, a lógica de valorização sistemática dos ativos imobiliários nas
áreas mais ricas da cidade tem impactos significativos na estruturação e dinâmica urbanas. A principal conseqüência resulta que – na ausência de processos substanciais de melhoria na distribuição da renda – um número menor de moradores tem acesso ao chamado “centro expandido”. Isso também contribui para que um número maior de pessoas
tenha que buscar as periferias e favelas como alternativa de moradia. Nesse sentido, a discussão sobre políticas públicas capazes de reverter essas tendências de valorização tem importância fundamental sobre o acesso a terra e qualidade de vida urbana.
Desse modo, vale a pena refletir, ainda que brevemente, sobre alternativas de gestão
e de políticas públicas que pudessem contrastar essa tendência de aumento do preço da
terra nas áreas urbanas mais próximas da centralidade. Em primeiro lugar, o poder municipal poderia descentralizar mais fortemente o investimento público. O investimento em
infra-estrutura urbana tem se concentrado muito em regiões já consolidadas, sobretudo
no chamado vetor sudoeste, sendo que, até onde sabemos, essa prática foi particularmente importante nos governos Jânio Quadros, Paulo Maluf e Celso Pitta (Marques, 2003).
Muito provavelmente, tais investimentos têm impactos substanciais sobre a valorização da
terra urbana.
Em segundo lugar, o governo estadual precisa retomar a ampliação do sistema de
metrô. Nesse sentido, o recente lançamento da Linha 4 parece auspicioso, porque permitiria integrar ao sistema uma maior fração da região oeste da RMSP. Embora gerando valorização das áreas diretamente beneficiadas, isso poderá ter impactos sobre os custos de
transporte e os tempos de deslocamento, reduzindo, de certo modo, a importância relativa da moradia em locais mais próximos da centralidade.
Finalmente, existem também outras possíveis ações do setor público no sentido de
regular o gradiente de preços da terra urbana. Tais práticas decorrem de uma ação mais
incisiva e inclusiva do Estado, e podem envolver ações como a taxação progressiva dos
imóveis subutilizados em áreas consolidadas, a contribuição de melhorias, a delimitação
de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e a flexibilização dos parâmetros de uso do
solo nas zonas mais restritivas, como a Zonas Exclusivamente Residenciais. É de fundamental importância a efetiva aplicação de instrumentos de regulação do mercado do solo que possibilitem maior acessibilidade ao solo urbano barato, seguro e dotado de infraestrutura.
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Haroldo da Gama Torres
é economista, mestre em
demografia e doutor em
Ciências Sociais pela Unicamp. Pesquisador sênior
do Cebrap e membro do
Conselho Curador da Fundação Seade.
E-mail: [email protected]
Renata Gonçalves é arquiteta, mestre em administração pública pela FGV e pesquisadora associada ao
Centro de Estudos da Metrópole (CEM) - Cebrap.
E-mail: rerochagon@uol.
com.br
Artigo recebido em abril de
2008 e aprovado para publicação em outubro de 2008.
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VILLAÇA, F. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Fapesp/Lincoln Institute/Nobel,
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ANEXO
Quase todas as variáveis utilizadas na análise de regressão foram construídas a partir de um Sistema de Informações Geográficas. O Mapa 4 a seguir mostra os principais
elementos geográficos (áreas verdes, estações de metrô, pólos de emprego etc.) utilizados para construção das variáveis independentes na análise de regressão apresentada na
Seção 2.
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Mapa 4 – Entidades geográficas utilizadas para construção de variáveis independentes utilizadas na regressão
Fonte: Bases cartográficas disponíveis no Centro de Estudos da Metrópole/ Cebrap, elaboradas a partir de diversas fontes.
A B S T R A C T This article analyzes how the formal real estate production of the
Metropolitan Area of São Paulo has evolved in the past 15 years. From a brief discussion on
the idea of centrality, and by using real estate data on new developments (Embraesp), the
authors have produced a pricing model that stresses the importance geographic location plays
in determining real estate prices. Data also indicate that prices of residential real estate
substantially increased during the 1990s in more central urban areas. This may partly explain
why the so-called “expanded central area” has been experiencing a process of demographic
decline, while peripheral areas have consistently swollen: a limited number of city dwellers can
afford living in the more valuable central areas.
K E Y W O R D S Land market; residential segregation; São Paulo; urban planning;
metropolitan areas.
24
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A CIDADE COM-FUSA
A MÃO INOXIDÁVEL DO MERCADO E A
PRODUÇÃO DA ESTRUTURA URBANA NAS GRANDES
METRÓPOLES LATINO-AMERICANAS
PEDRO ABRAMO
R
E S U M O Com a crise do fordismo urbano regulamentar, o mercado imobiliário
voltou a ter um papel determinante no processo de coordenação social do uso do solo e de produção da estruturação intra-urbana. A mão inoxidável do mercado de solo está de volta. O
trabalho apresenta uma leitura sobre a relação entre a produção da estrutura urbana e as formas de funcionamento dos mercados formais e informais de solo na América Latina. Propomos como hipótese que as cidades latino-americanas apresentam uma estrutura urbana particular quando comparada aos dois modelos tradicionais (cidade mediterrânea compacta e
cidade anglo-difusa). O funcionamento do mercado de solo nas metrópoles latino-americanas produz simultaneamente uma estrutura urbana compacta e difusa. Essa estrutura urbana característica das grandes urbes latino-americanas nominamos “cidade COM-FUSA”.
PA
L A V R A S - C H A V E Cidade informal; produção da estrutura urbana;
mercado imobiliário informal e formal; mobilidade residencial.
INTRODUÇÃO
A crise do fordismo urbano no início dos anos oitenta nos países centrais, em particular na Europa, e o início da construção do que alguns comentaristas chamam da Nova Política Urbana pode ser considerada como o marco formal da institucionalização da
cidade neoliberal (Moulaert, 2004). Outros processos acompanham esse movimento, em
particular a crítica ao racionalismo construtivista do urbanismo moderno e a amplificação da audiência do discurso do multiculturalismo urbano e da fragmentação étnico-cultural e religiosa nas grandes cidades (Taylor, 2002). Porém, nesse trabalho, vamos realçar um fator que julgamos determinante na construção estrutural da cidade neoliberal e
que chamaremos de “o retorno do mercado” como elemento determinante na produção
da cidade. Ao longo do período fordista urbano, o mercado tinha um papel muito importante na produção das materialidades urbanas, porém, esse papel era mediado pelo
Estado na definição das regras de uso do solo e nas características das materialidades urbanas (urbanismo moderno e decisões de gasto estatal em infra-estrutura e equipamentos urbanos).
A crise do fordismo urbano se manifesta, sobretudo, através da crise do urbanismo
modernista e regulatório com a flexibilização urbana e com a crise de financiamento estatal da materialidade urbana (habitação, equipamentos e infra-estrutura) e alguns serviços urbanos coletivos. Nos dois casos, o mercado ressurge como principal mecanismo de
coordenação de produção das materialidades urbanas, seja pela via das privatizações de
empresas públicas urbanas, seja pela hegemonia do capital privado na produção das materialidades residenciais e comerciais da cidade. Assim, a cidade neoliberal tem como meR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
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canismo de coordenação das decisões de uso do solo a predominância do mercado, ou,
como preferimos dizer, do retorno da “mão inoxidável do mercado”.
Nos países latino-americanos, a produção das cidades modernas resulta do funcionamento das duas lógicas modernas (mercado e Estado), mas também de uma terceira lógica, a lógica da necessidade. Foi a lógica da necessidade que moveu, e continua a mover,
um conjunto de ações individuais e coletivas que promoveram a produção das “cidades
populares” com o seu habitual ciclo ocupação/autoconstrução/auto-urbanização e, por
fim, o processo de consolidação dos assentamentos populares informais (APIs). Recentemente, surge uma nova variante da produção da cidade popular que articula a lógica do
mercado com a lógica da necessidade, e se manifesta socialmente como o “mercado informal de solo” (Abramo, 2003).
A hipótese do trabalho que propomos reafirma que o mercado, ao ser o principal
mecanismo de hegemonia da coordenação das decisões de uso do solo, produz uma estrutura ou forma de cidade particular e característica da América Latina. Uma estrutura “híbrida” de cidade do ponto de vista da sua morfologia de usos do solo vis-à-vis os dois modelos tradicionais da cidade moderna. A cidade moderna ocidental tem dois modelos
paradigmáticos de conformação estrutural em termos materiais do seu ambiente construído. O primeiro desses dois modelos é identificado com o “modelo mediterrâneo” ou
“continental”, e a sua estrutura urbana se configura como uma “cidade compacta”, onde
o uso do solo é intensivo. O segundo modelo de cidade é o modelo anglo-saxão, e a sua
manifestação espacial é a de uma “cidade difusa” com um uso do solo fortemente extensivo, de fraca intensidade e baixa densidade predial e residencial.
Nossa hipótese, que vamos desenvolver ao longo desse trabalho, é a seguinte: o funcionamento do mercado de solo nas grandes cidades latino-americanas promove de forma simultânea uma estrutura de cidade compacta e difusa. Assim, as cidades latino-americanas têm uma estrutura urbana do uso do solo e das suas materialidades que, ao se
compactarem, também se difundem e, ao se difundirem, se compactam. Nesse sentido, a
produção da estrutura urbana das grandes cidades latino-americanas, ao conciliar a forma
compacta e a forma difusa do uso do solo, promove uma forma de cidade particular: a
cidade COM-FUSA.
Vamos demonstrar que tanto o mercado formal, como o mercado informal de solo e de edificações produzem simultaneamente, e por razões particulares vinculadas às
suas próprias lógicas de funcionamento do mercado e de reprodução dos capitais, uma
cidade COM-FUSA. Em uma palavra, o funcionamento do mercado imobiliário formal
produz uma forma de cidade compacta e difusa, assim como o funcionamento do mercado informal de solo também produz uma forma de cidade popular ou informal compacta e difusa.
Ademais, vamos enfatizar que a produção e a reprodução da forma COM-FUSA das
grandes cidades latino-americanas é alimentada por um duplo processo, ou círculo de retro-alimentação dos mecanismos de promoção da forma compacta e difusa do uso do solo urbano. Veremos que o mercado de solo se caracteriza por dois círculos de retro-alimentação da forma COM-FUSA; um de natureza formal e o outro com características
informais. O resultado da produção das materialidades urbanas e, sobretudo, dos mecanismos promotores do uso do solo nos conduz a sublinhar uma lógica interna de funcionamento do mercado formal e do mercado informal que promovem um círculo perverso, em que a compactação alimenta a difusão e a difusão alimenta a compactação. Em
outras palavras, o retorno da mão inoxidável do mercado de solo produz e potencializa
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uma estrutura espacial de uma cidade COM-FUSA. Como podemos imaginar, essa estrutura COM-FUSA, ao promover demandas de equipamentos e de serviços com sinais espaciais diversos, é um fator que dificulta a elaboração de políticas urbanas mais equitativas
em termos socioespaciais.
A PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO DA CIDADE
POPULAR INFORMAL: O MERCADO INFORMAL
DE SOLO URBANO
A cidade popular ou informal na América Latina não é um fenômeno recente, e podemos identificar processos de produção de territórios populares urbanos à margem das
regras e das normas oficiais desde o tempo da colônia em praticamente todos os países de
colonização portuguesa e espanhola. Porém, o processo de urbanização acelerado do século XX tem um papel determinante na amplificação desse processo de produção de cidades populares informais. Grosso modo, podemos dizer que na maior parte dos países latino-americanos a produção da cidade popular está vinculada diretamente à configuração
de estruturas de provisão de moradias e de equipamentos e serviços urbanos truncados
(Vetter e Massena, 1981) característicos de um regime de acumulação fordista excludente (Coriat e Sabóia, 1989) ou periférico (Lipietz, 1991). A urbanização fordista acelerada
e excludente na América Latina promoveu um Estado do Bem-Estar urbano que atende
sobretudo uma parcela restrita da população urbana. A estrutura social extremamente estratificada e com grandes diferenciais de acesso a riqueza (concentração de renda) gerou
o surgimento de ações urbanas coletivas ou individuais de ocupação de solo (organizadas
e/ou espontâneas) movidas por uma lógica da necessidade de ter acesso a vida urbana
(Abramo, 2005), ou, nos termos de Agambem, um movimento de reafirmação da vida
em relação ao direito que não incorporava a vida no direito (Agamben, 2004, p.130).
A lógica da necessidade impulsiona o processo de ocupação popular de terras urbanas no início do século XX e, a partir da urbanização acelerada dos anos 50, vai se transformar na principal forma de acesso dos pobres ao solo urbano em muitos países latinoamericanos. Em alguns países onde o Estado do Bem-Estar fordista excludente promoveu
a produção estatal de moradias, temos um padrão de provisão de solo urbano popular
com dois vetores: a ocupação popular e a produção de moradias em conjuntos habitacionais ou lotes urbanizados (Duhau, 2001). Porém, a fragilidade dos sistemas de provisão
pública na maior parte dos países latino-americanos e o crescimento da urbanização vai
transformando paulatinamente a lógica da necessidade e a sua ação concreta, isto é, a ocupação popular, na forma dominante de acesso dos pobres a terra urbana.
A crise dos anos oitenta e dos sistemas nacionais de provisão habitacional em praticamente todos os países latino-americanos terá duas grandes conseqüências. A primeira
foi um incremento do ciclo de ocupação e sobretudo o seu aparecimento em alguns países onde esse fenômeno não era muito presente (Uruguai, Paraguai). A segunda conseqüência da crise dos anos oitenta foi a consolidação e a potencialização de um mercado
informal de terras urbanas.
Esse mercado informal popular existia em muitos países desde o início do século XX,
fosse na forma do mercado de locação em cortiços ou outras formas precárias de moradia, fosse na mercantilização ilegal de terras peri-urbanas. A partir dos anos cinqüenta, encontramos alguns países latino-americanos onde a forma dominante de acesso a terra urR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
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bana é o mercado informal de solo. O caso mexicano é um exemplo concreto de predomínio do mercado informal a partir da privatização individualizada (venda de lotes individuais) das terras coletivas ejidais rurais (Azuela, 1989). Outro caso conhecido é o da cidade de Bogotá, onde praticamente toda a cidade popular tem na sua origem uma venda
informal de solo urbano (“urbanização pirata”). Isto é, o acesso dos setores populares a um
lote urbano é operado pelo mecanismo da mão do mercado informal de solo (Maldonado, 2005; Jaramillo, 2001).
A existência do mercado informal de solo é atribuída a vários fatores, mas sobretudo, a uma legislação urbanística modernista que dialoga com os estratos de renda elevados das cidades latino-americanas. O modelo de cidade formal modernista das elites latino-americanas impõe um conjunto de requisitos normativos que produziu uma
verdadeira barreira institucional para a provisão de moradias para os setores populares
com rendimento abaixo de três salários mínimos, e induziu a ação irregular e/ou clandestina de loteadores e processos de ocupação popular de glebas urbanas e peri-urbanas (Rolnik, 1999; Maricato, 2001). Essa manifestação de movimentos de ocupação e/ou de surgimento de mercados informais de solo urbano se repetiu em praticamente todos os países
latino-americanos. Nesse sentido, podemos afirmar que esse duplo movimento se constitui em uma das principais características da formação socioespacial das grandes cidades
latino-americanas.
No marco dessa característica estrutural da formação social e urbana latino-americana, vamos sublinhar o que identificamos como o retorno, ou a reafirmação, do mercado
de solo como uma força que potencializa a produção de uma estrutura socioespacial desigual. Porém, esse mercado retorna assumindo duas formas institucionais diferentes. O
mercado retorna com a sua face institucional formal, isto é, no marco de um Estado de
Direito, mas também com uma característica institucional informal. Em uma palavra, o
mercado informal popular de solo urbano vem crescendo em praticamente todos os países da América Latina e se transforma em um importante mecanismo de provisão de solo e de moradias para os setores populares.
A exceção dessa afirmação geral é o caso do Chile, onde, nos últimos anos, sua política neoliberal de provisão habitacional vem reduzindo de forma substantiva o déficit habitacional do país (Sabatini, 2003). Porém, o relativo sucesso do caso chileno vem se revelando paradoxal. A política chilena de moradias foi elaborada com o objetivo de
produzir, via mercado, moradias populares, e assim formalizar o informal. Essa política se
inicia durante a ditadura de Pinochet com o objetivo de acabar com os “acampamentos
populares”, vistos então como um foco potencial de resistência à ditadura. Essa política
sobreviveu ao regime militar e foi incorporada como uma das principais políticas públicas dos governos pós ditadura. Porém, nos últimos dez anos, alguns indicadores sobre as
características dos conjuntos habitacionais chilenos revelam dois fenômenos não esperados: um crescimento importante dos preços da terra (urbana e peri-urbana) e o conseqüente deslocamento dos novos conjuntos para áreas muito distantes do núcleo urbano
(Sabatini, 2005), e um rápido processo de informalização do formal (Rodrigues, 2004).
O retorno da informalidade nas áreas formais dos conjuntos habitacionais tem duas dimensões de informalidade. A primeira, de natureza urbanística, e a segunda, o surgimento de um mercado informal nesses conjuntos habitacionais.
Assim, o crescimento do mercado informal de solo é uma realidade nas grandes cidades latino-americanas, e as expectativas de adoção de políticas neoliberais de titulação
fomentadas pelas agências internacionais com a chancela intelectual de Sotto podem po28
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tencializar essa tendência (Smolka, 2003; Fernandes, 2003). Nossa questão no próximo
item será a de apresentar alguns elementos para uma primeira aproximação do funcionamento do mercado informal de solo e as suas conseqüências em termos de uso do solo e
de estrutura urbana nas áreas informais urbanas.
EM DIREÇÃO AO ENQUADRAMENTO DO MERCADO
INFORMAL DE SOLO: O QUE É O MERCADO
INFORMAL? ELE REALMENTE EXISTE?
Uma questão delicada e objeto de muitas discussões é a definição de informalidade
(Azuela, 2001). Não vamos reproduzir aqui esse debate, mas vamos fazer uma opção clara sobre a noção que vamos utilizar para nos referir a informalidade urbana ou do uso do
solo. A primeira observação é que informalidade não é um conceito, tal como exploração,
marginalidade, espoliação e outros que serviram para uma descrição dos fenômenos urbanos latino-americanos. Nossa perspectiva nesse trabalho é a de tomar o termo informalidade como um termo descritivo, portanto, pré-analítico. A informalidade em seu sentido descritivo é polifônica e serve para descrever fenômenos em várias disciplinas
(economia, sociologia, lingüística, antropologia, direito, etc.) e situações concretas da vida social. Vamos nos restringir à dimensão urbana propriamente dita, ou seja, aquela que
nos remete ao uso do solo urbano.
Nossa primeira aproximação ao termo informalidade é a partir da definição proposta por Bagnasco (1999) e que nos remete ao campo disciplinar dos direitos:
Se chamamos de economia formal o processo de produção e de trocas de bens e serviços regulados pelo mercado e promovidos e realizados por empresas industriais e comerciais com o objetivo do lucro e que atuam submetidas às regras do direito comercial, fiscal, do trabalho, etc., podemos chamar economia informal todo o processo de produção e de troca que não se submete a
um desses aspectos 1
Em seguida, Bagnasco conclui sua definição com as seguintes recomendações:
O aspecto mais complicado, e efetivamente o mais interessante dessa diferenciação está no fato de
que os elementos formais e informais estão imbricados em estruturas de ação social (...) a conclusão importante que podemos sugerir seria que a economia informal, enquanto tal, não deveria estar no centro da pesquisa (acadêmica), mas sobretudo a relação do formal e do informal nas estruturas reais de ação” 2
Assim, podemos tirar duas lições interessantes da citação acima de Bagnasco. A primeira diria respeito a uma definição minimalista de economia informal urbana, na qual
ela seria um ato mercantil de comercialização e/ou locação do solo (edificado) que estaria
fora do marco institucional do direito urbanístico, do direito econômico e comercial, do
direito de propriedade e dos outros direitos civis que regulariam o uso e a propriedade do
solo urbano. Ou seja, o mercado informal transaciona um bem (material ou imaterial) à
margem do marco regulatório da esfera jurídico-política do Estado de Direito moderno.
Seguindo essa aproximação de Bagnasco, podemos dizer que a informalidade urbana seria um conjunto de irregularidades em relação aos direitos: irregularidade urbanístiR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
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1 No original: “se chiamiamo economia formale i processi de produzione e scambio di bieni e servizi regolati
dal mercato e realizzati tipicamente da impresi industriali e comerciali orientate al
profito, che agiscono sottomesse alla regole del diritto
commerciale, fiscale, del lavoro, possiamo chiamare
economia informale tutti
quei processi di produzione
e di scambio che tendono a
sottrarsi per uno o piò aspetti a questi caratteri distintivi”.
2 No original: “l’aspetto piò
complicato, e del resto piò
interessante, di questa differenziazione sta nel fatto che
spesso elementi formali e informali sono stretamente intrecciati in determinate
strutture d’azione (...) la conclusione importante è allora
che non l’economia informale, inquanto tale, deve essere al centro di problemache
scientifiche di ricerca, ma piuttosto il gioco del formale e
dell’informale in concrete
strutture d’azione”.
A
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ca, irregularidade construtiva e irregularidade em relação ao direito de propriedade da terra (Alegria, 2005). No caso de um mercado informal de solo, a informalidade da economia do uso do solo nos remete a essas três irregularidades, mas também a outras irregularidades relativas aos contratos de mercado que regulam as transações mercantis. Assim, o
mercado informal também seria (i) ou (a)regular em relação aos direitos econômicos. Assim, o mercado informal de uso do solo é a somatória de duas dimensões da informalidade: a informalidade urbana e a informalidade econômica.
A maior parte dos economistas diria que o mercado é regulado por instituições fortes que garantem que a sua regularidade esteja nos marcos dos direitos legais, isto é, aqueles direitos que estariam contemplados e garantidos por um sistema jurídico associado ao
Estado (Roemer, 2001). Para os economistas institucionalistas tradicionais (neo-institucionalistas), quando encontramos instituições informais nas relações de mercado, elas estariam subordinadas às instituições legais e serviriam para aumentar a sua eficácia institucional, ou seja, minimizar os custos de transação (Williamson, 1985).
Partindo desse enquadramento, podemos buscar a superação da definição da economia institucionalista tradicional e acrescentar a possibilidade da existência de um conjunto de instituições e de normas informais produzidas historicamente nos assentamentos
populares pela via das práticas sociais que de fato configurem um sistema de regulação informal das transações mercantis informais. Assim, propomos uma segunda qualificação
para a existência de um mercado informal. O mercado informal de solo deve estar fora
dos marcos dos direitos, mas deve ter uma estrutura institucional própria que garanta a
reprodução temporal das práticas mercantis informais de compra, venda e locação de solo e/ou imóveis. Em outras palavras, o mercado informal deve ter instituições informais
que permitam o funcionamento do mercado e garantam em termos inter-temporais e inter-generacionais os contratos de natureza implícita estabelecidos nas transações informais
de mercado.
No caso do mercado informal de solo, onde temos irregularidades (informalidade)
de natureza da titulação, das normas urbanísticas e construtivas, os contratos de compra,
venda e locação não poderiam ser considerados contratos com o amparo da lei, pois os
seus objetos estariam irregulares em relação aos direitos regulatórios. Isso significa que
qualquer conflito não pode ser resolvido pelos instrumentos de mediação e de execução
legais. Assim, essas transações não seriam objeto da regulação e das sanções que servem de
garantia aos agentes envolvidos em todas as relações contratuais da economia formal.
Quando a lei não se constitui no elemento de garantia das relações contratuais de
mercado, outras formas de garantia devem se desenvolver para restabelecer uma relação
de confiança entre as partes envolvidas na relação contratual de mercado. Quando não
há confiança que os contratos serão respeitados e não há mecanismos coercitivos de cumprimento contratual entre as partes, os contratos de mercados deixam de existir, ou seja,
o mercado não se reproduz a partir de relações mercantis e deixa de existir como mecanismo de coordenação das ações individuais (Bruni, 2006). No caso do mercado informal e popular de solo urbano, outras formas de garantias devem se construir socialmente para que as partes estabeleçam uma relação de confiança em respeito aos termos
contratuais estabelecidos entre compradores e vendedores no mercado de comercialização, e entre locatários e locadores no mercado de locação. Do contrário, a relação de troca mercantil não se realiza em razão da desconfiança mútua de um eventual rompimento unilateral do contrato informal. Em outras palavras, sem as instituições formais, o
mercado informal de solo deve estabelecer as suas próprias instituições reguladoras, in30
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cluindo os mecanismos coercitivos, no caso de rompimento contratual unilateral de uma
das partes (Abramo, 2009). Essas instituições do mercado informal permitem que os
contratos implícitos estabelecidos entre as partes sejam respeitados em termos inter-temporais e inter-generacionais.
No caso do mercado informal de solo urbano, uma base importante que garante
o funcionamento do mercado e da sua cadeia contratual são as relações de confiança e
de lealdade que as duas partes contratantes estabelecem entre si; assim, os compradores
e os vendedores, da mesma maneira que os locadores e locatários, depositam no outro
uma relação de confiança que tem como base a expectativa de reciprocidade a partir de
uma relação de lealdade entre as partes. A base dessa instituição informal de mercado
não é de caráter legal, mas depende da permanência no tempo de uma forma particular de interdição social: a forma confiança-lealdade. Essa relação de reciprocidade interpessoal marca muitas relações sociais (Collins, 2004), mas, no caso de relações mercantis, ela foi excluída pela característica do mercado de promover um encontro contratual
entre anônimos.
No caso do mercado informal e popular de solo em que a relação de reciprocidade
confiança-lealdade é uma das instituições fundadoras da possibilidade de existência da
troca mercantil informal, temos a necessidade de uma personalização das relações contratuais. Essa personalização pode não ser totalmente transparente e assumir um caráter opaco, mas a personalização (alguém que vendeu ou alugou e alguém que comprou ou alugou) introduz a possibilidade da relação de confiança-lealdade na constituição de uma
relação contratual que por definição é implícita (informal), isto é, não está garantida pelos direitos que regulam os contratos econômicos. Assim, no mercado informal de solo
são justamente a eliminação da impessoalidade e a personalização da relação contratual
que garantem o mecanismo de confiança e lealdade que permite um contrato de compra
e venda ou locação informal (Abramo, 2009).
Gráfico 1 – Características informacionais do mercado informal de solo no Brasil – Compradores e locatários, 2006
Fonte: Abramo, 2006/Infosolo-Brasil.
O gráfico acima sobre as características informacionais do mercado informal nos assentamentos consolidados é interessante, pois revela que praticamente todos os compradores e locadores tiveram acesso a informação dos imóveis ou dos lotes que compraram
ou alugaram através de um parente ou amigo. Esse parente ou amigo que serviu de transmissor da informação de mercado também é um parente ou amigo dos vendedores e loR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
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cadores, e serve como uma “argamassa interpessoal” no estabelecimento da relação de
confiança e de lealdade entre as duas partes da transação do mercado informal de solo.
Assim, os contratos mercantis do mercado informal de solo estão ancorados em uma trama de relações de amizade e/ou parentesco que garantem a estabilidade temporal das relações de confiança e lealdade entre os agentes que assumem uma relação contratual
(Abramo, 2009).
Porém, o mundo do mercado informal de solo não pode ser visto como um mundo idílico onde não há relações oportunistas e conflitivas entre as partes contratantes.
Como dizem os poetas, a alma humana é um desconhecido que se revela a partir de sonhos, fantasmas, paixões e ódios. Assim, os contratos mercantis são uma forma social de
intermediação de relações pessoais que se estabelecem a partir da mudança de posse ou
de propriedade de bens ou serviços (tangíveis ou intangíveis) que envolvem homens e
mulheres com alma humana, portanto, suscetíveis a mudar de atitude ou comportamento em função das suas emoções, prazeres, interesses e loucuras. Nesse sentido, uma trama de relações de amizade e/ou parentesco, por mais entremeada que seja, não garante
de forma duradoura e perfeita as relações de confiança e lealdade nos contratos mercantis do mercado informal de solo. A possibilidade de uma ruptura unilateral do contrato
implícito e da relação de confiança e lealdade existe e será uma ameaça para o funcionamento do mercado informal. Aqui surge a necessidade de alguma mediação institucional que assuma a posição de um terceiro, ou seja, que esteja acima das partes envolvidas,
e que sua ação promova o retorno aos termos do contrato informal inicial ou eventualmente abra um espaço de negociação entre as partes para redefinir os seus termos pactuados anteriormente.
Essa figura, que vamos chamar de “autoridade” de mediação contratual é determinante para a manutenção dos contratos informais, e a sua permanência no tempo garante a condição inter-temporal e inter-generacional dos contratos do mercado informal de
solo. A hipótese que levantamos a partir de pesquisas de campo sobre os mecanismos contratuais do mercado informal de solo (Abramo, 2005) é a de que nos assentamentos populares informais se constitui uma “autoridade local” que serve de figura mediadora dos
conflitos nessas comunidades populares. Essas autoridades locais são o resultado de processos históricos locais que atribuem um lugar de autoridade local constituída a partir de
uma infinidade de processos sociais legitimadores. Nesse sentido, a constituição da legitimidade comunitária da autoridade local se revela a partir da trajetória histórica de cada
comunidade. Essa legitimidade pode ser de natureza religiosa, étnica, cultural, política ou
mesmo a partir da violência e do controle pela força, como constatamos em algumas pesquisas empíricas sobre o mercado informal na América Latina (Abramo, 2009). Como a
literatura de antropologia econômica nos revela em muitos estudos, os mecanismos de
convivência comunitária que garantem a ordem social local exigem algum tipo de forma
coercitiva para restringir e controlar os comportamentos conflitivos (ou desviantes). Essas formas podem assumir a forma de uma força coercitiva coletiva passiva, representativa e/ou impositiva (Duty e Weber, 2007).
No caso do mercado informal de solo, as autoridades locais servem de instituição
mediadora dos conflitos contratuais e permitem que esses contratos sejam respeitados
e/ou negociados entre as partes, garantindo, dessa forma, a sua manutenção inter-temporal e inter-generacional. Muitos estudos antropológicos sobre a forma operacional dos
mercados e de organizações formais descrevem formas de coerção que não se restringem
a sua dimensão coercitiva legal (Duty e Weber, 2007). Da mesma maneira, no mercado
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informal de solo identificamos formas e mecanismos coercitivos muito distintos, mas que
servem para garantir o que podemos chamar de “pacto contratual” de mercado.
A história social e política de cada assentamento constrói e desconstrói esses mecanismos coercitivos. Mas, o fato importante é que haja efetivamente uma “autoridade local”
que sirva de mediadora nos casos de ruptura e de conflitos no cumprimento dos contratos
mercantis do mercado informal, e ainda, que disponha de mecanismos coercitivos (punição) no caso de uma mediação pacífica malsucedida (Abramo, 2009). Como sabemos, não
há mercado sem instituições que estabeleçam a mediação interpessoal nas relações mercantis. Nesse sentido, o mercado informal de solo nos assentamentos consolidados depende da
existência de relações de confiança e lealdade entre as duas partes do contrato informal, em
geral sustentadas pela trama de relações de amizade e/ou parentesco que permite uma personalização opaca ou transparente da relação mercantil e o estabelecimento de contratos
implícitos e da figura de uma “autoridade local” que serve de fiador desses contratos em
termos inter-temporais e inter-generacionais. Essas duas características definem o núcleo
básico das instituições informais do mercado informal de solo.
Antes de passar a uma tentativa de estabelecer uma taxonomia dos sub-mercados informais de solo, gostaria de recuperar a segunda sugestão de Bagnasco e que enfatiza a importância de não transformar a economia informal em um objeto em si mesmo de análise.
Bagnasco afirma, e seguimos a sua sugestão, que a melhor forma de entender a economia
informal é a partir da sua relação de interação com a economia formal. Em trabalho anterior sublinhamos que as formas de interação entre os mercados formais e informais de solo
podem ser de natureza complementar, de concorrência ou de efeitos de borda com mútua
influência no comportamento e estratégias dos agentes dos dois mercados (Abramo, 2005).
No caso desse trabalho, vamos sublinhar a interação entre o mercado formal e informal de solo a partir das suas resultantes agregadas em termos de uso do solo urbano, ou
seja, na produção e na reprodução da forma urbana das grandes cidades latino-americanas. Como adiantamos na introdução, pretendemos demonstrar que há uma similitude
de resultados espaciais no uso resultante do funcionamento dos sub-mercados formais e
informais. Como veremos a seguir, o funcionamento desses dois sub-mercados produz simultaneamente uma estrutura compacta e difusa do uso do solo. Além disso, encontramos nos dois sub-mercados forças de retroalimentação da dinâmica de produção da estrutura urbana COM-FUSA.
OS DOIS SUB-MERCADOS DE SOLO INFORMAL
URBANO
O mercado de terras informal pode ser classificado em dois grandes sub-mercados
fundiário-imobiliário. Tradicionalmente, a literatura de economia do uso do solo utiliza
o critério de “substitutibilidade” dos bens fundiários e/ou imobiliários para definir os submercados de solos urbanos. Utilizando um conjunto de critérios que vamos apresentar em
seguida, podemos, em termos esquemáticos, classificar o mercado popular informal de solo urbano da seguinte maneira:
1. Sub-mercado de loteamentos (urbanizações piratas);
- clandestinos
- irregulares
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2. Sub-mercado nos assentamentos populares informais (APIs) consolidados
2.1 Residencial - comercialização
- aluguel
2.2 Comercial - comercialização
- aluguel
No nosso caso, incorporamos a definição de “insubstitubilidade” como uma das variáveis chave para uma construção axiomática dos estudos sobre a estrutura do mercado,
e analisamos outros elementos que consideramos importantes para definir uma primeira
clivagem do mercado informal. Assim, definimos como elementos determinantes da estrutura do mercado os seguintes elementos: características da oferta e da demanda de solo; poder de mercado dos agentes econômicos (oferta e demanda); características informacionais do mercado (assimetrias e transparências de informação); características dos
produtos (homogêneos ou heterogêneos); externalidades (exógenas e endógenas); racionalidades dos agentes (paramétrica, estratégica, etc.) e ambiente da tomada de decisão
(risco probabilístico ou incerteza radical). A identificação dessas variáveis aproxima conceitualmente a nossa abordagem do mercado imobiliário informal do tratamento moderno da teoria econômica de mercado, permitindo, portanto, identificar conceitualmente as
particularidades e as semelhanças do mercado informal de solo com os outros mercados
formais da economia. A partir dessas variáveis, procuramos identificar diferenças substantivas nos mercados de terra informais a fim de estabelecer uma primeira aproximação da
definição de sub-mercados informais. O resultado desse exercício pode ser visto no quadro abaixo e permite definir dois grandes sub-mercados de solo informais que denominamos: 1) sub-mercado de loteamentos e 2) sub-mercado de áreas consolidadas (Abramo,
2009, 2005 e 2003b).
Quadro 1 – Marco comparativo das características do mercado informal de loteamentos
e do mercado informal em assentamentos populares consolidados: taxonomia dos submercados
Estrutura de mercado
Loteamentos
oligopólica
Assentamentos consolidados
competência com mercado
“racionado”
Agente dominante e
determinação de preços
fracionador com capacidade
de “mark up” urbano
comprador (“entrante”) e
vendedor (“saínte”)
tensão entre oferta e demanda
Assimetria de poder de
mercado
forte
variável
Característica do produto
homogeneidade relativa (lote)
com variações de localização
e metragem
heterogeneidade
Externalidades
exógenas (hierarquia de
acessibilidade + características
físicas e topográficas)
endógenas + exógenas
Racionalidade e
antecipação
estratégica com informação
incompleta (jogo da antecipação de infra-estrutura)
pluralidade de racionalidades
e objetivos de antecipação
Informação
incompleta e imperfeita (risco)
assimetria informacional e imprevisibilidade (incerteza radical)
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O primeiro desses sub-mercados (loteamentos) é, em grande medida, definido por
uma estrutura oligópolica de mercado, enquanto o segundo sub-mercado (áreas consolidadas) apresenta um estrutura concorrencial, porém, com uma oferta racionada; isto é, a
oferta no sub-mercado de áreas populares informais (APIs) consolidadas é inelástica em relação ao aumento da oferta. Como veremos adiante na descrição do circuito perverso de
retroalimentação dos dois sub-mercados, essa característica de inelasticidade terá um papel importante no crescimento dos preços informais em áreas consolidadas, induzindo algumas famílias a se deslocarem para a periferia pela porta de acesso do mercado informal
de loteamentos. Em outras palavras, a inelasticidade da oferta no sub-mercado em áreas
consolidadas gera uma demanda potencial para o sub-mercado de loteamentos informais.
Os dois sub-mercados de solo informal podem ser identificados na estrutura urbana da cidade em áreas bem precisas e com distintas funcionalidades no processo de vertebração urbana. O primeiro sub-mercado opera o fracionamento de glebas na periferia das
cidades, constituindo-se no principal vetor de expansão da malha urbana e da dinâmica
de periferização precária cuja característica principal nas grandes cidades latino-americanas é a inexistência (ou precariedade) de infra-estruturas, serviços e acessibilidade urbana.
A lógica de funcionamento desse mercado de loteamentos é oligopólica na formação dos
seus preços, mas as práticas de definição dos produtos e do seu financiamento nos remetem a tradições mercantis pré-modernas, em que a “personifição opaca” adquire um papel importante de ajuste da oferta às preferências e à capacidade de gasto da demanda.
A estrutura oligopólica na formação dos preços é um dos fatores da alta rentabilidade mercantil dessa atividade, mas a flexibilidade no ajuste dos produtos e na adequação
familiar às formas de financiamentos informal é um fator de atratividade para os setores
populares. Essas duas características articulam o aspecto de modernidade oligopólica e de
flexibilidade pós-moderna em relaçåo à oferta de lotes informais com uma dimensão tradicional de personalização da relação mercantil, definindo um nexo moderno-tradicional
de natureza nova no mercado informal que assegura a sua atratividade tanto para os “urbanizadores piratas” quanto para a demanda popular. Os produtos desse sub-mercado de
loteamentos são relativamente homogêneos, e os seus principais fatores de diferenciação
nos remetem a dimensões físicas, topográficas e às externalidades exógenas relativas à posição do loteamento na hierarquia de acessibilidades e de infra-estrutura urbana. Nesse
sentido, a produção informal de lotes pode adquirir uma certa economia de escala, ainda
que a temporalidade da venda destes lotes seja muito instável e dependa de fatores externos às variáveis do próprio mercado informal.
A lógica de formação dos preços no sub-mercado de loteamentos informais obedece a uma composição de fatores que, somados, definem o preço final dos lotes informais.
Grosso modo, podemos listar os seguintes fatores determinantes dos preços no sub-mercado informal de loteamentos:
1. Fator ricardiano clássico vinculado aos fatores dos custos de fracionamento da gleba.
Assim, as características topológicas e topográficas determinam custos de fracionamento diferenciados que serão incorporados no preço final do lote informal.
2. Fator thuneniano de localização. O fator localização do loteamento em relação à sua
acessibilidade e à centralidade ponderada pelos meios de transporte disponíveis é um
componente que também está incorporado no preço final do lote.
3. Fator de antecipação de infra-estrutura e de serviços futuros. O loteador, ao buscar lotes sem infra-estrutura urbana e não os disponibilizar para os seus eventuais compraR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
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dores, antecipa que o poder público assumirá essas atribuições no futuro. Assim, os loteadores antecipam o valor futuro de uma área infra-estruturada pelo poder público e
cobram hoje o que será ofertado no futuro. Esse ganho de antecipação varia em função dos cálculos de antecipação do tempo médio que o poder público levará para disponibilizar a infra-estrutura e os serviços urbanos básicos. Como veremos adiante, o
fator de antecipação será um dos componentes mais importante do ganho de fracionamento da gleba, e conduz os loteadores a buscarem glebas baratas e com poucas
acessibilidades e infra-estrutura, pois esse fato permite uma margem maior de ganho
de antecipação pelo agente que fraciona a gleba. Em termos espaciais, isso significa
uma busca contínua de novas áreas periféricas, portanto, um deslocamento recorrente
da fronteira urbana ocupada a partir do uso urbano (ou peri-urbano) informal.
4. Fator de ajuste de mercado. Esse fator é um multiplicador ou redutor dos preços em
função da concorrência oligopolista entre os loteadores e/ou outros sub-mercados informais e formais. A relativa opacidade ou transparência do mercado de lotes informais
pode servir de ponderador desses redutores e multiplicadores, pois quanto mais opaco
for o mercado em termos informacionais, menor o peso desse fator na determinação
do preço final.
5. Fator de facilidade e de flexibilidade nos termos de contratação de créditos informais.
A maior facilidade e flexibilidade no acesso a um lote a partir de contratos informais
de endividamento familiar (crédito) gera juros (ou proto-ganho financeiro) de natureza informal. Esses juros informais não estão vinculados às taxas básicas de crédito da
economia formal (taxa de juros fixada pelo Banco Central e praticada pelos agentes financeiros formais), mas serão incorporados ao preço final do lote.
Poderíamos agregar os fatores de natureza macro ou meso econômica, tais como
volume de emprego, distribuição de renda, etc. Porém, esses fatores, em geral, apenas
deslocam para cima ou para baixo o gradiente dos preços relativos do solo (Abramo,
2001). Em nossa perspectiva de relacionar o funcionamento do mercado de solo (formal e informal) com a produção da forma urbana, o importante são os preços relativos,
isto é, a variação de um preço em uma localização-espacialidade particular aos outros
preços-localização.
Assim, podemos sugerir que a estratégia dos loteadores informais será sempre a de
buscar glebas com o intuito de fracioná-las minimizando os custos de fracionamento e
maximizando os fatores que lhes permitam se apropriar de riquezas produzidas pela variação dos preços relativos do solo urbano. Nessas condições, a melhor estratégia do ponto de vista espacial é a busca de glebas baratas e sem infra-estrutura na franja da ocupação urbana do solo. O resultado, em termos de produção da forma de ocupação do solo
da cidade, é uma tendência a extensificação contínua produzindo uma estrutura difusa
da territorialidade da informalidade urbana. Em uma palavra, o funcionamento do submercado de loteamentos informais promove a extensificação do uso do solo e a sua resultante é a produção de uma forma difusa do território informal. Na cartografia da informalidade da cidade do Rio de Janeiro (Mapa 1), podemos visualizar de forma clara o
sub-mercado de loteamentos promovendo um vetor de extensificação urbana.
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Mapa 1 – Localização dos loteamentos informais no Rio de Janeiro
Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2005.
O sub-mercado das áreas populares informais consolidadas apresenta características
bem distintas do sub-mercado de loteamentos. Vimos algumas delas no quadro comparativo que estabeleceu a distinção entre os dois sub-mercados informais e não vamos desenvolver essas diferenças nesse trabalho (ver Abramo, 2005; Abramo, 2009).3 Porém,
queremos realçar que as externalidades endógenas positivas nos assentamentos populares
informais consolidados são muito importantes na formação dos preços. Acreditamos que
existem duas externalidades endógenas muito valoradas no mercado informal desses assentamentos. A primeira dessas externalidades denominamos de “externalidade de liberdade urbanística e construtiva”. Essa externalidade permite ao comprador de um imóvel
informal exercer um direito de uso do solo (fracionamento e/ou solo criado) que não está regulado pelos direitos urbanísticos e de propriedade da legalidade do sistema jurídicopolítico do Estado.
A possibilidade de fazer um uso do solo de forma mais intensiva sem a mediação
do Estado pode ser vista como uma liberdade para aquele que tem a posse, ou propriedade informal, de um lote e/ou edificação. Essa externalidade de liberdade urbanística será incorporada nos preços finais do mercado informal em áreas consolidadas e
também será um atrativo para a demanda desse mercado (Abramo, 2005; Abramo,
2009). Utilizando a terminologia tradicional, podemos dizer que a liberdade urbanística e construtiva é uma vantagem comparativa importante em relação ao mercado formal de solo e, ao ser exercida, promove uma compactação nos assentamentos populares informais.
Uma segunda externalidade endógena positiva nos assentamentos populares informais consolidados é o que denominamos de “externalidade comunitária”. Essa externalidade é o resultado de uma economia de reciprocidades em que as famílias têm acesso a
bens e serviços a partir de relações de Dom e Contra-Dom, nas quais não desembolsam
valores monetários para aceder a certos bens e serviços (Caillé, 2000). A externalidade comunitária é sustentada por redes sociais e manifestam dinâmicas de proximidade organizada (Rallet e Torre, 2007) que permitem interações interfamiliares que reproduzem temR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
37
3 Em Abramo, 2009 (no
prelo), desenvolvemos uma
discussão detalhada e de
natureza conceitual sobre
as formas de funcionamento
do mercado informal e as
suas similitudes e diferenças em relação ao funcionamento do mercado formal.
A
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poralmente os laços de Dom e Contra-Dom. Esses laços estabelecem uma dinâmica de
trocas baseada em relações de confiança e de lealdade (Pelligia, 2007).
Porém, a condição para entrar nessa economia de reciprocidades que garante o
acesso a bens e serviços sem comprometer uma parte dos recursos monetários familiares
é morar em um assentamento popular informal e ter nele relações de reciprocidade. Assim, essa externalidade comunitária tende a ser capitalizada nos preços do solo e é capturada pelos vendedores do sub-mercado em APIs consolidados (Abramo, 2009). Para a
discussão sobre a forma da territorialidade informal, insistimos que o fator proximidade
é um elemento valorado pelo mercado informal de solo. A demanda nesse mercado busca as externalidades de liberdade urbanística e construtiva e a externalidade comunitária.
O resultado concreto da prática (usofruto) da externalidade urbanística e construtiva é a
compactação do território informal dos assentamentos populares com o fracionamento
dos lotes, aumento da densificação predial e familiar e tendência a verticalização informal. Da mesma maneira, a existência e manutenção das externalidades comunitárias dependem da dinâmica de aglomeração territorial e dos laços sociais (redes) que se formam
a partir desta aglomeração. Assim, as duas externalidades positivas mais importantes do
sub-mercado informal de solo em áreas consolidadas promovem e se nutrem da compactação espacial.
Quadro 2 – Estratégias dos agentes dos sub-mercados informais de solo urbano
Economia das estratégias de localização dos
mercados informais de solo
1. Sub-mercado de assentamentos consolidados
ECONOMIA DA PROXIMIDADE
Estrutura compacta
2. Sub-mercados de loteamentos
ECONOMIA DE REDUÇÃO DE CUSTOS
Estrutura difusa
Portanto, podemos levantar a hipótese que o funcionamento do sub-mercado informal nos APIs consolidados está estimulado por uma busca de efeitos de aglomeração e de
compactação cujo resultado em termos de uso do solo é uma intensificação do uso do solo, portanto, uma compactação do território informal consolidado.
Um terceiro fator que incide no processo de compactação das áreas consolidadas informais é o crescimento nas duas últimas décadas dos custos de transporte, em particular
o aumento dos gastos de transporte no orçamento familiar dos setores populares. O fenômeno das super-periferias revela o seu aspecto perverso e de iniqüidade social com o comprometimento crescente do orçamento familiar em custos de deslocamento. Uma resposta dos setores populares a esse fato pode ser a decisão de mudar seu domicílio para áreas
com maior acessibilidade. Os dados censitários em muitos países revelam o que podería38
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mos chamar de um “retorno” dos pobres à centralidade e, na maior parte dos casos, a forma de retornar à centralidade é pela via do mercado informal nas áreas consolidadas.
Como vimos antes, o sub-mercado informal nas áreas consolidadas se divide em dois
sub-mercados: o sub-mercado de comercialização (compra e venda de lotes, casas e apartamentos) e o sub-mercado de locação. Na impossibilidade de ocupar solo em áreas centrais e na impossibilidade de ter acesso ao solo formal, o mecanismo social de retorno dos
pobres à centralidade será o mercado informal de comercialização e de locação. Resultados de pesquisas recentes sobre os mercados informais revelam a importância do sub-mercado de locação informal como forma de provisão habitacional para os setores populares
(Abramo, 2007b). A tabela abaixo revela que em muitas cidades latino-americanas o submercado dominante nas áreas populares informais é o de locação.
Tabela 1 – Tipo de sub-mercado residencial nos APIs predominantes, 2006
País
Argentina
Colômbia
México
Peru
Venezuela
Brasil
Sub-mercado
Aluguel
Aluguel
Comercialização
Aluguel/Comercialização
Aluguel
Comercialização
Fonte: Abramo, 2006/Infomercado.
Vemos que em Bogotá, Caracas e em algumas metrópoles brasileiras, o mercado de
locação é dominante e cumpre um papel importante no acesso dos pobres ao solo urbano. Não há a menor dúvida de que o crescimento do mercado informal de locação é um
fenômeno recente e a oferta desse mercado é o resultado de um uso mais intensivo do solo nos assentamentos consolidados. A oferta de locação informal, em geral, resulta de fracionamentos e/ou extensão da unidade residencial ou da subdivisão do lote original com
edificação. Nos dois casos, a resultante é um uso mais intensivo do solo, portanto, uma
compactação dos assentamentos informais.
O caso do Rio de Janeiro é bastante representativo desse crescimento. Em pesquisa realizada em 2002 (Abramo, 2003b), verificamos que a participação do mercado de locação
informal representava 15% do mercado de solo nos assentamentos populares informais
consolidados. Em apenas quatro anos, em 2006, essa participação passou a ser de 29,0% e
a locação informal cresceu em praticamente todos os assentamentos (favelas) pesquisados
(Abramo, 2007b). Quando vemos a distribuição do tipo de produto dominante no mercado de locação, constatamos que os imóveis mais procurados são aqueles de apenas um
quarto. A predominância de pequenas unidades habitacionais no mercado informal de locação alimenta a tendência de compactação informal. Assim, há dois movimentos que alimentam o processo de compactação via mercado de locação informal. O primeiro é a transformação de alguns moradores dos assentamentos em locadores informais, fracionando
suas moradias e/ou lotes para atender a crescente demanda de locatários em áreas informais
consolidadas. O segundo movimento é a preferência dos locatários informais por pequenas
unidades em função da sua reduzida capacidade aquisitiva. Em geral, essas moradias de locação informal apresentam uma forte densidade domiciliar, e sugere uma precarização do
precário (Abramo, 2007b). Tanto o movimento da oferta de locação informal quanto da
demanda potencializam a tendência de compactação das áreas informais consolidadas.
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Tabela 2 – Produto dominante do mercado de locação por país, 2006
País
Argentina
Brasil
Colômbia
México
Peru
Venezuela
Sub-mercado
1 quarto (89,8%)
1 quarto (79,4%)
2 quartos (42,7%)
2 quartos (42,2%)
1 quarto (56,2%)
1 qto (40,3%) / 2 qtos (38,4%)
Fonte: Abramo, 2006/Infomercado.
A explicação do crescimento do mercado de locação informal está associada à precarização do mercado de trabalho, mas também a uma dinâmica inter-generacional em que
a capacidade de poupança familiar é praticamente inexistente e o capital inicial necessário para adquirir um lote ou casa precária simplesmente não existe. O depoimento de
uma chefe de família em Florianópolis retrata de forma exemplar essa situação (Sugai,
2007):“eu pago aluguel, pago mais da metade do meu salário, e o pessoal daqui diz que
com esse dinheiro eu podia deixar o aluguel e pagar um lote lá longe, mas eu pago o lote e vou morar onde? Eu não tenho dinheiro para colocar uma casa de pé. Assim, tenho
que ficar no aluguel, mesmo sendo tão caro”.
O depoimento nos revela a incapacidade de poupança familiar para comprar um lote e iniciar um processo de edificação progressiva, clássico nos loteamentos informais populares, mas também deixa claro que uma das razões para essa incapacidade de poupança familiar está relacionada com os altos preços dos aluguéis em relação aos seus
rendimentos. Em outras palavras, temos o paradoxo do mercado informal de locação: ao
praticar preços relativos altos, garante a sua demanda, que não é capaz de saltar para o outro sub-mercado informal de solo, o mercado de loteamentos.
Tabela 3 – Preços médios dos aluguéis em Salários Mínimos por país, 2006
País
Brasil
Argentina
México
Venezuela
Colômbia
Peru
Aluguel
0,75
0,24
0,55
0,45
0,68
0,08
Fonte: Abramo, 2006/Infomercado.
Outro fator que alimenta a oferta de locação informal é a alternativa que as famílias
pobres encontram para complementar seu orçamento familiar fracionando a sua unidade
habitacional para fins de locação. Ademais desse fator, podemos sugerir que também temos um estímulo de mercado. No mercado formal, o valor de locação de um imóvel tende a ser inferior a 1% do valor de comercialização deste imóvel. Na tabela abaixo, vemos
que as taxas de rentabilidade da locação informal na América Latina são muito superiores ao valor de referência dos bairros formais.
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Tabela 4 – Rentabilidade do mercado de locação informal – relação entre preços médios
de locação sobre os preços médios de compra em % por país, 2006
País
Brasil
Argentina
México
Venezuela
Colômbia
Peru
Aluguel
2,37
2,28
1,09
0,70
2,10
1,51
Fonte: Abramo, 2006/Infomercado.
Nesse sentido, podemos dizer que há um estímulo de mercado na conversão de espaços familiares em oferta no mercado de locações informais. Esse estímulo perverso, pois
reduz o indicador de habitabilidade nas áreas informais, representa também um estímulo à compactação nos assentamentos consolidados informais. Em outras palavras, do ponto de vista da forma do uso do solo, o crescimento do mercado de locação nas áreas populares informais potencializa a tendência do mercado informal em produzir uma
compactação dessas áreas.
Nos mapas abaixo, vemos a cartografia dos dois grandes sub-mercados informais de
solo na cidade do Rio de Janeiro. Podemos visualizar uma clara distinção espacial entre os
sub-mercados de loteamento e o sub-mercado de solo nas áreas consolidadas. O primeiro se localiza na periferia urbana, enquanto o segundo, nas áreas mais centrais da cidade.
Porém, o elemento importante desse mapa é aquele que sinaliza que o funcionamento do
sub-mercado nos assentamentos consolidados produz uma estrutura compacta, enquanto o funcionamento do sub-mercado de loteamento promove uma estrutura difusa.
Mapas 2 e 3 – Cartografia dos dois sub-mercados informais de solo na Cidade do Rio de
Janeiro
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Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2005.
A conclusão, em termos de produção da territorialidade informal que chegamos ao
verificar as formas de funcionamento do mercado informal de solo, é evidente: o submercado em APIs consolidados promove uma “cidade informal” compacta, enquanto o
sub-mercado de loteamento produz uma “cidade informal” difusa. Isto é, o funcionamento do mercado informal de solo para os setores populares produz uma estrutura urbana
COM-FUSA, ou seja, é o mercado informal de solo que produz simultaneamente uma estrutura compacta e difusa.
O CÍRCULO PERVERSO DA RETROALIMENTAÇÃO
DOS DOIS SUB-MERCADOS INFORMAIS DE SOLO
O fato de os dois sub-mercados informais produzirem uma estrutura COM-FUSA do
uso do solo urbano informal é grave, pois promove uma dupla precarização do habitat e
da reprodução da vida popular. O mercado informal, ao promover um território cada vez
mais difuso, impõe custos de transporte crescentes aos trabalhadores que vivem nesses loteamentos, mas, quando o mesmo mercado produz uma compactação nos assentamentos
consolidados, ele causa uma precarização do habitat popular com o aumento de densidade (predial e domiciliar) e verticalização com todas as implicações nos indicadores de habitabilidade (escassez de ar, sol, etc.) que essa compactação promove. Em termos macrosociais, a existência e a continuidade do mercado informal de solo estão vinculadas à
desigualdade na distribuição de renda e à incapacidade do poder público de promover
uma oferta massiva e regular de moradias. Porém, gostaríamos de sublinhar um outro elemento que não está necessariamente relacionado com o aumento da precariedade laboral
ou a incapacidade de ação pública, mas que serve de motor e alimenta o funcionamento
dos dois sub-mercados informais de solo.
Ao caracterizar o funcionamento dos dois sub-mercados informais de solo, vemos
que há uma tendência de retroalimentação entre eles, na qual o sub-mercado de loteamento gera uma demanda para o sub-mercado nas áreas consolidadas, e vice-e-versa, este sub-mercado também produz uma demanda para o outro sub-mercado. Temos uma
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forma de funcionamento dos sub-mercados informais de solo em que um sub-mercado
promove a demanda do outro de forma contínua e circular. Essa dinâmica de demandas
de solo informal que se auto-alimentam mutuamente cria um sistema fechado que, ao criar efeitos de retroalimentação, reproduzem em escala crescente a estrutura COM-FUSA da
territorialidade popular informal.
Diagrama 1 – Círculo perverso de retroalimentação dos dois sub-mercados informais de
solo
No diagrama acima, esquematizamos o circuito perverso de retroalimentação dos
dois sub-mercados informais de solo. Vemos que o funcionamento do sub-mercado de loteamentos informais, ao promover uma cidade cada vez mais difusa, impõe um custo de
transporte crescente à população que decide morar em uma periferia cada vez mais distante do centro. Da mesma forma, a precarização do mercado de trabalho e o crescimento da participação de trabalhos eventuais exigem a presença física desse trabalhador em alguma centralidade, impondo um custo de deslocamento que não será necessariamente
compensado com o rendimento diário do seu trabalho. Uma saída para essas famílias é
retornar à centralidade. Mas, para tanto, eles devem retornar pela porta do mercado informal em áreas consolidadas, seja pela “mão” do mercado de comercialização, seja pela
“mão” do mercado de locação. Assim, o funcionamento do sub-mercado de loteamentos
produz uma demanda para o sub-mercado nas áreas consolidadas. Mas, o crescimento da
demanda no sub-mercado em áreas consolidadas não pode ser respondido com uma maior oferta em razão da sua relativa inelasticidade.
Assim, a reação do mercado é via preços, isto é, os preços tendem a crescer. Com isso, temos um aumento de intenções de famílias de disponibilizarem seus imóveis ou lotes nas áreas consolidadas e se capitalizarem (descapitalizarem) para comprar um lote na
periferia e construir moradias com melhores (piores) condições de habitabilidade. Outra
vez, o funcionamento de um sub-mercado informal alimenta a demanda do outro; nesse
caso, o sub-mercado nas áreas consolidadas gerou uma demanda para o sub-mercados na
periferia. Esse efeito de retroalimentação é perverso, pois produz uma estrutura urbana
informal mais compacta nas áreas consolidadas e mais difusa nas franjas urbanas; a “cidade informal” COM-FUSA é portadora de uma precarização do habitat popular, como também de uma perda de ineficiência no uso do solo urbano. Também podemos afirmar que
o circuito perverso de retroalimentação promove um crescimento dos preços do mercado
informal de solo, incrementando as distribuições regressivas da riqueza capturada na forma de valorização do solo.
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43
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4 Retomamos nesse item
os argumentos desenvolvidos em Abramo (2007a).
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O TERRITÓRIO COM-FUSO FORMAL4
O mercado imobiliário é o principal vetor de estruturação do uso residencial do solo formal das grandes cidades latino-americanas. Ao contrário do mercado informal, as
instituições reguladoras desse mercado estão inscritas no ordenamento do sistema jurídico-político do Estado. Porém, o mercado imobiliário tem uma série de peculiaridades que
o tornam um mercado particular em relação a outros mercados da economia capitalista.
As três principais características distintivas desse mercado são: a imobilidade territorial do
bem imobiliário; o seu alto valor individual e o seu longo período de depreciação. Cada
uma dessas três características coloca um problema para a reprodução do capital imobiliário. A imobilidade impede que esse bem, produzido sobre um suporte locacional específico, seja eventualmente descolocado a um outro mercado-localização (bairro, cidade,
país). O alto valor individual do bem imóvel impõe que a demanda assuma um comprometimento dos seus rendimentos familiares futuros, pois a aquisição do bem imóvel, em
geral, envolve uma decisão de endividamento familiar. E o longo período de depreciação,
em média de 70 anos, é um fator que condiciona no curto e no médio prazo o retorno
da demanda atendida ao mercado condicionando, portanto, a demanda habitacional a fenômenos demográficos (ciclo familiar, migrações, etc.).
Além dessas características, o mercado imobiliário formal nas grandes cidades latino-americanas está altamente segmentado em termos de capacidade de compra da demanda. Essa segmentação de capacidade aquisitiva e solvabilidade da demanda é expressão da desigualdade na distribuição da riqueza no mercado imobiliário. A forma dos
capitais imobiliários de se libertarem dessas restrições estruturais do mercado imobiliário
na América Latina foi a constituição de um mercado imobiliário altamente segmentado.
Essa segmentação responde a duas ordens de motivos diferentes. Do ponto de vista da
oferta, isto é, dos capitais imobiliários, a segmentação da demanda permite uma redução
dos riscos e das incertezas dos empreendimentos imobiliários.
Do ponto de vista da demanda (unidades familiares), a segmentação do mercado
imobiliário garante uma relativa homogeneidade socioespacial do seu entorno residencial.
Em outras palavras, uma estrutura de oferta residencial segmentada em termos socioeconômicos promove uma estrutura espacial segmentada em termos socioespaciais. Essa estrutura residencial segmentada (ou segregada, segundo alguns autores) se manifesta como
um mecanismo de “distinção espacial hierarquizada” que reitera espacialmente as divisões
de classe e de estratificação socioeconômica da sociedade (Bourdieu, 1994). Assim, a segmentação da oferta promovida pelos capitais e a busca de segmentação (distinção espacial) da demanda se articulam funcionalmente e definem uma forma de atuação dos capitais imobiliários nas grandes metrópoles latino-americanas. Essa dinâmica de valorização
dos capitais imobiliários produz o que denominamos de uma cidade caleidoscópica
(Abramo, 2007a).
Em trabalhos anteriores, discutimos de forma conceitual e empírica (Abramo, 2001)
as motivações da demanda residencial no mercado formal, e concluímos que o fator determinante das escolhas residenciais é motivada por uma busca de distinção socioespacial,
porque as famílias desejam estar próximas aos seus próximos. O desejo de proximidade
com os seus próximos se concretiza em uma externalidade de vizinhança que preferimos
chamar de convenção urbana (Abramo, 2007a). Em uma sociedade estratificada, esse padrão de comportamento de desejar estar próximo dos seus próximos produz uma cascata
de movimentos de rejeição dos não-próximos do alto da pirâmide social para baixo. As44
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sim, as convenções urbanas são hierarquizadas e servem de mecanismo cognitivo que garante a estrutura segmentada e hierarquizada das externalidades de vizinhança, portanto,
da estrutura socioespacial urbana segmentada (segregada) e desigual.
Diagrama 2 – A busca de distinção socioespacial: a externalidade de vizinhança
A convenção urbana é uma externalidade de vizinhança que não necessariamente está ancorada em uma territorialidade específica; ela não está definida por fatores naturais,
mas sim pelo caráter de interação socioespacial de setores do mesmo estrato social (ou
cultural, étnico, etc.). Essa característica da externalidade de vizinhança ser um processo
de emergência e de manutenção de relações de interação socioespacial será utilizada pelos capitais imobiliários que desejam renovar o segmento de demanda que habitualmente constituem a sua demanda solvável. Para atrair novamente ao mercado imobiliário a
mesma demanda, os capitais devem superar a barreira do tempo de depreciação física das
edificações.
A forma para realizar essa operação é a mesma utilizada nos outros setores de bens
duráveis, isto é, promover de forma contínua a diferenciação de produtos, de tal forma
que permita uma depreciação fictícia dos bens duráveis. Essa depreciação fictícia de uma
parte dos estoque imobiliários promove um mercado secundário que será determinante
na manutenção da liquidez do mercado de imóveis novos. Isto é, a depreciação fictícia deve ser de tal forma que os imóveis depreciados tenham ainda vida útil e, sobretudo, representem uma opção de moradia para estratos sociais inferiores aos que residiam anteriormente nessa espacialidade. Mas, no caso do mercado imobiliário, temos duas dificuldades
para a utilização dessa prática empresarial.
A primeira diz respeito à imobilidade espacial dos bens. Assim, a depreciação fictícia significa um deslocamento espacial do vetor de atuação dos capitais imobiliários e uma
impossibilidade de eliminação do mercado dos bens depreciados de forma fictícia. Esse
segundo problema foi resolvido com o mercado secundário, em que a faixa temporal dos
produtos desse mercado secundário são muito superiores aos dos outros mercados secundários de bens duráveis (automóveis, eletrodomésticos, etc.). A existência do mercado secundário inclusive reduz os problemas relacionados aos altos valores individuais, pois a
maior parte das transações no mercado imobiliário formal são contratos casados, em que
o eventual comprador de um imóvel deve vender, ou vendeu, um outro imóvel. Em outras palavras, a maior parte dos compradores de bens imobiliários também são (ou foram)
vendedores no mercado secundário.
Esse fato introduz uma dificuldade para as estratégias capitalistas de diferenciação
dos produtos imobiliários, pois uma desvalorização desmedida (depreciação fictícia) do
estoque residencial existente pode reduzir a liquidez do mercado primário e inviabilizar a
operação de diferenciação do produto imobiliário. Assim, os capitalistas imobiliários, nas
suas estratégias de uso do solo formal, devem procurar desvalorizar o estoque para alguns
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(aqueles que buscam atrair como demanda solvável), mas essa desvalorização deve representar uma valorização para aqueles que garantem a liquidez do mercado primário, ou seja, para os setores imediatamente inferiores na hierarquia de estratificação social. Assim,
toda desvalorização fictícia do estoque promovida pela diferenciação do produto e/ou espacial é uma depreciação relativa, pois também representa uma possibilidade de valorização locacional e imobiliária para outros estratos sociais.
Como esse efeito está encadeado para trás, pois quem compra sempre vende, a operação de diferenciar os produtos imobiliários se transforma em uma cadeia urbana de desvalorizações-valorizações imobiliárias em que a atuação do capital imobiliário em um pequeno segmento do mercado pode promover uma modificação mais ampla na cartografia
socioespacial (Abramo, 2007a).
Do ponto de vista da movimentação socioespacial, temos dois elementos críticos importantes. O primeiro desses elementos é que uma diferenciação do produto imobiliário
envolve necessariamente um deslocamento espacial da oferta: oferecer um produto diferente em uma espacialidade diferente. Mas, aqui temos o surgimento do segundo elemento crítico, pois quando os capitalistas imobiliários pretendem deslocar espacialmente a sua
oferta, devem deslocar espacialmente uma parte das famílias que desejam desfrutar da externalidade de vizinhança (estar entre os seus e ser/ter uma distinção socioespacial em relação aos outros). Assim, uma depreciação fictícia do estoque imobiliário, uma diferenciação da oferta em relação ao estoque existente, também exige um deslocamento de uma
externalidade de vizinhança. Nesse sentido, toda operação de destruição fictícia de uma
parte do estoque imobiliário, ao ter que recriar uma externalidade de vizinhança, é de fato uma inovação espacial. E essa inovação espacial, ainda que procure deslocar somente
uma pequena parcela da demanda, envolve uma série de efeitos em cascata de deslocamentos domiciliares com o necessário deslocamento espacial da externalidade de vizinhança, como podemos ver no diagrama abaixo.
Figura 1 – Estratificação socioespacial do mercado formal de moradias e lógica dos deslocamentos em cascata
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O efeito urbano desse movimento de deslocamentos domiciliares e de externalidades de vizinhança promovido por uma pequena intervenção de diferenciação do produto
para um segmento restrito do mercado se assemelha a um caleidoscópio no qual um pequeno deslocamento de um cristal reconfigura toda a imagem. Assim, podemos dizer que
o funcionamento do mercado imobiliário formal tem uma dinâmica caleidoscópica em
que a ação localizada de alguns capitais pode gerar uma série de efeitos correlatos em cascata e, na maior parte das ações, do alto da pirâmide social para baixo (Abramo, 2007a).
Mas o leitor deve estar se perguntando a razão dessa digressão, pois o nosso interesse nesse trabalho é o de discutir a produção da forma espacial das cidades latino-americanas. A razão dessa digressão está relacionada ao ato gerador do movimento caleidoscópio
das mudanças de uso do solo urbano formal. O ato que promove esse movimento caleidoscópico é uma inovação espacial. Como dissemos anteriormente, essa inovação espacial
é a articulação de um novo produto imobiliário em uma nova espacialidade urbana. Mas,
deslocar espacialmente uma demanda também impõe um deslocamento espacial da convenção urbana à externalidade de vizinhança. Somente podemos identificar uma inovação espacial, promovida pelos capitais imobiliários, quando temos esses dois componentes associados. Em geral, a possibilidade de articular esses dois elementos está associada a
uma operação de certa escala em relação ao uso do solo urbano. A escala da operação é
importante, pois exige a atuação de vários capitais imobiliários, portanto, alguma forma
de coordenação da sua atuação. Assim, essa inovação desvela em termos espaciais um dos
paradoxos do funcionamento do mercado, isto é, o seu caráter concorrencial e de decisões individuais e autônomas, mas que exige alguma coordenação para concretizar o resultado antecipado: inovação do produto imobiliário e/ou habitat com um deslocamento espacial da externalidade de vizinhança.
Esse duplo movimento revela o ambiente de incerteza urbana em que as decisões locacionais (dos capitais e das famílias) são tomadas (Abramo, 2007a). Uma forma de minorar essa incerteza em relação às inovações espaciais é a de promover essas inovações com
uma estratégia locacional de contigüidade espacial. Assim, nas últimas décadas, podemos
sugerir que as inovações espaciais nas grandes cidades latino-americanas se manifestaram
a partir de um processo de extensificação da “cidade” formal com a contínua promoção
de inovações espaciais para os estratos superiores da pirâmide da distribuição de renda.
Em termos da estrutura urbana, essa estratégia de atuação dos capitais imobiliários é promotora de uma cidade de estrutura difusa. Como ilustração dessa tendência, podemos ver
a evolução do uso do solo do vetor mais rico da cidade do Rio de Janeiro, onde este segmento de demanda solvável é sistematicamente deslocado espacialmente, promovendo
uma dinâmica de extensificação da cidade formal (cidade difusa).
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Mapa 4 – Deslocamento urbano das inovações espaciais na cidade do Rio de Janeiro
Mas esse processo de inovação espacial, promotor da estrutura formal difusa, tem o
seu reverso. E o seu reverso é um processo de compactação da estrutura de uso formal do
solo. Identificamos dois efeitos de compactação associados às estratégias de inovação espacial. O primeiro efeito de compactação nos remete ao fato de o estoque depreciado de
forma fictícia por uma inovação espacial ser ocupado por famílias de estrato inferior de
renda. Em geral, esse movimento de substituição domiciliar produz um efeito de crescimento da densidade domiciliar, pois a preços do solo superiores, as famílias tendem a consumir menos espaço urbano, e a conseqüência seria optarem por unidades habitacionais
menores do que as que deixaram. Assim, as famílias tenderiam a substituir espaço domiciliar por melhor acessibilidade e/ou um movimento ascendente na hierarquia de representação socioespacial da cidade.
Mas o crescimento da densidade domiciliar também vem acompanhado de um crescimento na densidade predial, em função de os lotes remanescentes nessa localização urbana terem agora uma lógica de uso do solo mais intensivo. A oferta de imóveis novos se
adapta à demanda potencial de um estrato de renda familiar inferior sem necessariamente reduzir os preços do solo. Assim, o ajuste será oferecer unidades habitacionais com um
tamanho médio inferior ao do estoque existente, produzindo um crescimento da densidade predial. Como enfatizamos antes, esse processo de substituição não se restringe a
uma única localização; ele se replica em um conjunto de outras localizações urbanas pelas mesmas razões. Ou seja, para uma família adquirir um novo imóvel, ela vende um outro imóvel. Esse imóvel tende a ser adquirido por uma família de estrato imediatamente
inferior de renda, e se repete o processo de compactação que acabamos de descrever.
Assim, o resultado do efeito em cascata dessa dinâmica de substituição de consumo
de espaço domiciliar por melhor posicionamento na hierarquia de acessibilidades e/ou socioespacial e de crescimento na intensidade do uso imobiliário do solo, que se inicia nos
estratos mais altos de renda e transborda para os estratos mais baixos, é um amplo processo de compactação da estrutura de uso do solo da cidade formal.
O segundo efeito de compactação do uso do solo nos remete às estratégias de imitação que toda inovação exitosa tende a gerar no comportamento da oferta capitalista. Nes48
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se sentido, uma inovação espacial, que efetivamente promove uma desvalorização fictícia
do estoque e desloca espacialmente uma externalidade de vizinhança, tende a ser imitada
por outros capitais imobiliários. Mas o processo de mimetismo econômico de imitação da
inovação exitosa deve ser replicado para famílias de estratos de renda inferiores, pois somente assim a imitação ganha o caráter de uma inovação relativa. Mas, a utilização de
uma inovação que foi concebida para estratos superiores de renda para uma demanda de
estratos inferiores deve ser redefinida em termos escalares e, sobretudo, rentabilizar o uso
do solo com um uso mais intensivo. Em outras palavras, a imitação, ao induzir o uso mais
intensivo do solo, promove uma compactação da estrutura urbana formal. No mapa da
cidade do Rio de Janeiro abaixo vemos que a difusão/imitação de uma inovação tende a
se direcionar para vários vetores de vertebração da cidade.
O resultado agregado da dinâmica de valorização imobiliária será um duplo processo espacial. De um lado, a inovação espacial busca uma diferenciação do estoque imobiliário, mas o seu êxito induz ao mimetismo e à reprodução da inovação espacial em outras localizações urbanas, produzindo o seu contrário, ou seja, uma homogeneização do
estoque imobiliário residencial. De outro lado, a inovação espacial se realiza promovendo
uma estrutura difusa de cidade, mas os deslocamentos espaciais das externalidades de vizinhança e o processo de imitação desta inovação produzem justamente o seu contrário:
uma estrutura urbana compacta.
Mapa 5 – O mimetismo das inovações espaciais no Rio de Janeiro
De fato a imitação de uma inovação espacial promove uma tendência de homogeneização do estoque residencial. Mas a homogeneização do estoque obriga os capitais
imobiliários a introduzirem produtos diferenciados. Assim, enquanto a inovação promove uma diferenciação do estoque residencial, a sua imitação reafirma uma tendência contrária de homogeneização do estoque. Dessa maneira, a inovação produz uma forma urbana difusa, enquanto a imitação produz uma estrutura compacta. Outra vez, mas agora
para a territorialidade formal da cidade, vemos que o funcionamento do mercado imobiliário produz uma estrutura urbana com uma forma de uso do solo COM-FUSA.
Da mesma maneira que encontramos uma lógica de retroalimentação da estrutura
COM-FUSA do uso do solo informal, também temos um circuito de funcionamento do
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mercado formal em que a mão do mercado promove um circuito de retroalimentação da
estrutura compacta e difusa. Em termos esquemáticos, o funcionamento do mercado
imobiliário formal produz em termos espaciais um processo de polaridades que se reforçam mutuamente: a diferenciação promove a homogeneização, que estimula a diferenciação. Como podemos ver no diagrama abaixo, o resultado espacial do funcionamento desse mercado é o de uma estrutura de uso intensivo e extensivo do solo produzindo, do
ponto de vista da estrutura urbana, uma cidade formal COM-FUSA.
Concluímos propondo uma leitura do funcionamento do mercado imobiliário formal em que os efeitos retroalimentadores das estratégias dos capitais imobiliários e da demanda residencial produzem a produção e a reprodução de uma forma de uso do solo formal COM-FUSA. Além disso, o circuito de produção da estrutura COM-FUSA formal se
alimenta dele mesmo, caracterizando um sistema fechado ou um sistema que se aproxima dos sistemas de auto-organização mercantil.
CONCLUSÃO
A conclusão desse trabalho exploratório sobre a relação entre o funcionamento do
mercado de solo e a produção e reprodução da estrutura do uso do solo é a de alertar para os riscos do retorno do mercado como principal mecanismo de coordenação coletiva do
uso do solo urbano. Como vemos na figura abaixo, tanto o mercado informal quanto o
mercado formal de solo promovem um duplo movimento de compactação e difusão, produzindo um uso do solo de estrutura COM-FUSA nas grandes cidades latino-americanas.
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Não temos dúvidas de que numa cidade com uma forma COM-FUSA do uso do solo as exigências de coordenação e de controle público da liberdade de mercado são imprescindíveis para torná-la mais igualitária e mais justa do ponto de vista do acesso e da
distribuição da riqueza urbana. Contra o retorno da mão inoxidável do mercado, procuramos demonstrar a imperiosa necessidade de lutar pelo retorno da ação pública de coordenação do uso do solo urbano. Uma ação pública renovada pela ampla participação popular em suas decisões e que supere a fórmula do planejamento urbano modernista em
que o princípio da racionalidade instrumental delegue a poucos as decisões sobre a vida
urbana de todos.
Poderíamos concluir com uma discussão sobre os impactos da estrutura COM-FUSA
das cidades latino-americanas na formulação das políticas urbanas, mas decidimos terminar esse trabalho reproduzindo uma linda afirmação de Samuel Jaramillo (2007),5 em que
ele enfatiza a necessidade de uma bússola e de um timão para controlar a fúria da mão
inoxidável do mercado. Segundo as palavras de Samuel: “para orientarse en este mar embravecido de la ciudad caleidoscópica (COM-FUSA) no vale encomendarse al auxilio hipotético de alguna mano invisible caritativa (el mercado): son necesarios timón y brújula, es
decir, se requiere de la acción política democrática, de nuevo de la planificación, y de la
comprensión de conjunto de la dinámica urbana.”
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5 Parágrafo extraído do comentário de Samuel Jaramillo do livro Cidade Caleidoscópica, de Abramo (2007),
publicado na revista Territórios, ACIUR, Bogotá, Colômbia, 2007.
Pedro Abramo é doutor
em Economia pela Ècole
des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, França.
Professor do IPPUR/UFRJ
E-mail: [email protected]
Artigo recebido em fevereiro
de 2008 e aprovado para
publicação em outubro de
2008.
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B S T R A C T With the crisis of regulatory urban Fordism, the real estate market has
reemerged as a determining force in the social coordination process of land use and in the
production of intra-urban structure. The steel hand of the market retorned. This paper presents
an analysis of the relation between the production of urban structure and the functioning
modes of formal and informal land markets in Latin America. It proposes the hypothesis that,
compared to the two traditional models: (compact mediteranean cities and the anglo saxon
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diffused cities), Latin American cities exhibit a particular urban structure. In these cities, the
functioning of land markets produces simultaneously a compact and a diffused urban
structure. This urban structure, characteristic of large Latin American cities, we designate as
the "Com-Fused" City.
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E Y W O R D S Informal and formal city; urban structure; informal and formal
urban Real Estate; segregation; residential mobility.
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INFORMALIDAD Y
REGULARIZACIÓN DEL SUELO
URBANO EM AMÉRICA LATINA
ALGUNAS REFLEXIONES
NORA CLICHEVSKY
R E S U M O Este artigo mostra as dificuldades de acesso ao solo por parte da população
urbana pobre da América Latina e os resultados da implementação de Programas de
regularização, que procuram solucionar a situação da população que mora de maneira
informal nas cidades e áreas metropolitanas. Tais Programas têm surgido a partir da existência
da irregularidade/ilegalidade/informalidade nas formas de ocupação do solo e de construção
do habitat urbano. Compõem o artigo uma introdução, um capítulo sobre a informalidade
urbana, outro sobre as políticas de regularização, tanto de propriedades quanto de
melhoramento de bairros e, finalmente, reflexões sobre a implementação dessas políticas e seu
impacto sobre a população objeto de sua aplicação.
P A L A V R A S - C H A V E Informalidad urbana; regularización urbana; legalización dominial; mejoramiento de barrios.
INTRODUCCIÓN
La construcción del espacio urbano latinoamericano realizada por las acciones de
diferentes agentes públicos y privados se ha modificado sustancialmente en los últimos
años, resultado de los cambios estructurales en el plano económico, social y político. Estos
agentes pertenecen a diversos sectores de la sociedad, desde las grandes corporaciones
nacionales e internacionales hasta los agentes “informales” y la población que ocupa tierra
y construye su propio hábitat.
Ello se relaciona con el crecimiento de la magnitud y tipos de informalidad en las
ciudades, producto del aumento de la desocupación, los bajos ingresos y la agudización
de su histórica desigual distribución así como el estancamiento de la actividad económica
de América Latina a fines de la década del noventa e inicios de la década de 2000. Si bien
en estos últimos años, hubo un aumento en la dinámica económica y mejora en la
situación de pobreza, aun la población que no tiene acceso a tierra con servicios y
equipamientos urbanos y vivienda es muy importante.
Este artículo muestra las dificultades de acceso al suelo de la población pobre urbana
de América Latina y los resultados de la implementación de Programas de regularización,1
tendientes a solucionar la situación de la población que habita informalmente en las
ciudades y áreas metropolitanas latinoamericanas. Dichos Programas han surgido a partir
de la existencia de la irregularidad /ilegalidad /informalidad2 en las formas de ocupación
del suelo y de construcción del hábitat urbano – resultado de un patrón excluyente de
desarrollo y gestión urbana, según el cual los mercados de tierras y los sistemas políticos
y jurídicos no ofrecen condiciones de acceso legal al suelo y vivienda a la población pobre
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1 Este artículo se basa en
una investigación realizada
para CEPAL-NU, durante
2004-05, en la cual se identificaron 24 Programas de
regularización dominial, un
Decreto y dos Leyes de legalización dominial en 11
países y 47 Programas de
regularización urbana e integrales en 13 países (Clichevsky, 2006).
2 En este trabajo estos términos son usados como sinónimos.
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(Fernandes, 2003). Se convierten en una necesidad vital de sectores de la sociedad que
necesitan un lugar donde asentarse, pero no significa que se está frente a acciones
abiertamente enfrentadas al sistema socioeconómico vigente; incluso no lo cuestionan
abiertamente y se conectan claramente con el mismo de muy diversas formas. Se define
lo informal como no integrado al sistema que se considera convencional; y muchas veces
ha sido el sistema formal el que produjo la informalidad (Riofrío, 2001). Si se es informal
respecto de un sistema que es el establecido, la acción de formalización, entonces, está
concebida como el reconocimiento de lo existente y la propuesta de hacerlo viable dentro
de las reglas convencionales de la llamada formalidad. Por lo tanto es necesario conocer
esa informalidad para poder convertirla en formal /legal /regular a través de los distintos
programas existentes (Clichevsky, 2003).
LA INFORMALIDAD
LA POBLACIÓN QUE VIVE EN DISTINTAS “INFORMALIDADES”
3 Para distinguirlo del mercado informal “secundario”,
al interior de las ocupaciones directas, ver Clichevsky,
2003 e Cravino, 2006.
4 Existe una amplia variedad de situaciones intermedias que no pueden clasificarse
con
claridad
(Clichevsky, 2006).
5 De lotes irregulares o
clandestinos a cargo de los
propios propietarios o promotores.
La informalidad urbana se expresa en dos formas de transgresiones: respecto a los
aspectos dominiales – la falta de títulos de propiedad o contratos de alquiler –; y al
proceso de urbanización – incumplimiento de las normas de subdivisión, uso, ocupación
y construcción de la ciudad y de los requerimientos ambientales para la localización de
usos urbanos. A lo largo de los últimos cuarenta años, los tipos de informalidad urbana y
su magnitud han cambiado en los distintos países de la región debido a las modificaciones
socio económicas y políticas, así también como por las políticas específicas urbanas, en
particular de subdivisión, uso y ocupación del suelo.
Hay distintos tipos de informalidad urbana según la situación dominial como
urbano ambiental; las formas más comunes son ocupaciones de suelo directas – “villa”,
favela, callampa, etc – o a través del mercado informal “primario”3 o “secundario” – loteos
clandestinos o “piratas”; loteos irregulares; propiedad horizontal aplicada a la tierra
urbana; venta de lotes rurales, como partes indivisas, entre otros (Clichevsky, 2006).
El mercado informal existe y persiste vinculado al clientelismo, al punterismo
político y los réditos (traducidos en votos) que se puedan conseguir. La escasa
transparencia del mercado de tierras en su totalidad se exacerba en este mercado
particular. Los agentes son múltiples: el propietario original del suelo rural y urbano; los
loteadores clandestinos; las cooperativas y precooperativas de vivienda y agrícolas; las
ONGs de diferente tipo; las asociaciones de vecinos. La articulación entre los mismos es
muy compleja, y posee especificidades en diferentes países.4
La magnitud de la población viviendo en distintas “informalidades” dominiales y/o
urbanas depende de los países y del momento histórico de cada uno de ellos; es muy difícil
– justamente por el grado de informalidad – obtener datos fehacientes acerca de la magnitud
de los distintos tipos pues los censos no los registran como unidad de análisis y los procesos
de regularización – especialmente los masivos, implementados fundamentalmente desde los
años noventa – y distorsionan, en parte, las escasas informaciones existentes, ya que no se
poseen registros actualizados de la cantidad de población informal que ya ha sido
regularizada (sea desde el punto dominial, urbano o ambas e integrales).
La compra ilegal5 es la forma más extendida de hábitat popular en América Latina,
que llega al 50% de las viviendas en ciudades de Colombia, Nicaragua y El Salvador, entre
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otras. En algunas ciudades, la evolución de la población que ocupa alguna forma de
hábitat informal con respecto al total de habitantes de cada ciudad ha sido importante en
las últimas décadas (Clichevsky, 2006).6 Por ejemplo, en Buenos Aires, ha pasado del 3%
aproximadamente en los años sesenta a algo más del 10% en la actualidad, en tierra ilegal.
HACIA UNA EXPLICACIÓN DE LA
INFORMALIDAD DESDE LAS POLÍTICAS
ESTATALES Y EL MERCADO LEGAL
6 La población involucrada
no se refiere siempre a universos comparables, ya que
para algunas ciudades la información hallada incluye todo el hábitat popular (inquilinato central y asentamiento
irregulares) y para otras los
asentamientos de un sólo tipo (como las “favelas” o las
villas).
LAS POLÍTICAS ESTATALES
Las políticas de regulación del Estado hacia el mercado de tierra privado se definen
a través del derecho de propiedad de cada país; el marco jurídico-institucional (qué nivel
y qué instituciones son las que poseen la misión de actuar sobre el suelo urbano); los
técnicos que trabajan en cada una de las instituciones;7 la voluntad política del gobierno
y las relaciones del Estado con los distintos sectores de la sociedad civil.
La existencia del mercado ilegal de tierra para la población de menores ingresos se
relaciona con las restricciones de acceso a la tierra legal, tanto en términos de producción
como de comercialización de la misma. En Perú, Colombia y Brasil este mercado existe
desde larga data,8 mientras que en otros, como Argentina, comenzó en la década del
treinta y luego tendió a desaparecer hasta que ha resurgido a fines de los setenta
(Clichevsky, 1975;1991). Las normas más estrictas implementadas en los últimos años
sobre la producción del suelo han tenido como una de sus consecuencias el aumento del
mercado “informal”. La Ley Nº 6766/79, de Brasil – prohibiendo los loteos clandestinos
–, hizo crecer las “favelas” (Maricato, 1996), mientras que el Decreto-Ley Nº 8912/77,
en Argentina – que exige loteos con infraestructura –, determinó la aparición de loteos
clandestinos y mayores ocupaciones de tierras. En otros países, recién en la década pasada
se obliga a fraccionar tierra con servicios básicos. Por ejemplo, en Quito, hasta 1992 –
cuando se aprueba la Ordenanza 3050 –, las lotizaciones se hacían en el papel, se vendían
sin infraestructura, y ahora muchas están abandonadas (Clichevsky, 1998).
En muy escasos países se han implementado regulaciones específicas sobre la
comercialización del suelo urbano, como en el caso de la Argentina; generalmente la
compraventa de tierra se rige por los Códigos Civiles de cada país y sus respectivas
reglamentaciones, y los Códigos Penales, para el caso de infracciones. El crédito estatal
para la compra de tierra no ha existido; sólo el crédito privado, pero sin ninguna
regulación estatal, y por lo tanto con condiciones respecto a las garantías, intereses, forma
de pago, etc. totalmente fuera de las posibilidades de la población de bajos ingresos.
Existen algunas experiencias de acceso al crédito a través de la formación de cooperativas,
dado que de manera individual es imposible. Pero inclusive esta forma no puede incluir
a los sectores más pobres de la sociedad (dado que no poseen capacidad alguna de ahorro).
Por otra parte, la relación entre el Estado y los ocupantes de áreas informales ha sido
diferente también según países y momentos históricos de cada uno de ellos. Pues los
gobiernos han reprimido, tolerado, admitido o propiciado las ocupaciones de tierras y
construcciones según las coyunturas políticas. Resulta difícil resumir, pues, la actitud
estatal hacia las ocupaciones directas a través de la simple dicotomía tolerancia/ represión.
Por lo general, ha sido más proclive a aceptar la ocupación en tierras de escaso valor
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7 Que poseen una determinada formación y abordaje
conceptual.
8 Pues poseían normativas
con mayores exigencias de
infraestructura y por lo tanto
la tierra urbana tenía costos
de producción mucho más
altos que en aquéllos donde
significaba sólo aprobar un
plano de subdivisión.
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9 El caso de la Argentina es
particular, pues la Ley Nacional Nº 14.005/50 condicionó la venta de loteos en
mensualidades para el submercado de tierras destinado a los sectores pobres urbanos. El sustento para la
implementación de dicha política fue la ampliación de la
propiedad de la tierra para
la mayor cantidad de población, articulado a políticas
crediticias sobre vivienda y
tierra rural.
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comercial y malas condiciones físico-ambientales. Pero casi todos los gobiernos asumen el
compromiso jurídico y político de proteger la propiedad privada, aunque sus titulares
mantengan la tierra desocupada.9
El Estado ha sido más o menos permisivo con los agentes de los mercados clandestinos
o irregulares de la tierra según las coyunturas políticas, económicas y sociales en cada uno
de los países de la región; en Brasil, a partir de 1979 la actividad se encuentra penalizada,
y en Nicaragua fueron sancionados con el despojo de tierras que vendían a plazos mediante
repartos ilegales. En México, desde los años cincuenta las tierras ejidales y comunales
fueron ocupadas a través de mecanismos legales como ilegales y loteos clandestinos – las
“colonias populares” – en especial en la periferia de las ciudades (Schteingart, 1993).
En cuanto a sus tierras, el Estado ha subdividido las mismas para sectores pobres
urbanos de manera asistemática dependiendo de los objetivos de los gobiernos en cada
uno de los países. Y ha vendido o donado tierras para la población que ha ocupado las
mismas, en algunos países, desde hace décadas; en otros, a partir de los años noventa
cuando, por los programas de reformas del Estado y las políticas de ajuste, tierras
públicas han sido vendidas para mejorar los déficits fiscales. Esto ha sido aprovechado
por algunos gobiernos para destinar parte de esas tierras a los sectores pobres
(Clichevsky, 1991).
EL FUNCIONAMIENTO DEL MERCADO LEGAL
10 Los mercados legal e ilegal (o formal e informal) de
tierras en Latinoamérica no
son independientes sino
complementarios y hasta
actúan de manera yuxtapuesta o con límites escasamente definidos. Los agentes pueden actuar en uno
sólo o en ambos, dependiendo del país y del momento histórico.
El mercado legal10 define, en parte, la imposibilidad del acceso al mismo de
importante cantidad de la población urbana, pues es escasamente regulado en el pasaje de
tierra rural a urbana y menos aun en la comercialización. Posee relación con la dinámica
económica de cada país: inflación y/o estabilidad, funcionamiento del sector financiero:
intereses, entrada de capitales; comercio exterior y especialmente a partir de los procesos
de globalización, con la economía mundial; asimismo, se vincula directamente con los
mercados de vivienda, industria, comercio y servicios.
Los agentes productores y comercializadores directos (propietarios, incorporadores,
promotores, urbanizadores) y los indirectos (sector financiero, industrial, comercial, etc.)
fijan las pautas de funcionamiento del mismo, que generalmente lo hace para la demanda
sólo solvente. Además, según los diferentes países y ciudades es monopólico u oligopólico
y posee escasa transparencia; es difícil conocer quienes son los propietarios (por el uso de
“testaferros”) y los precios reales de las transacciones que se realizan. Su funcionamiento
da por resultado gran retención de tierra – de grandes y pequeños propietarios –, y por lo
tanto, existe una cantidad importante de lotes vacantes urbanos (Clichevsky, 2003).
Como los pobres siempre encontraron alternativas al hábitat legal, los agentes del
mercado formal no están presionados por la población pobre de bajar su tasa de ganancia.
Y la retención del suelo puede ser que dure décadas.
Dependiendo de las regulaciones estatales, la tierra urbana posee más o menos
servicios y por lo tanto un precio de “producción” diferente (precio de la tierra rural más
los servicios necesarios según legislación y los costos legales de subdivisión y registro); las
normas más exigentes de las últimas décadas encarecieron el mismo, aunque la relación
entre el precio de “producción” más la ganancia media del mercado y el precio ofertado
de la tierra es escasa. La tierra rural que se convierte en urbana tiene un precio mucho más
bajo que la primer tierra definida como urbana, en la periferia. También incide en la
definición del precio, los tipos de demanda solvente y su dinámica en cada momento
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histórico, sus preferencias, posibilidades de pago y financiamiento, y el sistema viario, que
en las últimas décadas ha privilegiado el automóvil individual.11
LA “REGULARIZACIÓN” DE LA INFORMALIDAD
El aumento de la magnitud de la población viviendo en diferentes tipos de
informalidad, en un contexto macroeconómico de mayor inequidad que en décadas
anteriores y la imposibilidad de brindar un hábitat adecuado a través de las políticas que
se implementaban tradicionalmente en décadas pasadas, especialmente en conjuntos de
vivienda terminada, han llevado a que los gobiernos encaren, especialmente desde la
década del noventa del siglo pasado, políticas tendientes a mejorar la situación urbana de
dichos hábitats informales y/o mejorar o solucionar la situación de tenencia irregular de
los mismos. Es así que se llevan a cabo múltiples tipos de programas y proyectos de
legalización del dominio del suelo y regularización urbana y, en mucho menor medida,
políticas preventivas.
ALGUNAS PREGUNTAS QUE PLANTEAN LOS PROGRAMAS
¿Estos programas sirven para combatir o aliviar la pobreza, como plantean los
organismos internacionales? Son sólo paliativos, en algunos casos, muy parciales? Lo son
sólo para una parte de la población que vive en la pobreza e incluso en la indigencia?
El interrogante que nos hacemos y sobre el cual intentaremos enfatizar el análisis es
si estos programas de regularización han servido, de alguna manera, a superar, aunque
parcialmente, la pobreza, o por lo menos los efectos más negativos de ella que se expresan,
a nivel urbano, en la inseguridad por la ocupación o la compra de un terreno de manera
ilegal, en áreas muchas veces con graves problemas urbano ambientales.
Nos interesa destacar que la implementación de programas de regularización posee
un carácter “correctivo” – pues actúa sobre los efectos del empobrecimiento, el mercado
legal y las políticas urbanas, y no sobre sus causas –, y no puede ser separada de políticas
públicas, directrices de planeamiento y estrategias de gestión de las áreas urbanas para
revertir el patrón actual excluyente del proceso de urbanización, con el objetivo de
promover la democratización del acceso al suelo y a la vivienda (Fernandes, 2003;
Calderón, 2003; Clichevsky, 2003).
LOS PARADIGMAS A PARTIR DE LOS AÑOS NOVENTA
Si bien en muchos países de la región las políticas de regularización se
implementaban desde hace varias décadas, es desde los años noventa del siglo pasado,
cuando se han elaborado y ejecutado, especialmente en algunos países, políticas masivas
de legalización del suelo ocupado así como políticas de mejoramiento urbano. Los
cambios de enfoque de dichos programas obedecen a varios factores y se explican por
diversas razones.
Entre ellas se destacan: 1. La II Conferencia de HABITAT–UN 1996 define la tenencia
segura como uno de los objetivos fundamentales de las acciones que deben proseguir los
gobiernos, a nivel mundial; 2. El papel de los organismos internacionales de
financiamiento, principalmente el Banco Interamericano de Desarrollo–BID y BIRF
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11 La política de los agentes privados en la comercialización del suelo urbano
está escasamente condicionada por las acciones estatales, pues no ha regulado
la misma y los agentes (en
principio, los propietarios
originales del suelo) fijan los
precios en función de los beneficios que pretenden obtener. La incorporación de
otros actores al mercado y
la complejización de su funcionamiento define que las
rentas generadas por el mismo no sólo sean apropiadas
por el propietario sino por
los múltiples agentes.
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12 Que han estado por detrás de muchos de los programas exclusivamente de
legalización dominial financiados por los organismos
internacionales (principalmente por el Banco Mundial).
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(Banco Mundial). Desde los años noventa especialmente, los organismos internacionales
y bilaterales de crédito financian, ya no políticas de vivienda, como tradicionalmente
habían realizado, sino lotes con servicios, y posteriormente, legalización y mejoramiento
de barrios; 3. Las ideas del economista peruano Hernando De Soto (1987; 2003).12 Para
este autor, la tierra ilegalmente ocupada es un capital que hay que movilizar; una vez
legalizada podrá pagar impuestos (lo que se relaciona con el ajuste fiscal y las reformas del
Estado) y ser objeto de crédito en el sector financiero formal; y 4. El papel jugado por los
gobiernos democráticos, especialmente desde los años noventa en algunos países, y su
objetivo de inclusión social.
La articulación de estos paradigmas, según las realidades nacionales y hasta locales,
han definido, en un aparte importante, la forma de formular e implementar los
programas. También los mismos poseen otra serie de supuestos, unos más explícitos que
otros; algunos hasta opuestos, dependiendo del contexto en el cual los mismos son
formulados e implementados (Clichevsky, 2006). Y aunque en muchos países las políticas
de regularización se implementaban desde hace varias décadas, es en estos últimos 15
años, cuando se han elaborado y ejecutado, en algunas realidades, políticas masivas de
legalización del suelo ocupado ilegalmente por población de bajos ingresos y, en muchos
de ellos, políticas de mejoramiento tendientes a una regularización urbana.
DIFERENTES PROCESOS Y RESULTADOS
Los procesos de formulación e implementación de los Programas son complejos, en
especial en aquellos países donde hay una larga historia de legalización; en algunos, es una
reivindicación de la población desde hace décadas; en otros, han tenido inicios débiles,
desde ciertos municipios o desde provincias/ estados o de gobiernos nacionales, pero con
escasos resultados. Incluso en países como México y Perú, que han sido pioneros de la
legalización desde los años setenta y sesenta, respectivamente, han dinamizado sus
políticas en los años noventa. En otros, recién se inicia el proceso de legalización
dominial, como en Venezuela, mientras que el mejoramiento urbano se realizaba,
también, desde hace varias décadas.
Las políticas de regularización se implementan a través de distintos instrumentos; en
algunas realidades se hace a través de leyes o decretos específicos o a través de un marco
legislativo; en otras, por Programas o Proyectos, y de ellos depende el tipo de
regularización que se realiza en cuanto a la masividad, informalidad que se pretende
solucionar; nivel de gobierno que interviene y recursos disponibles. Algunos procesos
recién se inician, como el ya mencionado de Venezuela, mientras que otros poseen varias
décadas, pero que han modificado sus marcos legales para hacerlos más masivos, como es
el caso de Perú.
Los programas son de regularización dominial o de mejora de la situación urbana
y/o ambiental, o sectoriales. Existe una última generación de proyectos mucho más
integrales (incluso algunos son segundas etapas de programas de vivienda, como el de
Ecuador, que incluye un componente de mejoramiento barrial), que se realizan, aunque
parcialmente, con participación social y se vinculan a planes directores o marcos más
generales como en Colombia, con los Planes de Ordenamiento Territorial (POT) y en
Brasil con el Estatuto da Cidade. Los mismos siguen ciertos “modelos” en base a los
supuestos que utilizan y a los financiadores. Es interesante observar qué innovaciones
introducen los gobiernos nacionales o locales respecto a las metodologías que proponen
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los organismos internacionales o bilaterales de crédito, especialmente el BID y el Banco
Mundial. Y los programas con financiamiento externo han tenido una influencia mayor
en aquellos países sin antecedentes en este tipo de programas. En aquellos que tenían una
historia por detrás, las metodologías se ajustaron a las situaciones nacionales; pero en
otros países, en los cuales los programas nacionales, como en Perú, habían sido un fracaso,
igual fue más fuerte la impronta internacional (Clichevsky, 2006). Asimismo, la campaña
del “alivio a la pobreza” llevada a cabo principalmente por el Banco Mundial ha
significado que se haya introducido un componente de regularización en algunos de estos
programas, como en Guatemala.
Son excepcionales los programas que poseen consideraciones en torno a los
parámetros urbano ambientales para los lotes a legalizar, y ellos están explicitados
solamente en pocos casos de regularización urbana, y en ninguno de regularización
dominial. La sostenibilidad ambiental tampoco está contemplada en la formulación de
muchos de los programas, por lo menos a nivel explícito, o lo dejan librado a los
municipios (ejecutores de planes urbano-ambientales, si es que éstos existen). Y en la
mayoría de los programas, las regulaciones estatales han debido flexibilizarse para ser
aprobadas las regularizaciones, pues los códigos de construcción, las normas de
planificación y los estándares de infraestructura urbana que se aplican en otras áreas de la
ciudad suelen ser inapropiados y no pueden aplicarse a proyectos de mejoramiento de
asentamientos informales.13
Para poder legalizar la tierra que ocupa, la población debe poseer requisitos distintos
que varían según los países – y la focalización de los Programas. Generalmente se exige un
tiempo mínimo de permanencia en el lote (que en muchos casos no se cumple, pues se
han legalizado tierras baldías, como en Perú); no poseer otra propiedad en el país (lo cual
es difícil de documentar, dado la falta de catastros actualizados y centralizados en muchos
países de la Región); ser jefe o jefa de familia (dando prioridad a la mujer, cuando existe
una política definida a tal efecto); no tener deudas con el Estado. Otro requisito, y esto
atenta contra la superación de la pobreza, es poseer un ingreso que permita un tipo de
pago; de lo contrario, parte de la población – la más pobre e indigente – queda afuera de
los Programas, salvo en aquéllos donde el pago es simbólico o subsidiado totalmente.14
La cantidad de soluciones que los programas van a resolver es muy distinta. Algunos
surgen de una definición territorial: dar solución a la población que ha sufrido
inundaciones, por ejemplo, entonces la población es toda la que se halla habitando en
tales circunstancias. Otros son para barrios determinados, o un área piloto. En un trabajo
realizado en Brasil (IBAM, 2002), se ha evaluado la cantidad de población objeto, frente
a la población viviendo en la informalidad: mientras que los proyectos en Belém y
Salvador sólo tenían por objetivo regularizar a 1,68% y 1,14%, respectivamente, de la
población viviendo en la informalidad, en Goiânia tal cantidad representaba el 9,46%,
mientras que en Recife y Porto Alegre algo más del 38%, en Rio de Janeiro algo más del
46%, y en Teresina el 100%. Interesa señalar que los proyectos/ programas que
regularizaban a una cantidad mayor de población eran exclusivamente dominiales. Lo
mismo ha ocurrido en Perú y México, donde los porcentajes de población legalizada
dominialmente son muy altos, sobre todo en el primero de los países – aproximadamente
el 70% de la población que vivía en la informalidad al inicio del programa de
regularización masiva.
La legalización dominial en general se realiza sobre tierra fiscal. Si bien muchos de
los programas de regularización se plantean legalizar las ocupaciones en tierra privada, el
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13 En Brasil, las Áreas o Zonas de Especial Interesse
Social (AEIS o ZEIS) han sido
el instrumento adoptado para amparar legalmente la flexibilización de los parámetros urbanísticos; inclusive
es un instrumento incorporado al Estatuto da Cidade
como política nacional; en
estas áreas se permiten normas diferentes, “cristalizando” de alguna manera la ciudad de los pobres respecto
al resto urbano.
14 También existe una política implícita de discriminación aplicada a la legalización: en la mayoría de los
países no se legaliza la tierra a extranjeros, lo que trae
aparejada una serie de problemas en áreas fronterizas.
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15 De los 49 programas para los cuales se ha conseguido información, 32
poseen financiamiento internacional, algunos cuentan
con más de 300 millones de
dólares, lo que significa un
esfuerzo para el Estado en
términos de deuda externa
(Clichevsky, 2006).
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número de soluciones es significativamente menor que en las tierras fiscales, dado que el
Estado debe primero expropiar la tierra para luego traspasarla a los ocupantes, o ser
mediador en una negociación directa entre los propietarios del suelo y los ocupantes. Los
programas de regularización dominial más exitosos, en términos de cantidad de
soluciones, son los de Perú y México.
En 1996 se crea en Perú la Comisión de Formalización de la Propiedad Informal
(COFOPRI) en el ámbito del Ministerio de Justicia, organismo encargado de diseñar y
ejecutar un Programa Nacional de Formalización en 78 provincias de 17 departamentos
(el 46% del área urbana de Perú). Los objetivos de la titulación masiva son incrementar
el valor de las propiedades, integrarlas al mercado inmobiliario y mejorar el acceso a
servicios de infraestructura básica y al crédito (Rouillon, 2004). En 1998 se aprobó el
Proyecto de Derechos de la Propiedad Urbana (PDPU) a través de un convenio entre el
BIRF y el gobierno peruano. El objetivo del Proyecto es la formalización integral de los
derechos de propiedad. Entre 1996 y 2004 se entregaron en todo Perú, incluindo Lima,
1.425.688 títulos en 1.929.070 lotes en 13 localidades. Solamente en Lima se otorgaron
635.851 títulos en 785.911 lotes (COFOPRI, 2004). En México, en dos décadas se han
legalizado más de 2,5 millones de lotes; pero aun faltan otorgar títulos a alrededor de un
millón de familias (Azuela, 2001; Clichevsky, 2006). En otros países como Guatemala la
situación es muy diferente: hasta finales de 1999 solamente se había logrado legalizar
alrededor de 9.000 familias en 62 asentamientos, lo que representa menos del 20% de la
meta inicial de 50.000 lotes legalizados previstos para el período 1998-1999.
Los Programas de regularización urbana e integrales poseen diferentes componentes;
en la mayoría se contempla la provisión de red de agua, desagües cloacales, pavimento,
centro educacional, centro de salud, equipamiento comunitario, núcleo húmedo dentro
del lote y en algunos casos, vivienda. En los Programas integrales, es fundamental,
asimismo, el acompañamiento social de los proyectos de obra, y en algunos, la generación
de empleos. La mayoría de los programas integrales posee un fuerte componente de
acompañamiento social y en muchos de ellos, también, un componente de
fortalecimiento institucional. En muchos se desarrolla un componente de generación de
empleo y/o de capacitación, lo que significa una mayor posibilidad de apoyar a la
población a mejorar sus condiciones de vida.
Una de las limitaciones que posee este tipo de programas es la escasa cantidad de
beneficiarios respecto a la población en la informalidad. Dentro de los programas
integrales de regularización, como los financiados por el BID, el Favela-Bairro, en la
ciudad de Rio de Janeiro, es uno de los más exitosos, también en términos de cantidad de
soluciones, pues fueron objeto del mismo 500.000 habitantes (unas 110.000 viviendas),
pero no se ha ocupado de la regularización dominial, pues que ello era función de otro
programa municipal, que ha sido menos exitoso, dado que sólo ha podido legalizar cinco
asentamientos que habían sido objeto del Programa Favela-Bairro (IBAM, 2002). Un alto
porcentaje de los programas posee financiamiento de organismos internacionales,
básicamente del BID y BIRF, aunque también, en algunos casos de agencias europeas de
cooperación binacional (caso PRIMED, en Medellín, con financiamiento alemán).15
En la mayoría de los programas de regularización dominial, la tierra es gratuita o
posee un precio simbólico; la población sólo abona, a veces, los costos de mensura y
escritura. En pocos casos se establece el pago en función del precio de mercado de la
tierra que se regulariza y de los ingresos de los beneficiarios. Participar de programas de
regularización significa, pues, en términos de costos y financiamiento, muy diferentes
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situaciones para la población, en virtud del tipo de programa y de la propuesta de
política específica: si es el Estado el que asume los costos, o traspasa parte o la totalidad
a la población.
En los casos de regularización urbana, también los programas son mayormente
subsidiados y la población sólo se hace cargo, posteriormente, de los pagos de impuestos
y tasas por servicios. Las formas de financiamiento pueden considerar una demanda
segmentada (según su real disposición a pagar) o no; en este último caso, la falta de
financiamiento específico, según las distintas posibilidades de pago de la población
beneficiada, puede llevar a que parte de la misma no pueda pagar, lo que, según países y
coyunturas políticas, puede llegar hasta el desalojo y el remate del terreno (si se ha
hipotecado el mismo como garantía de la deuda).
En los casos de regularización dominial, son una cantidad importante de
contribuyentes regularizados, pero con impuestos nulos o muy bajos El impuesto
inmobiliario no es un instrumento válido para equilibrar las cuentas fiscales – tal como
muchos de los programas se plantean – debido a las exenciones, la morosidad y por el
escaso peso relativo frente a otros contribuyentes. En muchas realidades existen años de
gracia o exoneración del pago, como por ejemplo, en Guayaquil, donde se permite la
eximición del pago de los impuestos prediales por un lapso de cinco años (Clichevsky,
2006). En relación a las tasas de servicio, ellas varían según los servicios que posean: si los
mismos se hallan privatizados o no; si se aplican “tarifas sociales” de agua, electricidad.
En cuanto al otorgamiento de crédito, justamente uno de los supuestos
fundamentales para la legalización es que la población pueda acceder al mismo mediante
el sistema financiero privado. De Soto (2003) considera que, fuera de las familias, el
principal beneficiario de los procesos de regularización del suelo es el sistema financiero.
Pero la existencia de garantía propietaria por sí sola no es suficiente para el desarrollo de
mecanismos de crédito, pues los bancos exigen además a los acreedores un determinado
ingreso (familiar o individual) y no exclusivamente la propiedad del terreno. A su vez,
para las instituciones financieras formales resulta igual de oneroso otorgar préstamos de
pequeños montos (como a la población regularizada) que de grandes montos, y por lo
tanto no están interesadás en concederlos.
En Perú, la vivienda registrada es una garantía para la institución financiera y la
hipoteca constituye un documento que es posible transar en el mercado secundario de
valores. Sin embargo, la opinión generalizada de las familias es que un crédito hipotecario
es algo demasiado riesgoso de asumir, debido al gran valor que le otorgan a la vivienda.
En términos generales existe una actitud prudente respecto a la solicitud de préstamos.
Ello se explica por la inexistencia de un trabajo estable y de buenos ingresos (DESCO,
2001). Aunque los créditos, tanto en montos como en cantidad, han ido en aumento:
249 millones de dólares en 2000, que interesan a 154.000 personas; 274 millones y
173.000 personas en 2001, 314 millones y 197.000 beneficiarios en 2002, y hasta agosto
2003, 346 millones y 226.000 propietarios (COFOPRI, 2004).16
Otra situación ocurre en Brasil, donde, en un estudio sobre programas de
regularización en diez ciudades, no se ha encontrado ninguna mención a que la
legalización de la propiedad haya propiciado el crédito de las familias beneficiarias de
dichos programas (IBAM, 2002).
En México, no toda la población que posee el terreno quiere un crédito bancario. Se
ha demostrado que ya antes de poseer la propiedad tenían créditos – quizá a mayor
interés, pero eso no le importa mucho a la población – a través de agentes privados o de
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16 Para este tema, ver también Calderón, 2007.
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familiares, amigos, etc. Existe un “mercado” de crédito informal, a los que dicha
población tiene acceso. Y con la legalización, quieren seguir teniendo ese tipo de crédito
por desconfiar de los bancos, de las condiciones que les imponen, de las hipotecas y por
el miedo de la morosidad. Un estudio en Argentina corrobora que la obtención del título
de propiedad no significa una mayor cantidad de población beneficiada con créditos. No
hay diferencias en cuanto al acceso al crédito formal entre 1.800 familias legalizadas entre
1989 y 1998 y otro grupo de familias aun no regularizadas. Las familias regularizadas
siguen accediendo a crédito informal a través de parientes, colegas, vecinos y amigos
(Galiani y Schargrodsky, 2004).
¿HACIA UNA TENENCIA SEGURA?
En la mayoría de los países se legalizan las ocupaciones de tierras fiscales y en menor
cantidad las realizadas sobre tierras privadas. En algunos se otorgan escrituras públicas; en
otros títulos, en un registro especial, como en Perú hasta 2004. Algunos países utilizan la
usucapión y la Concesión del Derecho Real de Uso, como en Brasil. En Argentina, la
posesión de lote ocupado ilegalmente (un tipo especial de “informalidad”), si no es
solicitado por el propietario original durante el término de diez años, es tenencia
intermedia (mediante un documento público inscripto en Registro), luego de lo cual el
poseedor obtiene la escritura definitiva (Ley Nº 24.374/94).
Dados los cambios constantes de los contextos políticos locales, en muchas ciudades
donde las políticas de la tenencia y los programas de regularización no están consolidados,
aun hay desalojos (Clichevsky, 2003). Por lo tanto, tener seguridad de la tenencia a través
de un documento se vuelve importante cuando un conflicto surge, sea una confrontación
jurídica entre los ocupantes y el propietario original privado, por problemas familiares o
por factores económicos externos, tales como obras públicas significativas que pueden
tornar las áreas ocupadas más atrayentes para el mercado inmobiliario.
Obviamente que las escrituras públicas – registradas en el respectivo Registro
Público de la Propiedad – son los documentos que dan total seguridad a quienes la
poseen. Una institución como ésta debe operar sobre una base racional, impersonal y
“desinteresada” y se puede defender públicamente el título a la tierra en juicios que
proclaman el principio del acceso y el acatamiento universal a la regla de que la ley
trasciende los intereses particulares. La posesión del título legal permite a los propietarios
la libertad de utilizar y disponer de la propiedad (Varley, 2001). Esta seguridad se
desvanece, en parte, en las titulaciones que no se realizan mediante escritura pública.
¿LA POBLACIÓN PARTICIPA?
Desgraciadamente, la población no participa de los Programas durante su
formulación; lo hace en la implementación, dependiendo de su organización, de la
coyuntura política y también de los programas específicos; en los programas
exclusivamente dominiales la participación es menor que en los programas integrales. En
los programas de legalización masiva, la población tiene muy escasa participación, salvo
en cuanto a requisitos de documentación y, si corresponde, en los posteriores pagos. En
Perú, el proceso de formalización es una política diseñada y dinamizada desde el Estado,
de “arriba hacia abajo”, sin que participe la población de manera individual o familiar. No
han sido los pobladores organizados quienes se han acercado a las instituciones del Estado
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solicitando la implementación de una política de formalización o de registro de sus
propiedades (PDPU, 2002). En otras realidades, los habitantes definen desde los límites de
lo que ellos entienden que es “su lote” en relación a sus vecinos, ayudando en la
señalización para su posterior mensura.
La participación de la población es básica para arribar a la inclusión – como
pretenden muchos de los programas en sus objetivos –, pero si se consideran también
otras instancias de participación en programas de empleo, previsión de la informalidad
mediante políticas que modifican el funcionamiento actual del mercado legal del suelo,
entre otras. De lo contrario, la ciudad segregada va a continuar existiendo, quizá en
mejores condiciones, especialmente en relación al peligro del desalojo, y a veces con
mejoras ambientales. Pero estos son los límites que plantean estos programas. Para una
verdadera inclusión de la población “regularizada”, debería poder elegir donde vivir, y esto
aun es imposible en la sociedad latino y centroamericana, donde las situaciones de
pobreza e indigencia no se han revertido.
¿LOS PROGRAMAS INCIDEN EN LA MULTIPLICACIÓN DE LA INFORMALIDAD?
Como la pobreza ha aumentado en muchos de nuestros países, o por lo menos no
ha disminuido en términos absolutos, se siguen reproduciendo las ocupaciones, y/o el
funcionamiento del mercado informal, pues no se opera estructuralmente para que ello
no ocurra. Inclusive hay autores que plantean que las políticas de regularización son un
aliciente para las nuevas ocupaciones informales (Smolka, 2005). La legalización va detrás
de las ocupaciones; por ejemplo, en Perú; entre 1998 y 1999, el número de viviendas
regularizadas fuera de Lima aumentó de 17.929 a 48.869, también aumentaron las
carentes de títulos de propiedad de 371.005 a 392.436, lo cual pone en evidencia la
persistencia de los mecanismos de invasión (Calderón, 2002). Sólo en la ciudad de Lima
la COFOPRI estimaba que se habían creado 214 asentamientos con 25 mil familias en los
últimos cinco años.
En Brasil, mientras se regularizan algunas “favelas”, muchas otras aparecen o son
densificadas. La valorización inmobiliaria, combinada con la reducción de los ingresos,
desencadena desplazamientos “en cascada” – de una clase social sobre la inmediatamente
inferior – hacia los barrios menos caros. Las “favelas” pasan a ser presionadas por una
demanda de mayores ingresos, que induce una parte de los habitantes a traspasar sus
inmuebles. Por otro lado, las familias de bajos ingresos ya no pueden instalarse en aquella
“favela”, pues los precios se han tornado muy caros después de la urbanización
(Clichevsky, 2003).
Según los programas y sus específicos requisitos de venta, los terrenos regularizados
quedan incorporados al mercado del suelo urbano y el valor que los pobladores tienen que
pagar – en especial en las tierras privadas regularizados – es el de dicho mercado, lo cual
significa, en muchos casos, que los mismos deban instalarse en otras áreas dentro de la
ciudad en las que el precio del suelo es más accesible a sus posibilidades. Así se liberan
áreas invadidas y la población de menores ingresos se concentra en zonas que pueden
volver a invadir o comprar a bajo costo.
En Perú, la legalización masiva ha tenido impacto sobre el mercado de tierras pues
el precio del terreno vacío ha aumentado notablemente. El mercado informal de suelo,
única opción de los pobres se torna en un mercado formal para familias de mayores
ingresos. Se genera más exclusión urbana y social. Quienes han ejecutado el proyecto
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17 Esta paradoja nos remite a la cuestión de fondo de
todo proceso de formalización: las acciones de regularización de la tenencia del suelo pueden ser efectuadas
al servicio de diferentes
marcos y propuestas del desarrollo (Riofrío, 2001).
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de formalización peruano han supuesto que ello bastaba para que el mercado opere y
genere desarrollo.17
La regularización estimula, pues, el mercado del suelo, en la medida que induce la
demanda de predios disponibles y la oferta por parte de quienes adquirieron
irregularmente un lote en una perspectiva especulativa, así como la aparición de una
demanda proveniente de sectores sociales de mayor nivel socio-económico que el
correspondiente a la población inicial. Por lo mismo, induce a una aceleración del proceso
de densificación del asentamiento.
La regularización, aún antes de concretarse, es decir, desde el momento que es
anunciada y se traduce en la presencia de funcionarios del organismo regularizador,
provoca un aumento prácticamente inmediato de los precios del suelo. Salvo que haya
pactos expresos o compromisos firmados con anterioridad como ha ocurrido en algunas
colonias de Tegucigalpa. En otras realidades, como en Jujuy, Argentina, en el contexto del
Programa de Mejoramiento de Barrios (PROMEBA), aun no había finalizado el proceso de
legalización a sus ocupantes, y parte de éstos ya los habían vendido con compromisos de
venta a precios de mercado – dado que se trataba de un barrio muy cercano al centro de
la ciudad y por lo tanto con alto valor relativo del precio de la tierra en el mercado formal.
Por otra parte, el mejoramiento y la regularización son incentivos a nuevas
ocupaciones. La valorización de los barrios regularizados y de sus entornos puede
significar que los pobladores no puedan pagar impuestos y tasas acordes con las
valuaciones, y por lo tanto, deberán dejar el lugar donde habitan y volver a ocupar – ello
ya ha ocurrido en algunos barrios, donde se han transferido los boletos de compra-venta.
En Perú, la intervención estatal, en los sectores más pobres, como la aplicación del
programa de Legalización de la Propiedad a través de COFOPRI cambia las circunstancias
urbanísticas del predio y en consecuencia hay un incremento de valor del mismo. Pero
depende de la antigüedad del asentamiento. En términos generales, en las zonas
consolidadas y antiguas no se ha desarrollado un mercado ni procesos de movilidad
residencial, aunque en las no consolidadas pero tituladas sí se observan casos de
tendencias a la venta (Calderón, 1999; 2007).
Evidentemente, la política de regularización significa colocar tierra en el mercado
formal, y existe una polémica en torno a los alcances que posee esta situación. Aunque
todavía resulta prematuro sostener que la política de regularización está desarrollando un
mercado inmobiliario formal en los barrios populares, en sustitución de las transacciones
informales que existían con anterioridad.
Como dice Alfonsín, para los autores “catastrofistas”, el mercado es implacable y el
esfuerzo público en regularizar y equipar los asentamientos es, ex-post, apropiado
privadamente por los que siempre lucran con la creciente urbanización de la ciudad.
Según esta autora, para los “románticos”, la comunidad puede resistir el asedio del sector
inmobiliario. Los “realistas” reconocen la existencia del problema y procuran analizarla,
tratando de entenderlo y buscar soluciones adecuadas a los intereses tanto públicos como
de los habitantes de los asentamientos regularizados (Alfonsín, 2001; Clichevsky, 2006).
REFLEXIONES FINALES
El artículo muestra que se han complejizado los tipos de informalidad urbana, y en
algunos países ha aumentado la cantidad de población viviendo en diversas situaciones de
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informalidad, debido a la distribución de la riqueza y a la situación de empleo e ingresos,
así como a las políticas del Estado hacia sus propias tierras y al mercado de tierras legal y
al funcionamiento del mismo.
Es indudable que los diferentes programas de regularización implementados en los
países de la región han contribuido, de distinta forma y profundidad, a mejorar la
situación de la población pobre urbana viviendo en la ilegalidad. También es indudable
que los mismos aún adolecen, en mayor o menor medida dependiendo de sus objetivos
en la formulación y de las posibilidades de implementación, de una serie de problemas
que habrá que superar para que los mismos puedan poseer un mejor desempeño. Interesa
exponer algunas reflexiones finales sobre el desempeño de los mismos:
• Tipos de informalidad que se regulariza: los programas apuntan a legalizar tierra fiscal y
en mucho menor medida ocupaciones sobre tierra privada e informalidad producida
por el funcionamiento de mercados informales de tierra urbana. Ello es debido a los
altos costos para el Estado y el tiempo en expropiar tierra privada para otorgársela a los
ocupantes, y los costos para los posibles beneficiarios.
• Cantidad de soluciones de situación de informalidad: en algunos casos han significado
una disminución considerable de la misma, como en Perú. Pero la legalización
exclusivamente dominial posee limitaciones, en especial respecto al tipo de tierra que
se legaliza en cuanto a localización (en áreas de riesgo) y falta de infraestructura,
tamaño y estándares físico-constructivos. En los programas integrales, la cantidad de
soluciones respecto a la población viviendo en la informalidad es mínima, como han
mostrado algunos de los programas en Brasil, Colombia y Argentina.18
• Instrumentos por los cuales se regulariza dominialmente: existe un predominio de
programas que utilizan las escrituras públicas; si bien en número de soluciones, las
tenencias más “blandas” son más significativas.
• Utilización de las tenencias intermedias en los programas de legalización – para hacerlos más
masivos con menores costos y tiempos. Ello depende de la situación política de cada país,
pues obviamente que dichas tenencias entrañan peligro de desalojo, dado que poseen
vulnerabilidad jurídica (y aún los conflictos por la tierra y desalojos están presentes en
varios países de la región). También es interesante señalar que aún perdura, en la región,
una visión jurídica de la propiedad privada por sobre la visión – en algunos países
constitucionalista – de la función social de la propiedad. Y esta visión jurídica de la
propiedad individual es la que hace peligrar la seguridad de las tenencias intermedias.
• Problemas institucionales: la cantidad de organismos públicos y privados que
intervienen en los procesos de regularización (a veces, de distinto nivel del Estado). La
falta de recursos humanos capacitados para llevar adelante los programas significa,
conjuntamente con problemas de formulación de los programas, períodos extendidos
de implementación e incluso, atrasos importantes entre la formulación y la
implementación, que atentan contra el desempeño de los mismos.
• Parámetros urbano ambientales que se utilizan para los programas de regularización: no
existen para los programas de legalización y en los casos de mejora urbano ambiental,
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18 En un contexto internacional en donde la población
viviendo en la informalidad
aumentará en las próximas
décadas (Payne, 2005).
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sólo en escasos proyectos se elaboran especialmente. En general, los proyectos son
aprobados por excepción o por flexibilización de las normas existentes. Existen sólo
unos pocos casos en los cuales los programas están vinculados a la política urbano
ambiental a nivel local, provincial/estadual o nacional.
• Costos para el Estado: se evidencia una preponderancia de programas con
financiamiento internacional – que en escasos casos son a fondo perdido – o que
significa que los países deben endeudarse para poder llevarlos a cabo. En los casos que
los gobiernos financian los mismos, hay problemas con el flujo financiero y hay casos
en que ha significado que no se han podido mantener la cantidad de soluciones a lo
largo del período, debido a la modificación de prioridades en las inversiones.
• Costos para la población regularizada: en la mayoría de los programas, el costo del suelo
es gratuito o se efectúa un pago simbólico. Muchos de los programas con componentes
de mejoramiento urbano son asimismo gratuitos, o con alta cuota de subsidio. Por lo
que pareciera que no son los costos de los programas los que inducirían a la población
a vender su ahora legalizado hábitat, sino los costos provenientes de impuestos y tasas
del proceso de regularización específica. Aunque también en muchos casos los
impuestos inmobiliarios son muy bajos o los inmuebles están exentos, sólo los costos
de tasas por servicios podrían ser impagables por parte de la población legalizada.
• Participación de la población: los programas de mejoramiento urbano o integrales,
ejecutados a escala local – aunque provengan de fuentes de financiamiento nacional o
internacional – poseen un componente importante, en general, de incorporación de la
población en la etapa de implementación – en la de formulación, la población objeto
de los programas no participa en ningún tipo de ellos. En los programas de legalización
exclusivamente, ello no ocurre y las decisiones son tomadas directamente por el Estado.
• Propiedad legalizada como capital: crédito y compra-ventas. Los aun escasos trabajos
que existen sobre la relación entre la legalización y crédito demuestran que la
población legalizada no toma créditos en la banca privada en la proporción que los
supuestos de algunos programas indicaban. Si bien en Perú han aumentado en los
últimos años, no ha sido con el impulso que se pensaba, y la legalización no ha tenido
repercusión sobre el crédito en Brasil y Argentina. Ello ha sido explicado por el peligro
que le significa a la población endeudarse, y más si es de forma hipotecaria. Con
relación a la incorporación de la tierra legalizada al mercado inmobiliario, la cantidad
de población que vende su propiedad recientemente legalizada pareciera que no es
mucha, aunque todavía faltan evaluaciones al respecto.
• Regularización y mejora en las condiciones de vida de la población pobre: es indudable que
los programas de regularización mejoran las condiciones de vida de la población pobre
urbana, pero en muy diversa medida, en relación al tipo de proyecto. Es evidente que
los programas integrales poseen resultados más positivos al respecto que los
estrictamente de regularización dominial o de mejora de algún aspecto urbano; importa
señalar que en un número considerable de los programas integrales, la generación de
empleo – de manera directa o indirecta a través de capacitación, microcréditos, etc. –
ha jugado un papel importante en la disminución de la población pobre urbana.
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En el contexto regional de exclusión social creciente, las políticas habitacionales
fundadas exclusivamente en la regularización de asentamientos ilegales tienen muchas
limitaciones. Por un lado, cuando no hacen sino la regularización de los asentamientos
ilegales, los gobiernos refuerzan la lógica de la exclusión urbana: o sea, consolidan los más
pobres donde el mercado les ha permitido instalarse. La regularización no altera las
condiciones perversas en que se produce la ciudad; no elimina las prácticas ilegales y, si
no es acompañada de propuestas integrales de intervención, las recrea y retroalimenta.19
Quienes implementan las políticas suponen que con sólo el hecho de ser propietarios,
o la posibilidad de serlo, la población, por decisión individual, mejorará su hábitat. Pero
eso no es así, pues la población ha mejorado sus viviendas sin aun tener el título en la
mayoría de los asentamientos. Tampoco es tan cierto lo que plantea De Soto, que el hecho
de ser propietarios significa una capitalización importante al tiempo que tienen acceso al
crédito, pues se ha demostrado que éste es aun restringido (Fernandes, 2002).
Obviamente que la regularización no disminuye la pobreza, y mucho menos aun si
se trata sólo de la legalización dominial; los distintos tipos de programas que se llevan
adelante son complementarios a las políticas de compensación social fomentados por las
políticas económicas neoliberales implementadas en toda América Latina durante los
últimos años, por lo tanto, no están orientados a enfrentar las fuentes que originan la
pobreza estructural.
Un comentario final: es evidente que la regularización es una política “social”, y por
lo tanto lleva implícita una mejora en las condiciones de vida de la población, pero
también posee un componente de creación de capital inmobiliario, sobre todo en los
supuestos de algunos programas, que involucra la incorporación de las propiedades
regularizadas al sector inmobiliario y de los beneficiarios a sistemas fiscales del Estado y
como clientes de las empresas privatizadas de servicios. En el equilibrio entre esos dos
aspectos, que no se dirime en el espacio “micro” del acceso al suelo – aunque posee su
importancia –, sino en el espacio más amplio socio político – con el peso relativo de los
distintos sectores sociales – es que se podrán diseñar programas, quizá, más “sociales”,
dependiendo justamente del peso político que tenga la población pobre urbana que aun
vive en la informalidad.
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19 Como dice Katzman: “no
existen recetas rápidas ni
atajos para la construcción
de ciudadanía e integración
social entre los pobres urbanos y se requiere una redefinición del contrato social urbano” (Katzman, 2003).
Nora Clichevsky es arquiteta, Mestre em Planejamento Urbano e Regional
pela UFRGS. Pesquisadora
do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y
Técnicas (CONICET) del Instituto de Geografía, Facultad
de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires.
E-mails: nora.clichevsky@
gmail.com; noraclic@yahoo.
com.ar.
Artigo recebido em fevereiro
de 2008 e aprovado para
publicação em outubro de
2008.
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Urbano.7 a 12 de octubre, 2001.
A
B S T R A C T This article discusses the difficulties of land access of poor urban
population in Latin America and the results of the implementation of regulation Programs
which tend to solve the situation of the population that inhabits informally in the cities and
Latin American metropolitan areas. These Programs have started from the existence of
irregularity/ illegality/ informality on land occupation and the construction of the urban
habitat. The article consists of an introduction, a section on the urban informal act, other
about the regulation policies, as per tenant purposes as improvement of neighborhoods and
finally reflections on the implementation of such policies and the impacts on the population
that are objective of them.
K
E Y W O R D S Urban informality; urban regulation; legalization; improvement of
neighborhoods.
R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
71
A OUTORGA ONEROSA DO
DIREITO DE CONSTRUIR APÓS
O ESTATUTO DA CIDADE
UM PANORAMA DE IMPLEMENTAÇÃO
NOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS
R E N ATO C Y M B A L I S TA
PAULA POLLINI
PAT R Í C I A C O B R A
PAULA SANTORO
R
E S U M O O presente artigo discute o alcance da implementação do instrumento urbanístico da Outorga Onerosa do Direito de Construir (ou Solo Criado) pelos municípios brasileiros, tendo como base a “Pesquisa de Informações Básicas Municipais” do IBGE, dos anos
de 2001 e de 2005, e a contextualiza dentro do novo marco legal urbano, o Estatuto da Cidade (Lei Federal n.10.257/2001) e do processo de elaboração e revisão dos Planos Diretores
Participativos que ocorreram no início do século XXI nos municípios brasileiros. Por um lado,
o artigo identifica um significativo aumento na recorrência do uso da Outorga Onerosa do
Direito de Construir nos municípios brasileiros após o Estatuto da Cidade, mas, por outro,
aponta para uma relativa fragilidade na implementação do instrumento, principalmente em
municípios com população menor.
PA
L A V R A S - C H A V E Outorga onerosa do direito de construir; solo criado;
reforma urbana; instrumentos urbanísticos; Plano Diretor.
INTRODUÇÃO
Têm sido muitas as transformações nos processos e instrumentos de regulação do
território das cidades brasileiras nos últimos anos, e já foram abordadas pela literatura em
trabalhos que tratam das diversas frentes abertas por novos princípios, diretrizes e instrumentos de gestão do território: a busca pela democratização do solo urbano, a incorporação de novos atores sociais nos processos e a idéia da efetivação das funções sociais da cidade e da propriedade. (Rolnik e Cymbalista, 1997; Osório, 2002; Dallari e Ferraz, 2003;
Fernandes e Alfonsin, 2003; Fernandes e Alfonsin, 2006; Bueno e Cymbalista, 2007).
As inovações na regulação do território significaram também novas maneiras de relacionamento entre o poder público e os promotores do mercado imobiliário, mediante
a introdução da noção da separação entre os direitos de propriedade e os direitos construtivos, e a cobrança pela outorga onerosa do direito de construir (OODC) por parte do poder público municipal, tema deste artigo.
Longe de constituir temática consensual, trata-se de campo controverso. Furtado e
Smolka (2005: 39) afirmam que “talvez a questão mais importante entre as várias que
surgem na abordagem do tema da recuperação pelo setor público de mais-valias fundiárias originadas no processo de urbanização, no Brasil como na América Latina, seja a do
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73
A
OUTORGA
ONEROSA
DO
DIREITO
DE
CONSTRUIR
descompasso existente, e persistente, entre a teoria e as práticas envolvidas no tema”.
Furtado et al (2006) destacam a precariedade das informações referentes ao acompanhamento da aplicação do instrumento, fato que é “provavelmente resultante da fraca interrelação ainda existente entre as Secretarias de Urbanismo, que aplicam o instrumento, e
da Fazenda, que em geral recolhem as contrapartidas”. Cymbalista e Santoro (2006b)
mostram que historicamente existe maior potencial arrecadatório da OODC conforme as
operações são negociadas caso-a-caso, desvinculadas de uma política urbana geral para o
município. As experiências que buscam a inserção da OODC em uma política urbana de
caráter mais global tendem a atingir menor sucesso arrecadatório. Wilderode (1997)
alerta para os riscos de operações de venda de potencial construtivo desvinculada de propostas urbanísticas mais amplas que, no caso das operações interligadas em São Paulo,
produziram significativos ganhos para o mercado imobiliário e aumento da segregação
da população de baixa renda. Fix (2001), também voltada para o caso de São Paulo, desvela que grandes projetos que disponibilizam a venda de potenciais construtivos, como
as operações urbanas, têm o potencial de agravar ainda mais as desigualdades intra-territoriais nas grandes cidades.
Todos esses alertas apontam para os riscos de ineficácia ou uso perverso da venda de
potenciais construtivos. Por outro lado, a favor da aplicação do instrumento, pode-se argumentar que o reconhecimento da separação entre direitos de propriedade e direitos construtivos, conceitualmente embutidos na OODC, é conquista bastante relevante, quando
efetivamente incluída em um processo de planejamento de maior alcance. Além disso, a
implementação do instrumento em municípios onde não há atualmente interesse pela
compra de potencial construtivo, a implementação de coeficientes de aproveitamento básicos e máximos via OODC pode ser importante, pois a política territorial pode antecipar
os movimentos do mercado imobiliário. Isso significa possibilidades de efetivação futura
do instrumento em situação mais favorável do que se consegue obter em municípios onde
o mercado imobiliário já é muito ativo, onde podem surgir grandes resistências à implementação do instrumento, ou induzir a um modelo de aplicação da OODC que interessa
apenas aos interesses do mercado, como é recorrente (Cymbalista e Santoro, 2006b: 26-7).
A NOVA REALIDADE PARA A APLICAÇÃO DA OODC:
O ESTATUTO DA CIDADE, OS NOVOS PLANOS
DIRETORES PARTICIPATIVOS E A MUNIC 2005
Em paralelo às primeiras experiências de aplicação da OODC em municípios brasileiros, na década de 1980, o movimento que lutou pela renovação do marco regulatório
da política urbana refletiu também sobre a OODC. Os primeiros anos do século XXI foram de aceleração no ritmo e abrangência das transformações, principalmente com a
aprovação do Estatuto da Cidade e da onda de Planos Diretores realizados por centenas
de municípios brasileiros.
Tal processo precisa ainda ser corretamente dimensionado e avaliado, e já se iniciam
os trabalhos nesse sentido. Há posicionamentos bastante céticos em relação ao conjunto
dos processos (Villaça, 2005); há estudos que procuram apontar os desafios de implementação de instrumentos específicos (Denaldi e Bruno, 2007), problematizar os processos
participativos (Souza, 2007), avaliar as possibilidades de os Planos se relacionarem com as
formas como grupos étnicos produzem e ocupam o território (Nakano e Comaru, 2007),
74
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analisar questões relacionadas ao andamento dos Planos Diretores no Legislativo Municipal (Bonduki, 2007) e no âmbito dos operadores do direito – Ministério Público e Poder
Judiciário (Santoro, Cymbalista e Nakashima, 2007).
Muito recentemente, com a aprovação de Planos Diretores em mais de 1500 municípios, abrem-se possibilidades de estudos mais panorâmicos, que complementam e alimentam os estudos de caráter mais monográfico (Rolnik, Cymbalista e Nakano, no prelo). O presente artigo se insere nesta última vertente, e tem como objeto a identificação
do grau de implementação da outorga onerosa do direito de construir nos Planos Diretores do início do século XXI. Decorre de pesquisa desenvolvida pelo Instituto Pólis em parceria com o Lincoln Institute of Land Policy (LILP), cuja temática tem sido estudada em
uma série de trabalhos.1 Trata-se de objeto de trabalho relevante, pois aponta para aspectos das relações que as administrações municipais vêm procurando travar com o mercado
imobiliário, na perspectiva – em tese – de recuperar parte da valorização fundiária que decorre de investimentos públicos.
O Estatuto da Cidade (Lei n.10.257/2001) interferiu na regulação da implementação da OODC, buscando enfrentar os abusos das primeiras experiências, como as operações interligadas em São Paulo e no Rio de Janeiro.2 Se no período anterior as experiências de aplicação da OODC caracterizaram-se pela diversidade de objetivos e
procedimentos, após o Estatuto novos parâmetros procuravam homogeneizar a sua implementação para tentar evitar os efeitos perversos da aplicação das operações urbanas e
interligadas, revelados por estudos como aqueles mencionados acima.
Primeiramente, o Estatuto define que não só a OODC, mas todos os instrumentos
de política urbana, devem seguir as diretrizes gerais da política urbana, como a justa distribuição dos ônus e benefícios da urbanização (Art 2, Diretriz IX) e a recuperação dos investimentos do poder público que resultem na valorização dos imóveis urbanos (Art 2,
Diretriz XI). Também é relevante a diretriz da “gestão democrática da cidade” (Art. 2, Diretriz II), que impede a implementação de políticas e instrumentos sem a dimensão participativa, o que incide também sobre a OODC. Tais diretrizes são relevantes, pois “qualquer ação ou omissão que contrarie as diretrizes gerais da política urbana nacional pode
ser considerada como ilegalidade e, como tal, passível de questionamento judicial. É certo que qualquer ato ou norma a ela contrário pode ser invalidado. O poder público pode ser submetido a sanções, caso contrarie esses parâmetros” (Levy, Santoro e Cymbalista, 2007: 61-5). Nessa chave de leitura, grande parte das aplicações da OODC poderia
ser considerada inconstitucional. Alfonsin (2006) considera que tais diretrizes devem
obrigatoriamente orientar a concepção e implementação de instrumentos como as operações urbanas consorciadas, que envolvem também a OODC.
O Estatuto da Cidade estabelece que a OODC só poderá ser aplicada em um município se estiver prevista em um Plano Diretor, procurando combater, assim, as aplicações
desvinculadas de uma política urbana mais geral para as cidades. O Plano Diretor poderá incluir o instrumento da OODC considerando sua adequação à realidade específica do
Município, à infra-estrutura implantada, se há demanda, ou diante das previsões futuras
de desenvolvimento local, e compatibilizar sua aplicação com a política urbana municipal como um todo, fixando índices construtivos mínimos, básicos e máximos para a cidade e evitando negociações caso-a-caso. Deverão ser fixadas em lei (no próprio Plano Diretor ou em lei específica) a forma de cálculo e o valor da contrapartida a ser quitado pelo
beneficiário dos direitos de construir. Além disso, o Estatuto da Cidade define um rol de
finalidades que deverão ser seguidas na aplicação dos recursos provenientes da OODC.
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75
1 Projeto de pesquisa “The
selling of Building rights in
municipalities”
Brazilian
(contrato #LRC110606).
Lincoln Institute of Land Policy/Instituto Pólis, dezembro de 2006 a maio 2007.
Resultados anteriores nesse
processo podem ser verificados em: Santoro (org.),
2005; Cymbalista, Santoro
e Somekh (2005); Cymbalista e Santoro (2006); Levy,
Santoro e Cymbalista (2007).
Além dos resultados publicados, podemos mencionar
os eventos de discussão pública do grupo “Gestão Social da Valorização da Terra
(GESVAT)”, os seminários
“Solo-criado: avaliação e
perspectivas (Universidade
Mackenzie, São Paulo,
2005) e “Política Fundiária
Municipal e Gestão Social
da Valorização da Terra”
(Fundação Getúlio Vargas,
São Paulo, 2006).
2 Sobre essas experiências,
ver: Wilderode (1997) e Cardoso et al (1997).
A
OUTORGA
ONEROSA
DO
DIREITO
DE
CONSTRUIR
Logo após a aprovação do Estatuto da Cidade, começou a circular material de divulgação da lei e dos instrumentos por ele regulamentados, incluindo as novas formas de
aplicação da OODC (Rolnik, 2002: 64-72). Em 2004 foi distribuído para todos os municípios brasileiros material que incluía a OOCD como instrumento de indução do desenvolvimento urbano, que pode ser utilizado nos Planos Diretores (Rolnik, 2004:128-31).
Um dos principais instrumentos de divulgação do Estatuto da Cidade, o Kit das Cidades,
foi reconstruído e reeditado em 2005, com um foco específico para as potencialidades de
recuperação das valorizações fundiárias (Instituto Pólis, 2005). E, decorrência desse trabalho, o Ministério das Cidades incluiu o item “gestão social da valorização da terra” em
suas oficinas de capacitação, que foram realizadas por todo o país, veiculando a necessidade de inclusão nos Planos Diretores de instrumentos como a OODC, que promovem
a separação dos direitos de propriedade e dos direitos construtivos, e podem recuperar valorizações fundiárias.
Em 2006 veio a público uma nova base de dados com informações sobre a existência
da OODC nos municípios – a “Pesquisa de Informações Básicas Municipais” (MUNIC)
2005 –, já incorporando o impacto do Estatuto da Cidade e dos Planos Diretores municipais sobre a aplicação da OODC. Trata-se de oportunidade de aprofundamento do mapeamento realizado sobre os dados de 2001, que ainda não haviam identificado as alterações
pós-Estatuto da Cidade. Sobre tais elementos estruturou-se a pesquisa aqui apresentada.
A OODC NA PESQUISA MUNIC-IBGE
3 Tratava-se do projeto de
pesquisa “The experience of
Brazilian municipalities with
the “Solo Criado” instruments for selling of building
rights”, coordenado por Renato Cymbalista e Paula
Santoro, desenvolvido pelo
Instituto Pólis em parceria
com o LILP no ano de 2006.
4 Em cerca de 15% dos municípios contatados para a
pesquisa não foi possível encontrar interlocutor qualificado, o que implica em certa
imprecisão nos dados. Em
grande parte, trata-se de
Municípios com estrutura administrativa precária, o que
nos leva à hipótese de que
poucos deles devem efetivamente possuir a OODC em
sua base legislativa.
Cymbalista, Santoro e Somekh (2005) mostraram que existe uma fonte de dados em
nível nacional que nos dá informação sobre a aplicação de instrumentos urbanísticos, a
“Pesquisa de Informações Básicas Municipais” (MUNIC), realizada anualmente pelo IBGE
por meio de envio de questionário a técnicos de todos os municípios brasileiros (5564 até
31 de dezembro de 2005). No ano de 2001, a MUNIC apresentava uma pergunta específica sobre a aplicação da OODC pelos municípios, e 227 municípios declararam dispor
desse instrumento. Tratava-se de dado bastante instigante, que merecia posteriores investigações e checagens, pois os debates e a literatura em torno da aplicação do instrumento
apontavam para um universo bem mais restrito de aplicação da OODC. Os próprios autores mostraram-se reticentes em relação ao universo que a MUNIC apontava, e em conseqüência disso, foi levada adiante uma pesquisa que procurava checar tal informação e
mapear a real extensão da aplicação da OODC nesses municípios.3 Tal pesquisa de fato
identificou uma série de municípios que efetivamente dispunham da OODC em um universo algo maior do que a literatura havia mapeado anteriormente, mas, ao mesmo tempo, revelou uma imprecisão bastante grande nos dados da MUNIC em relação à OODC.
Do conjunto de 227 municípios que declararam dispor do instrumento à MUNIC 2001,
foram identificados apenas 56 que efetivamente o possuíam em 2006, ou seja, cinco anos
após a coleta de informações (Cymbalista e Santoro, 2006a: 64). Por outro lado, a análise de um acervo de textos de Planos Diretores coletados para outras pesquisas identificou
outros 19 municípios que dispunham do instrumento da legislação em 2006 e que não
constavam da base de dados da MUNIC (Cymbalista e Santoro, 2006a: 14).4
Tal pesquisa identificou também a grande distância entre a simples existência da
OODC no marco da regulação urbanística no município e sua efetiva implementação,
conforme mostra a tabela abaixo, que agrega um total de 56 municípios identificados pela
76
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R . C Y M B A L I S T A , P. P O L L I N I , P. C O B R A , P. S A N T O R O
lista da MUNIC 2001, e de 19 municípios identificados no acervo de Planos Diretores coletados para outros estudos, que possuíam a OODC em sua legislação:
Tabela 1 – MUNIC 2001, checagem Instituto Pólis, 2005
Região
Centro-Oeste
Nordeste
Norte
Sudeste
Sul
Total
Total de municípios
que afirmaram
possuir a OODC
5
17
4
25
24
75
Que afirmaram
aplicar a
OODC
3
1
1
8
8
19
Que afirmaram ter
obtido recursos
com a OODC
0
1
1
4
4
10
Após a MUNIC 2001, até o ano de 2005 as pesquisas do IBGE não trouxeram dados
sobre a aplicação da OODC. A pesquisa MUNIC 2005, levada a campo entre o final de
2005 e início de 2006, investigou os 5.564 municípios brasileiros e – por articulação entre o Ministério das Cidades e o IBGE – reuniu dados referentes ao grau de aplicação de
instrumentos urbanísticos, como a outorga onerosa do direito de construir.
Reconhecendo a precariedade das versões anteriores da MUNIC referente aos instrumentos urbanísticos, o IBGE procurou melhorar a qualidade das informações coletadas levando em conta tanto a frente dos informantes quanto a frente dos coletores de informações. Em novembro de 2005 foi feito um treinamento centralizado com supervisores e
técnicos de todas as unidades estaduais do IBGE, que repassaram as informações para os técnicos das cerca de 500 agências do IBGE no país. Os dados foram confrontados com os dados anteriores da MUNIC para identificação de possíveis inconsistências (IBGE, 2006: 22-3).
Em relação aos instrumentos urbanísticos, foi realizada uma parceria entre o Ministério das Cidades e o IBGE para construção de um questionário específico que desse
conta das questões referentes à política urbana, habitacional e de transporte. Técnicos do
Ministério das Cidades participaram de capacitações dos coletores de informações do
IBGE em torno do Estatuto da Cidade e do Plano Diretor e seus instrumentos, e também de capacitações do IBGE junto aos municípios pesquisados, insistindo na importância da MUNIC como principal instrumento de monitoramento da gestão municipal e
destacando a importância da credibilidade das informações. Na seção destinada às políticas urbanas e habitacionais, o técnico responsável pelo preenchimento das informações
precisava identificar-se, e também informar se era ele o responsável pela área no município. Tal procedimento tinha como objetivo obter informações mais confiáveis.5
Em relação à MUNIC do IBGE do ano de 2001, a MUNIC 2005 se diferencia daquela de 2001 pelo grau de aprofundamento do questionário aplicado, e pela ênfase dada à
legislação urbanística e, principalmente, aos resultados numéricos obtidos. O Bloco 6 do
questionário da MUNIC 2005 busca coletar um conjunto de leis básicas existentes nos municípios, como: Lei Orgânica Municipal; Lei de Parcelamento do Solo; Lei de Zoneamento (ou equivalente); e Código de Obras, identificando o ano e o número de cada uma delas na lei. Em seguida, questiona se o município possui leis específicas sobre os
instrumentos de política urbana, entre eles a OODC.
Em relação à OODC, a MUNIC 2005 aponta 1.156 municípios que declararam dispor do instrumento, número muito superior aos 227 municípios arrolados pela MUNIC
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77
5 Entrevista com Kazuo
Nakano, responsável pela interface entre o Ministério
das Cidades e o IBGE para a
MUNIC 2005.
A
OUTORGA
ONEROSA
DO
DIREITO
DE
CONSTRUIR
2001. Essa informação motivou a elaboração de uma nova pesquisa, pois despertou uma
série de indagações: a nova onda de Planos Diretores (ainda não identificada pela MUNIC
2001) teria significado a implementação da OODC em tantos municípios? Nos municípios que regulamentaram a OODC pelos novos Planos Diretores, as diretrizes e normas do
Estatuto da Cidade estariam sendo cumpridas? A nova metodologia de captação de informações sobre os instrumentos urbanísticos utilizada na MUNIC 2005 teria significado
uma melhora na qualidade das informações, em relação à tão imprecisa MUNIC 2001?
Procurando responder tais perguntas, procedemos à checagem daqueles dados.
METODOLOGIA DA PESQUISA
6 A amostra de 30 municípios representa 12,4% dos
municípios acima de 50 mil
habitantes que responderam possuir o instrumento
do “solo criado”, e foi definida de acordo com os recursos e o tempo disponível para a realização da pesquisa.
Na pesquisa que checou o grau de implementação da OODC dentre os municípios
que declararam dispor do instrumento à MUNIC 2001 foi estabelecido contato com todos
os 227 municípios que dispunham da OODC segundo aquela base de dados. Um dos problemas identificados foi a dificuldade de acesso a muitos municípios, e conforme citado
acima, em cerca de 15% dos municípios pesquisados anteriormente não foi possível obter
retorno. Tal taxa de insucesso não é muito alta, mas provoca distorções no resultado da pesquisa – pois a tendência é que estes sejam municípios com corpo técnico mais precário –,
o que resultou em um conjunto mais representativo de informações sobre municípios com
administrações mais bem estruturadas. Na pesquisa em torno da MUNIC 2005, a estratégia foi distinta. Conforme metodologia construída em parceria com o LILP, foi selecionada uma amostra sorteada de 30 municípios6 dentro do universo apontado pela MUNIC
2005 como dispondo da OODC. A pesquisa anterior identificou que municípios com população abaixo de 50.000 habitantes raramente dispunham de capacidade ou de interesse
para a implementação da OODC. Dessa forma, resolvemos concentrar os esforços da pesquisa na faixa superior a 50.000 habitantes, o que correspondia a 241 dentre os 1156 municípios que declararam à MUNIC 2005 possuírem a OODC. A tabela abaixo mostra que é
nos municípios com maiores populações onde se concentra a recorrência da OODC.
Tabela 2 – Municípios que disseram possuir o instrumento “solo criado” frente ao total
de municípios por faixa de população, MUNIC 2005
MUNIC 2005 – BLOCO 06 – Legislação e Instrumentos de Planejamento Municipal
Questão 12.2 – O município possui lei específica sobre
o instrumento de política urbana do “solo criado”?
Faixa de
Municípios
Municípios que
Municípios que
responderam SIM
responderam
população
(total)
(% em relação ao total
SIM
(total)
nesta faixa de população)
Mais de 500.000
36
23
63,90
41,30
91
220
De 100.001 a 500.000 hab.
De 50.001 a 100.000 hab.
313
127
40,50
1.026
288
28,00
De 20.001 a 50.000 hab.
18,80
244
1.297
De 10.001 a 20.000 hab.
1.310
216
16,50
De 5.001 a 10.000 hab.
12,20
167
1.362
Até 5.000 hab.
Total
5.564
1.156
20,80
78
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R . C Y M B A L I S T A , P. P O L L I N I , P. C O B R A , P. S A N T O R O
A partir deste recorte, considerando os 241 municípios, utilizamos uma metodologia de sorteio aleatório dentre os municípios com população acima de 50 mil habitantes
(o critério de seleção seguiu duas etapas: pela faixa populacional, excluindo-se os municípios com população abaixo de 50 mil habitantes e, em seguida, dentro dessa faixa populacional, sorteados de maneira aleatória por computador). Mesmo mediante seguidas
tentativas, não foi possível fazer contato com interlocutor qualificado em dois municípios da lista inicial: Vilhena (63.947 habitantes, em Roraima) e Jequié (148.724 habitantes, na Bahia). Nesses dois casos, o sorteio foi refeito e dois novos municípios foram
incluídos, Santos-SP e Alagoinhas-BA. A lista final de municípios que compuseram a
amostra é a que segue:
Tabela 3 – Municípios pesquisados (sorteio Instituto Pólis 2007)
Cod.
Região
Estado Município
IBGE
290070 Nordeste
430060 Sul
520110 Centro-Oeste
170210 Norte
330040 Sudeste
350610 Sudeste
420420 Sul
311860 Sudeste
291072 Nordeste
351550 Sudeste
312770 Sudeste
291480 Nordeste
210540 Nordeste
250750 Nordeste
240800 Nordeste
330330 Sudeste
314700 Sudeste
411840 Sul
353650 Sudeste
510704 Centro-Oeste
231130 Nordeste
510760 Centro-Oeste
150680 Norte
431740 Sul
354780 Sudeste
354850 Sudeste
431870 Sul
330520 Sudeste
355250 Sudeste
355620 Sudeste
Fonte: MUNIC 2005.
BA
RS
GO
TO
RJ
SP
SC
MG
BA
SP
MG
BA
MA
PB
RN
RJ
MG
PR
SP
MT
CE
MT
PA
RS
SP
SP
RS
RJ
SP
SP
População
(hab.)
Alagoinhas
138.366
Alvorada
210.233
Anápolis
313.412
Araguaína
127.521
Barra Mansa
175.328
Bebedouro
79.233
Chapecó
169.256
Contagem
593.419
Eunápolis
92.625
Fernandópolis
65.095
Gov. Valadares
257.535
Itabuna
203.816
Itapecuru Mirim
51.168
João Pessoa
660.798
Mossoró
227.357
Niterói
474.046
83.011
Paracatu
Paranavaí
78.693
Paulínia
60.486
Primavera do Leste
56.982
Quixadá
74.793
Rondonópolis
166.830
Santarém
274.012
Santiago
51.692
Santo André
669.592
418.316
Santos
São Leopoldo
209.611
São Pedro da Aldeia 76.414
272.452
Suzano
Valinhos
92.425
Possuía OODC Possuía OODC
MUNIC 2005? MUNIC 2001?
Sim
Não
Sim
Sim
Sim
Não
Sim
Não
Sim
Sim
Sim
Não
Sim
Não
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Não
Sim
Não
Sim
Não
Sim
Não
Sim
Sim
Sim
Não
Sim
Não
Não
Sim
Sim
Sim
Sim
Não
Não
Sim
Sim
Sim
Sim
Não
Sim
Não
Sim
Não
Sim
Não
Sim
Sim
Sim
Sim
Não
Sim
Sim
Não
Sim
Não
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OUTORGA
ONEROSA
DO
DIREITO
DE
CONSTRUIR
Conforme mostra a tabela anterior, a distribuição geográfica dos municípios sorteados é bastante ampla e sua população muito variada, cobrindo de forma abrangente a diversidade de realidades urbanísticas do país. Para uma melhor aproximação com os municípios sorteados, primeiramente foi realizado um levantamento da legislação existente e
uma breve análise de seus conteúdos.
O primeiro contato, via Internet, permitiu coletar informações referentes aos Planos
Diretores vigentes de cerca de metade dos municípios. Em seguida, entramos em contato com as prefeituras dos municípios restantes para a obtenção de informações quanto ao
Plano Diretor e legislação específica de OODC. Nos municípios em que se constatou a
presença do instrumento da OODC nos Planos Diretores vigentes, foi realizado contato
telefônico para identificar detalhes sobre a experiência de sua aplicação da OODC.
RESULTADOS DA PESQUISA
A CONSISTÊNCIA DA MUNIC 2005
A checagem dos dados da MUNIC 2005 revelou que, dos 30 municípios sorteados e
pesquisados, 19 deles (63%) efetivamente possuíam a OODC em sua legislação em meados de 2007: Santo André-SP, João Pessoa-PB, Contagem-MG, Niterói-RJ, Santos-SP,
Anápolis-GO, Suzano-SP, Mossoró-RN, Alvorada-RS, São Leopoldo-RS, Barra Mansa-RJ,
Chapecó-SC, Rondonópolis-MT, Araguaína-TO, Bebedouro-SP, São Pedro da Aldeia-RJ,
Fernandópolis-SP, Santiago-RS e Itapecuru Mirim-MA.
Os outros 11 municípios (37%) revelaram não dispor da regulamentação da OODC:
Santarém-PA, Governador Valadares-MG, Itabuna-BA, Alagoinhas-BA, Eunápolis-BA, Valinhos-SP, Paracatu-MG, Paranavaí-PR, Quixadá-CE, Paulínia-SP e Primavera do Leste-MT.
Ainda que seja um número relativamente alto, trata-se claramente de uma melhora na
qualidade das informações em relação à MUNIC 2001, em que as informações sobre a
OODC foram procedentes em apenas 25 a 30% dos municípios, indicando que o esforço
do IBGE em melhorar a qualidade das informações da MUNIC vem sendo bem-sucedido.
Por outro lado, é importante mencionar que a MUNIC 2005 foi aplicada em um momento em que uma série de municípios estava ainda fazendo seus Planos Diretores, e é
possível que as informações tenham sido dadas não com base em leis existentes, mas em
propostas de implementação da OODC constantes de Projetos de Lei ou de propostas preliminares de Planos Diretores. Mossoró-RN, Rondonópolis-MT, Bebedouro-SP, Fernandópolis-SP, Santiago-RS e Itapecuru Mirim-MA foram municípios que aprovaram seus
Planos Diretores implementando pela primeira vez a OODC entre setembro e dezembro
de 2006, ou seja, após a conclusão da coleta de dados da MUNIC 2005 em abril de 2006
(IBGE, 2006: 21). Vale ressaltar também que eventualmente as informações foram dadas
à MUNIC com base em perspectivas futuras de implementação do instrumento.
Da mesma forma, alguns municípios encontravam-se ainda em processo de elaboração de seus Planos Diretores no período de coleta de dados da pesquisa (dezembro de
2006 a abril de 2007), assim, pode ter ocorrido a implementação da OODC em alguns deles. É o caso de Itabuna-BA, Primavera do Leste-MT e Santarém-PA. O município de Suzano-SP havia incorporado a OODC na sua legislação por meio de em um Plano Diretor
aprovado em 2004, mas este estava em processo de revisão no primeiro semestre de 2007.
O processo indicava que a OODC seria mantida na legislação municipal, com algumas al80
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terações em relação aos índices adotados em 2004. Tais informações indicam a necessidade de uma atualização da pesquisa.
APLICAÇÃO DA OODC NOS MUNICÍPIOS
A pesquisa na Internet, a coleta, leitura e análise da legislação e as entrevistas com
interlocutores qualificados nos municípios nos permitiram obter informações bastante
precisas sobre o grau de implementação da OODC nos municípios pesquisados. Conforme apontado acima, 19 dentre os 30 municípios selecionados efetivamente dispunham
da OODC em meados de 2007.
Sete dos 19 municípios que dispunham da OODC – João Pessoa, Santos, Contagem,
Alvorada, Santo André, Barra Mansa e Niterói – já contavam com o instrumento em seu
arcabouço regulatório antes da aprovação do Estatuto da Cidade (2001), e a revisão dos
Planos reiterou o instrumento. Os demais 12 municípios incluíram o instrumento em
seus novos Planos Diretores após 2001. No município de Suzano-SP, a OODC é prevista
na lei de seu Plano Diretor de 2004. No entanto, em 2007 o Plano estava em processo
de revisão.
A inclusão do instrumento no Estatuto da Cidade e nos conteúdos da campanha do
Plano Diretor Participativo, ao que parece, apresentou resultados positivos no que diz respeito à presença do instrumento de legislação urbanística municipal. Em uma perspectiva otimista, isso pode indicar um avanço no debate sobre a noção de que existe uma separação entre direitos de propriedade e direitos construtivos, e a conscientização de que
o tratamento do direito construtivo é um bem coletivo cuja gestão cabe ao poder público municipal. Por outro lado, tal presença pode decorrer de outros processos que não um
debate aprofundado em âmbito local: de simples e automáticas repetições dos termos do
Estatuto; da influência de consultores externos imprimindo aos municípios suas próprias
visões sobre os instrumentos urbanísticos, sem relação com a sua pertinência para as realidades locais. A presença da OODC pode até mesmo atender às demandas do mercado
imobiliário por potencial construtivo adicional, dependendo da forma como é introduzida. Uma avaliação conclusiva sobre o significativo aumento da recorrência do instrumento após os Planos Diretores, apontado tanto pela MUNIC quanto pela pesquisa de checagem, só é possível com estudos mais aprofundados sobre cada uma das experiências, à
maneira como foi feita em Furtado et al (2007).
Para além da simples presença do instrumento, a checagem dos dados da MUNIC
2005 buscou identificar em que medida os municípios aplicam efetivamente o instrumento – pois se sabe que é grande a distância entre a simples presença da OODC na legislação urbanística e sua efetiva aplicação. Nesse aspecto, do total de 19 municípios que
contavam com a OODC em seu arcabouço regulatório, apenas seis já haviam aplicado o
instrumento (Tabela 4).
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ONEROSA
DO
DIREITO
DE
CONSTRUIR
Tabela 4 – Aplicação do instrumento da OODC (MUNIC 2005, checagem Instituto Pólis,
2007)
Município
Ano em que
OODC consta do
OODC já
a OODC surge na
Plano Diretor
foi aplicada?
legislação municipal
Participativo?(ano)
João Pessoa-PB
1992
Não foi feita revisão
Sim
Barra Mansa-RJ
1992
Sim (2006)
Não
Niterói-RJ
1992
Sim (2004)
Sim
Contagem-MG
1995
Sim (2006)
Sim
Santo André-SP
1995
Sim (2004)
Sim
Santos-SP
1998
Não foi feita revisão
Sim
Alvorada-RS
2000
Sim (2004)
Sim
Chapecó-RS
2004
Sim (2004)
Não
Suzano-SP
2004
Sim (2004)*
Não
Araguaína-TO
2005
Sim (2005)
Não
São Pedro da Aldeia-RJ
2005
Sim (2005)
Não
Bebedouro-SP
2006
Sim (2006)
Não
Anápolis-GO
2006
Sim (2006)
Não
Itapecuru Mirim-MA
2006
Sim (2006)
Não
Mossoró-RN
2006
Sim (2006)
Não
Rondonópolis-MT
2006
Sim (2006)
Não
Santiago-RS
2006
Sim (2006)
Não
São Leopoldo-RS
2006
Sim (2006)
Não
Fernandópolis-SP
2006
Sim (2006)
Não
* Em Suzano-SP, o Plano Diretor de 2004 estava em processo de nova revisão em 2007.
Para além da simples presença do instrumento, era também necessário conhecer as
maneiras como ele vem sendo implementado nos municípios. Pelos contatos realizados,
percebemos que em muitos casos persiste a costumeira distância entre a intenção de aplicação do instrumento e sua real implementação pelos municípios.
Em meados de 2007, todos os municípios que haviam instituído a OODC por meio
dos recentes Planos Diretores ainda não tinham iniciado a sua aplicação da OODC. Os seis
municípios que já aplicaram a OODC são aqueles que já contavam com o instrumento em
sua legislação antes da aprovação do Estatuto da Cidade. Devemos levar em contra que
os novos Planos Diretores haviam sido aprovados apenas muito recentemente e, em muitos casos, não houve tempo hábil para a elaboração de leis complementares, entre elas a
que regulamenta a OODC. Por outro lado, percebemos também que em uma série de municípios, mesmo alguns meses após a aprovação do PD na Câmara, sequer haviam sido
realizados debates em torno da elaboração de leis específicas, indicando para uma possível falta de regulamentação do instrumento.
Ainda levando em conta que vários municípios possuem o instrumento há muito
pouco tempo, fizemos um esforço de avançar nossa análise sobre a aplicabilidade da
OODC. Classificamos os municípios pesquisados em quatro categorias, que vão de 0 (não
possui o instrumento) a 4 (já aplica o instrumento), segundo os seguintes critérios:
82
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Tabela 5 – Grau de aplicabilidade do instrumento da OODC (MUNIC 2005, checagem
Instituto Pólis, 2007)
NOTA
0
1
2
3
4
Grau de aplicabilidade do instrumento da OODC nos municípios)
Não possui o instrumento.
Apenas menciona o instrumento no PD.
Tem o instrumento detalhado no PD, mas falta completar a regulamentação
em lei específica, que ainda não foi realizada.
Possui toda a regulamentação necessária para a aplicação da OODC,
mas ainda não aplicou.
Já aplicou a OODC.
Usando tais critérios, chegamos à seguinte classificação:
Tabela 6 – Metodologia de análise Instituto Pólis, 2007
Município
Primavera do Leste
Paulínia
Quixadá
Paranavaí
Paracatu
Valinhos
Eunápolis
Alagoinhas
Itabuna
Governador Valadares
Santarém
Itapecuru Mirim
Fernandópolis
São Pedro da Aldeia
Suzano
Anápolis
Santiago
Bebedouro
Araguaína
Chapecó
Barra Mansa
São Leopoldo
Rondonópolis
Mossoró
Alvorada
Santos
Niterói
Contagem
João Pessoa
Santo André
NOTA
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
1
1
1
1
2
2
2
2
2
2
3
3
4
4
4
4
4
4
População (hab.)
56.982
60.486
74.793
78.693
83.011
92.425
92.625
138.366
203.816
257.535
274.012
51.168
65.095
76.414
272.452
313.412
51.692
79.233
127.521
169.256
175.328
209.611
166.830
227.357
210.233
418.316
474.046
593.419
660.798
669.592
De posse dessa classificação, algumas correlações puderam ser feitas. Aquela que parece ser mais evidente é a relação entre a população dos municípios e a efetiva implementação da OODC. Todos os cinco municípios da amostragem com população acima de
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DE
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400.000 habitantes em 2005 (João Pessoa-PB, Santos-SP, Niterói-RJ, Contagem-MG, Santo André-SP) já vinham aplicando o instrumento e obtendo contrapartidas com ele. Por
outro lado, à exceção de Alvorada-RS (210 mil habitantes em 2005; já aplica a OODC) e
Mossoró-RN (possui toda a regulamentação necessária, mas não aplica a OODC), nenhum
dos municípios com população abaixo de 400.000 habitantes ultrapassava o nível 3, o que
significa que sua base regulatória estava incompleta para a aplicação da OODC (Gráfico 1).
Gráfico 1 – População dos 30 municípios pesquisados por nota de aplicabilidade do instrumento da OODC (metodologia de análise Instituto Pólis, 2007)
Outra observação que podemos retirar da classificação – como era de se esperar –
refere-se à correlação bastante próxima entre um maior tempo de vigência do instrumento e um maior grau de aplicabilidade do instrumento, conforme mostra a tabela abaixo:
Tabela 7 – Metodologia de análise Instituto Pólis, 2007
Município
Ano em que a OODC surge na legislação municipal
Anápolis-GO
2006
Bebedouro-SP
2006
Fernandópolis-SP
2006
2006
Itapecuru Mirim-MA
Mossoró-RN
2006
Rondonópolis-MT
2006
2006
Santiago-RS
São Leopoldo-RS
2006
Araguaína-TO
2005
São Pedro da Aldeia-RJ
2005
Chapecó-RS
2004
Suzano-SP
2004
Alvorada-RS
2000
1998
Santos-SP
Contagem-MG
1995
1995
Santo André-SP
Barra Mansa-RJ
1992
João Pessoa-PB
1992
Niterói-RJ
1992
84
NOTA
1
2
1
1
3
2
2
2
2
1
2
1
4
4
4
4
2
4
4
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A amostra aponta para a pertinência de pesquisas futuras que analisem especificamente a realidade dos municípios costeiros, nos quais há a tendência a produzir grandes
valorizações imobiliárias nos imóveis situados perto da orla marinha. Ainda que a amostragem seja bastante reduzida, é digno de nota que três dos quatro municípios situados
na costa (Santos-SP, Niterói-RJ e João Pessoa-PB) já vêm aplicando o instrumento. O
quarto município, São Pedro da Aldeia-RJ, apenas menciona a OODC em sua legislação.
Em relação à distribuição geográfica dos municípios no território nacional, verificase a predominância de municípios que já aplicam a OODC na região Sudeste, na qual geralmente se observa um mercado imobiliário mais dinâmico. Cabe destacar que, dentro
da amostragem, a região Sudeste é a que teve o maior número de municípios escolhidos.
Tabela 8 – Nota por Região do País (Metodologia de análise Instituto Pólis, 2007)
Nota
0
1
2
3
4
Total
Norte
1
0
1
0
0
2
Nordeste
4
1
0
1
1
7
Centro-Oeste
1
1
0
1
0
3
Sudeste
4
3
2
0
4
13
Sul
1
0
3
0
1
5
Outra das vertentes de investigação desta pesquisa refere-se ao grau de adequação da
regulamentação que vem sendo feita ao Estatuto da Cidade, que detalhamos a seguir.
ADEQUAÇÃO AO ESTATUTO DA CIDADE
Conforme colocado acima, o Estatuto da Cidade (Lei n.10.257, de 2001) normatiza vários aspectos da implementação da OODC: inclui o instrumento da OODC no Artigo 42 que estabelece o conteúdo mínimo do Plano Diretor; estabelece o requisito dos
índices construtivos mínimos, básicos e máximos para toda zona urbana ou áreas específicas, considerando a proporcionalidade entre infra-estrutura existente e aumento de
densidade; requer a fixação, por lei específica, da forma de cálculo da contrapartida a
ser dada pelo empreendedor; define um rol de finalidades que deverão ser seguidas na
aplicação dos recursos provenientes da OODC; define que os recursos provenientes da
OODC devem ser direcionados a um fundo democraticamente gerido. Construímos, assim, a Tabela 9 para sistematizar as informações a respeito dessa adequação ou não para os 19 municípios que incluem a OODC em seus Planos Diretores (ver tabela na íntegra no Anexo 1).
Uma primeira aproximação refere-se à publicidade das informações, que consideramos essencial para atender as Diretrizes II e III do Art. 40 do Estatuto da Cidade.7 O
indicador utilizado foi a disponibilidade do Plano Diretor na Internet. Dos 19 municípios, 16 efetivamente disponibilizavam os textos dos Planos na Internet no início de
2007. Os municípios de Itapecuru Mirim, Araguaiana e Anápolis não faziam essa disponibilização.
Em relação à delimitação de perímetros para a aplicação do instrumento,8 a leitura dos planos diretores revela que dos 19 municípios, 16 delimitam o perímetro de aplicação; dos outros três, um deles remete para lei específica e os outros dois não mencionam nada.
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85
7 “No Processo de elaboração do Plano Diretor e na
fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão: II – a
publicidade quanto aos documentos e informações
produzidos; III – o acesso de
qualquer interessado aos
documentos e informações
produzidos”.
8 Nos termos do art. 42, inciso II do Estatuto da Cidade, em que caso o Plano Diretor determine a aplicação
dos instrumentos – direito
de preempção, outorga onerosa do direito de construir
e de alteração de uso, operações urbanas e a transferência do direito de construir –,estes só poderão ser
aplicados se tiverem sua
área de aplicação delimitada
no Plano Diretor.
A
9 “I – regularização fundiária; II – execução de programas e projetos habitacionais de interesse social; III –
constituição de reserva fundiária; IV – ordenamento e
direcionamento da expansão urbana; V – implantação
de equipamentos urbanos e
comunitários; VI – criação
de espaços públicos de lazer e áreas verdes; VII –
criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental; VIII – proteção de
áreas de interesse histórico,
cultural ou paisagístico” (Lei
n.10.257, de 2001).
10 “Lei municipal específica
estabelecerá as condições
a serem observadas para a
outorga onerosa do direito
de construir e de alteração
de uso, determinando: I – a
fórmula de cálculo para a
cobrança; II – os casos passíveis de isenção do pagamento da outorga; III – a contrapartida do beneficiário.”
(Lei n.10.257, de 2001).
OUTORGA
ONEROSA
DO
DIREITO
DE
CONSTRUIR
Em relação à definição de coeficientes de aproveitamento máximos, passíveis de
cobrança de OODC, considerando a proporcionalidade entre a infra-estrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada área, foram definidos em 12 Planos dos
19 casos estudados. Os outros quatro não regulamentam quais são os coeficientes máximos, remetendo a lei específica ou para a revisão de toda a Lei de Uso e Ocupação
do Solo.
Os Planos Diretores de 16 dos municípios definem para onde irão os recursos provenientes da aplicação do instrumento, seguindo as orientações do Art. 31 do Estatuto da
Cidade.9 Deste conjunto de 16 municípios, 13 instituem que os recursos serão direcionados a um Fundo específico de desenvolvimento urbano, e em 11 municípios, o Fundo será regido por um Conselho de desenvolvimento urbano da cidade; os outros três definem
que os recursos do Fundo serão regidos pela própria prefeitura municipal. Alguns deles
priorizam uma destinação específica – como a Habitação de Interesse Social, no caso do
Plano Diretor de Bebedouro-SP.
Alguns municípios detalham no Plano Diretor a fórmula de cálculo das contrapartidas, os casos de isenção e as contrapartidas do beneficiário para aplicar de fato o instrumento da OODC:10 Santo André, João Pessoa, Contagem, Niterói, Santos, Anápolis, Mossoró, Alvorada e São Pedro da Aldeia. Os demais dez Planos remetem a definição destes
condicionantes a uma lei específica.
Utilizando o mesmo procedimento de atribuir “notas” à regulamentação da OODC
nos Planos Diretores, construímos um sistema de pontuação para os municípios. O município recebe um ponto para cada um dos seguintes quesitos: disponibilidade do Plano
na Internet; delimitação de perímetros de aplicação do instrumento; definição de coeficientes de aproveitamento básico e máximo; detalhamento da fórmula de cálculo; definição das contrapartidas dos beneficiários; os casos de isenção; destinação do recurso; destinação para um Fundo; gestão dos recursos por um Conselho Gestor. Quanto maior a
pontuação, maior a adequação ao Estatuto da Cidade (Tabela 9).
Tabela 9 – Adequação ao Estatuto da Cidade (Tabulação Instituto Pólis, 2007)
Município
João Pessoa
Mossoró
Niterói
Santo André
Alvorada
Contagem
Santos
São Leopoldo
Bebedouro
Chapecó
Anápolis
Araguaína
Barra Mansa
Rondonópolis
São Pedro da Aldeia
Suzano
Santiago
Fernandópolis
Itapecuru Mirim
86
Pontuação
9
9
9
9
8
8
8
8
6
6
5
5
5
5
5
5
4
2
2
%
100
100
100
100
89
89
89
89
67
67
56
56
56
56
56
56
44
22
22
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A análise conclui que, em grande medida, as prerrogativas do Estatuto da Cidade
para a OODC são cumpridas nos Planos Diretores, do ponto de vista formal. É importante ressaltar que apenas estudos de caso mais aprofundados podem identificar se as diretrizes dos Planos Diretores e do Estatuto estão sendo efetivamente cumpridas – não descartamos repetições automáticas da redação do Estatuto; enquadramento formal ao Estatuto,
que oculta favorecimentos às forças do mercado imobiliário; e interferência de consultores externos que não se relacionam com a realidade dos municípios. Ainda assim, o fato
de o Estatuto da Cidade ter sido considerado um parâmetro para o desenho do instrumento nos municípios revela, ao menos, conhecimento do Estatuto e reconhecimento
(em algum nível) da necessidade de se enquadrar a ele.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pela pesquisa realizada, podemos identificar uma série de elementos que mostram
que o debate em torno da OODC vem se redirecionando nos últimos anos, principalmente após a aprovação do Estatuto da Cidade. Em relação à versão de 2001, a MUNIC 2005
revela-se um instrumento bem mais eficiente de mapeamento da existência de instrumentos urbanísticos em geral e da OODC em particular. Se levarmos em conta que 1156
municípios declararam à MUNIC 2005 disporem da OODC, é de se esperar que seja bastante significativo o novo universo de municípios que vêm propondo a OODC em sua
legislação. Pesquisas futuras podem propor a replicação da metodologia sobre um universo mais abrangente.
Pelo que indica a amostra, aumentou significativamente o número de municípios
que levaram em conta a existência da OODC na recente reformulação da legislação urbanística municipal. Isso pode indicar um avanço no debate sobre a noção de que existe
uma separação entre direitos de propriedade e direitos construtivos. Por outro lado, a presença do instrumento na legislação pode decorrer de outros processos que não um debate aprofundado em nível local: de simples e automáticas repetições dos termos do Estatuto e da influência de consultores externos imprimindo aos municípios suas próprias
visões sobre os instrumentos urbanísticos. A presença da OODC na legislação local pode
até mesmo refletir atendimento de demandas do mercado imobiliário.
Em comparação com experiências esparsas e desvinculadas da política urbana local,
as propostas mais recentes vêm vinculadas aos Planos Diretores, e podem indicar a perspectiva da inserção do instrumento em políticas mais gerais de regulação urbanística. De
uma forma geral, as determinações do Estatuto da Cidade foram levadas em conta para a
formulação do instrumento pelos municípios.
Ainda que uma série de municípios de menor população venha experimentando a
OODC, percebemos que a sua implementação tem se dado de forma mais significativa nos
mais populosos. Tal informação pode significar que o instrumento só é efetivamente relevante em situações de mercado imobiliário mais ativo e dinâmico. Por outro lado, talvez esteja sendo perdida a possibilidade de aplicação preventiva do instrumento – ou seja, perda da chance de antecipação em relação ao dinamismo do mercado imobiliário,
resultando em dificuldades de ganhos coletivos futuros.
Como a maior parte dos Planos Diretores é muito recente, serão necessários
ainda mais alguns anos de acompanhamento para identificarmos efetivamente o
grau de implementação da OODC e seus impactos sobre as cidades brasileiras. Um
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A
Renato Cymbalista é arquiteto urbanista, doutor em
Estruturas Ambientais Urbanas pela FAU-USP, coordenador do núcleo de urbanismo
do Instituto Pólis. E-mail: [email protected]
Paula Pollini é arquiteta urbanista, integrante do núcleo
de urbanismo e da Escola da
Cidadania do Instituto Pólis.
E-mail: urbanismo@polis.
org.br
Patrícia Cobra é arquiteta
urbanista, integrante do núcleo de urbanismo do Instituto Pólis. E-mail: pcobra
@polis.org.br
Paula Santoro é arquiteta
urbanista, mestre em Estruturas Ambientais Urbanas
pela FAU-USP (2004) e integrante do núcleo de urbanismo do Instituto Pólis. E-mail:
[email protected]
Artigo recebido em dezembro de 2007 e aprovado para publicação em outubro
de 2008.
OUTORGA
ONEROSA
DO
DIREITO
DE
CONSTRUIR
dos aspectos que poderá ser investigado em futuros trabalhos é o grau de transparência e de gestão democrática do instrumento, já que na maior parte dos municípios,
juntamente com a OODC, vem sendo novamente proposto sistemas de planejamento com fundos e conselhos específicos e a participação dos diferentes segmentos da
população.
A pesquisa não se propôs como conclusiva em relação à real eficácia do instrumento, tampouco como partidária irrestrita de sua aplicação. Resume-se a apontar mudanças
recentes no arcabouço da legislação urbanística dos municípios, abrindo caminho para futuras avaliações. Sem a pretensão de avaliar ou legitimar qualquer experiência de regulamentação ou aplicação da OODC, acreditamos ter avançado na identificação de uma expansão do universo de municípios que se relacionaram com a OODC, contribuindo para
apoiar futuros estudos, monográficos ou não, sobre esse tema.
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88
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R . C Y M B A L I S T A , P. P O L L I N I , P. C O B R A , P. S A N T O R O
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R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
89
A
OUTORGA
ONEROSA
DO
DIREITO
DE
CONSTRUIR
SOUZA, C. V. C. Santo André: instrumentos utilizados na elaboração do Plano Diretor
Participativo para viabilizar a participação e a negociação entre os atores. In: BUENO, L.
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A
B S T R A C T The article discusses the implementation of the instrument of the
selling of building rights (Outorga Onerosa do Direito de Construir) in Brazilian
municipalities, based on data from IBGE (Brazilian agency for statistics), and in the context
of the new urban regulation, The “Estatuto da Cidade” – Federal Law 10.257/2001 – and
under the recent wave of municipal master plans, that were mandatory for Brazilian
municipalities with population over 20.000 inhabitants, due to be enforced until October
2006. The article identifies a significant increase in the presence of the instrument of the
selling of building rights in Brazilin municipalities, but on the other hand points to difficulties
in the real implementation of the instrument, mostly in municipalities with smaller
population.
K
The selling of building rights; urban reform; land regulation;
90
R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
E Y W O R D S
master plan.
R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
91
Sim
(Internet)
Sim
(Internet)
Sim
(Internet)
Não
Não
Não
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim (Internet)
Não
Não
Sim
Lei n. 1856/1994
Lei n. 1903
de 14/04/2000
Paranavaí
Quixadá
Não
Não
Fez decretos Não
de adequação
do PD de 2002
Em
elaboração
Não – O
Sim
PD remete
a uma Lei
específica, que
ainda não
foi feita
Sim, mas
Sim
não com
(Internet)
um processo global
de revisão
do PD de 98
Sim
Sim
Sim, mas
não com
um processo
global de
revisão do
PD de 92
Não
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Não,
apenas o
coeficiente
básico
Sim
Sim
Sim
Sim –
índice básico 1
para toda
área urbana
e máximos de
acordo com
a zona
Sim,
mas
incompleta
Sim
Sim, mas
os fatores
de correção foram
estabelecidos pelos
PURs
Sim
Sim
Planos Diretores e sua conformidade com o Estatuto da Cidade em relação a OODC
Elaborou ou A legislação Presença do Estabelece
Estão definidos Há
revisou seu
está dispo- instrumento perímetros
os coeficientes fórmula
PD até
nibilizada OODC?
de aplicação de aproveitade
out/2006?
na Internet?
do instrumento básico
cálculo?
mento?
e máximo?
Sim
Sim
Sim
Sim –
Sim –
Sim
(Internet)
mapa
Quadro 3,
Anexo XIV
Alagoinhas PD de
2002
PD de 1983
– novo PD
em elaboração
Santarém
Lei compl.
n.311 de
23/11/1998
e alterações*
Santos
Lei compl.
n. 128 de
10/10/2006
Sim,
regulamentação dos
PURS
Lei n.2123 de
04/02/2004
(revisão da
lei n.1157
de 1992)
Niterói
Anápolis
Regulamentada pela
LUOS de
1998, mas
precisa ser
revisada –
novo PD
de 2006
Contagem Lei compl.
n.33 de
26/12/2006
Lei autoaplicável
regulamentada por
decretos com
alterações*
PD autoaplicável –
regulamentado pelo
Decreto
Nº 5.454, de
26/09/2005
Lei compl.
n.3 de
30/12/1992
João
Pessoa
PD autoaplicável –
regulamentado
pela LUOPS
de 2006
Lei
n.8.696
de 2004
Santo
André
Município Plano Diretor em vigor
Número
Legislação
e ano
específica
da lei
Em dinheiro
Não
menciona
no PD
Dinheiro
ou imóveis
urbanos
Estão
definidas
as contrapartidas dos
beneficiários?
Moeda
corrente
Não
menciona
Sim, imóveis Em dinheiro
de interesse
histórico e
prédios em
desaprumo
Sim, “residências individuais,
hospitais,
escolas,
hotéis e
pousadas”
Sim,
HIS
Sim,
HIS
Sim –
“HIS e
HMP.”
Estão
definidos
os casos
de isenção?
Sim
Sim
(...)
Sim
Sim
Sim
Conselho
Municipal
de Política
Urbana
Conselho
de Desenvolvimento
Urbano
Quem gere
os recursos?
Um
Conselho
Gestor?
O Conselho
Municipal
de Política
Urbana
Ainda não
tem um
Conselho
gestor, pois
um Fundo
específico
ainda não
foi criado
Fundo de
Conselho
Urbanização da Cidade
Sim, Fundo
de Habitação
popular,
mas ainda
não regulamentou o Fundo
de Desenvolvimento Urbano
“Fundo
Conselho de
Municipal de administraUrbanização, ção
Habitação e
Regularização
Fundiária”
Fundo de
Habitação
Popular
Fundo
de Urbanização
Está
Tem
definida Fundo?
a destinação do
recurso?
Sim
“Fundo
Municipal
de Desenvolvimento
Urbano.”
Não
Não
Não, o que
regulamenta são as
PURs
Sim,
pela
LUOS
Não
Projeto de
LUOS na
Macrozona
Urbana
Remete
a Lei
específica?
Não
Não
1 ano
Há um
prazo para
a Lei específica?
Não
Não
Não
Não
Não
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Aplicou a
OODC
até abril
de 2007?
R . C Y M B A L I S T A , P. P O L L I N I , P. C O B R A , P. S A N T O R O
ANEXO
Tabela síntese das informações – Adequação dos Planos Diretores dos 30 municípios ao
Estatuto da Cidade
92
Sim
Sim
PD
autoaplicável**
Não, o PD
remete a
uma Lei
específica
mas ainda
não foi feita
Lei n. 2125
de 19/12/2006
Não tem PD,
está em processo
de elaboração
Lei compl.
n. 48 de
06/12/2006
Lei compl.
n. 202 de
06/01/2004
Lei n. 407
de 28/12/2001
Lei n. 3841
de 21/12/2004
São
Leopoldo
Itabuna
Chapecó
Eunápolis
Valinhos
Sim
Não
Sim
Não
(Internet)
Sim, mas sem Não
anexos (Internet)
Sim
Sim
Sim
Sim
Não –
remete a
Lei específica
Não –
remete a
Lei específica
Não –
remete a
Lei específica
Não –
remete a
Lei específica
Sim,
HIS
Não
Sim
Não
menciona
no PD
Não
menciona
no PD
Moeda
corrente
Moeda
corrente
Moeda
corrente
Sim
Sim
(...)
Sim
(...)
Sim,
obras
prioritárias
do PD
Sim
Sim –
Fundo
Municipal
de Desenvolvimento
Territorial
Sim –
Fundo
Municipal
de Desenvolvimento
Sim, Fundo Municipal de
Desenvolvimento urbano
Sim, a lei determina a criação
de um Fundo
Municipal de
Desenvolvimento,
que ainda não
foi criado
Sim,
Fundo
Municipal
de Desenvolvimento
Territorial
Sistema
municipal
de planejamento, gestão urbana
e ambiental
Quem administra é a prefeitura
municipal, mas
quem aprova um
plano anual de aplicação é o Conselho
Conselho
do Plano
Diretor
Conselho
do Plano
Diretor
Conselho
da Cidade
(paritário)
Sim
Sim
180 dias
Não
CNA
Não
Não
Sim
Não
Não
Há um
prazo para
a Lei específica?
Não
Sim
Remete
a Lei
específica?
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Sim
Não
Não
Não
Aplicou a
OODC
até abril
de 2007?
DE
Sim
(Internet)
Não –
remete a
Lei
específica
Não –
remetida
a Lei específica, que
não foi
feita
Sim
Sim
Quem gere
os recursos?
Um
Conselho
Gestor?
Não menciona
DIREITO
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Está
Tem
definida Fundo?
a destinação do
recurso?
Sim
Não
DO
Não, o PD
remete a
uma Lei
específica,
que ainda
não foi feita
Não, o PD
remete a
uma Lei
específica,
que ainda
não foi feita
Sim
(mapa)
Sim
(mapa)
Sim
(mapa)
Estão
definidas
as contrapartidas dos
beneficiários?
Não
menciona
no PD
ONEROSA
Barra
Mansa
Não
Não
Não, estão
em processo
de elaboração
Sim
Sim
(Internet)
Sim
Sim
Sim
Sim
(Internet)
Sim
(Internet)
Sim, HIS
e equipamentos de
saúde e
educação
Estão
definidos
os casos
de isenção?
OUTORGA
Sim
(Internet)
Sim
Lei n.1461
de 26/07/2004
(revisão da
Lei n. 1137
de 2000)
PD
autoaplicável
Alvorada
Mossoró
Lei compl.
n. 003 de
02/06/1993
e atualmente
em processo
de revisão
Lei compl.
n. 12 de
11/12/2006
Gov.
Valadares
Não – O
PD remete
a uma Lei
específica,
que ainda
não foi feita
Lei compl.
n. 145 de
2004 e
atualmente
em processo
de revisão
Planos Diretores e sua conformidade com o Estatuto da Cidade em relação a OODC
Elaborou ou A legislação Presença Estabelece
Estão definidos Há
revisou seu
está dispo- do insperímetros
os coeficientes
fórmula
PD até
nibilizada
trumento de aplicação de aproveitade
out/2006?
na InterOODC? do instrumento básico
cálculo?
net?
mento?
e máximo?
Sim e
Sim
Sim
Sim, em todo Sim
Não –
atualmente
(Internet)
município,
remetida a
estão em
exceto na macroLei espezona de presercífica, que
processo de
vação ambiental
ainda não
revisão
e ocupação
foi feita
restrita
Não, o
Não
Não
PD de 93
está em
processo de
revisão
Suzano
Município Plano Diretor em vigor
Número
Legislação
e ano
específica
da lei
A
CONSTRUIR
R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
Não tem
Lei específica
e o PD não
menciona
nenhuma
-
R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
93
Lei n. 1026
Não, o PD
de 29/12/2006 remete a uma
Lei específica,
que ainda
não foi feita
Sim
(Internet)
Sim
(Internet)
Sim
Sim
Não
Sim
Não
Não, o PD
Não
de 98 está em
processo de
revisão
Sim
Sim
(Internet)
Sim
Sim
(Internet)
Não
Sim
Sim
Não
(não tem
a lei aprovada, apenas o PL)
Sim
Sim
Sim
Não
Não
Sim
Sim
Sim
Não
Sim
Não
Não, apenas
os coeficientes
básicos; os
máximos remete
a Lei específica
Sim
Não, apenas o coef.
básico 1; os
máximos
são remetidos
a Lei específica
Sim, nas opera- Apenas os coefições urbanas con- cientes básicos.
sorciadas, nas Não define os
áreas de interven- máximos nem
ção urbana ou em remete a Lei
projetos especiais específica
Não
Não –
menciona
remete a
Lei específica
Não
Não –
remete a
Lei específica
Sim
(mapa e
tabela)
Sim, todas
as macrozonas
urbanas
Não –
remete a
Lei específica
Não –
remete a
Lei específica
Não –
remete a
Lei específica
Estão
definidos
os casos
de isenção?
Não –
remete a
Lei específica
Não –
remete a
Lei específica
Não –
Não
remete as menciona
contrapartidas
a Lei específica
Sim, mas o Não –
fator de cor- remete a
reção da con- Lei espetrapartida será cífica
será estabelecido por Lei
específica
Não
Não
Não –
remete a
Lei específica
Não –
remete a
Lei específica
Planos Diretores e sua conformidade com o Estatuto da Cidade em relação a OODC
Elaborou ou A legislação Presença Estabelece
Estão definidos Há
revisou seu
está dispo- do insperímetros
os coeficientes
fórmula
PD até
nibilizada
trumento de aplicação de aproveitade
out/2006?
na InterOODC? do instrumento básico
cálculo?
net?
mento?
e máximo?
Sim
Sim
Sim
Sim –
Não –
Não –
(Internet)
perímetro
remete a
remete a
urbano
LUOS a
Lei espeser forcífica
mulada
Não menciona no PD
Moeda
corrente
Não
Em unidades
de valor fiscal
do município
(UNIF)
Moeda
corrente
Estão
definidas
as contrapartidas dos
beneficiários?
Em moeda corrente, em obras
de HIS, ou
em terrenos
dentro do
município
Moeda
corrente
Não
Não
Não
Sim
Sim,
para
HIS
Sim
Está
definida
a destinação do
recurso?
Sim
(...)
Não menciona –
tem um Conselho
consultivo, mas
não fica clara
sua função
Sistema
Municipal de
Planejamento de Gestão
Urbana
Conselho
da Cidade
(paritário)
Conselho
Municipal
de Política
Urbana
Conselho
Municipal
de Desenvolvimento
Sustentável
Quem gere
os recursos?
Um
Conselho
Gestor?
Conselho
Municipal de
Desenvolvimento Urbano
e Rural
Sim –
Secretaria
Fundo
Municipal de
Municipal de Planejamento
Desenvolvimento Urbano
Não
Não
Sim –
Fundo
Municipal de
Desenvolvimento urbano
Não
menciona
Sim,
Fundo de
Desenvolvimento e
Habitação
Não
menciona
Tem
Fundo?
Sim
Sim
Não
Sim
Sim
Sim
Sim
Remete
a Lei
específica?
12 meses
60 dias
Não
Não
Não
Não
Não
Há um
prazo para
a Lei específica?
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Aplicou a
OODC
até abril
de 2007?
* Consolidação da Lei Complementar nº 311 de 23 de novembro de 1998 e alterações: Lei Complementar nº 447 de 30 de dezembro de 2001, Lei Complementar nº 483 de 30 de dezembro de 2003 e Lei Complementar nº 560 de 28 de dezembro de 2005. Atualizada até 04 de janeiro de 2006.
** Secretaria Municipal de Planejamento e Habitação – Resolução Interpretativa no. 2 – Plano Diretor de 2002 *** Lei de Uso, Ocupação e Parcelamento do Solo da Macrozona Urbana, que foi aprovada em maio de 2006.
Itapecuru
Mirim
Lei n. 2852
de 22/12/2006
Primavera PD de 1998.
do Leste
Atualmente está
em processo
de revisão
Santiago Lei n. 068 de Não, o PD
remete a uma
10/10/2006
Lei específica,
que ainda
não foi feita
Paulínia
Fernandó- Lei compl.
polis
n. 51 de
26/10/2006
Lei compl.
n. 046 de
28/12/06
Não, o
PD remete
a uma Lei
específica,
que ainda
não foi feita
Araguaíina Lei n. 2424
Não, o
de 03/10/2005 PD remete
a uma Lei
específica,
que ainda
não foi feita
Lei compl. n. 52
Paracatu
de 09/10/2006
Bebedouro Lei compl.
Não, o
n. 43 de
PD remete
05/09/2006
a uma Lei
específica,
que ainda
não foi feita
São Pedro Lei compl.
Não, o
da Aldeia n. 012 de
PD remete
31/01/2005
a uma Lei
específica,
que ainda
não foi feita
Rondonópolis
Município Plano Diretor em vigor
Número
Legislação
e ano
específica
da lei
R . C Y M B A L I S T A , P. P O L L I N I , P. C O B R A , P. S A N T O R O
URBANISMO E MODERNIDADE
REFLEXÕES EM TORNO DO
PLANO AGACHE PARA O RIO DE JANEIRO
FERNANDO DINIZ MOREIRA
R
E S U M O Enquanto o urbanismo na Europa nasceu no bojo de um processo de modernização e reforma social, no Brasil ele encontrou um país que não era verdadeiramente urbano e industrial. Portanto, teorias européias desenvolvidas em resposta à modernização chegaram
ao Brasil antes que a modernização acontecesse. Pode-se argumentar que o urbanismo, assim como fábricas, redes de transportes e arranha-céus, assumiu uma natureza marcadamente simbólica. Este texto reflete sobre estes temas tomando como exemplo o plano de Alfred Agache para o
Rio de Janeiro (1928-1930). Um marco na evolução do urbanismo brasileiro, esse plano tinha
como objetivo resolver os problemas funcionais do Rio de Janeiro, dar-lhe uma feição de capital
e incutir na mente de seus habitantes um ideal de vida moderna, sem descurar de requerimentos funcionais, como zoneamento e tráfego. Além de uma análise do processo de contratação de
Agache e de seu relacionamento com as elites locais, a ênfase recairá sobre os grandes espaços urbanos projetados por Agache, a Entrada do Brasil e a Praça do Castello.
PALAVRAS-CHAVE
nidade; Projeto Nacional.
Urbanismo; Rio de Janeiro; Alfred Agache; Moder-
Enquanto o urbanismo na Europa nasceu no bojo de um processo de modernização
e reforma social, no Brasil ele encontrou um país que não era verdadeiramente urbano e
industrial. Portanto, teorias européias desenvolvidas em resposta à modernização chegaram ao Brasil antes que a modernização acontecesse. Este descompasso levanta uma série
de questões. Se tomarmos como verdadeira a recorrente afirmação que a modernização
brasileira é incompleta, já que as elites locais procuraram modernizar o país sem uma correlata transformação na estrutura social, pode-se argumentar que o urbanismo – assim como fábricas, redes de transportes e arranha-céus – assumiu uma natureza marcadamente
simbólica. Não obstante, muitas dessas imagens constantes nos planos urbanísticos sugerem uma forma de comportamento para as futuras massas brasileiras e são reveladoras sobre as concepções que a sociedade brasileira detinha para seu futuro.
Este texto reflete sobre estes temas tomando como exemplo o plano de Alfred Agache para o Rio de Janeiro, elaborado entre 1928 e 1930, – publicado em português em
1930, e em francês, dois anos depois (Agache, 1930; 1932). O Plano Agache foi um marco na evolução do urbanismo brasileiro e um dos exemplos máximos do urbanismo defendido pela Societé Française des Urbanistes (SFU). Seu objetivo era resolver os problemas
funcionais do Rio de Janeiro, dar-lhe uma feição de capital e incutir na mente de seus habitantes um ideal social de vida moderna, sem descurar de requerimentos funcionais, como zoneamento e tráfego. Além de uma análise do processo de contratação de Agache e
de seu relacionamento com as elites locais, a ênfase recairá sobre os grandes espaços urbanos projetados por Agache: a Entrada do Brasil e a Praça do Castello.
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A FÉ TROPICAL NO URBANISMO: AGACHE E
SEUS CLIENTES
1 Para informações sobre a
vida, formação e trabalhos
de Agache, ver Bruant
(1994a: 1678: 175-8); Bruant (1994b: 99-107); Bruant
(1994c: 23-65); Tougeron
(1981: 31-48); Underwood
(1991: 133-40); Moreira
(2004: 83-9).
O processo de contratação de Agache representou as aspirações de uma geração de
urbanistas brasileiros, e revela muito sobre o processo de afirmação do Brasil. Alfred Agache (1875-1959) foi figura essencial deste movimento de institucionalização do urbanismo no mundo (Fig.1).1 Diplomado pela École des Beaux-Arts de Paris em 1905, Agache
fez parte de uma geração de arquitetos que, mesmo advinda da academia, estava atenta
aos novos desafios urbanos e às formulações de outros campos disciplinares. Essa geração
formada na primeira década do século XX incluía também Leon Jaussely e Henri Prost,
entre outros. Sua visão urbanística, dominada por eixos, perspectivas, arcadas e conjuntos harmônicos de edifícios, foi capaz de amalgamar-se com outros saberes para criar uma
nova disciplina.
Agache não se deteve nos parâmetros da escola e buscou desde cedo uma formação
complementar em sociologia. Ele fez vários cursos de sociologia no College Libre de Sciences Sociales (CLSS) e participou ativamente das discussões do Musée Social. Foi um dos
fundadores da Societé Française des Urbanistes (SFU) em 1911, e secretário executivo desde a fundação até 1939, quando emigrou definitivamente para o Brasil. Fez diversos planos para cidades francesas e participou ativamente de congressos e publicações nos anos
1910 e 1920 com uma série de artigos. Esses artigos culminariam em um trabalho mais
sistemático intitulado Comment reconstruire nos cités détruites, publicado em 1916, em
conjunto com Jacques-Marcel Auburtin e Edouard Redont (Agache, Auburtin, Redont,
1916). O livro é a mais completa explanação do programa de urbanismo da SFU, e antecipa em detalhe um extenso programa de reconstrução de cidades francesas no período
após a Primeira Guerra.
Figura 1 – Alfred Agache (1930). Fonte: Bruant, L’architecte à l’école, p.103.
A nova disciplina do urbanismo, como concebida pelos franceses, procurou formular uma outra forma de pensar as cidades, estabelecendo conhecimento, vocabulário e métodos de observação e análise diferentes, como o próprio Agache definiu em 1913:
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(....) a nova ciência de construir e planejar a cidade. É uma ciência aplicada, pois tem um
objetivo prático: controlar o desenvolvimento e o crescimento da cidade… Esta nova ciência agrega conhecimentos de diferentes disciplinas. O urbanismo integra o conhecimento do técnico, do sociólogo, do engenheiro, do higienista em uma nova unidade. (Agache, 1914, Apud Bruant,
1994ª: 170)
Agache considerava o urbanismo uma combinação de ciência, arte e filosofia social.
Essa nova ciência teria o papel de coordenar diferentes disciplinas e aplicá-las à cidade:
Urbanismo é uma ciência e uma arte, e sobretudo, uma filosofia social. Entende-se por Urbanismo o conjunto de regras aplicadas ao melhoramento da edificação, do arruamento, da circulação e do descongestionamento das artérias públicas. É a remodelação, a extensão e o embelezamento de uma cidade levados a efeito mediante um estudo metódico da geografia humana e da
topografia urbana, sem descurar as soluções financeiras. (Agache, 1930: 4)
O fato de a grande maioria dos urbanistas da SFU vir da Beaux-Arts não deve fazer
com que este urbanismo seja simplesmente rotulado de Beaux-Arts. Se considerarmos o
urbanismo como uma nova forma de pensar as cidades, originada de diferentes disciplinas no final do século XIX, podemos afirmar que a SFU representaria a incorporação da
tradição arquitetônica a essa nova disciplina. Devido à sua formação em Beaux-Arts, os
urbanistas franceses adotaram formas clássicas, expressas por meio de impressionantes
perspectivas de cidades como composições unificadas. Nos seus planos, usaram elementos urbanos do passado, como arcadas, blocos maciços de edifícios, enquadramento de
monumentos e vistas. Apesar de essas imagens sugerirem grandes diferenças em termos
morfológicos em relação ao urbanismo que iria se firmar nos anos seguintes – aquele promovido pelos Congrès Internationaux d’Architecture Moderne (CIAM) e pela Carta de
Atenas –, deve-se ressaltar que o urbanismo da SFU lançou mão de uma série de instrumentos que procuravam atender aos requisitos de uma cidade moderna. Eles procuraram
reconciliar morfologias tradicionais com as inovadoras redes de infra-estrutura e de tráfego; preocuparam-se com o provimento de habitação e áreas verdes; e adotaram instrumentos, como unidade de vizinhança, zoning e greenbelts. Além disso, como o urbanismo
dos CIAM, eles acreditavam que a arquitetura ainda seria capaz de dar respostas aos problemas da cidade moderna.2
O pensamento urbanístico de Agache apoiava-se em um tripé que unia diferentes
tradições: a tradição Beaux-Arts, elementos da sociologia e a influência de outros autores
fundadores da disciplina urbanística, como Camilo Sitte, Raymond Unwin, Patrick Geddes e Daniel Burham.3 É este complexo e multifacetado pensamento urbanístico que será trazido ao Brasil, um país enredado no processo de reflexão sobre a sua própria identidade. Esse processo também envolveu posições conflitantes: se alguns procuravam
construir a imagem do país como uma nação moderna, urbana e industrial, outros apontavam para as raízes agrárias e para a herança colonial. E todos esses campos eram marcados por um intenso nacionalismo.
No país, durante os anos 1920, teve início uma longa discussão sobre a cidade brasileira e sua transformação em uma metrópole moderna. Nesta década, emergiu uma geração de engenheiros especializados em urbanismo que incluía figuras como Ulhôa Cintra, Prestes Maia, Anhaia Mello, Armando de Godoy e José Estelita. Esta geração trazia
novas idéias e novos instrumentos de urbanismo, atualizados em relação aos da Europa e
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2 O urbanismo francês foi
também chamado de Art Urbain, Art Civique, Dessein Civique, Art Social, ou Urbanismo Formal (por Gaston
Bardet), ou École Française
d’Art Urbain (Joseph Stübben, Henri Prost e Leon
Jaussely utilizaram alternativamente estes termos).
(Gaudin, 1991: 28; Tougeron, 1981: 33). Stübben nomeou um capítulo de “Franzosischen Stadtbeau” em
seu Der Stadtebau; Gaston
Bardet adotou o termo em
Nouvel Urbanisme (Bardet,
1948).
3 Sobre as influências que
Agache sofreu, ver Moreira
(2004: 83-5, 122-31).
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4 Uma figura crucial para a
contratação de Agache foi
Francisco Guimarães, um diplomata brasileiro residente
em Paris. Simpatizante do
urbanismo, Guimarães já fazia campanha por um plano
para o Rio de Janeiro desde
1919, e estava em contato
com figuras como Jacques
Gréber, Tony Garnier e Agache (Guimarães, 1929: 5, 6;
Guimarães, 1926: 4, 5). Sobre esse processo de contratação, ver Moreira (2004:
58-64).
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dos Estados Unidos. Os novos profissionais começaram a pressionar por leis de zoneamentos, códigos de construção, levantamentos, e a introduzir novos temas na agenda urbana, como custos financeiros, áreas verdes e habitação. Eles procuraram inculcar na sociedade a necessidade de planos urbanos feitos com base técnica e científica.
No final da década havia uma grande demanda por planos, e o urbanismo havia ganhado certa legitimidade perante as elites políticas. Se um consenso sobre o plano do Rio
havia sido alcançado, ainda assim havia um ponto de discórdia: a nacionalidade do urbanista a ser contratado. Argumentos a favor de um estrangeiro incluíam a superior capacidade técnica e o fato de estar acima de interesses paroquiais, mas os clamores nacionalistas tinham muito impacto e se questionava se um estrangeiro poderia criar uma cidade
legitimamente brasileira, além de compreender e enaltecer a paisagem do Rio de Janeiro.
Arquitetos em busca da afirmação da profissão foram, em sua maioria, contrários à escolha de um estrangeiro, pois isto poderia revelar a incapacidade desta classe de confeccionar o plano. No entanto, quando se começou a cogitar que o escolhido seria um arquiteto, alguns desses profissionais passaram a apoiar a vinda de um arquiteto-urbanista
estrangeiro, o que poderia vir a contribuir para a afirmação da profissão no campo do urbanismo (Moreira, 2004:.58-64).
Tratava-se de um período complexo em que muitos temas se entrecruzavam: engenheiros e arquitetos disputando um mercado; um novo campo disciplinar emergindo entre essas duas profissões; e uma discussão mais complexa sobre a identidade da sociedade brasileira que ganhava corpo. O que estava em questão era muito mais que a figura
de Agache e a necessidade ou não de um plano. O debate criado em torno da contratação de Agache oferece importantes pistas sobre a recepção do urbanismo pela elite ilustrada do país.
Quando o novo prefeito, Prado Junior, assumiu seu posto no início de 1927, a idéia
do plano já estava consolidada. Prado Junior apoiava a vinda de um estrangeiro, e iniciou
contatos que culminaram na contratação de Alfred Agache em junho de 1927.4 A contratação de Agache foi celebrada e tida como um marco de uma nova era para o Rio de Janeiro (Albuquerque Filho, 1959: 38). Armando de Godoy lembrou o poder dessa nova
ciência, o urbanismo, e os efeitos positivos que a vinda de Agache teria, sobretudo para o
aprendizado dos profissionais locais (Godoy, 1935: 45, 47, 323).
Porque estava Agache interessado em visitar o Brasil e nele trabalhar? Além do esforço propagandístico da Societé Française des Urbanistes e da falta de trabalho na França,
o Rio de Janeiro, uma das maiores cidades do continente americano, era um espaço privilegiado para que pudesse mostrar seu urbanismo. Além disso, o plano do Rio poderia
ser uma oportunidade para conseguir o contrato para a construção da futura capital do
Brasil, que já se discutia naquele momento.
Por que Agache foi o escolhido pelos brasileiros? O que Agache representou para essa elite política e profissional? Além do prestígio alcançado por seus planos para Camberra e Dunquerque, Agache tinha familiaridade com diferentes tendências do urbanismo.
Sua proeminência nos meios profissionais parisienses conferiu-lhe a autoridade para representar uma síntese do urbanismo francês. Tudo isso ajudou a criar um certo consenso
entre os brasileiros que prestigiavam a cultura parisiense. Pode-se argumentar ainda que
Agache, dando ênfase aos aspectos técnicos e artísticos da cidade moderna, apelou para as
aspirações tanto dos engenheiros como dos arquitetos brasileiros. Ele convenceu estes
profissionais de que era capaz de pensar a cidade em termos técnicos, funcionais e artísticos. Além disso, uma figura estrangeira estaria acima das querelas políticas locais.
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A formação sociológica de Agache também impressionou aqueles membros da elite
propensos à reforma social. Acreditamos que a posição de Agache como um arquiteto de
Beaux-Arts não foi um ponto importante. Essa discussão transcendeu elementos formais
ou filiações estéticas. Acreditamos que as elites profissionais locais estavam mais interessadas em um método, uma nova forma de pensar as cidades, e isso era particularmente
atraente para o corpo técnico da municipalidade. Agache atraiu audiência não apenas por
seu estilo, mas por sua habilidade de repensar as cidades existentes. Sua abordagem
Beaux-Arts, entretanto, atraiu o suporte dos membros da elite política, que persistiam na
busca de imagens parisienses, como nas décadas anteriores.
O PLANO AGACHE: CIRCULAÇÃO E ZONEAMENTO
O Plano de Agache é composto de três partes. A primeira empreende um exaustivo
e amplo estudo da situação da cidade; a segunda parte é o plano propriamente dito; enquanto a terceira, “Os grandes problemas sanitários”, aborda a questão do abastecimento
de água, esgotamento sanitário e inundações.
A primeira parte, “Os componentes antropogeográficos e a análise geral da situação
urbana”, é subdivida em duas seções. Enquanto a primeira é uma árida descrição da evolução histórica do Rio de Janeiro, a segunda é um estudo geográfico que sintetiza as particularidades do sítio e os aspectos econômicos e sociais da cidade. Agache entendeu o espírito da cidade, o complexo mosaico formado por porções de terra, montanhas, lagoas,
florestas e mar, mas, ao contrário de Le Corbusier, que foi emocionalmente tocado pelo
sítio, Agache capturou sua essência mediante uma investigação cuidadosa e metódica. O
estudo estatístico envolveu aspectos econômicos e demográficos e foi influenciado pelas
pesquisas do Musée Social. Agache separou as partes da cidade em unidades funcionais e
sintetizou sua evolução através dos séculos, revelando os movimentos de pessoas e de mercadorias entre a cidade e a região. Em suma, ele confirmou o papel do Rio de Janeiro como uma metrópole regional, industrial e comercial.
Na segunda parte, “Rio de Janeiro Maior”, Agache apresentou seu plano. Após enfatizar as duas funções essenciais do Rio de Janeiro, sua função político-administrativa e
sua função econômica, o urbanista francês definiu que os problemas eram de ordem funcional e representacional. Por um lado, o tráfego congestionado, o transporte público insuficiente, os edifícios altos em ruas estreitas e a falta de infra-estrutura atestavam que a
cidade não estava funcionando adequadamente (Agache, 1930: 121-57). Por outro lado,
por não possuir aparência de capital de um novo e pujante país, o Rio mostrava que tinha problemas de representação: faltava-lhe aquilo que Vitruvius e Alberti chamaram de
“decorum’’. De acordo com Agache, o Rio de Janeiro precisava urgentemente de uma
imagem adequada de capital:
Eis aqui a capital de um país que tem 40 milhões de habitantes e cujo Senado está instalado em um antigo pavilhão de exposição. A Câmara dos Deputados, edificada entre duas pequenas ruas, apesar da sua construção recente, apresenta-se já insuficiente. Afora o Ministério das Relações Exteriores e o dos Correios, instalados em antigos palácios preparados para este fim, os outros
ministérios ocupam locais poucos apropriados e sem conforto e, para as paradas militares ou demonstrações patrióticas, a cidade não possui uma praça de honra nem avenidas espaçosas e convenientemente traçadas. (Agache, 1930: 122)
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5 Referindo-se a sua Nouvelle Croisée, Henárd afirmou
que “leur fonction et leur utilité est de s’élancer au delà
de l’enceinte vers la province et de faciliter l’échange
des produits et des forces
vives du pays” (Henárd,
1982: 168). Ver também p.
161-74.
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Após afirmar que a cidade não estava correspondendo adequadamente a essas funções, Agache tratou de esboçar o esqueleto de seu plano. Seu objetivo principal era “assegurar a existência dos elementos funcionais e alocá-los adequadamente na cidade” e “estabelecer uma rede de ruas para prover uma ligação rápida entre estes elementos”.
(Agache, 1930: 120) Nessa estratégia, os dois principais pontos nos quais Agache focou
sua atenção foram circulação e zoneamento.
O futuro do Rio de Janeiro, diante de sua difícil topografia, dependeria de um bom
esquema de circulação que facilitasse a comunicação entre os diferentes bairros. A cidade
do futuro deveria possibilitar o movimento e a comunicação de todas suas partes com o
uso de diversos meios de transporte; deveria estar ela própria em movimento. Assim, Agache propôs um sistema de vias expressas, rótulas e cruzamentos, de modo a tornar a cidade mais fluida (Fig.2). Esse esquema radial-perimetral era claramente influenciado pelas
idéias de Eugène Henárd para Paris, além de ter sido originário da própria vivência de
Agache na Paris pós-Haussmann.5 O Rio de Janeiro deveria ser o ponto nodal de uma rede nacional de comunicação – incluindo rodovias, ferrovias e sistemas telefônicos (Agache, 1930: 120). Assim, as grandes rodovias nacionais e regionais deveriam penetrar no
coração da cidade na forma de duas grandes avenidas, a Paulista e a Petropolitana, que se
cruzariam na denominada Praça da Bandeira. Uma avenida periférica, provavelmente influenciada pelo plano de Barcelona de Léon Jausselly, de 1905, facilitaria a comunicação
entre as áreas periféricas e o centro.
Figura 2 – Plano Agache, Esquema de circulação. Fonte: Agache, Cidade, p. 137.
O zoneamento foi o outro ponto básico do projeto. Segundo Agache, a vida urbana
gravitaria em torno de alguns “elementos funcionais” que seriam os organismos primordiais da cidade. Esses elementos foram agrupados em sete categorias: o posto de comando (o centro legislativo e administrativo); os bairros de negócios e o distrito portuário; os
distritos comerciais; os distritos da produção (distrito industrial e as áreas de agricultura);
os bairros residenciais; o distrito universitário; e as áreas de recreação (parques, espaços livres, museus, teatros e cinemas). Cada um desses elementos tinha um papel específico na
cidade. Assim, era preciso identificá-los na malha, analisá-los e alocá-los da melhor forma
na cidade, estabelecendo relações corretas entre eles (Agache, 1930:.157-9). A cidade se100
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ria, assim, funcional e formalmente dividida para posteriormente ser reconectada por um
sistema coerente de circulação.
As principais questões que guiaram Agache foram como estabelecer o tamanho adequado de um bairro e como localizá-lo na malha urbana? Agache fixou densidades, regulamentos de construção, tipos e morfologia de habitação para cada distrito, definindo sua
forma, imagem e posição dentro da malha da cidade e assegurando um grau de hierarquia
entre eles. Essa conjugação entre morfologia urbana, zoneamento e tipologia arquitetônica irá definir a forma do bairro, das ruas, ou seja, sua fisionomia. A legislação do zoning
é que deveria diferenciar os bairros: “(...) ela tem por fim evitar que os bairros, que satisfazem a determinadas necessidades, sejam invadidos por construções que mudariam completamente seu caráter.” (Agache, 1930: 219). Quanto à concepção desses bairros, Agache estava preocupado com a uniformidade do conjunto.
Percebe-se, então, que a noção agachiana de zoning é bem mais complexa do que um
simples conjunto de regras que cria mecanicamente a cidade. Ela tem como finalidade
moldar plasticamente a forma da cidade, ou seja, associar as funções e elementos da cidade com a estética e a forma urbana. Assim, o urbanismo é também a arte de composição,
que faz com que os bairros tenham sua fisionomia própria, que sejam diferentes uns dos
outros e combinem entre si para criar uma imagem harmônica e coerente de cidade. A cidade seria definida por uma disposição diferenciada de malhas contínuas, alternância de
cheios e vazios, quadras em blocos, edifícios, arruamentos e praças (Fig.3). O ato de planejar a cidade é um ato efetivamente arquitetônico.
Figura 3 – Plano Agache: vista aérea do centro. Fonte: Agache, Cidade, p. 137.
A abordagem de Agache para a área central baseava-se em sua formação na École des
Beaux-Arts. Para ele, a cidade deveria ter uma échelle des types, uma gradação de tipos e alturas, que resultariam em uma silhueta mais densa e alta no centro, e uma mais rarefeita
e baixa nos subúrbios. No seu plano, o centro da cidade ocuparia a principal posição nessa hierarquia, sediando os edifícios mais importantes. Os edifícios altos contribuiriam para criar esta imagem coerente de cidade.
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O esquema de Agache para a área central do Rio de Janeiro teria um formato aproximadamente triangular. A base do triângulo, a Avenida Rio Branco, e o eixo inclinado,
a Avenida Mem de Sá, já existiam como fruto dos trabalhos de Pereira Passos. Agache propôs o terceiro lado do triângulo, o eixo vertical, que seria um super boulevard (a futura
Avenida Presidente Vargas) conectando a Praça da Bandeira com o porto e cruzando a
área mais densa do centro. A Igreja da Candelária já aparecia intacta no meio da avenida.
O urbanista francês também propôs uma nova avenida, a Santos Dumont, que seria uma
segunda base do triângulo, criando a imagem de dois triângulos superpostos, além de outras avenidas para completar seu esquema.
Seis praças concentrariam as principais atividades na área central: Entrada do Brasil,
Castello, Paris, Bandeira, Santo Antônio e Candelária. Essas praças estariam locadas nos
vértices desses triângulos e atuariam como importantes núcleos de recepção e irradiação
do tráfego, e se expressava nas formas escolhidas – geralmente uma étoile. Apenas as duas primeiras receberam um tratamento detalhado por Agache. Pode-se argumentar que a
ênfase dada por Agache aos elementos simbólicos do plano fez com que ele se concentrasse na Entrada do Brasil e na Praça do Castello, as praças que simbolizariam os poderes do
novo Estado e da pujante vida econômica.
A ENTRADA DO BRASIL: “DECORUM” PARA
TODA A NAÇÃO
As preocupações de Agache em relação ao conteúdo simbólico do plano e à necessidade de se reafirmar a condição de capital do Rio de Janeiro foram claramente materializadas no projeto para a Entrada do Brasil, uma vasta praça à beira-mar cercada por edifícios públicos. Agache procurou criar um espaço monumental para as paradas cívicas e
comemorações que afirmasse o poder da nação (Fig.4-5) (Agache, 1930: 161).
Para criar essa praça, Agache propôs um grande aterro retificando a costa, cujo material viria da prevista demolição do Morro de Santo Antônio. A praça tinha um formato semi-octogonal de aproximadamente 250 por 350 metros e abrigaria os edifícios mais
representativos do país, os quais deveriam ser avistados de longe da baía. O edifício central, um enorme auditório público e centro de convenções, teria uma forma similar à do
Panthéon, com duas torres geométricas de cada lado da fachada principal. Ao lado do auditório estava o Senado à direita, e a Assembléia Nacional à esquerda. Os volumes da Assembléia e do Senado eram ofuscados por enormes fachadas de templos clássicos. Marginando a baía estavam o Palácio de Belas Artes, no lado direito, e o Palácio do Comércio
e da Indústria, no lado esquerdo. Apesar de seus diferentes usos, esses edifícios apresentavam formas similares, já que eram, sobretudo, destinados a completar a composição. A
influência do Plano do Centro Cívico de Chicago de Daniel Burham é muito evidente e
pode ser vista em muitos pontos do conjunto (Burnham, Bennett, 1993: 109, 120-2;
Hall, 1996: 177-83).
O caráter austero, o classicismo despido, a ausência de detalhes enfatizavam a força
e o poder do regime. Os últimos andares desses edifícios – cujo gabarito atingia cerca de
dez andares – formavam um grande e pesado coroamento pontuado por pequenas, mas
profundas aberturas, que unificava os volumes. Pares de colunas colossais sem capitéis suportavam esse coroamento e criavam um jogo dramático de claro e escuro, na medida em
que as fachadas se encontravam recuadas nas sombras. A repetição e a uniformidade des102
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Figuras 4 e 5 – Plano Agache, Entrada do Brasil (detalhe). Fonte: Agache, Cidade, pp. 210
e 211.
ses edifícios e de seus motivos arquitetônicos contribuíam para gerar unidade na praça.
Os edifícios não possuíam nenhuma individualidade, e todos os seus detalhes estavam subordinados à lógica da praça. As plantas dos edifícios eram acadêmicas e também estavam
subordinadas às formas ditadas pela praça, na medida em que as fachadas eram claramente adicionadas aos edifícios, sem se adequar à sua lógica interna.
A superfície da praça era elevada um metro e meio do resto do conjunto. Nessa plataforma há regimentos compactos de soldados executando uma coreografia que parece estar relacionada com os elementos arquitetônicos. O conjunto possui uma forte teatralidade e uma formalidade que contrastariam com as agitadas ruas comerciais próximas. O
motivo para uma vasta praça em frente ao mar, cercada por edifícios uniformes, tem seus
antecedentes na cultura luso-brasileira, como atestam a famosa Praça do Comércio em
Lisboa e o Largo do Paço no Rio de Janeiro, ambos do século XVIII.
De acordo com Agache, essa entrada monumental seria um espaço de recepção para pessoas importantes que chegassem ao Brasil, um majestoso espaço para mostrar a importância dessa nova nação: “Nesse lugar, serão feitas paradas; autoridades irão receber
eminentes personalidades chegando pelo mar, por navio ou por aeroplano” (Agache,
1930: 161). Essa “atrativa e imponente fachada marítima” iria simbolizar os valores e as
qualidades a serem admirados, como equilíbrio, harmonia, moral e organização.6 Havia
uma crença de que a criação de conjuntos urbanísticos poderia subordinar os indivíduos
ao poder nacional, ao interesse geral de uma sociedade moderna e organizada. O papel do
urbanista seria o de ajudar a concretizar essa imagem, criar um vocabulário para expressar essa ordem e fazer esses valores aparentes. Como os seus compatriotas da época pósrevolucionária, Agache firmemente acreditava que espaços e edifícios públicos ajudariam
a moldar uma vida cívica e um novo tipo de cidadão.
As fachadas austeras e o marchar disciplinado dos soldados, entretanto, parecem antecipar eventos trágicos: o autoritarismo que iria se abater sobre a Europa, e também sobre
o Brasil alguns anos mais tarde. Agache e seus colegas da SFU, entretanto, não tinham inclinações totalitárias. De acordo com David Underwood, os conjuntos monumentais de
Agache refletem seus interesses pela sociologia, particularmente as teorias de Durkheim
(Underwood, 1991: 151). Durkheim enfatizava a disciplina e o patriotismo como valores
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6 “A mais bella cidade do
mundo: O que será o Rio de
amanhã”, O Paiz, 11 Novembro 1928, p.3.
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essenciais para a formação de uma consciência coletiva. Ordem militar, moralidade e solidariedade social formavam a base para a criação de cidadãos e massas disciplinadas. Ao elevar a praça, Agache criou uma plataforma, um palco que representaria um corpo de doutrina social para a formação do Brasil moderno. Essa praça, que Agache eventualmente
chamava de “posto de commando”, seria para que os brasileiros voltassem seus olhares e se
instruíssem sobre a modernidade, o lugar que serviria de exemplo para todo o país. Ali os
brasileiros não poderiam fazer carnavais, batuques ou festas populares e espontâneas. Os
novos ideais de urbanidade e civilidade viriam do exterior – conforme a forma da praça sugere –, e a partir daí, seriam transmitidos para o restante do país. Curiosamente, a praça,
na medida em que se voltaria para o mar em busca de novas idéias e costumes, daria as costas às massas que viviam nos morros. Como na remodelação da administração de Passos,
essa praça iria funcionar como uma vitrine para mostrar aos estrangeiros que o Brasil era
uma nação organizada e moderna. Dessa praça, duas avenidas diagonais partiam: uma em
direção á Praça do Castello e outra em direção à Praça da Bandeira. As mesmas características majestosas estavam presentes nos Jardins do Calabouço (Agache, 1930: 162, 208).
A PRAÇA DO CASTELLO E A HARMONIA DOS
ARRANHA-CÉUS
Segundo o plano de Agache, a Praça do Castello iria ocupar o vazio deixado pelo arrasamento do Morro do Castelo e seria cortada por três avenidas, uma delas proveniente
da Entrada do Brasil, a Avenida Santos Dumont, resultando em um conjunto de formato hexagonal. Cada um dos seis quarteirões seria ocupado por um enorme edifício apresentando galerias no nível da rua e pátios internos (Fig.6-7). Desses seis edifícios se elevariam dezesseis torres de cem metros para abrigar as sedes de corporações, escritórios de
órgãos públicos e de grandes jornais, hotéis e lojas luxuosas que mostrariam o poder dessas novas forças econômicas do Brasil moderno. Agache enfatizou a necessidade de agrupar esses edifícios para ressaltar o poder dessas novas forças:
Figura 6 – Plano Agache, Praça do Castello (plano). Fonte: Agache, Cidade, pp. 168 e
169.
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Figura 7 – Plano Agache, Praça do Castello (plano). Fonte: Agache, Cidade, pp. 168 e
169.
Em vez de permitir que estes elementos característicos de nossa vida moderna se dispersem aos quatro ventos e percam toda a expressão simbólica, não se poderia, pela reunião (…)
em um conjunto orgânico de edifícios e espaços livres, chegar à criação de grandes centros monumentais, compostos (…), para exprimir os ideais econômicos e sociais da comunidade de
nossa época? (Agache, 1930: 129)
Se, na cidade medieval, a catedral era a suprema expressão da alma de uma comunidade, marcando sua silhueta e concentrando suas aspirações artísticas e religiosas, aqui, os
novos conjuntos de edifícios expressariam as novas forças da era moderna. Para um arquiteto como Agache, preocupado não apenas com os aspectos funcionais de uma cidade mas
também com os formais, a solução para o problema artístico da cidade residia na construção de conjuntos arquitetônicos que melhor representassem as aspirações de uma sociedade moderna. Agache promoveu o agrupamento de edifícios como uma forma de
criar um cenário:
[Os edifícios], se forem bem estudados, permitindo entrarem no quadro do conjunto, contribuirão para a formação do decoro geral; a sua aparência, o seu bloco, os fundos de perspectiva
serão outros tantos elementos que contribuirão ao embelezamento do organismo urbano e à expressão do gênio cívico. Portanto, é indispensável que o urbanista ocupe-se não apenas da disposição dos edifícios em plano, mas imagine igualmente o seu volume. (Agache, 1930: 121)
Em outubro de 1928, respondendo a uma enquete de O Paiz sobre a adequação de
arranha-céus na paisagem do Rio, Agache afirmou:
Eu não sou um inimigo dos arranha-céus, se […] ele for bem construído e colocado judiciosamente no bairro que lhe compete. A melhor prova está na nova planta que levantei para os terrenos do Castello, onde reservei lugar para um certo numero delles. Estes estão refletidamente dispostos de maneira a produzir um conjunto decorativo.7
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7 “A Remodelação do
Rio…”, p.1; “A mais bella cidade”, p.1.
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8 Exceto pelo projeto do
Leblon e pelas descrições
sumárias de que edifícios altos estariam dispostos ao
longo das principais avenidas em direção aos subúrbios e que as vilas para as elites estariam nos aprazíveis
vales da Zona Sul, não havia
qualquer indicação sobre a
localização desses bairros
na estrutura urbana.
9 “A remodelação da cidade…”, p.3.
10 “A mais bella cidade”,
p.3. Essa reportagem mostra já as principais linhas do
plano. Cortez acusou Agache de ter copiado em sua
Entrada do Brasil uma solução feita por ele e Bruhns
em 1921 para a mesma região. Este projeto, publicado em Der Städtebau em
1928, mostra uma solução
similar de três grandes boulevards convergindo para
uma praça aberta rente ao
mar (Cortez, 1928: 101-3).
Sobre o debate, ver: “O plágio no urbanismo do Sr.
Agache”; “Como se defende
o Sr. Agache…”; “A Porta
do Brasil…”. Sou grato a
Margareth Silva Pereira por
gentilmente me conceder
cópias desse material.
11 Agache, que definia a si
próprio como um catalisador procurando integrar muitas propostas em um todo,
alegou que encontrou uma
solução similar, e que acusálo de ter cometido plágio seria como acusar um médico
por ter prescrito o mesmo
remédio, sendo que a diferença está na dosagem recomendada. No prefácio da
versão francesa do seu plano, ele listou todos os trabalhos consultados. “Como se
defende”, p.1.
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Para o urbanista francês, a organização de grandes complexos arquitetônicos era a
chave para se conseguir uma cidade perfeita. Na sua visão, os menores detalhes de um edifício deveriam estar submetidos ao todo, da mesma forma como os indivíduos deveriam
estar submetidos ao todo, ao interesse geral da sociedade, como no ideal durkheiniano.
Como a Entrada do Brasil, a Praça do Castello deveria transformar massas de indisciplinados e preguiçosos em trabalhadores ativos, disciplinados e eficientes (Agache, 1930,
p.121).
Apesar de a construção da Praça do Castello e da Entrada do Brasil não implicarem
grandes demolições do tecido histórico, visto que o Morro do Castelo já se encontrava arrasado e a área para a Entrada do Brasil seria conseguida por meio de aterro, o plano implicaria grandes destruições no tecido urbano da área central, particularmente no setor
bancário. Agache propôs ruas para pedestres e edifícios de doze andares ocupando o limite dos lotes e deixando pátios internos livres. Essas massas edificadas seriam o fruto da incorporação dos lotes antigos em unidades maiores em comum acordo com os antigos proprietários e os novos empreendedores, e seguiriam os modernos padrões pensados para a
Praça do Castello, com lojas e arcadas no nível da rua e áreas de estacionamento no subsolo. Esses padrões provaram ser muito influentes para a remodelação das cidades brasileiras durante o Estado Novo, notadamente Recife e Porto Alegre.
Apesar de a atenção de Agache estar voltada para o centro da cidade, ele propôs a
criação de um distrito industrial, parques e áreas residenciais. Redesenhou completamente a costa norte, aterrando mangues, canalizando riachos e retificando a costa para criar
uma moderna zona industrial junto à área portuária, com todas as facilidades modernas:
docas, maquinaria, estaleiros, armazéns. (Agache, 1930: 180-4). Os espaços livres também fizeram parte da estratégia de Agache, já que para ele a vida moderna era uma vida
ao ar livre (Agache, 1930: 129). O urbanista francês propôs um sistema de parques espalhados pelos vales da cidade, conectados por vias-parque (parkways) que os tornaria acessíveis de qualquer parte da cidade. Em relação aos bairros residenciais, Agache optou por
uma expansão tentacular e comedida pelos vales, deixando várias áreas livres dentro dos
limites da mancha urbana. Propôs diferentes tipos de bairros residenciais compostos por
vilas isoladas, edifícios de porte médio e alto. Não se pode dizer que a habitação estava
entre as prioridades de Agache para o Rio de Janeiro, já que existiam poucas indicações
precisas sobre a forma e a construção desses novos bairros.8
AGACHE E AS DISPUTAS LOCAIS
O clima positivo da recepção de Agache não durou muito. Após se estabelecer na cidade no início de 1928, Agache começou a enfrentar resistências. A prefeitura não procurou atrair profissionais que contribuíssem para a discussão das diretrizes do plano.9 Por
diversas vezes, a Câmara atrasou o pagamento dos honorários de Agache argumentando
falta de resultados.
Quando Agache apresentou as primeiras idéias do plano em novembro de 1928, foi
prontamente acusado de plágio pelos brasileiros José Cortez e Angelo Bruhns, dando origem a um desgastante debate que se prolongou por alguns meses nos jornais locais.10 De
fato, a proposta de Agache era bastante similar à de Bruhns e Cortez, mas pode-se argumentar que essas soluções pertenciam ao vocabulário comum do urbanismo ligado a
Beaux-Arts.11 Esta acusação de plagiarismo fez renascer um certo nacionalismo e um novo
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debate sobre a capacidade de Agache de levar o plano a termo, assim como ao aumento
de críticas em relação aos altos custos do plano e da falta de resultados concretos.12 O debate também envolveu questões políticas, já que atacar Agache era um forma de criticar
a municipalidade. Muitas vezes, o próprio prefeito teve de defender Agache (Stuckenbruck, 1996: 103).13
Apesar de a maioria dessas críticas terem sido motivadas por disputas profissionais
ou por contendas políticas, elas também se dirigiram ao plano em si e aos aspectos culturais da empreitada como um todo. Como já citado por Margareth Pereira, o engenheiro
Costa Moreira criticou o plano de Agache em termos técnicos e financeiros, particularmente a Entrada do Brasil e os muitos túneis propostos. Ele também criticou os desenhos
de Agache à vol d’oiseau e sua incapacidade de apreender a complexa natureza do Rio e
de integrar os aspectos de uma cultura americana. Segundo Costa Moreira, Agache sentia-se “tão deslocado e até certo ponto acaçapado diante de nossa topografia e esplendente natureza, sendo-lhe necessário de quando em vez ir até Paris, para ouvir os mestres de
lá...”.14 Argumentando que existia uma “diferença fundamental entre a cidade européia e
a cidade americana”, um jornalista local criticou Agache pela sua inflexível abordagem européia da realidade local:
Não é seguindo o modelo das famosas cidades de velhas civilizações que nós vamos construir uma cidade que represente nosso espírito americano…. Não podemos esquecer que os padrões
de valores a que teremos de submeter o ritmo do nosso progresso não os encontraremos na Europa,
mas na exuberância dinâmica da vida norte-americana. New York e Chicago, com os seus arranha-céus ciclópicos, encerram inspirações mais adequadas às necessidades do espírito do Brasil novo do que as elegantes e delicadas linhas da arquitetura parisiense.15
Além da falta de incorporação dos temas locais no plano, essas críticas encerram preocupações culturais mais amplas em relação ao projeto de modernidade que estava sendo
implantado. Segundo Pereira, para muitos, os urbanistas de São Paulo estariam certos ao
observarem os exemplos das cidades norte-americanas, liberando-se desta camisa-de-força e propondo soluções mais realistas para seus problemas. Provavelmente tocado por essas críticas, Agache viajou aos Estados Unidos para observar ele próprio a verticalização
das cidades norte-americanas e a possível existência de um urbanismo apropriado ao continente americano (Pereira, 1996: 1197; Pereira, 2002: 103).
O ano de 1929 foi ainda mais difícil para Agache, já que as provocações e os ataques
continuavam e ele era constantemente chamado para mostrar seu trabalho.16 Alguns reclamavam que só tinham conhecimento do plano por meio de artigos publicados na França.17 Em outubro, o prefeito pediu fundos ao Conselho Municipal para pagar os honorários, o que foi aprovado após relutantes questionamentos. Em agosto de 1930, Agache
apresentou uma maquete de seu plano, de novo duramente criticada, e foi acusado de ser
pitoresco e de não levar em conta as reais potencialidades e problemas da cidade. Logo
após, ele deixou o Brasil. Em outubro, ocorre a reviravolta política provocada pela ascensão de Vargas. No fim daquele mês, ele enviou de Paris o plano final.
Agache sofreu com uma ferrenha oposição e com a falta de recursos. Desde o início,
seu plano não criou um consenso. Ele também não teve habilidade para entender a complexidade da sociedade brasileira. Além das rivalidades profissionais e políticas, teve de enfrentar uma sociedade em um processo de afirmação, que não era mais uma passiva receptora de imagens e idéias importadas.
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12 “As declarações do Sr.
Agache”, p.1.
13 “A remodelação da cidade”, p.3. Ver também a crítica do ex-prefeito Carlos
Sampaio (Sampaio, 1929:
30, 54).
14 Revista do Clube de Engenharia, n.32, 1930. Citado por Pereira, (1996:
1197). Na sua crítica, Costa
Moreira provou a impossibilidade do aterro da Entrada
do Brasil e condenou a extensão do Canal do Mangue,
futura Avenida Presidente
Vargas.
15 “A americanização…”,
p.1, 7, citado por Pereira
(1996: 1196).
16 Após a ampla reportagem de novembro de 1928,
Agache tornou públicas suas idéias para a área em
1929. “O Rio de Janeiro futuro”, p.1; “O Plano Agache…”, p.1; “O que será a
Avenida da Independência”,
p.1.
17 “A americanização do Rio”,
p.1. Ver os artigos dos assistentes de Agache publicados
na França (De Gröer, 1929; Palanchon, 1929). Ver também
Silva (1996: 406).
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UMA CIDADE EFICIENTE E BELA
18 Várias partes do Plano Agache foram publicadas na Revista da Directoria de Engenharia,
entre 1933 e 1934.
Os elementos clássicos, tão proeminentes no Plano Agache, obscurecem o complexo processo pelo qual o plano foi feito. O plano incorporou uma gama variada de tópicos, desde o planejamento regional até detalhes arquitetônicos, incluindo também, transportes, zoneamento, planejamento, desenho urbano e códigos de construção. O plano
era tão abrangente que, quando publicado em francês dois anos depois, Agache retirou
do título a menção ao Rio de Janeiro, certamente como uma tentativa de conferir universalidade às suas idéias (Agache, 1932).18
O legado do Plano Agache pode ser encontrado em sua metodologia e em suas formas. Por um lado, ele proveu os urbanistas brasileiros com um método de abordagem de
planejamento de cidades e uma nova maneira de administrá-las. O Plano Agache foi usado por décadas como um trabalho de referência para o Rio de Janeiro. Agache aproximou-se do Rio como um cientista, dissecando a estrutura da cidade por meio de um amplo e metódico estudo. Por outro lado, a imagem dos maciços edifícios ocupando todo o
lote com galerias no nível da rua provaram ser motivos influentes para as outras cidades
brasileiras.
A crença na habilidade do arquiteto, no poder da tecnologia, e a busca de ideais utópicos estavam fortemente presentes na obra de Agache no Rio. Agache acreditava que a
arquitetura poderia dar forma à cidade. Apesar da inclusão de um arcabouço sociológico
em sua formação, Agache nunca deixou de ser um arquiteto, e ele firmemente acreditava
que o seu ofício poderia transformar a vida urbana. A abordagem Beaux-Arts, com sua
coerência e seus eixos, organiza os aspectos formais do plano. Segundo Agache, a beleza
de uma cidade poderia ser conseguida por meio da construção de conjuntos de edifícios
classicizantes. Como legítimo representante da tradição clássica francesa, Agache empregou monumentais composições arquitetônicas para definir espaços urbanos e criar a cidade moderna. Desenho urbano e arquitetura estavam unificados em uma estável e coerente imagem de cidade, livre de contradições e desordem. Além disso, procurou trazer
unidade e coerência para a cidade.
Agache enfatizava a tridimensionalidade dos volumes, massas contínuas, texturas,
perspectivas, uma concepção de cidade enraizada no século XIX. Essa abordagem levou a
alguns problemas no plano. Procurando adaptar as formas de seu vocabulário classicista
às condições locais, Agache tentou, na maioria das vezes sem sucesso, comprimir suas formas ordenadas, geométricas e clássicas na topografia irregular, mostrando uma falta de
sensibilidade ao sítio, aos padrões urbanos locais. Procurava domar a natureza teimosa do
Rio de Janeiro e dar forma àquilo que seria amórfico e incivilizado. Ao insistir em uma
composição unificada para a cidade, Agache não admitiu a adaptação e a flexibilidade requeridas por qualquer estrutura urbana.
A tecnologia foi também um elemento essencial na definição da forma da cidade.
Agache insere o Rio de Janeiro em uma extensa rede de comunicação. Um sistema de circulação motorizada estruturou o plano, apesar de nos parecer que a excessiva concentração do tráfego criada pelas muitas étoiles ou rótulas iria trazer muitos problemas para a cidade. No entanto, é necessário lembrar que esse elemento tecnológico é trabalhado de
forma a se inserir na sua visão arquitetônica. A transformação da rua em uma via de trânsito rápido para veículos motorizados preocupou não apenas os urbanistas, mas também
muitos intelectuais dedicados ao estudo das cidades. Agache procurou manter a rua como um elemento da experiência urbana. Pode-se afirmar que ele procurou resolver o con108
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flito existente entre a mobilidade e a permanência. Para conseguir espaços estáveis, vivos
e de qualidade na cidade moderna, era preciso prover um senso de permanência dado por
um tecido urbano contínuo, ao mesmo tempo assegurando uma rápida mobilidade. Ele
também procurava trazer fluxo de pessoas, automóveis e trens para a cidade. Essa abordagem levou a uma intricada combinação de fluxos e paradas. O fluxo deve ser detido em
alguns pontos em que há vistas. Os edifícios são entendidos como simples massas sem detalhes e são definidos apenas no diálogo com os outros. Foram pensados também para ser
vistos em movimento de um automóvel, avião ou navio.
O plano de Agache também expressa um longo conflito entre a dimensão artística
e cultural (beleza, permanência, representação) e as forças modernas (desenvolvimento,
modernização, tecnologia), tão agudo no início do século. Em uma metrópole emergente como o Rio, Agache se esforçou para conciliar sua visão artística e arquitetônica com
as necessidades práticas e técnicas da sociedade moderna, procurando manter unidos
dois mundos que estavam se distanciando. Como afirmou na entrevista citada anteriormente, ele não era contra arranha-céus, esses majestosos símbolos das forças modernas,
desde que estivessem integrados em conjuntos harmônicos. As forças da modernidade
precisavam ser domesticadas. Ele procurava conciliar o mundo tecnológico e racional
com a sua visão artística e pessoal de arquiteto que desejava comunicar-se com sua cultura, valores e experiência histórica. Como Otto Wagner em Viena, Agache insistia em
mostrar que o planejamento do mundo moderno ainda poderia ser tarefa do arquiteto
(Moravánszky, 1993: 201).
O urbanismo de Agache, assim como o de seu colega Le Corbusier, tinha uma intensa dimensão utópica. Como apontou Françoise Choay, o gênero utópico foi, junto
com cultura tratadística, o elemento mais importante na formação do urbanismo moderno (Choay, 1997: 202-12, 243-7). Apesar de estarem harmonicamente inter-relacionadas
as partes da cidade, o plano do Rio de Janeiro revela-se irreal frente à realidade concreta.
Não há como vislumbrar as formas de implementação dessa utopia. Agache acreditava
que poderia resolver problemas sociais complexos simplesmente identificando, propondo
soluções e impondo-as por meio de códigos. Quando sugeriu que os segmentos sociais
mais pobres, que moravam nas favelas, poderiam se mudar para as cidades-jardim que ele
propunha na periferia, não compreendeu as peculiaridades de uma sociedade com brutais
desigualdades sociais. Agache procurou criar espaços para as massas de cidadãos, mas as
massas ainda não existiam no Brasil: ainda tinham de ser criadas. Se o urbanismo emergiu na Europa no bojo de um conjunto de reformas sociais, no Brasil ele chegou antes da
própria sociedade moderna.
Essa crença tripartite no papel da arquitetura, da tecnologia e da utopia na definição da cidade pode ser encontrada na obra de Tony Garnier, que como Hénard, foi um
substrato comum para Le Corbusier, Agache e seus colegas da SFU. Apesar de ocupar
uma posição periférica no grupo da SFU, a Cité Industrielle de Garnier consegue provar
que esses três elementos estavam presentes na gênese do urbanismo francês do início do
século XX.
Agache veio de um determinado contexto cultural e profissional, com suas próprias
idéias, convenções e práticas, e teve de negociar com um contexto local. Aquele delicado
compromisso entre elementos europeus e árabes promovido por Henri Prost no Marrocos não foi conseguido no Brasil. Agache procurou criar uma versão de Paris nos trópicos
(Fig.8). Apesar de os edifícios da Praça do Castello serem reflexos dos arranha-céus norte-americanos, que Agache visitou durante sua estada no Brasil, eles foram filtrados pelas
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Figura 8 – Plano Agache, Esplanada do Castello (perspectiva). Fonte: Agache, Cidade,
p. 177.
lentes parisienses do arquiteto. Nas suas perspectivas, até mesmo o intenso céu azul do
Rio se tornou cinzento como o céu do norte da França. É difícil imaginar a irreverência
e a informalidade brasileira nesses espaços. Mas ele não pode ser culpado por isso, já que
seus clientes brasileiros, querendo esquecer as diferenças entre o Rio de Janeiro e Paris,
também não encorajaram tal compromisso. Esta visão européia de vida urbana civilizada
atraiu aqueles setores da elite brasileira que aspiravam uma ambiência européia.
***
Logo após a partida de Agache, o Brasil entrou em uma era de grandes transformações políticas e sociais. Se a década de 1920 assistiu a introdução e a discussão do urbanismo no Brasil, a década de 1930 iria criar um ambiente mais propício à concretização
dessas idéias: as principais municipalidades incorporavam urbanistas, e uma rede mais diversa e extensa de instituições passava a promover a causa. O programa do Estado Novo,
baseado na industrialização, nas reformas sociais e na forte participação estatal na vida pública, aguçou as expectativas entre os urbanistas. O urbanismo foi visto como uma parte
inerente desse projeto, já que a criação de um novo homem brasileiro passava também pela construção de uma nova cidade.
Durante os anos 1930 e 1940, o país sediou um amplo debate urbanístico, com um
impressionante número de publicações e planos. O plano do Rio e as idéias de Agache foram bastante influentes neste debate. Uma nova geração de especialistas passou a atuar a
partir do início da década de 1930. Esta geração incluiu os assistentes de Agache no seu
plano, como Arnaldo Gladosch e Affonso Eduardo Reidy, ou jovens arquitetos provavelmente incentivados a seguir carreira em urbanismo pelo contato com Agache no Rio, co110
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mo Attilio Corrêa Lima e Nestor de Figueiredo. Com a exceção de Reidy, que após o contato com Le Corbusier enveredou por outros caminhos urbanísticos, estes profissionais levaram idéias de Agache para outras cidades onde trabalhariam. Figueiredo e Gladosch tiveram participação fundamental na transformação dos centros de cidades como Recife e
Porto Alegre (Moreira, 2004). As novas avenidas fazem claras referências a padrões construtivos adotados por Agache no Bairro do Castelo.
Com a Revolução de 1930 e a conseqüente deposição do Prefeito Prado Junior, o
futuro do Plano Agache tornou-se incerto. O novo prefeito, Adolfo Bergamini, criou uma
comissão para decidir sobre o plano, que aprovou a maior parte das propostas de Agache,
incluindo aquelas para o sistema viário e para o Bairro do Castelo (Godoy, 1935: 325-8;
Reis, 1977: 101-2; Albuquerque Filho, 1959: 41).19 No entanto, Bergamini ficou apenas
um ano no poder, e o novo Prefeito, Pedro Ernesto, que não tinha urbanismo como prioridade, arquivou o plano em 1934.20
O destino do plano apenas mudou em novembro de 1937, quando Vargas conduziu Henrique Dodsworth ao cargo de prefeito. Dodsworth empreendeu uma completa reorganização administrativa e restabeleceu a Comissão do Plano da Cidade, que tinha
como objetivo “elaborar uma plano geral para a cidade, estudar os códigos de zoneamento (...) sincronizar todos as obras públicas em torno de um objetivo claro, organizando
um plano de longo termo”.21 O coração desta Comissão era o Serviço Técnico, uma agência operacional dotada de liberdade e agilidade, chefiada por Edison Passos.
O Serviço Técnico ficou responsável por colocar em prática o Plano de Extensão
e Transformação da Cidade, e seguiu os direcionamentos de Agache, embora seu nome
não fosse mais citado. O plano consistia na construção de avenidas e túneis para facilitar
a comunicação na complicada topografia do Rio de Janeiro. Na área central, Dodsworth
e Passos procuraram adaptar as soluções de Agache à nova realidade do Rio de Janeiro do
final dos anos 1930, particularmente após a construção do Aeroporto Santos Dumont –
que comprometia o esquema viário proposto por Agache – e o aumento do número de
automóveis na cidade.22
A proposta consistia em criar um esquema triangular de avenidas ao redor do centro, não muito distante do que Agache tinha proposto anos antes.23 Na área central, dois
grandes espaços mereceram mais atenção: a construção da Avenida Presidente Vargas, um
amplo boulevard que conectaria o centro do Rio à Zona Norte e que envolveu uma extensa demolição do antigo traçado colonial e a conclusão do bairro do Castelo, cuja construção arrastava-se desde o início dos anos 1930. Os padrões urbanísticos utilizados nessas operações foram claramente derivados do Plano Agache.
As cidades são uma arena na qual as intenções e as aspirações de seus habitantes, projetistas, elites culturais e políticas se encontram (Olsen, 1986: 9). Longe de ser uma prática isolada e imparcial, o urbanismo envolve a interseção entre estética, política, tecnologia, sociedade e conhecimento científico. O urbanismo incorpora as visões que as
sociedades têm em relação ao seu futuro e consegue conciliar intricadas visões de mundo.
O Plano Agache é um documento complexo que revela os valores e as concepções de uma
sociedade. O estudo do processo da contratação de Agache, do seu relacionamento com
as elites profissionais da época, e a análise dos espaços por ele produzidos revelam as tensões existentes entre o nacional e o estrangeiro, as lutas dos campos profissionais e as contradições do processo de modernização brasileiro. Os brasileiros acreditavam que um belo plano urbanístico poderia lhes trazer um passaporte para a modernidade, sem que
tivessem que recorrer ao árduo processo de modernização social. Como já havia notado o
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111
19 Godoy, Armando de, “A
urbs e seus problemas” (Rio
de Janeiro: Jornal do Commercio, 1943, p. 325-8);
Reis, José de Oliveira, O Rio
e seus prefeitos (Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade
do Rio de Janeiro, 1977,
p.101-2); Albuquerque Filho,
Luiz, “A obra do urbanista
Agache: sua atuação no Brasil” (Revista do Club de Engenharia, 276, agosto de
1959, p. 41).
20 Reis, 1977, p. 91, 106;
Silva, Lúcia. “O Rio de Janeiro e a reforma urbana da
gestão
de
Dodsworth
(1937-1945)”, Anais do V
Encontro Nacional da ANPUR. Belo Horizonte: ANPUR, 1993, p. 46.
21 “Comissão do Plano da
Cidade, Decreto n. 6022 de
8 Novembro de 1937”, Revista Municipal de Engenharia, janeiro de 1938, p. 22.
22 “Atividades e realizações
da Secretaria Geral de Viação,
Trabalhos e Obras Públicas,
1937-1939”, Revista Municipal
de Engenharia, julho de 1939,
p. 385; “Plano de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro”, Revista Municipal de Engenharia, julho de 1941, p. 224.
23 O programa da Prefeitura
incluía ainda importantes avenidas que conectavam as zonas
Sul e Norte por meio de túneis.
“Plano Diretor”, Revista Municipal de Engenharia, julho de
1943, p.
U R B A N I S M O
Fernando Diniz Moreira é
professor adjunto do Programa de Pós-graduação em
Desenvolvimento Urbano da
Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) e do
Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada (CECI). E-mail: fmoreira@
hotlink.com.br
Artigo recebido em dezembro de 2007 e aprovado para publicação em outubro
de 2008.
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crítico uruguaio Angel Rama, na América Latina, a qualidade do urbanismo, como um
grande condensador de aspirações sociais, foi ainda mais enaltecida:
As cidades, antes de serem concretizadas, existiam como representações simbólicas, por meio
de discursos, imagens, desenhos, perspectivas e blueprints, que expressavam um desejo e um sonho:
aquele de transformar a cidade real em uma cidade ideal (Rama, 1996: 29).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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A
B S T R A C T Urbanism was born in the midst of a social modernization context in
Europe, but in Brazil it found a country which was neither urban nor industrial. Therefore,
European theories that were developed in response to modernization began arriving in Brazil
even before the country’s actual political and social modernization. We can argue that urbanism? as well as factories, networks of transportation and skyscrapers – acquired a patently
symbolic nature. This paper reflects on these topics taking into consideration Alfred Agache’s
plan for Rio de Janeiro (1928-1930), a hallmark in the evolution of Brazilian urbanism. Its
objective was to solve the city’s functional problems, to provide it with an expression of a capital, and to inculcate Rio’s inhabitants with an ideal of modern life, while still considering
functional requirements, such as zoning and traffic. In addition to the analysis of the commissioning of Agache and his relationship with local elites, I will emphasize the great urban spaces designed by him, the Gateway of Brazil and the Castello Square.
KEYWORDS
Building.
114
Urbanism; Rio de Janeiro; Alfred Agache; Modernity; Nation-
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QUATRO HISTÓRIAS
DE TERRAS PERDIDAS
MODERNIZAÇÃO AGRÁRIA E PRIVATIZAÇÃO
DE CAMPOS COMUNS EM MINAS GERAIS
1
1 Este artigo é baseado em
pesquisas apoiadas pelo
CNPq (520792/01-7; 504111/
03-5; 504665/04-9; 553367/
05-6) e Fapemig (SHA 941/
02; SHA 1618/05; 50585.02/07).
EDUARDO MAGALHÃES RIBEIRO
FLÁVIA MARIA GALIZONI
R E S U M O Este artigo analisa histórias de privatização de terras comuns em quatro regiões de Minas Gerais. Ele reúne resultados de várias pesquisas e descreve o uso e as normas costumeiras que regulavam o acesso a terra, as dinâmicas da privatização e as circunstâncias que
influíram para que um mesmo processo revelasse efeitos distintos nessas áreas transformadas.
PA
L AV R A S - C H AV E
ria; agronegócio; Minas Gerais.
Cerrado; agricultura familiar; modernização agrá-
MODERNIZAÇÃO
Na década entre começos dos anos 1970 e 1980, uma mudança técnica uniu a agricultura com a indústria e duplicou os indicadores de produtividade nos cerrados e campos de Minas Gerais. Passados trinta anos, quase todos os especialistas no assunto consideram que a modernização foi definitiva, que os retornos justificaram os investimentos
públicos, e que a condução do processo foi exemplar, ressalvadas as externalidades ambientais, sociais e culturais inevitáveis em processos deste tipo.
Mas as histórias desse sucesso sempre omitem que esses campos eram dominados por
comunidades rurais e governados por normas locais baseadas em antigos direitos costumeiros. Durante décadas foram usados para uma pecuária vasqueira, a coleta e o extrativismo.
Nos anos 1970, os campos foram privatizados, partilhados e se tornaram plantações e pastagens. Poucas comunidades resistiram à privatização; e nos lugares onde ela ocorreu, se
creditava a resistência à personalidade singular de um lavrador, à teimosia de um sindicalista ou, como se dizia na época, à “mentalidade atrasada” de uma comunidade. Os conflitos foram resolvidos de maneiras muito diferentes: uns receberam tutaméias pelo campo
que perderam, outros caíram na vala comum da reforma agrária, outros se eternizaram em
pendências judiciais. Raramente esses direitos costumeiros foram reconhecidos.
A modernização atingiu de forma idêntica – mudança brusca, inovação técnica, privatização da terra e dos recursos – os campos que eram desfrutados em comum por sitiantes tradicionais. Apesar dessas semelhanças de origem, ao longo desses trinta anos, em
cada lugar foi construído um destino diferente.
DESTINOS
Neste artigo é analisada a privatização de terras comuns em quatro regiões de Minas Gerais. Ele reúne pesquisas feitas a oeste, no Alto Paranaíba, municípios de São GoR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
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Q U A T R O
2 Regimes de domínio e uso
de terras foram analisados
por Almeida (2004). “Agricultura familiar consolidada”
é conceito empregado em
programas de desenvolvimento rural que designa
setores com renda elevada;
ver Mattei (2007).
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tardo e Rio Paranaíba (1984/1985, 1997/1998, 2005); ao norte, no Alto-médio São
Francisco, em Januária e Cônego Marinho (1986/1988, 2002, 2006/2007); no Alto Jequitinhonha, a nordeste, em Turmalina, Minas Novas, Veredinha e Leme do Prado
(1992/1993, 2002/2007); nos campos da Mantiqueira, ao sul, município de Bom Repouso (2002). Todas as pesquisas abordaram lavradores identificados com práticas culturais e regimes agrários muito próprios – parte deste conjunto que tem sido denominado populações rurais tradicionais: agricultores excluídos da integração mercantil, que se
definem como sitiantes ou lavradores. A exceção que aqui se verifica é a agricultura familiar consolidada da Mantiqueira.2
As pesquisas que serviram de base para o artigo consistiram em entrevistas, visitas e
permanências às vezes prolongadas nos sítios, incluindo reuniões comunitárias e seminários com agências de mediação. A partir das falas dos sitiantes, fez-se uma releitura dessas
pesquisas para analisar os destinos depois das privatizações. As histórias pessoais fatalmente chegaram ao tema deste artigo. Apesar de cada pesquisa apresentar tema diferente – família, recursos naturais, técnicas produtivas, entre outros –, as trajetórias, as perdas e as
mudanças conduziam naturalmente as entrevistas para a privatização, que se impôs como
recorte para periodizar as histórias locais e balizar as relações entre técnica e natureza.
A matéria prima do artigo veio, então, de três fontes:
a) Pesquisas sobre família que, ao investigar sua relação com a produção, convergiam para a história da comunidade, as normas costumeiras de uso, domínio e herança da terra, e as terras comuns surgiam nas falas como referência a um patrimônio material
perdido;
b) Estudos sobre recursos naturais que, ao interpretar a relação entre abundância e escassez, conduziam à lembrança da abundância alimentar e moral perdida com a modernização dos campos comuns;
c) Pesquisas sobre técnicas e sistemas produtivos que, ao comparar sistemas e intensivos,
desembocavam na reavaliação das perdas no domínio técnico provocadas pela desqualificação dos conhecimentos tradicionais.3
3 “Modernização agrícola”
foi um conceito usado nos
anos 1970/1980 para definir a capitalização do
campo, que substituiu as relações consideradas “atrasadas”; este processo também
foi
denominado
“revolução verde”. Sobre o
uso corrente do termo, ver
Paiva (1979); para uma crítica, ver Graziano da Silva
(1982) e Altieri (1989).
4 Sobre envelhecimento,
consultar Camarano e Abramovay (1998); sobre memória, Bosi (1979).
A maioria dessas pesquisas foi feita com populações rurais envelhecidas. Por isso, a
memória, essa matéria traiçoeira, foi um suporte importante para a construção do artigo, já que o material de campo está mediado pela lógica do narrador. E ainda que transformado pelo pesquisador, conservou os vincos da lembrança, azedado pelas tristezas do
presente e pelos percalços que a vida impôs ao sitiante. Mas veio também de campo
adornado pelos ganhos que a monetarização proporcionou a alguns, pelo prêmio da aposentadoria, pelos confortos materiais oferecidos pela integração ao urbano, pela lembrança da lida excessivamente rústica da juventude e, até mesmo, pela comunidade reconstruída, beneficiada por melhorias em transportes e comunicações. O material foi
cotejado com a literatura de época – relatórios, estudos técnicos – para não se assentar
exclusivamente nas lembranças, que fornecem informações sólidas sobre os costumes,
mas às vezes com base histórica muito frágil.4
Antes da modernização, essas comunidades rurais participavam quase somente de
forma periférica de mercados, geralmente mercados locais. Depois dela, ficaram cindidas pela participação incompleta nos mercados nacionais expandidos com a revolução
verde, e ao mesmo tempo pautaram a produção pelos costumes de um passado íntegro,
que a lembrança construiu para nortear outras tantas ações do presente. Assim, existem
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gradientes diversos de parcialidades: na organização comunitária, na cultura material e
no domínio fundiário, o que leva essas comunidades a reavaliar constantemente seu apego à tradição ou à integração, a reorganizar sempre suas respostas às perdas e a refazer a
escolha de novas esperanças. Por isso, é preciso esclarecer que este artigo não analisa o
desfecho das privatizações, pois essas situações ainda não se resolveram, e o balanço de
três décadas indica apenas que as trajetórias foram diferentes. A luta de algumas dessas
populações para recuperar suas perdas e a posição – ambiental, econômica e política –
precária do agronegócio no Cerrado coloca sempre em questão a noção de desfecho: é
um jogo que ainda está em curso. Esta análise é uma avaliação parcial, e não uma história de vencidos.5
Nas páginas seguintes, o artigo descreve o uso costumeiro dos campos; analisa as
transformações fundiárias e produtivas; expõe as respostas dadas pelas populações rurais
e as circunstâncias que contribuíram para que uma mesma dinâmica – a modernização
estimulada pela ação pública – produzisse resultados distintos nas diferentes regiões.
5 Ver Soares (1981),
Woortmann & Woortmann
(1997) e Almeida (2004) a
respeito de campesinato e
terras comuns.
CAMPOS
Campos são vastas áreas elevadas, de topografia geralmente suave e solos pobres cobertos por gramíneas e arbustos, que ocupam parte do nordeste, norte, oeste e sul de Minas Gerais. Quase sempre estão no domínio do Cerrado, que cobre metade do estado,
com arbustos entremeados por gramíneas (capins-do-campo), conhecidos como campos-sujos e, onde só existe capim, apenas como campos. Existem campos também na transição
para Mata Atlântica (Nordeste), para Caatingas (Norte) e em altas altitudes (Sul). Em cada região e bioma, recebem uma denominação que relaciona vegetação, solo e topografia:
chapadas no Nordeste, gerais nas Caatingas do Norte, campos-cerrados nos cerrados do
Oeste, e simplesmente campos nas montanhas do Sul, e às vezes, campos de maravalha no
Norte, mas sempre chapadões no Oeste, Norte e Nordeste.6
Por décadas, os campos foram usados principalmente para criação. Os sítios – terrenos férteis e embolados de lavradores fracos, situados nas partes baixas do relevo – extremavam com campos usados em comum para uma pecuária de soltas. Às vezes o gado
era reunido, as crias eram ferradas e, novamente solto, o gado se alongava nos campos
sem fim. Era freqüente o sitiante ter apenas vagas notícias do seu gado, que vendia a preço muito baixo ao comprador que teria o trabalho de campear a vaca curraleira esbrabejada e arredia.7
Os campos serviam para soltas no tempo-das-águas do verão. Durante a estiagem do
inverno, geralmente de maio a setembro, o gado pastava nas terras baixas e férteis de cultura – onde eram feitas as lavouras de verão. No Alto Paranaíba, as terras de cultura eram
poucas e esconsas, e se cansavam ao fim de alguns anos de plantio. Eram então empastadas, as mais quentes com capim provisório e as mais frias com capim meloso, para receber
o gado na seca, quando o sitiante se ocupava do rebanho e da produção de polvilho. O
gado e os porcos eram soltos nos campos de araucárias da Mantiqueira durante o verão,
e os lavradores plantavam nas terras baixas, que permaneciam cercadas. Até o dia de São
Pedro, 29 de junho, as colheitas deveriam estar concluídas, já que a soca, o resto da lavoura, seria aberta aos animais de toda a comunidade, enquanto a família beneficiaria
produtos na indústria doméstica – o frio intenso do inverno maltratava criações e queimava pastos nos campos. Nos gerais do São Francisco, cortados por veredas e buritizais,
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6 Sobre Cerrado, consultar
Coimbra (1971), Ferri
(1977) e WWF (1995).
7 Sobre manejos rústicos
de gado, ver Ribeiro (1998).
Q U A T R O
8 Sobre sistemas produtivos, consultar: Ribeiro
(1986), Ribeiro e Galizoni
(2000) e Galizoni (2005).
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o sistema de produção combinava campos, vazantes de veredas e culturas de mata seca:
lavradores soltavam gado nos gerais no tempo das águas; as terras de matas seriam plantadas com lavouras nas chuvas e pastejadas na estação seca; as veredas seriam plantadas na
seca: feijão-da-seca depois da quaresma e feijão-de-santana mais miunças (legumes e verduras) a partir de junho. No Alto Jequitinhonha, as lavouras de verão se espalhavam pelas
culturas, e o tempo da seca era dedicado às farinhadas e à moagem; mas as culturas eram
poucas, e desde o século XIX, os homens costumavam fazer demoradas migrações em direção à “mata” do Mucuri, ou então trabalhariam a jornal nas fazendas, sob as duras condições do macaco, o trabalho em troca de alimentos: meio quilo de feijão-andu ou toucinho por um dia de serviço.8
O gado passava o inverno nas culturas e o verão nos campos. A época exata variava
de um lugar para outro, de um ano para outro, mas entre julho e setembro era costume
queimar metade dos campos antes da primeira chuva, a chuva-dos-brotos, porque, um mês
depois, o pasto rebrotaria. O gado então voltaria aos campos, onde ficaria até a quaresma
ou as fogueiras do ano seguinte, dependendo da região. No fim da seca, emagrecido nos
pastos já estiolados da cultura, o gado consertava o peso quando era solto nos campos requeimados. Sem o fogo bianual, a rebrota seria mais demorada, e o campo cru, coberto
por serrapilheira, ficaria sujeito a incêndios vorazes que consumiriam árvores, atrasariam
a safra de frutas nativas e liquidariam a pastagem natural.
Mas criação era apenas o uso mais visível desses campos. Eles também produziam
água, frutos, plantas medicinais, caça, madeira e lenha. Mesmo os raros campos privados
eram abertos para a coleta, e até geravam rendas, com a extração do látex da mangaba ou
óleo de copaíba, por exemplo.
As terras, os sistemas de produção e os regimes agrários nessas regiões eram marcados por dualidades criadas pela comparação entre campo e cultura. Não que estes fossem os únicos tipos de terras e fontes de recursos: existiam classificações intermediárias,
como cerrado no Oeste, vereda no Norte, terra-mista no Nordeste e meia-cultura no Sul.
Mas campo e cultura eram pares extremos de relevos, solos e vegetação, e por isso balizavam as classificações, pois campos são quentes, altos, pouco férteis e cobertos por vegetação rala; culturas são frias, baixas, férteis, de vegetação alta e densa. Essas dualidades eram
opositivas e complementares, pois a cultura produzia mantimentos, madeira e tabatinga,
e o campo produzia frutos nativos, medicinais e as melhores águas. Unificavam os dois
espaços o manejo da criação de um para outro, a complementaridade sazonal dos usos, e
a casa de morada, sempre posta na barra-do-campo ou na entrada da cultura – o que dá
na mesma – para fugir da umidade excessiva das culturas no tempo das chuvas, além de
ficar próxima das boas nascentes dos campos e ocupar pouco do solo fértil. O lugar das
casas marca a mudança da natureza, do campo para a cultura, e vice-versa.
Assim, campos e culturas se opõem, se completam e organizam a produção e o uso
dos espaços. A serventia produtiva das terras de campos era estacional e exigia pouco do
trabalho produtivo; por isso, o domínio sobre essas áreas quase sempre era muito difuso.
As culturas eram o contrário: escassas, férteis e esconsas, recebiam durante todo o ano o
trabalho que se amiudava na seca; garantiam o essencial do sustento e fundamentavam o
direito sobre a terra. Culturas recebiam zelo ativo, eram cercadas, lavradas, empastadas e,
às vezes, vendidas; elas se associaram à idéia de trabalho contínuo que se acumulava, moldava e conferia marca humana à terra. Já o trabalho estacional e esporádico, a dimensão
exagerada e a fragilidade do domínio davam aos campos outra posição. No Oeste eram
apenas terras-de-fazer-longe, ou seja, de aumentar as lonjuras. Em uma partilha de heran118
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ça no Nordeste tocara a um dos herdeiros cem alqueires de campo, e a outro, uma tacha
de cobre. Até os anos 1970, os fazendeiros do Norte compravam terras de cultura, e os
campos iam junto, com aguadas, barreiros e salinas: ninguém botava preço. Às vezes, em
heranças do Oeste, mais culturas ficavam para irmãos mais ativos e mais campos para irmãos mais lerdos, pois criar gado dava menos trabalho que fazer lavouras. Geralmente, a
terra era partilhada ao longo das águas, mas, na diagonal, a cerca só ia até o fim das culturas; depois disso, era indivisa e aberta, embora sempre fosse predomínio de alguém.
A base da produção era o uso distinto de terras diferentes. Não se concebia um sítio
sem campo e cultura. Os sistemas produtivos seriam extensivos nas águas e intensivos nas
secas. Acabadas as chuvas, trabalho e produção se recolhiam dos chapadões para o terreiro de casa – nas farinhadas, no regadio na vereda, na moeção das varandas-de-engenho, na
chacrinha no córrego, no zelo dos animais presos em piquetes que foram lavouras no tempo das águas. Os estatutos variavam com as estações: domínio comum no verão e privado no inverno, horizontes alargados no verão e restritos aos baixios no inverno, trabalho
extensivo nas chuvas e intensivo no estio. Entre a quaresma e as fogueiras ocorria a passagem de um a outro estatuto, eram os limites para intensificar; a chuva-de-broto reabria o
sistema extensivo por meio da queima do campo em agosto, e essa marca humana imposta à terra sáfara dava a ela condição de partilhar seus frutos com os homens. A complementaridade foi a base desses sistemas de produção.
Embora as condições gerais fossem semelhantes, existiam grandes diferenças pontuais entre regiões. A mesma estrutura que permitia costumes e técnicas, ajustava as lógicas
produtivas às terras, plantas e conhecimentos microlocais. Nada talvez revele isso tão bem
quanto as plantas usadas, nomeadas ou desconhecidas nas diferentes regiões.9
MUDANÇA
Esse cenário se modificou a partir dos anos 1970 com a modernização.
O Cerrado seduzia cientistas desde os estudos de Eugênio Warming, que em meados do século XIX sugerira que fogo e falta de chuvas tornavam aquela vegetação raquítica.
Essa hipótese foi superada nos anos 1940, quando Mário G. Ferri afirmou que o solo condicionava a vegetação; árvores baixas, retorcidas e de casca grossa (“escleromorfisadas”)
provinham da acidez do solo e da escassez de macro-nutrientes (fósforo, nitrogênio e potássio) desaparecidos em compostos insolúveis, não-trocáveis ou lixiviados (“oligotrofismo”). Ferri explicaria que o “gradiente de escleromorfismo” do Cerrado – cerradão, cerrado, campo-sujo e campo-limpo – era determinado pelo “gradiente de oligotrofismo”:
níveis desiguais de fertilidade determinam formações arbóreas diversas.
A partir de então, a pesquisa agronômica procurou disponibilizar macro-nutrientes
– aplicando na terra calcário, fosfato e NPK (nitrogênio, fósforo e potássio) – para variedades adaptadas ao Cerrado. A análise química indicava as deficiências do solo: o técnico
calculava a dosagem corretiva que neutralizava a acidez e permitia às plantas adaptadas absorver os nutrientes.10
O Cerrado – como espaço por excelência do agronegócio – foi inventado por uma
articulação bem-sucedida entre políticas públicas, interesses fundiários e agroindustriais.
Foram diversos os fracassos brasileiros em projetos de ocupação e controle de ambientes:
a colonização européia do nordeste mineiro, o cultivo de seringais na Amazônia, a “marcha para o Oeste” nos anos 1940. Também por conta desses fracassos, foi maior o sucesR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 9 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 7
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9 João Guimarães Rosa resumiu isso na fala do vaqueiro Grivo, que andara pelos
gerais a mando do patrão: “Por onde eu fui, o arrebentacavalo pegou a se chamar
babá e bobó, depois teve o
nome de joão-ti, foi o que teve... Toda árvore, toda planta, demuda de nome quase
que em cada palmo de terra, por aí...” (Rosa, 1969:
108)
10 Ver Goodland (1973),
Ferri (1974) e Shiki (2000);
sobre pesquisa no Cerrado,
ver Ribeiro (1986).
Q U A T R O
11 Consultar Diniz (1981) e
Dulci (1999); sobre projetos
no Cerrado, ver: França
(1984), Ribeiro (1986) e Shiki (2000).
12 Alysson Paulinelli resumiu de forma admirável essa
idéia de fronteira: “A população era muito rarefeita no
Cerrado e vivia quase sempre em torno dos cursos
d’água, levando uma vida
muito precária, típica da
agricultura de subsistência,
só. Plantava uma mandiocazinha, perto da nascente
um arroz, e vivia da exploração do gado, muito irracionalmente. Então era um
vazio, era uma expectativa.”
(Ribeiro, 1986). Ver também
o
documento-base
do
Prodecer: “Há na região
centro-oeste do Brasil uma
extensa área inexplorada,
com cerca de 1.300.000
km2 (...)” (JICA, 1979: 11).
Ver também Ruralminas
(1979) e Campo (1982).
13 Paulo Romano, presidente da CAMPO, citado em Ribeiro (1986).
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so no Cerrado: um caso exemplar de domínio da natureza e concertação de interesses, de
subordinação da terra à lógica do capital e à ação humana. E, desde o início, foi um excelente negócio. As técnicas intensivas vinculavam a agricultura à pesquisa, ao uso de insumos e ao crédito rural. O nível elevado dos investimentos criava barreiras à entrada e
definia o perfil de produtor para os programas de crédito. A agropecuária de grande escala abria milhões de hectares do Brasil central para especulação. Cada novo projeto vinculava a produção à indústria e estimulava o consumo de máquinas, adubos e venenos.
Três anos separam o experimental Programa de Crédito Integral – ensaio de exploração montado pelo Banco de Desenvolvimento e Emater de Minas Gerais em 1971 – do
bem-sucedido Programa de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba (PADAP), coordenado pela Fundação Rural Mineira, Ruralminas, em 1973/74. Veio então a ação federal
ampla com o Programa de Desenvolvimento do Cerrado (Polocentro), em 1975, e depois
a associação entre capital público, privado e multinacional no Programa Cooperativo Nipo-brasileiro para o Desenvolvimento do Cerrado (Prodecer), em 1979; finalmente, a
máquina passou a funcionar por moto-próprio depois dos anos 1980. Mas até essa época houve uma sólida liderança do setor público. A agroburocracia mineira – conduzida
por Alysson Paulinelli, professor da Escola Superior de Agricultura de Lavras, depois secretário mineiro e, finalmente, Ministro da Agricultura – associava os setores público e
privado; planejava, pesquisava e outorgava terras; distribuía iniciativas a empreendedores
e os formava na condução de empresas estatais e privadas. Isso deu aos programas rurais
um caráter original, que inclusive desapareceria da história, e principalmente, da história
do agronegócio, que seria contada depois como resultado exclusivo da ação privada.11
Alguns princípios conformaram as relações desses programas com os sitiantes. Em
primeiro lugar, havia a certeza, quase sempre explícita, que os campos eram áreas vazias
de população, capital e produção. Quando a ocupação costumeira da terra era visível, a
ênfase era dirigida já a sua baixa produtividade. Por isso eram feitas referências à "ocupação do Cerrado" ou à "fronteira agrícola" e, desse ponto de vista, não haveria crescimento, mas sim o nascimento da produtividade e do emprego. Esses programas seriam sempre muito positivos para a região que trocasse o “vazio” do uso tradicional da terra pela
"ocupação" intensiva.12
Outro aspecto essencial era que somente a capitalização intensiva tornaria aquela
agricultura viável. Um documento do IPEA, de 1973, seria um marco nesse sentido; nele, os estudos sobre Cerrado saíam da pesquisa básica e enveredavam pela pura razão econômica: a elevação da produtividade e da escala das operações diluiria os custos adicionais da produção no Cerrado, compensando os diferenciais de rendas gerados por terras
mais férteis.
Um terceiro aspecto, por fim, era a formação. Uma nova agricultura exigia um novo agricultor, e vinha disso a ênfase na educação formal, na capacidade gerencial, no conhecimento agronômico, que eram reputados como essenciais numa lida que seria identificada com empresa rural, agricultor do Sul, gaúcho e japonês.
Assim se formava um círculo vicioso de exclusão, pois modernizar exigia capitalização, que viabilizava produção intensiva, que demandava um novo agricultor, que deveria
ser capitalizado. Seriam justificados desse modo os programas, e a produção se associaria
a adubo, veneno, máquina e, sobretudo, crédito. A agricultura no Cerrado, conforme sintetizou o então presidente da Campo/Prodecer, "já nasce moderna". 13
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PRIVATIZAÇÕES
No Alto Paranaíba, o PADAP – associação considerada muito original entre o setor
público e a Cooperativa Agrícola de Cotia, CAC – foi implantado em 60.000 hectares de
campos. Nas chapadas do Jequitinhonha e gerais do Norte foram plantados eucaliptais,
resultado da parceria entre setor público, agropecuárias e indústria siderúrgica.
Por fim, os campos de Bom Repouso foram ocupados com as técnicas adaptadas ao
Cerrado – que tornaram produtivas todas as terras pobres mas mecanizáveis –, e os campos comuns foram partilhados entre sitiantes e ocupados com lavouras intensivas. Neste
caso, não houve um programa específico, mas os estímulos à inovação técnica, principalmente o crédito subsidiado para compra de equipamentos e insumos, induziram a modernização.
Cada lugar viveu sua história, mas naqueles anos 1970, em cada um deles houve o
belo dia em que chegaram agrimensores, máquinas de esteira, tratores. E um novo manejo floresceu nos campos. O manejo, na verdade, teve efeito transformador semelhante à
própria privatização, porque as técnicas aplicadas aos campos eram, até então, desconhecidas. Privatização de terras e modernização iriam se tornar sinônimos, mas, naquela época, a técnica cumpriu um papel estratégico: modificando o manejo, separou a produção
da terra e do sitiante tradicional; desqualificando sua técnica, a modernização desqualificava também seu domínio sobre a terra.
Assim, a terra dos campos ganhou preço no mercado, e quando se tornou objeto
de cobiça de corretores e grileiros, aqueles documentos antigos – formais de partilhas
manuscritos, recibos de quitação de impostos fundiários do tempo do Império – perderam sentido. A Ruralminas, estatal que executava a política fundiária, não aceitava esses
documentos; titulava reflorestadoras, empreitava rodovias, coordenava programas, destocava campos, assentava migrantes do sul do Brasil, e havia nisso uma lógica perversa,
pois o mesmo órgão redesenhava os domínios e instituía a nova técnica; orientava essas
instâncias que costumam ser públicas, mas nem sempre estatais – cartório, banco, assistência técnica –, a adotar a mesma linguagem de mudança: era um único sujeito para
ações que depois viriam a ser separadas. A modernização chegava aos sitiantes com a face da Ruralminas, mas partilhada numa trindade: a onipotência produtiva da técnica, a
onisciência do mercado, a onipresença do Estado autoritário. Não por acaso, a Igreja Católica foi a única agência que enfrentou, então, o projeto modernizador: ela compreendia esses mistérios.
Depois, como num milagre, os resultados eram imediatos, pois o dinheiro jorrava
dos cofres públicos para mover a biologia e a química que transformavam os campos numa cornucópia: brotavam soja, café e batatas nos campos, eucaliptos e pastagens em chapadas e gerais. A espetacularização da produção – que mudava paisagem, instrumental
técnico, distribuição de terra, renda, produto e vegetação – transformou os campos no
palco que exibia o novo patamar produtivo. Este resultado desqualificava técnica e politicamente o sitiante para reivindicar aquelas terras, e este foi, certamente, o efeito mais
duradouro da modernização sobre ele. A maioria dos sitiantes tradicionais não saberia
manejar a terra como agora deveria ser manejada, não dominava ferramentas ou relações,
não tinha acesso aos recursos financeiros, mecânicos e químicos que estavam e continuariam fora do seu alcance. Construiu-se uma barreira definitiva que separava os que podiam ou não produzir; e agora já não se trata apenas de uma questão de escalas, mas também de finanças, culturas, razões e estilos: campos se transformaram em algo muito
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diferente daquilo que haviam sido. O caminho de volta ficou irremediavelmente bloqueado, o domínio se tornara outro, o campo se tornara outro, e até o sitiante passou a ser
outro, pois não mais se admitia que ele se concebesse como produtor independente, e sim
como aquele que perdera as condições de (re)produção, e que conseqüentemente careceria de emprego ou de ajuda.
Por isso, quando a exploração costumeira e a terra comum se tornaram parte do passado, os programas modernizadores foram sucedidos por programas de apoio ao pequeno produtor. A partir de então, sitiantes tornaram-se objeto de programas públicos, mas
apenas daqueles mitigadores, paliativos ou compensatórios, que instituíram aos poucos o
lugar político do excluído e o suporte que este receberia do Estado. A partilha dos ministérios rurais nos anos 1990, e principalmente sua persistência desde então, confirmam esta atitude que seria definitiva na política agrícola. O sitiante tradicional, embora teime em
reafirmar sua existência, é uma porção residual nos programas de desenvolvimento rural.
A lógica da política agrícola dos anos 1970 não tem nada de acidental, e os programas de
apoio à agricultura familiar são uma notável e, sobretudo, coerente continuidade a esta
lógica de exclusão.
REGISTROS
14
Consultar
Stralen
(1980), Moura (1988), Luz e
Dayrell (2000); sobre o caso
inglês,
ver
Thompson
(1998).
A literatura da época, felizmente, registrou essas privatizações. Umas foram mais
gritantes, como no Alto Jequitinhonha; outras foram silenciadas, como nos gerais, onde
se misturaram conflitos fundiários e trabalhistas. Da maioria, foi registrada apenas a perda de terras e recursos, sorvidos por fazendas e empresas. Em geral, os autores associaram esses casos aos cercamentos de campos ingleses, e por isso também, normalmente
situavam o lavrador que perdia terras já na entrada do mercado de trabalho. Embora este tenha sido efetivamente um destino, principalmente nos anos 1970, essa interpretação ocultou por muito tempo a outra alternativa: a permanência na terra para uma reprodução subordinada.14
Essa saída permaneceu oculta porque era difícil – mesmo para pesquisadores – compreender caminhos que não fossem urbanos, porque não existia direito a terra comum naquele tempo, e porque era quase impossível organizar respostas em tempos de ditadura,
progresso e modernização agrária. Mas elas existiram, e foram de três tipos.
Primeiro, as individuais, daqueles que contavam apenas com a própria coragem. Sitiantes quebraram máquinas de esteira no Norte, sabotaram com areia as bombas injetoras dos tratores da Ruralminas no PADAP. São casos como o do sitiante de Rio Paranaíba, alcunhado Pedro Demanda, que expulsou agrimensores a tiros, jamais se
intimidou com ameaças de polícia e nunca admitiu que fechassem o trecho de chapadão
que dominava. São casos como o de José Ribeiro, de Berilo, no Jequitinhonha, que foi
às pressas para São Paulo juntar dinheiro para fazer cercas e garantir, pela demarcação, o
respeito ao domínio.
Houve, ainda, nos anos 1980, respostas coletivas lideradas principalmente pela Igreja Católica e pelo sindicalismo ligado às Comunidades Eclesiais de Base, CEBs, quando o
fim da ditadura, do crescimento econômico e de postos de trabalhos no campo e na cidade tornaram essa história já quase outra. Então, as pressões para tomada de terras encontravam sitiantes organizados, que enriqueceram a crônica da década com a resistência
– e também com assassinatos, tantos, como os de Eloy Ferreira e Cícero Miranda, no
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Norte. Mas foi assim que surgiu uma ação efetivamente política contra a modernização,
e esse assunto que parecia tão necessário, neutro e técnico nos anos 1970, chegou ao fim
dos 1980 no centro de uma crítica já muito elaborada, que reunia a sazonalidade e a precariedade do emprego rural, passava pela internacionalização dos recursos do Cerrado –
graças à associação Prodecer/Japão – e chegava, por fim, a avaliar a exagerada expropriação de terras que ocorrera. No começo dos anos 1980, a Comissão Pastoral da Terra
(CPT) colocou esse assunto em reuniões e cultos, e o padecimento dos sitiantes do Cerrado foi conhecido, partilhado, celebrado. Isso também não passou em brancas nuvens,
pois sindicalistas, agentes de pastoral, padres e freiras foram ameaçados, presos e surrados
por isso que depois, já civilizadamente, veio a ser conhecido como agronegócio.15
Por fim, a privatização dos campos – tratada até meados dos anos 1980 como tema
exclusivamente fundiário – foi cada vez mais discutida do ponto de vista ecológico. Este
tema, periférico nos anos 1970, ganharia expressão nos campos mineiros graças, principalmente, à insistência do padre Justino Obers, que investiu dez anos de pregação para
convencer lavradores, associações, sindicalistas e agentes de pastoral que o campo ocupado por eucalipto e soja não era apenas uma causa de sitiantes espoliados, que isso dizia
respeito às gentes, às plantas e aos bichos, porque essa tomada de terras colocava em questão a própria vida. Desde então, esses movimentos assumiram o tema, e o Cerrado se
transformou, também, em ambiente e cultura.16
DESTINOS
Os sistemas de produção montados nos campos privatizados eram quase idênticos:
intensivos, homogêneos e, quase sempre, monocultores. Por isso, muitos dos efeitos da
modernização foram semelhantes, embora os lugares fossem diferentes.
Nos sítios, os usos da terra e as pautas de produção se transformaram quando o manejo campo/cultura ficou limitado. Os campos comuns de soltas e coletas quase acabaram;
a produção se concentrou nas culturas; os sítios passaram a usar menos a diversidade de
recursos; os sistemas de lavoura e criação foram readaptados; foram mudando as relações
com a natureza, a terra, a dieta, o trabalho; foram transformadas as fontes de renda, a lógica da herança e da reprodução cultural e produtiva.
No Alto Paranaíba, Mantiqueira e Alto Jequitinhonha, a pecuária se concentrou
nos terrenos de cultura, em grande parte empastados para suportar o gado por todo o
ano. As áreas de lavouras ficaram restritas e perderam fertilidade porque acabara o manejo lavoura/pousio/revegetação/lavoura. Nos gerais do Norte, ao contrário, a tomada
das soltas reduziu o espaço das criações, pois as culturas eram usadas para produzir alimentos na seca. Cresceu a fragmentação dos sítios em todas as regiões por conta da perda da complementaridade dos campos, mas também porque a alternativa de migração
para emprego urbano desapareceria nos anos 1980 e porque, em áreas como o Alto Paranaíba, a possibilidade de emigrar em busca de terras novas se esgotaria com a modernização do Cerrado.
As privatizações, principalmente, banalizaram o consumo de recursos. Passados trinta anos, esses lavradores narram, desalentados, a escala espantosa da destruição nos campos privatizados: atingiu as fruteiras nativas com os correntões de destoca, massacrou bichos do mato, soterrou nascentes de água. Os recursos não apenas minguaram, mas
também perderam força, o vigor subjetivo que a natureza provê aos produtos. Onde ficou
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15 Consultar CPT (1985),
Chaves e outros (1985), e o
da
jornal
Pelejando,
CPT/MG (1984/1990).
16 Consultar Pelejando, acima citado.
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17 Apenas no Norte essa
mobilidade era menor, pois
permaneceria fronteira agrícola até os anos 1980. Sobre emigrações de mineiros, consultar Brito e Souza
(1995); sobre as regiões,
consultar Ribeiro e outros
(2004): Jequitinhonha; França (1985) e Ribeiro (1986):
Alto Paranaíba; Moura
(1978): Sul; Luz e Dayrell
(2000): Norte.
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mais intenso o uso da terra – nos campos do Alto Paranaíba e Mantiqueira –, as águas,
definitivamente envenenadas, são disputadas para beber ou irrigar, e passaram a brotar
conflitos por água onde as precipitações superam 1.800 mm/ano. No Alto Jequitinhonha
e São Francisco, o eucalipto cobriu os campos, e as fontes secavam à medida que a monocultura se expandia.
Até os anos 1960 e 1970, esses sítios eram unidades quase autárquicas: lavoura, criação, caça, pesca e coleta garantiam o consumo; um comércio eventual garantia renda
monetária. As novas circunstâncias redefiniram as relações com os mercados, e sitiantes
precisaram vender alimentos básicos ou produtos da indústria doméstica na vizinhança,
ou se integrar aos laticínios e mercados locais. Com isso, incorporaram definitivamente
estratégias de reprodução que até então eram episódicas, como as migrações temporárias,
a integração aos mercados periféricos, o trabalho a dias. A desqualificação do sistema tradicional de produção impôs a subordinação.
Em algumas dessas regiões, as terras de cultura já apresentavam sinais de esgotamento desde os anos 1970 – como no caso do Alto Jequitinhonha –, mas em outras, as condições de reprodução permaneceriam idênticas por mais alguns anos, como no caso do
Norte. Eram, todas, densamente povoadas e nelas ocorriam emigrações. No Jequitinhonha eram emigrações rurais temporárias e definitivas desde, pelo menos, meados do século XIX. A emigração do Alto Paranaíba era para Goiás, desde os anos 1940; fazia parte do
movimento de ocupação de fronteiras agrícolas do Centro-Oeste que durou até o começo das grandes migrações para as cidades. As emigrações da Mantiqueira para São Paulo
começaram no século XIX e foram acentuadas nos anos 1960.
Mas eram aquelas emigrações corriqueiras em sociedades rurais: saídas regulares de
homens jovens que buscavam terra na fronteira agrícola, e que dos anos 1960 em diante
passaram a “buscar melhora” em fronteiras urbanas. As saídas assegurariam terra para irmãos que permaneceriam herdeiros e sitiantes – mesmo que às vezes presos ao macaco,
como ocorreria no Jequitinhonha; ou às custas do uso desregrado dos gerais, como no
Norte; ou vendendo apenas ocasionalmente nos mercados, como na Mantiqueira e no Alto Paranaíba.17
Num primeiro momento, a privatização dos campos freou as emigrações ao criar
empregos na localidade. Era, até mesmo, um princípio compensatório: o benefício maior
da modernização para os sitiantes seria justamente a ocupação; isso era explícito nos autores mais clarividentes da época, como Ruy Miller Paiva. No Jequitinhonha, essa possibilidade foi considerada uma redenção; no Alto Paranaíba foi louvada como a grande
oportunidade criada pelo PADAP; na Mantiqueira, a partilha dos campos intensificou o
uso da terra e multiplicou as ocupações. Até o carvoejamento criou empregos no Médio
São Francisco, embora criasse também, às centenas, denúncias de trabalho escravo e depois processos trabalhistas, aos milhares. Nesses anos 1970, mas como regra apenas nessa
época, a modernização gerou empregos e,– essa diferença é fundamental – que pagavam
em dinheiro: na cata de raízes das destocas, no corte e carvoejamento de lenha, nas capinas ainda manuais, nos hortos de mudas e, inclusive, na operação de máquinas. O amansamento da terra, a estabilização e intensificação dos cultivos logo provocaram efeito inverso sobre o emprego nas áreas de soja e eucalipto. Depois dos anos 1980, somente a
agricultura familiar intensiva da Mantiqueira permaneceu empregando; isto, combinado
com o estrangulamento produtivo das áreas de cultura, acelerou a perda de emprego e de
população rural no Jequitinhonha, no São Francisco e no Alto Paranaíba – este só até os
anos 1990. Além disso, vieram novos estímulos para a emigração com a própria limita124
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ção da reprodução de sitiantes numa terra que não podia ser expandida, que os tornava
cativos da cultura, que exigiria assalariamento temporário ou emigração sazonal para reproduzir o sistema produtivo. O Censo de 1995 deixaria muito evidente o notável decréscimo de unidades familiares nessas regiões, em comparação com 1985.
Assim, criadas pelas oportunidades ou impostas pelas circunstâncias, novas estratégias surgiram. Cada comunidade, de cada região, usou o que havia à mão para redesenhar
seu destino. O passado foi revisto como uma subtração, e não apenas moral, porque foram aprofundadas as diferenças sociais, produtivas, econômicas.
BALANÇO
Para os sitiantes, as conseqüências das privatizações foram mitigadas por três circunstâncias: i) a criação do Funrural e, depois, a generalização de aposentadorias e pensões rurais; ii) a expansão do mercado de trabalho urbano, que absorveu grande parte da
força de trabalho liberada pelo campo nos anos 1970; iii) as brechas da revolução verde
que permitiram a incorporação de sitiantes como assalariados ou produtores. Essa amenização, porém, foi diferente por região e por período. Dependendo, sobretudo, da forma como a história, as iniciativas locais, os mercados de cada região se desdobraram, a
mitigação foi mais e menos eficaz, integrativa e duradoura. Embora as determinações
mais gerais fossem as mesmas, as circunstâncias locais acabaram sendo completamente
diferentes. Cada campo transformado viveu sua história própria, e enquanto alguns se
tornaram sucessos produtivos, outros se tornariam exemplos nobres do fracasso.
Por isso, nem tudo foi perda. Em cada lugar, os sitiantes construíram alternativas,
embora sua efetividade tenha variado de acordo com os arranjos que puderam fazer e com
as articulações que puderam construir com os mercados. Dependeram, também, do estilo da mediação, da sedimentação da organização local e do dinamismo dos programas públicos. Dependeram, ainda, dos ciclos de auge e crise na história de exploração do campo privatizado: todos eles atravessaram altos e baixos.
O PADAP foi exemplo de programa público até a falência da CAC nos anos 1990,
quando o Programa acabou e o endividamento e o desemprego cresceram. Mas alguns dos
colonos integrados deram a volta por cima, trocaram soja por hortaliças e intensificaram
mais ainda o uso da terra. Em 2005, a demanda por trabalho rural criava em média 1 emprego para cada 7 hectares, durava de março a outubro e pagava 3 salários mínimos/mês
por trabalhador. Nesta época, muitos dos antigos sitiantes do Alto Paranaíba se tornaram
assalariados no chapadão.
Com a partilha dos campos da Mantiqueira, mais a modernização produtiva e a integração, cresceram a produção, a renda e o emprego. Isso permitiu aos sitiantes adquirir
um padrão de consumo e bem-estar de classe média urbana. Pesaram, neste caso, a acumulação prévia de bens, o caráter exclusivamente familiar da agropecuária da região e as
exigências de intensificação do trabalho nas culturas.
Já o reflorestamento no Alto Jequitinhonha e no Médio São Francisco encantilou sitiantes em desertos verdes – em 2005 criavam em média 1 ocupação para 90 hectares
plantados de eucaliptos. Nessas regiões, a modernização não trouxe qualquer benefício direto ou indireto; os eucaliptais empobreceram material e culturalmente os sitiantes do Jequitinhonha. Mas, no São Francisco, a flutuação do mercado de carvão e as dificuldades
de adaptação dos eucaliptais aos gerais levaram várias firmas à falência, permitindo uma
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discreta reconquista de campos, como ocorria em Januária em 2006: retornaram sistemas
de queimada-e-criação, de manejo do gado em gerais e mata-seca, de solta-e-coleta; então,
o antigo Gerais-dos-Cochos foi rebatizado: Gerais-da-Firma, roseanamente.
Mas essas não são apenas histórias diferentes; são, também, narrativas diferentes
sobre a transfiguração das causas sociais e ambientais na média duração da história, pois
os sujeitos assumiram, no decorrer do tempo, atitudes diferentes, ou assumiriam a mesma causa por razões diferentes. Percebe-se, passados já mais de trinta anos, que motivos e
razões são feitos, refeitos e revalorizados, e isso ocorre por perda de patrimônio ou de costumes, pelo ganho da renda ou da integração, pela perda da água ou ganho do emprego.
Em balanço de 2005/2007, que avaliou alguns momentos e lugares, se nota que a modernização perdeu fôlego por conta da sua própria inércia (São Francisco) ou por mudanças
em programas públicos (Jequitinhonha), e que em outros, o dinamismo acentuou a separação entre terra e trabalho (Alto Paranaíba), ou a capitalização prévia permitiu que a agricultura familiar ultrapassasse as barreiras à entrada na modernização tecnológica, abrindo
uma inusitada oportunidade de inclusão (Mantiqueira). Mas esses destinos não foram diferentes apenas nesse momento; em momentos diferentes foram diversos num mesmo lugar. Além disso, têm se unificado muito pouco, a ponto de parecer impossível reuni-los
numa única história.
Percebe-se, assim, que nessas relações entre terras usadas e perdidas há um dinamismo ativo: entre sistemas inovadores ou tradicionais, entre áreas de sitiantes ou de empresas. Os resultados das privatizações, ao longo desses anos, nem sempre foram negativos
para os sitiantes, nem sempre colocaram os expropriados em desvantagem. Na crise agrícola do começo dos anos 1990, os colonos do PADAP se endividaram, enquanto sitiantes
próximos viviam na estável produção de leite nas culturas. Nos anos 1980 e 1990, a expansão dos canaviais do Sudeste proporcionou aos sitiantes do Jequitinhonha uma renda
que nunca seria gerada no sistema que usavam nos campos. A crise da batata na Mantiqueira na segunda metade dos anos 1980 revalorizou os sistemas produtivos diversificados e familiares das terras de cultura. A queda do preço do carvão vegetal na segunda metade dos anos 1990 colocou a diversificada produção geralista em posição relativa mais
confortável que os reflorestamentos do Norte. Essa dinâmica cíclica e histórica determina confrontos e debates sobre desenvolvimento regional, quando redefine o lugar dos atores nesse cenário, às vezes virtual, de paz agrária.
Resultados diferentes modificaram o rural, mas não o sitiante tradicional. Ele persiste, muito embora sua relação com os recursos, a produção e a sociedade envolvida às vezes se modifique. Mais profundamente no caso do Paranaíba e da Mantiqueira, onde o
sucesso da modernização elevou preços de terra; e menos no Jequitinhonha e São Francisco, onde comunidades se organizam para refazer os usos costumeiros do Chapadão.
Não por acaso os benefícios da modernização foram melhor distribuídos entre a população rural onde a privatização partilhou (Mantiqueira) ou concentrou menos (Alto Paranaíba). Nas regiões em que o padrão latifundiário foi imposto às terras que eram comuns (Jequitinhonha e São Francisco), a depauperação dos sitiantes e dos recursos foram
mais acentuados. Por isso, as reivindicações sobre os campos permanecem mais vivas em
alguns lugares do que em outros. Onde foi instituído um latifúndio incapaz de gerar emprego, pôde também se instalar o comunitarismo e renovadas tradições que alimentam o
sentimento da perda. Nesses casos, certamente, um resultado da privatização tem sido a
reconstrução dos campos como lugar, identidade e pertencimento, o que os transforma
em territórios. Depois dos anos 1990 – de reemergências de etnias, revalorização da famí126
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lia, de retorno ao rural mítico –, esses sitiantes se veriam, despudoradamente, como o reverso do projeto modernizador, e quanto maior o insucesso do agronegócio, mais fortes
se tornariam as pressões para assentar outra coisa em seus velhos campos de coleta e solta. Assim, da mesma maneira que a modernização instituiu o Cerrado como assunto, a
privatização o reconstrói diariamente como causa. E daí não vem apenas a tristeza da causa perdida, mas também as novas possibilidades, porque os nichos de agricultura ambientalizada e tradicional são bases para criar, nos escombros da revolução verde, uma agricultura adaptada ao meio e ao clima.
Passados 30 anos, ainda se sente a perda da terra. Plantadas e colhidas tantas safras,
atravessadas tantas crises, o campo privatizado continua a impedir a unificação da produção com a vida, que foram brutalmente separadas nos anos 1970. Mas falta muito ainda
para conhecer as conseqüências desses acontecimentos. Esta é só uma parte, e se percebe
que falta algo, porque esses sitiantes insistem em continuar pensando seus campos como
referência cultural e, às vezes, escolhem lutar para tê-los de volta – como acontece no Norte e no Jequitinhonha. Certamente falta ainda muito para que os campos se emendem de
novo às terras que esses sitiantes conservaram, onde vivem e plantam, de forma que seja
possível a formação de uma cultura renovada.
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Eduardo Magalhães Ribeiro é economista, doutor
e professor associado da
Universidade Federal de Lavras (UFLA), pesquisador do
CNPq.
E-mail: [email protected].
Flávia Maria Galizoni é antropóloga, doutora e professora adjunta da UFVJM.
E-mail: flaviagalizoni@yahoo.
com.br
Artigo recebido em março
de 2008 e aprovado para
publicação em outubro de
2008.
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P E R D I D A S
FRANÇA, M. O Cerrado e a evolução recente da agricultura capitalista – a experiência de
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Os autores agradecem ao Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica e aos Sindicatos de Trabalhadores Rurais do Vale do Jequitinhonha, a Cáritas de Januária, ao Centro de Assessoria Sapucaí, de
Pouso Alegre, aos sitiantes de São Gotardo, Rio Paranaíba e Campos Altos, a CPT/MG. Agradecem
ainda ao professor Sérgio Schneider pelos comentários a uma versão preliminar deste artigo.
A
B S T R A C T This article analyzes the privatization history of common land in four
regions of Minas Gerais, Brazil. Integrating results from various researches, it describes the
128
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F L Á V I A
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costumary land use and productive norms that changed the dominion of these lands, the
dynamics of privatization and the circumstances that influenced the same process to present
distinct effects in these transformed areas.
K E Y W O R D S Cerrado (brazilian steppe); Family agriculture; agri-modernization; agri-business; Minas Gerais.
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129
R ESENHAS
LA FAVELA D’UN SIÈCLE À
L’AUTRE: MYTHES D’ORIGINE,
DISCOURS SCIENTIFIQUES
ET REPRÉSENTATIONS
VIRTUELLES1
Licia Valladares
Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme, Paris,
2006
Michel Marié 2
(tradução de Margareth da Silva Pereira,
professora do PROURB/UFRJ)
Tendo trabalhado como urbanista primeiramente
nos bidonvilles de Argel, na Argélia, e mais tarde em
Valencia, na Venezuela, e em Santiago do Chile, foi
com muito interesse que tomei contato com os primeiros livros de Licia Valladares sobre as favelas do Rio.
Neles reencontrava idéias que eu havia tentado desenvolver naqueles países à época e que, por outro lado,
compartilhava com John Turner.3 Ou seja, como considerar a favela não como um “mal” a ser erradicado,4
mas, ao contrário, a partir de um ponto de vista pragmático, como um fato incontornável no plano tanto
da reflexão quanto da ação?
1 (N.T.) La favela d’un siècle à l’autre retoma temas tratados por Licia
Valladares em A invenção da favela: do mito de origem à favela.com
(FGV, 2005), aprofundando-os, corrigindo-os e lhes dando novo tratamento.
2 Nascido em 1931, Michel Marié tem formação nas áreas de sociologia e filosofia, e em sua vida profissional, conheceu um longo período
de migrações – primeiro na Argélia e, mais tarde, na Venezuela e no Chile – trabalhando como urbanista. De volta à França em 1968, escreveu
seu primeiro livro como sociólogo observando a cena francesa da época com olhos da periferia, enfocando a questão dos imigrantes (Situations migratoires, ou la fonction-miroir. Ed. Galilée, 1976). A partir de então, torna-se igualmente diretor de pesquisas do CNRS e seguem-se,
entre outros: La campagne inventée (com Jean Viard), Actes Sud, 1977;
Les terres et les mots. Une traversée des sciences humaines, Méridiens-Klincksieck, 1989; Les paradoxes de la recherche-action ou le savoir nomade, em Mutations économiques et Urbanisation, La Documentation Française, dez. 1993; La guerre, la colonie, la ville et les
sciences sociales, em Sociologie du Travail, 1° trim. 1995; Aménager
ou ménager le territoire?, em Annales des Ponts et Chaussées, jan.
1996; Ces réseaux qui nous gouvernent (com Michel Gariépy), Ed.
l’Harmattan, 1997; Las huellas hidraulicas en el territorio, la experiencia francesa, conferências no Colegio de San Luis Potosi editadas em
junho de 2004. Recentemente foi convidado da revista Urbanisme para
comentar sua longa e rica trajetória no n. 340, jan-fev, 2005.
De fato, nos anos 1960 estive envolvido muito
diretamente com a experiência de “communities
development”, conduzidas pela Fundação Ford e pelo
padre jesuíta Vekemans nos bairros de emigrantes vindos da zona rural que maciçamente se dirigiam a Santiago.5 Licia, já naquela época e nos seus primeiros livros, tomava suas distâncias em relação à teoria da
marginalidade e à cultura da pobreza. Anos mais tarde,
entrevistado por ela sobre o movimento Economie et
Humanisme6 (no qual eu tomara parte quando das minhas andanças na América Latina) e sobre seu fundador, o frei dominicano Lebret, eu descobriria outro aspecto de sua démarche, a saber, seu interesse pela
maneira como se constroem as idéias, as condições sociais, econômicas e culturais de sua produção.
Como Licia Valladares sublinha desde o início
desta sua nova obra, o saber sobre a miséria e a pobreza, seja na Europa ou no Brasil, não se origina no campo erudito. Enquanto se acredita, a partir de uma visão bastante disseminada da intervenção urbanística,
que o saber se transmite das quatro paredes dos intelectuais e dos especialistas para o mundo dos que “colocam a mão na massa” e, por fim, para o mundo dos
seus habitantes, na abordagem que ela propõe, o saber
se constrói na negociação de uma relação, a partir de
uma “antropologia recíproca” entre moradores, pesquisadores, técnicos e poderes públicos. Como dizia o psicólogo Winnicott, a produção do saber é um fenômeno de natureza essencialmente transicional e
transacional. Nestas condições, o saber não é uma espécie de objeto que se manipula com pinças, como em
um laboratório, mas uma interação, um engajamento
no sentido político do termo e no qual o pesquisador
encontra-se profundamente implicado.
Assim, o que descubro como original e inovador, lendo esta obra, é o quanto as duas abordagens –
ação e reflexão – devem ser concomitantes: por um
lado, o trabalho com as favelas e seus habitantes implicando no retorno permanente ao “campo” e, por
3 Turner havia me entrevistado longamente em 1964, e foi muito citado em La favela d’un siècle à l’autre.
5 A “promoção popular” implantada à época do Presidente Frei; organismo criado no seio do Ministério dos Assuntos Sociais, apoiado por
subsídios da Fundação Ford e de instituições de caridade européias
(Misereor, Caritas). A estratégia à época era essencial. Dela dependia
em grande parte que se tivesse um presidente democrata-cristão (Frei)
ou um presidente socialista (Allende).
4 Desajolando, por exemplo, os moradores para os novos conjuntos
habitacionais produzidos industrialmente nas periferias das cidades, na
Argélia do final dos anos 1950, em plena guerra, quando foram inventadas as ZUP – Zonas de Urbanização Prioritárias.
6 Eu era à época responsável por uma equipe franco-venezuelana que
trabalhava no planejamento de uma região urbana em vias de industrialização (Valência), onde cerca de 60% dos habitantes viviam em favelas. Esta equipe (a CINAM) era um braço da Economie et Humanisme.
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outro lado, o trabalho sobre as representações daqueles que falam dela, a favela (“da sociologia da favela à
sócio-história de seus pensadores”), implicando em
um vai-e-vem permanente entre o “campo”, os discursos e os arquivos.
A favela é uma “invenção” não somente daqueles
que a vivem, mas também daqueles que falam dela.
“Ela é o resultado mais ou menos acumulativo de representações sociais sucessivas, fabricadas pelos atores
sociais que por ela se interessaram, e é constantemente
marcada pelas estratégias de sua própria definição enquanto tal.” E o mérito deste livro, como sublinha Yves
Grafmeyer no seu prefácio, é o de ter sabido passar do
registro já impressionante dos saberes sobre as favelas
para o da produção e das condições de produção destes saberes. O pesquisador é convidado, assim, não
apenas a produzir um resumo dos diferentes saberes
sobre a questão da qual ele trata, mas a dizer, ao mesmo tempo, como se formaram os olhares que a compõem. E aqui, certamente, deve ser levado em consideração o olhar dos atores públicos, dos políticos, das
associações, das ONGs e dos promotores imobiliários,
mas também o dos próprios intelectuais – e, ainda, como estes diferentes olhares se influenciaram uns aos
outros. Eis aqui, a meu ver, a originalidade de um livro
cujo mérito não é apenas o de nos dar uma visão sintética do que se pode dizer, há mais de um século, sobre a favela, mas de tomar suas distâncias do olhar dos
eruditos de hoje, grupo do qual nós mesmos fazemos
parte. Certamente, não é por acaso que a autora se coloca em cena desde as primeiras páginas deste livro,
nos mostrando seu itinerário, as razões pelas quais a favela se tornou seu terreno de estudos e, finalmente, o
lugar de onde fala.
Organizado em bases cronológicas, La favela
d’un siècle à l’autre é um livro composto por três capítulos que correspondem a três grandes etapas da invenção da favela, nos quais são analisados fatos, acontecimentos, e ao mesmo tempo, em que ponto a
autora se empenha em mostrar o quanto a construção
dos sentidos atribuídos a fatos e acontecimentos dependem tanto das narrativas sobre eles quanto da própria referência histórica.
Em um primeiro capítulo (do início do século XX
até os anos 1950), Licia Valladares nos mostra como
nasce a própria idéia de favela como comunidade de
miseráveis, depois como território da pobreza e, por134
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tanto, como fenômeno à parte na cidade.7 À medida
que novos discursos são engendrados (aquele, por
exemplo, do urbanista francês Agache, do médico brasileiro V. T. de Moura, da equipe do ditador Getúlio
Vargas, de Passos Guimarães, diretor do censo geral do
Brasil em 1950, e aquele ligado ao surgimento de um
novo ator, nos anos 1940, a assistente social), Licia
mostra como se implantam certos meios de intervenção – a favela como problema a administrar e controlar – e, por outro lado, como se desenvolvem certos saberes – o início da produção oficial de dados, o
balbuciar metodológico sobre o que seria uma favela e
o que a caracterizaria –, conduzindo, no sentido tanto
de uma visão radical (podendo levar até à decisão de
erradicação) quanto, ao contrário, de uma visão muito
mais diversificada e com nuances, na qual a favela cessa de ser fenômeno à parte na cidade e passa a se impor como realidade a ser “arrumada”.
No segundo capítulo do livro (entre mais ou menos 1950 e 1970), Licia Valladares mostra como, por
meio de todo tipo de influência entrecruzada (Dom
Helder Câmara, o padre dominicano Lebret, e a Escola
de Chicago, por meio do antropólogo Anthony Leeds e
de seus estudantes do Peace Corps), se constitui um verdadeiro campo de pesquisa sobre as favelas do Rio de Janeiro. Escreve a autora: “Os trabalhos deste período são,
certamente, ainda muito ligados às preocupações de políticas públicas, mas adquirem uma autonomia nova pela construção intelectual de seu objeto e pelo desenvolvimento de métodos de investigação específicos”.
Por fim, no terceiro capítulo intitulado “A favela
das ciências sociais”, a autora se refere ao momento
atual, tratando, primeiramente, da escolha da favela
como um dos temas favoritos dos mestrandos e doutorandos em ciências humanas no Brasil, e das múltiplas
razões desta escolha. Aqui, a favela aparece ora como
objeto de interesse em si mesmo (o fascínio da monografia, mas, ao mesmo tempo, a pouca disposição no
meio universitário pelo comparatismo), ora como analisador de questões mais gerais (a favela transformada
em “campo”).
Após analisar as tentativas de conceituação que
estas diferentes teses originaram, seja em torno das
7 Idéia desenvolvida à época por jornalistas, escritores, engenheiros,
médicos, advogados, filantropos, um mundo profissional bastante semelhante ao que encontramos na França em um movimento chamado
Musée Social.
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idéias de pobreza urbana ou de marginalidade social
(Vekemans, Oscar Lewis) ou de temas marxizantes como o de “exército de reserva” e de “superpopulação relativa” (Jose Nun), seja, ainda, em torno das tomadas
de posição sobre o “habitat espontâneo” (John Turner,
“da favela como problema à favela como solução”), Licia Valladares retoma e desenvolve a idéia proposta no
início do livro: a maioria das contribuições universitárias permaneceria tributária das representações do início do século XX e, abstraindo do que poderia trazer de
melhor o desenvolvimento histórico da pesquisa, elas
se fixam com freqüência em estereótipos que aparecem
como dogmas e se reproduzem a cada geração, sem levar muito em conta os saberes, sua evolução ou as
transformações das cidades e de suas favelas. Como explicar, então, a resistência destes dogmas tanto na mídia quanto no interior dos poderes públicos, junto aos
responsáveis políticos, aos promotores, às associações,
às ONGs? E como fica o campo científico nisso tudo?
Por que os cientistas sociais não são os primeiros a
apontar estas visões redutoras? Talvez se pudesse dizer
a respeito dos pesquisadores brasileiros o que Michel
Amiot, falando da sociologia urbana francesa nos anos
1990, dizia dos seus pesquisadores: “Os sociólogos
contra o Estado. Tudo contra!”
Gostaria, agora, de um modo um pouco mais
pessoal discorrer sobre em que aspectos este livro me
tocou profundamente e buscar o porquê. Ainda que
não tenha vivido no Brasil, uma das causas é provavelmente o fato de ter estado presente na América Latina essencialmente durante uma grande parte do segundo capítulo (a transição rumo às ciências sociais) e
ter conhecido, e até mesmo freqüentado, alguns dos
personagens cuja importância o livro sublinha: o padre Lebret, John Turner, o padre Vekemans e Ramon
Venegas, Jose Nun, alguns estudantes do Peace Corps,
entre outros.
Entretanto, há também uma outra razão que me
foi sugerida por Y. Grafmeyer ao sublinhar o quanto a
forma de abordar a questão da favela nesta obra é de fácil transposição a outros campos de estudo e a outros
contextos de exercício das ciências sociais. Para tanto,
partirei de um dos aspectos essenciais da abordagem de
Licia Valladares, sua preocupação permanente sobre a
discussão metodológica. Podemos entender aqui todo
interesse que ela demonstra pelo processo de construção e de desconstrução das categorais mentais, pela
formação do olhar, não somente dos numerosos atores
que ela coloca em cena, mas também dos pesquisadores e, entre eles, o seu próprio (“Da história da favela à
história dos conceitos que a definem”, pg.13).
Para mim, a discussão metodológica é também
importante na medida em que penso que só se tem a
possibilidade de ser um bom pesquisador se tratamos
de temas que nos importam no mais alto grau. Urbanista de profissão, tornei-me antropólogo, e comecei
a fazer pesquisa quando, aos 40 anos, tive uma espécie de vertigem ao constatar que não havia compreendido muita coisa de episódios graves da minha vida
no momento em que os vivia: a guerra na Argélia; os
engajamentos políticos na América Latina para os
quais eu não estava nada preparado; a frontalidade
das intervenções planificadoras dos engenheiros com
os quais eu lidava na França, e que possuíam um
grande poder sobre as ciências humanas. Como então
tomar distância diante de tais condições de engajamento pessoal?8
Em 2001, por ocasião de uma conferência na
EHESS9 que intitulei “O aprendizado do olhar cruzado”, me foi solicitado falar destas implicações e de como construira minhas distâncias em relação ao [meu
próprio] engajamento ao longo da minha vida de pesquisador. Para tratar do tema, me servi então dos meus
próprios trabalhos e mais particularmente de um tema
sobre o qual eu trabalhara vários anos (a história da hidráulica e dos profissionais ligados a essa área no sul da
França),10 que aparentemente não possuía nada em comum com a história da favela. Apontei, então, quatro
tipos de abordagens e, uma das descobertas que eu fa8 Nesse sentido, meu itinerário possui provavelmente alguma coisa
comparável ao de um personagem citado no livro (Carlos Nelson Ferreira dos Santos), pela sua capacidade de se distanciar em relação
aos dogmas e cuja resistência implícita, a autora sugere em uma nota
de pé de página, que certamente deve ser associada ao fato de ele
também ter se tornado antropólogo depois de, durante anos, ter sido
urbanista.
9 (N. T.) A EHESS–Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales/Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais desempenhou, desde o final dos anos 1970, um papel particularmente importante na análise
dos discursos e na desconstrução do idéario e das práticas “coloniais”
e eurocêntricas na França, tendo absorvido em seus quadros antropólogos, cientistas sociais e geógrafos que passaram a estudar o “outro”
segundo uma perspectiva menos apriorística.
10 “De la formation du regard dans les sciences humaines”, no seminário Ruralidades Contemporâneas, 1 de janeiro de 2001. Esta conferência foi reproduzida em espanhol em um livro editado no México por
Michel Marié, Las huellas hidraulicas en el territorio. La experiencia
francesa, com prólogo e tradução de Francisco Pena e Claudia Cirelli
(Collegio de San Luis Potosi, junho 2004, 101 p).
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ria, lendo a obra de Licia Valladares, é que não somente estas abordagens estavam presentes no seu texto, como eram elas a sua própria essência.
A primeira abordagem é a que eu chamava trabalhar o diferencial de sentido que existe entre o discurso
que se escuta e a realidade que se descobre; em outras palavras, se servir da distância que se pode observar entre
dois tipos de realidade para produzir seus questionamentos, aquela que é falada (ou escrita) e aquela que se
percebe como pesquisador no trabalho de campo. Dominando muito mal meu tema no começo da pesquisa, esse gênero de abordagem se impôs rapidamente no
meu caso, à medida que eu descobria que o saber naquela área estava nas mãos dos que projetam e produzem objetos técnicos (engenheiros hidráulicos e agrônomos), e que seus abundantes discursos – e o
daqueles que elaboram suas hagiografias – não conseguiam responder ao que eu buscava, isto é: como as
técnicas agem sobre os territórios e como, inversamente, os territórios agem sobre a produção das técnicas?
Não é de se surpreender que meus primeiros avanços
intelectuais tenham se produzido na zona de esquecimento do saber dos engenheiros.
No caso de Licia Valladares, parece que este tipo
de abordagem foi mais tardio e aparece, historicamente, em um momento no qual as ciências sociais e a própria autora já possuem um importante saber. Mas, me
parece que ela é central e determinante na produção
dos seus principais questionamentos neste livro: se servir do trabalho sobre as representações para completar
o trabalho de campo e, quando se começa a duvidar
das representações dominantes, voltar ao trabalho de
campo.
Uma segunda abordagem era aquela que eu definia como trabalhar na longa duração e mais particularmente sobre os diferenciais das temporalidades. Esta abordagem por meio da longa duração é tão importante
que ela está presente no próprio título da obra: La favela d’un siècle à l’autre.
No meu caso, o uso da longa duração exigia um
trabalho enorme, graças ao qual se podia dispor de algum meio para enfrentar o tempo dominante dos engenheiros e das figuras políticas, isto é, o tempo curto
e médio do planejamento, do projeto, da construção e
da legitimação das obras, reintroduzindo, assim, a dimensão essencial da qual eu falava anteriormente, e
que estava totalmente ausente dos discursos, isto é, a
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retroação do território e dos seus habitantes em relação
às técnicas.
Para Licia Valladares, a longa duração serve não
apenas de método para distanciar-se em relação ao que
ela define como “dogmas”, mas permite ainda observar
uma multiplicidade de tempos sociais e suas interrelações. Como fotógrafo, freqüentemente utilizei a imagem fotográfica para me explicar esta alquimia do cruzamento dos olhares. É trabalhando com os diferenciais
de tempo que se fabrica a sua própria profundidade de
campo. Sem dúvida, seria melhor ainda utilizar a imagem cinematográfica, porque ela introduz uma dinâmica na abordagem. É no travelling, no próprio movimento de trabalho com o tempo, com o entre-tempo
dos diferentes períodos já consagrados pela história,
que as ciências humanas produzem provavelmente o
que elas têm de melhor a dizer.
A terceira abordagem é aquela que chamei de trabalhar sobre e com a diferença “de espaço”. Na minha vida nômade, eu, particularmente, a pratiquei quando
não compreendia o que ocorria em um dado lugar.
Nessas ocasiões, eu trocava então de terreno para analisar como uma experiência que comporta certos pontos de comparação – uma mesma geração, uma mesma
origem cultural – poderia funcionar em um outro lugar e em outro contexto. Desse modo, para poder melhor compreender a hidráulica da região de Provence,
por exemplo, iria observar o que acontecia do outro lado do rio Rhône, e descobria, comparando, o quanto
o Canal de Provence, a despeito de suas origens importadas do mundo colonial, teve que se adaptar a seu novo território e se conformar aos valores locais de organização, o que não fazia parte de seu patrimônio de
origem e que os vizinhos da região do Languedoc tampouco haviam sabido levar em consideração.
Essa maneira de explorar um tema por deslocamentos, a reencontrei permanentemente praticada, e
com muita maestria, por Licia Valladares, que viajou
muito pelo Brasil, Estados Unidos e Europa. Esta
abordagem está, por exemplo, na origem de uma das
passagens provavelmente das mais interessantes deste
livro, em que mostra como a favela serviu de lugar de
convergência entre duas correntes de pensamento: da
Escola de Chicago (em uma época na qual ela era praticamente desconhecia na França) e o movimento fundado na França por volta da segunda guerra mundial
pelo padre Lebret, Economie et Humanisme.
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Por fim, a última forma de abordagem é a que
consiste em trabalhar o diferencial que existe entre o que
a sociedade considera como suas margens e o que a margem diz do centro. Comecei a falar deste gênero de
abordagem, que eu e meus co-autores passamos a chamar “função-espelho”,11 em um dos meus primeiros livros como antropólogo, quando tratamos a questão da
imigração no front da urbanização da região parisiense.
O papel desta “função-espelho”, localizo não somente
em certos personagens tratados na obra de Licia Valladares, como, por exemplo, o arquiteto John Turner
que, questionando o urbanismo e a prancheta, propõe
a favela como resposta popular e eficaz (“a favela como
solução e não mais como problema”); vejo também na
própria maneira de se posicionar de Licia quando,
rompendo com uma visão homogênea sobre a favela,
mostra o quanto sua história é uma espécie de resumo
da história das ciências humanas no Brasil.
PAISAGEM ESTRANGEIRA.
MEMÓRIAS DE UM BAIRRO
JUDEU NO RIO DE JANEIRO
Fania Fridman
Ed. Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2007
Sarah Feldman
Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da USP/ São Carlos e pesquisadora do CNPq
Em seu novo livro – Paisagem estrangeira. Memórias de um bairro judeu no Rio de Janeiro –, Fania Fridman desvela a presença dos judeus na Praça Onze, no
Rio de Janeiro, entre o final do século XIX e os anos de
1940. Numa operação tão minuciosa quanto a que
realiza em Donos do Rio em nome do Rei. Uma história
fundiária da cidade do Rio de Janeiro,1 mostra que, ao
longo de quase meio século, este grupo de imigrantes,
ao mesmo tempo em que se misturou a escravos libertos, a prostitutas e a outros estrangeiros, pôs em evidência suas marcas no território.
11 “Situations migratoires ou la fonction-miroir”, de T. Allal, J.P. Buffard, M. Marié, T. Regazzola, prefácio de Marié Michel, Ed.Galilée,
1976.
1 Publicado em 1999 por Jorge Zahar Editor/Editora Garamond, Rio
de Janeiro.
O que distingue este trabalho da não desprezível
bibliografia sobre imigrantes produzida no e sobre o
Brasil2 é o foco na dimensão urbanística. É em sincronia com os ciclos de intensas e sucessivas transformações, de valorização e de desvalorização simbólica e
econômica do núcleo de origem da capital da República, que a autora situa a chegada, inserção e retirada
dos judeus da Praça Onze e seus arredores. O duplo
movimento – de mistura e de afirmação de identidade – se constrói através da narrativa das formas de organização social, religiosa e política da colônia judaica, amalgamada à narrativa das dinâmicas espaciais,
dos projetos e das intervenções realizadas no centro do
Rio de Janeiro, em geral, e nos arredores da Praça Onze, em particular.
A mistura de grupos culturalmente homogêneos,
a mistura funcional e a mistura de diferentes categorias
profissionais são qualificadas, quantificadas e espacializadas a partir de fontes primárias e secundárias, como
leis, projetos, estatísticas e entrevistas com antigos moradores do bairro, que se constitui no final do século
XIX por judeus de poucos rendimentos. Num contexto em que cerca de um terço da população carioca era
composta por estrangeiros – com a chamada “Pequena
África” dos negros, com a “Turquia Pequena” de sírios
e libaneses, com os agrupamentos de italianos, espanhóis, ciganos, baianos e nordestinos –, os judeus
compõem o novo perfil de moradores do espaço que
no início dos novecentos havia assumido feições aristocráticas. Solares, repartições governamentais, museus,
teatros e a circulação de carruagens são substituídos
por carris urbanos, bondes e linhas ferroviárias, e por
atividades representativas da densidade e intensidade
do ambiente urbano: cortiços, indústrias, oficinas, escolas, mercados, bordéis, bilhares, botequins.
O novo ciclo se aproxima das características do
local antes do surgimento da Praça Onze: espaço sem
condições de higiene e habitabilidade, distante e desassistido, ocupado por irmandades de pobres negros,
mulatos, portugueses e libertos. É neste território – segregado e estigmatizado como lugar de desordeiros,
2 Os trabalhos de Michael Hall, sobretudo The origins of mass immigration in Brazil, 1871-1914 (tese de doutorado, Columbia University,
1969), e “Approaches to immigration history” (em: GRAHAM, Richard e
SMITH, Peter (org). New approaches to Latin American history. Austin:
University of Texas Press, 1975), são referências obrigatórias sobre o
assunto. Mais recentemente, um amplo painel da imigração estrangeira na cidade de São Paulo pode ser encontrado na “Série Imigração”
(Editora Sumaré/ IDESP).
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antes mesmo do surgimento das relações capitalistas na
produção do solo urbano – que os judeus se inserem
com suas instituições políticas, religiosas, culturais, associativas. Aí desenvolvem relações comunitárias que
dão suporte à reprodução da vida social e à acomodação dos recém-chegados ao Rio de Janeiro, e constroem o sentido de identidade territorial de um bairro
que se reconhece como judeu.
A partir de exaustiva pesquisa de estabelecimentos e instituições (listadas e mapeadas em oito páginas
que compõem o Anexo 1), Fridman nos oferece um
panorama consistente da organização política em diferentes tendências ideológicas, da atuação de grupos religiosos das vertentes mais ortodoxas às mais liberais,
das noites litero-musicais e debates culturais promovidos em dezenas de escolas, bibliotecas e associações
culturais criadas pela colônia, das atividades de lazer
comunitário, como bailes, aulas de dança e jogos de
xadrez, além dos restaurantes de comida judaica e pontos de encontro para jogos e negócios. Esta vitalidade
social, cultural e política da comunidade que agregava
sefardis e asquenazes se expressa, ainda, no grande número de jornais e revistas editados – parte significativa
em iídiche e português – por grupos e núcleos de diferentes tendências.
O que o livro revela de forma cristalina é que, para os judeus, fugidos do anti-semitismo do regime czarista e, posteriormente, do nazismo, esta organização
comunitária se realiza como um projeto de sobrevivência material, política e cultural. O apoio aos imigrantes judeus, desde meados do século XIX, já estava
institucionalizado no Rio de Janeiro, através de organizações internacionais, nacionais e locais. Efetiva-se,
desta maneira, uma sólida estratégia que Fridman qualifica como “socializar os custos de integração do imigrante” (p.45). Esta solidez se manifesta, inclusive, na
resistência à repressão da polícia durante a Era Vargas,
quando recrudesce a identificação entre imigrantes e
agitadores. Fundamentada em ampla documentação
sobre a vigilância exercida pela polícia à colônia judaica (listada em doze páginas no Anexo 2), Fridman
mostra como, no caso dos judeus, a identificação se dá
entre judaísmo e comunismo.
A Praça Onze torna-se, nesse momento, território
controlado, com a polícia intervindo com violência em
manifestações públicas, em sinagogas e estabelecimentos israelitas, com prisões e deportação de judeus sus138
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peitos de pertencerem ao Partido Comunista Brasileiro. À ação policial somam-se, durante o Estado Novo,
as obras de reformulação da área central do Rio de Janeiro empreendidas pelo interventor Henrique
Dodsworth. A Praça Onze e seus arredores – território
com incidência de população estrangeira muito acima
da média do Distrito Federal e ocupada por edifícios de
valor muito abaixo das expectativas do mercado imobiliário –, tornam-se alvo privilegiado das demolições para implantação da atual avenida Presidente Vargas.
Estes elementos são colocados pela autora como
determinantes, mas não exclusivos, para explicar o processo de deslocamento dos judeus para outros bairros
cariocas e conseqüente fim do bairro judeu na Praça
Onze e arredores. Admite razões voluntárias e involuntárias para a dispersão territorial da colônia judaica, e
pondera explicações que atribuem ao acirramento do
anti-semitismo o fortalecimento do elo no seio da colônia, o que atenuaria a necessidade de permanência
num mesmo território.
Neste itinerário de explicações que nos oferece,
reside mais uma grande colaboração de Fridman para
a pesquisa no campo da história da cidade e do urbanismo. Ao admitir uma conjunção de fatores e ao nos
colocar diante da possibilidade de mais de uma explicação, assume uma perspectiva desafiadora em relação
a interpretações rápidas e modelares sobre a complexidade das relações entre processos sociais e espaciais nas
cidades brasileiras. Nesse sentido, suas ponderações
nos remetem à linhagem teórica fundada por Fredrik
Barth nos anos 1960. No que se refere à identidade étnica, o autor assume uma concepção dinâmica, admitindo-a como mutável, temporal e provocadora de
ações e reações na interação com outros grupos sociais,
assim como qualquer outra identidade coletiva. Para
Barth, na análise das fronteiras étnicas, as fronteiras sociais podem ou não ter contrapartidas territoriais.3
Destaque-se, ainda, a generosidade da autora ao
disponibilizar de forma minuciosa suas fontes documentais. Com os dois anexos no final do livro, oferece
a outros pesquisadores um banquete – um desafio para embarcar em sua viagem.
A comunidade acadêmica agradece.
3 Barth, Fredrik (1969) Grupos Étnicos e suas Fronteiras. In: Poutignat,
Philippe e Streiff-Fenart, Jocelyne (1995). Teorias da Etnicidade. São
Paulo: Ed. UNESP.
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GODARD, O. “Environnement, modes de coordination et systèmes de légitimité: analyse de la catégorie de patrimoine naturel”. Revue Economique, Paris, n.2, p.215-42, mars 1990.
BENEVOLO, L. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 1981.
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