As Relações Econômicas entre China e EUA

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As Relações Econômicas entre China e EUA
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 16, N. 31, P. 215-252, JUN. 2009
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As Relações Econômicas entre China e EUA:
Resgate Histórico e Implicações
CECÍLIA CARVALHO
FABRÍCIO CATERMOL*
RESUMO O objetivo do presente
artigo é analisar as relações
econômicas entre China e Estados
Unidos a partir da reaproximação entre
os dois países na década de 1970. A
atração de investimentos externos e
a criação de indústrias voltadas para
a exportação representaram uma das
partes fundamentais da estratégia de
desenvolvimento do Estado chinês.
Da mesma forma, o restabelecimento
das relações econômicas foi benéfico
para os EUA. O entendimento da
dinâmica das relações entre China e
EUA é particularmente relevante no
atual contexto de crise econômica
generalizada pelo mundo, no
qual ambos desempenharão papel
fundamental para sua superação.
Atualmente, as relações produtivas
entre os dois países parecem ser
suficientemente profundas para evitar
uma abrupta redução do fluxo de
comércio entre eles.
∗
ABSTRACT This article analyzes
the economic relations between
China and the United States since the
rekindled relationship between both
countries in the ‘70s. The attraction of
foreign investments and the inception
of exporting industries represented
one of the key parts of the Chinese
government’s development strategies;
and the reestablishment of economic
relations also brought benefits to
the United States. Understanding
the dynamics of the relations
between China and the United
States is particularly relevant in the
current scenario of global economic
downturn. Both countries will play a
key role in surpassing such a decline,
and, presently, their production
relations seem to be firm enough to
avoid a sharp drop in trade
between them.
Respectivamente, bacharel em Relações Internacionais pela PUC/RJ e economista do BNDES.
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AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
1. Introdução
ano de 2008 parece ter sido marcado como o fim de um ciclo de
crescimento econômico, que alcançou, de uma forma ou de outra,
praticamente todos os países. Após a turbulência financeira caracterizada
por redução do preço de ativos, quebras de importantes instituições financeiras no mundo e desvalorização de praticamente todas as moedas nacionais em relação ao dólar dos EUA e ao iene, rapidamente constata-se queda
nos indicadores de produção e aumento do desemprego.
O comportamento da economia dos EUA é apontado como determinante
para a superação da crise. O déficit norte-americano em conta-corrente permitiu estratégias de desenvolvimento por meio de exportações por diversos
países. Alguns analistas vêm o esboço de uma estratégia norte-americana
de recuperação pelo fortalecimento de sua indústria nacional, o que reduziria a necessidade de importações e estimularia as exportações. O déficit
externo dos EUA poderia se reduzir não só pelo equivalente à queda na
renda de seus residentes, mas também pela realocação de produção para
dentro de suas fronteiras, em detrimento das importações.
A recente posse do presidente Barack Obama joga mais ansiedade na tentativa de previsão do comportamento futuro da economia dos EUA e, por
consequência, do mundo. E não por uma possível característica protecionista de democratas em oposição a um liberalismo republicano. A política comercial externa norte-americana parece ser muito mais orientada de
forma pragmática do que seguir tal dicotomia.1 Mas momentos de crise
econômica muitas vezes fazem recrudescer disputas comerciais por causa
da redução da capacidade de importar e da busca por novos mercados.
A China é, atualmente, um dos principais parceiros comerciais dos EUA e
um dos principais atores econômicos no mundo. As taxas de crescimento
chinesas chamam atenção desde a década de 1980. Já em 1985, o país
1 Em 1992, durante a campanha para a presidência, o democrata Bill Clinton prometeu endurecer
as leis de comércio exterior e eliminar os incentivos fiscais às empresas que transferissem empregos ao exterior, mas não adotou medidas tão duras após eleito, reconhecendo a importância do
Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta – North American Free Trade Agreement). O
republicano George W. Bush defendeu o livre-comércio em sua campanha, mas foram implementadas, em seu primeiro ano de mandato, salvaguardas contra todos os tipos de aço importado, por
pressão dos sindicatos. O mesmo pedido foi negado em duas ocasiões distintas por Clinton por
contrariar acordos da Organização Mundial de Comércio (OMC) [Lima-Campos (2009)].
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alcançara uma taxa de crescimento do produto interno bruto (PIB) de dois
dígitos e, desde então, exceto por raros anos, apresenta as mais altas taxas
do mundo. Em 2007, a China alcançou o segundo lugar no ranking de países exportadores, ao vender US$ 1,2 trilhão ao exterior; valor superado,
por pouco, apenas pela Alemanha.
Em janeiro de 2009, EUA e China celebraram trinta anos de relações diplomáticas. Conhecida como “diplomacia do pingue-pongue”, por causa
do uso do esporte para a retomada da comunicação entre os dois países, a
política de aproximação dos EUA com a China teve como marco a visita
do presidente Richard Nixon a até então fechada China, em 1972. Passados
dois anos da morte de Mao Tsé-tung, em 1979, os dois países estabeleceram vínculos diplomáticos formais.
Os fatores de debilidade enfrentados por ambas as nações no decorrer da
década de 1970, junto ao contexto de insegurança que pairava no sistema internacional durante a Guerra Fria, foram alicerces que favoreceram
a aproximação entre os EUA e a China naquele período. Os dois países
obtiveram ganhos recíprocos a partir da aproximação, por meio de fortes
fluxos de investimento externo norte-americano na China e posterior fluxo
de exportações chinesas para os EUA. Atualmente, é inegável a conclusão
de que tais países apresentam economias com grande interdependência. O
conjunto formado pela expressão “Designed in California”, acompanhada logo abaixo por “Assembled in China”, impresso no verso de muitos
produtos eletrônicos, parece expressar, pelo menos, uma nuance da interdependência de suas indústrias, mas não resume a relação entre os dois
países. A China vem desenvolvendo a fabricação e a exportação de uma
pauta de produtos cada vez mais sofisticados.
Entender como se processou a estratégia de desenvolvimento chinesa, que
resultou nas espetaculares taxas de crescimentos verificadas nos últimos
anos, é de suma importância para a análise de qual deva ser seu comportamento nos próximos anos diante de um contexto internacional de maior
dificuldade. A sua interdependência com a principal economia mundial
amplifica tal importância.
Com a China acostumada a crescer acima de 10% a.a., a hipótese de uma
taxa de expansão de 6% do PIB, como cogitada por alguns analistas para
2009, poderia significar o tão temido cenário de hard landing. A brusca
desaceleração chinesa e/ou uma recessão de maior magnitude nos EUA,
fenômenos que parecem inter-relacionados, poderão trazer graves consequências para as economias dos demais países.
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AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
Os reflexos do comportamento dos dois países para o Brasil são imediatos. De forma direta, EUA e China são os principais parceiros comerciais
do Brasil. Qualquer solavanco naqueles países provocará efeitos claros na
balança comercial brasileira e na consequente necessidade de revisão de
política comercial e de apoio à indústria. Todavia, o efeito indireto pode
ser tão ou mais significativo: a desaceleração naqueles dois países diminui
a demanda no mundo, reduzindo preços de ativos e renda, o que limita as
oportunidades para o Brasil.
O presente texto procura retomar o histórico de aproximação entre China
e EUA, desde a década de 1970, na tentativa de fornecer elementos para o
entendimento da estratégia de desenvolvimento daquele país e das relações
produtivas e comerciais atualmente existentes entre ambos. A dinâmica das
relações entre os dois países mostra-se particularmente relevante no atual
contexto de crise econômica mundial, no qual ambos parecem ter papel
fundamental para sua superação.
O trabalho está dividido em quatro seções, incluindo esta breve introdução.
A segunda seção analisa o contexto internacional de reaproximação entre
China e EUA, apresentando os fatores que a favoreceram e de que forma
ela foi constituída. No caso da China, será descrita a conjuntura instável
ocasionada pelo Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural; em relação
aos EUA, serão abordados fatores que ameaçavam os pilares políticos econômicos e militares do país, como o aumento na tensão referente à Guerra
Fria, a Guerra do Vietnã, a ruptura de Bretton Woods e os choques do petróleo. Na terceira seção, serão analisados como se constituiu a relação entre
EUA e China e como se formou a relação complementar entre eles. São
apresentadas as estatísticas de investimento externo direto na China e sobre
o posterior fluxo comercial fortemente ampliado, destacando o papel das
Zonas Econômicas Especiais (ZEEs). Nessa seção, é também brevemente
avaliada a pauta de importações dos EUA, procurando destacar como se dá
a presença chinesa. Por fim, são apresentadas as conclusões do trabalho.
2. A Nova Ordem Internacional e os Fatores de
Aproximação entre EUA e China
Ao término das duas grandes guerras mundiais, os EUA já despontavam
como a grande liderança no sistema internacional. De devedor, o país passou a ocupar no pós-guerra a posição de credor dos países europeus envolvidos no conflito. Essa posição foi favorecida pelo fato de os EUA terem
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sido os grandes fornecedores de equipamentos bélicos durante ambas as
guerras, além de arcarem com empréstimos financeiros e, sobretudo, não
terem sido atingidos diretamente durante o conflito, que se desenvolveu
majoritariamente além dos territórios americanos. As vitórias nas guerras
representaram a consolidação do poder militar e econômico dos EUA.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota das forças do Eixo
pelas forças capitalistas ocidentais lideradas pelos EUA, uma nova ordem
internacional foi construída, iniciando o período de polarização da Guerra
Fria, que durou de 1947 até 1989. O sistema internacional passou a ser
guiado pela bipolarização de forças que se dividiam entre a ideologia capitalista liderada pelos EUA, de um lado, e as forças socialistas guiadas pela
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), de outro. O sistema
caracterizado pela divisão entre dois blocos antagônicos, ambos possuidores de armamentos nucleares, fomentou, no decorrer de toda a Guerra Fria,
a sensação de insegurança e ameaça e, sobretudo, a preocupação iminente
da possibilidade de uma guerra efetiva.
Do fim da Segunda Guerra Mundial até a década de 1970, os EUA ampliaram seu poder político, por meio da competição militar com a União Soviética, e expandiram sua riqueza com base em relações econômicas complementares e dinâmicas com outros competidores [Fiori (2005, p. 89)].
Foi no cenário internacional de convivência entre poderes antagônicos que
se desenvolveram as relações entre a China e os EUA. Inseridos na bipolaridade da Guerra Fria, tanto a União Soviética quanto os EUA buscavam
meios de expandir seus domínios além de seus territórios, com o objetivo
de conter o avanço do poderio de seus respectivos adversários e manter
áreas de influência. É nesse contexto que a China acabou por desempenhar
uma política externa de dinâmica pendular. Na tentativa de aproveitar o
contato com ambas as potências, usufruiu dos fatores externos favoráveis
para traçar seu desenvolvimento nacional, iniciado primeiramente com a
proximidade da União Soviética, que fornecia recursos dos quais a China
era carente, sobretudo alimentos e auxílios ao desenvolvimento industrial.
No entanto, com o rompimento dessa relação durante a década de 1960,
deu-se início à proximidade da China com os EUA, que legalmente começou com o fim do embargo comercial em 1971 e com a aceitação da
entrada da China na Organização das Nações Unidas (ONU).
Durante esse período, tanto a China quanto os EUA se preocupavam com
o avanço das tropas soviéticas em direção ao Leste Asiático. Além
disso, a China buscava meios de se recuperar das mazelas provocadas
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AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
pelas políticas realizadas por Mao Tsé-tung durante o Grande Salto Adiante
(1958-1960) e a Revolução Cultural (1966-1976). Ainda durante a década
de 1970, as consequências dessa política estavam enraizadas na economia
chinesa, que, por sua vez, encontrava-se enfraquecida.
Os EUA, por outro lado, também preocupados com a intenção de estratégia ofensiva da URSS, vislumbravam na aproximação com a China uma
possibilidade de conter o avanço da influência e do domínio soviético. Somado a esse ambiente de insegurança internacional, os EUA enfrentavam,
durante a década de 1970, uma crise de hegemonia que abalava os pilares
políticos e econômicos do capitalismo norte-americano e suas forças militares. A ruptura do Sistema de Bretton Woods teve consequências drásticas
no sistema monetário internacional, que passou a vigorar em um ambiente
desregulado de “não sistema”, além de incorrer na apreciação do dólar, que
influenciou diretamente no fluxo comercial internacional, ocasionando déficits comerciais históricos. Além disso, o país acabara de ser derrotado na
Guerra do Vietnã e ainda enfrentava as crises de 1973 e 1979 do aumento
de preços do petróleo. A economia norte-americana, junto ao sistema capitalista, passava por um período de contração no qual as bases políticas,
econômicas e militares encontravam-se ameaçadas.
O Enfraquecimento das Estruturas Políticas,
Econômicas e Sociais Chinesas
Durante a Revolução Comunista, a China caracterizava-se fundamentalmente por extensa população, baixo grau de desenvolvimento das forças
produtivas, além da escassez de disponibilidade de terra agricultável. O
país apresentava uma herança histórica enraizada na carência de alimentos,
em conjunto com a população em rápido crescimento, no qual o fornecimento agrícola não acompanhava as necessidades da população.
Durante a década de 1950, os empréstimos concedidos pela URSS eram
indispensáveis para o desenvolvimento do setor industrial chinês, além de
fornecerem recursos alimentícios para a China. A relação com a URSS era
fundamental na importação de bens de capital e de grãos. A China necessitava de um excedente agrícola cada vez maior para suprir a demanda da
população nacional e manter o desenvolvimento da indústria pesada. O governo de Mao Tsé-tung enfrentava diversos desafios e questionamentos a
respeito de qual política econômica seria eficiente para o desenvolvimento
do país. Foi nesse contexto de incerteza quanto à perspectiva econômica
futura da China que Mao lançou, em 1958, o Grande Salto Adiante.
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Como forma de solucionar os limites advindos da agricultura para o desenvolvimento do setor industrial, Mao propôs elevar a produção agrícola
por meio de incentivos morais e mobilização das massas para sanar as
carências internas do país A política do Grande Salto Adiante apresentava
metas estratégicas centrais de aumento da produção agrícola como forma
de impulsionar o crescimento industrial. Para alcançar tal objetivo, seria
necessário promover uma nova escala de organização social, com a mobilização dos camponeses e suas famílias para novas tarefas que expandissem
a produção agrícola. Foram criadas as “comunas populares” na China rural, pondo fim aos lotes privados que existiam até então. No total, criaramse 26 mil comunas, que compreendiam 99% da população rural chinesa
[Spence (1990, p. 545-547)].
A estratégia de Mao acabou incorrendo na aceleração dos investimentos na
indústria pesada por meio de trocas desfavoráveis em relação à agricultura
e ao consumo interno. As consequências do Grande Salto foram desastrosas. A quantidade média de grãos por pessoa no campo decaiu fortemente.
Entre 1959 e 1961, cerca de 30 milhões de pessoas foram desviadas da
agricultura para o setor industrial. Como resultado, a produção agrícola de
1961 foi 31% menor do que a de 1957; a prioridade foi dada à alocação
de alimentos nas áreas urbanas como fonte para o desenvolvimento industrial. O resultado foi a fome em grande escala, que acarretou a morte
de 20 milhões de pessoas entre 1959 e 1962. Os efeitos se prolongaram
na população chinesa, sobretudo nas crianças, afetadas pela desnutrição
crescente [Spence (1990, p. 550)].
O fracasso do Grande Salto Adiante ocorreu simultaneamente ao declínio
das relações entre China e URSS. Inicialmente, a China dependia da assistência técnica soviética para o desenvolvimento industrial interno, além
de visualizar na URSS o apoio contra as ameaças norte-americanas que
vinham de Taiwan.2 O início do enfraquecimento da relação entre os países
se deu por causa de divergências quanto a algumas atuações políticas da
revolução comunista.
2 Taiwan sempre pôde ser considerada um caso diferente das demais províncias chinesas. Habitada
inicialmente por aborígines malaio-polinésios, a ilha recebeu os migrantes chineses apenas no fim
do século XVI e somente em 1885 tornou-se uma província, sendo até então uma divisão administrativa da província de Fujian. De 1895 até 1945, foi ocupada pelo Japão e logo após tornou-se
o destino dos nacionalistas que perderam a guerra civil para os comunistas. A partir da década
de 1950, foi fomentado o desenvolvimento industrial direcionado à produção de bens de consumo
leves para substituir importações e, uma década depois, em setores de eletrônicos voltados para
exportação, tendo sido relevante o investimento dos EUA e do Japão. Para maiores detalhes sobre
a trajetória de Taiwan, bem como da relevância da influência norte-americana e japonesa, ver
Fairbank e Goldman (2007, capítulo 17).
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AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
Com a morte de Josef Stalin e a ascensão de Nikita Kruschev ao poder
na URSS, os desgastes entre as nações se ampliaram. Mao e Kruschev
divergiam quanto à expansão do sistema comunista e à atuação externa
dos países na disseminação dos ideais da revolução. Kruschev se mostrava
a favor da defesa da política de coexistência pacífica com o Ocidente,
enquanto Mao observava as forças capitalistas com grande hostilidade.
Outro fator que influenciou no desgaste entre os países foi a recusa de
Kruschev em disponibilizar para a China os conhecimentos tecnológicos
soviéticos para a construção de armamentos nucleares, pois alegava que
Mao assumira uma postura extremamente belicosa que ia de encontro à
política externa mais pacífica defendida por Kruschev. Assim, nesse contexto de desacordos, em 1960 a relação entre as nações se encontrava
profundamente deteriorada.
Durante a década de 1960, a China encontrava-se enfraquecida interna e
externamente. O rompimento das relações com a URSS foi desgastante,
enquanto os efeitos do Grande Salto mostravam-se enraizados na população nacional. O Partido Comunista perdia forças e a imagem de Mao
estava desgastada perante a população por causa das perdas econômicas
provocadas. Além da insatisfação do povo, havia muita divergência dentro
do próprio partido, que ocasionava o aprofundamento da divisão de opiniões e a crescente incerteza entre a população quanto à defesa ou não do
Partido Comunista.
Foi nesse contexto de divergência partidária, de dificuldades econômicas
internas e de descrença da população chinesa, que Mao lançou, em 1966,
a chamada “Grande Revolução Cultural Proletária”. A Revolução Cultural
tinha como estratégia fundamental difundir os ideais do Partido Comunista
e conter as forças de oposição tanto no partido quanto na população nacional. Para alcançar tal objetivo, utilizou-se a produção de discursos, artigos e
fotografias como forma de disseminar a ideia de autoconfiança e sacrifício
da população, ressaltando a importância da mobilização das massas para
o crescimento da economia chinesa [Spence (1990, p. 563)]. A vigilância
era rigorosa contra os que tentavam subverter a revolução e pautava-se no
papel fundamental do exército, que controlava os opositores.
No fim de 1966, a difusão dos ideais da revolução tornou-se mais rigorosa
e violenta, o que resultou em lutas mais profundas, além de constantes
mortes. Havia também conflitos entre facções opostas de trabalhadores e
estudantes, que muitas vezes tinham resultados fatais. Os líderes da revolução defendiam um ataque profundo contra os “quatro velhos” elementos da sociedade chinesa – velhos costumes, velhos hábitos, velha cultura
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e velho pensamento. O Exército de Libertação Popular (ELP) voltava-se
contra qualquer indivíduo que demonstrasse alguma simpatia por ideologias ocidentais e pensamentos radicais contrarrevolucionários, ou até contra quem impedisse a atuação dos revolucionários, resultando em milhares
de mortes.3 O sistema de Mao era difundido por meio do alto poder de
manipulação, além de campanhas maciças de terror e intimidação. Tudo o
que não se encaixava no sistema socialista e na ditadura do proletariado era
destruído [Spence (1990, p. 570-571)].
Estima-se que a Revolução Cultural e os abusos cometidos em seu decorrer resultaram em um milhão de mortes, ocasionando ainda a destruição do
sistema educacional do país, enormes tensões dentro do exército e da política nacional e o enfraquecimento da imagem de Mao Tsé-tung e do Partido Comunista chinês [Fairbank e Goldman (2007, p. 356 e seguintes)].
Além disso, durante a década de 1960, os líderes da Revolução Cultural
voltaram-se contra a URSS e as forças ocidentais, traçando uma estratégia
de desenvolvimento mais autônoma, pautada na mobilização das massas
populares por meio da difusão dos princípios socialistas. No entanto, por
causa das mazelas provocadas pelo Grande Salto e pela Revolução Cultural, o regime comunista encontrava-se enfraquecido internamente com a
profunda descrença da população nacional na atuação de políticas eficientes. Somava-se a esse desgaste interno a preocupação com o avanço das
tropas soviéticas, que se aproximavam de territórios chineses. Foi nesse
contexto de desequilíbrios internos e ameaças externas que a aproximação
com os EUA emergiu como um meio de conter a expansão soviética e, de
alguma forma, sanar as debilidades da economia interna chinesa. Paralelamente a esse contexto, os EUA também enfrentavam desequilíbrios que
ameaçavam sua liderança internacional.
As Mudanças na Atuação Internacional Norte-Americana
Ao término da Segunda Guerra Mundial e com o início da Guerra Fria,
os EUA despontavam como a grande potência hegemônica do sistema internacional. Como observado anteriormente, o país saiu da guerra como
credor e principal fornecedor de auxílios, empréstimos e investimentos
3 Foram realizadas técnicas de humilhação pública e a violência se aprofundou ferozmente. Foram
criadas as “Escolas de Quadros Sete de Maio”, que combinavam trabalho agrícola intenso com
o constante autoexame e o estudo das obras de Mao. As condições de vida nesses locais eram
miseráveis; a liberdade era contida em uma combinação de doutrinação incessante junto ao árduo
trabalho [Spence (1995, p. 577-580)].
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AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
para a reconstrução no pós-guerra dos países capitalistas aliados. No entanto, a partir do fim da década de 1960, parecia ser o fim da “era de ouro”
do sistema capitalista, iniciando-se o período de crise dos anos 1970.
Diversos fatores foram responsáveis pelo enfraquecimento da presença internacional americana e pelo cenário de contração do sistema capitalista,
destacando-se eventos tais como a derrota na Guerra do Vietnã, a ruptura
do sistema monetário internacional de Bretton Woods e os choques do petróleo, que, juntos, abalaram a estrutura militar, política e econômica dos
EUA durante a década de 1970.
O envolvimento dos EUA na Guerra do Vietnã foi iniciado durante a
década de 1950 com o financiamento e o apoio logístico dado aos franceses após a Guerra da Coreia. A guerra com o Vietnã estava inserida
na estratégia dos EUA de luta pela hegemonia no Sudeste Asiático e de
contenção da expansão das forças soviéticas. A presença militar norteamericana na região cresceu de forma lenta no decorrer da década de
1950 e se acelerou durante a década de 1960 até o ataque efetivo ao
Vietnã do Norte, em 1968.
Os EUA acabaram se comprometendo de forma cada vez mais profunda
durante o governo de John Kennedy e, em 1968, a despeito da resistência
interna e do isolamento internacional, já havia cerca de 500 mil soldados
americanos na região do conflito. Os EUA encontravam-se isolados internacionalmente e existiam cada vez mais questionamentos internos. As
baixas durante a guerra foram numerosas, o que incitou o aprofundamento
de movimentos sociais de contestação ao conflito, que pregavam o pacifismo e a contracultura. A insatisfação era profunda na sociedade. Assim,
já no governo de Richard Nixon, em 1973, os EUA decidiram retirar-se
da guerra, por meio dos acordos de paz assinados em Paris [Fiori (2000,
p. 111-112)].
A derrota na guerra abalou o poder militar norte-americano, além de suscitar o enfraquecimento da credibilidade interna e internacional da nação, já
que grande parte da população nacional americana e da comunidade internacional fora desfavorável à invasão do Vietnã, considerando-a ilegítima.
Paralelamente à derrota americana na Guerra do Vietnã, ocorreu a ruptura
do sistema de Bretton Woods, acordado ao fim da Segunda Guerra Mundial sob a liderança dos EUA, com a participação de 44 países aliados
capitalistas. O sistema deu início ao regime monetário internacional do
padrão ouro-dólar, baseado em taxas de câmbio fixas e com a manutenção
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do preço oficial do ouro indexado ao dólar. Bretton Woods realizava ainda o controle de fluxos de capital de curto prazo, além de criar o Fundo
Monetário Internacional (FMI), que, em conjunto com os EUA, seria o
responsável pela reconstrução dos países capitalistas aliados afetados pelos estragos da guerra.
A posição norte-americana nesse momento era muito forte, pois praticamente todos os países aliados haviam tomado empréstimos dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial. Ademais, grande parte das reservas mundiais de ouro estava sob o domínio da economia norte-americana.
O auxílio dos EUA aos países aliados durante o pós-guerra foi fornecido
de diversas formas: promoção de investimentos diretos, abertura das importações americanas, ajuda externa direta realizada por meio de doações,
transferência de tecnologia e tolerância com tarifas protecionistas, além de
ajuda para promover desvalorizações no câmbio das nações aliadas como
forma de incentivar a competitividade internacional desses países. No entanto, o sucesso desse conjunto de medidas proporcionou às economias dos
países aliados um grau de crescimento mais acelerado até do que o experimentado pelos EUA, que, de fato, registravam cada vez mais redução do
superávit comercial e de conta-corrente, que acabaram se transformando
em déficits em 1971 [Serrano (2005, p. 186)].
Além disso, já se verificava um elevado déficit na balança de pagamentos
por causa da grande saída de capitais resultante de investimentos externos
diretos, ajuda externa, gastos militares no exterior e empréstimos para os
demais países.
A valorização do dólar acabou sendo responsável pelo crescimento do déficit comercial americano, que correspondia a uma tentativa de obtenção de
saldos comerciais crescentes dos demais países industrializados, seguindo a estratégia de que exportar seria a solução para todos, menos para os
EUA, cuja solução era importar barato.
Em 1975, as importações totais norte-americanas apresentaram incremento de 143% em comparação ao ano de 1970. A balança comercial dos EUA
no período em questão mantinha o superávit de US$ 10,7 bilhões. No entanto, em 1980 o valor total das importações norte-americanas superou em
15% o valor das exportações, incorrendo no déficit comercial de US$ 32,3
bilhões. Já em 1995 o déficit comercial americano, de US$ 187,9 bilhões,
foi cerca de seis vezes maior do que o ocorrido em 1980. Desde então, os
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AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
EUA apresentaram déficits comerciais cada vez mais significativos (ver
Gráfico 1).
GRÁFICO 1
Balança Comercial de Bens dos EUA: 1970 a 2007
(Em US$ Bilhões)
Fonte: Elaboração própria, com base em dados da United Nations Commodity Trade Statistics Database
(UN Comtrade).
A controvérsia sobre a sustentabilidade do déficit em conta-corrente dos
EUA é longa e não será objeto deste trabalho. Existe uma grande e diversificada amostra de trabalhos que apontam desde a insustentabilidade do
déficit americano, variando a conclusão sobre o prazo em que um penoso
ajuste se daria, até autores que não atribuem tanta preocupação com sua
possível reversão ou não [ver Obstfeld e Rogoff (2000 e 2004), Weller
(2006), Truman (2005) e Edwards (2005)].
Outros autores percorrem um caminho distinto e concluem não só pela
sustentabilidade, mas também pela relevância do déficit norte-americano
para a economia mundial. Dooley et al. (2004) argumentam que o déficit
em conta-corrente dos EUA não é apenas sustentável, mas também parte integral de um sistema monetário internacional bem-sucedido, baseado
em “fluxos líquidos de poupança dos países periféricos (pobres) para os
centrais (ricos), ou seja, de déficits em conta-corrente para o centro e superávits para a periferia” (p. 2). A rápida industrialização dos países da periferia – em especial do Leste Asiático e notadamente a chinesa – requer um
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grande fluxo de entrada de investimentos externos diretos e, dessa forma,
um grande déficit na conta-corrente dos países desenvolvidos na provisão
de seu colateral.
De qualquer forma, a natureza do déficit dos EUA encontra-se na definição
de uma estrutura industrial cujo início se observa já em meados da década
de 1980 e que teve suas origens nos acontecimentos da década anterior.
Naquela época, os EUA enfrentavam simultaneamente os efeitos causados
pela derrota no conflito com o Vietnã, responsável pelo aumento do ritmo
do crescimento dos salários nominais norte-americanos, que, por sua vez,
acarretaram a aceleração inflacionária, na medida em que os reajustes salariais eram repassados para os preços. No entanto, as margens de lucros
nominais não subiram o suficiente para compensar o aumento do ritmo de
crescimento dos custos salariais, o que incitava o descontentamento do
setor empresarial [Serrano, (2005, p. 191)].
O regime de câmbio nominal fixo e a elevação da inflação ocasionaram a
progressiva deterioração da competitividade externa da economia americana. Isso aumentou a pressão interna dos setores expostos à concorrência
externa para que o governo americano efetuasse, por conta própria, a desvalorização cambial do dólar como forma de estimular a competitividade
dos produtos norte-americanos [Serrano (2005, p. 194)].
Dessa forma, os EUA enfrentavam um grande paradoxo, pois o próprio
sucesso da estratégia americana de reconstrução e desenvolvimento dos
demais países capitalistas (que aceitava desvalorizações cambiais desses
países) estava reduzindo progressivamente os superávits comerciais e de
conta-corrente americanos. Nesse caso, a maneira mais simples de melhorar a competitividade externa americana seria por meio da desvalorização
do dólar. No entanto, o padrão monetário de Bretton Woods impunha aos
EUA a necessidade de manter fixo o preço oficial do ouro em dólar. Essa
medida impedia os EUA de desvalorizar ou valorizar sua moeda em relação às moedas dos demais países, pois não podiam modificar o preço
nominal do ouro em dólar.
Nesse sentido, os EUA e o governo Nixon enfrentavam um dilema da necessidade de valorizar o câmbio e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de
fazê-lo, dentro das regras do Bretton Woods. Diante dessa contradição, o
presidente Nixon tomou a decisão unilateral de abandonar a conversibilidade em ouro do dólar, além de impor uma tarifa extra sobre todas as
importações, como forma de conter o avanço do déficit comercial [Serrano
228
AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
(2005, p. 195-196)]. Já em 1973, introduziu o regime das taxas de câmbio
flutuante e, não obstante, o Fed decidiu subir unilateralmente a taxa de
juros em 1979, como resposta ao significativo crescimento de europeus e
japoneses e com o objetivo de retomar a supremacia do dólar como moeda
de reserva. Essa medida deflagrou uma crise de liquidez nos países em desenvolvimento e resultou definitivamente no fim de Bretton Woods.
A ruptura do sistema de Bretton Woods foi acompanhada de uma desregulamentação do sistema financeiro em escala global, acarretando ainda
a instabilidade das taxas de câmbio e das de juros reais, que apresentaram aumento significativo nos países desenvolvidos. O fim do regime
monetário de Bretton Woods resultou na existência de um “não sistema” monetário internacional, além da falta de disciplina ou a regulação
do mercado internacional de moedas e a inexistência de regras quanto
ao funcionamento do sistema internacional de taxas de câmbio e ainda
um desequilíbrio extraordinário no cenário internacional [Baumann et al.
(2004, p. 224)].
A ausência de conversibilidade em ouro concedeu ao dólar e aos EUA a
liberdade de variar sua paridade em relação às moedas dos outros países
conforme sua conveniência, por meio da variação da taxa de juros [Serrano (2002, p. 8-9). Assim, a afirmação do dólar na economia mundial
colocou os EUA em uma posição macroeconômica singular, por emitirem
a moeda internacional e fixarem automaticamente a taxa de juros, independentemente das intervenções dos outros países no mercado de câmbio. Os
EUA não enfrentavam qualquer restrição de balanço de pagamentos, já
que seus elevados déficits em transações correntes são financiados em sua
própria moeda, o que lhes concede uma autonomia econômica única [Medeiros (2005, p. 141)].
Por fim, aprofundando o enfraquecimento da posição norte-americana no
cenário internacional, ocorreram também, durante a década de 1970, os
choques de petróleo realizados pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). A partir de 1971, a Opep passou a pressionar por
reajustes no preço internacional do petróleo e por maior participação nos
royalties da commodity. Os EUA, para manter boas as relações com os
países árabes e ainda zelar pela segurança energética doméstica, aceitou
reajustes de quase 50% do preço do petróleo internacional e, ao mesmo
tempo, em 1971, começaram a ampliar suas importações de petróleo com
origem nos países da Opep.
Em agosto de 1973, como parte da política de segurança energética, os
EUA congelaram o preço do petróleo doméstico com o objetivo de evi-
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 16, N. 31, P. 215-252, JUN. 2009
229
tar a exploração predatória e aboliram definitivamente as cotas oficiais de
importação da commodity, o que resultou em um aumento da demanda do
petróleo importado dos países da Opep. A política energética americana
priorizava a preservação e a ampliação das reservas internas americanas e,
simultaneamente, a garantia de abastecimento aos EUA. Paralelamente a
essa política energética protecionista americana, ocorria a Guerra do Yom
Kippur entre os países árabes (Egito e Síria) e Israel, deflagrada em represália ao apoio dado pelos EUA e países da Europa Ocidental a Israel [Serrano (2005, p. 199)]. O conflito foi considerado o estopim para o início do
choque do petróleo. Membros árabes, detentores de aproximadamente dois
terços das reservas mundiais, decidiram cortar o suprimento de petróleo, o
que ocasionou um aumento de 70% do preço internacional do insumo.
Dessa forma, o primeiro choque do petróleo foi resultado direto do conflito
distributivo entre os países produtores e os países desenvolvidos, dentro
do contexto de questionamento da liderança internacional norte-americana
[Serrano (2005, p. 199)]. Os choques tiveram influência significativa na
economia norte-americana, já que esta dependia do insumo para sua expansão, além de resultarem na desaceleração do crescimento mundial.
Ainda nesse ambiente de instabilidade, em 1979, sob o impacto da revolução no Irã, ocorreu o segundo choque do petróleo, que fez o preço internacional do produto quase triplicar, levando o mercado internacional
novamente ao caos. A produção iraniana foi interrompida, o que resultou
em uma redução de oferta de 4 milhões de barris de petróleo por dia e
ocasionou a apreciação dos preços, que passaram de US$ 13 para US$ 34
o barril [Torres (2005, p. 326)]. As ações da Opep resultaram no fim do
“regime energético”, que sustentava o crescimento barato da economia
mundial durante os anos 1950 e 1960.
A conjuntura instável verificada na década de 1970 marcou o fim da chamada “era de ouro” da economia mundial capitalista, evidenciado por baixo crescimento econômico, inflação acelerada e desequilíbrio monetário
no âmbito internacional.
Foi nesse contexto que ocorreu a reaproximação entre EUA e China. Os
EUA consideravam a aproximação com a China uma alternativa favorável
que fornecesse meios para manter sua hegemonia internacional. A China
seria uma fonte lucrativa provedora de recursos, como mão de obra barata, possibilitando redução nos custos de produção, ao fornecer ampla
gama de manufaturas com preços reduzidos e representar uma imensa
fonte de demanda para os produtos norte-americanos, graças a sua ele-
230
AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
vada população. Além disso, a China seria importante na expansão da
influência política dos EUA na região asiática e poderia conter a expansão
soviética na região.
Para a China, que também se encontrava enfraquecida, a relação com os
EUA seria vantajosa como forma de mitigar o desgaste da imagem interna
do Partido Comunista, além de ser importante na contenção das forças soviéticas que avançavam a caminho de territórios chineses e, principalmente, como fonte de recursos para a modernização da economia e da indústria
chinesas, contribuindo para o desenvolvimento do país. Construía-se, assim, uma relação complementar entre os países, que compreendeu trocas
comerciais significativas e intercâmbio de conhecimentos tecnológicos
cruciais para o desenvolvimento chinês.
3. A Abertura Chinesa ao Ocidente e a Relação
Sino-Americana
Como visto na seção anterior, tanto a China quanto os EUA enfrentavam
profundos desequilíbrios durante a década de 1970, evidenciando fragilidades políticas, econômicas e militares em ambas as nações. Outro fator
comum com que os dois países se deparavam era o avanço das tropas soviéticas no Leste Asiático. A China preocupava-se com as forças soviéticas
em expansão próxima aos territórios chineses, enquanto os EUA se preocupavam com a contenção da própria expansão do domínio do sistema
socialista em conjunto com as tropas da URSS.
A economia internacional, sob a égide norte-americana, enfrentava um período de significativa contração. Segundo Wallerstein (1981, p. 5), são esses cenários de contração do poder central, condutor do sistema capitalista,
que permitem a ocorrência de realocações produtivas no sistema internacional. Na teoria que ficou conhecida como “desenvolvimento a convite”,
o país hegemônico no cenário internacional percebe como alternativa favorável o contato com nações periféricas que forneçam meios de redução nos
custos de produção e, sobretudo, polos de incremento da demanda efetiva.
O deslocamento de domínios do capitalismo acaba por produzir modificações na divisão internacional do trabalho e nas relações centro-periferia.
Por meio da relação com a China, os EUA, como estratégia de sustentação
de sua posição hegemônica no cenário global, buscaram beneficiar-se de
fontes de mão de obra barata como forma de redução nos custos de produ-
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 16, N. 31, P. 215-252, JUN. 2009
231
ção, da importação de manufaturas com custos reduzidos, além do crescente mercado interno localizado na China. Com a aproximação dos EUA, a
China seria favorecida pelo fluxo comercial entre as nações, que acabaria
por propiciar ganhos com o intercâmbio de conhecimentos tecnológicos
que seriam utilizados para a modernização da economia chinesa e contribuiriam para o desenvolvimento da nação. Soma-se a isso o interesse de
ambas as nações em conter o avanço do poder soviético no Leste Asiático.
Assim, os fatores de debilidades enfrentados pelos países favoreceram a
convergência de interesses, resultando na aproximação que gerou benefícios para ambas as nações.
A política isolacionista traçada pela China após a ruptura com a URSS não
poderia ser mantida, sobretudo se o país desejasse desenvolver seus aparatos tecnológicos. Havia a necessidade de assistência dos conhecimentos
estrangeiros para o desenvolvimento industrial e tecnológico chinês, como
no caso da exploração petrolífera, que carecia de tecnologias mais avançadas para se expandir. Esse contexto permitiu que os chineses percebessem
na aproximação com os EUA a possibilidade de intercâmbio de conhecimentos como forma de desenvolver sua economia interna [Spence (1990,
p. 583-584).
Paralelamente, nos últimos anos da década 1960, a China almejava um
assento na ONU e o direito de voto no Conselho de Segurança que Taiwan
detinha desde 19494. Com a ajuda de países não alinhados, os EUA admitiram, em 1971, a entrada da China na ONU, ocasionando, assim, a retirada
de Taiwan.
Para organizar previamente as relações oficiais entre os países, foram realizados encontros sigilosos entre políticos, como a ida à China do assessor de Segurança Nacional norte-americano, Henry Kissinger, recebido
pelo primeiro-ministro chinês, Chou En-lai, que teve papel fundamental
na aproximação dos EUA. Em 1972, as relações entre os países foram
devidamente oficializadas com a visita de Nixon à China e a assinatura de
acordos que abrangiam esferas comerciais e militares com o Ocidente. Os
chineses reconheceram a utilidade ao acesso à tecnologia estrangeira para
compor o desenvolvimento do país.
4 Desde a decisão do presidente Truman, em 1957, de proteger Taiwan de uma possível invasão da
República Popular da China, durante a Guerra da Coreia, Taiwan fora uma forte aliada dos EUA,
fornecendo base militar e se beneficiando com o comércio americano. Ver nota 3.
232
AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
Segundo Spence (1990), Mao havia perdido credibilidade com suas políticas de abusos intensos. Assim, por meio dessa relação com os EUA, tinha
o objetivo de reafirmar a ordem nacional, depois dos estragos causados
pela Revolução Cultural, e estabilizar a economia e a população chinesa
rumo a um desenvolvimento mais próspero, além de fortalecer a posição
estratégica e econômica chinesa frente à URSS. Por outro lado, Nixon
estava com a imagem desgastada interna e externamente por causa da hostilidade com a Guerra do Vietnã. Assim, ambas as nações visualizavam a
oportunidade única de realinhamento como forma de solucionar desgastes
políticos e econômicos internos e internacionais.
A “abertura das portas” para o intercâmbio estrangeiro foi favorecida pela
assunção de políticos que defendiam a estratégia de crescimento mais
dinâmico que abarcasse a utilização de tecnologias estrangeiras por
meio de know-how e de fontes de financiamentos externos, mas que ao
mesmo tempo preservasse a integridade nacional do país. Chou En-lai
e Deng Xiaoping eram exemplos de defensores dessa inovação políticoeconômica. Deng Xiaoping, como vice-primeiro-ministro, em seu discurso
realizado na ONU, em 1974, anunciou a especificidade que defendia para
a estratégia de desenvolvimento chinesa, combinando políticas de desenvolvimento interno e intercâmbio com mercados internacionais [Spence
(1990, p. 599)].
Deng propunha levar adiante as Quatro Modernizações (agricultura, indústria, ciência e tecnologia e forças armadas) por meio de uma postura mais
aberta da China à absorção de conhecimentos e tecnologia estrangeiros,
mas fundamentada na intervenção do Estado como principal condutor dessa nova dinâmica política de desenvolvimento.
A dinâmica de desenvolvimento utilizada por Deng para o crescimento
interno da China e sua inserção no cenário internacional vai ao encontro do
argumento de Arrighi (1997, p. 152), que considerava fundamental para a
ascensão de uma nação a conjuntura sistêmica internacional favorável, em
conjunto com mecanismos internos implementados pelos Estados. Arrighi
reconhece o papel fundamental do Estado como forma de estimular os incentivos às inovações, criando condições que possibilitem alterações na
posição hierárquica do sistema. Os Estados são capazes de recriar condições políticas favoráveis que estimulem o desenvolvimento da economia.
Segundo o autor, as modernizações promovidas pelo Estado e a abertura
comercial restituída quando Deng assumiu o governo foram fatores preponderantes para o crescimento chinês. A China apresentava vantagens
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 16, N. 31, P. 215-252, JUN. 2009
233
competitivas inigualáveis que contribuíram para a atração de investimentos estrangeiros5, como baixo salário e, sobretudo, o uso de técnicas que
empregam mão de obra instruída, barata e de alta qualidade. Esses fatores
favorecem o aprimoramento da divisão social do trabalho para a produção
e, por sua vez, acabam por facilitar condições de inovações por meio do
uso intensivo de conhecimentos tecnológicos [Arrighi (2008, p. 372)].
Nesse sentido, é importante enfatizar que a estratégia de expansão da economia chinesa compreendeu mecanismos de desenvolvimento nacionais e
baseados nos mercados internacionais, liderados fundamentalmente pelo
poder do Estado. No âmbito nacional, além das reformas promovidas pelo
Estado, podem-se destacar a importância dos gastos públicos para o crescimento da economia chinesa e ainda o extenso volume de investimentos estatais, sobretudo em capital fixo, que já na década de 1980 correspondiam
a mais de 35% do PIB do país.
As Quatro Modernizações promovidas por Deng a partir do final da década de 1970 estabeleceram melhorias nos principais setores da economia
chinesa. Entre eles, destaca-se a agricultura, que obteve reformas significativas, como a permissão fornecida pelo Estado para que os agricultores
comercializassem os excedentes da produção a preço de mercado. Além
disso, em 1979, foi iniciada a descoletivização do campo, permitindo que
famílias ganhassem lotes de produção, o que favoreceu o crescimento médio da produção agrícola de 18% ao ano até 1983. No entanto, a distribuição dos lotes continuou sendo de responsabilidade dos governos locais.
Em relação à modernização da ciência e tecnologia, foram criadas mais
de 80 universidades-chave, em conjunto com realizações de investimentos
importantes em pesquisa aplicada e tecnologia, além do envio de grupos de
estudantes ao exterior para treinamento e intercâmbio de conhecimento.
A modernização no setor industrial foi fundamental para o contato direto
da economia chinesa com o Ocidente e, sobretudo, com os EUA. Foram
criadas as Zonas Econômicas Especiais (ZEEs), localizadas nas províncias
costeiras da China, cujo objetivo era a produção voltada exclusivamente
para a exportação e que foram importantes para a assimilação de tecnologias avançadas. As ZEEs tinham incentivos fiscais e isenção de taxas de
importação para máquinas especiais. A China construía unidades indus5 Arrighi (2008, p. 362) considera outra vantagem peculiar o fato de a China ser uma economia
nacional protegida informalmente pelo idioma, costumes e instituições, o que torna muitas vezes
necessário aos estrangeiros o acesso a intermediários locais.
234
AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
triais segundo as especificações dos investidores estrangeiros e fornecia
mão de obra bem treinada, com salários competitivamente baixos, além de
garantir infraestrutura. Também oferecia aos investidores taxas de impostos
preferenciais e vários outros incentivos financeiros como forma de atrair os
investidores estrangeiros. Esses benefícios concedidos pelo Estado chinês
foram fundamentais para a crescente atração de empresas e investidores
estrangeiros. As ZEEs eram as únicas com permissão para entrada de investimentos externos diretos (IED). No restante do país, consolidaram-se
dois outros modelos industriais: township village enterprises (TVEs), que
surgiram a partir da dissolução das comunas, em 1978, e as state-owned
enterprises (SOEs), empresas financiadas por bancos estatais chineses.
Nesse sentido, é válida a observação de Tavares e Beluzzo (2005), segundo a qual a expansão mundial do capitalismo sob a hegemonia americana
modificou a divisão internacional do trabalho e a relação centro-periferia.
A natureza e a dimensão do novo centro são radicalmente diferentes, não
correspondendo à divisão clássica entre um centro produtor de manufaturas e uma periferia produtora e fornecedora de matérias-primas. A
economia norte-americana é, simultaneamente, grande produtora de manufaturas, matérias-primas e alimentos. Assim, a sua expansão externa não
se dá apenas pelo comércio, mas, sobretudo, “pelas filiais do grande capital
financeiro trustificado” (ibid., p. 124).
O processo de globalização financeira, iniciado durante a década de 1980,
favoreceu o aumento extraordinário do fluxo de capitais internacionais em
escala global. A expansão da grande empresa promoveu paulatinamente o
aparecimento de fluxos comercias entre países que são, na verdade, comércio entre matrizes e filiais. Essa relação, ao chegar à Ásia, muda novamente a divisão do trabalho, em que esta região se torna grande produtora de
manufaturas com preços reduzidos, graças, sobretudo, à extensa fonte de
mão de obra barata, especialmente na China.
Simultaneamente ao contexto das reformas chinesas, os EUA, sentindo-se
ameaçados com o significativo crescimento do Japão e da Alemanha, decidiram elevar a taxa de juros americana, em 1979, e implementaram a política do dólar forte, sobrevalorizando sua moeda frente à japonesa e à alemã. “O fortalecimento do dólar como moeda de reserva e de denominação
das transações comerciais e financeiras promoveu profundas alterações na
estrutura e na dinâmica da economia mundial” [Tavares e Beluzzo (2005,
p. 130). As transformações envolveram a redistribuição da capacidade produtiva na economia mundial e incorreram em enormes déficits orçamentários e comercias dos EUA, favorecendo as economias asiáticas.
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 16, N. 31, P. 215-252, JUN. 2009
235
Em meados da década de 1980, os EUA decidiram reverter a política econômica de valorização do dólar e, por meio do Acordo Plaza, de 1985,
impuseram a acentuada valorização do iene, visando reverter seu déficit
estrutural na balança comercial com o Japão. A economia japonesa acabou
prejudicada com sua moeda valorizada frente ao dólar, suas exportações
foram afetadas e passaram a se destinar, majoritariamente, à própria região
asiática, favorecendo, por exemplo, o aumento de investimentos japoneses
realizados em territórios chineses.
A China, na época, vinha executando seu programa de reforma com grande eficácia, apresentando crescimento significativo, e mantinha ainda sua
moeda desvalorizada. O programa de desenvolvimento chinês era realizado por meio de uma estratégia exportadora agressiva, combinada com a
atração de investimentos externos para as zonas especiais.
A economia chinesa acabou sendo beneficiada com a valorização do iene
frente ao dólar, por meio de investimentos externos e incremento do fluxo comercial. Os EUA firmaram-se como importadores líquidos, ou seja,
como consumidores de última instância da produção manufatureira chinesa. Outras características notáveis da China são o elevado ritmo de crescimento das exportações de manufaturados e o grande superávit comercial
com os EUA, o que a torna exportadora de manufaturas baratas para os
EUA e mercado favorável para o destino de investimentos externos.
Com o estabelecimento efetivo das relações entre EUA e China, em 1972,
percebe-se o avanço das trocas comerciais entre as nações. No decorrer da
década de 1970, o fluxo comercial ampliou-se constantemente. Já no início da década de 1980, com o crescente volume de exportações chinesas,
observa-se o aparecimento de déficit comercial dos EUA com a China, de
US$ 426 milhões, em 1985. Em 1995, o déficit americano foi cerca de 26
vezes maior do que o constatado em 1985, apresentando o valor total de
US$ 11,4 bilhões. Vale destacar que, de 1985 a 1995, as importações americanas com origem chinesa apresentaram um incremento de US$ 11,5 bilhões, alcançando em 1995 o valor total de US$ 48,5 bilhões. Não obstante,
o déficit comercial americano apresentou incrementos significativos desde
então, totalizando em 2008 o valor de US$ 266,3 bilhões (ver Tabela 1).
236
AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
TABELA 1
Balança Comercial dos EUA com a China: 1975 a 2008
(Em US$ Milhões)
ANO
EXPORTAÇÕES
IMPORTAÇÕES
SALDO COMERCIAL
1975
304
159
145
1980
3.755
1.161
2.594
1985
3.796
4.222
-426
1990
4.807
16.261
-11.453
1995
11.748
48.506
-36.757
2000
16.252
107.615
-91.362
2005
41.835
259.829
-217.994
2008
71.412
337.745
-266.333
Fonte: Elaboração própria, com base em dados da United Nations Commodity Trade Statistics Database (UN Comtrade) e United States International Trade Commission.
O crescimento explosivo das exportações chinesas, assim como o acúmulo
de superávit comercial com os EUA, foi um fator crucial para o desenvolvimento da China [Medeiros (2000, p. 320)]. Nesse sentido, a nova aliança
estratégica com os EUA teve papel decisivo para o sucesso econômico
chinês [Fiori (2007, p. 180)]. O desenvolvimento do país se construiu por
meio de uma clara estratégia de promoção de exportações, captação de
investimento externo e ainda o acesso a finanças internacionais [Medeiros
(2000, p. 337)]. Esse modelo, aliado à forte presença do Estado, permitiu
a criação das ZEEs, que, por meio do estímulo às exportações e atração de
IEDs, favoreceram o acúmulo de reservas internacionais.6
Por meio das ZEEs, os chineses passaram a sustentar uma continuada elevação da taxa de acumulação interna de capital e uma rápida incorporação
de novas tecnologias mediante o estímulo à criação de joint-ventures com
empresas estrangeiras, condição imposta nas zonas especiais para a implantação dessas empresas estrangeiras. A posição da China na economia
mundial melhorou profundamente a partir de uma alta taxa de crescimento interno, absorção de IED e de crescimento das exportações [Tavares e
Beluzzo (2005, p. 133)]. Esse modelo de desenvolvimento possibilitou o
6 Ver Prasad e Wei (2005), para uma avaliação da importância dos fluxos de capital não provenientes do IED ou do superávit em conta-corrente na formação das reservas internacionais da China
no início do século XXI.
237
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 16, N. 31, P. 215-252, JUN. 2009
acúmulo e o intercâmbio de conhecimento entre as empresas, o que favoreceu a modernização industrial e tecnológica da China, ampliando a
absorção de tecnologias modernas e know-how. Conforme observado por
Marti (2007, p.10):
As ZEEs foram concebidas para atrair investidores estrangeiros que, em troca, introduziriam na China tecnologias e métodos modernos de administração, com o propósito de criar um fluxo de exportações gerador de divisas, encorajados por vendas
sem impostos, taxas reduzidas, tarifas menores, infraestrutura moderna, legislação
trabalhista e salarial flexível e menos burocracia.
A criação das ZEEs, em conjunto com uma política cambial favorável às
exportações, que priorizava a desvalorização do yuan frente ao dólar, foi
um mecanismo fundamental para o aumento da entrada dos investimentos
externos diretos na China e o estímulo às exportações.
Atualmente, a China é o segundo maior absorvedor de IED depois dos
EUA. No entanto, a expansão mais vigorosa de IEDs destinados à China se
deu a partir da década de 1990. De 1990 a 2000, a entrada de IED na China
totalizou uma média de US$ 30,1 bilhões, representado 6% da participação mundial. Já em 2004 a entrada de IED na China mais que dobrou em
relação a 2000, apresentando um total de US$ 60,6 bilhões, elevando sua
participação mundial para 8% (ver Tabela 2).
TABELA 2
Fluxo de IED – China, EUA e Mundo: 1990 a 2007
(Em US$ Milhões)
PAÍSES
1990-2000
MÉDIA
2004
2005
2006
2007
30.104
60.630
72.406
72.715
83.521
2.195
5.498
12.261
21.160
22.469
109.513
135.826
104.773
236.701
232.839
92.010
294.905
15.369
22.664
313.787
Entrada
492.605
717.695
958.697
1.411.018
1.833.324
Saída
492.535
920.151
880.808
1.323.150
1.996.514
China
Entrada
Saída
EUA
Entrada
Saída
Mundo
Fonte: Elaboração própria, com base em dados da Unctad.
238
AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
Os segmentos correspondentes a empreendimentos originados por investimento direto externo representam 20% do PIB chinês. Apesar de empregarem apenas 3% da mão de obra do país, são responsáveis por 50%
das exportações chinesas e por 60% das importações. Estima-se que o investimento externo direto contribuiu para 40% do crescimento econômico
chinês nos últimos anos [Whalley e Xin (2006)].
Hoje em dia, a China destaca-se como uma grande receptora de investimentos norte-americanos, apresentando um estoque de US$ 70 bilhões de
investimento das grandes multinacionais americanas. A China afirma-se
como o primeiro país entre os países em desenvolvimento em termos de
renda transferida para as empresas dos EUA [Medeiros (2005, p. 171)].
Entre os anos de 1979 e 2000, período referente à primeira fase de aceleração da entrada de investimentos na China, os EUA foram a principal origem
dos investimentos externos realizados naquele país, sendo responsáveis
por 22% do total. Todos os países que formam atualmente a União Europeia obtiveram a mesma participação (22%), seguidos de Japão (19,5%)
e Cingapura (12%).7 Os investimentos norte-americanos e europeus foram destinados principalmente a setores intensivos em capital e tecnologia
[Acioly (2005)]. Nos anos recentes, cresceu a participação do Japão e de
outras origens, mas os EUA continuam a ser uma das três principais fontes
do IDE na China [National Bureau of Statistics of China (2007)].
A criação das Zonas Econômicas Especiais, no âmbito das reformas de
modernização a partir de 1979 e durante a década de 1980, foi um fator
importante na capacidade chinesa de atrair investimentos externos, tanto
mundiais quanto da própria Ásia. As ZEEs, com o intuito de modernizar
o país, tinham como objetivo primordial o acúmulo de reservas internacionais para importar bens de capital e tecnologia. É nesse sentido que as
exportações ganham destaque na estratégia chinesa de crescimento.
As exportações foram um componente importante de demanda efetiva na
economia chinesa, apresentando crescimento extraordinário desde a década de 1970. Em 1985, o valor das exportações foi cerca de cinco vezes
maior do que em 1975, alcançando um total de US$ 25,6 bilhões. As exportações provenientes da China já representavam 3% do total mundial
7 Excluem-se os investimentos originados de Hong Kong e Taiwan, que, juntas, representaram 59%
do investimento externo direto da China. Se fossem incluídos esses investimentos, as participações de EUA e União Europeia cairiam para 9% cada uma. Os valores referentes a Hong Kong e
Taiwan deturpam as estatísticas por incluírem capitais oriundos da própria China continental em
busca do tratamento preferencial dado a investidores estrangeiros.
239
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 16, N. 31, P. 215-252, JUN. 2009
em 1995, e desde então essa participação tem apresentado incrementos
significativos (ver Tabela 3).
TABELA 3
Participação das Exportações da China nas Exportações Mundiais:
1970 a 2007
(Em US$ Milhões)
ANO
EXPORTAÇÕES
MUNDIAIS
EXPORTAÇÕES
DA CHINA
PARTICIPAÇÃO
(%)
1970
317.000
2.514
0,8
1975
877.000
6.019
0,7
1980
2.034.000
19.704
1,0
1985
1.954.000
25.632
1,3
1990
3.449.000
62.091
1,8
1995
5.164.000
148.779
2,9
2000
6.454.000
249.203
3,9
2005
10.482.000
761.953
7,3
2007
13.898.000
1.217.776
8,8
Fonte: Elaboração própria, com base em dados da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Os EUA têm sido um importante parceiro comercial da China, compreendendo mais de 20% do destino das exportações chinesas. Em 1972, com
o fim do embargo comercial dos EUA à China, o fluxo comercial entre as
nações obteve um aumento extraordinário. Em geral, os EUA são grandes importadores de manufaturas chinesas, enquanto a China importa dos
EUA, majoritariamente, bens de capital, grãos e outros insumos escassos
na sua economia.
Além disso, em 1980, a concessão do tratamento de nação mais favorecida
(most favored nation – MFN) dos EUA à China e ainda a classificação da
China como “nação em desenvolvimento” favoreceram o aprofundamento
das relações comerciais entre ambas as nações. Essa medida resultou na
redução, pela metade, das tarifas americanas de importação de têxteis e
vestuários chineses. Como consequência, a China afirmou-se, no início da
década de 1980, como a maior exportadora de têxteis para os EUA, e estes
se tornaram o segundo maior parceiro comercial da China.
240
AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
Desde 2000, a China é o país de maior superávit comercial com os EUA.
Em 2008, o saldo comercial da China foi de US$ 266,3 bilhões, valor mais
do que o dobro do segundo país de maior superávit, o Japão (ver Tabela 4).
O crescimento do superávit chinês foi acelerado nos últimos anos, tendo
mais que dobrado nos últimos cinco anos.
TABELA 4
Déficit Comercial dos EUA: 20 Principais Países
(Em US$ Bilhões)
PAÍS
1996
1999
2002
2005
2006
2007
2008
1
China
-39,5
-68,7
-103,1
-201,6
-232,5
-256,3
-266,3
2
Canadá
-23,9
-34,4
-49,8
-76,4
-73,2
-64,7
-74,6
3
Japão
-47,7
-73,9
-70,1
-82,7
-88,4
-82,8
-72,7
4
México
-16,2
-22,7
-37,2
-50,1
-64,1
-74,3
-64,4
5
Alemanha
-15,5
-28,3
-35,9
-50,7
-47,8
-44,7
-42,8
6
Arábia
Saudita
-1,5
-0,3
-8,4
-20,4
-23,9
-25,2
-42,3
7
Venezuela
-8,2
-5,9
-10,7
-27,6
-28,2
-29,7
-38,8
8
Nigéria
-5,0
-3,7
-4,9
-22,6
-25,7
-30,0
-34,0
9
Irlanda
-1,1
-4,6
-15,6
-19,3
-20,1
-21,3
-22,9
10
Itália
-9,4
-12,3
-14,2
-19,5
-20,1
-20,9
-20,7
11
Iraque
0,0
-4,2
-3,6
-7,7
-10,1
-9,8
-20,0
12
Argélia
-1,5
-1,4
-1,4
-9,2
-14,4
-16,2
-18,1
13
Malásia
-9,3
-12,3
-13,7
-23,3
-24,0
-21,1
-17,8
14
Rússia
-0,2
-4,0
-4,4
-11,3
-15,1
-12,0
-17,4
15
Angola
-2,4
-2,2
-2,7
-7,6
-10,2
-11,2
-16,8
16
França
-4,2
-7,1
-9,4
-11,4
-12,9
-14,2
-14,8
17
Tailândia
-4,1
-9,3
-9,9
-12,7
-14,3
-14,3
-14,5
18
Coreia do
Sul
3,9
-8,3
-13,0
-16,1
-13,4
-12,9
-13,3
-11,5
-16,1
-13,8
-12,8
-15,2
-11,9
-11,0
0,0
-0,3
-1,8
-5,4
-7,5
-8,7
-10,1
-168,5
-331,9
-470,3
-766,6
-818,0
-791,0
-800,0
19
Taiwan
20
Vietnã
Total
Fonte: Elaboração própria, com base em dados da United States International Trade Commission.
Apesar da crescente importância dos produtos chineses nos EUA, como
observado em Bown et al. (2006), medidas protecionistas contra a China
pouco influenciariam os resultados em conta-corrente dos EUA, que realizam compras em larga escala de outros países, tanto de países em desenvolvimento (por ex.: têxteis e confecções) quanto dos industrializados (por
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 16, N. 31, P. 215-252, JUN. 2009
241
ex.: aço e autopeças). Atualmente, as importações provenientes da China
representam apenas 16% da pauta total dos EUA.
As importações norte-americanas refletem fatores de longo prazo pertencentes à atual estrutura produtiva do país. A tentativa de aumento das exportações e/ou redução das importações pelos EUA, derivadas de políticas
que procurassem reavivar a indústria nacional, majoritariamente implicaria a necessidade de profundas reformulações na forma de produzir. Hoje,
a indústria dos EUA encontra-se inserida em uma vasta cadeia mundial,
derivada, em grande parte, do próprio investimento externo direto de suas
empresas, que vem sendo realizado há décadas.8
O déficit americano é elevado com a China, mas esse país não é o único
que determina sua pauta de importações. As compras externas dos EUA
são relativamente concentradas em determinadas origens e produtos, mas
não há um único mercado preponderante para o resultado final de sua composição. A China é, certamente, o grande destaque no comércio mundial
e não deixa de sê-lo no caso norte-americano, mas não determina essencialmente sua necessidade de produtos vindos do exterior. China, Canadá,
México, Japão e Alemanha explicam pouco mais da metade da pauta de
importações dos EUA, pois há uma grande faixa intermediária de países
que exportam quantidades significativas de variados produtos (ver Tabela 5).
Esses países estão espalhados por quase todos os continentes e vendem aos
EUA produtos tão diversos entre si quanto commodities primárias e manufaturas de alta intensidade tecnológica.
O maior componente das importações dos EUA são manufaturas
(US$ 1,2 bilhão em 2008), incluído nessa categoria um amplo conjunto
de produtos e suas peças, que vão desde bens intensivos em mão de obra
(confecção, móveis, calçados etc.) até de alta tecnologia (aviões, eletrônicos etc.). Exceto pela importação de combustíveis e lubrificantes (US$ 487
bilhões), determinada a partir de uma dinâmica própria, de preservação de
estoques nacionais, as importações de outros tipos de produtos são reduzidas. A dependência em relação a alimentos, bebidas e matérias-primas,
exceto combustíveis, é significativamente menor (US$ 118 bilhões) do que
em relação aos grupos de produtos citados anteriormente.
8 Nesse sentido, ver o temor de empresas transnacionais de capital norte-americano (por exemplo,
Caterpillar e General Electric) sobre as possíveis cláusulas “buy american” no pacote de ajuda do
governo daquele país em decorrência da crise financeira deflagrada a partir do segundo semestre
de 2008. Restrições a importações e/ou incentivos à compra de produtos nacionais prejudicariam
as transnacionais que vendem no mercado interno norte-americano bens produzidos por suas filiais em plantas espalhadas pelo mundo (The Independent, 2.2.2009).
4,9
19,1
11,8
0,7
1,3
1,9
0,0
0,0
0,4
3,6
0,1
0,3
China
Canadá
México
Japão
Alemanha
Reino Unido
Arábia
Saudita
Venezuela
Coreia do Sul
França
Nigéria
Taiwan
ALIMENTOS
E BEBIDAS
(Em US$ Bilhões)
0,3
0,0
0,4
0,5
0,2
0,0
0,4
0,9
0,6
1,5
12,5
1,7
0,3
37,9
3,4
2,2
49,0
54,1
8,5
2,0
0,7
41,9
111,8
2,1
MATÉRIASPRIMAS,
COMBUSTÍVEIS E
EXCETO
LUBRIFICANTES
COMBUSTÍVEIS
1,3
0,1
9,8
2,3
0,0
0,0
15,5
16,7
8,7
4,0
27,1
10,8
PRODUTOS
QUÍMICOS
Pauta de Importações dos EUA por Países em 2008
TABELA 5
21,4
0,0
16,0
32,8
0,1
0,0
17,7
55,0
105,0
111,0
85,2
151,3
MÁQUINAS,
EQUIPAMENTOS
DE TRANSPORTE E
ELETRÔNICOS
11,4
0,0
8,8
9,0
1,2
0,1
11,0
17,9
19,9
36,6
61,4
162,8
OUTRAS
MANUFATURAS
1,3
0,0
2,0
1,1
0,1
0,1
3,7
3,7
3,6
9,0
18,5
4,2
DEMAIS
PRODUTOS
Continua
36,3
38,1
44,0
48,1
50,6
54,3
58,6
97,6
139,2
215,9
335,6
337,7
TOTAL
242
AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
0,1
2,6
1,9
0,3
1,2
3,2
0,2
28,1
85,0
Irlanda
Brasil
Malásia
Rússia
Índia
Tailândia
Israel
Demais
Total
32,7
9,2
0,1
0,8
0,5
0,1
0,3
2,2
0,0
0,2
486,7
143,6
0,3
0,5
0,0
17,0
0,3
8,8
0,1
2,3
MATÉRIASPRIMAS,
COMBUSTÍVEIS E
EXCETO
LUBRIFICANTES
COMBUSTÍVEIS
173,7
37,4
4,7
0,4
3,9
3,0
0,0
1,9
22,1
4,3
PRODUTOS
QUÍMICOS
720,8
62,9
4,4
10,8
3,6
0,0
22,7
6,6
2,2
12,1
MÁQUINAS,
EQUIPAMENTOS
DE TRANSPORTE E
ELETRÔNICOS
Fonte: Elaboração própria, com base em dados da United States International Trade Commission.
3,4
Itália
ALIMENTOS
E BEBIDAS
520,4
108,5
12,2
7,4
16,0
5,9
4,4
7,6
5,5
12,8
OUTRAS
MANUFATURAS
70,1
18,1
0,5
0,5
0,3
0,1
0,7
0,7
1,0
1,0
DEMAIS
PRODUTOS
2.089,4
407,7
22,3
23,5
25,5
26,5
30,2
30,5
31,1
36,1
TOTAL
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 16, N. 31, P. 215-252, JUN. 2009
243
244
AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
As ponderações realizadas sobre a importância das exportações chinesas
para a economia dos EUA não devem, entretanto, ofuscar a peculiaridade
da relação entre os dois países; a China apresenta características que a tornam única no cenário mundial.
Além do grande volume exportado, a necessidade de importação da China também é significativa, o que a torna um “duplo polo” na economia
mundial [Medeiros (2000)]: como principal produtora de manufaturas
a preços reduzidos e como fonte de grande mercado para a produção
mundial de máquinas e equipamentos, indústrias de tecnologia e matérias-primas. Ao mesmo tempo, a China é um rico mercado a demandar a
importação de diversos produtos e um grande fornecedor de manufaturas
a custos reduzidos.9
Para manter seu desenvolvimento industrial, a China enfrenta desafios,
como a escassez de matérias-primas fundamentais para seu avanço.10 Durante a primeira metade da década de 1970, cerca de 70% da pauta de importação chinesa se baseava na compra de grãos, sendo os EUA seu principal fornecedor. Já a partir de 1975, essas importações se reduziram graças
a avanços na produção agrícola doméstica. Em conjunto com o petróleo e
outras commodities, a busca por importação de máquinas e equipamentos
e armas sofisticadas pressiona imensamente a necessidade de divisas e aumenta a importância do mercado externo para o desenvolvimento chinês.
Até o fim da década de 1980, o fluxo comercial entre a China e os EUA
se deu, majoritariamente, via exportação de têxteis, calçados e produtos
eletrodomésticos chineses para os EUA e exportação de máquinas e equipamentos, produtos alimentícios e tecnologias americanas para a China.
No entanto, a partir da década de 1990, o programa de desenvolvimento industrial traçado pelo Estado chinês, que priorizava a realização de
9 Ver Eichengreen e Tong (2007), no mesmo sentido sobre a China ser ao mesmo tempo um grande
exportador e representar um grande mercado consumidor e as implicações dessa peculiaridade
nos efeitos dos fluxos de investimento externo direto. Os vultosos fluxos de investimento direto para
a China não significaram necessariamente o desvio de investimento em direção a outros países,
mas contribuíram em muitos casos para seu próprio aumento. Houve aumento do IED nos países
asiáticos que participam da mesma cadeia produtiva mundial que a China, apesar de conclusão
contrária poder ser obtida quando analisados os casos dos países da OCDE, que sofreram queda
dos fluxos de IED em detrimento daqueles países.
10 A necessidade de matérias-primas é apontada por alguns autores como um dos motivos de expansão da presença chinesa na África, objetivando a garantia de um suprimento de recursos (em especial, petróleo e gás) mais seguro do que no mercado mundial. Ver Besada et al. (2008) para uma
avaliação do fluxo comercial e de investimento externo direto entre a China e os países africanos,
bem como do argumento acima.
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 16, N. 31, P. 215-252, JUN. 2009
245
joint-ventures com as empresas estrangeiras, para favorecer o acúmulo de
know-how por meio do contato e intercâmbio de tecnologias externas avançadas, possibilitou a tendência de diversificação da pauta de exportação
chinesa, que passou a apresentar incremento nas exportações de produtos
com maior conteúdo tecnológico e de maior valor agregado.
Durante a década de 1970, produtos têxteis e calçados correspondiam a
cerca de 57% da pauta de exportação chinesa. Grande parte dessas exportações, como descrito anteriormente, era destinada aos EUA. Já em meados da década de 1980, a participação de bens manufaturados apresentou
aumento, ultrapassando as exportações de têxteis e calçados. No entanto,
em 1995, as exportações de insumos industriais, somadas à exportação
de máquinas e equipamentos, já representavam mais de 47% da pauta de
exportação chinesa. De 1985 a 1995, as exportações de máquinas e equipamentos sofreram incremento de US$ 30,9 bilhões, alcançando o valor
total de US$ 32,2 bilhões. Observa-se uma variação extraordinária das exportações de máquinas e equipamentos e de insumos industriais no ano de
2005, em comparação com 1995, com um incremento de 1.021% e 300%,
respectivamente (ver Tabela 6).
Atualmente, a participação de têxteis e calçados nas exportações chinesas
ainda é elevada, embora se deva destacar que as exportações de bens com
maior valor agregado apresentaram crescimentos significativos em comparação com as décadas de 1970 e 1980.
A pauta de exportações da China é significantemente mais sofisticada do
que a normalmente esperada para um país de seu nível de renda. Políticas de governo foram capazes de desenvolver indústrias em segmentos de
maior conteúdo tecnológico que, sem isso, não se desenvolveriam no país.
Muito mais relevante do que o volume exportado é a capacidade de se
manter em setores de produtos industrialmente sofisticados. O desenvolvimento de tais indústrias foi um fator relevante para as taxas de crescimento
observadas na China [Rodrik (2006)].
Como observam Wang e Wei (2008), para a sofisticação da pauta de exportações chinesa, foi fundamental o papel de políticas públicas na definição
de zonas produtivas de alta tecnologia, para as quais foram estabelecidos
regimes tributários específicos e provida infraestrutura adequada. A participação das exportações dessas zonas cresceu de 6%, em 1995, para 25%,
em 2005. A sofisticação da pauta de exportações chinesa não ocorre apenas
pela fabricação de produtos para os quais os componentes de maior sofisticação são originados (importados) de países desenvolvidos. Os autores
13,80
Bebida e Tabaco
6.019
176,83
3.437,99
880,66
1.077,21
222,84
18,72
21,06
183,42
1975
21.115
5.284,94
2.332,37
463,64
2.932,43
829,68
6.602,59
37,75
2.631,26
1985
148.779
5.160,70
54.221,58
31.406,87
32.239,68
9.095,11
5.332,03
1.369,15
9.954,39
1995
761.953
9.358,07
194.183,39
352.233,91
129.120,65
35.772,13
17.621,88
1.183,04
22.480,34
2005
1.217.776
11.603,46
296.139,23
577.751,39
219.877,02
60.314,44
19.950,87
1.396,55
30.742,79
2007
* Classificação de acordo com o SITC.
Fonte: Elaboração própria, com base em dados da United Nations Commodity Trade Statistics Database (UN Comtrade).
1.143
55,32
Outras Mercadorias
Total
584,18
Outros Bens
Manufaturados
(Calçados, Artigos
de Vestuário)
72,69
288,44
Insumos Industriais
Máquinas e
Equipamentos
50,94
Produtos Químicos
4,98
72,32
Alimentos
Combustíveis
Minerais
1965
PRODUTOS
(Em US$ Milhões)
Exportações Chinesas por Produtos*: 1965 a 2007
TABELA 6
412
81,3
258,1
1021,5
300,5
293,3
230,5
-13,6
125,8
VARIAÇÃO
2005/1995 (%)
100
1
25
46
17
5
2
0
3
PARTICIPAÇÃO
2005 (%)
246
AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 16, N. 31, P. 215-252, JUN. 2009
247
concluem que, apesar da importância das exportações baseadas na montagem de componentes importados, o incremento da sofisticação da pauta
chinesa apresenta também como fator relevante a fabricação de produtos
de alto conteúdo tecnológico que não são meramente montados no país.
A maior sofisticação da pauta chinesa de exportações não implica, porém,
necessariamente a competição direta com a indústria norte-americana. As
relações entre os dois países podem continuar complementares. A despeito
de questões político-militares,11 do ponto de vista estritamente comercial,
a indústria dos EUA pode continuar a se beneficiar mesmo com a crescente sofisticação das exportações chinesas, sem que estas representem uma
ameaça. Parte da origem da crescente sofisticação das exportações na China
passa pela questão sobre o controle da produção – na detenção dos projetos
e especificações de produção – e a especialização, em vários segmentos,
dentro de uma mesma cadeia produtiva. Superada a fase de aproveitamento
da mão de obra barata, em muitos casos, fábricas chinesas produzem em
larga escala componentes de alto conteúdo tecnológico que são utilizados
localmente ou em outros países, mas o controle referente a “o que fazer”
continua em matrizes norte-americanas, japonesas ou europeias.
4. Conclusões
As relações produtivas entre China e EUA são antigas e hoje podem ser
consideradas estruturais, ou seja, de difícil mudança em pouco tempo. O
grande fluxo de comércio e a presença de empresas de capital de origem
americana produzindo na China demonstram as fortes ligações entre os
dois países. As relações entre ambos são muito mais do que apenas comerciais em um sentido estrito. A possível guerra comercial temida no cenário
internacional, com o recrudescimento do protecionismo por causa da crise
econômica mundial, apesar de poder ter efeitos claros, apresentaria limites
nesse caso. As relações produtivas entre os dois países são profundas o suficiente para que não se espere uma redução brusca da importância relativa
do comércio entre eles, a despeito da crise econômica mundial.
O IED representou um papel importante no desenvolvimento chinês, e a
estratégia chinesa de aproveitar a reaproximação dos EUA, na década de
11 O desenvolvimento tecnológico está ligado também a P&D referente ao complexo militar, que, este
sim, gera crescente preocupação de segmentos do governo norte-americano. De forma análoga,
os EUA são percebidos pelo governo chinês como a principal ameaça à sua segurança militar na
região; ver Medeiros (2008, p. 263-269).
248
AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE CHINA E EUA: RESGATE HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES
1970, foi fundamental para o desempenho observado atualmente. Ambas
foram condições necessárias, mas apenas uma delas, ao que parece, não teria sido suficiente. O desenvolvimento chinês em escala quase antes nunca
vista foi resultado de uma combinação peculiar de condições internacionais
e nacionais. O desenvolvimento recente da China se deu via combinação
de iniciativas do Estado com a implementação de políticas de crescimento
econômico interno, aliada à conjuntura externa favorável.
A atração de investimentos externos e a criação de indústrias voltadas para
a exportação foram partes fundamentais da estratégia de desenvolvimento
do Estado chinês, apesar de não esgotá-la. O programa de desenvolvimento
singular promovido pelo Estado chinês teve como alicerces fundamentais os
incentivos de desenvolvimento da economia doméstica, em conjunto com
a interação do âmbito internacional mediante abertura comercial do país. O
modelo econômico desenvolvido pela China, em conjunto com o aparato
estratégico do Estado, baseou-se na importância das exportações e do IED
como fonte de acúmulo de reservas internacionais e de know-how, fornecendo meios que possibilitassem a compra de máquinas e tecnologias avançadas
como forma de modernizar o setor industrial do país. Com o tempo, o modelo adotado permitiu à China caminhar de forma mais autônoma, tornando-a,
atualmente, a principal economia emergente no sistema internacional.
Os EUA desempenharam papel determinante no crescimento inicial da
economia chinesa. Com a relação comercial restabelecida a partir da década de 1970, e a abertura da economia chinesa ao Ocidente, o fluxo comercial entre os países se expandiu de forma grandiosa. O contato com os EUA
foi fundamental por ser considerado um grande fornecedor de tecnologias
e maquinários avançados, além de proporcionar intercâmbios enriquecedores por meio da alocação de investimentos em territórios chineses, que
favoreceram ainda o extraordinário incremento do acúmulo de divisas pela
China, vitais para a importação de bens de capital. As trocas entre as nações foram benéficas para ambos: os EUA ganhavam com a importação de
manufaturas baratas advindas da China, enquanto a China obtinha ganhos
para a modernização industrial do país por meio da importação de máquinas e da acumulação de conhecimentos por meio de joint-ventures. Reatar
as relações com a China foi benéfico para os EUA, não só no contexto de
contenção do avanço soviético, mas também como grande fonte de mão
de obra barata e abundante, boa infraestrutura, pouca regulação e um rico
mercado interno provedor de uma demanda abundante por conta da elevada população do país.
Entretanto, apesar de ser de extrema relevância na atual composição da
pauta de importações dos EUA, a China não é o único país a determinar
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seu déficit comercial. Os EUA apresentam expressivo volume de compras
oriundas de Canadá, México, Japão e Alemanha, além de uma grande faixa
de países com participações médias, mas que no conjunto formam quase
metade da pauta total de suas importações. Para mudar essa característica
que já perdura há anos, tendo sua origem nos acontecimentos das décadas
de 1970 e 1980, a indústria norte-americana deveria passar por uma profunda transformação, cenário pouco provável em curto intervalo de tempo.
Sem dúvida, as empresas norte-americanas continuam a deter a capacidade
de produzir, mas a interiorização da produção no limite de suas fronteiras,
com o emprego de mão de obra local, necessitaria de um significativo e,
talvez, demorado processo de adaptação.
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