preservação de técnicas construtivas tradicionais

Transcrição

preservação de técnicas construtivas tradicionais
PRESERVAÇÃO DE TÉCNICAS
CONSTRUTIVAS TRADICIONAIS:
MEMÓRIA DE UM SABER FAZER
Arq. D. Sc. Rosina Trevisan M. Ribeiro
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
PROARQ/FAU/UFRJ, Brasil
INTRODUÇÃO
O patrimônio cultural edificado é composto pelos bens materiais e imateriais que
simbolizam a cultura e identidade de um podo ou uma sociedade. Além dos monumentos
edificados, das casas modestas representantes de uma determinada época construtiva, dos
sítios históricos, da paisagem e objetos de arte, existe um patrimônio muito importante a se
preservar constituído pelas crenças, língua, costumes, formas de expressão, saberes e
modos de fazer de um povo, que denominamos de patrimônio imaterial. Existe uma relação
direta entre o edificado e o imaterial, visto que a construção tem toda uma história e uma
cultura envolvida que lhe é peculiar e que agrega valores imprescindíveis ao construído.
Dentre este patrimônio imaterial temos o “modo de fazer”, o “saber-fazer” de um
objeto ou elemento construtivo que está se perdendo ao longo dos anos. A técnica
construtiva utilizada na construção de uma edificação faz parte de seu valor intrínseco e
muitas vezes é o fator primordial de sua preservação. Sendo assim, além do valor histórico e
artístico que o edifício possui existe um outro, de extrema relevância para a memória e
preservação do patrimônio, que é o valor tecnológico, o qual exige um estudo e metodologia
própria para ser preservado.
O grupo de pesquisa de Preservação e Restauração do Patrimônio Edificado RestaurArq, do PROARQ/FAU/UFRJ, registrado no CNPq, vem estudando esta questão no
intuito de avaliar até que ponto as novas técnicas de restauração, atualmente tão divulgadas
como necessárias para a preservação do patrimônio edificado, não estaria relegando a um
plano inferior a técnica construtiva que originou a edificação e faz parte de sua essência e da
história e sua identidade.
A intervenção no Patrimônio Edificado: Valor e Identidade
A questão de como se intervir no patrimônio edificado vem se modificando ao longo dos
anos conforme é verificado nos Congressos e Seminários em todo o mundo. Inicialmente,
com base nas teorias de Camilo Boito1 e Gustavo Giovannoni2, era preconizado que as
intervenções fossem realizadas com materiais modernos, diferentes do original, ficando
claramente identificada mas não se sobressaindo do original. Isto pode ser visto desde a
Carta de Atenas de 1931, em que enfatiza o uso do concreto nas intervenções estruturais e
posteriormente na Carta de Veneza de 1964, quando diz que “a consolidação do
1
2
Arquiteto, engenheiro e crítico da arte italiano (1836-1914).
Engenheiro civil e historiador de arte italiano (1873-1948)
monumento pode ser assegurada com o emprego de todas as técnicas modernas de
conservação e construção cuja eficácia tenha sido demonstrada por dados científicos e
comprovada pela experiência”3. Posteriormente, nas Cartas do Restauro Italiana (1972) e na
Carta de Nairobi (1978) este pensamento ainda permanecia como único e imprescindível.
Na década seguinte, em 1982, na cidade de Trinidad/México, na seção do 3º Simpósio
Inter-Americano sobre a Conservação do Patrimônio edificado é redigida a Declaração de
Tlaxcala, onde fica evidente a defesa da manutenção das técnicas tradicionais. Recomenda
que a utilização de materiais regionais e a conservação de técnicas de construção
tradicionais de cada região sejam indispensáveis para a conservação adequada das pequenas
aglomerações e que não estejam em contradição com a teoria geral que estabelece que se
deixe em evidência nas intervenções a marca de nosso tempo. Recomenda, ainda, encorajar
a competência artesanal da construção, através de premiações (Declaração de Tlaxcala,
1999 – item 5). Mas como pode ser visto, apesar de incentivar o uso de técnicas tradicionais,
recomenda que fique evidenciada a intervenção indicando a época de realização da mesma.
A partir da década de 1990, com o Congresso realizado no Japão, onde surgiu a Carta de
Nara (1994) a questão do valor atribuído ao edifício passa a ser prioritário nas decisões de
restauração necessárias no patrimônio. No Brasil, no ano seguinte, em reunião realizada em
Brasília é extraído um documento regional do Cone Sul, especificamente sobre
autenticidade, que destaca que “a autenticidade dos valores se manifesta, se alicerça e se
mantém na veracidade dos patrimônios que recebemos e que transmitimos à posteridade”4.
A intervenção deve resgatar o caráter do edifício ou do conjunto sem alterar sua essência e
equilíbrio, mas sim enaltecendo seus valores.
Em relação à questão dos valores atribuídos ao patrimônio e o nível de intervenção no
mesmo Alois Riegl5 e Max Dvořák6 discutiam o assunto desde o final do século XIX, início do
XX. Segundo Riegl (1999), para que seja possível estabelecer os limites da intervenção em
um patrimônio cultural edificado precisamos identificar que valores são determinantes
daquele bem. Dvořák enfatizava que “preservar é um dever moral, que deve ser transmitido
hereditariamente, assim como se ensina o respeito pela propriedade alheia” e afirma “que o
valor que se atribui aos monumentos justifica a importância de preservá-lo”7.
Já no século XXI, em 2003, em documento do ICOMOS intitulado “Princípios para
análise, conservação e restauro estrutural do patrimônio arquitetônico”, o órgão defende
que
“deve ser ponderada, caso a caso, a escolha entre técnicas “tradicionais” e “inovadoras”, e
deve ser dada preferência àquelas que menos invasivas e mais compatíveis com os valores
do patrimônio, tendo em mente os requisitos de segurança e de durabilidade (item 3.7).
Cada intervenção deve, tanto quanto possível, respeitar o conceito, as técnicas e o valor
histórico dos estados originais e primitivos da estrutura, e deve deixar evidencias que
possam ser reconhecidas no futuro (item 3.12.)”.
É importante salientar que não existe uma regra única para qualquer que seja o tipo de
intervenção. É necessário se discutir o valor existente naquilo que se está intervindo visando
não descaracterizar a identidade do bem e preservando para futuras gerações um modo de
fazer tradicional que não é mais utilizado nos tempos atuais. Os materiais a serem utilizados
nas intervenções nem sempre podem ser os mesmos da construção original, mas os novos
precisam ser cuidadosamente estudados para que não danifiquem os ainda existentes,
originários da construção inicial.
3
In: CURY, 2000
In: CURY, 2000, p.324
5
Historiador da arte austríaco (1858-1905).
6
Historiador da arte tcheco (1874-1921).
7
DVOŘÁK, 2008, p. 14-15
4
Análise da Questão
Fig. 1 – Preenchimento de peça de madeira com
resina epoxídica líquida e areia no Museu VillaLobos – RJ. Fonte: Foto de Marisa Hoirish.
Fig. 2 – Tesoura em aço para reforço do telhado.
Fonte: www.albatroz.arq.br/site/obras
Fig. 3 y 4 – Detalhe da nova peça de madeira com a
reprodução do seu encaixe
Marcação / datação das peças novas. Fonte: Turino;
Ribeiro, 2009
8
Diversas são as formas de intervenção no patrimônio edificado. A mais
utilizada, em vista dos preceitos iniciais preconizados nas cartas
patrimoniais é a de utilização de materiais contemporâneos para reforço e
restauração de elementos da edificação. Podemos citar como exemplo a
utilização de resinas, tais como a que foi utilizada na restauração do
telhado do Museu Villa Lobos no Rio de Janeiro/Brasil (Figura 1).
Em relação a esta questão, no documento do ICOMOS na 12ª Assembléia
Geral no México, em 1999, denominado “Princípios para a preservação
das estruturas em madeira”, no capítulo referente às intervenções diz que
“qualquer intervenção proposta deve, de preferência usar meios
tradicionais”. Defende o emprego de materiais e técnicas tradicionais
como sendo a melhor alternativa e alerta para o uso indiscriminado de
materiais e tecnologias contemporâneas que não tiverem comprovação
concreta e duradoura de sua aplicação na restauração de peças de
madeira.
“Os materiais contemporâneos, tais como as resinas epóxi, e as técnicas
contemporâneas, tais como o reforço estrutural com o aço, devem ser
escolhidos e usados com a maior precaução, e só em casos onde a
durabilidade e o comportamento estrutural desses materiais e dessas
técnicas de construção já tenham demonstrado serem satisfatórios,
durante um período de tempo suficientemente longo”. (ICOMOS, 1999 –
item 13)
Uma outra forma de atuação é a manutenção dos elementos originais e o
acréscimo de uma nova estrutura, com material diferente do original,
visando a estabilidade do elemento construtivo. Isto pode ser visto na
intervenção realizada na estrutura de madeira do telhado da Paróquia de
São Francisco de Paula, em Curitiba/PR, onde foram acrescentadas
tesouras em aço, mas mantendo a estrutura original do telhado em
madeira com o tratamento adequado (Figura 2).
Já evoluindo para as novas teorias de intervenção, uma possibilidade é a
utilização do mesmo material original, mas com uma identificação da data
de sua introdução no local deixando claro não ser original e
consequentemente não estar criando um falso histórico (Figuras 3 e 4).
Finalmente, uma intervenção comum realizada em telhados coloniais
brasileiros é a alteração da estrutura com a retirada do galbo e
contrafeito8 (Figura 5) descaracterizando a forma original do telhado. Esta
solução acarreta uma alteração da curvatura do telhado originária de
edificações construídas no século XVI a XVIII com o objetivo afastar da
parede a água proveniente da chuva que escorre pelo telhado da casa. A
retirada desta curvatura altera uma característica histórica da forma de se
construir alterando a autenticidade da construção original.
Há diversas formas de se intervir no patrimônio edificado. Questões
relativas à durabilidade e custo benefício devem ser consideradas. Mas o
principal fator é o valor do edifício e a sua representatividade para a
sociedade. Tem-se que ter o cuidado de não descaracterizar o patrimônio.
Elementos utilizados nas edificações com paredes grossas e existência de cachorros em beirais.
A utilização de materiais novos, diferentes dos existentes no local da intervenção,
atende ao critério de distinguibilidade prescrito nos documentos internacionais de restauro.
No entanto, é necessário pensar num futuro longínquo, quando novas intervenções terão
que ser realizadas no mesmo local. Na ocasião serão utilizados outros materiais, diferentes
do original e também da intervenção anterior. Tem que se tomar cuidado para que a
aplicação de materiais e técnicas construtivas diferenciados não acabem descaracterizando
o elemento construtivo, acabando com sua autenticidade.
Este procedimento é importante em função de que os registros documentais muitas
vezes se perdem ou não são consultados. Mas esta não pode ser a justificativa de seu uso.
Dentre as técnicas e materiais utilizados nos exemplos citados, nos parece mais
adequado e ético, o último caso onde foi utilizado e mesmo material mas marcando que este
não era original através de uma datação. Isto possibilitou a questão da compatibilidade
necessária entre o material novo e o antigo, a manutenção da aparência geral e a não
criação de um falso documento.
CONCLUSÃO
O objetivo deste trabalho foi apresentar e discutir diversas formas de intervenção, à luz da
teoria de preservação do patrimônio cultural existente em todo o mundo, apresentando a
complexidade do tema. A questão não é condenar ou apoiar o uso de uma ou outra técnica,
mas verificar que é possível se utilizar tanto materiais e técnicas construtivas tradicionais
quanto contemporâneos, desde que de forma ética e consciente no que diz respeito ao valor
tecnológico existente num patrimônio edificado.
É evidente a necessidade de se fazer registros documentais de todas as intervenções
realizadas no patrimônio. Que estes registros sejam guardados em arquivos públicos para
que todos que pesquisem um determinado edifício tenham acesso às intervenções
realizadas indicando as técnicas e materiais utilizados nas obras e serviços junto com a
documentação iconográfica do processo de intervenção (plantas, desenhos e fotos).
Um aspecto importante a se destacar é que quando houver necessidade de reprodução
de algum elemento, isto só aconteça quando existirem registros físicos ou documentais que
possam auxiliar na execução correta e fiel do que se construiu originalmente. Mesmo assim
com identificação (datação, por exemplo) do que não é original. Não se pode trabalhar sobre
hipóteses ou suposições que venham a criar falsos históricos. Nestes casos é válido utilizar
materiais claramente contemporâneos.
A teoria ainda vigente no Brasil de que as intervenções têm que ficar
caracterizadas como tal e facilmente reconhecíveis precisa ser analisada
com muito cuidado. É necessário evitar o risco de ao se inserir novos
materiais e/ou utilizar novos procedimentos técnicos, estes não
venham a descaracterizar as partes originais da edificação que foram
responsáveis por lhe agregar valores que a tornaram digna de
preservação.
Fig. 5. Galbo e contrafeito de telhado.
Fonte:
http://coisasdaarquitetura.wordpress.com/2010/06/2
6/tecnicas-construtivas-do-periodo-colonial-ii/
É importante deixar claro que não existe um critério único de
intervenção. Deve-se avaliar o mais adequado a cada caso, visando a
preservação do patrimônio edificado, não se esquecendo da
importância de se preservar a técnica construtiva original como parte
da história de uma edificação.
BIBLIOGRAFIA
BRANDI, Cesare. Teoría da restauração. Trad.: Beatriz M. Kuhl. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.
CURY, Isabelle (org.). Cartas patrimoniais. 2 ed. – ver. aum. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000.
DVOŘÁK, Max. Catecismo da preservação de monumentos. Trad. Valéria Alves Esteves LimaSão Paulo: Ateliê
Editorial, 2008.
ICOMOS. Declaração de Tlaxcala (1999). Trad. Antônio de Borja Araújo. Disponível em:
http://www.quintacidade.com/wp-content/uploads/2008/03/declaracao-de-tlaxcala.pdf.
ICOMOS. Principios que deben regir la conservación de las estructuras históricas en madera, 1999. Adaptado
pelo ICOMOS na 12ª assembléia geral no México: Disponível em:
http://www.international.icomos.org/charters/wood_sp.htm.
ICOMOS. Principios para el analisis, conservacion y restauracion de las estructuras del patrimonio
arquitectonico, 2003. Carta do ICOMOS, adaptada pela 14ª assembléia geral do ICOMOS. Zimbabwe:
Disponível em:
http://www.international.icomos.org/charters/structures_sp.htm.
RIEGL, Alois. El Culto Moderno a los Monumentos. Madri: Visor Dis., S.A, 1999.
TURINO, Thiago; RIBEIRO, Rosina Trevisan M. Restoration of timber roof structures: the use of traditional
techniques or employment of contemporary techniques. In: PROHITECH CONFERENCE 2009 - First
International Conference, 2009, Roma. Anais… Roma: Taylor & Francis Group, 2009. P. 301-5.