A Leitura e os Contos

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A Leitura e os Contos
os seus pensamentos. Sugere coisas e diz-me o que pensa que
eu devo fazer quando estou perdido ou confuso. Foi a minha
mãe que me deu a ideia do índio. Às vezes, não posso interagir
fisicamente com ele na minha mente. Às vezes, limitamo-nos a
sentar-nos juntos e a fumar um cachimbo. Geralmente vejo-o a
fazer várias coisas e a pensar por mim. Por vezes nem sequer o
vislumbro ou penso nele, mas ele ajuda-me a racionalizar e a
interpretar os meus sentimentos e as minhas acções. Ele é
A Leitura
e os
Contos
muito simples e está sempre perto de uma tenda. Calça
mocassins e veste calças de camurça e uma camisa. Tem
longas tranças negras, e em volta da cabeça uma tira feita com
penas e contas. Usa em redor do pescoço uma fieira de contas
castanhas, brancas, azuis e pretas. Os mocassins são ornados
de contas. Parece sempre tranquilo.
A busca da identidade
Nesta sociedade, temos poucos rituais para assinalar o fim da
infância e o início da idade adulta. Queremos que os nossos
adolescentes assumam cada vez mais a responsabilidade pelas suas
vidas, na escolha de empregos, de namorados e de colégios, mas
não deixamos de os tratar como crianças. Castigamo-los, negando-lhes regalias, quando pensamos que não estão a comportar-se
como adultos responsáveis.
Os adolescentes são principiantes. Estão a enfrentar, pela
primeira vez, muitas experiências e problemas de adultos.
Subitamente, vêem-se diante de problemas tão diferentes como o
significado dos papéis masculino e feminino, a identidade e a
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actividade sexual, preocupações financeiras, seguro de automóvel,
candidatar-se a empregos, decisões sobre a escola e sobre sair de
casa e tentar entender quem são. Além disso, ainda queremos que
vão deitar o lixo fora e que façam todos os deveres sem demora.
Eles precisam de toda a nossa compreensão, orientação, paciência e
estímulo e, naturalmente, também queremos a sua cooperação e
respeito. O que em geral ocorre é uma luta emocional pela
supremacia.
Para encontrar a sua própria identidade, os adolescentes
repelem frequentemente as figuras dos pais e de outras autoridades
e contam com o apoio e conforto dos amigos. Na adolescência, dos
16 aos 19 anos, a busca da própria identidade intensifica-se. É esta
mesma busca que atemoriza pais e professores e os torna mais
restritivos. O adolescente defronta-se com a necessidade de afirmar
a sua vontade de conhecer a própria identidade, e receia que, se o
fizer, possa perder o amor dos pais. A mensagem por detrás disto é:
“Posso correr o risco de afirmar quem sou, ou tenho de me
conformar em ser amado por vocês?” Como disse Brett, de
dezassete anos: “Quero que o meu pai compreenda que sou jovem
apenas uma vez e que preciso de experimentar. Não estou a tentar
exasperá-lo. Apenas tenho necessidade de procurar.”
Outros adolescentes sentem-se culpados em relação à
dicotomia entre o eu que mostram aos pais e professores e o eu que
está a estudar diferentes papéis com os amigos. Tim, de dezoito
anos, diz: “Quero que os meus pais saibam quem realmente sou.
Eles pensam que sou bonzinho.” Os pais não estão menos confusos
do que os filhos. Primeiro queremos prendê-los e, momentos
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depois, não vemos a hora de os soltar. Eu mesma dei comigo a
Índice
transformar-me numa mãe cada vez mais exigente quando o meu
filho se preparava para ir para a faculdade. Durante o último ano
que passou na escola secundária, tentei impor uma lei marcial cada
Sonhos na palma da mão.......................................................................1
De pequenino se torce…o leitorzinho! ..............................................13
A Senhora dos livros.............................................................................39
Algumas leves considerações acerca dos contos de fadas .............45
O pássaro da lua ..................................................................................51
Como inventar histórias? ....................................................................59
Era uma vez ….um dia de escola normal ............................................63
A hora do conto ...................................................................................69
vez mais rigorosa em relação a chegar cedo, até que Brendan me
chamou a atenção para ao facto de que podia ficar fora até mais
tarde quando estava no nono ano! Compreendi, então, que estava
apreensiva não apenas em relação ao comportamento que ele e os
amigos estavam a adoptar, mas também em relação ao seu
crescimento e afastamento da família.
Dizer adeus a uma relação dependente e tentar encontrar
uma nova maneira de se relacionar baseada na independência são
as tarefas do adolescente mais velho, assim como dos pais ou do
O desejo de Ruby ..................................................................................73
professor. E não é fácil. Este é um período de muitas emoções
Contar um pouco de mim! .................................................................79
mescladas. Para os filhos, a alegria, as expectativas e a liberdade
A Vovó-lobo ..........................................................................................81
que associam à passagem para a idade adulta estão misturadas com
A luta pelo sentido ..............................................................................95
o medo de se afastar da segurança e da protecção do lar. Os pais
Madassa ..............................................................................................129
perguntam-se se incutiram todos os valores “certos” e se
O uso das imagens mentais ..............................................................133
Uns minutos de relaxamento ...........................................................175
É a tua vez de ler, Sara! ......................................................................177
As folhas da tília ................................................................................185
Quem conta um conto... ...................................................................191
As palavras cor-de-rosa e as palavras cinzentas .............................195
O conto como auto-conhecimento .................................................203
A casa feita de sonho .........................................................................209
prepararam o filho ou filha de maneira suficientemente boa para a
vida. Os professores preocupam-se em saber se prepararam os
alunos de modo adequado para os estudos futuros ou os deveres
profissionais. Pais e professores têm também que se haver com
sentimentos de perda quando os adolescentes amadurecem e se
afastam do seu convívio diário.
Esta é uma fase difícil para o adulto que não tem consciência
do necessário distanciamento pelo qual o adolescente deve passar.
Os adultos podem, muitas vezes, sentir-se rejeitados, impotentes e
i
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não-amados, e perguntam-se o que aconteceu com a relação
Burros & livros ...................................................................................213
afectuosa que existia entre a criança e o adulto. Lembre-se de que
As sapatilhas de Sofia ........................................................................219
esta é uma fase de desenvolvimento e não durará para sempre.
O avô Lop ............................................................................................225
Quanto mais espaço der às crianças para encontrarem a sua
própria identidade, mais elas quererão compartilhá-la consigo – no
momento certo.
O contar é um instrumento de reconstrução do mundo .............233
E se a lua pudesse falar… ...................................................................259
Cosmicidade da infância ...................................................................263
Como se afastar da identificação excessiva
Infância e palavra...............................................................................269
Os adolescentes ficam muitas vezes absorvidos por uma coisa
Os contos de fadas no cuidado e tratamento de crianças com
perturbações emocionais ..................................................................273
ou outra, tornando-se cegos em relação a tudo o que está fora do
Eros e Psique .......................................................................................297
campo da sua paixão particular. Esta pode ser a música, a moda, o
Os contos e os mitos no ensino - uma abordagem junguiana ......299
sexo oposto, a imagem do corpo, o atletismo ou uma crença. Não
O elogio da narrativa .........................................................................311
há nada de errado nisto. A coisa em si pode ser, na verdade,
O contador de histórias .....................................................................317
inteiramente positiva. Se nos identificamos com a verdade,
integramos essa qualidade na nossa vida. No entanto, essa
identificação, quando levada ao extremo, pode bloquear a
possibilidade e a viabilidade de qualquer outro sentimento,
sensação ou pensamento.
Os adolescentes apegam-se tenazmente à própria identidade,
ao modo como se vêem a si mesmos e como desejam ser vistos
pelos outros. A intensidade dos seus sentimentos e ideias faz com
que, por vezes, sejam vistos de uma forma muito limitada, não
apenas por si mesmos, mas também pelos outros. Precisamos de os
ensinar a dar um passo atrás e chegar a uma visão de perspectiva
de si mesmos. Nesse sentido, um exercício proveitoso é o do
“Santuário”, ou seja, levar os nossos jovens a imaginar um espaço
edénico, paradisíaco, onde possam estar tranquilos. Proporciona
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aos adolescentes a oportunidade de alterar o seu ritmo, de ir para
um lugar dentro de si mesmo, um lugar seguro e livre da
intensidade dos sentimentos juvenis e encontrar um centro
tranquilo e uma sensação de paz interior. Alex, de dezassete anos,
escreve:
Fui ao labirinto de Ojai e olhei para o vale e o mar,
que é sempre uma fonte de calma para mim. Parecia
SONHOS NA PALMA DA MÃO
ÃO
próximo devido à sua imponência e, de longe, a sua
imensidão e quietude acalmam-me. Demorei a encontrar
No sonho
nho, a liberdade
este lugar. Inicialmente escolhi o meu quarto mas havia
demasiadas distracções. Depois, voltei ao local de um
Uma história — como a sentimos?
grande sonho que tive na noite anterior, mas não pude
Como semente. Uma semente que cresce conn
onnosco e nos
ter ali nenhum pensamento original porque a minha
faz crescer. Estes «Sonhos na Palma da Mão» pagam
agam, de certa
mente ficou a vaguear em volta do sonho. Percebi o
maneira, o encanto que me deram «A Rapariga dos
os F
Fósforos», a
vento de Outono e senti o perfume das árvores.
«Sereiazinha», «O Patinho Feio», «O Rouxinol».
l». Longe, na
Outro exercício que nos ajuda a reconhecer sentimentos e a
infância. Com as suas sombras e claridades — Ande
ndersen nunca
expressá-los, em vez de ficarmos identificados demais com eles, é o
mentiu a vida e soube sempre aliar beleza e sofr
sofrimento —
chamado “Boletim Meteorológico”.
rolavam sobre mim, como berlindes mágicos, percor
corriam-me os
cantinhos
da
alma,
abriam
portas
rtas
Faça com que o seu filho ou os seus alunos tracem um grande
secretas,
círculo, dividindo-o em quatro quadrantes. Pergunte-lhes como se
permitiam-me respirações, outras, que
ue nem sabia.
estão a sentir no momento – mental, emocional e fisicamente.
Uma dimensão, cujo bafo tento, aqui
qui, passar a
Em seguida, eles anotam um sentimento em cada um dos
corações com olhinhos interiores.
quadrantes e escolhem dois ou mais sentimentos para explicar:
O pássaro não era maior do que a fa
falange do dedo
polegar. Tão delicado, tão delicado e peq
pequenino, que a
menina quase receava tocar-lhe — e a m
maior parte das
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vezes só o fazia com o olhar, deixando-o no longo alfinete,
espetado no raminho seco da estante de livros do quarto da avó.
Sim, porque as meninas ainda costumam ir a casa da avó, mesmo
sem cestinho de bolos, sem capuchinho encarnado, sem lobo, nem
Exausto
Amistoso
floresta. Só de autocarro. Era esta uma menina atenta e curiosa e
tinha perguntado logo donde viera o passarinho.
— Da China — respondera, breve, a avó, que escrevia uma
carta.
Atrapalhado
Fora de sincronia
— Ai, é um rouxinol? — insistira excitada, pois a avó tinha-lhe lido «O Rouxinol» de Andersen e da China era só o que sabia e
mais amava.
Mas a avó, esquecida da história, estranhara simplesmente:
Na parte de baixo do papel eles escrevem: “Eu sinto-me
……porque...”, explicando como se sentem e por que se sentem
— Um rouxinol?! Porquê um rouxinol?... Não parece. Lembra
assim. Eis aqui um exemplo de David, um rapaz de dezasseis anos:
mais um pisco, por causa do papinho vermelho... Olha aqui —
puxou a enciclopédia e deixou-lha aberta na página colorida das
Sinto-me exausto porque se quiser dormir o bastante,
aves, enquanto voltava à escrita.
não faço todos os deveres escolares. E as minhas relações
pessoais sofrem porque não tenho tempo para elas. Sinto-me
Passado pouco tempo, a menina tornou:
atrapalhado porque a minha irmã está a chegar a casa. A
— A China é grande, vovó?
última vez que a vi compreendi uma porção de coisas
— Imensa... — e a avó abriu totalmente os braços para
negativas sobre a nossa relação, e não quero cair nisso outra
mostrar a impossibilidade de a abarcar.
vez. Sinto-me amistoso porque este ano fiz novos amigos. As
pessoas gostam de mim e aceitam-me mais do que esperava.
Grande, grande, percebeu a menina. Curioso, mas dava
Estou contente. Sinto-me fora de sincronia comigo mesmo
pássaros pequeninos.
porque o meu corpo está tão cheio de energia sexual que não
— Como o mar?
sei o que fazer.
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2
— Ai que marota, que não me deixa acabar a carta!... Como o
A expressão desses sentimentos ajuda o adolescente a aceitá-
mar, não. O mar é maior do que toda a terra e a China é menor do
-los, a contê-los e a compreendê-los para que eles não possam
que o Canadá, um país onde há muita neve e gelo...
manipular a sua vida. Ajuda-o também a ver que pode ter ao
mesmo tempo sentimentos conflituosos. David sentia-se amistoso,
Ah! Não era fácil. Era preciso comparar...
embora, simultaneamente, se sentisse atrapalhado em relação aos
— E há rios na China?
seus sentimentos pela irmã. A identificação dos sentimentos
diminui
A avó rira. Claro que havia rios e um deles era o rio
o
controle
que
eles
exercem
sobre
o
nosso
comportamento.
Amarelo...
A busca de sentido
E a menina imaginou um guache espesso de sol derretido, a
correr entre montanhas azuis, nas margens, espadas verdes de
Os adolescentes sentem uma enorme aflição pela situação
bambu, que também sabia, ordenadas como exércitos. Complicada
em que se encontram as coisas no mundo e ficam indignados com
a China. E como a avó saíra do quarto para atender o telefone, o
as pessoas mais velhas por nos terem metido na confusão em que
seu interesse regressou ao pássaro. Olhou-o uma vez mais. A
nos encontramos. Muitas vezes passam por uma crise existencial e
cabecinha e as asas eram de uma só pena, cor de pinhão, anegrada
expressam-na em desespero. “Para que serve a vida? Qual o seu
no leque do rabinho. Os olhos, contas de missanga miúda, estavam
sentido? Nada do que eu faça tem importância, pois, afinal de
aprisionados em círculos branco-giz, desenhados a pincel. O
contas, estamos a caminho da destruição.”
papinho era preciosa seda vermelho-sangue. Que lindo era! Quem
No período da nossa história em que Robert Kennedy e
o teria feito, com amor e agulhas minuciosas? Muito desejava sabê-
Martin Luther King Jr. foram assassinados, trabalhei como
-lo. Como se hesitasse em erguer voo estava pousado num ninho de
consultora
raminhos secos, espiralados, de sementes mortas. E nesse ninho
profundamente tocada com a reacção dos miúdos a essas mortes e
passou a chocar os sonhos da menina.
com o seu sentimento de que a vida estava fora de controle e de
de
adolescentes
que
usavam
drogas.
Fiquei
que eles não podiam fazer nada quanto a isso. “Que diferença faz se
Agora, sempre que ela dormia em casa da avó e naquele
eu parar de usar drogas, quando pessoas como Martin Luther King
quarto pedia-lhe, mudamente:
Jr., que estavam a tentar, com tanta dificuldade, tornar as coisas
melhores para os homens, são assassinadas? Que hipóteses tenho
— Passarinho, querido passarinho, pousa um sonho na
eu de realmente causar impacto no mundo?”
minha mão!
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A nossa tarefa como pais e educadores é proporcionar aos
Depois, já deitada, só com a grenha dos caracóis fora da
nossos filhos e alunos uma valorização do potencial positivo da
roupa, muito aconchegada, esperava que o sonho a visitasse. Mas
vida e dar-lhes a esperança de que podem influir na mudança.
como queria também ajudar, começava a cerzi-lo com os vagos fios
Muitos adolescentes mais velhos começam a questionar a sua
do que sabia: aquele tamanho grande da China, o rio Amarelo... até
relação e a sua responsabilidade para com o mundo e a desconfiar
que abandonava tudo e se situava apenas no longe, sem lugar certo.
dos caprichos das circunstâncias da vida que estão além do seu
Então, via surgir o palácio daquele imperador que tinha no seu
controle. Fazem perguntas do tipo: “O nosso destino é controlado
império um rouxinol que conseguira livrá-lo da morte e todas as
por alguma força externa ou temos controle sobre ele?” “É o
noites cantava para ele, perdoando-lhe tê-lo substituído por um
Universo algo que devemos temer?” “Há um Espírito, uma
pássaro mecânico.
Divindade ou Fonte exterior? Que influência exerce nas nossas
Aquela história continha toda a China para a menina. E ela
vidas?”
Estas perguntas existenciais da juventude podem ser
sabia o palácio todo de porcelana, irisada, como feito de frágeis
resolvidas considerando-se o que está além dos nossos “pequenos
asas de borboleta, doirado pelo sol, que se reflectia nos lagos de
eus locais”, no domínio transpessoal. Isto acarreta uma busca de
cristal despolido pelas sombras da floresta e morria, longe, flor
sentido, uma busca de valor e uma ligação mais profunda com o eu
rubra, na linha do mar, onde o pescador lançava as redes. E, pelos
autêntico. Esta exploração do eu pode ser experimentada como um
caminhos conhecidos da história, chegava aos canteiros onde as
sentimento de “unidade” com a natureza ou com outros seres
flores não tinham uma placa de zinco ao pescoço, como as do
vivos. Ouvi alguns alunos da minha turma do último ano no
jardim botânico, onde a avó a levara, mas guizinhos de prata, que
colégio descrevê-lo assim: “Quando a minha máscara cai, as
com o seu tlim! chamavam a atenção dos distraídos para a beleza
minhas defesas baixam e compreendo que tu e eu somos um só.
cetinosa das suas pétalas, para o seu perfume doce, para os seus
Não há separação; tu tens os mesmos medos, os mesmos desejos e
brilhos vários e coloridos. Era ali naquele mundo encantado que o
as mesmas necessidades que eu.”
pássaro tinha nascido.
Os corredores e os esquiadores atingem uma “experiência
Que rumores eram aqueles? Parecia-lhe sentir passos
culminante” quando se fundem no seu meio ambiente e o
apressados no interior do palácio e no jardim andavam jardineiros
movimento se faz sem esforço. Esta compreensão visceral de que o
a distribuir lanternas e a pendurá-las em árvores anãs. Havia com
meio ambiente e o eu actuam juntos, em harmonia, é um poderoso
certeza uma festa. Num canto, numa espécie de pagode, com um
freio contra o uso abusivo da natureza e de outros seres vivos, e
telhadinho de abas graciosamente erguidas, uma dama costurava. E
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como se tivesse receio de que a noite descesse antes de acabada a
fomenta o desenvolvimento de uma consciência planetária. Como
sua tarefa, os seus dedos longos, como pétalas frágeis, afeiçoavam
disse John Muir: “Se arrancamos uma flor, descobrimos que ela está
apressados e com pontos miúdos um corpinho de pássaro.
unida a todas as coisas no Universo.”
A menina espreitava, interessada. A dama estava a pregar-lhe
A busca de uma ligação mais profunda com o eu ajuda os
a missanga dos olhos. Depois, com delicadeza, aprisionou com um
adolescentes mais velhos a compreenderem a sua própria sabedoria
íntima e a reconhecer que eles têm dentro de si todas as respostas,
pincel os olhinhos em círculos brancos. Estava pronto. Aliviada, a
se tiverem tempo de se concentrar, aquietar a mente e ouvir. O
nobre dama do palácio fechou o estojo de costura, guardou os
exercício do “Aliado Interior” estimula o participante a encontrar
pincéis numa caixa de charão e com uns passinhos miúdos, correu
dentro de si um ser sábio que proporciona orientação e apoio e que
em direcção ao palácio. Mal chegou ao seu quarto, poisou o seu
pode ter respostas para as perguntas pessoais. Eis a seguir a reacção
tesouro em cima da cabaia negra, já estendida sobre a cama. Que
de Erinn, uma rapariga de dezassete anos, a este exercício:
sucesso ia fazer! Ia lançar a moda dos pássaros!
O meu espírito era antes um sentimento, uma protecção
E, como a menina imaginava pela imaginação da dama,
que me envolvia. Fez-me entrar na caverna de cristais e senti
sentiu que todas as outras iam morrer de inveja, agora que o
uma emoção muito intensa. As lágrimas corriam pela minha
pássaro mecânico do imperador do Japão estava na moda, quando
face, como se eu estivesse a libertar-me. Queria pegar no meu
ela entrasse na sala do trono. Aquele vermelho cintilante do
espírito, buscando conforto, mas ele não era um objecto,
papinho brilharia como um rubi na seda negra da sua cabaia, pois
embora eu o pudesse sentir. Como precisava de alguma coisa
tencionava fechá-la com ele. A dama não podia esperar mais e tão
para agarrar a fim de me proteger, procurei alcançar um
impaciente estava que começou a pintar o seu rosto de «biscuit»
cristal e peguei-lhe, sentindo que o meu espírito dera uma
transparente.
parte de si mesmo ao meu cristal. O meu espírito disse-me que
Por fim, vestiu a cabaia de seda. Não precisava de perguntar
me livrasse dos meus medos de incapacidade. Disse-me que eu
ao seu espelho de prata se haveria alguém mais belo, porque o
tinha uma falsa imagem de mim mesma e que era realmente
espelho devolvia-lhe um rosto-flor a emergir do cálice de seda
muito mais forte do que pensava. Disse-me também que
negra do colarinho, onde o pássaro fazia nascer um botãozinho de
deveria enfrentar a minha mãe e gritar com ela, porque eu
sangue. A dama sorriu à sua imagem. Parecia uma estampa
estava sempre a dar em vez de receber. Sou a mãe da minha
delicadamente laçada. E assim se deixou ficar em muda
mãe e do meu irmão, e o meu espírito disse-me que tinha
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contemplação.
responsabilidades demais. Disse-me que precisava de agir
como uma criança para libertar as minhas tensões.
O palácio começava a estar iluminado por mil luzes e as
paredes brilhavam como as paredes do samovarzinho de porcelana
Este tipo de diálogo interior pode ajudar os participantes a
libertar as suas tensões, conquistar um sentimento novo de
da avó, quando ela lhe acendia a lamparina. Sons musicais,
autoconfiança e aceitação de si e a compreender que não estão
pingentes de água e cristal ecoavam pelos jardins, onde os
sozinhos no mundo. Pode também proporcionar ao adolescente
balõezinhos festivos começavam a acender brandos crepúsculos,
uma experiência concreta da esfera transcendente e um ponto de
nas ramagens anãs. E naquele mundo feérico, recortado pelas
partida para iniciar explorações mais profundas. Matt, de dezoito
mágicas sombras do jardim, se fechava o sonho da menina, que
anos, escreveu:
adormecia profundamente.
influenciou-me
Depois, entre as tarefinhas da escola: colagens, picotados,
intensamente; enquanto antes não chegara a considerar esta
cantares, e o brincar acordado do dia-a-dia, a menina começava a
possibilidade, estou hoje prestes a acreditar. Posso não
pensar que na história que a avó lhe lera, não se falava de nenhuma
acreditar num poder exterior, mas acredito na consciência
dama do palácio. E se na história não havia uma dama como podia
deste organismo total e belo a que chamamos Mãe-Terra. Ele
o passarinho ter sido feito por ela? Então a menina apagava aquele
diz-me respeito e planeio estudá-lo. Deixá-lo agora em
sonho. Quem o tinha feito tinha sido com certeza a criadinha — a
suspenso seria cometer uma injustiça face ao meu aliado e a
que sabia o rouxinol verdadeiro e fizera descobrir o seu canto, que
mim.
arrancava lágrimas aos conselheiros do imperador. Tinha sido com
O
encontro
com
o
meu
aliado
certeza ela. E a menina dirigia o seu coração e pensamento para
A criança interior encontra-se com o eu ampliado
outros rumos. Quando voltava a casa da avó já levava a semente
Antes de despedir-se da adolescência e saltar, com uma
doutro sonho, que punha a chocar no ninho do pássaro. Antes de
confiança cega, para a idade adulta, é útil estabelecer contacto com
adormecer olhava os seus olhinhos, quietos, de missanga miúda,
a criança interior para compreender a nossa continuidade e
aprisionados pelo branco-giz do pincel, e pedia-lhe uma vez mais,
responsabilidade para com o futuro. Quando temos a oportunidade
no segredo do seu desejo:
de reviver o amor e a aceitação que experimentamos como
— Passarinho, querido passarinho, pousa um sonho na
crianças, ou a falta disso, lembramo-nos de quem somos. Saber de
minha mão!
onde viemos ajuda-nos a escolher para onde ir, e através das
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6
E, pelos caminhos do imaginário, depressa, depressa,
imagens mentais dirigidas podemos sanar qualquer conduta
instalava-se naquela China, onde as raparigas se chamavam «Chuva
irregular que tenha raízes na tenra infância. “A criança interior”
de Primavera», «Orquídea do mar» ou «Lua de Outono», mas desta
pode fazer o adolescente lembrar-se do mistério, da maravilha e da
vez afastava-se do palácio de porcelana, adormecido entre as flores
beleza da vida, e da curiosidade, da liberdade e da criatividade da
tilintantes, embrenhava-se pela floresta e procurava a casinha à
infância. Um sonho do passado pode reacender-se; uma relação
pode ser compreendida e restabelecida; um problema de
beira do mar. E, em bicos de pés, espreitava pela janela.
personalidade pode apresentar-se para ser solucionado. Para
A criadinha cortava um retalhinho de seda vermelha do
realizar todo o nosso potencial, cada um de nós deve chegar a um
quimono do imperador, que o alfaiate lhe dera, e afeiçoava-o a um
acordo com o passado, aprendendo com ele, e avaliar como cada
corpinho de menos de beija-flor. E mesmo instalada na bolha de
parte da nossa história pessoal influencia o nosso presente e futuro
cristal azul da noite (coisas de sonho!) ouvia tudo o que se passava
colectivos.
dentro de casa.
Somos mais do que os nossos corpos, mentes, emoções,
necessidades, desejos e sonhos pessoais. Temos uma natureza
— Filha — ralhava, meiga, a mãe — que estás tu a fazer?
superior e transcendente e fazemos parte de uma espécie que está
Sacrificas os olhos depois do trabalho, para quê?
paulatinamente a evoluir no sentido da totalidade. A criança
— Não se aflija... Faço um passarinho para a nossa janela.
pequena não está separada desse eu transcendente, mas o
Verá que, quando estiver pronto e espetado ao pé da flor do vaso,
adolescente, em busca do conhecimento racional e intelectual do
há-de atrair o sol, que virá fazer-lhe companhia, enquanto trabalho
mundo, acaba por se distanciar da sua natureza espiritual. As
no palácio...
imagens mentais dirigidas dão aos adolescentes uma oportunidade
valiosa de sanar esta dicotomia entre mente e coração.
— Tonta!... A minha alegria és tu. A tua lida começa antes do
sol se erguer e só termina quando ele se apagou há muito. Tu és o
Através do contacto com o eu ampliado, é possível lançar um
meu sol, vai descansar! — pedia a mãe, ansiosa, com receio de ver
olhar para o futuro e ter uma ideia geral do nosso lugar no todo. O
adoecer o seu único amparo.
eu ampliado é a parte do eu que já alcançou o seu potencial pleno,
o projecto que se converteu em realidade. Realizar o exercício do “
— Mas isto não é um trabalho... é um gosto, mãe. Verá como
Eu Ampliado” pode dar origem a uma percepção capaz de
vai ficar bonito...
modificar as atitudes dos adolescentes em relação a si mesmo e ao
— Tonta, minha tontinha!...
mundo à sua volta. Depois disso, eles podem ver a realidade de
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modo diferente, valorizar a vida a partir de uma nova perspectiva e
— Por hoje faço-lhe a vontade. Vamos, então, descansar...
perder o medo do futuro. A minha conversa com o meu eu
Amanhã continuarei...
ampliado tem sido, para mim, uma fonte de beleza, de inspiração e
Nos sonhos, os amanhãs e as noites sucedem-se num piscar
de energia, especialmente durante os períodos em que duvido de
de olhos. E a menina, sempre do lado de fora da janela, seguia
mim mesma:
aqueles serões e via nascer o passarinho até que finalmente ouviu a
Uma senhora idosa caminhou na minha direcção a
criadinha dizer:
sorrir, com os cabelos brancos presos no alto da cabeça. A
— Veja, mãe, não é lindo? Não poderá cantar como o
minha primeira impressão foi a da sua força. Ela tocou-me no
rouxinol da floresta e, por isso, fiz-lhe um papinho vermelho-
rosto com a mão forte e enrugada e senti, mais do que vi, uma
-sangue, que será o seu canto mudo.
profunda compaixão nos seus olhos. Observei a sala,
— Como é belo! — exclamou extasiada a mãe. — Nunca tive
semelhante a um atelier de tecto alto e paredes de adobe
um presente tão belo!
branco. Era tudo muito simples. Da parede pendia uma bonita
tapeçaria de tonalidades delicadas que ela tecera no tear.
A menina olhava também, pela janela, aquele corpinho
Mostrou-me vasos de cerâmica translúcida, fina como papel,
minúsculo e gracioso — outro e o mesmo do quarto da avó —
que acabara de cozer. Resplandeciam. Estava a resgatar um
enquanto a lua de Outono subia no céu e tornava de prata as ondas
antigo processo alquímico. Os vasos eram frágeis como cascas
que vinham quebrar-se na orla do mar. E o seu sonho fechava-se,
de ovo, delicados embora firmes, à semelhança do equilíbrio
porque ela era pequenina e não resistia àquele embalo das águas.
que todos devemos ter para caminhar na vida. Ela aproximou-
Ao acordar e durante dias, aquele sonho parecia-lhe possível
-se de mim e disse-me que havia ainda muito trabalho para
e dava-lhe abrigo no seu coração – até que começava a pensar se a
fazer. Mostrou-me muitos grupos de pessoas que esperavam
história do passarinho não seria outra. Lembrava-se das princesas
do lado de fora. Formavam ondas iguais aos anéis de água
encantadas que os príncipes libertavam noutras histórias da avó.
num lago depois de nele ter sido arremessada uma pedra.
Lembrava os presentes que havia nessas histórias:
Quando parti, ela pôs uma pequena pedra branca na minha
— Ai fita, fita! ai pente, pente! da minha amada que está
mão. Enquanto voltava, ainda sentia a sua mão no meu rosto.
doente...
Finalmente, se de facto é verdade que ensinamos aquilo que
170
Talvez o passarinho também fosse um presente de amor. Não
8
fita, nem pente, mas pássaro. Seria? Quando voltava a dormir no
precisamos de aprender, então ainda preciso de me concentrar,
quarto da avó olhava, longamente, o corpinho frágil, que oscilava
relaxar o meu corpo, tranquilizar a minha mente diante das
no alfinete entre flores secas, e voltava a pedir, numa intimidade
distracções da vida diária, levar-me menos a sério e penetrar mais
sem voz:
fundo na esfera de sabedoria e conhecimentos universais onde há
esperança, harmonia e unidade cósmica. Este é apenas o começo.
— Passarinho, querido passarinho, pousa um sonho na
Lembremo-nos de que ensinamos aquilo que somos, e, quando
minha mão!
fazemos estes exercícios com os nossos filhos, alunos, família e
outros adultos, tornamo-nos todos como crianças, recuperando o
E aquela China de sonho, a da história que amava, começava
milagre, o mistério e a alegria de tudo isso.
a nascer. Só que o palácio de porcelana e o jardim de flores
tilintantes ficavam quase escondidos entre a massa da floresta, pois
SANTUÁRIO
os via do alto mar, do barco do pescador. Com a sua vela-asa
agitada pelo vento — singrava em direcção a terra por entre ondas
IDADE: de 15 anos à idade adulta
azuis com recorte de berço, como as dos desenhos que fazia na
EXERCÍCIO: 10 minutos
escola. Àquela hora, aquela que o pescador amava, trabalhava
ainda no palácio, mas em breve estariam juntos. E ele aconchegava
CONTINUAÇÃO: 15 minutos
ao peito o presente que lhe trazia. A pesca tinha sido abundante —
Fecha os olhos e começa a concentrar a atenção na
os deuses fossem louvados! — e tinha-a ido vender a uma aldeia
respiração, observando o ar que entra e sai das tuas narinas. Dá a ti
ribeirinha e próxima, onde havia festa no templo. Por causa da
mesmo a sugestão de que, a cada expiração, o teu corpo fica cada
solenidade do dia muitos se tinham permitido um luxo de peixe
vez mais relaxado. (Pausa) Muito bem. Agora imagina que estás a
fresco.
viajar através do tempo e do espaço para um lugar que é, para ti,
um santuário. O santuário é seguro, simples e belo. Pode estar
— Ora — diziam — as luas também têm as suas diferenças.
localizado na natureza, nas colinas ou perto do mar, pode estar no
Depois da venda, juntara-se à multidão para ir ao templo
quarto da tua casa ou em qualquer outro lugar à tua escolha, onde
queimar incenso, grato pela sua boa sorte. E fora precisamente à
te sintas seguro e protegido. Vai lá agora e sente as cores, as
saída do templo, entre o movimento alegre das cabaias, que os seus
texturas, os cheiros, os sons, os sabores. Como que o teu corpo fica
olhos descobriram o passarinho, no tabuleiro do vendedor. Que
nesse lugar. Terás alguns minutos contados no relógio, que é todo
delicado era! Mal o vira com o seu papinho vermelho, pensara nela
9
171
o tempo de que precisas para te relaxar neste santuário. (Pausa de
e na cascata negra do seu cabelo, que uma vez se desatara na
três minutos)
floresta e ela voltara a torcer como uma meada de seda. Agora,
aquela seda nocturna podia ela rematá-la com aquele gancho-
Agora é hora de voltares para cá, trazendo contigo a sensação
-passarinho, que lembrava uma jóia. O vento impelia o barco —
de segurança e protecção que sentiste no santuário, pronto para o
embora menos velozmente do que os desejos daquele coração
desenhares ou escreveres sobre ele. Contarei até cinco. Abre os
ansioso.
olhos quando eu disser cinco, sentindo-te relaxado e alerta. Um...
Mas finalmente, colhida a vela, o barco varado na enseada,
dois... três... quatro... cinco.
liberto, o pescador seguiu apressado o caminho da floresta — o
Reacções ao exercício do santuário
caminho dela para regressar a casa. O sol já se tinha posto e as
primeiras estrelas faziam lucilar o seu oiro num azul ainda aguado,
Eis o que disse Matt, de 18 anos:
acima das árvores, que eram já um túnel escuro, onde o canto do
O meu santuário é uma clareira fechada, cercada de
rouxinol se erguia — perfume na noite. Tão belo! Tão belo e
palmeiras e de outras plantas verdes e cortada por um regato;
apaixonado que o pescador não pôde impedir-se de dizer, em voz
algumas pedras grandes formam um local de repouso perto do
alta, como estava escrito na história:
regato. O lugar é silencioso, a não ser pelo rumor dos pássaros
— Que bem que canta!
e do regato. Um pequeno pagode de pedra está situado do
— Assustaste-me! Não te esperava aqui, a esta hora! —
outro lado do regato. O meu aliado, a raposa, está deitado ao
exclamou, rindo, a criadinha que trazia no braço o cesto com a
meu lado. Circula uma brisa fresca. O céu azul é visível, bem
comida para a mãe. — Não foste hoje à pesca?
como algumas nuvens brancas, encapeladas e claras acima da
— Fui, mas vim esperar-te... Sentemo-nos um pouco. Tenho
abertura no alto das árvores. Parece a fusão perfeita da
uma surpresa para ti.
natureza com um jardim feito pelo homem.
— Uma surpresa?! Diz depressa!
A CRIANÇA INTERIOR
— Abre as tuas mãos, para eu depor o meu presente... Vê tu
mesma...
IDADE: de 15 anos à idade adulta
— Oh! que lindo passarinho! É para mim?... Mesmo para
EXERCÍCIO: 10-15 minutos
172
10
mim?! O papinho vermelho parece um coração...
CONTINUAÇÃO: 15 minutos
— E é um coração... o meu, cheio de amor por ti. Trouxe-o
Fecha os olhos e começa a acompanhar a tua inspiração e
para que ele possa fazer ninho na noite dos teus cabelos.
expiração, através das tuas narinas. Enquanto segues o movimento
da respiração, deixa o teu corpo relaxar. (Pausa) Agora, prepara-te
— Mas só poderei usá-lo fora do palácio — e a criadinha riu.
para acolher a tua criança quando ela surgir. Pode ter cinco, oito
— Vou parecer uma dama...
ou dez anos, ou qualquer outra idade. Também pode mudar de
— Desata os teus cabelos, peço-te, para que eu o veja brilhar
idade durante a visita. Ei-la que chega. Pousa a tua mão que
entre eles!
escreve na mão da criança quando ela chegar. Sente o contacto de
Então a rapariga desatou os cabelos e o pescador afogou o
ambas as mãos e começa a interagir com ela, deixando-a assumir o
seu rosto naquela noite que apagava todas as imagens — e onde se
comando. Sê o amigo mais velho da tua criança, o amigo que ela
fechou também o sonho da menina que, finalmente, adormecia.
sempre quis. Se ela quiser levar-te para o esconderijo secreto, para
Como o abrir e o fechar de um leque, assim se abriam e fechavam
um jardim ou para o quarto para brincares com ela, acompanha-a.
os sonhos da menina com aquele passarinho do quarto da avó —
Ela pode querer conversar contigo ou pedir-te que pegues nela ao
até que ela se cansou e o abandonou ao mistério da sua grácil
colo. Sê atencioso com as necessidades e desejos dela e aprende o
fragilidade...
que ela tem para te ensinar. Terás 5 minutos contados no relógio,
que é o tempo de que precisas para ficar com ela. Podes começar.
(Pausa de 5 minutos) Agora, é o momento de dizer adeus, por
Matosinhos, Maio/88
enquanto. Agradece à tua criança o tempo que passaram juntos e
diz-lhe que em breve lhe pedirás que volte outra vez. (Pausa)
Luísa Dacosta
Sonhos na palma da mão
Porto, Edições Asa, 2004
Contarei até dez. Junta-te a mim quando eu disser seis, sentindo-te
bem relaxado e alerta, e pronto para escrever sobre o teu encontro.
Um...dois...três...quatro...cinco…seis… sete…oito…nove… dez.
Maureen Murdock
Giro interior
S.Paulo, Cultrix, 1987
(excertos adaptados)
11
173
DE PEQUENINO SE TORCE…O LEITORZINHO!
UNS MINUTOS DE RELAXAMENTO
PARA OS MAIS NOVOS QUE AINDA ACREDITAM NO
● Será que as crianças/os adolescentes ainda lêem?
TAPETE MÁGICO…
Hoje em dia, a publicação de livros ilustrados para recém-nascidos é cada vez mais frequente e estes descobrem o encanto
dos livros que lhes são destinados. Por sua parte, os profissionais
Tentem sentar-se confortavelmente no tapete mágico
empenham-se em levar os livros onde quer que haja bebés: creches,
(senão, ele não levanta voo!) ou nas cadeiras, descruzem as
centros de acolhimento temporário de crianças, instituições de
solidariedade social. É a acção conjunta das instituições e destes
pernas e os braços, ponham no vosso regaço as mãos
profissionais, bem como a atenção dos pais pelo despertar dos
abertas, com as palmas para cima; tentem fechar os olhos e
filhos, que permite que os livros cheguem aos seus mais jovens
respirem profundamente, pondo a mão direita em cima do
leitores. Quando a criança entra no jardim infantil, começa a levar
peito, para sentirem o coração…Ouçam, em silêncio, o seu
livros para casa, porque os professores sabem muito bem o quão
importante é, para a criança, folhear um livro com os pais, mesmo
bater cada vez mais lento; e preparem-se para ouvir uma
sem saber ainda ler. Por esta altura, muitos pais inscrevem os filhos
linda história…
numa biblioteca, comunicando-lhes assim o seu amor pela leitura.
Deixem os livros circular!
♫♫♫ Uma música tranquila pode acompanhar os minutos de
relaxamento….Por exemplo, se a história que vamos ouvir fala
de um violino, porque não convocar o som suave dos seus
acordes?
É importante que os livros circulem entre a escola
e a casa e que sejam lidos, porque a escrita, independentemente
do lugar, do momento ou da pessoa que lê, representa
um importante elo de continuidade para a criança.
13
175
Quando entra na escola primária, a criança que já viveu
experiências de leitura continuará a apreciar o tempo que o pai ou
UNS MINUTOS DE RELAXAMENTO
a mãe dedicam a ler-lhe livros. À medida que a criança cresce, o
texto torna-se mais compacto e as ilustrações mais requintadas.
PARA OS MAIS VELHOS…
Seguem-se os primeiros romances curtos, com ou sem ilustrações.
Tentem sentar-se confortavelmente no chão ou nas cadeiras,
Quando, tanto em casa como na escola, se criou um ritual de
descruzem as pernas e os braços, ponham no vosso regaço as mãos
leitura em voz alta, a narrativa torna-se uma fonte de aventuras, de
descobertas, e a leitura conjunta constitui uma alegria. A criança
abertas, com as palmas para cima; procurem fechar os olhos e
compreende, então, quão vasto é o campo da literatura para a
respirem profundamente; sintam o bater do coração; descontraiam os
juventude e as possibilidades infinitas de escolha que lhe estão
músculos todos do vosso corpo: os dos pés, das pernas, do tronco, dos
reservadas. Nesta idade, se já foi iniciada nos livros ilustrados, se já
braços, dos dedos das mãos; concentrem-se no vosso rosto e
beneficiou dos contos, das poesias e dos romances, já terá
porventura um grãozinho de leitora a germinar dentro dela. Mas,
descontraiam também todos os músculos da cara, a começar pela
embora hoje o livro faça parte da vida das crianças – desde a casa à
testa, pelas faces, pelo queixo, pelos olhos e finalmente pelos lábios; se
escola primária, passando pela creche e pelo jardim infantil –, as
quiserem, imaginem na vossa mente uma paisagem do vosso agrado
crianças que tiveram dificuldades em aprender a ler, ou que não
vivem num ambiente onde os livros são valorizados, podem muito
onde se sintam leves, serenos e felizes; desfrutem da paisagem que
bem detestar ler: é a esses que se dirige, prioritariamente, este
vos rodeia e caminhem por ela, sem pressa, ouvindo o bater tranquilo
livro.
do vosso coração; [APÓS CERCA DE CINCO MINUTOS…]
Mexam, aos poucos, os dedos dos pés e das mãos e abram os olhos
A cada um a sua vez!
Aos 7-8 anos, começa a leitura solitária mais longa.
(ou, se preferirem, mantenham-nos fechados); vamos ouvir uma
Quando a criança começa a ler as suas primeiras ficções,
linda história….
é bom continuar a entremear a leitura em voz alta
com a leitura silenciosa. O pai ou a mãe lêem um capítulo
♫♫♫ Uma música tranquila pode acompanhar os minutos de
relaxamento….Por exemplo, se a história que vamos ouvir fala da
Natureza, porque não convocar o som do murmúrio da água?
176
e a criança lê outro.
14
Ao contrário do que se possa pensar, há muitos adolescentes
que lêem. E que lêem livros imponentes. A prova é que o número
de editoras de livros para a juventude está a aumentar. Nos livros,
os jovens encontram temas e problemas que lhes dizem respeito e
à sociedade, problemas e temas que os fazem reflectir e lhes abrem
portas de comunicação com os outros. Num estudo sobre os
lazeres culturais, 88% dos jovens de idades compreendidas entre os
10 e os 14 anos liam livros, 87% liam jornais e revistas e 77% liam
banda desenhada. Confirma-se, assim, que os adolescentes lêem.
Mas o que lêem eles? Lêem romances de aventuras (69%),
literatura do horror e do fantástico (64%), séries com um herói
É A TUA VEZ DE LER, SARA!
recorrente (60%), romances policiais (54%) e livros sobre um tema
específico (51%). Também apreciam o imaginário das sagas e dos
relatos biográficos. Os autores e os editores encarregam-se de lhes
São oito horas da manhã. O sol queima e o ar seco enche-se
fornecer contos fantásticos com heróis e enquadramentos que se
do cheiro das ervas aromáticas. A estrada poeirenta que conduz à
repetem, mas também lhes oferecem romances com qualidades
vila estende-se ao longe, direita como uma recta. Sara conhece bem
mais psicológicas.
esta estrada, porque a percorre todos os dias para ir à escola. A
A civilização da escrita não está em vias de desaparecimento,
caminhada longa não a perturba, porque é uma menina sonhadora
está em vias de mudança. As escolhas e os hábitos de leitura dos
e tem perninhas fortes. A escola é que a cansa.
nossos adolescentes já não são os mesmos das gerações anteriores.
Quando, na sala de aula, o Professor Adónis diz: “Peguem
A leitura tornou-se variada e multifacetada. No contexto de uma
nos livros de leitura, meninos!”, Sara sente-se mal. As suas mãos
oferta cada vez maior, cada um faz as suas escolhas e cria a sua
tremem e a voz não sai. Sara detesta ler em voz alta. As palavras
própria “manta de retalhos” cultural. E como “os leitores são, com
intensidades similares, telespectadores, ouvintes e utilizadores de
são muitas e correm à desfilada, umas atrás das outras, linha após
computador”, a oferta e a procura reflectem o contexto mediático e
linha, página após página. Até chegam a enrolar-se-lhe na língua. A
os seus ritmos, modos de funcionamento e produtos.
menina hesita constantemente e tropeça em todas elas. Quando é a
sua vez de ler, toda a turma se ri.
É um facto que os heróis dos filmes fazem vender livros. Mas
15
177
— Não tenhas pressa, Sara! — diz o professor, com gentileza.
os jovens que vêem televisão e passam horas ao computador
continuam a ler para descontrair porque, mesmo que a leitura exija
— Não tenhas pressa, Sara! — troçam Carla e Carmen, no fim
um esforço, também permite que o corpo repouse e que o espírito
das aulas.
divague.
— Não tenhas pressa! — entoam os mais pequenos em coro.
Os jovens telespectadores podem ser excelentes leitores e
Apenas Emílio se mantém afastado e nada diz. Sabe que
utilizar simultaneamente o computador e o livro, sem problemas e
Carla e Carmen têm ciúmes porque Sara é bonita como uma
sem complexos. E constroem o seu imaginário tanto através dos
princesa.
livros que têm de ler para as aulas como através dos jogos e dos
filmes.
Em casa, chamam-lhe “cordeirinho”, porque é a mais nova, e
nasceu muito depois dos irmãos. Os pais criam ovelhas e a família
Se podemos deixá-los deleitarem-se com as sagas, também
trabalha arduamente na quinta todos os dias, à excepção do
devemos propor-lhes romances mais ancorados na realidade, no
passado, no mundo dos adolescentes de outros países. A literatura
domingo.
juvenil é influenciada pelo cinema, pelas artes, pelas correntes
Ao domingo, depois do almoço, o pai faz a sesta e a mãe
literárias e históricas.
senta-se à sombra para tricotar. Depois de algumas malhas,
O livro ajuda o adolescente a aperfeiçoar os seus raciocínios,
também ela sucumbe ao calor. Então, Sara corre pelo mato e vai até
a aumentar os seus conhecimentos e a esclarecer os seus
às colinas, onde mora Helena.
sentimentos. Infelizmente, alguns jovens recusam-se a ler. Todavia,
Sentada no seu velho automóvel com os pneus desmontados,
mesmo com esses, uma abordagem diferente ou livros apropriados
Helena espera Sara. Esta senta-se no lugar do condutor e leva a
podem fazê-los restabelecer uma ligação com a escrita. Seja qual
velhinha a passear. Um passeio a fingir, que as conduz bem longe…
for a idade, a leitura ajuda, diverte e enriquece.
Enquanto a menina conduz, Helena conta-lhe histórias dos
Livros para todos os gostos
seus tempos de juventude, da época em que o seu carro era novo e
Torna-se cada vez mais necessário explicar às crianças e aos
rutilante. Sara conta-lhe o quanto detesta ler em voz alta, a forma
como as palavras se engasgam na sua garganta como se fossem pão
jovens tudo o que a leitura lhes proporciona. É preciso dizer-lhes que,
seco, e a troça que a turma faz dela.
mesmo que não estejam de acordo com um livro, isso não quer dizer
que não haja algum outro na biblioteca que lhes agrade.
— É verdade que as pessoas são maldosas, por vezes — diz
178
16
Helena — mas não desanimes. É tão bom saber ler e poder
● A necessidade de ler e os imensos benefícios da leitura
saborear histórias bonitas.
Prazer do jogo e prazer do eu
Certo domingo, cansada de conduzir, Sara sentou-se no
Coloquemo-nos no lugar da criança que escuta uma história:
banco de trás do carro. Enquanto acariciava o couro estragado,
as palavras fornecem-lhe o sentido do conto. Atenta, interpreta, à
enfiou a mão entre as costas e o assento. Qual não foi o seu espanto
sua maneira, as frases que ouve. Às vezes, não capta tudo. Mas isso
quando encontrou um livro velho e poeirento, cuja capa se
não tem importância, porque captou o essencial e, no decurso de
decompôs ao tentar abri-lo.
leituras posteriores, captará a totalidade. As imagens, que ela
considera parte integrante da narrativa, também contribuem para a
— Meu Deus, Sara! — exclamou Helena. — Olha o que está
entusiasmar. A criança é uma pesquisadora incansável de prazer,
escrito: Para a Ana, com o amor da Mãe e do Pai. Este livro
salvo se viveu traumatismos muito intensos. Se a leitura de uma
pertencia à minha filha; o pai e eu oferecemo-lo pelo seu
história lhe proporcionou prazer, lembrar-se-á dela e pedirá que
aniversário.
lha leiam de novo. Isto repetir-se-á até que um adulto lhe sugira
— Leia-mo, por favor! — suplicou Sara, já sentada no lugar
uma outra história, o início de uma nova aventura. De história em
da frente.
história, o prazer de ler desenvolve-se, aprofunda-se e torna-se
A velha senhora abanou a cabeça:
“desejo” de outros livros.
E o que encanta a criança quando lê? Todas as informações
— Não, Sara.
que encontra, tudo o que, à semelhança de um jogo, a toca e lhe
A menina ficou desconcertada, mas logo a cara séria de
provoca um efeito de surpresa ou de alegria. Do nascimento à
Helena se abriu num sorriso.
idade adulta, o jogo é parte integrante da construção do ser
— Era uma vez uma mulher casada com um homem muito
humano. Uma história que se lê é recebida como um jogo.
rico…
Quando a criança escuta ou quando ela mesma lê, joga com
as personagens e as suas representações, como se fosse uma
Era a história de uma bela menina e das suas duas meias-
aventura ou uma fantasia onírica. Experimenta o prazer do jogo ao
-irmãs malvadas.
estruturar o seu eu através destes heróis com os quais se identifica,
Era tão divertido ler com Helena!
e através da repetição. A felicidade renovada da leitura desenvolve
Sara conseguiu mesmo ler algumas das passagens sozinha.
o desejo de ouvir outras narrativas engraçadas, outros contos
17
179
Sempre que uma palavra se revelava mais difícil, a velha senhora
maravilhosos ou, se a criança tiver idade suficiente, de ler outras
lia-a com ela. Em breve, chegaram ao fim do livro: Então, Cinderela
histórias.
casou com o príncipe e viveram felizes para sempre.
Ludovic tem uma pequena biblioteca. Certa manhã, chora.
Quando o sol se pôs, Helena fechou o livro.
Recusa-se a ir ao infantário e quer ir com a mãe para o
Sara estava tão feliz que não conseguia articular palavra.
emprego desta. Quando a mãe hesita, esta criança de dois
anos resolve sozinha o problema: pergunta-lhe se pode levar o
— Este livro é teu a partir de agora — disse-lhe a velha
seu livro favorito para o infantário. Aliviada, a mãe aceita e
senhora, acariciando-lhe a mão. —Trá-lo contigo no próximo
Ludovic passa a levar o livro com ele todos os dias. Um dia,
domingo, para o voltarmos a ler.
esquece-se dele e tudo volta à normalidade.
No dia seguinte, Sara estava impaciente por chegar à escola,
Será que Ludovic procurava a pessoa de quem gosta no livro,
porque queria mostrar o seu novo livro ao Professor Adónis.
através das imagens e das palavras? Será que vive a presença da
— Ah! É a Cinderela! — exclamou.
criança do livro como um simulacro de si mesmo?
O livro tornou-se um amigo. O psicanalista inglês Winnicott
— Leia-nos o livro, Professor! — pediram os alunos todos.
demonstrou o valor insubstituível do jogo na vida da criança. O
Ao ouvir o professor ler o livro, Sara recordou a história toda,
jogo nunca é inocente: aperfeiçoa a compreensão íntima da criança
como se as palavras desfilassem diante dos seus olhos. Quando o
e satisfaz as suas necessidades relacionadas com a separação e a
Professor Adónis pediu aos alunos que abrissem os livros de leitura,
reparação.
Sara abriu o seu, cheia de vontade. Mas, quando chegou a sua vez
No caso de Ludovic, o livro tornou-se o objecto de transição.
de ler em voz alta, as palavras misturaram-se na língua e a menina
Permite suportar a passagem da casa-mãe para o infantário, como
começou de novo a gaguejar.
se fosse um ursinho ou outro objecto qualquer. O tempo da leitura
representa um elo entre o interior e o exterior. O livro responde a
— Não tenhas pressa, Sara — disse o professor.
determinadas necessidades e, muitas vezes, satisfá-las.
Emílio olhou para Sara e viu que os olhos da colega se
Desde a mais tenra infância, as obras lidas numa interacção
enchiam de lágrimas, à medida que se debatia com as palavras.
tripla – adulto, criança e livro – proporcionam momentos
Carla e Carmen riam-se nas suas costas.
excepcionais, no decorrer dos quais o adulto oferece a sua voz e o
seu tempo.
Quando Sara se encontrou com Helena no domingo seguinte,
180
18
O livro preferido de Simon, de seis anos, é Je ne joue plus1. É
contou-lhe tudo o que acontecera.
a história de um rapaz que luta contra, e triunfa sobre, as
— O Emílio é o único que não se ri de mim — explicou.
infelicidades da vida. Simon mostra o livro a todas as pessoas
— Esse Emílio parece um príncipe — disse a velha senhora.
que vão a sua casa. E diz bem alto: “O meu pai lê-mo todas as
— E, já agora, quem achas tu que podes ser?
noites. Ao domingo, lê-o várias vezes. Chamamos-lhe “o nosso
Helena foi a casa buscar um vestido de noite e disse, fazendo
livro querido.”
uma vénia:
Enquanto que no caso de Ludovic o livro funcionava como
— Este vestido parece ter sido feito para si, Princesa.
uma autorização da mudança espacial e se tornava objecto
transicional, no caso de Simon o livro torna-se objecto relacional. A
Todos os domingos Sara lia para Helena. Quanto mais lia,
leitura permite, mesmo àqueles que já lêem romances, ir mais
menos assustada se sentia ante a perspectiva de ler em voz alta na
longe, ir à procura do que ainda não compreendemos e que
aula. E, quanto menos medo tinha, melhor lia. Algum tempo
queremos compreender. Os livros ajudam sempre a crescer e a
depois, a Directora da Escola, Dona Dalila, entrou na sala do
construir-se.
Professor Adónis para ouvir os alunos ler. Um a um, todos leram
A linguagem de todos os dias e a linguagem dos livros
em voz alta. Chegou a vez de Sara. Esta abriu o livro e sentiu-se
Desde os primeiros anos de vida que a criança tem a noção
logo mal. O professor Adónis esperou, paciente. Os alunos ficaram
de que existem duas linguagens: a primeira é a linguagem da vida
irrequietos.
quotidiana, das trocas no seio da família e da escola, aquela que
Então, Sara pensou em todas as palavras que tinha lido com
permite comunicar. Nela estão inseridas as palavras de todos os
Helena. Viu as letras amigas que dão as mãos para formar palavras
dias, aquelas de que precisamos no imediato, as palavras da
que dançam e cantam em conjunto. Sentiu a mão de Helena no seu
aprendizagem escolar e as palavras das trocas de ternura. A
ombro e ganhou coragem. Quando começou a ler, as palavras
segunda é a linguagem dos textos. Trata-se de uma língua precisa,
fluíam como as águas de um rio no início da Primavera.
rica, construída, por vezes poética. É a língua da narrativa, do
conto ou do poema. É constituída por frases elaboradas, por jogos
— Lês maravilhosamente — elogiou a Directora.
de palavras, por buscas de sonoridades, pela música da língua. O
Pelo canto do olho, Sara viu Emílio a sorrir. Depois das aulas,
autor trabalhou a escrita. Pensou-a, pesou-a, aperfeiçoou-a e
regressaram juntos a casa.
1
Já não brinco. (N.T.)
19
181
— Gostarias de dar uma volta no meu carro? — convidou
cinzelou-a antes de ela ter sido impressa para os jovens leitores.
Sara.
Jonathan tem três anos. Os livros fazem parte da sua vida e
Emílio riu:
são os seus objectos preferidos. Logo que algum membro da
— Onde está o teu carro?
família tem tempo livre, Jonathan pede-lhe que lhe leia uma
história. Uma recusa funciona como um castigo. Infeliz,
— Anda, que eu mostro-te — disse Sara, pegando-lhe na
comenta: “Acabaram-se os meus momentos memoráveis.” A
mão.
mãe pergunta-lhe o que quer dizer com aquelas palavras.
Quando Helena os viu chegar, acenou-lhes e disse:
“Aborreço-me, já não tenho histórias bonitas.” De repente, a
— Venham depressa!
mãe lembra-se de lhe ter lido aquela palavra num livro e dá-se
Sara sentou-se ao volante e Helena sentou-se no banco de
conta de que o filho se quer familiarizar com a palavra e, por
isso, a utiliza. A mãe explica-lhe o sentido da palavra, e
trás para que Emílio ficasse ao lado da menina.
Jonathan repete-a como se fosse uma lengalenga. Aperfeiçoa,
— Tu é que és o Emílio?
assim, a seu conhecimento da língua.
— Sou, sim — respondeu o garoto timidamente. — Sou o
As palavras dos livros são eruditas, mas também são lúdicas,
amigo da Sara.
inventivas. A escrita permite dar livre curso à imaginação,
— Achas que ela lê bem? — perguntou Helena.
memorizar um grande número de vocábulos, de expressões e de
frases que, embora simples, já são literatura. As crianças gostam de
— Lê maravilhosamente.
brincar com palavra novas, com as metáforas que só encontram
— Aposto que não sabias que ela conduzia tão bem.
nos livros. Dizem-nas, redizem-nas e, pouco a pouco, vão
— Confesso que não — riu o rapaz.
descobrindo o seu sentido exacto.
Aos sete anos, David recebeu como prenda o Dictionnaire
— Onde vamos hoje? — perguntou Helena.
du bonheur des expressions2. Enquanto passeia com o livro,
— Vamos a um sítio muito longe daqui — respondeu Sara.
exclama: “Não sou uma galinha molhada, mas uma força da
Diante delas, a paisagem imensa da savana perdia-se de vista.
natureza, sou esperto como um macaco, satisfaço os meus
Os cumes das montanhas cintilavam à luz do sol poente, quais
castelos saídos de uma lenda.
182
2
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Dicionário das Expressões Felizes. (N.T.)
No ar tranquilo da tardinha, Sara pôs-se ao volante e contou
desejos, e tu comes como um ogre.”
uma história nova:
Tal como David, todas as crianças gostam de jogar com as
imagens, as sonoridades, as repetições, as rimas. O prazer começa
Era uma vez…
com as trocas orais e continua na leitura dos textos. Quando a
criança cresce, tem de se submeter ao sentido. Mas continua a
apreciar os jogos de palavras, as aliterações e as astúcias que lhe
Niki Dally
À toi de lire, Sarie !
Paris, Gautier-Languereau, 2003
(Tradução e adaptação)
permitem rir-se da língua. Joga ao sentido e ao sem sentido. Numa
oficina de escrita criativa, a criança poderá escutar poemas e falar
das suas próprias emoções através das suas criações linguísticas.
Jane tem nove anos. Frequenta uma oficina de leitura e
escrita todas as quartas–feiras, na biblioteca. Depois de ouvir
alguns poemas, escreve: “Caminhei ao longo de um grande
riacho que se transformou num lago de lágrimas.” Jane gosta
imenso desta actividade que designa como “ a exprimação” de
todos os seus sentimentos!
O desejo secreto de saber ler
Paco tem 5 anos e requisitou o livro La Fugue3na
biblioteca. Pede muitas vezes aos pais que lhe leiam esta
história, que fala de um gato que é constantemente
maltratado. Um dia, o animal foge e procura um rapaz que viu
uma vez, e que tinha o nome Jules estampado na T-shirt.
Depois de muito errar pelas ruas de Paris, o gato acaba por
encontrar o amigo dos seus sonhos. Neste livro, Paco tenta
encontrar as letras que compõem o nome Jules. Quer aprender
3
A Fuga. (N.T.)
21
183
sílabas e palavras. Em breve, lê uma frase inteira, depois duas.
Sem que se perceba bem porquê, este livro despoletou em Paco
a vontade de aprender a ler.
Aprender a ler faz apelo a dois sistemas: primeiro, à
descodificação silábica, ou seja, à arte de reconhecer as sílabas
(conjunto de vogais e consoantes). Segundo, à decifração, ou seja, à
possibilidade de antecipar o sentido, imaginar o fim de uma
palavra ou de uma frase. Qualquer criança que não tenha tido
dificuldades especiais de crescimento é capaz de aprender a
descodificação silábica. Através de estudos realizados na escola
pré-primária e na escola primária, os investigadores conseguiram
provar que a aprendizagem da leitura se faz mais facilmente
quando os alunos já tomaram previamente contacto com vários
livros. As leituras em voz alta da infância motivaram-nos para a
leitura, ao mesmo tempo que lhes trouxeram a capacidade de
imaginar. Graças a estas narrativas que desenvolveram a sua
imaginação, as crianças conseguem adivinhar palavras mais
facilmente, emitir hipóteses, enunciar sentidos. A sua actividade
favorita não é aprender a ler, mas querem saber ler para poder
usufruir dos livros de que gostam.
As
crianças
que,
por
múltiplas
razões,
não
foram
sensibilizadas para as histórias, não têm a mesma facilidade. São
frequentemente crianças oriundas de casas onde ninguém compra
jornais ou livros, e onde as pessoas não costumam lidar com a
palavra escrita. Essas crianças arriscam-se a acumular dificuldades
de aprendizagem. Para fazer face a estes insucessos, associações,
educadores e autarquias lutam para que as crianças leiam livros
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com regularidade. Não só no infantário e na escola pré-primária,
mas também nos centros de lazer, nas colónias de férias. Mesmo
AS FOLHAS DA TÍLIA
quando a criança sabe ler, é bom continuar a ler-lhe histórias, já
que são precisos pelo menos três anos até que ela consiga ler com
desenvoltura.
E fazei aquilo que a vós
não houve quem fizesse
para que em cada geração
as árvores cresçam mais direitas.
Os tropismos
O ser humano é composto de linguagem – o que o distingue
dos animais –, sensibilidade e pensamento. Mas todo o
pensamento é linguagem. A linguística já nos mostrou como esta
Cayetano Arroyo
funciona. Cada palavra tem um sentido primeiro (às vezes, um
segundo ou um terceiro) e um sentido subjacente, misto de afecto
Quero explicar-vos, amigos, por que motivo escrevo contos.
e de sombra. Uma simples palavra, como nos ensinou a escritora
Até há muito pouco tempo não me apercebera da magia que ficou
Nathalie Sarraute, pode fazer bem ou fazer mal.
presa às minhas mãos quando, em menina, brincava com as folhas
Quando recebemos um elogio de alguém de quem gostamos,
da tília. Não podia guardar por mais tempo este maravilhoso
sentimo-nos logo melhor. Inversamente, uma palavra pode magoar
segredo e por isso aqui deixo a minha história.
sem que aquele que a proferiu se dê disso conta. Sarraute chamou
“tropismos” às sensações internas que podem surgir a partir de um
Havia na minha escola uma árvore gigante e frondosa
gesto, de uma frase, de um silêncio ou de uma hesitação.
cujos ramos cresciam ao longo do grande muro do pátio onde
Há crianças que sentem o mínimo desvio de linguagem.
jogávamos nos recreios. O seu tronco era pequeno, mas a sua
força era imensa, pois conseguira chegar ao céu. Era pelo
A mãe de Joséphine morreu e esta vive sozinha com o pai.
menos o que me parecia a mim, que a ia contemplar, enquanto
Num dia de grande frio, chega à escola mal agasalhada. A
lanchava, para em seguida brincar com as suas folhas.
contínua, que não conhece o seu drama, exclama “A tua mãe
Recordo como me esticava para colher a mais bela das suas
deixou-te vir assim vestida!” Joséphine desata a chorar. A
folhas, tão larga e verde, de tão requintado perfume, que para
professora apressa-se a cobri-la com o seu próprio casaco e
meus olhos ela continha em si todo um bosque. Devo dizer que
leva-a para a biblioteca, sempre a tentar consolá-la. Propõe-
foi esta a única árvore da minha infância, pois cresci numa rua
23
185
órfã de amigos verdes. Logo que conseguia colher uma folha,
-lhe que escolha um livro. Joséphine escolhe L’étoile d’Erika4. A
acariciava-a por trás e pela frente, consolava-me ao tocar a
professora lê-lhe esta história comovente de uma mãe judia
sua superfície rugosa, depois cheirava-a profundamente, diria
que atirou a filha bebé pela janela do comboio, quando este se
mesmo que a escutava através do meu nariz, e um pouco
dirigia para um campo de extermínio alemão. A criança foi
depois começava o ritual. Lentamente, muito lentamente, ia-a
salva porque uma família austríaca a recolheu. Finda a leitura,
despojando da sua carne até lhe deixar apenas as veias que
Joséphine, já calma, entra na sala de aula pela mão da
sulcavam a sua enorme superfície. Faziam-me lembrar
professora.
grandes rios e pequenos afluentes que iam ficando sem o
Uma simples frase feriu Joséphine como se fosse uma arma e
verde-mar dos seus vales e ribeiras para entretenimento de
relembrou-lhe o seu imenso desgosto. Mas, tal como as palavras,
uma menina que brincava a ser feliz sem o saber. Acabado o
que devem ser manuseadas com delicadeza, também os livros
ritual, a fragrância líquida daquela árvore impregnava as
podem aquietar uma tristeza, sobretudo se for a própria criança a
minhas mãos como uma oferenda anónima da vida ardente
solicitá-lo.
que palpitava dentro dela.
A estrutura da narrativa
Cresci e nunca mais tive notícias da árvore da minha
A literatura traz às crianças e aos jovens a língua, as
infância. Andei no instituto, na universidade, comecei a escrever
expressões, as metáforas, em suma, toda a riqueza do estilo poético
coisas muito sérias e difíceis de entender para uma criança.
ou prosódico. Também lhes oferece a estrutura da narrativa. Se
Também eu me converti numa mulher muito séria que dava
pegarmos na pequena história que constitui o cerne de um livro
conferências, ensinava, escrevia artigos de carácter social e
para crianças, encontramos uma introdução, um desenvolvimento,
uma situação de suspense e uma conclusão. No texto, as
conhecia muita gente. Fui andando pela vida sem saber que algo
personagens,
despertava em mim, um mistério profundo que me acompanhara
crianças
animais,
encontram-se,
falam-se,
separam-se, reencontram-se. Este poderá o enredo de uma
desde a infância. Esse mesmo que começou a florescer quando
primeira narrativa. Desde a infância que o jovem leitor tem
escrevi o primeiro conto. Até eu própria me admirava ao ver a
contacto com narrativas que aprenderá a reproduzir e a tornar
forma como das minhas mãos fluíam as histórias fantásticas de
mais complexas ao longo das suas leituras e da sua aprendizagem
muitos seres que como personagens nasciam do meu coração.
escolar. Com o romance, aprenderá modos de narração distintos,
Não conformada com isto, comecei também a escrever
4
186
ou
24
A estrela de Erika. (N.T.)
tais como o diário, a correspondência, o monólogo, a narração a
poesia, e foi exactamente uma amiga poetisa que me deu a
várias vozes, a linearidade cronológica ou a fragmentação da
primeira pista do que seria o grande segredo da minha vida. A
narrativa, a construction en abîme e o entrecruzar de histórias,
minha amiga Alícia Wagner falou-me um dia de uma árvore
entre outros.
venerada pelos alemães, que crescia junto das fontes e das escolas,
e que era a tília. Cantou-me depois uma canção sobre ela, cheia de
Alice frequenta o segundo ano e tem algumas dificuldades a
saudade; e despertou em mim uma estranha curiosidade de
Francês. No entanto, gosta de escrever histórias. Como a mãe
conhecer essa árvore que inspirava assim tão belos sentimentos.
lhe leu inúmeros livros – tanto ilustrados como romances –
Alice cria narrativas que, embora com erros ortográficos,
Foi, sem dúvida, uma porta que se abriu para me dar a
estão sempre bem estruturadas. São agradáveis, bem
conhecer a origem da magia que impregnava as minhas mãos. Um
construídas e engraçadas. Estas histórias fazem-na praticar a
dia, sem contar, abri um livro sobre árvores e deparei com uma
língua e mostram-lhe que consegue inventar e conduzir uma
grande tília com as folhas desenhadas em ponto grande. A minha
narração. Depois de algumas sessões num ortofonista, Alice
memória, que permanecera adormecida, recordou finalmente a
melhora a sua ortografia e aprende, aos poucos, as regras da
árvore que havia impregnado a minha infância de verde esperança.
gramática.
Senti um imenso amor por quem tinha sido a minha companheira
de jogos, mas o que eu não sabia é que ia ficar impressionada ao ler
O imaginário: um sótão
as pequenas letras daquela página onde se apresentava a sua
Uma criança herda as esperanças e os fantasmas dos pais e
silhueta.
cresce através do confronto com a realidade que vai descobrindo, o
que faz através do seu imaginário. O imaginário de cada criança é o
Dizia aí que aquela árvore era a favorita das fadas, que nela
lugar onde os seus desejos e a possibilidade de os realizar se
habitavam desde tempos imemoriais, por um motivo: deixar
defrontam, tendo em conta certas interdições culturais. É o espaço
impressa em cada uma das suas folhas a fórmula mágica que iria
virtual onde as imagens mentais são conservadas. Pode construir-
impedir que os contos se acabassem no Mundo. Porque a criança
-se de uma forma relativamente equilibrada, ou podem surgir
que tocasse uma das suas folhas receberia o dom de escrever
bloqueios que conduzam a uma morte interior (o autismo). É neste
contos sobre as coisas sagradas deste planeta.
espaço que se alojam as primeiras representações das relações
E mais, mesmo que não quisesse escrevê-los, mais tarde ou
afectivas, que têm a ver com as experiências corporais do bebé
mais cedo, acabaria por contá-los, pois a seiva havia de estimulá-la
relativamente à satisfação, ou não, do desejo. Essas representações
25
187
a imaginar histórias que teria irremediavelmente de parir se não
também passam pelos sons, pelas palavras, pelas canções, pelas
quisesse morrer de tristeza por estar tão prenhe de contos e de
histórias, pelos livros, e claro está, pelas carícias e pela voz que se
lendas e não poder dá-los à luz.
dirigem à criança.
Olhei para as minhas mãos e fiquei apaixonada pelo segredo
É no imaginário que a criança irá procurar os elementos dos
que elas continham; por ter brincado com as maravilhosas folhas
seus fantasmas e dos seus sonhos. É a imaginação que vem
enriquecer o imaginário e podemos compará-la a uma escada que
da tília quando era criança tinha agora a profissão mais formosa e
permite aceder ao sótão. Não há vida sem imaginação. Daí que o
luminosa: descobrir a magia sagrada que impregna todas as coisas,
livro seja tão essencial para as crianças, já que vem fazer funcionar,
o profundo mistério que anima a vida e escrever isso, depois, em
frutificar e enriquecer a imaginação. Os livros ilustrados
forma de conto. Senti-me deveras uma fada, porque agora aquela
alimentam-na com a sua beleza estética e a sua força inconsciente,
árvore mágica que crescia dentro de mim podia contar com todas
e cada obra funciona como uma pequena dramaturgia, na qual as
as minhas forças para poder dar fruto. E escreveria um conto por
crianças
cada uma das folhas com que brinquei.
personalidade e da sua sociabilidade. Na profundidade do seu ser,
encontram
os
elementos
de
construção
da
sua
elabora-se então um imaginário linguístico, poético, artístico e
Posso, pois, afirmar que os contos são um dos maiores
musical.
tesouros da humanidade. Desde tempos remotos que nos têm
ajudado a viver, dando-nos forças para superar os conflitos e
É indispensável brincar a imaginar
encontrar a luz na escuridão. Foram os canais de transmissão de
A imaginação é aquela faculdade humana que permite
uma sabedoria tão profunda que acabaram por tornar possível
reflectir, pensar, inventar, criar. Está presente no domínio da
passar através dos tempos o calor da humanidade e a importância
pesquisa artística, científica e filosófica, no seio das quais
de continuarmos vivos de geração em geração.
desempenha um papel importante. Mas, se não for exercitada,
emperra, tal como os músculos. É indispensável fazer funcionar a
Creio que devemos dar especial atenção aos contos que nos
imaginação das crianças em todas as idades. As histórias que lhes
revelam a problemática da existência, embora de forma simbólica,
lemos desbloqueiam e accionam a imaginação, que se alimenta do
e nos oferecem alternativas; porque hoje, mais do que nunca, há
mistério dos contos. Alguns professores do ensino primário e
que acreditar no poder da vida. Nós, adultos, sabemos que as
secundário constataram, porém, que alguns alunos tinham
condições sociais não oferecem horizontes às novas gerações.
dificuldades em distinguir o real do imaginário, a realidade da
Vemos como boa parte da juventude se destrói, absorvida pela
188
ficção. Torna-se assim necessário precisar estas noções, que
26
permitem compreender melhor a realidade. Os prolongamentos da
espiral do consumismo, da droga e da violência. E perguntamos:
leitura – as perguntas, as respostas, os debates – permitem
que sucederá aos nossos filhos, aos nossos alunos? Como educá-los
equacionar o real e o fictício. Estas trocas em torno de um livro são
para o mundo que lhes coube em sorte?
tanto mais indispensáveis quanto colocam uma distância positiva
A sociedade exige profundas mudanças e lança-nos
entre as primeiras emoções e a sua compreensão.
importantes desafios no sentido de evoluirmos através dos grandes
A imaginação em perigo
conflitos que surgem diariamente. A escola e a família também têm
Quando se pede a algumas crianças para imaginarem, pede-
de evoluir para uma educação mais consciente. É necessário que
-se o impensável. Trata-se de usar uma língua que não lhes foi
comecem a transmitir auto-estima às crianças, de forma a que,
comunicada com o amor de que elas tinham necessidade. Nestes
quando crescidas, possam enfrentar e transformar a realidade. A
casos, só a doçura de uma presença pode ajudá-las a fazer essa
meu ver, o valor da auto-estima é o bem mais apreciado dos nossos
aprendizagem. Nestas circunstâncias, tanto a poesia, como o
tempos; permite à pessoa acreditar em si mesma e conhecer os seus
humor, como a imagem podem trazer algum apaziguamento.
recursos, a fim de criar o seu lugar no mundo.
Enquanto que algumas crianças privadas de trocas familiares
compensam essa falta através da sua vida imaginativa, outras
buscam mais a passagem ao acto. Se o jovem tenta verbalizar, mas
o conteúdo verbal da sua resposta não é aquele que o adulto
Rosa Mª Badillo Baena
Contos para "delfins".
Auto-estima e crescimento pessoal. A didáctica do ser.
Porto, Asa Editores, 2003
(excertos adaptados)
espera, o jovem será punido e sentir-se-á rejeitado. Responde,
então, através de um acto físico, o que conduzirá a uma sanção. Daí
a necessidade de insistirmos na verbalização. Um educador do
infantário tinha reparado que a linguagem verbal era uma fonte de
sofrimento para alguns alunos. Em casa destes, a televisão estava
ligada de manhã à noite. Quando o educador encontrou a colecção
“Sagesses et malices” 5começou a ler, todos os dias, algumas breves
histórias, tentando incutir o amor pelas palavras aos seus alunos.
No fim do ano, os alunos que tinham dificuldades davam a
5
“Sabedorias e malícias” (N.T.)
27
189
impressão de estar mais à vontade para falar e para imaginar.
Na adolescência
Quer seja pessoal ou colectivo, o imaginário gerou mitos,
contos e poesias. O imaginário é esse sótão onde se entrecruzam
desejos, fantasmas, pulsões, sonhos, imagens, perfumes, gostos e
desgostos, músicas, esse jardim secreto onde se escondem os bons
e os maus sentimentos, os acontecimentos felizes ou infelizes, com
todas as suas sensações e emoções. Ler romances realistas,
fantásticos, históricos ou policiais ajuda os adolescentes a
continuarem a desenvolver a sua imaginação. Esta vai criando
novas imagens, novos textos, novas formas, novas ideias. É algo que
se deve fazer continuamente porque oferece à pessoa uma energia
inventiva. A imaginação contribui para a formação do pensamento
e estrutura a inteligência. Cada um de nós tem necessidade de se
forjar identidades múltiplas e de se arriscar em sonhos incríveis.
Cada um de nós tem necessidade de viver a busca de si, entre a
realidade e a mentira. A leitura traz-nos tudo isto através do herói,
herói esse que nos pode emprestar vida, força, sentimentos,
paixões…
Ávido de conhecimentos
Ler desenvolve uma qualidade: a curiosidade. Curiosidade
quanto à história, aos lugares, às personagens, à época, curiosidade
quanto ao estilo. Um ser curioso sabe observar, escutar, armazenar,
questionar, abrir-se aos outros e abrir-se a ele mesmo.
Consequentemente, a leitura desenvolve um certo saber. Permite
descobrir outras experiências, outros destinos, outros valores,
28
outros pensamentos, outras paisagens, outros mundos, outras
artes. Ler é evoluir com personagens estranhas ou desconhecidas,
QUEM CONTA UM CONTO...
ou ver seres que se nos assemelham. Ler representa um tempo de
encontros secretos.
Ler
representa
uma
experiência
social:
descobrem-se
“Toda a gente sabe contar uma história.” Será? Dois
continentes, ao mesmo tempo que se descobre o passado, a
contadores profissionais falam da importância dos contos e de uma
escravatura, o racismo, o holocausto, as guerras e todas as
abominações que elas comportam. Ler é percorrer a sua época e
ou outra regra para narrá-los bem. Tem de ser um acto de amor,
encontrar jovens que vivem situações revoltantes, crianças exiladas
dizem.
ou que vivem em campos de concentração. É escutar a voz
Stória, stória
daqueles que estão no desemprego, dos que têm sida, dos que não
Furtuna di Séu, ámen
têm família. Ler é compreender, indignar-se e tentar decifrar o que
As histórias da noite fazem parte de um ritual sagrado para
se esconde na história da humanidade. É pensar, misturar as ideias,
muitas crianças, que muitas vezes é profanado pela falta de tempo,
abordar situações, sentimentos, experimentar toda a interioridade
cansaço, má disposição… Vale a pena não desistir. Todos
que permite aos jovens compreenderem melhor o que se passa
concordam: os contos são fundamentais para alimentar o
dentro eles, à sua volta, longe deles.
imaginário. Contá-los é um acto de amor, dizem os contadores.
Sylvie tinha doze anos. O pai tinha falecido recentemente e
E dizem também que o melhor é pôr os livros de lado e
a mãe tinha-se refugiado no desleixo e no desgosto. Sylvie ia à
contar, olhos nos olhos, que há um menino que ganhou asas para
biblioteca da zona, onde uma jovem bibliotecária, que a
procurar o ó-ó; que um lobo se aproxima do jardim onde brinca o
conhecia bem, lhe preparava uma pilha de livros todas as
Pedro; que uma carochinha anda à procura de marido. Uma
semanas: livros ilustrados que a poderiam reconfortar,
história é sempre melhor quando não há barreiras entre o narrador
aventuras loucas de quatro heróis e de mil perus a vaguearem
e o ouvinte.
por estradas americanas, ou romances que lembravam o seu
Também ajuda lembrar as histórias que nos contavam os
próprio caso. Sylvie devorava tudo. Hoje, diz que foi a leitura
avós, os pais, os professores. É bom recordar situações de infância,
que a salvou.
diz António Fontinha, contador de contos profissional. Há um
Ler é uma experiência social mais ou menos valorizada. É-o
mundo, que tem a ver com a memória, que é aquele que se está a
29
191
tentar reacender. Temos de fazer arqueologia: ir aos sítios a que a
muito na escola, pouco nos meios de comunicação, nada na
memória está ligada, falar com as pessoas. O conto é importante
televisão. Mas trata-se de uma experiência que se partilha, que dá
para ajudar a desenvolver o espaço da oralidade em casa. Temos de
lugar a trocas frutíferas entre amigos, e que permite reagir e
reconstruir o espaço da oralidade para conviver ao nível do
reflectir em conjunto sobre os mesmos livros.
imaginário.
Repouso, fruição e estilo…
Não há receitas para contar bem uma história, porque o que
Ler é estar sozinho, com o corpo relaxado, em tranquilidade.
serve a um pode não servir a outro. Mas, diz, pode haver algumas
A leitura exige um esforço intelectual, mas também permite um
técnicas: a repetição é uma regra de ouro. As personagens ganham
relaxamento. Ler é ter junto de si um livro, aberto ou não, lê-lo,
vida com o tempo. Começa-se a experimentar coisas. Diz-se que
pousá-lo, reflectir, voltar a pegar nele, ao ritmo que se desejar. Ler
quem conta um conto acrescenta um ponto. É esse ponto, o
é encontrar personagens e situações ideais, entesourar recordações
memoráveis. Ler é deambular entre o interior e o exterior. Ler
pormenor, que vai evoluindo. Isso também só acontece com as
também é descobrir um estilo. A escrita tanto se aprecia em textos
histórias que dão prazer contar.
curtos como em textos longos. Ler é deixar-se levar pela
O que leva à segunda regra: Nunca devemos contar um conto
musicalidade das palavras, pelo ritmo, pela cadência e pela
de que não gostamos.
harmonia de certas frases. A língua pode ser surpresa, embalo,
encanto…
Toda a gente sabe contar uma história, defende o contador
cabo-verdiano Horácio Santos. E, recorrendo também ao ditado
A televisão e os jogos electrónicos
popular, o contador acrescenta: A forma de contar é que é o ponto.
A televisão pode ser um meio de enriquecimento cultural, já
Ninguém conta a mesma coisa da mesma maneira.
que o pequeno ecrã abre os olhos das crianças para a realidade
Horácio Santos prefere também ter as mãos livres de livros e
circundante. Há imensos documentários, feitos por realizadores
recorrer à memória. Com um livro perde-se a capacidade de recriar.
talentosos, que são fonte de conhecimentos científicos, artísticos e
Quando conto, desdobro-me em personagens. O livro prende o
históricos. Graças a emissões sobre a fauna e a flora, sobre a terra e
sobre o mundo submarino, os jovens podem viajar e descobrir
contador e parte o entusiasmo.”
coisas que, de outra forma, lhes estariam vedadas. Fonte de
Para o contador cabo-verdiano, todas as histórias são boas
distracção, a televisão também pode ser veículo de ficção de
para crianças, mesmo as que têm violência. No original, o
qualidade, de desenhos animados cativantes, de filmes inteligentes.
Capuchinho Vermelho morreu. Qualquer história tradicional,
Mas torna-se necessário vigiar os programas e seleccionar as
192
30
emissões. É que, infelizmente, a televisão nem sempre é utilizada
popular, tem partes violentas. Podem, no entanto, evitar-se certas
de forma positiva.
palavras, procurar outras que acertem melhor.
Em França, 94% das casas possuem um ou mais receptores
Horácio Santos começa sempre as suas sessões de histórias
de televisão e, em algumas famílias, cada membro vive em função
com uma tradição trazida de Cabo Verde:
do seu programa favorito. Um telespectador passa, em média, duas
Stória, stória
horas e quarenta e cinco minutos por dia em frente do seu
Furtuna di Séu, ámen
aparelho. Há inúmeras crianças que consagram tanto tempo à
(História, história, dádiva do céu, ámen)
televisão como à escola e muitas começam a ver televisão logo de
Porque um conto é uma graça divina. Todo o tempo
manhã e acabam à noite, já tarde.
dedicado a contar uma história é um tempo fértil, que germinará,
Uma professora de Francês tinha reparado que os seus
diz por sua vez Fontinha. Tudo o que se dá à terra, a terra devolve. A
alunos do 6º ano estavam menos despertos de manhã do que
terra não é madrasta.
de tarde. Fez, então, um pequeno inquérito sobre os hábitos
O imaginário, transmitido pelos contos, também não. É um
televisivos. Constatou que mais de metade dos alunos da
património que acompanha as crianças, que as cultiva. Um
turma tinha um aparelho no quarto e que via televisão muito
contador de histórias é sempre um educador: os contos passam
depois das 23 horas. Quando se reuniu com os pais, falou-lhes
valores, continua Fontinha.
dos malefícios da televisão não controlada e do cansaço que as
crianças mostravam durante as aulas. Falou-lhes da
E é também por isso que Horácio Santos defende um
possibilidade de gravar programas mais tardios e alertou-os
trabalho depois da história: terminado o conto, há que identificar
para o perigo de as crianças terem acesso às emissões na
os elementos, ambientes, personagens, para que a criança possa
privacidade dos seus quartos. Seguiu-se uma pequena troca de
descodificar e recontar o que ouviu: Fazer o exercício da memória.
impressões com os pais, da qual ressaltou o facto de não haver
Neste processo, a criança estabelece o diálogo com os pais.
momentos de partilha familiar, o facto de as crianças
Fontinha sugere que os adultos entrem agora no mundo do
petiscarem constantemente diante da televisão, a falta de
narrador e que não o esgotem nos próximos anos, apenas enquanto
horas de repouso, o tempo perdido para o desporto, a
os filhos são crianças; pelo contrário, defende que este papel deve
brincadeira, a leitura…
ser prolongado por toda a vida.
Depois deste encontro, alguns pais tiraram a televisão do
31
193
O resultado será uma forte cumplicidade entre pais e filhos. E
quarto dos filhos e tentaram reflectir com os filhos acerca dos
uma recuperação da tradição oral.
programas que estes viam. Alguns alunos foram queixar-se à
professora do que os pais tinham feito, assacando-lhe as culpas. Ela
riu-se e garantiu-lhes que um dia lhe agradeceriam. Foi o que
Rita Pimenta
Público, Revista Pública
5 de Agosto de 2001
(excertos adaptados)
aconteceu alguns meses mais tarde, quando elogiou o trabalho de
uma aluna, que tinha feito progressos consideráveis. Esta confessou:
“É graças a si! Dantes fazia os deveres diante da televisão. Agora que
já não a tenho no meu quarto, concentro-me melhor!”
Uma estatística confirma que 43% dos jovens com idades
entre os 8 e os 16 anos têm televisor no quarto, o que significa que
é impossível controlar a escolha de programas e que a hora de
dormir é deixada ao critério do próprio adolescente. Além disso, a
mudança contínua de canais converte-se numa atitude que o jovem
adopta inconscientemente na escola com os professores. Os
docentes com mais de uma dezena de anos de experiência são
unânimes em reconhecer que a atenção dos alunos diminuiu
consideravelmente, mesmo entre os pequeninos do infantário.
Será que devemos tolerar esta utilização abusiva do pequeno
ecrã, tanto entre os mais velhos como entre os mais novos? A
televisão
sempre
ligada,
qual
fundo
sonoro
contínuo,
é
particularmente nefasta para os mais pequeninos, que se tornam
passivos, e que se afastam da linguagem e das brincadeiras
essenciais para a sua idade. Os miúdos dos 4 aos 7 anos habituam-se a um encadeamento de sons e imagens que se opõe ao esforço
de concentração que precisam de fazer para aprender a ler. As
crianças que passam cada vez mais tempo diante do ecrã correm
mais riscos de se tornarem obesas. O sedentarismo arrasta consigo
194
32
o excesso de peso. Aqueles que vêem televisão regularmente,
depois de virem da escola ou nas tardes em que não têm aulas, bem
como aqueles que jogam mais de duas horas no computador, não
As palavras
cor-de-rosa COR-DE-ROSA
e as palavras cinzentas
AS PALAVRAS
estão em tão boa forma física como aqueles que correm, saltam ou
E
AS PALAVRAS CINZENTAS
praticam um desporto.
O filho mais velho de Marie está doente. Para lhe fazer
companhia, Marie passa uma quarta-feira inteira diante do
televisor, acompanhada dos filhos. “Descobri que os meus
filhos
estavam
tão
absortos
nos
desenhos
animados
Um dia, sem se saber muito bem porquê, tudo aconteceu de
americanos ou japoneses que nem me ouviam falar. Estavam
repente: as palavras cor-de-rosa desapareceram do planeta! O que
completamente prisioneiros da imagem. Os enredos eram
são palavras cor-de-rosa? São palavras delicadas como Obrigado,
frequentemente violentos e ao fim do dia estávamos todos
Faça favor, Se não se importa, És tão importante para mim.
estupidificados.”
Palavras tão doces que são como mel no coração. Seria obra do
O herói dos desenhos animados não tem a subtileza do herói
Mago Cinzento, que só gostava do salgado, do picante e do
dos livros. Contrariamente ao cinema ou ao teatro, que possuem
amargo? Não… Eram os homens que, vá lá saber-se porquê,
referências espaciais concretas e obrigam a um certo ritual, os
preferiam as palavras picantes, amargas e salgadas.
desenhos animados fornecem modelos irreais ao imaginário da
Naquela época, existiam na Terra lojas de palavras cor-de-
criança, sem qualquer tipo de distanciamento. Os adolescentes de
-rosa e lojas de palavras cinzentas. Os vendedores de palavras cor-
hoje já não distinguem o real do fictício. As explicações do adulto e
-de-rosa vendiam Amo-te, Penso em ti, Muito Obrigado, Se faz
a sua presença tornam-se, pois, indispensáveis. Por outro lado, o
favor… Os vendedores de palavras cinzentas vendiam sobretudo
uso generalizado da televisão contribui para formar uma sociedade
Cabeça de alho chocho, Não me chateies, Cala o bico… A princípio,
onde todos partilham os heróis da moda e se alheiam do ambiente
comprava-se muito mais palavras cor-de-rosa do que palavras
familiar, o que faz com que se isolem do mundo adulto que os
cinzentas. Os vendedores de palavras cor-de-rosa faziam bons
rodeia. Isto pode ser extremamente grave em lares onde a
negócios, e um perfume doce envolvia a Terra. Os vendedores de
comunicação é escassa e os elos entre os membros da família se
palavras cinzentas passavam os dias à espera, porque só tinham
encontram fragilizados.
clientes uma ou duas vezes por ano, por altura de grandes zangas.
33
195
Numerosas famílias confessam ter necessidade de gerir o
☻☻☻
No entanto, um dia, os homens puseram-se estranhamente a
tempo que os filhos passam diante do ecrã, mas dizem não ter a
comprar palavras cinzentas. Havia uma crise de emprego, uma
firmeza necessária para o fazer. Tanto as crianças como os jovens
precisam de um adulto a seu lado para limitar o tempo passado
greve de corações. Os patrões compravam muitos Vá pregar a outra
diante do ecrã e para os ajudar a escolher os programas, bem como
freguesia, Está bem arranjado, homem!, Obrigado pelos seus
a altura de se dedicarem a outras actividades. O gravador permite
serviços mas está despedido. Havia guerras entre famílias,
gravar bons desenhos animados, documentários, filmes, e é
divórcios, casais que já não se entendiam. Invejas entre irmãos,
possível adquirir vídeos que desenvolvem a capacidade crítica dos
zangas… Comprava-se vários Já não gosto de ti, Acabou tudo. Nas
jovens e fazem deles espectadores inteligentes. O bom uso da
lojas de palavras cor-de-rosa, muitos Obrigado, Por favor, Gosto de
televisão passa pela educação e pela partilha. Por ver os programas
ti, ficavam por vender.
em conjunto e por os discutir.
– Para o diabo com as palavras doces – diziam os homens.
Uma ortofonista, que vivia sozinha com as duas filhas,
– São caras e não trazem nenhum benefício.
inquietava-se com o tempo que as miúdas passavam diante do
Desolados, os vendedores de palavras cor-de-rosa já não
televisor. Constatou que quase já não liam. Comprou um
sabiam onde as armazenar. As lojas cor-de-rosa fechavam umas
gravador e decidiu consagrar algum tempo a ver os programas
atrás das outras. Passa-se, Fechado por morte do proprietário,
com as filhas. Tentou educá-las para a imagem. Sempre que
Liquidação total, Quinze palavras cor-de-rosa pelo preço de uma.
emitia uma opinião, justificava-a. Falavam as três das
Mas, mesmo a preços módicos, elas não atraíam ninguém. As lojas
escolhas que faziam. Alguns meses mais tarde, as filhas já
de palavras cinzentas, essas sim, prosperavam. Porque, e isso é bem
viam menos televisão, eram mais selectivas e tinham
conhecido, as palavras feias são contagiosas. Se no recreio te
recomeçado a ler.
lembrares de lançar uma, receberás dez em troca! Abriram-se
Os mesmos limites devem ser impostos à utilização dos jogos
mesmo lojas especializadas em palavras feias, risos grosseiros,
de vídeo. O Monopólio e os jogos de cartas geravam outrora
insultos horríveis. E os vendedores cinzentos trabalhavam dia e
momentos de alegria e de encontro familiar. Hoje em dia, a técnica
noite para descobrirem jóias raras, as palavras mais horríveis e mais
invadiu os lares. Se não podemos afastar os nossos filhos destes
maldosas!
meios com os quais amanhã estarão em contacto permanente,
☻☻☻
196
podemos, pelo menos, reduzir o tempo que passam com eles. O
34
desporto, os passeios, as visitas a museus podem divertir e afastar
Como receavam ficar sem provisões, o que costuma
os jovens destes “encontros” solitários.
acontecer em tempo de guerra, as pessoas começaram a fazer
Pierre, pai de dois rapazes e de uma rapariga, já estava
conservas de palavras cinzentas. Congelaram-nas às dúzias,
farto de ouvir o barulho dos jogos dos filhos. Decidiu jogar
empilharam-nas nos armários da cozinha, nos guarda-fatos,
com eles e, qual não foi a sua surpresa, quando descobriu que
debaixo das camas. E, upa, ao menor atrito, ao mais pequeno
o jogo que tanto os entusiasmava só consistia em matar os
gracejo, à mais insignificante discussão, ia-se à reserva: Cala o bico,
adversários! Perguntou aos filhos quem lhes tinha dado aquele
Vai ver se chove, És um atraso de vida, Ó gordefas, e assim por
jogo. Responderam que tinha sido emprestado por um amigo.
adiante! Os aniversários tinham lugar no meio dos piores insultos.
A partir de então, Pierre vai sempre com os filhos comprar os
Cantarolava-se Infeliz aniversário, infeliz aniversário, lançando-se
jogos de computador e partilham em conjunto o prazer de
uma bomba de palavras feias no meio da festa. Entre os adultos,
construir um castelo medieval ou um jardim zoológico.
para se festejar a passagem do ano, comia-se as passas e bebia-se
Os pais de hoje devem estar muito atentos aos jogos
sumo de peúgas pretas, no meio de gracejos do género:
electrónicos e à utilização que os filhos fazem da Internet, que
– Desejo-te um ano péssimo… e, principalmente, muito
tanto os pode ajudar a documentarem-se como pode transformar-
pouca saúde!
-se numa droga. As crianças e os jovens que lêem não deixam de
E, quando se abriam as prendas, era um concerto de
ver televisão ou de jogar no computador. São jovens do seu tempo,
gemidos:
mas que adquiriram a capacidade de escolher…
– Que feio! Como é que tiveste uma ideia tão má? É, de
● Conclusão
facto, o presente que eu mais temia!
De algumas décadas a esta parte, tanto escritores como
Antes das aulas, as crianças corriam para as lojas cinzentas e
artistas, franceses ou estrangeiros, oferecem às crianças cada vez
enchiam os bolsos de palavras feias para a hora do recreio. Antes
mais obras de talento: livros ilustrados espantosos, ficções cheias
das férias, os adultos também lá iam, para encherem as malas de
de subtileza, obras que auxiliam na descoberta do mundo de hoje.
palavras cinzentas, de piadas estúpidas, que atiravam pela janela na
Há contadores para distrair as crianças, fazê-las rir, conduzi-las ao
auto-estrada, entre as sandes e o café, durante os engarrafamentos:
mundo do sonho. E há também ilustradores de talentos diversos
Ó aselha, vai mas é plantar batatas!
para enriquecer a sua percepção. Para uns e para outros, as crianças
À face da Terra, a atmosfera era glacial. O Sol, que tem medo
35
197
das grosserias e dos arraiais de pancada, recusava-se agora a
– desde o bebé que começa a ver imagens àquela que observa com
brilhar. Lembrava-se de outros tempos, em que era acolhido de
atenção os livros de arte – são leitores de corpo inteiro, e a sua
braços abertos:
afectividade, capacidade de reflexão, necessidades, direitos, e
futuro, são sempre tidos em conta. Os textos e as ilustrações
– Está bom tempo! Que maravilha! Obrigado, amigo Sol…
reflectem as suas sensações, as suas emoções, as suas interrogações.
Oh, meu Deus, como gosto do Sol…
É verdade que a leitura pode constituir um elo entre a
Em vez disso, ouvia-se agora:
criança e o mundo adulto, um meio de partilha no seio da família,
– Que calor horrível! Bolas! Kêkalôr!
da escola, da biblioteca, das colectividades locais. É verdade que a
Então as nuvens invadiram o céu, e a terra mergulhou num
leitura pode abrir horizontes: alberga tanto os ensinamentos do
período glacial. Toda a gente tinha frio. As pessoas recusavam-se a
poeta como o murmúrio das histórias, desvenda o coração do
despir-se, já não faziam festas umas às outras, já não nasciam
escritor ao mesmo tempo que corre em busca do passado, do
bebés. A Terra estava tão triste, sem flores nem palavras cor-de-
espaço reencontrado e abre as suas páginas ao artista-mágico que
-rosa!
desenha traços e cores.
Há todo um trabalho de autor, ilustrador, pedagogo, editor e
☻☻☻
No entanto, algures no mundo, um rapazinho não queria
impressor que está na origem deste tesouro que os jovens podem
habituar-se às palavras cinzentas. Talvez por, no seu bolso, ter
desvendar sem cessar. O livro desenvolve a sensibilidade, a língua,
o pensamento, a inteligência. Inúmeras pessoas, entre as quais
ficado uma palavra cor-de-rosa meio gelada. “Eu”, dizia o Pedro,
animadores, bibliotecários e livreiros, dedicam-se, em seguida, à
“não quero um mundo onde mais ninguém canta; onde não se diz
tarefa de fazer amar os livros ilustrados e os romances.
bom dia, nem obrigado, onde há sempre tanto frio. Vou ver se
Todo este trabalho profundamente impressionante faz com
encontro o Sol.” O rapazinho caminhou durante muito tempo,
que em França haja um público de pais extremamente exigente
escalou colinas geladas, pequenas e grandes montanhas, vulcões
que, por sua vez, transmitem aos filhos o amor pelos livros.
extintos. Por fim, ao cabo de meses e meses de árdua caminhada,
Façamos com que a afirmação de Jean Dellas, director da
chegou exausto e transido à casa das nuvens.
editora L’École des Loisirs, segundo a qual “a França é um dos
– Toc, toc – bateu. – Venho à procura do Sol.
países onde famílias e colectividades compram cada vez mais livros
– Oh, oh! – exclamou a nuvem-chefe, que tinha tomado
posse do céu cinzento.
198
para crianças” seja sempre verdadeira, já que, tal como afirma
– Olhem só para isto… Um fedelho
Geneviève Patte, especialista mundial em literatura infantil: “A
36
leitura é um instrumento que contribui para a difícil conquista da
ridículo que vem à procura do senhor Sol! O Sol não aparece a
liberdade.”
ninguém! Desde que as palavras cinzentas tomaram o poder,
somos nós, as nuvens pardacentas, que somos os chefes.
Dito isto, virou as costas e fechou-lhe a porta na cara. O
Rolande Causse
Qui lit petit lit toute sa vie
Paris, Albin Michel, 2005
(Tradução e adaptação)
rapazinho sentou-se, confuso. Como responder? Não trazia no
bolso uma única palavra cinzenta. Então, começou a chorar. A
nuvem olhou para ele surpreendida: já há muito tempo que não via
ninguém a chorar! Naquele universo glacial, todos os olhos
estavam gelados, todos os corações estavam frios.
– Pára com isso imediatamente! – gemeu a nuvem. – Se
não, vou fazer cair um aguaceiro. (Porque as nuvens têm
habitualmente a lágrima ao canto do olho.)
Finalmente comovida, tomou, lá no íntimo, a decisão de o
ajudar.
– Olha – disse-lhe. – Aquela bolinha amarela ali em baixo
é o Sol.
Pedro abriu os olhos e viu de facto uma bola a bilhar, perdida
na imensidão do azul: era o Sol, que estava quase a desaparecer… Já
no limite das forças, o rapazinho caminhou em direcção à pequena
bola amarela.
– Bom dia! – cumprimentou. – Vim buscar-te. Tudo se
tornou cinzento na Terra. Temos frio, sentimo-nos mal. Nunca nos
rimos, nunca dizemos palavras delicadas. Precisas de voltar.
E o Sol e o rapazinho começaram ambos a suspirar, pensando
naquela “época cor-de-rosa”….
37
199
– Precisas de voltar – insistiu Pedro.
– Está bem, vou contigo, mas só a título de experiência… –
resmungou o Sol. – Atira primeiro para a Terra estas palavras cor-de-rosa. Assim, o meu regresso será mais agradável.
O Sol deu ao menino um conjunto de palavras cor-de-rosa:
Por favor, É simpático da tua parte, Muito obrigado, Gosto muito
de ti, Amor da minha vida, Se não se importa, etc. O rapazinho
meteu-as nos bolsos, na boca, no boné, nas meias, em todo o lado.
Todas as que conseguisse levar!
☻☻☻
Regressou à Terra e distribuiu-as ao acaso. De repente, nos
engarrafamentos, as pessoas começaram a desdobrar os papelinhos
cor-de-rosa: Faz favor de passar, Que tempo tão bonito, não acha?,
Pode ir à minha frente, não tenho pressa nenhuma…
Nos recreios, começaram a ouvir-se novamente risos
simpáticos e palavras como És o meu melhor amigo, Claro que
podes entrar no jogo… Em casa, as crianças voltaram a usar
palavras cor-de-rosa: Obrigada, mamã, Por favor, Desculpa, não fiz
de propósito… Nos aniversários, cantava-se alegremente e, nas
festas da passagem do ano, formulava-se votos de felicidade e de
saúde.
O Sol voltou a brilhar e a deitar-se todas as noites na sua
nuvem cor-de-rosa. E, juro, os vendedores de palavras cor-de-rosa
começaram a fazer fortuna! Abriram-se mesmo outras lojas
especializadas em sorrisos, em suspiros de satisfação, em
200
delicadeza, em cortesia, em civismo… Foi como mel para o coração!
Quanto às palavras cinzentas, decidiram, diante de tanta
felicidade, desarvorar com quantas patas cinzentas e peludas
tinham. E, quando alguma se lembrava de vir meter o nariz,
garanto que não ficava por muito tempo!
Sophie Carquain
Petites histoires pour devenir grand
Paris, Albin Michel, 2003
(Tradução e adaptação)
A SENHORA DOS LIVROS
A minha família e eu vivemos num sítio muito alto, pertinho
do céu. A nossa casa fica situada num local tão alto que quase
nunca vemos ninguém, a não ser falcões a planar e animais a
esconder-se por entre as árvores.
Chamo-me Cal e não sou nem o mais velho nem o mais novo
dos irmãos. Mas, como sou o rapaz mais velho, ajudo o meu pai a
lavrar e a ir buscar as ovelhas quando, às vezes, elas se escapam.
Também me acontece trazer a vaca para casa ao pôr-do-sol, e ainda
bem que o faço. É que a minha irmã Lark passa o dia todo a ler.
O meu pai diz sempre que nunca se viu uma rapariga tão
super-leitora... Cá comigo não é assim. Não nasci para ficar sentado
e quieto a olhar para quatro garatujas. E não acho graça nenhuma a
que a Lark se arme em professora, porque a única escola que existe
fica a quilómetros daqui e ela dificilmente lá chegará. Por isso é
39
201
que ela quer ensinar-nos. Só que, a mim, a escola não me interessa!
Sou sempre o primeiro a ouvir o ruído dos cascos e a ver a
égua alazã da cor do barro. Sou o primeiro a dar-se conta de que o
ginete não é um homem, mas uma senhora com calças de montar e
cabeça bem erguida.
É claro que recebemos a forasteira de braços abertos, porque
pessoa mais simpática não há. Depois de tomar chá, põe os alforges
em cima da mesa e até parece ouro o que tira de lá de dentro. Os
olhos da Lark põem-se a brilhar como moedas e a minha irmã não
consegue ter as mãos quietas, como se quisesse apropriar-se de um
tesouro.
Na realidade, o que a senhora traz não é tesouro nenhum,
pelo menos a meu ver. São livros! Um monte de livros que ela,
sozinha, carregou pela encosta acima. Um dia inteiro a cavalo para
nada! É o que eu digo! Porque, se ela os quisesse vender, como faz
o caldeireiro, que anda por aí com panelas, sertãs e outras coisas,
veria logo que nós nem um centavo sequer temos para gastar.
Muito menos em livros velhos e inúteis!
O meu pai põe-se a fitar Lark e pigarreia. Então propõe à
Senhora dos livros:
— Fazemos um contrato. Em troca de um livro dou-lhe uma
saca de framboesas.
Aperto bem as mãos atrás das costas.
Quero falar, mas não me atrevo. As framboesas, fui eu que as
40
apanhei… Para fazer uma tarte, não para trocar por um livro!
Quando vejo a senhora recusar, até pasmo. Não aceita uma saca de
O CONTO COMO AUTO-CONHECIMENTO
framboesas, nem um molho de legumes, nem nada do que o meu
pai, em troca, lhe quer oferecer. Os livros não custam dinheiro; são
de graça, como o ar. Ainda por cima, dentro de quinze dias, voltará
O conto é um espelho mágico no qual somos convidados a
para os trocar por outros!
mergulhar, a fim de nos reconhecermos. Não no sentido de nos
Cá para mim, tanto se me dá que a Senhora traga livros ou
afogarmos numa auto-contemplação estéril, como Narciso, mas
que não encontre o caminho até nossa casa. O que me espanta é
antes no de nos observarmos tal e qual somos, para além das
que, mesmo que chova a cântaros, haja neve ou faça frio, ela volte
aparências. Em A Bola de Cristal, por exemplo, o herói parte em
sempre!
busca de uma princesa encantada que espera ser libertada. Mas
Certo dia de manhã, a terra acordou mais branca do que a
quando a encontra, a princesa parece-lhe repugnante. Esta adverte-
barba do nosso avô. O vento uivava como lince em plena escuridão
-o: “O que vês não é o meu verdadeiro rosto. O Grande Mágico tem-
e apertamo-nos todos diante da lareira, pois, num dia desses,
-me em seu poder. Por causa dele, os homens só me podem ver-me
ninguém faz nada. Com um tempo assim, até os animaizinhos da
sob esta forma horrível. Se quiseres contemplar a minha verdadeira
floresta se deixam ficar bem aconchegados.
aparência, vê-me no espelho. O espelho não se deixa enganar e
mostrar-te-á a minha verdadeira face”. O herói olha para o espelho
e vê nele o rosto, cheio de lágrimas, da rapariga mais bela do
mundo.
Existe em cada um de nós uma princesa encantada que
achamos feia e repugnante: são os nossos recalcamentos, que
vivemos
sob
a
forma
de
vergonha,
inveja,
cólera
e
desencorajamento, entre outros. Se aprendermos a ver esses
instintos nesse espelho de verdade que são os contos, poderemos
De repente, ouviram-se umas pancadinhas na janela. Era a
contemplar as verdadeiras belezas que habitam em nós e que
Senhora dos livros, abrigada até à ponta dos cabelos! Fez a troca
choram enquanto aguardam a sua libertação. Essas princesas só
41
203
têm um herói: nós mesmos. É a nós que compete libertar o nosso
através da porta entreaberta, para não apanharmos frio. E quando
reino interior e a princesa belíssima que nos espera. É a parte mais
o meu pai lhe pediu que dormisse em nossa casa, não se deixou
íntima do nosso ser que encontramos no espelho dos contos e que
convencer:
nos conduz à libertação e ao desabrochar pleno. Existe uma
— A égua leva-me embora — respondeu.
identidade perfeita entre nós e o conto. O conto é a nossa história.
Fiquei de boca aberta a vê-la afastar-se. Pensei que era uma
É a encenação metafórica de aspectos nossos que ignoramos,
pessoa muito corajosa e tive vontade de saber por que é que a
recusamos, ou que não sabemos ver tal e qual são. Se conseguirmos
Senhora dos livros se arriscava a apanhar uma constipação ou coisa
penetrar no espelho e reconhecer a nossa imagem, se escutarmos o
bem pior.
conto para nele encontrarmos aspectos concretos da nossa
Escolhi um livro com letras e desenhos e pedi à minha irmã
existência, bastar-nos-á pôr em prática as suas propostas e viver a
Lark:
nossa vida segundo esse modelo de verdade. Somos feitos da
mesma maneira que os contos são feitos e a função dos contos é
— Ensina-me o que está aqui, por favor.
lembrar-nos isso mesmo. Se não nos lembramos, é porque estamos
A minha irmã não se riu nem troçou de mim. Arranjou um
sob o feitiço de um Grande Mágico, que nos subjuga, seja através
lugar aconchegado e, em voz baixa, pôs-se a ler.
de condicionamentos mentais, seja através das representações
O meu pai costuma dizer que nos sinais da natureza está
falseadas da realidade. O conto tem por fim acordar a nossa
escrito se o Inverno vai durar muito ou pouco. Este ano, todos os
estrutura de verdade profunda, levar-nos a experimentá-la e a pô-la
sinais anunciaram neve bem abundante e um frio tremendo. Mas,
em movimento, a fim de que possamos harmonizá-la com o
embora todos os dias ficássemos em casa apertados como
arquétipo ideal.
sardinhas em lata, não me importei nada. Pela primeira vez.
Os contos de fadas convidam-nos a uma mudança
Só quase na Primavera é que a Senhora dos livros pôde voltar
miraculosa. Funcionam para nós como uma memória ancestral,
conservada
através
de
relatos
populares,
cuja
a visitar-nos. A minha mãe ofereceu-lhe um presente, a única coisa
aparente
de valor que lhe podia dar: a sua receita de tarte de framboesa, a
insignificância permitiu evitar adulterações dogmáticas. Mas não
melhor do mundo.
nos deixemos iludir: os contos de fadas transmitem, à sua maneira,
— Não é muito, bem sei, para o grande esforço que faz —
a mesma sabedoria que as Sagradas Escrituras. São um repositório
disse a minha mãe.
de conhecimentos incrivelmente ricos, dos quais podemos
204
42
Em seguida, baixou a voz e acrescentou com orgulho:
alimentar-nos se conhecermos o código e as regras.
Devido ao poder e à simplicidade das suas imagens, são
— E por ter conseguido arranjar dois leitores onde apenas
havia um!
formas de nos ajudar a despertar e operam a diversos níveis da
consciência. A análise do conto propõe-nos um atalho atraente
Baixei a cabeça e esperei pelo fim da visita para comentar:
para o interior de nós mesmos, e convida-nos a efectuar um
— Também gostaria de ter alguma coisa para lhe oferecer.
verdadeiro trabalho de auto-conhecimento e de transformação. Os
A Senhora dos livros virou-se e fitou-me com os seus grandes
contos são mais do que ensinamentos. São uma verdadeira
olhos negros:
iniciação, misteriosa e mágica, quase sagrada. Como todas as obras
de arte tradicionais, são sóbrios em meios mas ricos em símbolos e
— Vem cá, Cal — disse, com muita doçura.
arquétipos. Os contos são um enigma cuja resolução deve ser
Quando me aproximei dela, pediu:
procurada no nosso interior e não neles mesmos.
— Lê-me alguma coisa.
Mesmo quando nos foram fielmente transmitidos pela
Abri o livro que tinha entre mãos, mesmo acabadinho de
tradição popular, os contos estão impregnados das características
chegar. Dantes, eu pensava que eram quatro garatujas, mas agora já
culturais dos países onde são transmitidos. Mesmo que possuam
sei ver o que contém.
um fundo ancestral comum e transmitam as mesmas mensagens
essenciais, fazem-no através de cenários diferentes, provenham
E li um pouco em voz alta.
eles da Europa, da África, da Ásia ou da América. Neste livro
— Isto é que é a minha prenda! — disse a Senhora dos livros.
estudaremos apenas contos de fadas provenientes do repertório
europeu, por uma questão de coerência. Se a maior parte deles é
♦♦♦♦♦♦
dos irmãos Grimm, é porque os irmãos Grimm, souberam, no
Nota da Autora
início do século XIX, transcrever com sobriedade os contos
Este livro é inspirado numa história real, e relata o trabalho
populares do seu tempo.
incansável das bibliotecárias a cavalo, conhecidas como «as
Este respeito na recolha destas narrativas populares permite-
Senhoras dos livros» entre os Apaches do Kentucky.
-nos ter hoje aceso a um repertório autêntico e fidedigno, o que
O Projecto da Biblioteca a Cavalo foi criado nos anos trinta do
nem sempre acontece com os “autores de contos”, tais como
século XX, no contexto do New Deal do Presidente Franklin D.
43
205
Perrault ou Andersen, para só citar os mais conhecidos, que se
Roosevelt, com a finalidade de levar os livros às zonas isoladas
afastam “criativamente” da tradição. Não nos interessa o estudo do
onde havia poucas escolas e nenhuma biblioteca. No alto das
conto enquanto obra literária, mas enquanto chave de acesso a um
montanhas do Kentucky, os caminhos eram amiúde simples leitos
melhor auto-conhecimento. O conto enquanto desafio à mudança:
de riachos ou carreiros acidentados. De cavalo ou de mula, as
como a pôr em prática desde que compreendamos a sua
bibliotecárias percorriam a mesma rota árdua, cada duas semanas,
mensagem. Os contos podem conduzir-nos à nossa própria
carregadas de livros, independentemente de fazer bom ou mau
realização pessoal, apesar de todos os obstáculos, provas e
tempo. Para demonstrar a sua gratidão por algo que não custava
frustrações. Os contos de fadas convidam-nos a viver o Todo-
dinheiro, “como o ar”, as famílias podiam dar-lhes algo do pouco
1
-Possível , para além das nossas limitações. Ou seja, convidam-nos
que possuíam: legumes das suas hortas, flores ou frutos silvestres,
a viver a totalidade da realidade, visível e invisível. Para que isso
ou até apreciadas receitas transmitidas de geração em geração.
Embora também houvesse alguns homens na Biblioteca a
ocorra, são-nos propostos procedimentos muito concretos e
Cavalo, geralmente eram as mulheres que o faziam, numa época
precisos.
em que a maioria das pessoas achava que o lugar da mulher era em
A primeira coisa que devemos fazer é ouvir ou ler os contos,
casa. As bibliotecárias a cavalo revelavam uma resistência e uma
deixando que as imagens e as sensações surjam livremente, como
entrega extraordinárias. Ganhavam muito pouco, mas sentiam-se
se estivéssemos a sonhar. Neste estádio, é importante não
orgulhosas do seu trabalho: levar o mundo exterior ao povo apache
tentarmos interpretar o sentido da história ou dos símbolos. Temos
e, em muitas ocasiões, converter num leitor quem antes nunca
de experimentar interiormente o que as personagens vivem e
tinha achado nenhuma utilidade em “quatro garatujas”.
sentem, a fim de que o poder do conto e das suas imagens possa
No Kentucky, os leitos dos riachos e os carreiros acabaram
atingir o seu pleno desenvolvimento. As crianças sabem predispor-
por se transformar em estradas. Os cavalos e as mulas deram lugar
-se instintivamente à escuta dos contos. Os adultos sentem uma
a carros-biblioteca, que são as bibliotecas ambulantes nos dias de
maior dificuldade, por causa das barreiras mentais e dos juízos de
hoje. Dedicados à sua tarefa, bibliotecárias e bibliotecários
valor que abafam frequentemente a emoção. Temos de nos colocar
continuam a levar livros a quem deles necessita…
em sintonia com o conteúdo da história e seguir atentamente as
Heather Henson
La señora de los libros
Barcelona, Editorial Juventud, 2010
(Tradução e adaptação)
mínimas peripécias, mesmo que nos pareçam incompreensíveis.
1
Para os autores, o Todo-Possível é sinónimo da dimensão oculta da realidade.
(N.T.)
206
44
Antes de estudar detalhadamente as regras precisas que os
contos nos ensinam, é bom saborear a sua magia e abordá-los com
ALGUMAS LEVES CONSIDERAÇÕES ACERCA
DOS CONTOS DE FADAS….
um coração de criança. Esta abordagem exige humildade da parte
do ouvinte ou do leitor e é um acto de fé face à porção de verdade
que a história traz até nós. Quando o ouvimos pela primeira vez, o
conto raramente nos transmite logo a sua mensagem. Esta aparece
Talvez se oculte dentro da palavra imaginação a própria
com subtileza e, lentamente, vai-nos iluminando por dentro, até se
magia. Mais do que magia: a imagem recuperada ou inventada.
transformar num espelho de nós mesmos. Esta história é a nossa
Porque no universo da imaginação há estranhos e ignorados
história e nós somos as personagens do conto. Cabe-nos a nós
caminhos que levam a terras sonhadas e terras reais. Onde
senti-las como aspectos de nós mesmos.
podemos dizer que começa realmente a fantasia e acaba a
realidade? Que memória nos atraiçoa? Que esperança nos
A fim de explorar e vivenciar esta estrutura de verdade sobre
desmente? Hoje em dia sabemos como são fundamentais para o
a qual se modelam os contos, propomos, neste livro, um percurso
crescimento das crianças as histórias de fadas, esses enredos onde a
constituído por cerca de quarenta contos, retirados, na sua maioria,
realidade e a fantasia convergem para um ponto de encontro e de
do repertório dos irmãos Grimm. Faremos com esses contos um
compreensão – talvez para a constatação de que o bom e o mau, o
jogo de espelhos com os diferentes aspectos da nossa vida. Estes
feio e o bonito, são nomes de seres ou de objectos ou de situações
contos estão repartidos por dez chaves essenciais, chaves mágicas
vivendo lado a lado, inevitavelmente.
que nos permitem abrir o mundo maravilhoso do Todo-Possível e
Diz Bruno Bettelheim que o conto de fadas tem um efeito
aceder à mudança milagrosa. Estes contos não foram escolhidos ao
terapêutico na medida em que a criança encontra uma solução
acaso, embora pudessem ter sido escolhidos outros, já que no
para as suas dúvidas através da contemplação do que a história
mundo da Fecundidade tudo pode frutificar e já que num conto
parece implicar acerca dos seus conflitos pessoais nesse momento
encontramos todos os outros contos.
da vida. O conto de fadas não informa sobre questões do mundo
Depois de o termos lido e de termos deixado o conto ecoar
exterior, mas sim sobre processos interiores que ocorrem no âmago
dentro de nós, extrairemos dele as chaves activas, a fim de
do sentir e do pensar.
experimentarmos as suas correspondências. Poderemos então
E as crianças entendem bem a linguagem dos símbolos dos
procurar o nosso reflexo no espelho do conto, antes de abordar a
contos. São elas que inventam no seu dia-a-dia o jogo do “faz de
execução do conto através da prática de certos exercícios de
45
207
imaginação criativa ou de atenção consciente, que nos permitirão
conta” e tantos outros que as divertem e distraem em tempos
prolongar a vibração mágica do conto até ao cerne do nosso
vividos entre a imaginação e a realidade. São elas que necessitam
quotidiano, integrando as suas verdades na nossa existência. O
de contrapontos para situarem a sua própria vivência e o seu
convite do conto permitir-nos-á resumir o essencial da sua
equilíbrio. Talvez por isso não se deva “explicar” à criança o sentido
mensagem numa fórmula viva.
dos contos de fadas. As imagens e as acções são “as palavras
explicativas” dos contos de fadas. Quem não se lembra da aflição
que sentiu ao ouvir contar que, “de repente, a menina se viu
perdida na floresta”? A criança que escuta atentamente a história
logo se sente e imagina também perdida naquela mesma floresta
Edouard Brasey e Jean-Pascal Debailleul
Vivre la magie des contes
Paris, Albin Michel, 1998
(Tradução e adaptação)
imensa e desconhecida.
Quem conta a história vê-se envolvido em todo este
processo. Um adulto que goste de contar histórias não escapa ao
seu próprio fascínio e descobre a cada momento, a cada pausa, o
efeito que as suas palavras e a sua expressão provocam nele mesmo
e na criança que ouve, de olhos maravilhados. As fadas dos contos
podem ser fadas boas ou fadas más.
A fada é sempre, para qualquer criança, uma certa imagem
da sua própria mãe. Em primeira análise, porque é ela quem a
acorda de manhã, lhe dá de comer e de beber, a veste e a embala.
Mas esta “fada” que a criança pressente na sua mãe, nem sempre
lhe aparece com cara radiante! Quando a criança se porta mal, a
mãe zanga-se com ela. E na ansiedade da vida de todos os dias,
quantas vezes a mãe, cansada e desiludida, não se zanga com ela
um pouco injustamente!
A criança revolta-se. E quando se é criança, qualquer
pequena revolta pode ser profundamente violenta. A mãe pode
aparecer de repente como a fada má. Fada má e fada boa ao mesmo
208
46
tempo podem ser imagens projectadas. Diz ainda Bettelheim que a
divisão de uma pessoa em duas, a fim de manter a boa imagem
inalterada, surge a muitas crianças como solução para um conjunto
de relações demasiado difíceis de digerir ou compreender.
Quando uma criança se irrita com a mãe que ela adora,
sabendo muito bem que não deveria irritar-se, está sem o saber a
transformá-la em fada má ou em bruxa, ao mesmo tempo que
preserva, no seu íntimo, a imagem da sua mãe inteiramente boa ou
fada benfazeja. A fantasia da bruxa serviu-lhe para escoar toda a
sensação de raiva que sentia, e para deixar liberta a imagem da
mãe. A criança, aliás, “divide” as pessoas que a rodeiam em boas e
A CASA FEITA DE SONHO
em más. “Divide-se” a ela própria, quando não se assume como
culpada de coisas que fez e que a desgostam: chega a afirmar que
Leve como uma pluma,
não foi ela quem fez isto ou aquilo (que realmente fez).
alta como uma torre,
É a preservação do lado bom contra o lado mau. A fada má, a
quente como um ninho
bruxa, a madrasta das histórias de fadas, são tão necessárias como a
e doce como o mel,
fada boa, o pai compreensivo, a mãe adorada, o príncipe
assim imaginei
encantado. Os contos de fadas garantem à criança que as
desde pequeno
dificuldades podem ser vencidas, as florestas atravessadas, os
a minha casa…
caminhos de espinhos desbravados e os perigos mudados, por mais
pequeno e insignificante que seja quem pretende vencer na vida. E
Mais tarde, quando me encontrei só no mundo, como não
a criança, desprotegida por natureza, sente que também ela pode
tinha dinheiro, resolvi construí-la com as próprias mãos. Fiz
ser capaz de vencer os seus secretos medos, as suas evidentes
primeiro a minha casa de papel, que é um material barato. E assim
ignorâncias.
que ficou pronta, vieram todos os ventos da Terra e levaram a minha
Assim, aprende a aceitar melhor as pequeninas desilusões
casa de papel, leve como uma pluma...
que vai encontrando no seu dia-a-dia, pois sabe que, à semelhança
Fiquei sem casa, mas não desisti. E fiz a minha casa à beira-
do que acontece nos contos, os seus esforços por se tornar melhor
47
209
-mar, com areia da praia, que é um material barato. Mal estava
hão-de ter um dia a desejada recompensa. No seu íntimo, ela
pronta, vieram todas as marés do mundo e levaram a minha casa de
entende muito bem que as histórias maravilhosas são irreais – mas
areia, alta como uma torre... Deu-me vontade de desistir, mas eu
não as aceita como falsas, na medida em que descrevem, de um
precisava de uma casa, e sobretudo não podia abandonar o meu
modo imaginário e simbólico, os passos do seu crescimento.
sonho.
Num mundo já de si perfeitamente antagónico, ela
intuitivamente “divide” tudo em bom e mau, para assim encontrar
E resolvi fazer a minha casa de madeira, que é um material
o seu equilíbrio. E, no entanto, quantas vezes se inquieta: porque
barato. Cortei-a dos bosques, com as próprias mãos! Ficou linda!...
será, ela própria, obediente e teimosa, boa e má, valente e medrosa,
Escondida entre a folhagem…Mas ainda mal a tinha acabado, vieram
uma contradição viva?
todos os fogos do céu e queimaram a minha casa de madeira, quente
Através de imagens simples e directas, os contos de fadas,
como um ninho... Chorei sobre as cinzas, como se chora uma pessoa
com toda a sua imaginação, ajudam a criança a destrinçar os seus
querida que morreu. Mas, mesmo assim, não desisti. E resolvi fazer a
próprios sentimentos complicados, ambivalentes, de modo a
minha casa de açúcar... Mas o açúcar não é um material barato! Pois
desviar cada qual para o seu lugar, evitando as confusões. O conto
não...
de fadas sugere não só o isolamento e a separação dos aspectos
Mas eu precisava de uma casa, e sobretudo, não podia
disparatados e confusos da experiência da criança em coisas ou
abandonar o meu sonho. Trabalhei, lutei, passei fome, para juntar o
situações antagónicas, como também projecta estes em figuras
açúcar suficiente... E quando a minha casa estava pronta – eram de
diferentes, conclui Bettelheim.
açúcar as paredes, o chão, o tecto, os móveis, as portas e as janelas –
Para quem escreve, assim como para quem lê para crianças, é
vieram todos os bichos da Terra e devoraram a minha casa de
essencial nunca escrever ou contar por contar. São de exigir os
açúcar, doce como o mel... Fiquei sem casa. E desisti de construí-la
conflitos, as confrontações, as aventuras – ou seja: sentido e acção.
com as próprias mãos...
Afinal, o que faz parte da própria vida. É para nós um desafio
escrever as novas histórias destes novos tempos, em que a varinha
Perguntam-me onde moro... Onde moro eu? Sei lá!... Vou pelo
mágica pode ser muito simplesmente um interruptor de luz; a
mundo, aqui, além, no bosque, à beira-mar... Perguntam-me se não
cabana da floresta; uma tenda de campismo; um cavalo alado; o
tenho casa... Tenho, sim! Eu podia lá abandonar o meu sonho!...
mais recente foguetão espacial...
Resolvi imaginá-la. Num sítio onde não chega o vento, nem o mar,
Por detrás da imaginação, quantas vezes escondida, está
nem o fogo, nem os bichos da Terra.
sempre a vontade de criar. O conhecimento dessa vontade não é de
210
48
hoje, mas de há muito, muito tempo. Para Platão, ela nasceria do
Fiz a minha casa com o meu próprio sonho. Ficou linda!
poder de um deus ou de um demónio. Ele chegou a falar de
Leve como uma pluma, alta como uma torre, quente como um
inspiração. Aristóteles e Horácio embrenharam-se pelos caminhos
ninho e doce como o mel...
do estudo da poesia e da escrita apaixonada. Os antigos também
invocavam as musas, essas misteriosas e invisíveis companheiras
dos escritores e dos artistas em geral.
A tradição sempre acreditou que, espreitando sobre o ombro
de quem escrevia, estava “uma outra vontade” que não a de quem
exercia o activo ofício de escrever. Para os românticos, essa outra
vontade era evidentemente a própria inspiração. Para Freud, ela
morava no inconsciente de cada um. Para os surrealistas, ela existia
no próprio acto de escrever e era provocada por ele mesmo.
Vontade, imaginação e criação conjugam-se para que, em cada
época, se consiga extrair do mundo a essência dessa mesma época.
Maria Alberta Menéres
Imaginação
Porto, Ed. Asa, 2003
(excertos adaptados)
Ricardo Alberty
A casa feita de sonho
Melhoramentos de Portugal, 1991
49
211
O PÁSSARO DA LUA
A criança da lua soprava bolhas. Bolhas grandes que mais
BURROS & LIVROS
pareciam pérolas a flutuar no espaço. Algumas estouravam quando
iam de encontro às pontinhas das estrelas, outras voavam até à
Chama-lhes “biblioburros”. Os animais são baratos, fiáveis, não
precisam de gasolina e vão a quase todo o lado. Um homem leva
livros em cima de asnos a aldeias porque acredita que, se houver
bastantes pessoas a apaixonarem-se pelas histórias,
poderá quebrar-se o ciclo de 40 anos de violência entre os
guerrilheiros e as forças paramilitares.
Terra e só rebentavam quando aterravam. Uma dessas bolhas
pousou junto do ouvido de um bebé e fez “Pop!”, deixando a
criança envolta em silêncio. Mas aquele não era um silêncio
qualquer: era o silêncio da lua.
― O que se passa com o nosso filho? ― perguntou o pai da
criança, que por acaso era um rei.
Todos os fins-de-semana, Luís Soriano e dois burros
― O meu bebé não sorri quando canto ― queixou-se a mãe
carregados atravessam montes e vales no Norte da Colômbia, onde
da criança, que por acaso era uma rainha. ― Nem responde
aldeias como El Dificil e El Tormento receberam estes nomes, e
quando chamo por ele.
bem, porque a única forma de lá chegar é através de trilhos
tortuosos. A missão de Soriano é quixotesca e a carga dos burros é
E chamava, cada vez mais alto:
51
213
preciosa: caixotes com 160 livros destinados às aldeias isoladas,
― Orla! Orla! Orla!
onde os residentes não têm virtualmente acesso à leitura, para
Foi então que decidiram convocar a fada do reino, que
além de alguns textos da escola primária, em folhas já marcadas
abanou um guizo de prata junto do ouvido da criança. Orla nem
por muitas dobras, e Bíblias.
sequer mexeu a cabeça.
Há cinco anos, esta biblioteca itinerante, a que Soriano
chama “biblioburros”, é a única nesta pobre e remota zona rural.
“As pessoas daqui adoram histórias”, diz Soriano, de 32 anos, antigo
livreiro de uma aldeia do estado da Magdalena. “E eu tento, à
minha maneira, manter vivo esse entusiasmo.” Soriano apaixonou-se pelos livros aos seis anos, e licenciou-se em Literatura
espanhola depois de ter estudado com um professor que se
deslocava à aldeia, duas vezes por mês. Esta paisagem rude, onde
― O vosso filho não nos ouve ― disse aos soberanos.
viveu toda a sua vida, poderá fazer despistar qualquer meio de
― Não ouve? ― perguntou a rainha. ― Queres dizer que o
transporte com rodas, enquanto os animais, penosamente, lá vão
príncipe é surdo?
progredindo. “Os animais são baratos, fiáveis, não necessitam de
gasolina e podem ir praticamente a todo o lado”, observa.
― Não, não é surdo. Ele consegue ouvir sons, mas não sons
da Terra.
Numa pasta vermelha, Soriano guarda uma lista dos títulos
que os aldeãos pedem com maior frequência. Embora a sua
― Não pode ser! Claro que ele nos ouve! ― protestaram o rei
biblioteca itinerante inclua romances, histórias e textos medicinais,
os
livros
mais
populares
são
as
histórias
infantis
e a rainha.
com
Mas, por muito que gritassem, o filho não os ouvia. E, porque
acontecimentos incríveis, em locais improváveis, onde os animais
não ouvia, Orla não aprendeu a falar. Os pais estavam destroçados.
se assemelham aos homens e são os heróis. Talvez seja por isso que
Como poderia o seu filho alguma vez ser rei?
Soriano e os seus burros se enquadram tão bem aqui.
Orla tornou-se assim conhecido como “o príncipe silencioso”.
Antes da sua volta semanal, à noite, Soriano coloca os livros
Os reis enviaram emissários a todos os cantos do reino a pedir
em bolsas de plástico individuais, fechadas em capas de lona.
ajuda, mas nada resultou.
214
52
Um dia, quando Orla tinha cinco anos e estava a brincar
Arruma as capas em pacotes do tamanho de pastas, aconchegando-
sozinho nos jardins do palácio, viu um pássaro da lua numa árvore.
-as em caixotes de madeira que prende nas selas dos burros.
O pássaro abriu as asas coloridas e dirigiu-se a Orla:
Soriano tem apenas duas regras para quem quer ler os livros: lavar
as mãos e não escrever nas páginas. Ele sabe quem levou este ou
― Segue-me.
aquele livro, mas declara confiar mais no sistema da honestidade.
Orla ficou tão surpreendido por ouvir uma voz que obedeceu
“Talvez seja uma das únicas bibliotecas do mundo onde as pessoas
imediatamente. Havia uma magia especial na canção do pássaro da
vêm com as suas mochilas e não são controladas à saída”, observa
lua. Quem quer que a ouvisse, logo pensava estar no jardim da lua
Soriano.
onde cresciam frutos e flores nunca vistos na Terra. Os próprios
Antigamente, Soriano levava uma vida mais normal, pois era
animais tinham poderes mágicos.
dono de uma loja de abastecimento e tinha uma família para criar.
Lia por prazer e tinha em casa uma biblioteca com cerca de 80
volumes. Depois, começou a emprestar os seus livros, vasculhando,
pedindo e emprestando para obter mais. Acabou por aumentar a
colecção para 4800 livros.
A sua mulher, Diana, estava cada vez mais desesperada com
falta de espaço para criar os três filhos. “Ela costumava perguntarme: O que vais fazer, comer livros com arroz?”, conta Soriano.
Nessa noite, Orla dormiu no jardim. Quando acordou, viu
Há três anos, Soriano encontrou um patrocinador. Addis
que os olhos ternos de uma gazela o fitavam. Orla conseguia ouvi-
Marilyn, director da biblioteca municipal de Santa Marta, uma
-la, tal como ouvia o pássaro da lua.
cidade a cerca de 300 quilómetros, situada na costa das Caraíbas,
― Quando falo com os meus olhos, tu ouves-me com os teus.
ouviu falar do que ele fazia e convidou-o para trabalhar como uma
É um dom que podes partilhar com os teus pais.
sucursal sua. Aproveitando a ideia de Soriano, Marilyn patrocinou
Um macaco prateado ajudou a cuidar do jovem príncipe.
outros dois projectos de “biblioburros”. Actualmente, os três
Falava com ele, através dos movimentos do corpo e das mãos. E,
partilham um orçamento que ronda os sete mil dólares (5700
em breve, Orla conseguia falar com as mãos, tão bem como
euros).
53
215
Soriano diz não ter tido sorte ao pedir ajuda às autoridades
qualquer um dos macacos prateados, que conseguiam enviar
locais para montar uma biblioteca decente, mas o governo nacional
mensagens para lugares distantes, enquanto saltavam de árvore em
interessou-se mais. Ainda há pouco tempo, um senador propôs-lhe
árvore e pregavam partidas.
criar uma rede de bibliotecas transportadas por burros para todas
Com as gazelas, Orla aprendeu a ouvir a música que as
as zonas rurais da Colômbia.
árvores faziam quando a brisa soprava.
Para se preparar para esta viagem, uma jornada de três horas
― Chama-se a isto “música dos olhos” ― diziam-lhe.
até à aldeia de Las Planadas, além dos livros, Soriano embalou
As gazelas conseguiam ouvir vozes nas pocinhas de água,
também 40 máscaras de porquinho que conseguiu obter com a
risos nas folhas, e canções na erva ondulante.
ajuda de Marilyn. Pretende distribui-las às crianças da aldeia antes
de estas lerem “Os Três Porquinhos”. Como idealista que é, Soriano
Um dia, o pássaro da lua apareceu de novo e disse a Orla:
pensa que, se houver bastantes pessoas a apaixonarem-se pelas
― É altura de voltares para a tua família.
histórias, poderá quebrar-se o ciclo de 40 anos de violência entre os
O príncipe ficou muito excitado e perguntou:
guerrilheiros e as forças paramilitares.
― Achas que poderei falar com os meus pais?
Os soldados paramilitares, que alegadamente usam os lucros
Depois, seguiu a canção do pássaro para fora do jardim da lua
da venda de droga para financiar um sistema de intimidação e
e irrompeu pelo palácio dentro.
ameaças de morte, controlam grande parte das aldeias da região.
Mas Soriano diz que ele e os seus burros se mantêm afastados de
― Mãe! Pai! ― chamou.
tudo isso e, em troca, os militares respeitam-no. Muitas das
Correu para os abraçar, enquanto
crianças não sabem ler, por isso, ele ensina-as frequentemente. Por
ouvia com os olhos claros e brilhantes e
vezes, também ensina os pais.
falava com as mãos eloquentes. O rei e a
Alberto Mendoza, de 11 anos, ajoelha-se juntamente com os
rainha
outros. A sua família, ao contrário das das restantes crianças, tem
espantados
com
a
mudança que se tinha operado no filho.
um livro em casa. “Temos um livro”, declara, “A Bíblia.” Numa
―
visita anterior, Soriano mostrara a Alberto um livro ilustrado sobre
Orla,
quiseram saber.
um filhote de urso que passa uma tarde inteira a construir castelos
216
ficaram
54
onde
estiveste?
―
O filho bem tentou dizer-lhes, mas os pais não conseguiam
na areia e a regar um jardim cheio de flores com o seu avô. Hoje,
ler os olhos dele. Apenas podiam observar a estranha e bela dança
esse mesmo livro encontra-se pendurado numa árvore. Quando
das suas mãos e as palavras que brotavam, silenciosas, da sua boca.
Soriano termina a história e diz às crianças que podem escolher os
livros que querem, Alberto corre para a árvore e agarra o livro do
― Parece estar a falar connosco, mas não percebemos o que
ursinho antes que alguém consiga lá chegar.
está a dizer ― disseram à fada.
― Podemos aprender ― sugeriu a fada, que percebera de
imediato a linguagem gestual do príncipe.
― Não vejo como ― disse a rainha.
Colômbia // Missão Quixotesca // Texto: Monte Reel
― Os reis não falam com os dedos ― queixou-se o rei.
Exclusivo Público/Washington Post
Orla sentiu-se muito triste. Gostava muito dos pais e queria
partilhar o que sabia com eles. Nesse mesmo momento, o pássaro
da lua entrou pela janela.
― Escutem a canção do pássaro ― disse a fada. ― Nela
encontrarão a resposta para as vossas perguntas.
55
217
Então, o pássaro cantou a sua canção. Falou da serenidade
das montanhas e dos sons por detrás do seu silêncio. Falou da
Terra e de como brilha quando gira no espaço. Falou da lua, das
estrelas e dos mundos para além do nosso.
― De que está ele a falar? ― perguntou o rei.
― Não consigo ouvir nada ― queixou-se a rainha.
Contudo, Orla ouvia.
Entretanto, a criança da lua observava tudo o que se estava a
passar. A sua intenção não fora a de causar problemas, mas agora
tinha de remediar o mal que causara ao rebentar a bolha junto dos
ouvidos do príncipe. Soprou uma enorme bolha da lua que flutuou
pelo espaço e aterrou no reino. De repente, ficaram todos rodeados
de silêncio. E o que ouviam eles no silêncio?
Com os olhos, ouviam a canção da Terra. Nas mãos
seguravam a canção da lua e das estrelas. Nos corações sentiam a
canção das estrelas. Viam, ouviam e compreendiam como nunca
antes o tinham feito. Então, o rei e a rainha estenderam as mãos
para o filho:
― Como podemos ter sido tão cegos e surdos?
Orla tinha trazido uma semente do jardim da lua para
mostrar aos pais. Plantaram-na todos juntos no jardim real.
A árvore da lua tem hoje um milhão de anos e o pássaro da
lua continua a cantar nos seus ramos.
56
A canção do pássaro são as imagens que habitam o nosso
interior.
AS SAPATILHAS DE SOFIA
Na aldeia de Sofia, o sol é muito brilhante e faz sempre muito
Joyce Dunbar; Jane Ray
Moonbird
London, Picture Corgi Books, 2007
(Tradução e adaptação)
calor. Raramente chove mas, quando isso acontece, a chuva cai,
ininterruptamente, dias seguidos.
Era um dia abrasador e Sofia não conseguia abrir os olhos
naquela luz tão intensa. No ar pairava uma quietude quando, de
repente, se ouviu um ruído semelhante ao zumbido de um enxame
de abelhas, que aumentava cada vez mais. O porco começou a
grunhir e as galinhas a cacarejarem. Sofia queria perceber o que se
passava e, sentada direita como um pau de vassoura, pôs-se à
escuta. “Deve ser a carrinha do homem dos números”, pensou ela
enquanto esfregava os olhos.
Uma vez por ano, um homem da cidade chegava à aldeia
numa carrinha vermelha. A gente da aldeia dizia que era o homem
dos números. O homem contava as pessoas da aldeia a mando do
57
219
governo. Depois de fazer o seu percurso, o homem parou defronte
da casa de Sofia.
— Quantas pessoas vivem aqui? — perguntou.
— Duas — respondeu Sofia, — a minha mãe e eu.
— Vejamos, assim dá um total de 154 pessoas. O ano
passado eram…
O homem dos números tinha ouvido dizer que o pai de Sofia
morrera porque não havia médico na aldeia e não havia nenhum
hospital por perto.
Sofia olhava fixamente para o calçado do homem.
— Ah! Nunca viste umas sapatilhas?
Sofia ficou ruborizada. O segredo, que acalentava há tanto
tempo, ocupou-lhe por inteiro o pensamento, que voou para tão
longe como os falcões voam em grandes círculos no azul dos céus.
No fundo do coração Sofia sentia que, se algum dia tivesse umas
sapatilhas iguais às daquele homem, o seu desejo se transformaria
em realidade.
— Vamos até à margem do rio? — disse o homem dos
números. — Põe os pés nessa lama de barro fino. Agora sai!
Sofia gostou da sensação do barro a escorrer por entre os
dedos dos pés. O homem tirou a régua do bolso das calças e mediu
as marcas dos pés de Sofia. Enquanto coçava a barba, fazia contas
em voz alta e acabou por dizer:
— Vejamos… dentro de trinta dias vais receber um presente.
220
Sofia contava os dias… Algum tempo depois, a carrinha dos
correios atravessou a aldeia e deixou-lhe na porta de casa um
COMO INVENTAR HISTÓRIAS?
pacote. Depois de sofregamente abrir o pacote, gritou:
— Umas sapatilhas!
Calçou-as com muito cuidado e exclamou:
Era uma vez…
— Agora, já posso realizar o meu desejo secreto!
Era uma vez… mas que «vez»?
Ocasionalmente,
somos
invadidos
por
uma
— Que desejo? — perguntou a mãe.
estranha
sensação ― estamos perdidos no meio do deserto sem um único
— Agora já posso ir à escola, mãe!
ponto de referência. Para onde havemos de ir se não sabemos,
— Mas, minha querida, a escola fica a oito quilómetros e o
sequer, onde estamos? Antes de iniciar uma caminhada, é
caminho é muito mau!
necessário definir um ponto de partida. Não é possível partir de
— Eu sei, mãe, mas é que eu agora tenho umas sapatilhas…
dois pontos, ou mais, em simultâneo. Qual a direcção que mais nos
— respondeu Sofia enquanto saltitava de alegria.
convém?
Um sorriso começou a desenhar-se lentamente na boca da
Na realidade, por um só ponto passam um número infinito
mãe de Sofia. Recordou a filha de vestido amarelo, cor do sol, a
de rectas. São as leis da geometria, mas que se aplicam também à
correr ao lado do pai que, com a pequena lousa preta debaixo do
vida e, sobretudo, ao acto criativo. Mas que «vez» era aquela?
braço, procurava a sombra de um coqueiro. Recordava a filha, de
Como pôr a faiscar os neurónios que são capazes de inventar
olhar fixo e sem pestanejar, a olhar a lousa onde o pai fazia
histórias? Como agarrar um turbilhão de ideias que, às vezes, voam
sarrabiscos a que chamava letras: “Este aqui é o teu nome e este é o
nas asas da imaginação?
nome da nossa aldeia”, ensinava ele à Sofia.
Seja o avô que quer inventar uma história para contar ao neto
— Creio que podes ir à escola — disse então a mãe à Sofia.
que teima em não adormecer, seja a criança que na sala de aula não
consegue escrever uma linha sobre aquele «tema livre», a angústia
No dia seguinte, ainda o sol não tinha nascido e já Sofia
é sempre a mesma – o desafio silencioso de uma folha de papel em
comia uma tigela de arroz com peixe salgado e se punha a caminho
branco que não nos dá, sequer, uma pista. Profundamente sós,
através dos arrozais. As sapatilhas protegiam-na das pedras
sentimo-nos como quando não há nada para dizer.
aguçadas. E corria como se tivesse asas nos pés!
59
221
Com um salto atravessou riachos e percorreu uma estrada
Mas, se naquela superfície branca cair um pontinho negro ou
deserta, onde só passava um carro de longe a longe. Sofia corria e
alguém escrever uma palavra, tudo pode modificar-se. De repente,
corria, cada vez mais depressa, até que por fim avistou a escola que
apetece-nos desenhar uma cara… E porque não acrescentar
tinha apenas uma sala de aula.
algumas letras à palavra MAR?
As sandálias dos alunos estavam, em fila alinhada, junto à
AMAR o MAR, o MAR é azul, cheira a MARESIA, AMARELO,
porta da entrada. Sofia tirou rapidamente as sapatilhas, colocou-as
REMAR, MARIA, MÁRMORE…
junto às outras sandálias e entrou descalça na sala de aula.
Pode ainda ser pouco, mas é um princípio, uma luz que se
— O meu nome é Sofia e venho à escola para aprender a ler e
acende, uma ideia que se anuncia. A imaginação exercita-se com
a escrever!
um olhar atento sobre a vida através de coisas simples. Há palavras
que fazem voar o pensamento e a escrita afigura-se como uma
Na sala, onde havia só rapazes, começaram logo os risinhos.
caminhada interior em busca de sentidos para a construção do
— Silêncio! — disse a professora, colocando o dedo sobre os
mundo que, exteriormente, nos rodeia.
lábios fechados.
Criar não é uma questão de inspiração, mas uma questão de
— Vem cá, és muito bem-vinda. Diz-me, de onde vens?
orientação no processo criativo. Passo a passo, partindo e
— De Andong Kralong.
chegando, a luta desenvolve-se entre momentos de prazer e
A professora, apanhada de surpresa, disse em surdina:
desprazer, de facilidade e dificuldade, de tensão e calma, de
encontro e desencontro. Não existe uma única definição para o
— Mas, essa aldeia fica a oito quilómetros daqui!…
conceito de «criatividade», mas podemos dizer que está associado
— Pois fica, senhora professora, mas eu tenho as minhas
à inovação e à adequação.
sapatilhas!
O processo criativo consiste em combinar ideias ou objectos
Os rapazes continuavam com as suas risadinhas, tapando a
existentes de modo a encontrar soluções novas e úteis. Precisamos
boca com as mãos. Os olhos da Sofia encheram-se de lágrimas.
de pensar em duas direcções opostas, mas que se complementam:
— Mas, tu és uma rapariga! — sussurrou um dos alunos.
divergir para diversificar pontos de vista deitando um olhar criativo
sobre o horizonte que se alarga – pensamento divergente – e
Sofia engoliu toda a raiva que sentia e manteve-se de cabeça
convergir para chegar ao ponto mais original, escolhendo
erguida e quieta como a serpente antes de atacar a presa. Em breve
criteriosamente a melhor solução – pensamento convergente.
chegaria o momento da desforra.
222
60
Uma palavra é um som, uma imagem ou o movimento da
Acabada a aula, Sofia calçou as sapatilhas e atou os seus
linha que desenha letras. Cada mensagem reúne um conteúdo
cordões, com um triplo nó. Então, virou-se para os rapazes, olhou-
semântico, no qual se baseia o seu entendimento, e um conteúdo
-os de frente e disse:
estético, capaz de extravasar todos os limites da imaginação
— Já que são tão espertos, venham agarrar-me!
criadora. Podemos viajar por dentro de uma só palavra, descobrir
Os rapazes, empurrando-se uns aos outros, logo desataram a
os segredos mais profundos de um conjunto de letras arrumadas
correr atrás dela. Em vão.
lado a lado. A imaginação criadora não é um atributo específico da
Na manhã seguinte, Sofia acordou antes do cantar do galo.
genialidade, mas uma capacidade fundamental do intelecto
Sair tão cedo permitiu que fosse a primeira a chegar à escola. Os
humano.
rapazes iam chegando de sorriso envergonhado… É que ainda não
Nasce na infância o poder da fantasia e do sonho. A criança é
tinham esquecido a derrota, na corrida da véspera. E, a partir
criativa por natureza, dispõe de uma capacidade infinita para
daquele dia, Sofia aprendeu muito naquela escola de uma única
imaginar. No início deste novo milénio, o mundo parece estar por
sala.
detrás de um simples clique que nos abre as portas para uma
realidade virtual, plena de imagens fantásticas. Com o computador
Passou um ano. Uma manhã, Sofia estava sentada junto da
e a internet, torna-se fácil comunicar, informar, jogar e entreter.
mãe quando, de repente, se levantou uma nuvem de poeira na
Mas este clicar mágico não faz, por si só, apelo à imaginação
encosta. O porco começou a grunhir. As galinhas a cacarejarem.
criadora, nem promove o gosto pela leitura ou pela escrita.
Era o homem dos números que voltava na sua carrinha vermelha.
Sabemos que ler e escrever são actividades que caminham
Nesse momento, as primeiras gotas de chuva começaram a
em conjunto como dois alpinistas que escalam uma montanha, um
formar pequenos círculos na superfície da água do rio, círculos que
«puxando» pelo outro. Cabe aos educadores inventarem estratégias
se alargavam cada vez mais. Começava a monção. Sofia olhou as
que sejam capazes de desenvolver as potencialidades criativas e
nuvens que se formavam e pensou que, agora, iria ter menos calor
expressivas do imaginário infantil. Mais importante do que dar às
a caminho da escola.
crianças receitas para fazer bolos, é pôr à sua disposição os
O homem dos números contou as pessoas da aldeia e, ao fim
ingredientes adequados para confeccioná-los.
do dia, chegou a casa de Sofia. E olhou para os pés nus da menina.
É urgente LER… com prazer, em voz alta, dez minutos antes
— Onde estão as tuas sapatilhas? — perguntou.
de adormecer, saltando páginas, mesmo não acabando o livro, não
Sofia sorriu e, com ar de desafio e mãos na cintura, disse:
importa onde (o quê ou quando), um ou vários livros ao mesmo
61
223
— Só calço as minhas sapatilhas para ir à escola.
tempo. Não se pode mandar ler, como não se pode mandar amar
ou sonhar. Há o direito de ler e o de não ler. Mas continua a ser
E os dois começaram a rir.
urgente criar hábitos de leitura e de escrita, exercitar a imaginação
— Hoje, eu quero mostrar-lhe uma coisa — disse Sofia. —
e a criatividade. Só existirão adultos leitores quando as crianças
Venha comigo, por favor.
conseguirem gostar de ler.
Caminharam juntos e em silêncio, até à margem do rio.
Não só das histórias nascem histórias, mas também das
Chegados aí, Sofia, de cabeça baixa, disse timidamente:
imagens ou das palavras – soltas, deformadas, metaforizadas,
— Um dia, quero construir uma escola na minha aldeia, e…
reinventadas, contraditórias, erradas, associadas, metamorfoseadas
— O quê?
ou interrogantes. Das coisas nascem coisas.
— Também quero ser professora — afirmou Sofia.
E era uma vez… umas formigas que se aproveitaram das
letras que compõem o título do conto A Floresta, de Sophia de
Pegou numa cana de bambu e agarrando-a com as duas
Mello Breyner Andresen, para dar uma lição a um ratão muito
mãos, escreveu na lama de argila:
espertalhão.
…As Formigas Lixaram O Ratão Espertalhão, Surripiando
Muito obrigada pelas sapatilhas.
Toneladas de Açúcar…
Agora, já sei ler e escrever.
E, se, de uma só vez… a palavra «Floresta» desse uma
reviravolta?
E fez-se um tal silêncio que se podia ouvir o borbulhar da
água a correr por entre os seixos.
Esta Flor na Floresta…
E o que aconteceria se, naquela vez, o Anão da Floresta
fosse à gruta visitar a Menina do Mar?
Frederick Lipp
Las zapatillas deportivas de Sofía
Barcelona, Intermón Oxfam, 2007
(Tradução e adaptação)
224
Ana Mantero
Aprender a olhar
nº 11, Fev./Março 2004
62
ERA UMA VEZ ….UM DIA DE ESCOLA NORMAL
Era uma vez um dia normal de escola. Um rapaz como tantos
outros acordou normalmente dos seus sonhos, levantou-se como
era normal da sua cama, fez como normalmente um chichi, tomou
O AVÔ LOP
normalmente o banho normal, vestiu a roupa normal, e tomou o
seu pequeno-almoço normal.
No fundo da floresta dos sonhos há um grande arbusto. Os
Esse mesmo rapaz lavou normalmente os dentes, despediu-se
ramos entrelaçam-se na parte de cima, formando um guarda-chuva
normalmente da mãe e saiu de casa em direcção à escola, como
verde e viçoso que protege dos aguaceiros de cristal do início de
normalmente fazia. Andou normalmente pelas mesmas ruas,
Abril e de Maio todos os seres que ali vivem. A chuva cai durante
passou normalmente pelas mesmas lojas e atravessou as mesmas
uma ou duas horas, e depois os raios dourados do sol, como que
avenidas, também normalmente, enquanto meditava normalmente
surgidos do país das fadas, escorrem pelas folhas até chegarem ao
nos mesmos pensamentos.
chão.
Ao chegar à escola, esse mesmo rapaz, igual a tantos outros,
Foi aí que, durante toda a vida, brincaram e viveram os
jogou futebol como era habitual, exactamente com os mesmos
coelhos da floresta. Havia coelhos com grandes rabos fofinhos e
amigos, até soar o toque para a entrada nas aulas, como
63
225
coelhos quase sem rabo — pequenos, gordos, magros, peludos, e
normalmente. O rapaz, igual a tantos outros, entrou na sala
um coelho muito velho chamado avô Lop.
habitual e sentou-se na sua mesa, como era normal. Foi então que
aconteceu algo de absolutamente fora do normal...
O avô Lop era tão velho que há já muito tempo que o pêlo
embranquecera. Usava um cachecol à volta do pescoço e andava
sempre com um pau torcido que lhe servia de bengala. Todas as
tardes, por volta das duas ou três horas, o avô Lop sentava-se no
seu tronco preferido a desfrutar do calor do sol.
Sentava-se em silêncio até que — sem se aperceber — todos
os coelhinhos pequenos se juntavam aos seus pés. Eles bem
tentavam ficar calados mas era tão difícil que alguns até tinham de
meter as orelhas na boca para não se rir!
― Bom dia a todos! ― disse alguém, com um ar
absolutamente extraordinário, ao entrar de rompante na sala. ―
O avô Lop recostava-se no tronco, olhava à sua volta e
Eu sou o vosso novo professor e chamo-me Gee.
começava, numa voz muito suave e baixa:
― Ainda não nos conhecemos uns aos outros, mas eu tive
— Em tempos que já lá vão, no país da névoa e das coisas
uma ideia que vai ajudar-me a conhecer-vos melhor... Nesta nossa
mágicas, havia uma floresta encantada…
primeira aula, quero que ouçam música, que deixem que a melodia
À medida que ia contando a história, muito devagar, algo de
vos faça lembrar imagens e que essas imagens se soltem das vossas
estranho e maravilhoso acontecia. O avô Lop começava a
cabeças. Está entendido? ― ia dizendo o professor, enquanto
endireitar-se cada vez mais. A luz do sol brilhava nos seus olhos
distribuía uma folha de papel a cada aluno.
castanhos e cintilava pela floresta, e o seu pêlo reluzia. Os
coelhinhos ficavam completamente encantados porque, de um
― Ele é estranho! E meio tonto! É mesmo doido! Música?
momento para o outro, o velho avô Lop se transformava no mágico
Desenhos? Qual é a ideia dele? ― cochicharam os alunos uns para
da floresta! E ficavam sempre tão fascinados pela história, que nem
os outros, como normalmente.
davam conta quando ela chegava ao fim! O avô tinha de dizer:
― Silêncio, fechem os olhos, abram bem os ouvidos e ouçam!
― continuou o professor.
— Agora é tempo de irem, coelhinhos.
226
64
E a música começou a soar: eram ritmos retumbantes,
E lá voltavam eles aos saltinhos para a moita da floresta. Mas
ribombantes, por vezes ensurdecedores, que progrediam e se
os coelhos mais velhos foram ficando cada vez mais preocupados
espalhavam ruidosamente por toda a sala. De repente, a música
com os pequenitos. Certo dia, depois de eles terem desaparecido,
parou. Então, o professor disse:
como era costume, os coelhos mais velhos reuniram-se.
― Ora digam lá o que a música vos fez lembrar!
— Onde é que eles irão? — perguntavam uns aos outros. —
Desaparecem todos os dias à mesma hora.
Uma das raparigas respondeu, entusiasmada:
— Aposto que saem para ir ver aquele inútil do avô Lop —
― Cavalos a galope!
disse um deles. — Só sei que não andam a fazer coisa boa!
Outro aluno disse:
Conversaram algum tempo e decidiram que, mal os
― Não, era uma corrida de carros!
coelhinhos voltassem nessa tarde, iriam descobrir o que estava a
E o rapaz como tantos outros disse:
acontecer! À hora do costume, os coelhinhos regressaram e, como
― Eu vi elefantes, professor, centenas de elefantes!
combinado, os coelhos mais velhos perguntaram-lhes onde tinham
estado.
― Muito bem! ― disse o professor, rindo-se. ― Não
— Bem — disse um — fomos à floresta ver o avô Lop e ele
acharam maravilhoso? Agora quero que cada um tente escrever na
contou-nos uma maravilhosa história mágica da floresta. E quando
folha em branco o que ouviu. Vamos lá, todos a escrever!
E
enquanto
os
ritmos
progrediam
e
a contava, aconteceu uma coisa ainda mais mágica e maravilhosa: o
regrediam
avô Lop transformou-se no mago do bosque!
repentinamente, rodopiavam e voltavam a rodopiar, o rapaz como
tantos outros escrevia. Por vezes, não entendia perfeitamente as
— Eu já sabia! — disse, encolerizado, um dos coelhos mais
palavras que utilizava e a história parecia não fazer sentido, mas
velhos. — Aquele coelho velho só anda a contar mentiras aos
isso não era importante e nem sequer o preocupou.
miúdos.
Escrevia tão rápido quanto conseguia e, mesmo assim, sentia
— Mas é verdade! — disseram os coelhinhos em coro. —
que precisava de escrever mais rápido ainda ― havia tanto para
Quando ele nos conta histórias, aparecem sempre estrelas e faíscas.
dizer! Era como se existisse dentro da sua cabeça um dique que, de
É magia!
repente, ao abrir-se, a inundava de palavras...e as palavras
Os coelhos mais velhos saltaram para o lado e falaram em
65
227
surdina uns com os outros, olhando de vez em quando por cima do
divertiam-no como os brinquedos, e sentia-se mergulhado naquele
ombro. Finalmente, dirigiram-se às crianças com um tom deveras
jogo ― o jogo de contar histórias. Era uma coisa extraordinária,
severo.
fora do normal...
— Achamos que vocês estão a mentir! A magia não existe!
E os seus colegas? Alguns escreveram histórias sobre gigantes
Por isso, vão já para a cama sem jantar, e daqui para a frente estão
e outros sobre coisas mágicas. Algumas raparigas escreveram sobre
proibidos de tornar a ver esse avô Lop!
raparigas corajosas e alguns rapazes escreveram sobre rapazes com
cicatrizes mágicas que lhes davam grandes poderes. Alguns
Com as lágrimas a correrem dos olhos, os coelhinhos
escreveram muito pouco, porque a música não lhes fazia lembrar
arrastaram-se até às suas camas. Tinham o coração pesado e o
muita coisa e a Pauline, por exemplo, preferiu ler a sua revista
estômago muito vazio.
preferida.
No dia seguinte, como de costume, o avô Lop sentou-se no
Houve quem escrevesse histórias que pudessem agradar ao
seu tronco preferido a apanhar sol e à espera que os coelhinhos
professor e uns transformaram-se em heróis, enquanto outros
aparecessem. Esperou, esperou e deve ter caído no sono porque
preferiram ser os malvados da história. E o Billy até adormeceu.
acordou sobressaltado quando o sol estava a pôr-se. Para seu
espanto, não havia nem coelhinhos nem o que quer que fosse à sua
― Talvez esteja a sonhar! ― disse o professor.
volta.
E, no final desse extraordinário dia de escola, o rapaz como
“Se calhar esqueceram-se — pensou — mas de certeza que
tantos outros viu o professor entrar no seu carro.
amanhã se vão lembrar!” E, com isto, partiu a coxear em direcção à
― Professor ― disse ele ― esta foi a melhor aula que já tive.
sua toca na floresta.
Nunca me tinha acontecido tal coisa, foi mágico!
No dia seguinte, e no outro ainda, foi um avô Lop
― Continuas a pensar que eu sou doido? ― perguntou o
entristecido que esperou e esperou pelas crianças, que nunca mais
professor, a sorrir.
vinham... Por fim, já desesperado, resolveu ir à grande moita do
O rapaz como tantos outros corou até às orelhas.
bosque à procura de algum sinal dos coelhinhos.
― Estou ansioso por ler a tua história, hoje à noite! ―
Ao descer, coxeando, pelo caminho abaixo, encostando-se
acrescentou o professor. ― Até amanhã!
pesadamente à sua bengala, encontrou um dos coelhos mais
228
66
E desapareceu por entre uma nuvem de pó, ao sair os portões
velhos.
da escola. À hora de dormir, o rapaz como tantos outros vestiu o
— Bom dia! — disse, curvando-se entorpecido em sinal de
pijama habitual, lavou os dentes e fez chichi, como normalmente,
respeito. — Ando à procura dos coelhinhos do bosque. Costumava
deu um beijo à mãe, tal como era normal, e deitou-se na cama
contar-lhes histórias, sabe, mas eles deixaram de vir.
habitual...
— Pois ainda bem! — roncou o coelho grande. — Tudo o que
aqueles coelhinhos aprenderam consigo foi a mentir e a contar
histórias.
O avô Lop ficou chocado.
— Mas eu nunca lhes ensinei a mentir — disse. — Só lhes
contei as maravilhosas e mágicas histórias do bosque!
— Pois já não vai contar mais nenhuma! — disse, irritado, o
coelho, antes de regressar à moita.
Foi um avô Lop muito triste e envelhecido, com uma lágrima
a descer-lhe pelas bochechas, que regressou à sua toca na floresta.
E teve sonhos extraordinários....
Sem nada com que ocupar agora os dias, o avô Lop vagueava sem
destino. Ainda chegou a ir uma ou duas vezes à grande moita da
floresta mas, assim que aparecia, os coelhos mais velhos mandavam
os coelhinhos pequenos para o outro lado.
Colin McNaughton
Era uma vez um dia de escola normal
Lisboa, Ana Paula Faria Editora, 2005
— Vai-te embora! — gritavam-lhe. — Não queremos coelhos
velhos na nossa moita!
E assim todos os coelhos fugiam precipitadamente para as
suas tocas.
Completamente sozinho, o avô Lop deixou a moita e voltou
67
229
para o seu recanto do bosque. Os coelhinhos bebés obedeceram
aos mais velhos, mas nunca conseguiram esquecer a magia do
mago do bosque. Às vezes, quando estavam todos sozinhos,
costumavam segredar o quanto tinha sido divertido, mas a maior
parte das vezes arrastavam-se pela moita, levantando poeira e
sentindo-se muito tristes.
Os coelhos mais velhos tentavam animá-los, e às vezes até
lhes contavam uma história ou outra…Mas não era a mesma coisa!
As coisas foram piorando tanto que os coelhinhos começaram a
discutir entre eles. Tudo começava com um coelho a bater noutro,
mas acabava sempre num emaranhado de braços, pernas e orelhas
a debater-se no chão!
A certa altura, como alguns dos coelhos mais velhos já não
aguentavam mais, reuniram os coelhinhos todos.
— Isto tem de acabar — disseram. — Com estas disputas já
não se consegue fazer mais nada! Já ninguém vai apanhar comida,
já não se constroem novas tocas e o Inverno está a chegar!
— Se pudéssemos ouvir as histórias mágicas do avô Lop —
disse um dos coelhinhos — já não arranjávamos mais problemas.
— Mas a magia não existe! — disseram, zangados, os coelhos
mais velhos. — Vocês mentiram!
— Nós não mentimos! Nós dissemos a verdade e se tivessem
vindo connosco, teriam visto como a magia existe mesmo!
Os coelhos mais velhos reflectiram por uns instantes.
230
— Vamos com vocês ao vosso “mago” do bosque — decidiram
— só para provar que a magia não existe!
A HORA DO CONTO
E lá seguiram todos aos saltinhos para a floresta, pelo longo e
sinuoso carreiro abaixo, até chegarem ao tronco onde o avô Lop
esperava... Estava, como sempre, ao sol, a contemplar o céu. Os
coelhinhos sentaram-se rapidamente aos seus pés, enquanto os
Um conto é sempre um convite a uma viagem…Pode
mais velhos se sentaram, cépticos, num cepo velho e apodrecido.
introduzir numa paisagem exterior, mas o verdadeiro
O avô Lop reclinou-se para trás e, com um brilho nos olhos,
convite é, em permanência, o de uma descida ao interior de
começou, numa voz suave e baixa:
cada um….
— Há muito tempo, numa terra de névoa e magia, havia uma
E só pode viajar em pleno quem estiver tranquilo e
floresta encantada…
disponível, com os sentidos apaziguados…Por isso, é quase
uma condição absoluta fazer anteceder as palavras da
Os coelhos mais velhos arregalaram os olhos de espanto ao
narrativa oral por uns momentos de relaxamento.
verem o avô Lop ficar cada vez mais direito. À medida que ia
E também é importante lembrar que o tom da nossa
contando a história, a luz do sol brilhava nos seus olhos castanhos-
voz é fundamental: deve ser pausada, murmurante,
-claros, e bolinhas de magia começaram a cintilar pela floresta. O
encantatória, antecipando, assim, a entrada no mundo da
pêlo passou de branco a prateado e ele transformou-se no
magia….
verdadeiro mago do bosque!
Aliás, toda a postura do educador é essencial: as
Quando a história chegou ao fim, todos os coelhos, novos e
crianças e os jovens sentem logo quando queremos
velhos, estavam completamente encantados! O momento era tão
“apressar” o momento da história. O encanto desfaz-se e
belo que alguns dos coelhos mais velhos até tinham lágrimas nos
raramente se atingirá o objectivo!
olhos!
Ninguém disse uma palavra, tal era o medo de quebrar
aquele momento mágico, mas, um a um, todos se aproximaram do
avô Lop para o abraçar com todo o amor que tinham no coração!
69
231
Os coelhos mais velhos nunca pediram desculpa pelo mal
Por exemplo, podemos dizer aos mais pequenos:
cometido…. Mas agora, todos os dias, sempre à mesma hora, todos
Tentem sentar-se confortavelmente no tapete mágico, de
os coelhos saltam da moita e correm para ir ouvir o avô Lop e vê-lo
preferência sem se tocarem uns aos outros (caso contrário, ele não
transformar-se no mago do bosque.
levanta voo!) ou nas cadeiras. Descruzem as pernas e os braços,
ponham no vosso colinho as mãos abertas, com as palmas para
cima; tentem fechar os olhos (crianças há que não gostam de fechar
os olhos. Têm medo. Temos de aceitar e respeitar, desde que não
Escutem, dos mais velhos,
perturbem as outras)….e comecem a respirar profundamente, pondo
As suas histórias douradas
a mão direita em cima do peito, para sentirem o coração. Tentem
E lembrem-se do avô Lop
escutar, em silêncio, o vosso coração. Agora sim, já mais sossegados,
E da magia revelada.
podemos entrar na Terra do Nunca….ERA UMA VEZ….
E aos mais velhos, que já não acreditam tanto no tapete
mágico….
Tentem sentar-se confortavelmente no chão ou nas cadeiras,
descruzem as pernas e os braços, ponham no vosso regaço as mãos
abertas, com as palmas para cima; procurem fechar os olhos e
Stephen Cosgrove
Granpa-Lop
Los Angeles, Sloan Publishers, Inc., 1981
(Tradução e adaptação)
respirem profundamente. Sintam o bater do coração; descontraiam
os músculos todos do vosso corpo: os dos pés, das pernas, do tronco,
dos braços, os dedos das mãos… Concentrem-se no vosso rosto e
descontraiam também todos os músculos da cara, a começar pela
testa, pelas faces, pelo queixo, pelos olhos e finalmente pelos lábios.
Se quiserem, imaginem na vossa mente uma paisagem do vosso
agrado onde se sintam leves, serenos e felizes; desfrutem da
paisagem que vos rodeia e caminhem por ela, sem pressa, ouvindo o
bater tranquilo do vosso coração… (Após cerca de 5 minutos)…ERA
UMA VEZ…
232
70
N. B.
O CONTAR É UM INSTRUMENTO DE
RECONSTRUÇÃO DO MUNDO
1 – De preferência, o conto não deve ser lido. É bem diferente o
impacto da audição, da "palavra encantatória" sobre o ouvinte,
sobretudo se este é uma criança!! Ou até uma pessoa idosa! E
O caminho mais saudável e menos custoso para a resiliência
sobretudo com as crianças da faixa etária que visamos, isto é quase
é o da narratividade. Esta apetência para a própria história é
uma condição sine qua non, pois a leitura deve ser deixada para as
necessária para a formação da imagem da própria personalidade.
aulas…Por isso, é desde logo assimilada, na mente delas, ao
Este
obrigatório e ao curricular! Acresce que temos crianças que não
facilmente o deleite provocado pela recordação de momentos
sabem ler e que, até mesmo inconscientemente, se podem sentir
felizes, como acontece quando estamos em grupo e quando a
"inferiorizadas"!
evocação de momentos alegres faz voltar essa felicidade. Assim se
trabalho
causa
um
estranho
prazer.
Compreende-se
tece a afeição entre os que partilham uma mesma lembrança. Mas
recordar permanentemente um episódio doloroso, fazer voltar as
2 – O espaço que se cria deve ser "mágico"! Daí que não os
imagens tristes, repetir os diálogos conflituais e imaginar outros,
devamos distrair com elementos factuais extraídos do mundo que
provoca uma emoção embaraçosa e de desgosto. E é provavelmente
nos rodeia, pelo menos enquanto ocorre a “Hora do Conto”. De
esta estranheza que permite compreender a função da narrativa
qualquer forma, no tempo do conto só se deve contar o conto,
interior: ter de novo em mãos a emoção provocada pelo passado e
auscultar as reacções (se as houver…e eles quiserem falar…) e
voltar a manuseá-la para fazer dela uma representação de si
sintetizar com um desenho (ou reconto), acompanhado de um
intimamente aceitável.
possível momento final de relaxamento.
Este trabalho da história tem um duplo efeito. Primeiro, na
função de identidade: “Eu sou aquele que fugiu de uma casa de
correcção, mandou o pai para a prisão para proteger as irmãs...”
Depois, no tratamento das emoções: “Agora, já consigo suportar a
lembrança do exército chileno a expulsar a minha mãe com os
filhos pequenos. Sinto mesmo, vinte e cinco anos depois, um
orgulho indescritível ao evocar esta recordação dolorosa a partir de
71
233
Espanha, país que me acolheu, e me deu responsabilidades
importantes.” O facto de contar permite constituir-se em sujeito
íntimo e a narração convida-o a ocupar o seu lugar no mundo,
partilhando a sua história. O que é intimamente aceitável liga-se ao
socialmente partilhável. Após este trabalho, o ferido pode olhar-se
de frente e integrar-se na sociedade.
Não se trata de regressar ao passado, o que é impossível.
Quando conto a minha visita ao palácio do rei Miguel na Roménia,
não é a viagem de quatro horas para Constanza que recordo.
Lembro-me vagamente da densidade da floresta, do tempo pesado
e da lentidão da viagem. Condenso algumas imagens significativas:
o isolamento do castelo, a mudança barroca do estilo em cada
divisão e semantizo aqueles desenhos para que eles me permitam,
num só flash, recordar aquela viagem à Roménia. No tocante à
verdade, as recordações são tão verdadeiras como as quimeras.
Tudo é verdadeiro num tal monstro: o corpo é o de um leão, o
peito o de uma cabra, e as asas, essas, são de águia. No entanto, o
animal mítico não existe na realidade. Existe, sim, numa
representação que o falante faz do real e que partilha com os seus
companheiros de cultura.
O resultado deste duplo efeito é que as histórias íntimas ou
culturais podem criar, no mundo psíquico, um sentimento
equivalente de pertença segura, quando os laços precoces o
construíram deficiente. A ligação precoce fica gravada no
temperamento infantil sem os pais se aperceberem, mas a narração
discursiva, essa sim, pode ser urdida intencionalmente pelo
trabalho de psicoterapia, de criatividade artística, ou por um
234
debate sócio-cultural. Todos somos obrigados a seguir este
caminho a fim de construirmos a nossa identidade e ocuparmos
um lugar no grupo. Os feridos da alma têm de o fazer com o
trauma na sua memória e com a narração que dele fazem aos
outros, o que não quer forçosamente dizer que se torne pública
uma ferida íntima.
Certas crianças gravemente feridas, ou que vivem num mau
ambiente, demitem-se e tornam-se embotadas, confusas, escravas
do passado, ruminando o golpe sempre a sangrar. Enquanto outras
conseguem criar uma história interior necessária à sobrevivência
psíquica. Contar põe em cena factos reais, cuja significação
depende de quem fala deles. Georges Perec nunca viu desaparecer
O DESEJO DE RUBY
ninguém, até que um dia é o seu próprio desaparecimento que ele
vê. Durante a 2ª Guerra Mundial raramente se viu desaparecer
Se caminhar por uma certa rua de uma certa cidade na
judeus, mas, um dia, demo-nos conta de que tinham desaparecido.
China, e passar pelo mercado de animais de estimação, com os
Georges lembra-se da presença do pai, com o uniforme de
papa-arroz amarelos e verdes a saltar nas gaiolas de bambu, os
soldado francês da Legião Estrangeira. E um dia… deixou de o ver.
peixinhos dourados e as tartarugas de água doce nas taças de
Recorda-se da mãe o acompanhar à estação, e depois… deixou de a
porcelana, há-de chegar a um quarteirão de casas. Nesses edifícios,
ver. O seu mundo esvazia-se sem traumatismo aparente. O golpe é
agora castanhos devido à idade e à sujidade, moram muitas
enorme, invisível, e a criança não compreende nada, porque não
famílias. Porém, se olhar com atenção, verá que outrora essas casas
pode ver uma coisa que deixou de lá estar. Então, durante os
eram uma só, uma magnífica casa que pertencia a uma única
quatro anos de psicanálise, esboroa a carapaça dos seus refúgios
família.
raciocinadores e depara-se com recordações que, para si, passam a
ser factos reparadores da sua imensa ferida: “Gostaria de ter
A casa foi construída por um velho que tinha estado na
ajudado a minha mãe a levantar a mesa da cozinha.”
Montanha de Ouro. Era este o nome que os Chineses davam à
Vê-se bem que para se gostar duma tal recordação é preciso
Califórnia, quando muitos deles participaram na Corrida ao Ouro,
não se ter tido mãe. Um acontecimento não é o que se pode ver
mas poucos regressaram. Este homem regressou, e regressou muito
73
235
nele ou aquilo que se sabe dele, é aquilo que dele fazemos na
rico. Fez, em seguida, o que todos os homens ricos faziam na
necessidade que dele temos para virmos a ser alguém. A mais
Antiga China: casou com muitas mulheres. As mulheres tiveram
simples banalidade traz em si a semente de um grande
muitos filhos e os filhos também tiveram muitas mulheres. A dada
acontecimento interior, se dermos à pessoa atingida um lugar e um
altura, a casa transbordava de gritos e risos de mais de uma
meio de poder mergulhar à procura das recordações perdidas. O
centena de crianças.
acontecimento é o que fazemos daquilo que nos acontece:
Entre estas crianças, havia uma menina a que todos
desespero ou glória.
chamavam Ruby, porque adorava a cor vermelha. Na China, o
vermelho é a cor das celebrações. No Dia de Ano Novo, as crianças
O bestiário imaginário e o romance familiar
recebem envelopes vermelhos cheios de “dinheiro da sorte” e as
As crianças que não sabem escrever, ou que ainda não
noivas vestem-se de vermelho no dia do casamento. Contudo, Ruby
dominam suficientemente a noção de tempo para fazerem uma
insistia em vestir-se de vermelho todos os dias. Mesmo quando a
narrativa, contam a si mesmo dois géneros de efabulação: o
mãe a obrigava a usar cores mais sóbrias, como as primas faziam,
folhetim do amigo imaginário e o romance familiar. O bestiário
Ruby atava o seu cabelo negro com fitas vermelhas.
imaginário desempenha um papel importante no desenvolvimento
do psiquismo infantil. Toda a criança, antes de se deitar, sabe bem
Uma vez que tinha muitos netos, o avô de Ruby contratou
que, para dormir, tem de pôr de lado a realidade e deixar-se ir para
um professor para vir a casa ministrar as lições. Todos os netos que
outro mundo, o do sono. É preciso que tenha passado um bom dia
quisessem aprender tinham aulas com este tutor. Esta não era uma
e adquirido suficiente confiança, para ter a coragem de largar o que
situação comum na China de então, dado que a maioria das
a segura ao real e deixar-se deslizar para um mundo de sombras
raparigas nunca aprendia a ler ou escrever. Sempre que o tempo
onde pode surgir todo o género de fantasmas. A criança inventa,
estava bom, as aulas tinham lugar no jardim. As janelas do
então, uma etapa intermédia em que imagina seres estranhos mas
escritório do avô davam para o jardim e, com frequência, o velho
familiares, não completamente desconhecidos. Recria todas as
levantava-se para observar os netos.
noites a cena do menino que chama para a sua cama Pernou, o
simpático companheiro invisível que imagina ser metade homem e
Um dia, o avô viu a parede alta e branca do jardim coberta de
metade cão, e Perguit, outro animal-homem amigo. Guardado,
caligrafias. Os netos tinham estado a praticar a escrita. O avô riu-se
assim, por esta boa companhia que acaba de criar, tenta a aventura
ao ver que muitos tinham a cara e as mãos cheias de tinta! Foi
de mergulhar no escuro.
então que reparou que uma das folhas era mais bela do que as
236
74
restantes. Qual dos seus netos produzira tão bela caligrafia?
Os animais imaginados povoam esta zona intermédia entre a
Entretanto, no jardim, o tutor elogiava Ruby, que tinha as orelhas
imagem parental familiar que lhe dá segurança e o desconhecido
tão vermelhas como o casaco que vestia.
angustiante.
Embora
sabendo
que
a
autora
deste
povo
intermediário é ela, sente-se mais confortável, porque vive a
Para acompanhar os primos nos estudos, a verdade é que
sensação suscitada pelo mundo que inventou. O seu imaginário age
Ruby tinha de se esforçar o dobro. Com efeito, quando terminavam
sobre o real íntimo, os dois “amigos” imaginários modificam o seu
os estudos, os rapazes iam brincar; as raparigas, porém, tinham
mundo interior, acalmam a sua angústia e convidam-na a deixar-se
ainda de aprender a cozinhar e a governar a casa. Eram estas as
levar pelo sono em boa companhia. Não há criação sem efeito.
únicas tarefas que as mães achavam dignas de aprendizagem. Uma
Tudo o que é inventado actua sobre o psiquismo daquele que o
a uma, todas as netas abandonavam as aulas. Todas, excepto Ruby,
inventa.
que escolhia a noite para compensar os bordados que não fizera de
Desde os primeiros escritos, Freud sublinharia a importância
dia. E, durante muitas noites, a sua vela era a única acesa em toda a
do romance familiar, quando a criança constrói uma história em
casa, depois de todos se terem ido deitar.
que conta a si própria que a família que tem não é a família
verdadeira: “Foi um acidente da vida que me trouxe a esta gente.
Um dia, o tutor pediu às crianças que escrevessem um
Eu sei que sou uma princesa, até me pareço com a rainha Fabíola.
poema. Ruby escreveu:
Além disso, vi, uma vez, aqueles que fingem ser meus pais, a falar
com uma espécie de mendigo. Deviam estar a dar-lhe o dinheiro
Má sorte ter nascido rapariga;
que lhe prometeram por me raptar…”
pior sorte ter nascido nesta casa
A menina que inventa um enredo destes e o aperfeiçoa a cada
onde apenas os rapazes recebem atenção.
indício novo está, no fundo de si mesma, graças a esta história, a
O professor ficou impressionado com o poema da menina e
desenvolver o sentimento de autonomia que acaba de nascer em si.
mostrou-o ao avô. Este também ficou impressionado, além de
“Descubro que os meus pais não são os seres excepcionais que eu
pensava. Identifico-me mais com pessoas do meu nível, uma
preocupado. Chamou, então, a neta ao escritório. Ruby viu o avô
rainha, por exemplo. A angústia ligada ao desejo incestuoso que
sentado na cadeira, com o poema pousado na secretária diante
senti não tem razão de ser, porque os homens da minha família
dele.
não são o meu pai nem o meu irmão verdadeiros. Portanto, tive um
— Foste tu que escreveste este poema? — perguntou.
sentimento normal.” Não pensem que este romance familiar é uma
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237
manifestação de desprezo pelos verdadeiros pais. Quase que é o
— Sim, avô, escrevi — respondeu a neta.
contrário.
— Achas que nesta casa só nos preocupamos com os rapazes?
A criança, ao crescer, descobre as limitações dos pais reais.
— Não, avô — respondeu Ruby, arrependida por ter
Tem a nostalgia da admiração passada mas, graças ao romance da
perturbado o avô.
família, evita a decepção e preserva, no fundo de si, o delicioso
sentimento que experimentava quando os pais tinham ainda
— Ruby — disse o avô, gentil — gostaria de saber porque
prestígio. Eis como uma criação imaginária trabalha um
escreveste este poema. De que forma cuidamos melhor dos
sentimento concreto. Mais tarde, quando o jovem ou o adolescente
rapazes?
encontrar um amigo que partilhe de um imaginário análogo, farão
A neta tentou escolher um exemplo insignificante.
disso uma fantasia colectiva que será a prova de que o sentimento
— Bem, quando se realiza o Festival da Lua, e nos dão um
deles é fundado, já que o outro também o vivenciou. A crença
bolinho a cada um, os rapazes ficam sempre com a parte da gema.
funciona, modificando o real e arrastando os fiéis para o deleite…
ou para o horror.
— Ai sim? — disse o avô, como que à espera de mais
O imaginário pode portanto alterar, de alguma forma, o
revelações.
modo como sentimos o que nos rodeia, o sabor do mundo.
— E quando fazemos o Festival da Lanterna, as raparigas só
Partilhamos todos desses sentimentos. Mas, a partir de uma
recebem simples lanternas de papel, enquanto os rapazes recebem
competência comum, as agulhas poderão apontar em direcções
lanternas vermelhas com a forma de peixinhos dourados, galos e
diferentes, dependendo dos tutores afectivos, sociais e culturais
dragões.
que o meio coloque à nossa volta. Enquanto a sublimação tem em
conta a existência do outro, o imaginário é uma expressão do
O avô riu baixinho. Nunca havia pensado naquilo. Mas
narcisismo. Se o ambiente for vazio, a pessoa fica prisioneira do seu
imaginava, facilmente, o quanto a neta gostaria de ter uma
refúgio e corre o risco de ficar lá fechada, como na mitomania.
lanterna vermelha.
Mas, se conseguir encontrar alguém que a convide a esforçar-se
— Mas o mais importante — concluiu Ruby, fitando as
para transformar o sonho em criação, então o ferido poderá
biqueiras dos seus sapatos vermelhos — é que os rapazes vão para
construir uma ponte de resiliência.
a universidade, enquanto as raparigas se casam.
Uma criança traumatizada que não sonhe fica sujeita à
— Não queres casar-te? — perguntou o avô. — Tens muita
realidade destruidora. Pelo contrário, uma criança fracassada que
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76
sorte, porque uma rapariga desta família pode casar com quem
se refugia no sonho a ponto de cortar com o real afasta-se da
quiser.
sociedade. Sozinha, uma criança ferida, que se protege graças ao
sonho e encontra alguém que lhe pede para fazer um esforço de
— Eu sei, mas preferia ir para a universidade.
criação, terá hipótese de construir a sua resiliência. Fugir à
O avô afagou-lhe o cabelo.
realidade ou submeter-se a ela são dois mecanismos de defesa
— Obrigado por teres desabafado comigo, Ruby. Continua a
tóxica. Enquanto que proteger-se de uma realidade agressora e ir
buscar ao imaginário algumas razões para a transformar, constitui
estudar. Aproveita o mais que puderes.
um mecanismo de defesa resiliente. Ao inventarem a sua história,
E Ruby continuou a estudar. Alguns dos rapazes cresceram e
os artistas vão buscar novas forças às feridas da infância, ao peso
foram para a universidade. Outros ficaram em casa e constituíram
das lembranças escondidas. Próxima do sonho, esta transformação
família. Mas todas as raparigas casaram e foram viver com as
de si mesmo tende a alargar a nossa concepção estreita do
famílias dos maridos. Ruby sabia que, em breve, chegaria a sua vez.
indivíduo.
Nos lagos, observava as carpas cor de laranja e brancas, que
procuravam pão sob uma fina camada de gelo. O Ano Novo chinês
Dar forma à sombra para se reconstruir. A omnipotência do
aproximava-se e a menina sabia que seria o último que passaria
desespero
naquela casa.
Gosto de dizer que aquilo que não pode ser dito pode ficar
No Dia de Ano Novo, calçou os sapatos de veludo vermelho e
para sempre no domínio do não-dito. Este insignificante jogo de
prendeu o cabelo com fitas vermelhas. Depois foi desejar a todos
palavras permite evocar o desafio da transformação, quando uma
um feliz ano. Começou pelas primas casadas, e em seguida felicitou
desvantagem, uma mágoa ou uma vergonha se transformam em
os pais, os tios e as tias. Cada um lhe deu um envelope vermelho
desenvolvimento pessoal a partir do momento em que são
cheio de dinheiro da sorte. Por fim, fez uma vénia ao avô:
encarados de frente. Todo o herói autêntico tem de ultrapassar
uma prova, como etapa para a luz. Um traumatizado, esse, não tem
— Desejo-te boa sorte e prosperidade, avô.
escolha possível porque o fracasso está lá, com a sua perturbação,
— Boa sorte, Ruby — respondeu ele, entregando-lhe um
deixando-o no dilema de escolher entre a prostração e a desordem:
envelope vermelho muito grosso.
“Julguei mesmo que ia sucumbir. Quando a vida perde assim todo
o sentido, é um sofrimento sem igual. Eu nada mais era então do
Todos os olhares da família se cravaram nela enquanto abria
que uma actividade transbordante e descobri agora em mim a
o presente. O presente não era dinheiro; era algo muito melhor: era
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239
omnipotência do desespero”.1
a carta de uma universidade que se dizia orgulhosa por aceitar
Quando nos vemos atirados para a morte, a única defesa
Ruby como uma das suas primeiras alunas! E foi assim que Ruby
urgente é lutar, ainda que haja a tentação de nos deixarmos
realizou o seu desejo. Esta história é verdadeira. Sei-o, porque Ruby
arrastar para o abismo. Se nos deixarmos dominar por esta última
é minha avó. E todos os dias ainda veste algo vermelho.
saída, tornamo-nos niilistas, privados de qualquer ponto de apoio,
à deriva no meio das agressões da vida real. Se, no entanto,
enfrentarmos o absurdo da vida antes que o nada nos domine,
Shirin Yim Bridges
Ruby’s Wish
San Francisco, Chronicle Books, 2002
(Tradução e adaptação)
poderemos preencher esse nada e tornar-nos criadores. O caminho
do homem normal não está isento de provas: tropeça nas pedras,
arranha-se nas silvas, hesita nas passagens perigosas e, mesmo
assim, caminha! O caminho do traumatizado está bloqueado. Há
um fosso que leva ao precipício. Quando o ferido pára e volta atrás,
fica prisioneiro do passado, fundamentalista, negativo, ou
submetido à proximidade do precipício. O resiliente, esse, depois
de parar, abre um caminho lateral. Tem de encontrar uma nova via
com os dados da sua memória, seguindo os contornos da ravina.
Um caminhante normal torna-se criativo, o resiliente é mesmo
obrigado a isso.
Quando não é capaz de assimilar a realidade, a criança mais
crescida tem a sensação de explodir: “Porquê aqui, ou além, ou
noutro lado? Porquê isto e não aquilo?” A sua identidade
fracassada não consegue tratar as informações do mundo nem
adaptar-se a ele. Para dar forma a esta confusão urge tomar conta
de si próprio. Ao tentar pôr coerência no mundo que a rodeia, a
criança dá uma resposta adaptativa: fugir, submeter-se, seduzir o
agressor, enfrentá-lo, analisá-lo, a fim de o controlar. O mecanismo
1
240
Hölderlin (1797), Hypérion, Paris, Gallimard, 1973, p. 21.
78
habitual de defesa urgente é o sintoma, fenómeno observável que
exprime uma parte do mundo íntimo invisível. A partir do
CONTAR UM POUCO DE MIM!
momento
em
que
o
sintoma
esclarece
a
sensação
de
desmoronamento do mundo interior, a pessoa sente-se melhor,
porque pode referenciar a imagem do seu próprio sofrimento. Vê
donde vem o mal e pode finalmente dar-lhe um nome. Este mapa
do corpo dá forma à confusão e torna comunicável o sofrimento:
COMO ESCREVER UM HAÏKU…
“Posso expressar o que sinto num grupo. Posso consultar um
médico e indicar-lhe sintomas. Já não estou só no mundo. Sei agora
Se há uma actividade de que as nossas crianças e os jovens
o que tenho de enfrentar e como posso ser ajudado pelo próximo e
gostam, é, sem dúvida, quando os convidamos a escrever, sem
pela minha cultura.”
regras nem pré-formatações, sem rigidez, mas de um modo fluido,
Quando um trauma despedaça a personalidade, a reduz a pó
imaginativo e criativo, TRÊS VERSOS CURTOS, SEM RIMA, a
ou a fragiliza mais ou menos gravemente, o atingido fica, durante
propósito da Natureza que nos rodeia, das impressões que se sente
um certo tempo, sem rumo, desidentificado: “O que é que me está
ao caminhar numa floresta, ao deambular por entre os canteiros
a acontecer? O que fazer neste caso?” Se na sua memória
floridos de um jardim, ao passear ao longo da praia, numa manhã
perturbada permanecer a recordação da pessoa que era, da família
de sol, num fim de tarde outonal, ou numa noite estrelada…
que o rodeava, leva então consigo a sombra do passado, estranha
testemunha, prova impalpável de que já foi alguém: neste caso,
Por isso, antes de lhes propormos esse pequenino esboço de
permanece no fundo do seu eu despedaçado uma afirmação
escrita criativa, convém fazer com eles um curto mas importante
vacilante, uma presença indelével, uma brasa de vida.
relaxamento… e ainda é melhor se esse “exercício de paz” tiver
lugar já no jardim, no parque, no local cuja atmosfera (plantas,
“Quando retomo o meu caminho, quando regresso ao sol
animais, pedras, nuvens, céu…) irá servir de motivação para a
para encontrar um pouco de alegria, vejo a sombra que projecto: a
dos meus pais mortos. Sou uma imagem real, sou um rapaz, não
escrita…
tenho jeito para jogar futebol, tenho muitos amigos, mas os outros
vêem bem que em mim há duas sombras. Então desconfiam e
Todos sentados o mais confortavelmente possível (pode ser na
acham que eu sou estranho.” “O que é que este rapaz tem? É
relva, num banquito de pedra, numa pedra, e podem estar deitados,
bonito, simpático e, de repente, tem perturbações de linguagem.
79
241
Fica calado quando falamos dos nossos pais, fica imóvel quando o
olhando o céu, por exemplo…), vamos começar por sentir o coração
abraçamos. O que se passa com ele? Encanta-nos e preocupa-nos.
a bater mais tranquilo… Num 1º momento, vamos fechar os olhos e
Mesmo quando está connosco, está noutro mundo, de lá traz uma
ouvir apenas os sons da natureza que nos rodeia, o chilrear dos
relíquia, uma foto antiga com os bordos desfeitos. Olha muitas
pássaros,… sentir a leve brisa que nos acaricia,… cheirar os odores da
vezes para ela, é a fotografia das suas sombras.
terra molhada ou seca…, distinguir os pequenitos ruídos das
Por vezes, vem-lhe do além um objecto, uma caixa de cartão
formigas que trabalham, das mosquitas que se passeiam…Ficamos
de cantos desfeitos, uma moeda de um país estrangeiro, uma
assim cerca de 10 minutos…. Só depois é que podemos abrir
pequena chave de ouro, decerto legada pela sua sombra paterna.”
lentamente os olhos e, SEMPRE EM SILÊNCIO E SEM NOS
Dar forma à sombra é reconstituir-se após o caos traumático. Dar
TOCARMOS, vai cada um olhar, ver, observar atentamente, um ou
forma à sombra é o primeiro momento da criação artística. O nome
outro pormenor da Mãe Natureza que mais o fascine e sobre o qual
que uso é o nome das minhas sombras. É a prova social de que elas
queira escrever…
existiram. Os meus fantasmas foram reais. A minha história
adensa-se com a história das minhas sombras. Como se faz para
suportar uma sombra? Enterra-se a sombra para não se ter mais
E só depois destes momentos de contemplação silenciosa é
sombra? Fundimo-nos na massa, procuramos o anonimato para
que cada um pode escrever o que quiser no caderninho ou na folha
deixarmos de ser sujeito?”
de papel que tiver na mão (de preferência um A5)…. Poucas
Mas quando, apesar do fardo das sombras, desejamos viver,
palavras, apenas algumas… pois não se vai escrever uma longa
mudamos o nome e, para melhor o escondermos, pomo-lo em
história mas apenas três pequenos versos, sem rima, que
destaque: “Chamar-me-ei Niki de Saint-Phalle. Este criptograma
transmitam o que estamos a sentir naquele instante, naquele lugar,
percorrerá o mundo e ocupará o seu lugar entre a humanidade,
naquele preciso momento…. Quem ainda não souber escrever,
donde fui expulsa com a idade de 11 anos, quando o meu pai, aquele
pode pedir ao professor para escrever por ele/ela…
grande banqueiro que eu tanto amava, se meteu na minha cama.
Se quisermos, depois, podemos passar a limpo os versos,
Hei-de combater o meu exílio, farei esculturas de mulheres com o
numa folha/marcador, e desenhar algo que possa ilustrar o que se
sexo à mostra, darei carne à minha sombra e matéria ao meu
escreveu! E, às vezes, até se pode pôr a data… aquele momento
trauma. Depois, estas criaturas expulsas do meu mundo íntimo
ficará para sempre gravado na nossa vida!
hão-de permitir que o meu nome seja aceite. Hei-de voltar ao
mundo dos humanos com a ferida transformada em obra de arte.”
242
80
Expulsar de si a cripta traumática enquistada no psiquismo
constitui um dos factores mais eficientes de resiliência. Para isso, é
preciso que a criança mutilada se tenha tornado capaz de
encontrar um modo de expressão adaptado e um lugar de cultura
posto ao seu alcance. A escrita permite muito cedo este processo de
resiliência. Deitar cá para fora, para tornar bem visível, objectivável
e maleável, um sofrimento impregnado no fundo de si. É
misterioso este desejo sentido por muitas crianças traumatizadas
de virem a ser escritoras, quando nem sequer sabem escrever.
Escrever não é dizer. Ao contar a minha ferida, as mímicas do
outro, as suas exclamações ou até os silêncios modificam as minhas
emoções. A sua simples presença muda tornou-o co-autor do meu
A VOVÓ-LOBO
discurso. Já não sou apenas eu o dono dos meus desejos. Custa-me
agarrar o sentimento do meu passado. O confidente modificou as
Eu tinha um amigo. Chamava-se Artur. Ainda se chama
minhas intenções.
Artur, mas já não é meu amigo. Desde o início das aulas que eu
pensava como é que havia de fazer para o Artur ser meu amigo. O
Pelo contrário, quando escrevo, com palavras tiradas do meu
Artur é muito bonito. Gosto muito dos seus olhos castanhos e
íntimo, atiro para fora de mim, lanço no papel a cave de onde todas
delicados por detrás dos óculos azuis. O cabelo, cortado à
as noites deixava sair alguns fantasmas. Da mesma maneira que
escovinha, faz lembrar erva preta. Tem orelhas pequenas, anda
Niki Saint-Phalle volta a integrar o mundo dos humanos graças ao
muito bem vestido mas tem tendência para pensar que os outros
artesanato de mulheres com o sexo à vista, Francis Ponge deita cá
para fora um tema de escrita cuja função íntima será repará-lo:
não valem “um tostão furado”, como diria a minha avó. A propósito
“Tudo se passa como se, desde que comecei a escrever, eu
da minha avó, eu disse ao Artur na hora do recreio:
corresse… “atrás” da afeição de uma certa pessoa. A escrita é uma
― Artur, queres que te conte um segredo?
testemunha de defesa. Todo o romance põe em jogo um herói
― Que segredo?
reabilitador. A obra prolonga o aparelho psíquico e dá uma forma
esculpida ou escrita à sombra que a pessoa mutilada carrega; este
― Uma coisa muito importante. Não vais dizer nada a
lugar é um fórum exterior que contém uma delegação dos
ninguém?
81
243
representantes do fórum interior”.2 O lugar da obra é o lugar da
― Claro que não, achas que sou o quê?
cave, é o palco onde os fantasmas representam. “E compreendi que
Então disse-lhe ao ouvido:
todos aqueles materiais da obra literária eram a minha vida
― A minha avó é bruxa.
passada”,3 escreve Proust, perito na evocação de sombras.
Ele até deu um salto.
Fingir para fabricar um mundo
― Já não há bruxas, isso era antigamente!
A escrita, alquimia que transmuta o nosso passado em obra
No momento em que eu ia dizer: “Mas a minha avó é uma
de arte, participa na reconstrução de um eu arruinado e permite
bruxa boa”, Íris, a magricela, aterrou entre nós como se tivesse
fazer-se reconhecer pela sociedade. Mas, antes da escrita, outros
caído do céu. Olhava para o Artur com ar provocador, com aqueles
modos socialmente valorizados da representação de si entram em
olhos grandes. A Íris era nova na escola, tinha chegado há dez dias,
acção no decorrer do desenvolvimento. Uma criança tem de saber
mas eu não falava muito com ela porque só queria ter o Artur como
“fingir” desde os 15 meses de idade. Cair sem ser forçada, simular
amigo. Ela tinha ouvido a conversa. Falava muito depressa e
choro e mágoa que na realidade não sente, saber mostrar-se
gesticulava.
ameaçadora, adormecida ou até afectuosa. Em resumo, todas as
actividades fundamentais da sua existência devem ser postas em
― Ah, então achas que já não há bruxas, Artur? Nunca
cena no seu pequeno teatro pré-verbal, sob pena de não ter acesso
ouviste falar da senhora da loja dos animais?
à alteridade. A partir do momento em que uma criança treina para
― Não.
inventar uma personagem a quem dá vida, um duplo imaginário a
― Aquela dos animais, no centro comercial, que dantes era
quem confia os seus pequenos desgostos, um papel pré-verbal
representado mimicamente com gestos, posturas e vocalizações,
uma loja de brinquedos, não estás a ver?
ela fornece ao adulto a prova de que compreendeu existir um outro
― Não, e o que é que isso tem a ver com bruxas?
mundo mental diferente do seu e sobre o qual procura agir graças a
― Vou dizer-te uma coisa, meu menino. A senhora da loja
cenários imaginados.
dos animais transformou todos os animais de pelúcia em animais
Quando brinca a fingir, o petiz inventa uma ficção expressa
verdadeiros. Não sabias? Todos os cães, os gatos e até a piton do
pelo corpo, dá forma às emoções para agir sobre o mundo mental
seu terrarium. E, pode voltar a desfazer tudo quando quiser.
2
3
244
Portanto, vê lá, nunca te esqueças do teu ursinho na loja dela, meu
C. Mason, L´angoisse et la création, Paris, L’Harmattan, 2001, p.154.
M. Proust, A la recherche du temps perdu, Paris, Gallimard, 1989, p.206.
82
menino! Até se diz que ela transformou bonecos em bebés
do outro. Este fazer de conta é uma proeza intelectual, por permitir
verdadeiros e que ela os…
ao mesmo tempo a expressão do seu mundo íntimo e o domínio
inter-subjectivo: “Vou assustá-lo, dando uma queda. Vou atrair a
O Artur estava vermelho, e julguei mesmo que ele ia atirar-se
sua ajuda protectora fingindo que choro.” Quinze meses mais
à Íris e começar a bater-lhe, mas não.
tarde, quando a criança começar a dominar as suas próprias
― Em primeiro lugar, não gosto que me tratem por “meu
palavras, é com palavras que irá fazer o mesmo. Ao contar uma
menino” ― gritou em altos berros, batendo com força o pé no chão
história, exprime o mundo íntimo, vai manipular as suas emoções e
– e depois essa história dos brinquedos é ridícula e, quanto às
estabelece assim a ligação de que precisa. Mas para que este
bruxas, elas não existem!
mecanismo de criação seja eficaz, é preciso que o outro, adulto ou
companheiro, responda ao fingimento com uma reacção, essa sim,
― Existem sim, Artur, existem ― disse-lhe eu ― porque a
autêntica, porque ele não está a brincar, antes vive um sentimento
minha avó também é!
“a sério”.
― E o que é que ela faz para ser bruxa?
Quando a criança está só e o seu mundo se esvazia, quando o
real é aterrador e esta se protege dele inventando uma ficção,
― Faz truques extraordinários, tem poderes…
quando o outro, adulto ou companheiro, não responde a esse
― Que poderes?
mundo virtual, o miúdo fica prisioneiro daquilo que inventou.
― Basta começar a contar uma história e pronto, transforma-
Enquanto a mentira é uma defesa utilitária, a mitomania é uma
se! Pode transformar-se em tudo: em príncipe, em anão das
tentativa de resiliência pervertida, porque, em redor da criança
montanhas, em abelha, ou simplesmente em bruxa.
mutilada, a família, os amigos ou a cultura não souberam
responder nem dar a tal defesa uma forma socialmente exprimível.
O Artur encolheu os ombros, e a Íris, apontando-lhe o dedo
Quando a realidade é suportada porque não provoca inquietações,
ao nariz, disse-lhe, num ar muito sério:
por se ter nela um lugar bem definido e as relações se
― Artur, é melhor para ti que nunca te encontres com essa
estabelecerem bem, a realidade torna-se agradável, interessante e
avó.
até mais divertida do que os jogos de ficção. Num tal ambiente, a
criança, ao brincar, aprende a introduzir-se no seu meio. Mas
― Ah! ah! ah! E porquê?
quando a realidade é assustadora, quando as relações afectivas ou
A Íris levou-nos para longe dos outros, para o fundo do pátio,
sociais são perigosas ou humilhantes, a efabulação permite à
para ninguém nos ouvir.
criança proteger-se do mundo exterior submetendo-se ao mundo
83
245
inventado por ela.
― Eu conheço bem as bruxas ― explicou-nos ― e sei que
elas existem. Na outra escola, eu era especialista nesse assunto. As
A mentira é uma muralha contra o real, a mitomania um
bruxas, agora, não usam chapéus em bico, não têm verrugas no
“tapa-misérias”
queixo, podem trabalhar nos correios, na televisão, até as há que
são professoras! As bruxas tornaram-se comuns!
A mentira protege a criança quando esta se encontra em
Eu e o Artur ouvíamos o discurso da Íris, de olhos
perigo, a mitomania dá-lhe um sentimento de revalorização
quando ela não tem possibilidade de corrigir a sua imagem
esbugalhados.
afectada. Então, as histórias em que ela entra tornam-se coerentes
― Comuns?
demais para serem honestas. O real é sempre um pouco caótico,
― Sim, e sei que há uma coisa que elas detestam acima de
enganamo-nos nas datas, temos sentimentos ambivalentes,
tudo.
encontramos imagens do passado por vezes divergentes, um gesto
de raiva em relação àqueles que amamos, uma lembrança que nos
― Que coisa é essa? – perguntou o Artur.
intriga. Quem efabula é coerente até ao absurdo, deve apoiar-se em
― Detestam, acima de tudo, os malandros que não
histórias que o rodeiem de pedaços de verdade com os quais fará
acreditam nelas.
uma ficção. Uma criança suficientemente cuidada, que adquiriu
laços serenos, leva a cabo uma ficção que é uma forma de se
O Artur encolheu os ombros.
preparar para ocupar um lugar no seu meio. A criança mitómana
― Pfff! Que grande palermice!
refugia-se na ficção para evitar esse mundo ou criar uma imagem
― Não te julgues assim tão forte, meu menino! – murmurou
que a favorece e com a qual entra na sociedade. Teme o mundo
a Íris. ― Eu cá também tenho os meus poderes!
real e, apesar disso, deseja ocupar um lugar; por isso, introduz-se
nele, criando a imagem desejada por aqueles que estão à sua volta.
― Não me trates por “meu menino”, que isso irrita-me.
Desse modo, os temas da mitomania são os da nossa própria
― Estás a ver, eu tenho o poder de te irritar, ah! ah! ah!
existência: êxito social, aventuras físicas, proezas militares ou
E foi-se embora a saltitar nas suas grandes pernas. O Artur
mesmo pequenos acontecimentos agradáveis do dia-a-dia: “Era tão
estava furioso.
linda… andámos a passear”, conta o adolescente desesperado por
não ser capaz de sorrir para uma rapariga. Ao contar a sua fábula,
― Mas diz-me cá, Artur ― perguntei-lhe eu ― acreditas ou
vive o sentimento provocado pela imagem que a sua história dá de
246
não que a minha avó é bruxa? Juro-te, Artur, que ela é uma bruxa a
84
sério!
si. A carência afectiva está na base dessas ficções compensadoras. É
a principal causa da mitomania e esta pode ainda agravá-la mais: é
― Isso é o que tu dizes!
uma defesa falhada. O imaginário, pelo contrário, é uma metáfora
― Até o meu primo, que tem catorze anos, a trata por “Vovó-
dos nossos desejos, porque põe em cena aquilo a que aspiramos e o
-Lobo”, estás a ver! Só tens de vir comigo, se tiveres coragem, e
jogo da ficção treina-nos para tornarmos o desejo realidade. Na
ficas a saber.
mitomania
procuram-se
palavras
para
compensar
naquele
momento o deserto afectivo. Mas ela é apenas agradável no
Na quarta-feira seguinte fomos a casa da minha avó. Antes de
instante em que se constrói o sketch do desejo: no entanto a
entrarmos, preveni o Artur:
descida é triste e, como com qualquer droga, depressa terá de se
― Durante a história, é preciso estar com os olhos fechados.
recomeçar.
Se abrires os olhos enquanto ela está transformada em lobo, em
Este “teatro” indica, portanto, uma tentativa de defesa
papão ou em monstro, ela pode devorar-te!
construtiva. Uma criança posta num ambiente de isolamento
O Artur levantou os olhos para o céu:
afectivo acaba quase sempre por se deixar levar à morte psíquica, e
depois física. De vez em quando, mesmo em carências extremas, lá
― Tretas!
aparece uma que resiste: é aquela que consegue criar um mundo
Eu insisti:
interior feito a partir de alguns indícios, de pequenos nadas.
― Vais abrir os olhos?
Aproveitando duas ou três percepções da realidade envolvente, a
criança faz delas um objecto de hiper-ligação. Sobrevaloriza uma
Ele respondeu:
fotografia, um papel que embrulhou um presente, um prego
― Claro, o que é que julgas?
dourado, uma fitinha, um artigo de jornal que guarda como um
tesouro debaixo da almofada. O objecto simboliza a ligação perdida
Apertei-lhe o braço com todas as minhas forças:
e depois recuperada: “O meu pai ter-mo-ia dado”, “uma mãe tê-lo― Por favor, Artur, não abras os olhos ou vai ser horroroso!
-ia oferecido ao seu filho”. Aquela pequena coisa – que para o
E depois a vovó abriu a porta. Sentámo-nos no canapé. A
adulto parece fraca e sem qualquer significado – é uma pérola
preciosa para o pequeno dono, uma prova concreta de que é
vovó disse:
possível amar. Eis como um pedaço de papel se torna portador de
― Que história querem que vos conte?
esperança. E, no entanto, a criança bem sabe que inventou aquilo e
Com tanto azar que foi o Artur a pedir:
lhe atribuiu o poder afectivo de que tanto necessita.
85
247
Ao efabular, a criança mais crescida ou o adolescente faz o
― A história do Capuchinho Vermelho.
mesmo trabalho. Inventa um teatro em que representa os seus
Então, como de costume, ao sentar-se no sofá, a avó disse:
desejos e, no mesmo instante em que brinca com as palavras e
― Clic! Clac! Fechem os olhos para entrarem no conto e
situações, sente o que acaba de inventar. A mentira serve para
saírem dele sem qualquer dificuldade. Clac! Clic!
mascarar o real a fim de se proteger dele, enquanto a mitomania
serve para compensar o vazio da realidade com o objectivo de
Depois começou a contar o passeio do Capuchinho Vermelho
preencher uma falha afectiva. Aparentemente, ela repara a imagem
na floresta. Não tinha pressa nenhuma, a menina de vermelho, e
destruída de si. O imaginário, esse, dá forma ao ideal de si e cria
dizia com a sua voz ingénua:
um desejo que convida o sonhador a transformar a sua vida ao
― Oh! Que linda floriiinha!
tornar real o seu sonho.
E a flor respondia, a voar dali para fora:
Estes três mundos virtuais têm por função dar um
sentimento de segurança. A mentira protege como uma muralha, a
― Não sou uma flor, sou uma borboleta! Colhe-me, se fores
mitomania como uma imagem sedutora e o sonho como uma
capaz.
ponte levadiça que dá para o campo. Se não houver campo, a ponte
O Capuchinho Vermelho cantarolava, lalalalalala, e de
a nada conduz e a criança fica prisioneira daquilo que inventou. O
repente exclamou:
que significa que é a relação com o outro, com a família e com a
sociedade que pode transformar o sonho em criatividade ou, pelo
― Olha! Um morango silvestre!
contrário, numa miragem. A mitomania é uma tentativa de
E o morango respondia:
resiliência que fracassa, por a criança martirizada não ter
― Não sou um morango, sou uma joaninha!
encontrado um meio que a aceitasse com a sua ferida.
Gosto muito daquele provérbio, certamente chinês, que diz:
E o Artur ria porque a borboleta e a joaninha tinham voz
A fachada duma casa pertence a quem olha para ela. O morador
grossa. Eu pensava: “O Capuchinho Vermelho devia era usar
constrói uma fachada para a oferecer ao espectador. Mas,
óculos!”
conhecendo-se os benefícios que a dádiva traz àquele que dá,
De repente, o Capuchinho Vermelho parou de cantarolar e
podemos compreender que aquela criança despedaçada que
de saltitar. Alguém saiu de trás de um silvado. Ouviu-se o estalido
constrói uma bela fachada tenta criar uma ponte afectiva entre ela
das folhas. Senti que a vovó se transformava.
e os que a rodeiam. Como quando brincava ao “faz-de-conta”, ou
248
86
quando esboçava um acontecimento que tinha presenciado, tal
criança tenta submeter a realidade à sua representação. Mas a
criança ferida apenas pode oferecer ao outro uma bela fachada,
porque a sua realidade é demasiado triste. Na mitomania, aquilo
que ela oferece é apenas a fachada. Atrás do cenário há ruína,
desespero. Mas, pelo menos, terá existido na vossa mente, terá
partilhado convosco um belo sonho. Pobre benefício, que a
presenteia com uma fachada que esconde os escombros.
― Boas taRdes, encantadoRa menina!
Ao deitarmos por terra a encenação, estamos a feri-la duas
Era mesmo o sotaque do lobo que arrastava os “R”. A voz
vezes. Primeiro, estamos a remetê-la para a sua sórdida realidade,
passava-lhe por entre os dentes aguçados. Ouvia-se Flat! Flat! Eu
depois a humilhá-la ao descobrirmos a sua fraude. Fugirá, então,
disse baixinho ao Artur:
para escapar à realidade e salvar a fachada, a tal dignidade
imaginária. De qualquer modo, quando o trauma é único e quando
― Estás a ouvir a cauda do lobo a bater no chão?
os sketchs são menos vitais, a mitomania dilui-se. Mas quando a
Ele respondeu-me:
criança profundamente ferida permanece no deserto, o mundo que
ela imagina é o único prazer que lhe resta. Se tornarmos a sua
― Sim, estou a ouvir.
realidade suportável, ela terá menos necessidade da mitomania. Os
Eu murmurei:
seus devaneios tornar-se-ão amostras de prazer e metáforas de
― É assim que os lobos batem com a cauda, quando sabem
projectos. É o imaginário que daí para a frente se torna protector, e
que vão regalar-se a comer.
não a sua mentira. Pode criar um conto a partir dele ou subir para
o palco sem defraudar o espectador. Tudo se torna claro: trata-se
― Boa tarde, meu senhor! ― disse delicadamente o
apenas de uma história, de uma cena, de uma lenda, de um jogo
Capuchinho Vermelho na sua voz fina.
teatral. Mas, no fundo de si, o ferido passou a dominar a sua
Francamente, acho estranho que uma rapariga diga “bom dia,
tristeza, que nós, ao aplaudi-lo, estamos a curar. A distância do
meu senhor” a um lobo.
tempo, a busca das palavras e a habilidade da encenação são os
instrumentos que lhe permitem não ficar prisioneiro do trauma e
― Onde vais, gRaciosa menina? ― disse o lobo.
até fazer dele uma ponte para a sociedade.
A vovó tentava adocicar a voz do lobo mas entre duas
87
249
Jorge Semprun ilustra bem este caminho que parte da ferida
palavras ouviam-se fortes clac! clac! junto dos nossos ouvidos.
para, progressivamente, se metamorfosear numa ficção. Em Le
― Ouves as mandíbulas a bater?
Long Voyage4 dá ao trauma a forma de uma narrativa. Trinta anos
Artur não respondeu. Certamente, começava a ficar com
após a deportação, o seu depoimento entremeia os factos com a
medo.
imaginação. Picasso reconhece ter seguido o mesmo percurso
quando pintou Guernica, alegoria quase incolor para significar a
― Enquanto tiveres os olhos fechados, não tens de ter medo
morte. Steven Spielberg, graças à negação, protegeu-se durante
de nada ― disse-lhe eu.
quarenta anos da dor da Shoah. Mas será por fim uma ficção o que
lhe permitirá voltar a ser inteiro. “A partir do filme deixei de ser um
Apetece-me dizer a cada instante ao Capuchinho Vermelho:
judeu partido em dois.” Até a escolha do assunto é uma confissão
“Não respondas ao lobo! Vai-te embora! Foge depressa, ou trepa a
autobiográfica. Ao contar a história de um homem que, durante a
uma árvore.” Mas tenho medo de que o lobo, irritado e cheio de
Segunda Guerra Mundial, salva milhares de judeus, Spielberg dava
fome, se vire contra mim. Então deixo aquela pateta do
forma à sua vontade de pensar que, apesar de tudo, o mundo ainda
Capuchinho Vermelho responder.
tinha algumas pessoas generosas.
― Vou a casa da minha avó que vive na floresta.
Se fosse eu, respondia antes: “Vou a casa do meu tio que
A ficção tem um poder de convicção muito superior ao da
pratica boxe!” Senti que o Artur também estava nervoso. Peguei-lhe
explicação
na mão e disse:
Nenhuma ficção pode ser inventada a partir do nada. Há
― Chiu! É muito ingénua esta rapariga mas não se pode fazer
sempre indícios da realidade que alimentam a imaginação. Mesmo
nada para a ajudar.
os devaneios mais desenfreados dão forma a fantasias saídas do
nosso mundo íntimo, por vezes próximas do inconsciente. Esta
― E onde é a casa da tua queRida avozinha? É longe daqui? ―
passagem resiliente de uma dor real para o prazer da representação
perguntou o lobo a dar aos dentes cada vez com mais força.
dessa dor acusa a sociedade muito melhor do que o faria o ferido.
E aquela palerma a dar-lhe as informações todas:
Por que é que o público tem tanta dificuldade de ouvir os
testemunhos? Ou melhor, por que é que só ouve os testemunhos
― É fácil, depois do pinheiro grande, vire à direita e depois à
que o confortam na ideia que faz da sua própria condição? Fred
esquerda, na quarta nogueira. É uma casinha com sardinheiras à
janela.
4
250
J. Semprun, Le Long Voyage, Paris, Gallimard, 1972.
88
Evidentemente, o lobo foi a correr para casa da avó. Não
Uhlman, filho de um médico judeu alemão, quer dar testemunho
devia estar muito treinado na corrida porque arfava de uma forma
do desaparecimento de metade dos seus colegas de escola em 1942,
esquisita. Affu! Affu! Affu! Chegou diante da casinha.
judeus e não-judeus.
Quando escreve: “Vi que vinte e seis dos quarenta e seis
― Boas taRdes, avozinha, sou eu!
rapazes da minha turma estavam mortos”, provoca um silêncio
― Tu, que-quem?
pasmado. Desamparado, vacila um pouco: “Será que eu tinha
― O Capuchinho VeRmelho!
mesmo necessidade de o saber?” Então, para contar a verdade que
ninguém pode ouvir, decide escrever L’ami retrouvé5, onde, como
― En-entra, minha meniina, en-entra.
Semprun, Picasso e muitos outros, cria uma ficção que dá à
A avó do Capuchinho Vermelho não é tão robusta como a
verdade uma forma socialmente aceitável. Conta a amizade de um
minha e tem uma voz tremelicante. E depois deve ser surda para
adolescente com Graf von Hohenfels, executado aos 16 anos de
confundir daquela maneira a voz da neta com a do lobo. Disse-lhe:
idade por conspirar contra Hitler, enquanto os pais, pertencentes à
mais fina aristocracia, se tinham empenhado na destruição dos
― Boom diaa, minha menina, coomo és simpááticaaa…
judeus da Europa. A ficção possui um poder de convicção muito
E o lobo cortou-lhe a palavra e o pescoço. Clac! O lobo tem
superior ao testemunho, porque o fio da história leva a uma adesão
horror de comer avós, e por isso resmungava:
que não é apenas a mera confirmação, demasiado semelhante aos
ridículos enunciados oficiais: “55% das crianças morreram com a
― Ugh! Esta carne é dura, insossa e fibrosa!
idade de 15,3 anos… 90% admitidas no nível superior do
Eu acho que não era lá muito agradável para a vovó, mas o
Secundário…”
Artur riu-se daquilo.
A recusa emocional facilita o negacionismo: “Quarta-feira, 14
― E o que é isto? Ah, Os óculos! Quase os engolia! Vamos
de Julho de 1916. Minha querida mãe: Regressei do gozo de licença
antes pousá-los em cima da mesa-de-cabeceira.
e estava tudo bem com o meu batalhão. Sabes, constatei, bem
E ouvimos o pac! ao pousá-los. Quando a velhinha, entre
como os meus colegas, que estes dois anos de guerra tinham
ruídos medonhos, foi engolida, o lobo arrotou. O Artur deu um
conduzido a pouco e pouco a população civil ao egoísmo e à
indiferença, e que nós, combatentes, somos quase esquecidos.
salto e exclamou:
Algumas pessoas quase me disseram que se admiravam por eu não
― Oh!
5
89
F. Uhlman, L’ami retrouvé, Paris, Gallimard, 1972.
251
ter sido ainda morto. Vou fazer por esquecer, da mesma forma
De seguida, o lobo tentou enfiar o pijama da avó, mas fazia
como me esqueceram a mim. Adeus, mil beijos do fundo do
tudo ao contrário: meteu a cabeça numa manga, e gritava, já quase
6
coração. Gaston” . Quando a pessoa se cala, morre ainda mais. Mas
sem ar:
quando dá testemunho, faz calar os outros. Perante uma escolha
― Eu MoRRo asfixiado! Eu sufoco! SocoRRo!
tão dolorosa, a ficção é um bom meio para tornar a realidade
E o Artur tinha um riso contraído, mas não era capaz de se
suportável, criando uma narrativa de aventura.
conter. Por fim, o lobo pôs a touca de banho da avó para esconder
Mas quem inventa uma história construída a partir da sua
memória serve-nos aquilo que desejamos: algumas belas narrativas
as grandes orelhas, uma touca de plástico com flores cor-de-rosa.
de guerra, de amor, de solidariedade, de vitória sobre os maus, a
Eu tinha muita vontade de ver como é que ele ficava assim vestido,
glória, a pompa, a vingança dos pequenos, a magia, as fadas, a
e até me apetecia espreitar pelo canto do olho, mas receava que o
ternura, todos os grandes momentos da vida do confidente, que
Artur abrisse logo os dois, porque ele é muito curioso. O lobo
são encarnados por quem conta a sua própria lenda.
ralhou com a sua voz grossa:
― O primeiRo que olhaR paRa mim, devoRo-o!
O poder reparador das ficções é capaz de mudar o real
Cerrámos as pálpebras com toda a força. O Capuchinho
A sociedade pode propor locais de cura mais suaves. Foi o
Vermelho chegou. Não estranhou que a avó lhe dissesse com voz
que aconteceu com Erich von Stroheim. “Serviu-se da mentira para
grossa:
proteger a sua intimidade, mas também para se construir a si
― AbRe a poRta, meu tesouRo!
próprio. Teve tanto êxito no que empreendeu que só existe uma via
de acesso à sua personalidade verdadeira: as obras-primas que ele
criou.”7 Erich von Stroheim repara a vergonha da sua juventude por
meio de uma compensação imaginária excessiva. Nascido em Viena
em 1885, ingressa em 1906 no regimento apelidado “Os dragões de
Moisés”, tal era o número de soldados judeus. Em 1907 é feito cabo,
mas reformado três meses depois por incapacidade para
transportar as armas. Embarca em 1909 em Brême e, ao
Debruçou-se sobre o lobo para lhe dar um beijo. Ficou um
6
J.-P. Gueno; Y. Laplume (dir.), Paroles de poilus. Lettres et carnets de front, 1914-1918, Paris,
Librio, 1998, pp. 104-105.
7
F. Lignon, Erich Von Stroheim. Du ghetto au gotha, Paris, L’Harmattan, 1998, p. 9.
252
bocadinho admirada quando viu os olhos grandes e a orelha peluda
90
a sair da touca de banho, mas só quando o lobo abriu a boca é que
desembarcar em Nova Iorque dez dias depois, tinha ganho um
ela disse:
“von” entre Erich e Stroheim. Como qualquer emigrante pobre,
aceita qualquer pequeno trabalho, até ao dia em que, no ano de
― Avó, que grandes dentes tu tens! Tens uma dentadura
1914, entra para Hollywood como figurante. Está bem longe de ser
nova?
aquele belo cavalheiro, capitão de dragões!
O lobo respondeu:
No contexto cultural americano daquela época, qualquer
― É paRa melhoR te comeR, minha menina!
pessoa era convidada a descer ao real para aí realizar os seus
sonhos mais loucos. Erich, humilhado por ter sido reformado,
Gostava que o Artur tivesse gritado: “Capuchinho Vermelho!
refugiou-se num imaginário compensador, mas, na cultura
Pega num pau e bate no lobo, depressa. Faz-lhe frente, nós estamos
americana, pôde desencadear um processo de resiliência. Primeiro
contigo!” Eu teria gritado juntamente com ele. Mas ele não dizia
construiu, a partir de pormenores verdadeiros, o seu próprio mito.
nada. O canapé estremecia. Era o Artur que estava a tremer. Como
Stroheim acumulava aquelas precisões que fazem a verdade, o que
sempre, sustive a respiração e esperei que a menina do Capuchinho
lhe permitiu descrever a condecoração da Ordem de Elisabeth que
Vermelho fosse comida. Aquilo demorava muito tempo.
teria sido conferida à sua mãe e o ferimento que sofrera na Bósnia-Herzegovina.
O lobo saboreava-a e fazia muitos ruídos feios com a boca. E
eu sentia que o Artur estava a ficar enervado. De certeza que estava
Como todos os mentirosos, disfarça-se no papel de quem não
farto daquele lobo. E se ele lhe mandasse um murro na cara, como
suporta a mentira. O facto de ter encontrado um lugar onde pôde
fez à Amélia, daquela vez que ela o tratou por ouriço-cacheiro por
exprimir o seu imaginário permitiu à “imagem que dava nos seus
causa do cabelo curto!? De repente senti que ele ia abrir os olhos
filmes tornar real e verdadeira a pessoa que ele desejava ser.”8
como tinha dito que faria. O lobo iria comê-lo! Depois de uma avó
Gostava muito de contar que, quando Goebbels vira La grande
desenxabida, os lobos ainda podem comer um Capuchinho
illusion em 1937, como bom conhecedor do exército, teria
exclamado: “Mas nós nunca tivemos oficiais deste género!”, e um
Vermelho delicioso, um Artur com óculos e até uma menina
espectador ter-lhe-ia respondido: “Pior para vocês!”. Esta anedota
rechonchuda como eu…Então gritei.
permitia a Stroheim desarmar os críticos. A transformação do
― ARTUR! NÃO! ― e atirei-me a ele para impedir que
pequeno judeu real no aristocrata oficial que sonhara, permitiu-lhe
abrisse os olhos.
tornar-se num monstro sagrado. Noutro contexto sócio-cultural,
O Artur deu um salto como se tivesse sido mordido por uma
8
91
F. Lignon, op. cit., pp. 27 e 324.
253
poder-se-ia imaginar que a mitomania de Stroheim teria
serpente. Então eu abri os olhos. Ainda bem que a vovó teve tempo
provavelmente evoluído mal.
de voltar a transformar-se em avó. O Artur estava com a cabeça
escondida debaixo de uma almofada e gritava:
Tal exemplo também permite afirmar que, sem adoradores
de mitos, não haveria mitómanos, visto que as histórias que nos
― Nãããão! Nãããão!
contam correspondem aos eventos que apreciamos. Os mitómanos,
A vovó não parecia admirada e disse num tom de voz muito
ao transformarem a realidade, estão a falar de nós. As suas belas
meigo:
histórias elogiam os nossos desejos mais extravagantes. A
cumplicidade deliciosa entre o mitómano e os seus adoradores
― Clac! Clic! Acabou-se o perigo. Podem abrir os olhos. Clic!
explica o elevado número de pessoas que, no século do
Clac!
romantismo, diziam ser Luís XVII, a quantidade de czarinas após a
Então, o Artur correu disparado para o corredor. Queria ir
revolução russa de 1917 e o número espantoso actual de médicos
embora, tremia todo e devia estar a ver tudo desfocado porque os
resistentes e até de sobreviventes de Auschwitz.
óculos tinham voado. A vovó foi encontrá-los junto do telefone.
Já que a ficção do mitómano lhe permite, com o nosso
Quando quis aproximar-se dele, o Artur gritou:
acordo, ocupar um lugar de sonho numa sociedade desesperada,
ele conclui que o seu imaginário modificou o real e, por isso, sente-
― NÃO!
-se melhor. Antes, experimentava uma imensa vergonha por causa
― Artur, não podes ir assim para a rua sem óculos, é
da importância que atribuía ao olhar dos outros. Mas tudo mudou
perigoso ― disse-lhe ela. ― Espera, vou endireitar-tos, estão todos
na representação do real e nas interacções que essa imagem
torcidos.
provoca. Compôs o seu retrato, uma identidade narrativa que o
personaliza e o acalma, a ponto de, no momento de contar a sua
Depois daquilo, ele bem deve ter visto que a minha avó era
história-ficção, ser de uma simplicidade e de uma modéstia
uma bruxa boa porque ela devolveu-lhe os óculos arranjados,
deslumbrante.
dentro duma caixa com bombons. Mas ele fazia um sorriso forçado.
Ainda não estava calmo. Nem pegou num único bombom!
Bem, de vez em quando, não pode evitar confessar que tal
identidade é apenas uma história, mas é-lhe impossível renunciar a
Encostado contra a porta, só queria ir embora. No dia seguinte
um tal benefício, porque o imaginário mítico dos indivíduos e dos
disse-me, na escola:
grupos muda a maneira de sentir a realidade. A ficção tem um
― A tua avó é perigosa!
grande valor relacional, porque a história liga o narrador ao seu
254
92
Aquilo fez-me rir.
ouvinte: “O mitómano mente como respira, porque, se não
mentisse, já não respiraria”9; ele não tem outra vida. O imaginário
― Dizes isso porque tiveste medo, Artur.
colectivo não se organiza de modo diferente. Quando um grupo é
― Não, eu não tive medo, mas a tua avó é completamente
humilhado ou se sente desesperado, inventa uma bela história
maluca.
trágica e gloriosa para unir os seus membros e recuperar a sua
auto-estima ferida. Sendo a ficção feita de pormenores verdadeiros,
― Se voltas a dizer isso, Artur, deixamos de ser amigos.
é preciso agora provocar o real para provar que a quimera está viva.
― A tua avó é maluca, idiota, doida varrida.
Jorge é um pequeno salvadorenho de 8 anos. O pai emigrou
― Acabou, Artur, deixamos de ser amigos.
para os Estados Unidos e a mãe desapareceu quando ele tinha 4
Eu tinha vontade de chorar. Fui para o fundo do recreio, e eis
anos. Foi encontrado a vaguear pelas ruas, magro, apático e preto
que Íris, a magricela, apareceu. Anda quase sempre sozinha porque
de sujidade. Uma instituição religiosa acolheu-o, lavou-o,
é nova, e quem fala com ela diz que é estranha. É verdade que às
alimentou-o, sem lhe dizer uma única palavra, de tal maneira as
irmãs estavam saturadas. Jorge adaptou-se a este meio sem
vezes usa palavras esquisitas que fazem rir o Sr. Monjol, o nosso
palavras. Retomou um desenvolvimento muito lento, até ao dia em
professor. O ar triste da Íris transformou-se imediatamente num
que um grupo de soldados tentou raptá-lo à saída da igreja para o
sorriso, e correu para mim.
levar para a guerra. A criança resistiu e conseguiu fugir. Mas, a
― Magali (que sou eu), queria pedir-te uma coisa.
partir desse dia, pôs-se a sonhar em voz alta. À noite revia, no
― Diz lá.
decurso dos sonhos involuntários, os devaneios que inventara
durante o dia. Contava as atrocidades que presenciara e admirava-
Ela hesitava, parecia que, de repente tinha ficado tímida!
-se de não sofrer com isso.
Depois lá se decidiu:
Estranho bem-estar, porque os adultos choravam e entravam
― Será que um dia podias fazer-me o obséquio de me
em pânico, e a criança parecia calma. Não podia saber que a
apresentares à tua avó?
dissociação entre a memória do trauma e o embotamento da
afectividade é um sintoma clássico de psico-traumatismo. Julgava-
― Fazer-te o obséquio?
-se mais forte do que os outros e esse erro protegia-o. Criou a sua
Eu estava tão admirada que não sabia o que responder. Ela
imagem de super-homem. Afirmava que, de um só salto, podia
julgou que eu recusava. Estava com um ar mesmo desiludido.
9
93
G. Maurey, Mentir. bienfaits et méfaits, Bruxelles, De Boeck Université, 1996, p. 123.
255
escalar montanhas, que a sua força era tal que podia adivinhar
― Por favor, mostra-me a tua avó, nem que seja só de longe.
todos os pensamentos e matar com o olhar os maus que lhe
Anseio por ver a tua Avó-Lobo! Gostava tanto de ver uma bruxa a
quisessem mal. As religiosas da instituição, ao estabelecerem uma
sério! Sabes, é que sou uma especialista no assunto, mas nunca vi
relação entre a tentativa de rapto e aqueles curiosos discursos,
nenhuma autêntica, e o maroto do Artur tem razão. Não vale a
escutavam-no suspirando, mas os visitantes estavam convictos que
pena termos ilusões, a senhora da loja dos animais não tem nada
se tratava de um esquizofrénico.
de bruxa e os porcos da Índia que lá tem são animais verdadeiros.
Foi nessa época que Jorge começou a pôr à prova a sua
Vais apresentar-me a tua Vovó-Lobo?
mitomania para comprovar que dizia a verdade. Desde que
inventava as suas histórias incríveis, a criança andava melhor.
Janine Teisson
Mamy-Loup
Arles, Actes Sud Junior, 2003
(Tradução e adaptação)
Tinha auto-confiança, sentia-se segura, mas sobretudo estabelecia
relações humanas, porque finalmente tinha belas histórias para
contar. Por vezes tinha dúvidas, é claro, mas nesses instantes de
incerteza em que o real se impunha, sentia o gelo a fechar-se
dentro de si e a isolá-lo do mundo. Tinha de provar a si mesmo que
era, de facto, um super-homem. Tentou então o diabo para o pôr à
prova. Escalou a parede de um prédio, de mãos nuas, para melhor
sentir as asperezas, mergulhou no turbilhão de uma corrente para
se deixar arrastar pelas vagas, atravessou-se no meio do trânsito
para passar. De cada vez que escapava vivo, sentia-se mais contente
porque tinha a prova de ser invencível. Ficava melhor. Diziam que
era doido.
Toda a história a respeito de alguém constrói uma identidade
narrativa e pode tornar-se um factor de resiliência, se o meio
familiar e cultural lhe der um estatuto, lhe proporcionar uma rede
de encontros onde possa encontrar uma expressão de partilha.
Quando se chega a uma situação extrema, quando se foi “expulso”
da normalidade, várias estratégias se tornam possíveis. Se o golpe
256
94
foi demasiado grande, a pessoa sente alívio em deixar-se ir para a
morte. Mas se o ferimento não nos destruiu completamente e se as
A LUTA PELO SENTIDO
forças internas absorvidas no decurso das primeiras ligações nos
dão ainda alento para nos ligarmos aos outros, a reintegração na
normalidade depende então do ambiente afectivo, social e cultural.
Se queremos viver não somente de momento a momento,
mas na plena consciência da existência, então a nossa maior
necessidade e a nossa mais difícil realização é encontrarmos um
sentido para a vida. É sabido que muitos perderam a vontade de
Boris Cyrulnik
Le murmure des fantômes
Paris, Éditions Odile Jacob, 2003
(Tradução e adaptação)
viver e que cessaram até de tentar fazê-lo porque a vida deixou de
fazer sentido para eles. A compreensão do sentido da vida de cada
um não se adquire de repente, em determinada idade, nem mesmo
quando já tivermos chegado à maturidade cronológica. Pelo
contrário, a maturidade psicológica consiste na aquisição de uma
segura compreensão do que pode ou deve ser o sentido da nossa
vida. E esta realização é o resultado final de uma longa evolução:
em cada estádio procuramos, e temos de encontrar, um mínimo de
sentido, adequado à forma como o nosso espírito e a nossa
compreensão já evoluíram.
Hoje, como em tempos idos, a mais importante e a mais
difícil tarefa na educação de um filho é ajudá-lo a encontrar um
sentido para a vida. Para se conseguir isso são precisas muitas
experiências de crescimento. Enquanto se desenvolve, a criança
tem de aprender, passo a passo, a compreender-se a si própria; com
isso ficará apta a compreender os outros e, eventualmente, a
relacionar-se com eles por vias mutuamente satisfatórias e
significativas.
95
257
Como educador e terapeuta de crianças com severas
perturbações, a minha principal tarefa era restituir-lhes um sentido
para as suas vidas. Se as crianças são educadas de forma a que a
vida para elas tenha significado, não precisam de uma ajuda
especial. Vi-me confrontado com o problema de deduzir quais as
experiências que, na vida de uma criança, eram mais adequadas
para promoverem a sua capacidade para encontrar um sentido na
vida; para dotar a vida em geral de maior sentido. Relativamente a
esta tarefa, nada é mais importante do que o impacto dos pais e
dos que tomam conta das crianças; a seguir, em importância, vem a
nossa herança cultural, quando transmitida à criança de forma
acertada. Quando as crianças são pequenas, é a literatura que da
melhor maneira contém essa informação.
Sendo assim, tornei-me profundamente desgostoso com
muita da literatura destinada a desenvolver o espírito e a
personalidade da criança, porque não estimula nem alimenta os
recursos de que ela mais necessita para enfrentar os difíceis
problemas interiores. A esmagadora maioria da “literatura infantil”
tenta divertir ou informar, ou ambas as coisas. Mas a maior parte
destes livros são tão frívolos de substância que muito pouco de
significativo se aprende com eles. A aquisição de habilidades,
incluindo a capacidade de leitura, perde o valor quando o que se
aprende não acrescenta nada de importante à nossa vida.
Nestes e noutros aspectos, em toda a “literatura infantil”,
com raras excepções, nada é mais enriquecedor e satisfatório, quer
para a criança quer para o adulto, do que o popular conto de fadas.
É verdade que, a um nível inicial, os contos de fadas ensinam
96
pouco sobre as condições específicas da vida da sociedade moderna
de massas; estes contos foram criados muito antes desta sociedade
aparecer. Mas podemos aprender mais coisas com estes contos –
sobre os problemas interiores dos seres humanos e as soluções
acertadas para as suas exigências, do que em qualquer outro tipo
de história que esteja dentro do âmbito da compreensão das
crianças.
Exactamente
porque
a
sua
vida
é
muitas
vezes
desconcertante, a criança precisa mais do que ninguém que lhe
dêem a possibilidade de se compreender a si própria neste
complexo mundo que vai enfrentar. Para poder fazê-lo, tem de ser
ajudada a criar um sentido coerente no meio do turbilhão dos seus
E SE A LUA PUDESSE FALAR…
sentimentos. A criança precisa de ideias sobre como pôr a casa
interior em ordem e, nessa base, conseguir dar um certo sentido à
Um par de sapatos debaixo da cadeira. Uma grande janela
sua vida. Precisa ― e quase não é necessário dar ênfase a isto ― de
uma educação moral em que, com subtileza, se lhe transmitam as
aberta. A luz do dia despede-se.
vantagens de um comportamento moral, não através de conceitos
éticos abstractos mas através do que parece palpavelmente
E se a Lua pudesse falar…
acertado e, portanto, com sentido para ela.
Ora, os contos de fadas são portadores de mensagens
… contaria histórias da noite que desliza furtiva
importantes para o psiquismo consciente, pré-consciente ou
pela floresta,
inconsciente, qualquer que seja o nível em que funcionem. Lidando
e de uma lagartixa que se apressa a ir para casa jantar.
com problemas humanos universais, especialmente com os que
preocupam o espírito da criança, as histórias falam ao seu ego
Alguém murmura uma canção. Ouve-se o tiquetaque do
nascente, encorajando o seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo,
relógio. Uma luz acende-se.
aliviam tensões pré-conscientes ou inconscientes. Quanto mais eu
tentava compreender porque têm estas histórias tanto êxito no
97
259
enriquecimento da vida interior da criança, mais intuía que elas,
num sentido mais profundo do que qualquer outra leitura,
E se a Lua pudesse falar…
“atingem” a criança no seu núcleo psicológico e emocional. Falam
… contaria histórias das estrelas que brilham no céu,
das severas tensões interiores de uma maneira que a criança
e da luz de uma fogueira perto da árvore.
inconscientemente compreende e ― sem menosprezar as sérias
lutas internas que o crescimento implica ― proporcionam
exemplos de soluções, tanto temporárias como permanentes, para
O pai abre um livro e folheia-o: uma história desenrola-se
as dificuldades mais prementes.
como um tapete mágico.
A minha esperança é de que uma compreensão apropriada
dos méritos ímpares dos contos de fadas possa levar pais e
E se a Lua pudesse falar…
professores a conferir-lhes outra vez o papel central que eles
desempenharam durante séculos na vida da criança.
… contaria histórias da areia soprada pelo vento,
e de nómadas ocultos atrás das dunas.
Os contos de fadas e o dilema existencial
Sobre a mesa-de-cabeceira, um copo de vidro, um barco
Na criança ou no adulto, o inconsciente é um poderoso
de madeira e uma estrela-do-mar.
determinante do comportamento. Quando o inconsciente é
reprimido e ao seu conteúdo é negada a consciencialização, então o
E se a Lua pudesse falar…
espírito consciente da pessoa acabará finalmente por ficar em parte
esmagado pelos derivativos desses elementos inconscientes. Ou
… contaria histórias das ondas que rebentam na praia,
então, ela ver-se-á forçada a manter um controle tão rígido e
das conchas, e de um caranguejo sonhador…
compulsivo sobre os mesmos que a sua personalidade pode vir a
ser gravemente afectada. Mas quando se permite que esse material
inconsciente, atinja em certa medida a consciência, e possa ser
Na prateleira, uma caixa de música liberta a sua melodia.
elaborado através da imaginação, o seu potencial para fazer o mal
Um vira-vento rodopia. Sentado numa cadeira, um coelho
― a nós próprios e aos outros ― torna-se muito reduzido; algumas
escuta.
260
das suas forças podem então ser dirigidas para fins mais positivos.
98
Contudo, a crença paternal dominante é que a criança tem de
E se a Lua pudesse falar…
ser poupada àquilo que mais a perturba: as suas angústias sem
forma e nome, as suas fantasias caóticas, enfurecidas ou mesmo
… contaria histórias do vento a embalar uma árvore,
violentas. Muitos pais acreditam que só a realidade consciente ou
e de pássaros abrigados nos ninhos.
as imagens agradáveis que satisfaçam os desejos é que devem ser
oferecidas à criança ― que ela deve ser exposta somente ao lado
belo das coisas. Porém, um tal alimento unilateral nutre o espírito
A mãe põe o coelho nos braços da menina. Aconchega-a e
também só unilateralmente, e a vida real não é bela na totalidade.
dá-lhe um beijo.
Há uma recusa generalizada em deixar as crianças saberem
E se a Lua pudesse falar…
que a fonte de muito do que vai mal no mundo tem a ver com a
nossa própria natureza ― com a propensão que todo o homem
tem para agir agressivamente, associalmente, egoistamente, por
… contaria histórias de uma gruta num local longínquo,
raiva ou angústia. Em vez disso, queremos que os nossos filhos
e de uma leoa a lamber os filhotes.
acreditem que todos os homens são bons por natureza. Mas as
crianças sabem que eles nem sempre são bons; e muitas vezes,
Os olhos estão quase a fechar-se. O silêncio envolve a
mesmo quando o são, prefeririam não o ser. Isto vem contradizer o
noite. Da escuridão nasce um sonho cheio de cores.
que os pais lhes dizem, o que faz com que a criança se veja a si
própria como um monstro.
E se a Lua pudesse falar…
A cultura dominante deseja aparentar, especialmente no que
diz respeito às crianças, que o lado sombrio do homem não existe,
… contaria histórias de uma criança que dorme,
afirmando acreditar num “melhorismo” optimista. A própria
tranquila e feliz.
psicanálise é encarada como tendo por fim tornar a vida mais fácil
– mas isso não foi a intenção do seu fundador. A psicanálise foi
E murmuraria, muito baixinho:
criada para habilitar o homem a aceitar a natureza problemática da
― Boa noite!
sua vida sem ser vencido por ela ou sem se entregar à fuga
Kate Banks
Wenn der Mond sprechen könnte
Hamburg, Verlag Friedrich Oetinger, 2000
(Tradução e adaptação)
sistemática. É esta exactamente a mensagem que os contos de
fadas trazem à criança, de múltiplas formas: que a luta contra
99
261
graves dificuldades na vida é inevitável, faz parte intrínseca da
existência humana ― mas que se o homem se não furtar a ela, e
com coragem e determinação enfrentar as dificuldades, muitas
vezes inesperadas e injustas, acabará por dominar todos os
obstáculos e sair vitorioso.
Os contos modernos para crianças evitam sobretudo os
problemas existenciais, ainda que estes representem questões
cruciais para todos nós. A criança precisa muito especialmente de
sugestões, em forma simbólica, sobre como lidar com estes
obstáculos para chegar sem riscos à maturidade. As histórias
“inócuas” não mencionam a morte ou a velhice, nem os limites da
nossa existência ou o desejo de uma vida eterna. O conto de fadas,
pelo contrário, confronta-nos, sem rodeios, com as exigências
básicas do homem.
Por exemplo, muitos contos de fadas começam com a morte
da mãe ou do pai; nestes contos, a morte cria problemas
angustiantes, como a própria morte ou o medo dela o fazem na
vida real. Outros contos falam de um pai idoso que decide que
chegou a altura de a nova geração tomar as rédeas. Contudo, antes
que isso aconteça, o sucessor tem de provar ser capaz e digno. O
conto dos irmãos Grimm As três penas começa assim: Era uma vez
um rei que tinha três filhos… Quando o rei já estava velho e fraco,
pensando no seu fim, não sabia qual dos filhos deveria herdar o
trono. Para se decidir, o rei dá aos filhos uma tarefa difícil; o filho
que melhor a desempenhar será rei depois da minha morte.
É característico dos contos de fadas expor um dilema
existencial, concisa e directamente. Isto permite que a criança
100
enfrente o problema na sua forma mais essencial, ao passo que um
enredo mais complexo seria para ela mais confuso. O conto de
fadas simplifica todas as situações. As suas personagens são
COSMICIDADE DA INFÂNCIA
definidas com clareza e os pormenores, a não ser que sejam muito
importantes, são eliminados. Todos os caracteres são mais típicos
do que invulgares. Contrariamente ao que acontece nos modernos
contos para crianças, tanto a maldade como a virtude encontram-
Quando sonha, na sua solidão, a criança tem acesso a uma
Em
vida sem limites: o seu sonho não funciona como uma fuga, mas
praticamente todos eles, o bem e o mal aparecem sob a forma de
antes como um impulso, como um voo. Estes momentos de
personagens e acções, pois o bem e o mal são omnipresentes na
solidão, estes minutos aparentemente vazios, estes instantes que
vida de cada um de nós. Aliás, a propensão para ambos encontra-se
conhecem o cinzento dos abismos, são oportunidades para abrir os
em cada ser. É esta dualidade que coloca um problema moral e que
braços ao mundo. A criança torna-se um poço de curiosidade e
-se
omnipresentes
nos
contos
de
fadas
tradicionais.
exige uma luta para a resolver.
arde nela o desejo de compreender o segredo das coisas. Um desejo
O mal não deixa de ter os seus atractivos ― simbolizados
pelo poderoso gigante ou pelo dragão, pelo poder da bruxa, pelo da
astuta rainha em Branca de Neve ― e muitas vezes está
temporariamente em ascensão. Em muitos contos de fadas o
usurpador consegue, por algum tempo, apoderar-se do lugar que,
imóvel.
São os contos que reactivam esta infância, ao mesmo tempo
que se alimentam dela. Muitas histórias maravilhosas revelam esta
infância que nos procura e que nós, por vezes, procuramos.
por direito, pertence ao herói – como as maldosas irmãs n’A Gata
Reencontrar a infância não é reencontrar a criança que
Borralheira. Não é o facto de o malfeitor ser castigado no fim da
verdadeiramente fomos, mas ir além das nossas próprias
história que faz com que os contos de fadas sejam uma experiência
recordações, como se passássemos para o lado de lá de um espelho.
de educação moral, ainda que isso também seja uma parte da
Agir como se as nossas memórias autênticas e datáveis fossem
questão.
outras tantas “recordações-espelhos”, que mascaram uma memória
Nos contos de fadas, como na vida, o castigo (ou o medo
não menos autêntica, mas intemporal, intempestiva, que se
dele) é somente uma dissuasão limitada para o crime. A convicção
desloca, qual facho iluminado, numa noite que pertence à
de que o crime não compensa é uma dissuasão muito mais eficaz, e
humanidade, mesmo se continua a ser intimamente nossa.
é por isso que nos contos de fadas os maus perdem sempre. Não é o
101
Docemente, as imagens dos contos animam-se e fazem-nos
263
sinal.
facto de a virtude ganhar no fim que promove a moralidade, mas
Mesmo uma criança que ouve um conto pela primeira vez
reage sempre com um sorriso de reconhecimento face ao que ouve.
Há qualquer coisa dentro dela que se procurava e que se
encontrou. A sua curiosidade sem limites descobre situações à sua
medida, e tanto a criança como o conto derivam de uma fonte!
A criança provém de tantas fontes, escreve Bachelard, que
sim o facto de que o herói é extremamente simpático para a
criança, a qual se identifica com ele em todas as suas lutas. Por
causa dessa identificação, a criança imagina que sofre com o herói,
que vive todas as suas provações e tribulações, triunfando com ele
quando a virtude triunfa também. A criança faz tais identificações
por si própria, e são as lutas interiores e exteriores do herói que
gravam nela a moralidade.
seria inútil tentar delinear quer a sua geografia quer a sua história. É
As personagens dos contos de fadas não são ambivalentes ―
como se existisse uma confluência entre as perguntas infantis e os
não são boas e más ao mesmo tempo ― como na realidade o
contos. A criança é um excesso: fluxo de felicidade, de lágrimas, de
somos. Mas uma vez que a polarização domina o espírito da
exclamações, de observações e comentários, de personagens, de
criança, ela domina também os contos de fadas. Uma pessoa é boa
interesses que ultrapassam a família e fazem esquecer os pais. As
ou má, sem meio-termo. Um irmão é estúpido, outro inteligente.
encostas da infância desenham um mapa do mundo.
Uma irmã é virtuosa e trabalhadora, a outra, vil e preguiçosa. Uma
Os contos são um excesso de invenções que dizem respeito
ao ódio, à felicidade, ao amor, à morte, à fuga, ao reencontro, mas
é bela, as outras feias. Um dos pais é todo bondade, o outro,
maldade. A justaposição de personagens opostas não tem por fim
dar ênfase ao “bom” comportamento, como seria o caso nos contos
também à terra e à natureza das coisas. Nos contos, a infância é
de advertência. (Há alguns contos de fadas amorais em que o bem
sempre descrita como algo que foi reencontrado: eles despertam a
e o mal, a beleza e a fealdade não têm qualquer papel.)
nossa capacidade de retorno à floresta profunda, aos poços de
minas abandonadas, por entre assustadores blocos de rocha.
Permitem-nos voltar aos poços da nossa memória, feitos de
histórias contadas e de sonhos infantis.
Mas estas personagens polarizadas permitem à criança
compreender facilmente a diferença entre ambos os pólos, coisa
que ela não poderia fazer facilmente se os protagonistas fossem
desenhados
mais
próximos
da
realidade,
com
todas
as
O Runenberg, um conto feérico de Ludwig Tieck, fala deste
complexidades que caracterizam as pessoas reais. As ambiguidades
desejo irreprimível de encontrar algo de maravilhoso a todo o
têm de esperar até que se tenha estabelecido uma personalidade
custo, algo que se situe fora do tempo, enquanto vamos
relativamente firme com base em identificações positivas. Só então
desvendando os segredos do universo graças aos minerais e às
264
é que a criança tem bases para compreender que há grandes
102
diferenças entre as pessoas e que, portanto, tem de fazer uma
pedras silenciosas, cheias de segredos. Este conto fala-nos do jovem
opção sobre aquilo que quer ser. Esta decisão básica, sobre a qual
Christian que, um dia, abandona o pai, os jardins e o castelo onde
todo o desenvolvimento posterior da personalidade será erigido, é
morava, para ir viver em plena floresta. Não é necessário que o
facilitada pela polarização dos contos de fadas.
conto se destine especialmente às crianças, ou que tenha sido
As crianças de hoje já não crescem na segurança de uma
grande família ou de uma comunidade bem integrada. Assim, mais
ainda do que no tempo em que foram “inventados” os contos de
fadas, é importante fornecer à criança moderna imagens de heróis
que têm de se lançar no mundo sozinhos e que, apesar de não
saberem à partida como é que as coisas se vão resolver, encontram
lugares seguros, seguindo em frente com profunda confiança
interior.
escrito para crianças, para que nele vejamos os núcleos da infância.
Tal como outros românticos, Tieck faz vir à superfície da
narrativa imagens que nos lembram que a criança solitária mora
em nós e no mundo. Essa é a parte anónima da infância, aquela que
vibra com os silêncios da floresta, com as montanhas banhadas
pelo luar, e com as vozes obscuras da terra.
Esta tranquilidade sempre inquieta que marca a infância, as
O herói dos contos de fadas tem um percurso solitário
mil perguntas que incubam sob a pele macia de uma criança, bem
que
como o seu olhar penetrante, são bem diferentes das questões
frequentemente se sente isolada. O herói recebe ajuda porque está
“Quem sou?”ou “De onde venho?”, às quais pensamos poder dar
em contacto com coisas primitivas ― uma árvore, um animal, a
uma resposta rápida ao invocar as figuras paternas ou o estado
natureza ― tal como a criança se sente em contacto com estas
adulto. As perguntas infantis, facilmente transformadas pelos
coisas, mais do que a maioria dos adultos. O destino destes heróis
ouvidos adultos em perguntas pré-fabricadas, revelam uma
convence a criança de que, como eles, se pode sentir abandonada
admiração que se repercute no universo inteiro. A criança é
no mundo, tacteando no escuro; mas, como eles, no decorrer da
espontaneamente filósofa, metafísica mesmo. É espontaneamente
durante
uns
tempos,
tal
como
a
criança
moderna
sua vida será guiada passo a passo, e receberá ajuda quando
necessário. Hoje, mais do que noutros tempos, a criança precisa da
confiança oferecida pela imagem do homem isolado, que todavia é
capaz de estabelecer relações significativas e compensadoras com o
astrónoma e física, ervanária e mineralogista, coleccionadora e
investigadora. No seio da infância existe uma predisposição
enciclopédica selvagem que revela amor pelo mundo.
Como pôde Freud reduzir o interesse intelectual da criança a
mundo que o rodeia.
Ao mesmo tempo que distrai a criança, o conto de fadas
elucida-a sobre ela própria e promove o desenvolvimento da sua
103
uma simples curiosidade sexual e a uma vontade, algo voyeurista,
de conhecer a forma como nascem os bebés? Diante de um mundo
265
e de uma natureza apaixonantes pela sua complexidade e variedade
personalidade. Tem tantas significações, em tantos níveis
de manifestações, não podemos reduzir uma pequena cabeça
diferentes, enriquece a existência da criança de tantas maneiras,
inquisidora a um simples olhar pelo buraco da fechadura. Os
que nenhum outro livro é capaz de igualar a quantidade e
contos de Tieck, de Arnim, e muitos dos contos dos Grimm são
diversidade de contributos que estes contos trazem à criança. A
compostos por elementos que nos falam da natureza e dos seus
maioria dos contos de fadas teve origem em períodos em que a
prodígios. Os núcleos de infância, que são simultaneamente
perguntas e respostas, são fundamentalmente órfãos e celibatários,
selvagens e reservados.
religião era a parte mais importante da vida; assim, eles lidam
directamente, ou por dedução, com temas religiosos. As histórias d’
“As Mil e Uma Noites” estão cheias de referências à religião
islâmica. Muitos contos de fadas ocidentais têm conteúdo religioso;
Nos Elfos, a menina só podia brincar e comunicar com o elfo
mas a maior parte destas histórias é hoje desprezada e
quando estava longe da casa paterna. Félix e Christlieb só
desconhecida do grande público, porque, para muitos, estes temas
encontram a Criança Misteriosa no fundo dos bosques. O pequeno
religiosos já não despertam, universal e pessoalmente, associações
Christian tornou-se um ornitólogo solitário para poder viver nos
significativas.
bosques. Estas imagens falam todas da necessidade de afastamento
O esquecimento em que caiu O filho de Nossa Senhora, uma
para que os núcleos da infância se revelem. Uma criança pode
das mais lindas histórias dos irmãos Grimm, é disso exemplo.
crescer sem nunca encontrar a Criança Misteriosa. A pressão
Começa exactamente como em Hansel e Gretel: Junto de uma
familiar pode ser tal que a criança se infantiliza e nunca enfrenta as
grande floresta vivia um lenhador com a sua mulher. Tal como em
grandes questões que nascem dos sonhos. A rigidez da educação
Hansel e Gretel, o casal é tão pobre que não pode alimentar-se a si
pode bloquear tudo o que na criança é verdadeiramente dela, a
próprio nem à filha de três anos. Comovida com a sua desgraça, a
predisposição que nutre pela errância e pelos sem-família, não pelo
Virgem Maria aparece-lhes e oferece-se para tomar conta da
ateísmo mas por uma espécie de animismo sem fronteiras.
pequena, que leva consigo para o Céu. A pequena vive uma vida
maravilhosa até à idade dos catorze anos. Nessa altura, como em
Tieck faz mais pela infância ao escrever histórias que não são
variadas versões de Barba Azul, a Virgem confia à pequena as
“para crianças” que todos os gestores de um pseudo-maravilhoso
chaves de treze portas, doze das quais ela pode abrir, mas não a
infantilizante. De igual modo, Bachelard, na sua Poétique de la
décima terceira.
Rêverie, faz mais pela infância do que mil tratados de psicologia
infantil ou obras sobre a psicanálise das crianças. Quando
A pequena não resiste à tentação: mente e, em consequência,
é mandada de volta para a Terra, muda. Sofre provações severas e
meditamos sobre a criança que fomos, para além de toda a história
266
104
está prestes a ser queimada viva quando, desejando confessar a sua
da família, depois de termos passado a zona dos pesares e todas as
má acção, recupera a voz para o fazer. É-lhe dada então pela
miragens da nostalgia, atingimos uma infância anónima, um
Virgem a felicidade para toda a vida. A lição da história é esta: uma
autêntico núcleo de vida, a vida humana primordial. Esta vida está
voz habituada a mentir só nos leva à perdição; é melhor sermos
em nós e em nós permanece. Há um sonho que a ela nos conduz. A
privados dela, como a heroína da história. Mas uma voz habituada
recordação apenas reabre a porta do sonho.
a arrepender-se para admitir os erros e dizer a verdade, redime-nos. Como não é possível saber exactamente em que idade um
Esta comunicação primeira com as coisas e os segredos torna
determinado conto de fadas é importante para uma determinada
a ciência e a poesia sinónimas. Mais tarde, todas as imagens, todas
criança, não podemos decidir qual dos muitos contos deverá ser
as ideias que os contos encerram serão esquecidas. Talvez
contado em determinado tempo ou porquê. Só a criança pode
regressemos a elas em sonho, como que em segredo. Mas não
determinar isso, através da força das emoções com que reage ao
deveríamos, como indica Bachelard, conceder tempo, espaço e
que um conto evoca no seu consciente ou inconsciente.
meios a esta infância anónima? Um pouco como a doce mãe de
Naturalmente, os pais começarão por contar ou ler ao filho
Elfriede, que sabia que devia deixar à filha a maior liberdade
um conto de que eles próprios gostaram em pequeninos ou de que
possível nos diálogos com o elfo e em todos os jogos marginais de
gostam ainda hoje. Se a criança não mostra entusiasmo pela
que Elfriede gostava. Ou como o pai de Félix e de Christlieb, que
história, isso significa que os motivos e temas não evocaram nela
respeitava a relação dos seus filhos com a Criança Misteriosa, e que
uma resposta significativa nessa altura da sua vida. Será então
acaba por se lembrar que também ele vivera – outrora – uma
melhor contar-lhe outra história na noite seguinte. Depressa se
relação semelhante.
saberá que determinada história se tornou importante para ela,
quer pela sua resposta imediata à mesma, quer por pedir que lha
contem mais e mais vezes. Se tudo correr bem, o entusiasmo da
criança por essa história tornar-se-á contagioso e a história será
importante para os pais, quanto mais não seja porque faz tanto
Assim, tal como o sonho, os contos e o espírito de efabulação
são um meio de que os núcleos da infância se servem para se
desenvolverem, para reemergirem e para perpetuarem a dimensão
cósmica da infância.
sentido para o filho.
Finalmente, virá o dia em que a criança retirou já tudo
quanto podia da sua história preferida, porque os problemas que a
tinham feito procurar a história foram substituídos por outros, que
105
Pierre Péju
La petite fille dans la forêt des contes
Paris, Robert Laffont, 1997
(Tradução e adaptação)
267
encontram melhor expressão num outro conto. Ela pode então
perder, temporariamente, interesse por este conto, e gostar muito
mais de outro. Para contar contos de fadas é sempre melhor seguir
a indicação da criança.
Mesmo que os pais adivinhem correctamente as razões por
que o filho se envolveu emocionalmente com determinado conto,
deve ser guardada só para si essa descoberta. As experiências e as
reacções de uma criança são extremamente importantes e em
grande parte inconscientes, devendo permanecer assim até que ela
chegue a uma idade em que uma compreensão mais madura seja
possível. É sempre inoportuno interpretar os pensamentos
inconscientes de uma pessoa, tornar consciente o que ela deseja
conservar pré-consciente, e isto é especialmente verdade no caso
de uma criança. É tão importante para o bem-estar da criança
sentir que os seus pais compartilham as suas emoções, através do
gosto pelo mesmo conto, como sentir que os seus pensamentos
íntimos não são conhecidos deles até que ela se decida a revelá-los.
Além disso, explicar a uma criança por que razão um conto
de fadas é para ela tão cativante destrói o encantamento da
história, que depende em grande parte do facto de a criança não
saber ao certo porque ficou tão deliciada com ela. E com a perda
deste poder de encantamento, vai-se também o potencial da
história para ajudar a criança a lutar por si própria e resolver sem
ajuda o problema que, em sua opinião, deu sentido à história. As
interpretações dos adultos, por mais correctas que sejam, tiram à
criança a oportunidade de sentir que foi ela, sozinha, por ouvir e
ruminar repetidamente a história, que conseguiu resolver com
106
êxito uma situação difícil. Nós crescemos, encontramos o sentido
da vida e confiança em nós próprios por termos compreendido e
resolvido os nossos problemas pessoais, e não porque outros no-los
explicaram.
Os temas dos contos de fadas não são sintomas neuróticos,
algo que importa compreendermos de forma racional, para mais
depressa nos vermos livres deles. Esses temas são sentidos como
autênticas maravilhas pela criança, porque através deles se sente
compreendida e apreciada no seu âmago, nos seus sentimentos,
nas suas esperanças e angústias, sem que seja preciso trazer tudo
isso à superfície para ser investigado à luz crua de uma
racionalidade que ainda está para além da compreensão infantil.
Os contos de fadas enriquecem a vida da criança e apresentam-se
com uma qualidade de encantamento, exactamente porque ela não
sabe como é que as histórias produziram em si semelhante
prodígio.
INFÂNCIA E PALAVRA
No princípio, era o Verbo — pelo menos na minha infância,
toda caldeada pelo encantamento da palavra.
A palavra, lengalengada, d’a pintinha põe o ovo prà menina
papar todo — das brincadeiras com que se dava à criança a
Um punhado de magia: a vida adivinhada por dentro
consciência do rosto e das mãos, esta barba, barbadeira, esta boca,
comedeira, este nariz, narizete, estes olhos de pisquete, esta testa, de
A Menina do Capuchinho Vermelho foi o meu primeiro amor.
Sentia que se pudesse ter-me casado com ela, teria conhecido a
verdadeira felicidade. Esta afirmação de Charles Dickens indica que
ele, como incontáveis milhões de crianças por esse mundo fora,
giesta, este cabelinho, que não é loiro, foge, menina, que te estoiro!,
que terminavam, depois de corrido todo o rosto, com uma
sapatadinha na testa. Havia também o varre, varre, vassourinha, se
também foi encantado pelos contos de fadas. Mesmo já célebre,
varreres bem, dou-te um vintém, se varreres mal, nem um real — e,
Dickens reconheceu o impacto formativo que as fantásticas
pumba!, uma palmada na mão, porque, não sei porquê, se supunha
personagens e as diversas ocorrências dos contos tiveram nele e no
sempre que a vassourinha não varria a preceito.
seu génio criador. Exprimiu muitas vezes desprezo pelos que, em
Muito da minha predilecção era o serrobico, bico, bico, todo
nome de uma racionalidade desinformada e mesquinha, insistiam
107
269
feito de beliscõezinhos nas costas da mão, enquanto a lengalenga ia
em racionalizar, expurgar ou proscrever estas histórias, roubando
andando quem te deu tamanho bico? foi a velha chocalheira, que
assim às crianças as importantes contribuições que os contos de
anda lá pela ribeira a apanhar ovos de perdiz para o filho do juiz, que
fadas podem trazer às suas vidas. Dickens compreendeu que as
está preso pelo nariz — e era o nosso que se puxava no fim. Depois
imagens dos contos de fadas ajudam as crianças, mais do que tudo,
havia a palavra mimenta, tão doce e cheia de ternura! Inspirava-se
nos passarinhos e no perfume das maçãs: — Minha carricinha,
inquieta! Minha maçãzinha de pardo lindo. A noite trazia a palavra
na sua muito difícil e todavia importante e satisfatória tarefa: a
conquista de uma consciencialização mais madura que ponha
ordem nas pressões caóticas do seu inconsciente.
Durante a maior parte da história do homem, a vida
musical das últimas orações:
intelectual da criança (além das experiências mais imediatas no
Anjo da Guarda,
seio da família) dependia de histórias míticas ou religiosas e de
minha companhia,
contos de fadas. Esta literatura tradicional alimentava a imaginação
guardai minha alma,
da criança e estimulava a sua fantasia. Simultaneamente, uma vez
de noite e de dia.
que estas histórias respondiam às perguntas mais importantes da
A palavra-mistério de sons desconhecidos, que estabelecia a
ligação com o divino, ouvia-se no latim da missa: Dominus Tecum!
Sursum corda! E na ladainha: Turris eburnea, Stela Matutina…
criança, constituíam o principal agente da sua socialização. Mitos e
lendas religiosas (que com eles estão intimamente relacionados)
ofereciam material com o qual as crianças formavam os seus
conceitos sobre a origem e a finalidade do mundo e sobre os ideais
Quando tínhamos de ficar na cama, por sarampo ou
sociais que poderiam imitar. Tais eram as imagens do invicto herói
constipação, havia a palavra fascinante e narcisíaca dos contos de
Aquiles e do astuto Ulisses; de Hércules, cuja história mostrava que
fadas — Espelho meu, espelho meu, haverá no mundo alguém mais
não era indigno, mesmo para o mais forte dos homens, limpar a
belo do que eu? — e que podia tornar-se maléfica: — Quem isto
mais repugnante das cavalariças; de São Martinho, que cortou ao
ouvir e o for contar em pedra se há-de tornar!. Ou a palavra viva e
meio a sua capa para vestir um mendigo.
popular das histórias tradicionais, muito do gosto de minha mãe,
Nos contos de fadas, os processos internos são exteriorizados
cheias de mãos a abanar, sem eira nem beira, mas espertalhotes,
e tornam-se compreensíveis porque são representados por
capazes de comer as papas na cabeça dos reis e de casarem com as
personagens da história e pelas suas ocorrências. Por isso é que, na
princesas. Ai, como me lembro delas!
medicina tradicional hindu, um conto de fadas, que punha em jogo
o seu problema particular, era oferecido a uma pessoa
A palavra dos jogos tinha duas faces: uma de perder, outra de
270
108
psiquicamente perturbada, para meditação. Admitia-se que,
ganhar. Ferrum-fum-fum, ferrum-funfelho, quantas abelhas há no
através da contemplação da história, a pessoa perturbada seria
cortelho? Aqui vai uma barquinha carregadinha de aves, de abraços,
levada a uma visão da natureza do impasse que vivia na altura e
de beijos… Quando se perdia, por falta de resposta pronta, dava-se
entreveria
que
prenda e no fim recorria-se ao senhor juiz sentenciador, que
determinado conto contivesse sobre o desespero, as esperanças e
sentença se há-de dar ao dono desta prenda, seja ela de quem for?
a
possibilidade
da
sua
resolução.
Aquilo
os métodos de vencer as tribulações, permitia ao paciente
descobrir uma saída para a sua aflição e encontrar-se a si próprio, à
imagem do herói da história.
Mas a importância suprema dos contos de fadas para o
indivíduo em crescimento é qualquer coisa de diferente dos
Juiz que, às vezes, ordenava, romântica e comprometedoramente
que se perguntasse:
— Se o meu coração fosse um bosque, quem mandavas lá
passear?
ensinamentos sobre as formas correctas de viver neste mundo (esta
Mas menina não gosta de estar sempre quieta. Menina
sabedoria é bastante suprida pela religião, pelos mitos e pelas
corropia de roda. E a palavra das cantigas era dançante e anunciava
fábulas). Os contos de fadas não têm a pretensão de descrever o
o amor:
mundo tal como ele é nem aconselham o que cada um deve fazer.
Se o fizessem, o doente hindu seria levado a seguir um padrão de
comportamento imposto ― o que seria não só má terapêutica, mas
— Machada, minha machadinha,
quem te pôs a mão sabendo que és minha?
o contrário da terapia.
O conto de fadas é terapêutico porque o paciente encontra a
sua própria solução, contemplando o que a história parece conter a
seu respeito e a respeito dos seus conflitos interiores nesse
momento da sua vida. O conteúdo do conto escolhido não tem
Havia também a Condessa-condessinha, condessa-do-Aragão,
a que não dava as filhas nem por ouro, nem por prata, nem por
sangue de leão, nem por sangue de lagarta. O cavaleiro tinha de dar
provas, antes de poder dizer:
nada a ver com a vida exterior do doente, mas antes com os seus
— Estimo e estimarei,
problemas internos, que parecem incompreensíveis e, portanto,
sentada numa almofada,
insolúveis. O conto de fadas não se refere claramente ao mundo
exterior, ainda que comece de forma bastante realista e contenha
temas do quotidiano. A natureza irrealista destes contos (a que
a fiar continhas de ouro,
salta cá, minha esposada!
tacanhos espíritos racionalistas se opõem) é importante, porque
Na infância era fácil acreditar que Deus tinha criado o
109
271
mundo pela palavra. Que a luz seja! E a luz foi. Pelo poder da
torna óbvio que o objectivo dos contos de fadas não é dar
palavra tinha Xerazade conseguido adiar, por mil e uma noites e
informação útil sobre o mundo exterior, mas sim sobre os
depois para todo o sempre, a sentença de morte que pesava sobre
processos psicológicos interiores que têm lugar num indivíduo.
ela. A palavra foi para mim uma segunda placenta, aconchegante,
As personagens e as ocorrências dos contos de fadas também
onde na adolescência irrompeu o deslumbramento por dois poetas:
personificam e ilustram conflitos internos, mas sugerem com
Cecília Meireles, com o seu recorte visual, e Camilo Pessanha,
com a água, morrente, do tempo a esvair-se na própria água do
poema. E a palavra-poética tornou-se para mim a palavra-ninho,
porque é realidade e é símbolo, a mais significante, polissémica no
mesmo contexto, a mais texturada de conotações, e a que não
extrema subtileza como resolver esses conflitos e quais os passos a
dar em direcção a uma humanidade mais nobre. O conto de fadas é
apresentado de forma simples, familiar; não se fazem exigências ao
ouvinte ― o que evita até à mais pequenina das crianças o sentirse compelida a actuar de uma maneira específica ― e nunca faz
sentir à criança que ela é inferior. Longe de fazer exigências, o
admite sinónimos, já que é insubstituível. Por ela soube que a
conto de fadas sossega, dá esperanças quanto ao futuro e contém a
palavra é, ao mesmo tempo, música, canto e soluço – e o milagre
promessa de um desfecho feliz.
mais próximo do bafo e do coração humano.
[Página de DIÁRIO]
Para compreendermos como é que uma criança julga os
contos de fadas, consideremos, por exemplo, os muitos contos em
que o jovem herói engana o gigante que o aterra ou até ameaça a
sua vida. Que as crianças sabem por intuição o que estes “gigantes”
Luísa Dacosta
Infância e palavra
Porto, Edições Asa, 2001
representam, vê-se logo pela seguinte reacção espontânea de uma
criança de cinco anos. Animada pela discussão acerca da
importância que têm os contos de fadas para as crianças, uma mãe
venceu a hesitação em contar ao seu filho histórias “tão sangrentas
e ameaçadoras”. Assim, contou-lhe a história de Jack, o mata-gigantes. No final, a resposta do filho foi: “Os gigantes não
existem, pois não?”
Antes que a mãe pudesse dar ao filho a resposta
tranquilizadora que lhe estava na ponta da língua ― e que
estragaria o valor da história para ele ― o pequeno continuou:
272
110
“Mas há pessoas crescidas que são como os gigantes.” Com os seus
cinco anos, ele compreendeu a encorajadora mensagem da história:
apesar de os adultos poderem parecer gigantes assustadores, um
rapazinho esperto pode vencê-los.
Criança de fronte sem nuvens
E olhos cheios de sonhos e encantos,
Apesar do tempo veloz
E de estarmos separados por meia vida, eu e tu,
O teu amoroso sorriso certamente acolherá
A prenda de amor de um conto de fadas.
OS CONTOS DE FADAS
NO CUIDADO E TRATAMENTO DE CRIANÇAS
COM PERTURBAÇÕES EMOCIONAIS
Marianne Runberg
Este capítulo trata, em primeiro lugar, da utilização de
contos de fadas na ajuda a crianças com perturbações emocionais.
A ajuda pode ser-lhes dada por pessoas que com elas contactem
C. L. Dodgson (Lewis Carroll) in
Through the Looking Glass
diariamente, por exemplo, os seus tutores. Tanto o meu marido
como eu própria trabalhamos com crianças em regime de tutela há
muitos anos. O confronto com os graves distúrbios que estas
A necessidade de magia na criança
crianças apresentam e o nosso sentimento de impotência face a
eles, tornaram-me interessada na história das “nossas crianças” e,
Do ponto de vista dos adultos e em termos da ciência
ao mesmo tempo, nas crianças que vivem em regime de tutela.
moderna, as respostas que os contos de fadas dão são mais
fantásticas do que reais. De facto, estas soluções parecem tão
Parecia uma constante: os dados amnésicos disponíveis eram
incongruentes a alguns adultos (que se divorciaram já dos
frequentemente escassos e os pais biológicos destas crianças
caminhos pelos quais as crianças sentem o mundo), que eles se
tinham estado, em regra, ausentes desde o início das suas vidas e
recusam a transmitir às crianças informações tão “falsas”. Contudo,
por longos períodos de tempo. A relação com a mãe fora
explicações realistas são normalmente incompreensíveis para as
perturbadora devido aos períodos em que a criança tinha vivido
crianças, porque lhes falta a compreensão abstracta necessária para
separada dela e quase sem nenhum contacto com ela. Na maior
lhes dar um sentido.
parte das vezes, a criança tinha sido internada em lares ou outras
As explicações científicas exigem um pensamento objectivo.
Tanto a investigação teórica como a exploração experimental
instituições. Muitas mães biológicas eram alcoólicas.
Se a criança tinha sido colocada num lar de acolhimento ou
demonstraram que nenhuma criança em idade pré-escolar pode
111
273
instituição, era frequente haver uma grande incerteza por parte das
verdadeiramente aprender estes dois conceitos, sem os quais a
autoridades, dos pais biológicos e das próprias crianças, em relação
reflexão abstracta é impossível. Conheci muitos exemplos em que,
ao que iria acontecer no futuro. Na maioria dos casos, não existiam
especialmente nos últimos tempos da adolescência, foi necessário
planos a longo prazo e, durante os períodos de mudança, instáveis,
apelar para os anos de crença na magia para compensar alguém
também não existiam “pessoas-chave” que providenciassem
que se viu prematuramente privado dela na sua infância, depois de
continuidade na ajuda a estas crianças.
lhe terem imposto (em vão!) a estreita realidade. É como se estes
jovens sentissem estar agora perante a última oportunidade para
Em Beyond the interest of the child, descreve-se a importância
compensar uma grave lacuna nas suas vidas; ou que, sem terem
dos chamados “pais psicológicos” na vida duma criança, sejam eles
passado por esse período de crença na magia, não se achavam
pais biológicos, tutores ou pais de acolhimento. No que diz
aptos a enfrentar os rigores da vida adulta.
respeito ao conceito de “pais psicológicos”, o que importa é um
Muitos jovens que procuram hoje a evasão súbita através dos
desejo sincero e profundo de tomar conta da criança a nível prático
sonhos proporcionados por drogas, são iniciados por gurus,
e a nível emocional, dando-lhe a oportunidade de ter um
acreditam na astrologia, praticam “magia negra” ou, por outra
desenvolvimento pessoal e social saudáveis. Obviamente, isto não
qualquer forma, se escapam da realidade através de devaneios
implica apenas sentimentos positivos. O essencial é que estes
sobre experiências mágicas que melhorarão as suas vidas, foram
sentimentos predominem, baseados num contacto diário feito de
prematuramente pressionados a encarar a realidade de uma forma
partilha de experiências. É isto que dá à criança a possibilidade de
adulta. A tentativa de evasão da realidade por estas vias tem as suas
sentir que é um membro integrante da família. Para se conseguir
causas mais profundas nas primeiras experiências formativas, que
uma relação satisfatória é vital que esta seja mútua.
os impediram de se convencer pessoalmente de que a vida pode ser
dominada por meios realistas.
Se os sentimentos positivos da criança em relação aos “seus
pais” não são recíprocos, a criança nunca se sentirá realmente
Satisfação indirecta versus reconhecimento consciente
amada e apreciada por, pelo menos, uma pessoa. Não será capaz de
se amar e respeitar a si própria, o que a impedirá de tomar conta de
A criança sente quais dos muitos contos de fadas são a
outros quando crescer. É necessária uma vida que lhe forneça um
verdade para a sua situação interior de momento (a qual ela não
sentimento de continuidade, o que implica estabilidade na vida
sabe, por si só, manejar), e sente também em que ponto da história
familiar, no jardim-de-infância, na escola, etc…O desenvolvimento
esta lhe dá uma achega para poder enfrentar um problema difícil.
emocional na infância nunca se faz sem sobressaltos. Por vezes, o
Mas isso não é imediatamente resolvido, nem se consegue quando
274
112
se ouve um conto de fadas pela primeira vez. Alguns dos elementos
crescimento pode ser rápido; outras vezes, pode haver uma
do conto são demasiado estranhos ― como têm de sê-lo, a fim de
paragem ou mesmo regressão. A criança precisa de estabilidade e
se dirigirem a emoções profundamente escondidas.
harmonia no seu mundo exterior para compensar a falta de
Só com a repetição frequente do conto, e quando tenha tido
tempo suficiente e oportunidade para se debruçar sobre ele, é que a
criança pode aproveitar plenamente o que a história tem para lhe
oferecer no tocante à compreensão de si própria e do mundo. Só
então as livres associações da criança produzem o sentido mais
pessoal do conto; só então o conto a ajuda a resolver os problemas
que a oprimem. Por exemplo, quando ouve a história pela primeira
vez, a criança não pode projectar-se no papel de uma figura do sexo
equilíbrio interno. Muitas vezes, tal necessidade é subestimada por
aqueles que têm a criança a seu cargo.
A noção de tempo é importante para as crianças em lares de
acolhimento. A experiência do tempo é muito diferente para uma
criança e para um adulto. Este pode, em geral, fazer planos para o
futuro, e adiar a satisfação de algumas das suas necessidades até
que chegue o tempo de as gratificar. A criança não consegue
oposto. É preciso que haja certa distância e colaboração pessoal,
esperar pela satisfação das suas necessidades da mesma forma e
durante algum tempo, antes de uma rapariga se poder identificar
não consegue fazer planos para um futuro distante. O que a um
com o João de João e o Pé de Feijão ou um rapaz com Rapunzel.
adulto parece um período de tempo bastante curto, pode ser muito
Conheci pais cujos filhos reagiam a um conto de fadas
dizendo “Gostei”, e assim apressavam-se a contar-lhes outro conto,
longo para uma criança, por vezes até infindo ou “para sempre”,
dependendo da sua idade biológica e do seu nível de
pensando que mais um conto aumentaria o prazer da criança. Mas
desenvolvimento. O tempo que uma criança leva a “esquecer” uma
o comentário do filho exprimia provavelmente um vago
relação emocional antiga e a estabelecer uma nova, variará de
sentimento de que a história tem qualquer coisa de importante
acordo com o seu estádio de desenvolvimento aquando da ruptura.
para lhe comunicar ― qualquer coisa que se perderá se não se ler à
Antes dos dois anos de idade, será difícil para a criança reter
criança de novo a história, e se não se lhe der tempo para a
aprender. Desviando os pensamentos da criança prematuramente
para uma segunda história, poder-se-á desfazer o impacto da
primeira, ao passo que, fazendo-se isso mais tarde, se poderá antes
aumentá-lo.
por muito tempo uma imagem interna dos pais. A criança ligar-se-á a outros adultos quando os pais não estiverem presentes, desde
que estes adultos preencham as suas necessidades e desde que a
criança não esteja muito perturbada. Tal não significa, no entanto,
que a criança prossiga a sua vida sem nenhum trauma emocional
Quando se lêem contos de fadas a crianças, numa aula ou em
bibliotecas durante a hora de recreio, as crianças parecem
113
devido à separação da sua mãe biológica (e pai, se alguma vez ele
esteve presente).
275
Ler contos de fadas a uma criança parece ser uma
fascinadas. Mas, muitas vezes, não se lhes dá a oportunidade para
oportunidade de compensar aquilo de que ela sente falta. O conto
contemplarem os contos ou para reagirem; elas são imediatamente
de
segurança,
arrebanhadas, ou para outra actividade ou para outra história
previsibilidade e continuidade. Isto acontece na situação de leitura
diferente da que lhes contaram antes, o que dilui ou destrói a
em que a criança e o adulto partilham uns momentos tranquilos
impressão que o conto criou. Falando com crianças depois de uma
fadas
pode
inculcar-lhe
sentimentos
de
antes de se deitarem. Importa criar uma situação estável em que as
mesmas coisas se repetem vezes sem conta. A criança torna-se
assim capaz de prever a situação; a vida torna-se mais segura e
possibilita-lhe ter uma relação mais próxima e calorosa com um ou
dois adultos.
experiência destas, parece que tanto fazia que a história fosse
contada como não, pelo efeito nulo que foi obtido. Mas quando o
narrador da história dá às crianças tempo suficiente para
reflectirem sobre ela, para se submergirem na atmosfera que a
narrativa cria, e quando elas são encorajadas a falar no assunto,
então
Além da situação de leitura, o conto de fadas comunicará
conversas
posteriores
revelam
que,
emocional
e
intelectualmente, a história lhes oferece muito.
estabilidade e segurança à criança através da música e do ritmo
Tal como os pacientes dos curandeiros hindus eram
que, tantas vezes, caracterizam estes contos. Neles, o tempo não se
solicitados a contemplarem um conto de fadas para encontrarem
mede em dias, meses ou anos mas num certo número de provas. É
uma saída para a escuridão interior que encobria os seus espíritos,
assim que a perspectiva temporal se torna facilmente visível e
também à criança se deve dar a oportunidade de ― vagarosamente
passível de ser entendida por uma criança. O herói/heroína é,
― assimilar um conto de fadas, fazendo a junção das suas próprias
frequentemente,
por
associações com o conto. Diga-se de passagem que esta é a razão
pessoas/poderes maus mas, no fim, o príncipe fica com a princesa
por que os livros ilustrados, hoje tão preferidos por adultos e
ou vice-versa. Desta forma se comunica à criança ― que se sente
crianças, não são o melhor serviço que se pode prestar à criança. As
alguém
não
desejado,
perseguido
rejeitada pelos próprios pais ― a esperança de se tornar membro
desejado de uma família.
ilustrações distraem em vez de ajudarem. O estudo dos livros
ilustrados demonstra que as gravuras desviam o processo de
aprendizagem em vez de o fomentarem, porque as ilustrações
Quanto às crianças mais velhas, elas aceitarão por vezes – a
afastam a imaginação da criança daquilo que, por si próprias, e sem
nível simbólico – sentirem-se ligadas a novas pessoas. Trata-se de
ajuda, elas sentiriam graças à história. A história ilustrada perde
um processo frequentemente difícil dado que as crianças estão
muito do conteúdo pessoal que poderia trazer à criança que lhe
sobrecarregadas com sentimentos de culpa e têm medo de ser
aplicasse somente as suas próprias associações visuais, em vez das
desleais para com os pais biológicos, mesmo se o contacto com
de quem as desenhou.
276
114
Também Tolkien pensava que, por melhores que sejam, as
estes é muito raro ou já não existe. O conto de fadas é como que
ilustrações pouco bem fazem aos contos de fadas…Se a história diz:
um elo de ligação entre a criança e a pessoa que dela cuida e é,
“Ele trepou a colina e viu o rio no vale, lá em baixo”, o desenhador
igualmente, um instrumento através do qual a criança pode
poderá apreender, ou quase apreender, a sua própria visão da cena,
receber ajuda na sua caminhada de desenvolvimento harmonioso.
mas cada ouvinte terá formado o seu próprio quadro, que será feito
de todas as montanhas e rios e vales que jamais viu, mas
especialmente a Colina, o Rio, o Vale que foram para ele a primeira
Não se pode pedir a uma criança pequena que nos conte os
sentimentos que teve durante a primeira infância: como era viver
representação da palavra. Eis por que um conto de fadas perde
longe de casa, provavelmente sem nenhuma relação com os pais.
muito do seu sentido próprio quando as figuras e as ocorrências
Contudo, muitas crianças conseguem referir um conto de fadas
têm a substância dada pelo desenhador e não pela imaginação da
predilecto: ao depararmo-nos com este conto e ao identificarmos
criança. Os pormenores, sem igual, derivados da sua vida
cuidadosamente os símbolos que são importantes para a criança,
individual, com os quais o espírito do ouvinte retrata a história que
pode-se atingir uma compreensão das necessidades e sentimentos
lhe contam ou que lhe lêem, transformam-na numa experiência
da criança. Convém sublinhar a distinção entre a psicoterapia com
muito mais pessoal. Tanto os adultos como as crianças preferem
contos de fadas feita por um psicoterapeuta profissional e o
frequentemente o caminho fácil de alguém que, por eles, assume a
encaminhamento por meio de contos de fadas feito por aqueles
tarefa de imaginar o cenário do conto. Contudo, se deixarmos o
desenhador determinar a nossa imaginação, ela será menos nossa e
o conto perde muito do significado pessoal.
que tomam conta da criança. A supervisão que os tutores de
crianças com perturbações fazem é algo de positivo mas estas
pessoas não deverão tornar-se psicoterapeutas das crianças.
Perguntar a crianças, por exemplo, como era o monstro de
que ouviram falar na história que lhes contaram, dá lugar às mais
Recordações da primeira infância
variadas formas de personificação: enormes figuras pseudo-humanas, pseudo-animais, figuras que combinam certos traços
Acontecimentos traumáticos muito remotos podem ter tido
humanos com outros animais, etc. ―, e cada um destes
lugar antes da criança dominar a linguagem. Estas recordações
pormenores tem enorme sentido para a pessoa que, no seu espírito,
criou determinada realização pictórica. Por outro lado, ver o
monstro pintado pelo artista, conformemente à imaginação dele,
que é bem mais completa se a compararmos com a nossa própria
imagem vaga e fugidia, defrauda-nos um pouco. A ideia do
115
existem a nível pré-verbal, o que torna difícil, talvez até mesmo
impossível, falar sobre o que aconteceu. Além do mais, lida-se
muitas vezes com acontecimentos rodeados de tabus. A criança
precisa de se proteger de um confronto claro e directo; por isso
277
deparamos com imagens oníricas dissimuladas. No entanto, por
monstro poderá então deixar-nos totalmente indiferentes, sem
vezes, é possível à criança recordar imagens vagas, sensações,
nada de importante para nos dizer, ou poderá amedrontar-nos, não
humores, em volta de acontecimentos bastante longínquos, e ela
tendo qualquer significado para além da angústia.
pode, igualmente, mostrar fascínio por certos contos de fadas ou
A importância da exteriorização: personagens e
passagens de contos, que, de uma ou outra forma, parecem
acontecimentos fantásticos
encerrar experiências anteriores.
Em psicoterapia, ouvimos com frequência as pessoas
O espírito de uma criança contém uma colecção (que
descreverem as memórias da primeira infância como retratos
rapidamente se enriquece) de impressões frequentemente mal
oníricos que não parecem pertencer nem à realidade, nem à
agrupadas
fantasia; talvez se tenha que lidar com uma mistura de impressões
correctamente apreendidos da realidade, mas muito mais
provenientes dos mundos exterior e interior. O que importa
elementos completamente dominados pela fantasia. Esta preenche
realmente nesta situação é o sentimento e a atmosfera contidos na
enormes hiatos no entendimento da criança, devido à imaturidade
recordação. O conto de fadas é uma moldura excelente para
do seu pensar e à sua falta de informações pertinentes. Outras
proteger tais imagens e sentimentos. Ele não fornece um retrato
distorções são consequência de pressões interiores que conduzem
acabado
aos contra-sensos das percepções da criança.
ou
completo.
Embora
haja
muitos
pormenores
e
só
parcialmente
integradas:
alguns
aspectos
pertinentes, existem igualmente referências tais como “era uma
A criança normal começa a fantasiar com um segmento da
vez” ou “lá muito longe, lá por detrás das montanhas azuis”: estas
realidade mais ou menos bem observado, o que poderá evocar nela
referências vagas criam boas oportunidades para proteger os
necessidades e angústias tão fortes que pode deixar-se arrastar por
sentimentos e experiências pessoais.
elas. Muitas vezes as coisas tornam-se tão confusas no seu espírito
que ela não consegue apartá-las umas das outras. Mas é necessário
Para abrir caminho às experiências pessoais da criança,
parece ser relevante escolher contos de fadas que possam ser lidos
ou contados sem ilustrações. A criança fica assim livre para criar as
um certo ordenamento para que a criança regresse à realidade, não
enfraquecida nem vencida, mas antes fortalecida por esta excursão
pelas suas fantasias.
suas imagens interiores. Se lemos ou contamos a história, a criança
pode mesmo sentir-se encorajada a tomar as rédeas e acabar a
história como e quando quiser. Talvez desenhe ou pinte as suas
Os contos de fadas ajudam-na, mostrando-lhe como uma
claridade superior pode emergir, e emerge mesmo, de todas as suas
fantasias. Estes contos começam geralmente de uma forma
próprias ilustrações. Um paciente de psicoterapia fez as suas
278
116
bastante realista: uma mãe que diz à filha para ir sozinha visitar a
próprias ilustrações enquanto escutava uma passagem dum conto.
avó (A Menina do Capuchinho Vermelho); as dificuldades que um
As imagens mostravam as transformações que o herói tinha de
pobre casal tem para sustentar os filhos (Hansel e Gretel); um
enfrentar. Mas, ao mesmo tempo, era óbvio que também
pescador que não apanha nenhum peixe na sua rede (O Pescador e
ilustravam as dificuldades, a ansiedade e confusão em que o
o Génio). Isto é, a história começa com uma situação real, mas de
paciente se encontrava. O herói corria grande perigo. Foi então que
certo modo problemática.
a terapeuta decidiu dedicar algum tempo aos desenhos. Desenhou
Uma criança, perante os problemas e acontecimentos que, no
um colete de salvação para resgatar o herói em perigo e, através do
dia-a-dia, a deixam perplexa, é estimulada pela sua educação a
desenho, tentou estabelecer, verbalmente, uma ponte com a
compreender o como e o porquê destas situações e a procurar
realidade.
soluções. Contudo, uma vez que o raciocínio tem, então, um fraco
controle sobre o seu inconsciente, a imaginação da criança foge da
A partir da realidade, ela pôde levar o paciente de volta à
pressão das emoções e dos conflitos não resolvidos. A habilidade
história e juntos puderam encaminhar-se para um final feliz.
do raciocínio emergente da criança é depressa subjugada por
Quando nos deslocamos de uma área para outra, temos a
angústias, esperanças, receios, desejos, simpatias e ódios que se
oportunidade de orientar o paciente através da história. A tensão
entrelaçam com o que quer que seja que a criança tenha começado
interna e os sentimentos de ansiedade tornaram-se menos intensos
a pensar.
e mais suportáveis. É possível, por um curto período, chegar perto
O conto de fadas, não obstante começar pelo estado
dos problemas do paciente e permitir que ele liberte, de forma
psicológico da criança ― tais como sentimentos de rejeição
realista, alguns desses sentimentos e se possa criar novamente um
quando comparada com os irmãos, como em A Gata Borralheira ―
equilíbrio quando se retomar a história. Da mesma forma, ao
nunca principia com a sua realidade física. Nenhuma criança tem
contar uma história, a pessoa empenhada no bem-estar da criança
de sentar-se sobre cinzas, como a Gata Borralheira, ou ser
poder-lhe-á fornecer um colete de salvação – se a criança dele
deliberadamente abandonada num bosque denso, como Hansel e
precisar. Esse colete pode ser fornecido por palavras ou pela
Gretel, porque uma semelhança física seria demasiado assustadora
proximidade física (no contacto entre a criança e o adulto).
para a criança e “acertaria perto de mais no alvo, para seu
conforto”, exactamente quando confortar é um dos propósitos dos
Fantasia e Realidade
contos de fadas.
Uma criança familiarizada com os contos de fadas
117
É muito importante para as crianças com perturbações
279
emocionais terem um ritmo diário regular, estável, estruturado e
compreende que eles lhe falam numa linguagem de símbolos e não
sólido. Elas parecem necessitar de fronteiras claras que as protejam
na da realidade de todos os dias. O conto de fadas diz-nos, a partir
da “dispersão”. Tais crianças têm uma noção muito frágil de
do seu intróito, através do seu enredo e pelo seu desfecho, que
realidade. Quando se sentem assustadas ou pouco à-vontade,
aquilo de que nos fala não são factos tangíveis ou pessoas e lugares
tendem a usar a sua imaginação de forma negativa. Mesmo a
reais. Os acontecimentos reais só se tornam importantes para a
brincar, a criança poderá interpretar mal as reacções dos seus
companheiros porque tem dificuldade em distinguir a fantasia da
criança através do sentido simbólico que ela lhes dá ou que ela
neles encontra.
realidade. Se não houver por perto um adulto que possa interferir e
Era uma vez, Num certo país, Há mil anos ou mais, No tempo
repor a ordem, poderá ser difícil para a criança lidar com a
em que os animais falavam, Uma vez, num velho castelo, no meio de
situação, o que a poderá mesmo levar a entrar em pânico, como
aconteceu um dia quando um rapaz de oito anos ficou
completamente aterrorizado: o seu cabelo estava cheio de pastilha
elástica que teve de ser removida com gasolina. Isto fê-lo temer que
toda a cabeça se dissolvesse.
uma grande e densa floresta ― estes intróitos sugerem que o que
se vai seguir não pertence ao “aqui e agora” que conhecemos. Esta
imprecisão deliberada, no princípio dos contos de fadas, simboliza
que estamos a deixar o mundo concreto da realidade quotidiana.
Os velhos castelos, as cavernas escuras, as portas fechadas à chave
onde é proibido entrar, os bosques impenetráveis, todos sugerem
Outra criança poderá carregar fortes sentimentos de culpa:
que alguma coisa normalmente escondida virá a ser revelada,
“Se ao menos eu me tivesse portado bem, isto não teria acontecido”
enquanto o há muito tempo implica que vamos lidar com
(referindo-se à separação da sua mãe biológica). Face a tal situação,
acontecimentos arcaicos.
é igualmente muito importante que o adulto interfira e ajude a
Depois dos cinco anos ― a idade em que os contos de fadas
criança a orientar-se de forma realista. Parece claro que para estas
se tornam verdadeiramente plenos de sentido ―, nenhuma criança
crianças os melhores dias são os dias normais – não o Natal ou as
normal toma estas histórias como a verdade da realidade exterior.
férias, mas um dia típico, rotineiro, “cinzento”, em que a família se
A pequenita que imagina ser a princesa que vive num castelo e
levanta à mesma hora e em que a hora de dormir é precedida de
desfia fantasias complicadas sabe, quando a mãe a chama para
uma história e de certos rituais. Sentar-se em frente de um vídeo,
jantar, que não é uma princesa. E, se bem que o arvoredo de um
onde a ficção e a realidade se misturam, terá uma influência
negativa nestas crianças.
parque possa ser visto, às vezes, como uma floresta densa e
profunda, cheia de segredos escondidos, a criança sabe que na
realidade é somente um arvoredo ― exactamente como a
Alguns filmes modernos de ficção científica parecem forçar a
280
118
pequenita sabe que a sua boneca não é na verdade o seu bebé, por
imaginação a fixar-se numa moldura pseudo-realista e isto não
muito que ela a trate como tal.
ajuda a criança a expandir o seu mundo interior. No conto de fadas
Os contos que comecem mais próximos da realidade, na sala
há muito mais liberdade: a criança pode retirar dele o que necessita
de estar ou no pátio da criança, em vez de evocarem a cabana de
e a história adapta-se ao estádio de desenvolvimento da criança.
um lenhador junto de uma grande floresta, e que contenham gente
Uma boa história contém valores concretos e abstractos. A criança
muito parecida com os pais da criança, e não com lenhadores
pode identificar-se com personagens do conto de fadas e é-lhe
pobres ou reis e rainhas (mas que misturem estes elementos
possível distinguir a imaginação da realidade, o que parece ser
realistas com componentes fantásticos, que satisfazem todos os
especialmente importante.
desejos), são capazes de levar a criança a confundir o real com o
que não o é. Estas histórias, sem estarem de acordo com a
Estrutura e símbolos nos contos de fadas
realidade interior da criança, por mais fiéis que sejam à realidade
exterior, alargam o fosso que separa a experiência interior e
exterior da criança. Elas separam-na ainda dos seus pais, porque a
criança começa a sentir que ela e eles vivem em mundos espirituais
diferentes; por muito próximo que eles se encontrem no espaço
“real”, emocionalmente parecem viver, temporariamente, em
continentes diferentes. Isto contribui para uma descontinuidade
entre as gerações, o que é doloroso tanto para os pais como para a
Os contos de fadas apelam para nós a dois níveis. O primeiro
nível tem a ver com o imediato e o espontâneo: boas e más forças
lutam umas contra as outras e as boas saem vencedoras. O herói
funciona como um modelo a imitar na medida em que é uma
projecção do “Si Mesmo” que ajuda o ego a evoluir. A aparência
imediata tem a ver com o ego consciente, visto que a criança
sempre se identificará com o herói.
criança.
Se contarem a uma criança histórias “verdadeiras como a
O segundo nível faz apelo ao inconsciente por meio de
realidade” (o que quer dizer falsas para partes importantes da sua
símbolos profusamente representados nos contos de fadas. Neste
realidade interior), ela pode concluir que muito dessa realidade
nível inconsciente, a criança relacionará os símbolos com os seus
interior é inaceitável para os seus pais. Assim, há muita criança que
conflitos internos. Gradualmente, ela poderá tomar consciência
se
depaupera-a.
dos seus conflitos e aceitar ajuda para os trabalhar. Bettelheim
Consequentemente, ela pode depois, já adolescente e, fora da
explica isto da seguinte forma: “Dado que tudo nos contos de fadas
ascendência emocional dos seus pais, vir a detestar o mundo
é expresso com uma linguagem simbólica, a criança poderá não
racional e escapar-se completamente para um mundo de fantasia,
tomar em conta aquilo para que não está ainda preparada e
afasta
da
sua
vida
interior,
e
isso
119
281
responder apenas àquilo que lhe é dito a nível da superfície. Mas é-
como que para se desforrar do que perdeu na infância.
-lhe igualmente permitido desvendar, camada por camada, alguns
Quando for mais velha, isso poderá implicar uma severa
dos significados escondidos por detrás do símbolo, à medida que se
quebra com a realidade, com todas as perigosas consequências para
vai preparando gradualmente e sendo capaz de dominar esse
o indivíduo e para a sociedade. Ou, menos seriamente, a pessoa
símbolo e dele tirar proveito.”
poderá continuar esta clausura do seu “eu” interior toda a sua vida,
O tempo e o espaço nos contos de fadas têm um valor eterno
devido ao seu carácter abstracto. As personagens são claramente
descritas como sendo boas ou más e o seu comportamento não se
altera de forma imprevisível, o que poderia perturbar a criança.
Outro aspecto importante é a sua orientação para o futuro,
normalmente positivo: “Enquanto que a fantasia é irreal, os bons
e não se sentir nunca plenamente satisfeita com o mundo, porque,
alienada dos processos inconscientes, ela não pode usá-los para
enriquecer a sua vida na realidade das coisas. A vida deixa então de
ser “um prazer” ou “uma espécie de privilégio excêntrico”. Com tal
separação, o que quer que aconteça na realidade deixa de oferecer
satisfação apropriada às necessidades inconscientes. O resultado é
que a pessoa sente sempre que a sua vida é incompleta.
sentimentos que nos oferece sobre nós próprios e o nosso futuro
são reais e estes bons sentimentos efectivos são aquilo de que
precisamos para nos apoiar”, diz ainda Bettelheim.
Quando uma criança não é subjugada pelos seus processos
mentais interiores e é bem tratada em todos os aspectos
importantes, pode então dirigir a sua vida de maneira apropriada
O conto de fadas não nos fala de uma solução feliz que se
relativamente à sua idade. Nessas ocasiões, ela pode resolver os
atingiu sem qualquer esforço. As mais variadas histórias falam
problemas que se levantem. Mas, se observarmos as crianças nos
todas de um certo problema que só se resolve quando o herói ou a
seus receios, por exemplo, verificaremos como esses períodos são
heroína se submetem a provas e a sofrimentos. Isto significa que a
limitados. Assim que as pressões interiores da criança estão na mó
criança não ultrapassará a sua crise até estar pronta para evoluir
de cima ― o que acontece frequentemente ―, a única esperança
por meio de um combate e até que seja capaz de reconhecer, de
forma ampla, o seu problema, e tenha assim atingido a maturidade.
que ela tem de ter algum controle sobre elas é exteriorizá-las. Mas
o problema é como fazê-lo sem deixar que as exteriorizações se
apoderem dela. Pôr ordem nas diversas facetas da sua experiência
Através dos contos de fadas, a criança auto-motiva-se para
exterior é tarefa muito difícil para uma criança; e, a não ser que
fazer algo, para ser activa. Como exprime Julius E. Henscher em
consiga ajuda, torna-se impossível desde que as experiências
Death in the Fairy Tale (1967): “O crescimento implica mudança.
exteriores se baralhem com as suas experiências interiores.
Pode parecer paradoxal que, para fortalecer a nossa identidade,
282
Por si só, a criança ainda não é capaz de ordenar e dar
120
sentido aos seus processos interiores. Os contos de fadas oferecem
devamos estar disponíveis para aceitar a mudança, mas é
personagens nas quais ela pode exteriorizar o que se passa no seu
igualmente paradoxal que a nossa identidade se dilua quando a
espírito, por meios controláveis. Os contos de fadas mostram à
tentamos fortalecer evitando qualquer alteração na nossa aparência
criança como ela pode personalizar os seus desejos destrutivos
exterior.”
numa só figura, ir buscar satisfações desejadas a outra, identificar-se com uma terceira, ter ligações com uma quarta, e assim por
A atmosfera em que a pessoa se desenvolve durante a
primeira infância tem, inquestionavelmente, um efeito profundo
diante, conforme as suas necessidades de momento.
Quando todos os devaneios da criança se personalizam numa
fada bondosa, todos os seus desejos destrutivos numa bruxa má,
todos os seus receios num lobo voraz, todas as ciências da sua
consciência num homem sábio encontrado numa aventura, toda a
sobre as formas como mais tarde ela vivencia a mudança. Ao
escolher contos de fadas para dar apoio a crianças, não parece
relevante se o herói é ou não do mesmo sexo da criança. Um rapaz
pode identificar-se com a Branca de Neve visto que os problemas
sua zanga ciumenta nalgum animal que dê bicadas nos olhos dos
dela assumem um carácter geral. Ele pode sentir prazer quando a
seus rivais detestados ― então a criança pode finalmente começar
bruxa é castigada, sem carregar simultaneamente com sentimentos
a pôr ordem nas suas tendências contraditórias. Iniciado este facto,
de culpa, e pode experimentar algum alívio de toda a raiva
a criança será cada vez menos submersa por um caos incontrolável.
acumulada em relação à mãe que o deixou ficar mal.
Através dos símbolos nos contos de fadas, podemos punir a
Transformações
nível inconsciente a mãe que não nos atrevemos a odiar a nível
Há uma altura certa para as experiências de crescimento, e a
infância é a altura para aprender a transpor a imensa brecha entre
as experiências interiores e o mundo real. Os contos de fadas
podem parecer absurdos, fantásticos, assustadores e totalmente
consciente. O conto de fadas dá à criança a oportunidade de
expressar sentimentos de catarse e aliviar assim a sua tensão
interna. Mostra-se à criança a possibilidade de reparar, a nível
simbólico, aquilo que tem sido uma imagem negativa da mãe ou,
inacreditáveis para o adulto desprovido da fantasia dos contos de
pelo menos, ajuda-se a criança a obter uma imagem da mãe mais
fadas na sua infância ou que tenha reprimido essas lembranças.
facetada e positiva ao livrar-se de alguns sentimentos negativos.
Um adulto que não tenha conseguido uma integração satisfatória
dos dois mundos, da realidade e da imaginação, fica desconcertado
Imagens da Mãe
com estes contos. Mas um adulto que na sua vida tenha sido capaz
de integrar uma ordem racional com a lógica do seu inconsciente
121
Toda a criança precisa de pais psicológicos ou, pelo menos,
283
de uma mãe ou de um pai. As crianças que são acolhidas fora de
será receptivo à maneira como os contos de fadas ajudam a criança
suas casas raramente conheceram um pai antes disso acontecer. Os
na sua integração. Para a criança e para o adulto que, como
conflitos principais têm-se centrado nas perturbações decorrentes
Sócrates, sabe que ainda há uma criança no mais sábio dos
da relação com a mãe ou da separação dela. Nos parágrafos
homens, os contos de fadas revelam verdades sobre a humanidade
seguintes,
e sobre cada um de nós.
consideraremos
o
significado
da
mãe
no
desse
À sua maneira, o conto de fadas adverte contra o facto de a
desenvolvimento. Tal não pretende, contudo, minimizar a
criança levar longe e depressa demais os seus sentimentos de raiva.
relevância de um bom pai ou duma boa figura paterna.
Uma criança cede facilmente ao seu aborrecimento com alguém
desenvolvimento
da
criança
ou
na
perturbação
Neumann sublinha o facto de que é muito importante para a
criança receber afecto e amor. Ele refere que, se uma criança perde
a mãe durante o período em que existe normalmente uma relação
que ela estima ou à impaciência quando a fazem esperar; ela tende
a albergar sentimentos de raiva e a deixar-se embalar por desejos
furiosos, pouco se importando com as consequências, caso estes
desejos se transformem em realidade.
primária criança-mãe, essa criança tornar-se-á carente e existe o
perigo de que tal perturbe o desenvolvimento do seu ego e o
instinto de auto-preservação.
Muitos contos de fadas realçam o trágico desfecho de tão
irreflectidos desejos em que nos empenhamos, porque desejamos
demasiadamente algo ou porque não podemos esperar até que as
Segundo Neumann, o que é perigoso para a criança não é
coisas aconteçam no seu devido tempo. Ambos os estádios mentais
tanto se se satisfaz ou não as suas necessidades físicas, mas se ela
são típicos da criança. Duas histórias dos irmãos Grimm podem
vivencia o sentimento de falta de amor e de compreensão, se ela
ilustrar o caso.
perde a imagem arquetípica da “Boa-Mãe”.
Por “arquetípica”, Neumann quer significar as imagens
simbólicas no inconsciente. A “Grande Mãe” implica aspectos
positivos e negativos (a Boa/Má Mãe que controla a vida e a
morte). Numa relação normal entre a criança e a mãe, a primeira
experimenta uma interacção de atitudes negativas e positivas, com
preponderância evidente das segundas, o que lhe dá força para
ultrapassar os aspectos mais negativos sem prejuízo psíquico para
284
Em Hans, o meu porco-espinho, um homem zanga-se quando
o seu grande desejo de ter filhos é frustrado pela incapacidade de a
mulher os ter. Fica tão contrariado que acaba por exclamar: “Quero
um filho, nem que seja um porco-espinho.” O seu desejo é
satisfeito: a mulher tem um filho, cuja parte superior do corpo é a
de um porco-espinho e a inferior a de um rapaz.1
1
O motivo de os pais que desejam com demasiada impaciência ter filhos serem castigados
com o nascimento de misturas estranhas de seres humanos com animais é antigo e
largamente espalhado. Por exemplo, é o tópico de um conto turco em que o rei Salomão
efectua a restituição de uma criança à plena humanidade. Nestas histórias, se os pais tratam
122
Em Os sete corvos, uma criança recém-nascida afecta de tal
forma as emoções do pai que este, zangado, se vira contra os seus
filhos mais velhos. Manda um dos sete filhos buscar água baptismal
para baptizar a filha, incumbência a que se juntam os outros seis
irmãos. O pai, furioso por ter de esperar, grita: “Gostaria que todos
os rapazes se transformassem em corvos!” O que imediatamente
ela.
Numa relação primária entre mãe e criança, a criança
pequena irá sentir que a mãe é a “Mãe Boa e Forte” visto ser quem a
protege e alimenta. Assim, a mãe incutirá na criança, através das
suas acções, a imagem arquetípica da “Boa Mãe”. Se, por alguma
razão, a mãe não pode comportar-se como a “Boa Mãe”, isso
acontece.
Se estes contos de fadas, em que desejos ditados pela cólera
se transformam em verdades, acabassem aí, eles não passariam de
influenciará a imagem da mãe de forma negativa e, no
inconsciente, a criança desenvolverá o arquétipo da “Má Mãe”.
contos de advertência, prevenindo-nos de que nos não devemos
A “Boa Mãe” não tem de ser a mãe biológica da criança; pode
deixar levar pelas nossas emoções negativas – coisa que a criança
ser qualquer pessoa que tome conta dela, protegendo-a e amando-
não é capaz de evitar. Mas o conto de fadas sabe que não pode
-a. Aparentemente, o que é importante numa relação primária, é a
esperar o impossível de uma criança, e que não pode fazê-la evitar
presença duma determinada pessoa que tente compreender e
ter desejos ditados pela cólera, porque não está nas mãos desta não
preencher as necessidades da criança e dar-lhe uma sensação de
os ter.
segurança. Poderíamos dizer que do que a criança precisa é de
Enquanto o conto de fadas realisticamente nos previne que
alguém que possua as características arquetípicas da “Boa Mãe”.
deixarmo-nos levar pela zanga ou pela impaciência é metermo-nos
Qualquer desvio dessas características afectará a relação entre a
criança e a mãe e terá um efeito perturbador no desenvolvimento
bem e com paciência um filho insuficientemente desenvolvido, este é eventualmente
recuperado como um ser humano atraente. A sabedoria psicológica destes contos é notável:
a ausência de controlo sobre as emoções por parte dos pais cria uma criança que é
inadaptada. Nos contos de fadas e nos sonhos, a deformação física significa frequentemente
deficiente desenvolvimento psicológico.
Nestas histórias, a parte superior do corpo, incluindo a cabeça, é geralmente
parecida com a de um animal, enquanto a parte inferior é a de um ser humano normal. Isto
indica que as coisas estão mal quanto à cabeça – isto é, no espírito da criança, e não quanto
ao corpo. As histórias dizem também que os danos causados à criança por sentimentos
negativos podem ser corrigidos pelo impacto de emoções positivas que se lhe
prodigalizarem, se os pais forem suficientemente pacientes e seguros. Os filhos de pais
coléricos portam-se frequentemente como porcos-espinhos: só têm espinhos, de forma que a
imagem da criança, que é particularmente um porco-espinho, está certa. Há também contos
com palavras de advertência: “Não concebam um filho enquanto zangados; não recebam
com zanga e impaciência a sua vinda.” Mas, como em todos os bons contos de fadas, estas
histórias indicam os remédios certos para corrigir o mal, e a prescrição está de acordo com
as melhores compreensões de hoje.
123
da criança a vários níveis.
Neumann crê que uma relação primária mãe-criança
bastante perturbadora poderá levar a psicoses, particularmente à
esquizofrenia. Neste contexto, a criança terá a sensação de que o
mundo está a desabar e que o fim está próximo. Neumann conclui
que adultos com este historial podem ter visões e sonhos que
indicam que tudo se reduz a morte e isolamento; as forças
maléficas lutam umas contra as outras. A criança não sentirá mais a
285
mãe como a “Boa Mãe”, reagindo assim ao mundo de forma
em apuros, também nos sossega advertindo que as consequências
positiva. A mãe, será, então, a “Má Mãe”, aquela que pode destruir
são temporárias e que a boa vontade ou as boas acções podem
o mundo em que a criança vive mas que, acima de tudo, cria o
desfazer todo o mal provocado por desejos maus.
caos.
Hans, o porco-espinho, ajuda um rei perdido na floresta a
Os símbolos arquetípicos relacionados com a “Má Mãe” são,
entre outros, a morte, a condenação, a seca, a fome e a sede.
Quando a criança vivencia a mãe como a “Má Mãe”, já não se sente
suficientemente segura ou confiante para desenvolver um ego
estável, dado que a formação do ego depende de uma mãe que a
ajuda a incorporar as experiências negativas que surgem,
necessariamente, no processo de desenvolvimento.
A “Boa Mãe” tentará saciar-lhe a fome e aliviar os seus
medos. Desta forma, a criança aprende a tolerar sentimentos
regressar são e salvo a casa. O rei promete dar a Hans, em
recompensa, a primeira coisa que encontrar no seu regresso a casa,
e que é a sua filha única. Apesar da aparência de Hans, a princesa
cumpre a promessa do pai, e casa-se com Hans. Depois do
casamento, no leito marital, Hans toma finalmente a figura
humana e herda o reino. Em Os sete corvos, a rapariga, que fora a
causa inocente de os seus irmãos se terem transformado em corvos,
viaja até ao fim do mundo e faz um grande sacrifício para desfazer
o feitiço lançado sobre eles. Os corvos retomam a forma humana e
a felicidade é recuperada.
desconfortáveis porque recebe ajuda rápida. A “Má Mãe”, no
Estas
histórias
dizem
que,
não
obstante
as
más
entanto, não a ajudará quando ela precisar e isto impedirá a criança
consequências que os desejos do mal acarretam, com boa vontade e
de “ter a coragem” de desenvolver normalmente o seu ego; em vez
esforço as coisas podem arranjar-se. Há outros contos que vão
disso, criará sentimentos de desconfiança e pode tornar-se
muito mais longe e dizem à criança que não receie esses desejos,
psicótica. Quando, por qualquer razão, a criança não teve a
porque, apesar de haver consequências momentâneas, nada muda
oportunidade de passar os primeiros anos de vida (até aos três
permanentemente; depois de satisfeitos todos os desejos, as coisas
anos) com uma ou mais pessoas afectuosas, a imagem interna da
mãe é destruída. A “Grande Mãe” manifestou-se quase sempre
ficam exactamente como antes de os desejos começarem. Estas
histórias existem com muitas variantes no mundo inteiro.
como “Má Mãe”, simbolizando o caos, a morte, a seca, a fome. É
No mundo ocidental, Os três desejos é provavelmente a
por isso muito importante que a criança retome, a nível simbólico,
história sobre desejos mais conhecida. Na sua forma mais simples,
as imagens positivas da mãe para poder reparar ― simbolicamente
― esse estrago. Uma criança que experimentou carências, bem
cedo terá, de alguma forma, a consciência de que a sua mãe a
286
o motivo consiste em satisfazer, a um homem ou a uma mulher,
alguns desejos, geralmente três, por um estranho ou um animal,
em resultado de alguma boa acção. Um homem recebe esse favor
124
em Os três desejos, mas não lhe dá grande importância. De volta a
casa, a mulher dá-lhe o seu prato diário de sopa. “Outra vez sopa?
Queria era um doce para variar”, diz ele, e imediatamente o doce
aparece. A mulher quer saber como foi que isso aconteceu e o
marido conta-lhe a sua aventura. Furiosa por ter desperdiçado um
dos seus desejos numa ninharia, ela exclama: “Gostaria que o doce
caísse em cima da tua cabeça”, e o desejo foi imediatamente
deixou ficar mal.
No entanto, a nossa sociedade e cultura tentam dar à criança
a ideia romântica de que a mãe é sempre uma mãe “Boa e Grande”.
Consequentemente, é fácil entender quantas crianças desenvolvem
sentimentos de culpa quando as suas mães as abandonam. Se os
contos de fadas forem utilizados num ambiente tranquilizador,
satisfeito. “Já se foram dois desejos! Queria era que o doce saísse de
podem ajudar a criança a compreender que a mãe pode ter
cima da minha cabeça”, diz o homem mais irritado ainda. E assim
aspectos positivos e negativos, que alguém que não é a sua mãe
se foram os três desejos.
real (biológica) pode ser a “Boa Mãe” para ela, ajudando-a a
Todas juntas, estas histórias previnem a criança das possíveis
resolver problemas e a tornar-se gradualmente responsável e
consequências indesejáveis ao formular desejos de uma forma
independente. Os contos de fadas falam ao inconsciente a nível
precipitada, e garantem-lhe ao mesmo tempo que esses desejos são
simbólico, mas também mostram formas práticas de resolver os
de poucas consequências, especialmente se formos sinceros nos
problemas apelando à acção e incutindo coragem e auto-confiança.
nossos esforços para desfazer os maus resultados.
Começando por um conto de fadas em que a criança se
O facto mais importante ainda parece-me ser o de que me
mostre interessada, teremos uma boa oportunidade de discernir os
não recordo de um único conto de fadas em que os desejos raivosos
problemas mais urgentes que a própria criança põe em foco. A
de uma criança tenham qualquer consequência; só a têm os dos
próxima coisa a fazer será escolher um conto de fadas que seja útil
adultos. O corolário é que os adultos são responsáveis pelo que
para se trabalhar com os problemas da criança. Se o problema
fazem nos seus momentos de zanga ou de estupidez, mas as
principal for a relação com a mãe, escolheremos um conto de fadas
crianças não o são. Se as crianças têm desejos num conto de fadas,
geralmente só desejam coisas boas; e a sorte ou algum espírito bom
satisfá-los, muitas vezes para além das suas mais apetecidas
esperanças.
em que o papel da mãe e os símbolos a ela ligados sejam essenciais.
Assim, o conto será um ponto de partida para mudar gradualmente
a imagem negativa da mãe.
É como se o conto de fadas, admitindo embora quão humano
é uma pessoa zangar-se, esperasse somente que os adultos tenham
suficiente auto-controle para se não deixarem levar pela zanga,
125
287
O conto de fadas favorito e o acompanhamento através dos
contos de fadas
uma vez que os seus exóticos desejos se realizam ― mas os contos
acentuam as maravilhosas consequências para uma criança se ela
se entrega a desejos e pensamentos positivos.
Um pequeno rapaz, Jeff, tinha sido separado da mãe porque
A desolação não induz a criança dos contos de fadas a
esta ameaçara fazer-lhe mal. Ele era um rapaz muito ávido e
entregar-se a desejos de vingança. A criança deseja só coisas boas,
impulsivo, com grande dificuldade em controlar as suas emoções,
mesmo quando tenha razões de sobra para desejar que coisas más
mostrando uma grande ansiedade, sobretudo à hora de deitar. O
aconteçam àqueles que a perseguem. Branca de Neve não abriga
seu conto de fadas favorito era “A Branca de Neve”, que gostava de
desejos raivosos contra a rainha maldosa. A Gata Borralheira, que
ouvir vezes sem conta. O que era importante para Jeff era o
tem boas razões para desejar que as suas irmãs sejam castigadas
paralelismo entre a rejeição da Branca de Neve pela madrasta
pelas suas maldades, deseja, pelo contrário, que elas vão ao grande
malvada e a rejeição de que ele tinha sido alvo pela mãe, já que ela
baile.
ameaçara fazer-lhe mal. Também a madrasta tentara fazer mal à
A arte de contar histórias de fadas
Branca de Neve; tentara mesmo matá-la.
A nível consciente, Jeff não se recordava ou não sabia nada
Nunca devemos “explicar” à criança o sentido dos contos de
sobre a mãe de que pudesse falar, nem sobre os episódios que
fadas. Contudo, a compreensão por parte do narrador da
tinham levado à sua saída de casa. A nível inconsciente, ele sentia
mensagem do conto é importante para o espírito pré-consciente da
provavelmente o mesmo que a Branca de Neve. A mãe demoníaca
criança. A compreensão por parte do narrador dos diferentes níveis
mandara-o embora, pusera-o fora e ameaçara matá-lo. Havia
do sentido do conto facilita à criança extrair dele a chave para
muitas semelhanças entre o destino deste pequeno rapaz e a
melhor se compreender a si própria. Isso favorece a sensibilidade
Branca de Neve. O conto termina com a punição da madrasta: faz-
do adulto para a selecção das histórias mais adequadas ao estado
-se justiça. Branca de Neve vive feliz até ao fim dos seus dias. O
rapaz conseguiu, assim, sentir o prazer da vingança de uma forma
de desenvolvimento da criança e para as dificuldades psicológicas
específicas que a confrontam de momento.
que não lhe causava ansiedade. Os seus sentimentos não se
Os contos de fadas descrevem os estados íntimos do espírito,
tornaram perigosos. Ficou obviamente contente quando verificou
por meio de imagens e acções. Tal como uma criança reconhece a
que a mãe malvada tinha sido punida, e não foi forçado a
reconhecer qualquer relação com a sua própria história. Aliás, não
288
infelicidade e o desgosto quando alguém chora, assim o conto de
fadas não precisa de se espraiar sobre o facto de que alguém é
126
infeliz. Quando a mãe da Gata Borralheira morre, não nos dizem
que a órfã penava por ela ou pranteava a sua perda e se sentia só,
abandonada, desesperada, mas simplesmente que “todos os dias ia
até ao seu túmulo e chorava”.
teria a idade nem a maturidade suficientes para se dar conta disto.
A história ilustra igualmente que podemos aprender a
controlar as nossas reacções de modo que estas não perturbem
relacionamentos positivos com outras pessoas. A mensagem dada a
Nos contos de fadas, os processos interiores são traduzidos
por imagens visuais. Quando o herói enfrenta difíceis problemas
interiores, que parece não terem solução, não se descreve o seu
estado psicológico; o conto de fadas mostra-o perdido numa
floresta densa, impenetrável, sem saber para que lado se virar,
desesperado por encontrar uma saída.
Jeff a nível consciente (e também a nível inconsciente) é que ele
deve aprender a adiar a satisfação de algumas necessidades e
desistir de algumas coisas; deve dizer “não, obrigado” (no conto
abdica-se do cordão e do pente), para poder crescer, obter o reino e
viver feliz para sempre. Jeff ouviu a história várias vezes. Pouco a
pouco, tornou-se menos fascinado por ela e atingiu, gradualmente,
Para toda a gente que tenha ouvido contos de fadas, a
um melhor entendimento da sua situação na vida.
imagem e o sentimento de se estar perdido numa floresta profunda
e escura é inesquecível. Infelizmente, alguns modernos rejeitam os
Depois disto ter acontecido, o rapaz parecia pronto para
contos de fadas porque aplicam a este género de literatura padrões
ouvir outro conto com possibilidades novas e positivas. A história
que são totalmente impróprios. Se tomarmos estes contos como
poderia transmitir uma imagem materna mais positiva, como
descrições da realidade, então eles são de facto excessivos, sob
acontece por exemplo no conto dos irmãos Grimm “Os três cabelos
todos os pontos de vista ― cruéis, sádicos e sabe-se lá o que mais.
de ouro do Diabo”. Trata-se de uma história sobre um rapaz
Mas, como símbolos e ocorrências ou problemas psicológicos, estes
nascido num lar pobre e com a membrana fetal, o que é um bom
contos são bastante verdadeiros.
presságio. Prevê-se ainda que o rapaz case com uma princesa no
Eis a razão por que depende, em grande medida, dos
futuro. O rei toma conhecimento disto e, para o evitar, persuade os
sentimentos do narrador acerca do conto, o facto de o efeito ser
pais a darem o filho. No seu caminho pela vida, o rapaz encontra
um malogro ou, pelo contrário, qualquer coisa de adorável. A avó
bons moleiros que o tratam como seu próprio filho e o educam
terna que conta a história ao neto que, sentado no seu colo, a ouve
com carinho e amor.
embevecido, comunicará qualquer coisa de muito diferente do que
podem comunicar o pai ou a mãe que, aborrecidos com a história,
Mais tarde, ele procura refúgio na cave dum ladrão onde uma
mulher velha, sentada à lareira, toma conta dele. Quando chega ao
a lêem aos filhos só por obrigação.
castelo, a rainha dá-lhe as boas-vindas. Depois, vai procurar os três
O sentido de participação activa (o modo como o conto é
127
289
cabelos de oiro do diabo: é então que a bisavó do diabo olha para
transmitido) constitui um factor vital, que grandemente enriquece
ele e o ajuda. Todas estas figuras femininas simbolizam a “Boa
a experiência que a criança dela retira. Implica uma afirmação da
Mãe” e, a nível inconsciente, podem ajudá-lo a recuperar a imagem
sua
arquetípica da mãe positiva.
compartilhada com outro ser humano, o qual, embora adulto, pode
personalidade
através
de
determinada
experiência,
apreciar plenamente os sentimentos e as reacções da criança.
Outro conto de fadas a escolher seria “Pinóquio” (no capítulo
sobre “Pinóquio” como ajuda em psicoterapia, há uma descrição
desta história que ilustra o crescimento de um rapaz, da infância à
Bruno Bettelheim
Psicanálise dos contos de fadas
Lisboa, Bertrand Editora, 1991
(excertos adaptados)
idade adulta). Embora a “Boa Mãe” oriente “Pinóquio”, como é
demonstrado pela fada, ela também o pune quando ele se porta
mal (puxa-lhe o nariz quando ele diz mentiras). Mas é igualmente a
mãe que perdoa e que, pacientemente, lhe dá novas oportunidades.
Esta história ilustra a formação do superego, representado por um
grilo que tenta que Pinóquio distinga o certo do errado, dando-lhe
uma base de apoio para o seu desenvolvimento posterior.
Em “Pinóquio”, encontramos a imagem arquetípica do “Bom
Pai” em Gepetto. Esta figura paterna poderia ser importante para o
rapaz, visto ele não ter tido a experiência de uma figura paterna
estável nos primeiros três anos de vida e ter atingido uma idade em
que é vital para o rapaz poder identificar-se com essa imagem.
É óbvio que ele não pode viver com um pai de conto de fadas
como a única figura paterna com que se possa identificar, mas as
boas
imagens
paternas
podem
ajudá-lo
no
processo
de
identificação. Dado que “Pinóquio” é uma história dramática, será,
porventura, necessário, que o contador faça algumas alterações
para a adaptar à criança.
290
128
No período em que Jeff estava a ouvir contos de fadas e podia
falar sobre a história, começou a crescer emocionalmente e, na
minha opinião, tal deveu-se ao trabalho com estes contos. Foi
como se ele começasse a pensar de uma outra forma e deu-se
mesmo uma mudança na sua relação com os tutores. Foi como se a
leitura dos contos de fadas desse lugar a uma nova forma ―
criativa e intuitiva ― de lidar com os problemas.
Isto foi uma ajuda não só para o rapaz mas também para os
tutores. Foi como se eles possuíssem, a nível emocional, uma
MADASSA
ferramenta muito melhor do que a linguagem que normalmente
usavam quando falavam com o rapaz. Aspectos diversos do conto
Madassa não sabia ler nem escrever.
pareciam fasciná-lo em diferentes alturas. Um tema essencial dizia
Madassa tinha a idade que as crianças têm quando sabem ler
respeito à mãe/madrasta: o que significa ser madrasta e o que é
uma mãe no sentido biológico do termo? Durante algum tempo,
e escrever.
Jeff fingia ser um bebé ainda por nascer, gatinhando para dentro da
Mas Madassa não sabia ler nem escrever.
blusa da mãe-tutora e “nascendo” de novo, vindo cá para fora, tal
Na cabeça de Madassa não havia lugar para palavras.
como os bebés. Insistia em se ligar à “mãe” por meio de uma fita
Na cabeça de Madassa habitava apenas o medo, escuro e
quando iam às compras sob o pretexto de ter medo de se perder.
negro, causado pelos barulhos da guerra, e pelos mortos, muitos
Esta brincadeira faz-nos pensar no cordão umbilical pois era como
mortos.
se ele estivesse a tentar refazer a sua perturbada relação com a
Na cabeça de Madassa vivia uma raiva imensa cheia de
mãe.
Tornou-se claro que, pouco a pouco, ele ganhou confiança no
porquês.
seu novo lar. Depois de um longo período com estes jogos, deixou
Como se as perguntas fossem garras dilacerantes.
de os fazer. Isto aconteceu numa altura em que disse à sua “mãe”:
Na cabeça de Madassa pairava um nevoeiro de tristeza.
“Agora, és minha mãe de verdade, mesmo se não me deste à luz.
Isto é tão possível quanto o é um pai ser o pai verdadeiro mesmo se
129
291
não deu à luz o seu filho”. Embora Jeff fizesse estas afirmações,
estava plenamente consciente dos nomes da sua mãe biológica, das
Tão espesso que ele não conseguia lembrar-se sequer da cara
do irmão ou da irmã, cujo paradeiro ninguém conhecia.
irmãs e irmãos. Sabia onde viviam e, por vezes, conseguia falar
deles. Jeff parecia estar a exprimir o sentimento de que tinha aceite
a tutora como mãe psicológica e, a nível inconsciente, estava a
reparar a imagem negativa da mãe, embora consciente dos seus
Havia dias em que, na cabeça de Madassa morava a mesma
fome que lhe enchia o ventre. A negrura do medo, as garras da
raiva, o nevoeiro da tristeza – e, em certos dias, a fome – ocupavam
toda a cabeça de Madassa.
antecedentes biológicos. Também começou a produzir os seus
Na cabeça de Madassa não havia lugar para as palavras.
próprios contos de fadas. Um dia, contou uma história sobre um
pequeno gatinho. Uma gata e um gato não queriam ter o seu
A professora já não sabia o que fazer para ajudar Madassa.
gatinho apesar de não estarem a morrer (nos contos de fadas, o
Quando tinha tempo, lia-lhe histórias que ele sozinho não
herói ou a heroína perdem frequentemente a mãe porque ela
conseguia ler.
morre). O gatinho sentia-se muito infeliz mas decidiu ir correr
mundo. Passado algum tempo, conheceu dois cavalos grandes que
muito gostariam de ser a sua mãe e pai; tomaram conta dele e
Lia-lhe a história do Pequeno Polegar, que tivera tanto medo
na floresta.
E o medo do Polegarzinho passeava pela cabeça de Madassa.
todos viveram felizes até ao fim dos seus dias.
Lia-lhe a história de Martinho1, que estava sempre irritado.
A história tinha um final feliz tal como a maioria dos contos
de fadas. Ao fazer algo ― correr mundo ― o gatinho tinha
encontrado aquilo que tanto procurara: os pais perdidos. Trata-se
E a irritação do rapaz era igual à que existia na cabeça de
Madassa.
de uma história positiva que parece ilustrar que o rapaz sentia ser
Lia-lhe a história da Menina dos Fósforos.
capaz de tomar o destino nas próprias mãos e que tinha confiança
E a tristeza da Menina chorava na cabeça de Madassa.
nas suas próprias capacidades. É claro que os cavalos são pais
A professora contava-lhe também a história de Pedro e a Lua,
estranhos para um gatinho: não são nada parecidos com um gato
mas, mesmo assim, são suficientemente bons.
Na altura em que a história do gatinho foi inventada, Jeff
do menino que queria fazer florir a terra inteira com plumas de
pássaro.
começou a recordar acontecimentos traumáticos que tinham tido
lugar antes de o levarem para longe de casa. Tinha havido
292
1
130
Personagem do conto “O duende Dudu, professor de felicidade” (Sophie Carquain).
E as plumas dançavam na cabeça de Madassa.
episódios violentos e, aparentemente, nunca ninguém tinha falado
com ele sobre isso, assim como ninguém pensava que ele se
E, entretanto, o que acontecia na cabeça de Madassa?
recordaria de tais episódios. Uma noite, quando ia para a cama, ele
O medo do Polegarzinho deixava palavras para exprimir o
medo.
disse: “Lembras-te das vezes em que me amarravas à cama?”. Esta
pergunta foi o início duma longa conversa sobre aquilo que tinha
A cólera de Martinho deixava palavras para exprimir a cólera.
acontecido na sua vida. Tudo acontecera há muito tempo e muito
A tristeza da Menina dos Fósforos deixava palavras para
longe. A distância no tempo e no espaço era-lhe familiar através
dos contos de fadas e, por isso, falar sobre isso parecia menos
exprimir a tristeza.
A dança das palavras de Pedro e a Lua deixava palavras que
davam vontade de dançar.
perigoso
ficar na cabeça de Madassa.
menos
passível
de
lhe
causar
ansiedade.
Simultaneamente, era possível sustentar o seu sentido de realidade
fazendo-o
Certa manhã, as palavras, fortemente agitadas, não quiseram
e
compreender que
essas
coisas
terríveis
tinham
realmente acontecido quando ele era um rapaz pequeno.
Jeff mostrou-se aliviado ao ver a realidade confirmada e disse:
Então, o menino pegou num caderno, numa caneta, e,
“É horrível quando há algo que nós não sabemos se é um sonho ou
embora desajeitadamente, como uma criança que aprende a andar,
a realidade.” Após ter tido esta conversa, ele parou de gritar e
escreveu:
chorar quando ia para a cama, e o longo hábito de se agarrar a algo
ou alguém foi desaparecendo. A leitura de contos de fadas, as
Madassa medo
Madassa cólera
Madassa tristeza
conversas a seguir às histórias e o facto de Jeff inventar as suas
próprias histórias, ajudaram-no a estabelecer contacto com
Madassa por entre as ervas
Madassa ao vento
Madassa na água
material reprimido que tinha sido fonte de grande conflito. Depois
de se ter apercebido, pela confirmação dos outros, que coisas
horríveis tinham acontecido, que os seus “retratos” da realidade
Madassa cinzento preto azul
Madassa vermelho amarelo preto
Madassa cinzento amarelo verde
estavam certos, que é possível separar a realidade do sonho,
procurar a realidade e encontrá-la, ele retomou a confiança em si
Madassa galo tigre
Madassa sol
próprio e nos outros. O seu comportamento mudou, tendo-se
tornado muito mais capaz de se auto-controlar de uma forma
131
293
saudável.
Os contos de fadas podem ser uma forma ― suave e não
─ Um poema! ─ exclamou a professora. ─ Escreveste um
poema!
Então escrever é isto!
causadora de ansiedade ― de trazer à tona o material conflituoso
dos primeiros anos de vida para que possa ser trabalhado. Outro
Pegar nas palavras das histórias e transformá-las nas palavras
de Madassa.
exemplo que ilustra o acompanhamento através de contos de fadas
Mas é preciso ler muitas histórias para ter muitas palavras.
é o da Anja.
Madassa começou a ler.
Anja tinha nove anos quando a sua mãe biológica morreu.
E a escrever também.
Até essa idade, só tinha vivido dois anos com ela e tinha passado
Quanto mais lia, mais escrevia.
por nove famílias de acolhimento e por diferentes instituições.
Quanto mais escrevia, mais vontade tinha de ler.
Tinha experimentado repetidas situações em que a desapontavam.
Era um círculo mágico.
A mãe tinha-a deixado com apenas três dias. Havia pessoas que a
Madassa não sabia ler nem escrever.
tinham ameaçado e tinha sido vítima de violência e de grande
Mas enchia agora cadernos e mais cadernos.
pressão emocional. Fora totalmente negligenciada pela mãe, o que
Talvez um dia escrevesse um livro.
não sucedera com a irmã mais velha à qual a mãe era bastante
apegada. Anja tinha uma capacidade diminuta de tolerar a
frustração e, quando estava sob stress, reagia de forma regressiva,
Madassa escritor.
com movimentos nervosos, recusando-se a comer.
Anja tinha dois contos de fadas favoritos: “A Rosinha Brava” e
“Cinderela”. Estes dois contos forneceram uma boa oportunidade
Michel Séonnet
Madassa
Paris, Ed. Sarcabane, 2003
(Tradução e adaptação)
para compreender como Anja vivenciava a sua situação.
“Cinderela” tem a ver com a rivalidade entre irmãs e, de um ponto
de vista psicodinâmico, com um trabalho positivo através das crises
de desenvolvimento da criança. Este conto de fadas mostraria o
paralelismo com a sua própria mãe que a não protegera dos
ataques violentos da irmã, que preferia esta e que, por vezes,
294
132
atacava Anja, tal como acontece no conto.
No conto, as irmãs e a madrasta são castigadas. A nível
O USO DAS IMAGENS MENTAIS
simbólico, Anja obtém a sua vingança sem que isso seja ameaçador
para ela. Mas o conto também encerra uma outra mensagem, ainda
Usar as imagens mentais é como comer uma alcachofra. Ao
tirarmos as duras pétalas externas da alcachofra, encontramos as
pétalas internas, mais tenras e delicadas, e o saboroso miolo do
fruto. As imagens mentais actuam da mesma forma. As grossas
pétalas externas são como as elevadas tensões que existem no
mais positiva. Mesmo se tivermos de passar por muitas tribulações
durante o nosso crescimento, há muitas hipóteses de se atingir um
final feliz, desde que nos esforcemos por isso e tomemos iniciativas
(o conto ilustra isto pelo facto de Cinderela plantar o ramo de
aveleira e ir três vezes ao baile).
nosso ambiente quotidiano. Quando impedimos a entrada das
Ao pensar no significado de “A Rosinha Brava”, teremos que
distracções da nossa agitada vida de cada dia, começamos a
ter em conta a idade da criança e o seu estádio de
descobrir um tesouro de criatividade e de sabedoria dentro de nós.
desenvolvimento. Anja ainda não tinha atingido a puberdade. Para
As imagens mentais dirigidas são uma ferramenta para abrir
ela, o encontro entre o príncipe e Rosinha Brava poderia ser
a porta da criatividade. Os exercícios do Giro Interior não devem
entendido como símbolo da harmonia consigo própria e com os
ser
com
outros, o sentimento de um ego forte, a promessa de que o caos
comportamentos neuróticos ou com fenómenos psíquicos. É
interior poderia ser substituído pela harmonia. O conto diz-nos
verdade que as imagens mentais dirigidas são utilizadas na terapia
igualmente que esta harmonia apenas ocorre quando provém de
usados
como
recurso
terapêutico
para
lidar
por médicos competentes, mas não é esse o meu propósito neste
livro. Mas espero que estas reflexões ofereçam a crianças e adultos
uma oportunidade de experimentarem juntos uma vida mais plena
e mais criativa.
um longo período de recolhimento, durante o qual a personalidade
amadurece. A escolha deste conto por Anja parece indicar que, a
nível inconsciente, ela estava a par da sua necessidade de calma e
continuidade na vida para poder desenvolver o ego e esta é,
É possível que queiram usar os exercícios na ordem em que
provavelmente, uma das razões pelas quais o conto ecoou nela.
se apresentam, ou talvez prefiram folhear o livro, descobrindo os
mais adequados às vossas necessidades pessoais. Estas propostas
Parecia que o conto dizia a Anja que ela e a sua nova família
não são sequenciais; no entanto, sugiro que comecem pelo
precisavam de ser pacientes, de ter espaço e tempo para se
exercício de relaxamento.
desenvolverem. Era importante não forçar este processo. Anja
133
295
necessitaria de “dormir” emocionalmente e, por isso, não era bom
A busca da tranquilidade
tentar confortá-la com exigências emocionais. Tal como Rosinha
Ao iniciar o trabalho com as imagens mentais, levei vários
Brava, ela tinha primeiro que ser posta na cama por um longo
meses a fazer exercícios de respiração e relaxamento antes de os
período de tempo. Se nos impuséssemos demasiado cedo, não nos
ensinar aos meus filhos. Utilizei o relaxamento para me concentrar
conseguiríamos aproximar dela. Pelo contrário, ficaríamos presos
e acalmar durante um período emocional particularmente difícil da
nos “espinhos”, tal como os primeiros pretendentes. Só quando ela
nossa vida familiar. Quando apresentei a ideia aos meus filhos
tiver podido descansar, durante “cem anos”, e regressar a uma
pequenos, que tinham então quatro e seis anos, disse-lhes que
posição bastante anterior e segura, é que estará apta a exprimir
estava a fazer um exercício divertido que me ajudava a ficar mais
sentimentos. O príncipe poderá então “acordá-la” com o seu beijo.
calma e a prestar atenção a mim mesma. Disse-lhes que era
muitíssimo parecido com “sonhar acordado” e que acreditava que
tais exercícios nos ajudariam a aprender mais, a ficar mais
tranquilos e a divertirmo-nos mais.
Birgitte Brun, Ernst W. Pedersen, Marianne Runberg
Symbols of the soul.
Therapy and guidance through fairy tales.
London, Jessica Kingsley Publishers, 1993
(Tradução e adaptação)
Convidei-os a fazermos uma tentativa juntos e tratámos de
encontrar uma hora que fosse adequada às necessidades de cada
um. Escolhemos o fim da tarde para “brincar” com as nossas
imagens, e demos a esse momento em que ficávamos juntos o
nome de “hora da tranquilidade”.
A escolha da hora
Em casa
O horário de cada família ditará o melhor momento para o
uso das imagens mentais. Muitas famílias preferem o início da
manhã, antes da ida para a escola e para o trabalho. Alguns pais
disseram-me que estes exercícios de imagens mentais substituíram
a televisão à noite, e eram seguidos pelo relato de histórias
originadas pelas imagens.
Algumas pessoas fazem um breve exercício de relaxamento
296
134
antes do jantar, para que cada membro da família possa comer sem tensão e sem a confusão que muitas vezes caracteriza as refeições em família. Os pais que estão em casa quando os filhos voltam da EROS E PSIQUE escola servem‐se com frequência dos exercícios de imagens mentais para ajudar os filhos a aquietarem‐se depois de um dia agitado. Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
Na sala de aula A quem só despertaria
Os professores utilizam um breve exercício de relaxamento no início do dia, depois da merenda, antes de certas aulas ou antes dos testes. A constância é o segredo. Realizar o exercício à mesma Um infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele dela ignorado,
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino,
Ela dormindo encantada.
Ele buscando-a sem tino
Ele tinha que, tentado,
Pelo processo divino
nós e para as crianças. Essa hora torna‐se para as crianças o Vencer o mal e o bem,
Que faz existir a estrada.
momento que aguardam ansiosamente. E nós não precisamos de Antes que, já libertado,
muito tempo: cinco minutos bastam para começar, mas podemos Deixasse o caminho errado
Tudo pela estrada fora,
Por o que à Princesa vem.
E falso, ele vem seguro,
hora, todos os dias ou uma vez por semana, cria continuidade para aumentar a duração à medida que exploramos o processo. Na minha turma de terceira classe, a cena desenrolava‐se mais ou menos assim. São 8:55 da manhã e eu apago as luzes da A Princesa Adormecida
E, se bem que seja obscuro
E vencendo estrada e muro,
Se espera, dormindo espera.
Chega onde em sono ela mora.
movimentos ou das frases. Um grupo de espertos, que joga War no Sonha em morte a sua vida.
E, inda tonto do que houvera,
canto almofadado dos livros, prossegue num tom abafado de voz. E orna-lhe a fronte esquecida,
As pombas arrulham na gaiola. Ouvimos o barulho dos dominós Verde, uma grinalda de hera.
sala de aula. As crianças, na sua maioria, detêm‐se no meio dos desabando um a um no complicado arranjo criado por Tim. Torno a acender as luzes e as crianças completam as palavras ou frases que estavam na ponta da língua. Põem de lado os jogos ou canetas, À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
Longe o Infante, esforçado,
E vê que ele mesmo era
Sem saber que intuito tem
A Princesa que dormia.
Rompe o caminho fadado.
penduram os agasalhos e reúnem‐se lentamente sobre o tapete. Sentados no tapete, nós, que somos ao todo vinte e oito, Fernando Pessoa
formamos dois círculos concêntricos. Espero até que todos estejam 135
297
acomodados. “Por que não penduras o teu blusão, John? Creio que
ficarias mais à vontade... Alan, achas que te podes sentar perto do
Joe sem sentires vontade de conversar com ele?...Oh! Marissa, estás
de volta! Como foi a viagem?” Depois de alguns minutos de
contorções e bocejos, as crianças e eu conseguimos ficar quietos e
tem início a nossa “hora diária de tranquilidade”.
E eu começo: “Procurem uma posição que possam manter
durante vários minutos e fechem os olhos. Concentrem a atenção
na respiração. Muito bem, relaxem apenas e sintam que a tensão
nos músculos do corpo desaparece a cada respiração que fazem.
Inspirem... e expirem... inspirem... e expirem.”
Qual o melhor ambiente?
Em casa
Procure um lugar dentro ou fora de casa, livre de distracções.
Desligue o telefone e faça saber aos amigos da vizinhança que está
ocupado. Um cartaz criativo que diga GÉNIO A TRABALHAR –
NÃO PERTURBE poderia dar o resultado desejado. É possível que
se queira preparar um ambiente que seja reservado para essa hora,
com almofadas ou esteiras e plantas. Façamo-lo bonito. Algumas
pessoas disseram-me que cada membro da família traz a sua
própria almofada de relaxamento para a sala de estar quando chega
a hora de começar. Isto indica, com um mínimo de conversas e
recomendações, que o processo está prestes a começar.
Uma das minhas alunas organizou uma “sala de meditação”
no seu guarda-roupa. Tirou os sapatos do chão do armário e
encheu-o de almofadas azuis macias. Então convidava a mãe todas
136
as noites para refazer com ela o exercício de imagens mentais que
OS CONTOS E OS MITOS NO ENSINO
UMA ABORDAGEM JUNGUIANA
tínhamos realizado naquele dia, na turma. E esses exercícios
ajudaram a mãe a passar por um divórcio muito penoso.
Na sala de aula
Por mais importante que seja para um homem
poder ganhar a vida, isto ainda não é suficiente para que
ele possa realizar o sentido da sua vida.
Se tiver na sala uma área atapetada, os seus alunos podem
sentar-se num ou em dois círculos concêntricos. Os alunos mais
velhos sentam-se nas suas carteiras, com a cabeça baixa, ou
Schelling
simplesmente fecham os olhos ou olham para o chão. É bom que
haja um sinal combinado previamente para dar início ao exercício
de imagens mentais. Eu apago as luzes. Outros professores têm
Uma análise da nossa escola mostra que o professor não está
utilizado com sucesso música suave, o som de um gongo ou de um
a ser preparado para ser educador. Acredita-se frequentemente que
sino ou o acender de uma vela.
um bom ensino se prende com um determinado conteúdo, quase
A estrutura da mente
nunca escolhido pelo professor, apenas determinado por alguém
É melhor trabalhar com as imagens mentais quando se está
que se desconhece, e que deve ser transmitido ao aluno com um
bem relaxado. Tentar começar um tal exercício quando se está
método que muda conforme a moda e os ventos. Não admira pois
irritado ou perturbado interferirá provavelmente no processo.
que os problemas e os desencontros sejam inúmeros. Além disso,
Algumas famílias e turmas escolares chegam a servir-se dos
os pais também não estão preparados para a tarefa de educar,
exercícios de relaxamento antes de tentar resolver uma discussão,
porque pouco sabem a respeito dos seus filhos. Uns dão-lhes
pois acham que as soluções se tornam então mais flexíveis e
liberdade a mais, outros a menos. Outros ainda compram tudo o
criativas.
que encontram nas prateleiras das livrarias, arrumadas por faixa
Estes exercícios são agradáveis. Partilhamos com os nossos
filhos aspectos de nós mesmos que habitualmente não revelamos
aos outros, e por isso podemos descobrir que nos tornamos mais
próximos. Podemos descobrir que a “hora tranquila” se torna uma
oportunidade para partilharmos os nossos desejos, sonhos e
temores uns com os outros.
etária, como se as crianças tivessem entre si uma única diferença: a
idade!
Mas educar é algo mais do que isto: educar é formar e
informar. Isto significa que temos de habilitar as crianças a viverem
neste mundo, felizes, sem conflitos ou, melhor ainda, aptas a
enfrentarem
137
todos
os
conflitos
de
maneira
a
não
se
299
desestruturarem. Isto implica que a educação deverá atender à
Resistência ao uso das imagens mentais
criança nas suas características presentes, apresentando-se-lhe, ao
Em casa
mesmo tempo, conteúdos do mundo social que lhe sejam
oportunos e adequados. Para isto precisamos de a conhecer bem. O
primeiro passo é a nossa postura em relação à criança: temos de a
ouvir e de a observar, esquecendo-nos de todos os conceitos e
preconceitos. O segundo passo para a conhecermos é admitirmos
É possível que se encontre resistência por parte de alguns
membros
da
família,
mas
não
nos
deixemos
intimidar.
Expliquemos, aos nossos relutantes filho ou esposa ou marido, que
gostaríamos de tentar fazer estes exercícios para ajudar todos a
relaxar, a aprender mais facilmente a melhorar as aptidões da
que ela é um mundo muito mais rico do que supomos, e que
memória, a viver em harmonia e a ser mais criativos e fecundos. É
precisamos de fazer com que este se desenvolva harmoniosamente.
difícil questionar tais objectivos!
Afinal, como são constituídos e como funcionam o corpo e a psique
da criança?
Trabalhe com os membros da família que desejem associar-se. Os outros virão juntar-se quando estiverem dispostos. Deixe
A psicologia do sonho, do comportamento, e o conhecimento
bastante claro, no entanto, que não podem interferir ou fazer
das características da psique humana devem interessar a todos os
barulho (sobretudo a ver televisão) quando o resto da família
que se ocupam da educação, pois conteúdos e estímulos adequados
estiver reunido na sua “hora de tranquilidade”. Talvez possam ler
a cada fase da vida e às características do indivíduo levam a um
um livro, ouvir música suave ou desenhar enquanto o resto da
melhor desenvolvimento, quer no presente quer em fases
família estiver ocupado com as imagens mentais.
posteriores. Os contos de fadas, os mitos, a arte em geral, são
Podemos pensar que a idade tem influência no quanto uma
formas simbólicas pelas quais a psique se manifesta e que podem
criança deseja participar. Quando os meus filhos eram mais novos,
contribuir para a formação harmoniosa da criança. Apesar das
ficavam ávidos por juntar-se a mim. Ao chegarem à adolescência,
contingências externas, das conjunturas sócio-político-económicas,
outros interesses passaram a ser prioritários. Na altura do ensino
há saídas para o ser humano, não somente a partir da
colectividade, mas, sobretudo, a partir da modificação de cada um
― o caminho a que Carl Gustav Jung chamou o “processo de
individuação”.
secundário, o meu filho pedia muitas vezes um exercício mental
antes de uma prova importante, para o ajudar a relaxar e a
melhorar a memória. Aos dezassete anos, a minha filha preferia
relaxar e usar a criatividade a ouvir música e a pintar.
Qualquer necessidade individual e modalidade de expressão
Para Jung, “individuação” significa tornar-se um ser único,
devem ser acatadas e respeitadas.
dar a melhor expressão possível às nossas características pessoais e
300
138
intrínsecas. Ora, para entendermos o que ocorre internamente com
Na sala de aula
Embora as técnicas de visualização e de imagens mentais
a criança quando ouve ou lê uma história de fadas, será útil
tenham obtido ampla aceitação e uso no desporto, nos cuidados
interpretarmos a simbologia dos contos de fadas segundo a teoria
com a saúde e nos negócios, muitos estudantes não tiveram
junguiana. A criança ouve a história e ela pode levá-la a uma
contacto com esses recursos de ensino na sala de aula. Explique aos
mudança pessoal, não porque a entenda (usando, portanto, o
seus alunos e aos pais deles que o objectivo desses exercícios é
intelecto), mas sim porque as imagens que ela contém vão directas
diminuir a tensão, aumentar a aprendizagem e melhorar as
ao seu inconsciente, vão “trabalhar” os seus conteúdos e resolver
aptidões da memória. Saliente que a atenção é o requisito
algum problema eventual.
preliminar para ouvir e aprender, e que as imagens mentais
auxiliam o aluno a concentrar-se e a prestar atenção. Digo sempre
aos meus alunos que elas constituem um instrumento que valorizo
Ao usarem a mesma linguagem que o inconsciente, o conto
de fadas e o mito falam directamente com a criança, sem a
mediação da razão ou sem necessidade de explicações, conselhos
na minha vida pessoal, de modo a permanecer calma e centrada.
ou sermões. Eles falam ao inconsciente através de imagens que vão
Sugiro-lhes que fechem ou baixem os olhos com um olhar
“suave” ou com as pálpebras semicerradas. Fixo duas regras antes
de começar: não falar ou cochichar durante o exercício nem
estorvar o outro. Compreendo que, devido à estranheza da técnica,
nem todos os alunos participem inicialmente, mas todos devem
“conversar” com as bruxas, os monstros, os medos. Com o auxílio
das fadas ou da espada mágica, a criança adquire forças para vencer
o que a assusta ou preocupa. Enquanto não soluciona o seu
problema inconsciente, ela ouve ou lê a história inúmeras vezes,
aprender a respeitar a escolha dos outros. É possível que se passem
até que o resolve. É esse um dos motivos que leva as crianças a
algumas semanas até que professor e alunos se sintam à vontade
pedirem que lhes contem várias vezes a mesma história.
com o processo. Recomendo aos professores que dêem um prazo
Uma criança, paciente de um psicólogo, não dormia porque
de seis semanas antes de esperar resultados positivos. No início,
tinha medo. O psicólogo sugeriu à mãe que lhe contasse histórias
esperem risos abafados. Os alunos podem sentir-se embaraçados,
preocupados pelo facto de outros estarem a olhar para eles, ou
considerar tola a ideia de ter, na escola, uma hora para exercitar o
cérebro. Notei que as risadas desaparecem se os alunos não forem
alvo de atenção por isso.
de fadas, sem escamotear qualquer motivo de medo, sem tirar
nada. O menino passou a dormir. Os monstros e as bruxas não
estavam no quarto, debaixo da cama, mas dentro da cabeça do
garoto. No momento em que a criança ouve uma história, ela
revive-a. Digo “revive”, pois o conto e o mito são manifestações
O mais surpreendente para mim é que os próprios alunos
139
psíquicas que reflectem a natureza da alma. São histórias que se
301
passam no nosso interior e que usam uma linguagem simbólica.
pedem aos que os interrompem que parem. Não querem que a sua
Aliás, enquanto a nossa língua se expressa por signos, o mito, os
hora de imagens mentais seja interrompida. Quando ensinava a
contos de fadas e os sonhos utilizam a mesma linguagem que o
terceira classe, os meus alunos pediam aos retardatários que
inconsciente: o símbolo.
esperassem fora da sala até que a nossa “hora de tranquilidade”
terminasse. Em breve deixou de haver retardatários! Às vezes há
Sobre a sua interpretação, eis o que diz Jung: “ (…) o médico
deve decidir-se a encarar a fundo o inconsciente, a fim de se
resistência dos pais dos alunos. Na minha turma, alguns pais eram
inicialmente cépticos; por isso convidei-os a participar na nossa
defrontar com ele. Naturalmente, isto não é o mesmo que interpretá-
hora matinal de tranquilidade. Sem excepção, todos gostaram dela.
-lo. Confrontar-se com o inconsciente é algo de muito diverso: trata-
E vários pais passaram a unir-se a nós para a “hora de
-se de libertar os processos inconscientes que irrompem na
tranquilidade” no momento em que trazem os filhos à escola.
consciência sob a forma de fantasias. Pode-se então interpretá-las.
Queriam começar o trabalho ou outras actividades quotidianas
Em muitos casos é essencial para o paciente ter uma ideia acerca
relaxados e concentrados.
dessas fantasias; mas o importante é revivê-las plenamente e
Uma mãe disse-me que a filha se queixava de ter de fechar os
também compreendê-las. Entretanto, não atribuo uma primazia à
olhos. Isso assustava-a. Sugeri que mantivesse os olhos abertos, e
compreensão. O essencial, é bom repetir, não é a interpretação e a
isso aliviou-lhe o medo. Um menino do terceiro ano e a sua mãe
compreensão das fantasias, mas a vivência que lhes corresponde.
pediram que ele não fosse incluído nos exercícios. Ele achava-os
Explicando melhor o problema da interpretação, Jung
acrescenta que compreender intelectualmente um sentimento
negativo, por exemplo, ou reconhecer a sua falsidade, não é
suficiente para o eliminar. Os sentimentos não podem ser atacados
ridículos, mas gostava de ouvir o que os colegas tinham a dizer.
Permiti que escolhesse entre juntar-se a nós no tapete e ouvir ou
sentar-se e ler no canto destinado à leitura. A maior parte do
tempo sentava-se do lado de fora do círculo, ouvindo as outras
crianças descreverem as suas imagens.
pelo intelecto, porque não têm base intelectual ou racional; as suas
Continuação
raízes mergulham numa vida de fantasia irracional e inconsciente,
inacessível à crítica. Em tais casos, deve dar-se ao inconsciente a
Depois de um exercício de imagens mentais dirigidas,
oportunidade de produzir fantasias. Para o ouvinte, como já foi
algumas crianças gostam de comentar como o seu corpo se sentiu
dito, não é necessário interpretar as histórias. Entretanto, para
ou que imagens lhes ocorreram. Outras preferem desenhar ou
compreendermos o que ocorre no seu inconsciente, ao ouvi-las,
pintar as imagens que surgiram, escrever sobre elas, ou expressá-
temos necessidade de conhecer a teoria junguiana.
las em movimento. Vá devagar no começo e respeite o momento de
302
140
cada um. As crianças estão muito mais próximas das suas imagens
A natureza finalista e causal do símbolo
interiores do que os adultos. Dê-lhes o tempo que desejarem para
revelar as suas experiências. Não se pode forçar uma orquídea a
A minha metodologia baseia-se, como a de Freud, na prática
florir; podemos, no entanto, deleitar-nos com o processo do
da confissão. Como ele, também levo em conta os sonhos, mas é na
desabrochar.
maneira de apreciar os sonhos que as nossas concepções divergem.
Para ele, o inconsciente é essencialmente um pequeno apêndice da
Confiança no processo
consciência no qual estão reunidas todas as incompatibilidades.
Uma coisa que aprendi com os anos de uso dos exercícios de
Para mim, o inconsciente é uma disposição psicológica colectiva de
imagens mentais com crianças e adultos, é que não se deve ter
natureza criativa. Dessa divergência radical decorre também uma
esperanças definidas de como e de quando as pessoas reagirão.
maneira totalmente diversa de apreciar o simbolismo e o seu
Tenho, porém, de facto, plena confiança em que este processo tem
método
grande valor para aqueles que se servem dele. Descubra os
exercícios que são úteis para si e para os seus filhos; improvise;
invente novos exercícios. Dê livre curso à sua imaginação.
de
interpretação.
Freud
procede
de
maneira
essencialmente analítica e redutiva. Eu, porém, acrescento também
um procedimento sintético que põe em relevo o carácter finalístico
das tendências inconscientes em relação ao desenvolvimento da
Talvez julgue que o relaxamento sentado seja ineficaz para si
personalidade.
e para uma criança hiperactiva. Talvez queira ficar de pé ou deitar-se. Muitos pais e professores mantêm as crianças pequenas ao
colo, esfregando-lhes suavemente as costas, enquanto dirigem um
O sentido latente de uma fantasia pode ser de natureza
causal, isto é, atribui-se o surgimento da fantasia a uma causa
exercício de relaxamento. Isto tem um efeito calmante e
psicológica. Um desejo reprimido, como o sexual, por exemplo,
tranquilizador. Outra sugestão é dar à criança uma pequena bola
pode suscitar fantasias eróticas. Freud trabalhou nessa direcção.
de argila para segurar enquanto faz o exercício. Isto é
Jung, porém, considera que a psicologia do indivíduo, além de
particularmente útil para alunos cinestésicos.
condicionada por circunstâncias histórico-temporais, problemas
Alunos e adultos de mais idade podem adormecer se ficarem
fisiológicos, biológicos ou pessoais, enfim, por algo que já se
deitados enquanto fazem os exercícios de imagens mentais, e o seu
consumou, também é, sempre, um devir, um processo de criação. É
ressonar pode perturbar a turma! Pode sugerir-lhes que se sentem
este aspecto da natureza do símbolo em Jung que norteia a minha
numa posição cómoda, com as costas apoiadas na parede ou numa
análise dos contos de fadas. Paul Ricoeur também dizia o seguinte:
cadeira. Algumas crianças e adultos preferem movimentar-se
Ora, a imaginação tem uma função metafísica que não
141
303
se poderia reduzir a uma simples projecção dos desejos vitais
enquanto trabalham com as imagens mentais. Um senhor
inconscientes e recalcados (conceito freudiano); tem uma
movimenta
função prospectiva, uma função de exploração face aos
desenhando no ar as imagens que vê na mente. É engenheiro e
possíveis do homem. É, por excelência, a instituição e a
inventor e utiliza as imagens mentais para activar a sua imaginação
constituição do possível humano. É na imaginação dos seus
fértil. Alguns exercícios físicos de alongamento antes das imagens
possíveis que o homem exerce a profecia da sua própria
existência. Compreende-se, por conseguinte, em que sentido se
mãos
durante
o
processo,
mais vividas.
Como facilitar a expressão de si mesmo
sonhos de inocência e reconciliação que a esperança trabalha
reconciliação são mitos; não no sentido positivista de mito, no
as
mentais dirigidas podem preparar o corpo e a mente para imagens
pode falar de uma redenção pela imaginação: é através dos
no ser humano; no sentido amplo da palavra, as imagens de
constantemente
Não há limites para a criatividade com que as crianças
escrevem quando inspiradas pela sua própria imaginação. Elas
podem deslocar-se para o futuro, rever o passado e criar invenções
sentido de lenda ou de fábula, mas no sentido da
para fazer os deveres. Se sugerimos um exercício de imagens
fenomenologia da religião, no sentido de uma narrativa
mentais no qual elas tenham que resolver problemas ambientais ou
significativa do destino humano globalmente considerado;
negociar um acordo pacífico para uma guerra, não há limites para
mythos quer dizer palavra; a imaginação enquanto função
as soluções criativas que ouviremos. Nunca mais nos depararemos
mitopoética é também a sede de um trabalho em profundidade
com um “Não tenho nada sobre que escrever”.
que comanda as mudanças decisivas das nossas visões de
mundo.
É fundamental, então, frisar-se a característica finalista do
símbolo em Jung. Foi o que iniciou a sua ruptura com Freud. Bruno
As crianças sabem naturalmente contar histórias, e um
exercício de imagens mentais possibilita a expressão de sonhos e de
visões coloridas. É um modo de pôr a trabalhar as fantasias: dá-se
efectivamente à criança permissão para devanear, durante um
período de tempo definido, e depois para expressar essas imagens
Bettelheim, em Psicanálise dos Contos de Fadas, faz, por vezes, uma
em palavras, desenhos ou movimentos. As imagens mentais
análise demasiado freudiana das histórias. Considera, por exemplo,
dirigidas são muito eficazes no ensino da redacção porque
como símbolos sexuais, os sapatinhos da Borralheira, e o noivo
permitem que as crianças exprimam em palavras as suas
com aparência de animal como uma atitude negativa prévia
experiências imediatas.
perante o sexo. Já a análise finalista dará uma interpretação
As imagens mentais também estimulam a criança com menor
diferente a estas mesmas histórias.
304
142
capacidade verbal a expressar as suas ideias. Às vezes, as crianças
As várias interpretações dadas aos contos e sonhos não são
sentem que não têm nada que valha a pena dizer, ou que outros o
excludentes. Somos seres complexos a vários níveis. Nós,
dizem melhor. Janine era uma aluna assim. Com oito anos,
ocidentais, num meio cultural onde existem muitos tabus em
canhota, era relutante em expressar as suas ideias na sala de aula.
relação ao sexo, recebemos uma educação repressora e podemos,
Quando falava, a voz era tão discreta que era difícil ouvi-la. Tinha
portanto, ter problemas sexuais que se revelam nos sonhos. Numa
grande dificuldade em ler em voz alta num grupo. Trocava muitas
letras, tanto no trabalho escrito como na leitura.
primeira análise, buscando a causa, pode-se achar a origem do
sonho. Pode ocorrer, entretanto, que uma pessoa tenha sonhos
Depois de um exercício de imagens mentais, no qual fizemos
com os mesmos símbolos que, à primeira vista, podem levar a
um passeio a um planeta imaginário, ela tornou-se verbalmente
concluir a existência de problemas sexuais. Fazendo-se, porém,
mais expressiva. Enquanto estivessem nesse planeta, as crianças
deveriam agir como exploradores, observando como era a vida ali,
como comunicavam entre si as diferentes formas de vida, como
viviam, em que consistiam as suas estruturas familiares ou sociais.
As crianças tinham dois minutos para, de olhos fechados, soltar a
imaginação e fazer a sua inspecção.
uma interpretação finalista, tal pessoa poderia, por exemplo, estar
prestes a suplantar alguma fase da sua evolução interna. A
característica
do
símbolo
é
a
de
permanecer,
portanto,
indefinidamente sugestivo e complexo.
A trama dos contos de fadas e o processo de individuação
Quando terminamos a nossa viagem, Janine fez o seguinte
Para ler um conto sob o ponto de vista da psicologia analítica
relato:
junguiana, é necessário levar em conta que todas as personagens
O meu barco à vela levou-me até perto dessa terra
são uma só – o protagonista diante de todos os aspectos da sua
distante e, depois, tive de fazer o resto do percurso
psique e o caminho frequentemente difícil para alcançar a
montada num golfinho. Lá, as pessoas eram muito
individuação. É a história de nós mesmos a caminho de nós
pequenas, mas tinham mães e pais grandes. As pessoas
mesmos. Nos contos, as personagens somos nós mesmos, vistos
pequenas viram-me chegar e prepararam uma grande
através das representações simbólicas ou arquétipos.
refeição. As comidas eram todas geleias de sabores
Os arquétipos
diferentes. Eles também tinham salões cor de laranja.
Dos salões cor de laranja podia ver-se tudo lá para fora,
Voltamos, então, à teoria junguiana: vamos conhecer os
mas ninguém conseguia ver o lado de dentro. Então, fui
arquétipos, pois são eles as personagens dos contos de fadas. Para
143
305
Jung, a psique é constituída por conteúdos conscientes e
conhecer a mãe e o pai das pessoas pequenas. Acharam-
inconscientes. Os conteúdos inconscientes podem ser pessoais e
me esquisita porque eu não era nem grande como a mãe
colectivos. Os primeiros são produto da experiência pessoal,
e o pai delas, nem pequena como elas. Vestiram-me com
enquanto os segundos são inatos. Jung usou a expressão “colectivo”
uma roupa especial, igual às que usavam.
porque o inconsciente colectivo não tem natureza individual mas
universal. Quer dizer que, em contraposição à psique individual, há
também conteúdos e modos de comportamento que são os
mesmos em todas as partes e para todos os indivíduos. Aos
Um mês depois, repetimos o mesmo exercício. Janine voltou
a visitar a terra das pessoas pequeninas e continuou as suas
aventuras:
Hoje voltei à terra das pessoas pequeninas. Resolvi
conteúdos do inconsciente colectivo Jung deu o nome de
perguntar qual o nome do planeta delas para não ter de dizer
arquétipos.
“terra dos pequeninos”. Disseram-me que não tinha um nome
Os contos de fadas são histórias de encantamento: de
e que eu podia inventar um. Levei algumas horas para me
príncipes transformados em animais ferozes, em lindas aves ou em
decidir. Durante esse tempo, disseram-me que me mostrariam
répteis repulsivos, ou ainda do príncipe que se oculta sob a pele de
o jardim da Primavera. Havia lá uma porção de coisinhas
algum bicho. Frequentemente é uma bruxa ou o próprio diabo que
redondas, esverdeadas e acastanhadas, que brotavam da terra.
faz o encantamento. E é para encontrar a princesa e/ou por provas
Próximo delas, mantinham pequenos copos d’ água. Eu disse:
que tem de vencer que o príncipe é redimido. Dependendo do
“Estas não são flores, são apenas bolinhas.” Então eles
contexto da história e do animal que aparece, o encantamento tem
mergulharam uma das bolas na água e todos gritaram “rosa”.
significados diferentes. Mas trata-se sempre de uma interferência
Tiraram-na da água e secaram-na e tinham nas mãos uma
de conteúdos inconscientes que invadem a consciência e que têm
bela rosa. E podiam fazer isso com qualquer espécie de flor ou
de ser integrados para a saúde física e mental da pessoa.
de arbusto. Sentei-me então para imaginar um nome para o
O Conto da Rã
planeta. Pensei que seria bom se fosse um nome que tivesse
uma relação com eles. Bem, havia muitas flores e árvores e
Era uma vez uma criancinha que, diariamente, ficava
todos eram felizes. Então eu podia misturar as palavras “flor”
sentada no terreiro e a mãe dava-lhe sempre um prato de leite,
(flower) e “árvore” (tree) e isso daria “Livre” (free). Assim faria
no qual punha pedacinhos de pão; era esta a sua merenda.
sentido porque eles são felizes e livres. Decidi-me por ela e,
Mas assim que começava a comer a merenda, de uma
306
144
quando lhes disse, todos gostaram do nome. Depois tive que ir
frestazinha da parede surgia uma pequena rã que metia a
embora. Foi uma aventura maravilhosa.
cabecinha no prato e compartilhava da refeição. A criança
ficava muito alegre com essa companhia; se, porventura, a rã
Passados dois meses Janine tinha melhorado tanto a sua
capacidade de falar quanto a de escrever. Tendo adquirido
não aparecia logo, punha-se a chamá-la:
confiança na manifestação das suas próprias imagens, entrava mais
Vem, rãzinha pequenina,
vem depressa, bichinha;
vem beber o teu leite
e comer a tua papinha!
livremente nas discussões da aula. O volume e o tom da sua voz
mudaram e a leitura oral tornou-se nítida e confiante. Deixou de
trocar a posição das letras na leitura e na escrita. Não estou a
atribuir esses progressos exclusivamente ao uso das imagens
A rã vinha a correr e comia com grande apetite.
mentais dirigidas, mas ficou claro que a expressão verbal de Janine
Mostrava-se, porém, muito reconhecida, trazendo à criança
melhorou muito devido ao uso dos exercícios.
uma porção de coisas lindas do seu tesouro escondido: pedras
preciosas, pérolas e brinquedos de ouro. Mas a rã só tomava o
As artes da linguagem e da leitura
leite e deixava sempre o pão; notando isso, a criança, um dia,
As crianças gostam de ler as suas próprias histórias e as dos
seus companheiros de turma. Aprendem a ler melhor quando lêem
algo com implicações pessoais. Depois de um exercício de imagens
mentais, podemos sugerir aos nossos filhos mais novos ou à turma
pegou na colherinha e bateu-lhe levemente na cabeça,
censurando-a:
– Vamos, bichinha, come também o pão!
que desenhem as figuras que viram na sua imaginação. Podem
ditar-lhe as histórias a si ou a uma pessoa mais velha que possa
A mãe da criança estava na cozinha e ouviu o filhinho a
escrever as palavras. Em seguida, as crianças lêem as histórias em
falar com alguém; saiu a ver quem era e, deparando com a
voz alta. Que orgulho sentem ao escrever e ler em voz alta as suas
criança a bater com a colher na cabeça do animalzinho,
próprias
assustou-se. Correu para ele e, com um pau, matou a pobre
histórias!
Pode-se,
além
disso,
aumentar
o
seu
conhecimento do vocabulário, usando as palavras que aparecem na
rãzinha.
história para ilustrar regras fonéticas e ortográficas.
Depois de um exercício de imagens mentais, a história
seguinte foi desenhada e ditada a mim por Taro, um menino de
sete anos classificado pelo professor como “incapaz de ler”. Em
145
Desde esse momento, verificou-se na criança uma
mudança radical: enquanto a rã comia junto dela, a criança
desenvolvia-se forte e robusta. Mas agora, o seu rostinho
307
rechonchudo e corado perdia o viço e o pequeno emagrecia
seguida, ele leu a sua história em voz alta para o grupo,
cada vez mais. Não demorou muito e a coruja começou a piar
surpreendido pela recém-adquirida capacidade de ler e orgulhoso
durante a noite, o pintarroxo pôs-se a colher galhinhos e
dela:
Quando olhei para os espelhos, vi um arco-íris a formar-
folhinhas para fazer a coroa de defunto e pouco depois a
-se e no próprio círculo interior do arco-íris havia uma lista
criança foi levada para o cemitério.
preta que estava a ser puxada para baixo. Quando chegou ao
A rã tem nos contos diversas acepções simbólicas. A principal
centro, transformou-se num pequeno ponto e lentamente
está relacionada com o seu elemento natural: a água. A água
desapareceu. Compreendi então que aquele era o ponto dentro
simboliza frequentemente o inconsciente. Portanto, pode-se
de mim onde me faltava a confiança. E quando soube disso,
considerar a rã como aquela que traz à consciência conteúdos do
senti-me a sair do chão e pus-me a voar como Jonathan
inconsciente, e isto devido à sua possibilidade de viver em ambos
Livingstone Seagull. Comecei então a aprender a controlar o
os elementos, terra e água.
meu corpo, e podia voar rápido ou devagar e de cabeça para
baixo. Depois, comecei a sentir como se estivesse a
Jung frequentemente apontava para a necessidade de haver a
integração do inconsciente no consciente, de modo a assegurar a
transformar-me numa outra pessoa.
saúde psíquica da pessoa: se os conteúdos inconscientes
A redacção criativa
permanecerem
desconhecidos,
eles
ficam
autónomos
no
inconsciente, procurando, sem cessar, uma porta para se
manifestar. É isto que origina os famosos desconfortos das
Depois de experimentar uma rica imagem visual, uma
criança, Jessica, pôde descrevê-la com as seguintes palavras:
depressões, angústias e até neuroses.
A folha do ácer
Este conto simboliza pois essa interferência do inconsciente
A cor da folha
no consciente, ambos vivendo harmoniosamente, cada um
é como um pôr-do-sol laranja
alimentando o outro: o último, com o alimento da terra, o
A textura da folha
é como as pedras redondas da estrada
primeiro, com o alimento do conhecimento interior (os tesouros).
O aroma da folha
A mãe do menino, entretanto, interfere nessa harmonia ao matar a
é ainda o mais doce
rã, isto é, não permitindo que o inconsciente se manifeste. O
Mas o gosto da folha
menino, então, adoece e morre.
308
é celestial.
146
Este poema foi precedido por um exercício de imagens
mentais que realizei com a minha turma da terceira classe, levando
os alunos a conhecer os prazeres que as folhas de Outono
Em As Três Penas aparece outra vez a rã, e uma vez mais
com essa característica:
provocam nos sentidos. Numa viagem à Costa Leste, reuni folhas
de muitas variedades, cores, formas e tamanhos. Os alunos da
Um rei tinha três filhos. Os dois mais velhos eram muito
minha turma tinham crescido no Sul da Califórnia e nunca tinham
inteligentes e vivos e o mais novo muito simples e pouco
visto o magnífico espectáculo das cores outonais. Sem lhes mostrar
amante de desperdiçar palavras. O monarca, já idoso, não
as folhas, pedi às crianças que fechassem os olhos e usassem todos
sabia a quem deixar o reino. Assim, um dia, chamou os três e
os sentidos quando examinassem o que estava prestes a oferecer-
disse-lhes que fossem correr mundo. Aquele que lhe trouxesse
-lhes.
o tapete mais rico, seria o rei. Para que não houvesse
discórdias entre eles, atirou para o ar três penas e ordenou que
Senta-te numa posição confortável e fecha os olhos. Põe as
mãos nas coxas, com as palmas para cima. Concentra a atenção na
cada um deles seguisse uma delas. Uma pena foi para oeste,
outra para leste e a última caiu no chão.
respiração e quando respirares, o corpo e a mente ficarão cada vez
mais relaxados. (Pausa) Imagina que estás sentado debaixo da tua
Vendo isto, um irmão seguiu para a direita, outro para a
árvore predilecta e que começa a soprar uma brisa suave. (Pausa)
esquerda e o mais novo, chamado Simplório, ficou no lugar
Sentes as folhas que caem da árvore. (Deixe cair as folhas
onde tinha caído a pena. Triste e abatido, o pobre Simplório
lentamente sobre as crianças.) Ainda com os olhos fechados, pega
reflectia em silêncio ao lado da pena, quando se abriu um
numa folha e segura-a nas mãos. Sente as nervuras da folha e
alçapão no chão. Desceu por uma escada e encontrou uma
percebe a sua forma e tamanho. Imagina de que cor pode ser.
enorme rã, cercada de outras menores. Depois de ter contado
Esfrega-a no rosto e repara na sua textura. Cheira-a... O que é que
à rã o que acontecera, esta tirou de uma caixa um tapete e
ela te faz lembrar? Imagina qual é o seu gosto. Podes-te levantar, se
entregou-lho. Como os dois outros irmãos subestimassem o
quiseres, e move-te imitando a queda suave das folhas no Outono.
(Pausa) Quando estiveres pronto, abre os olhos devagar.
menor, não se esmeraram em procurar um tapete. Simplório
apresentou o tapete mais bonito e ia ficar com o reino, quando
os outros dois pediram outra oportunidade.
A reacção a este exercício serviu-me para saber como é
Desta vez o rei pediu um anel. As penas foram lançadas
importante o uso dos sentidos na aprendizagem. E um aluno disse:
147
309
e tudo aconteceu como antes. Simplório contou à rã o
sucedido e ela deu-lhe um anel riquíssimo, coberto de pedras
Vejo folhas a dançar na brisa
preciosas. Simplório ganhou novamente aos irmãos, mas estes
Algumas são amarelas, verdes e vermelhas,
pediram uma nova oportunidade. Mas Simplório acabou por
Outras parecem-se com coisas que jamais vimos antes.
ficar finalmente com o reino porque a rã, que estava bem
A minha tem cheiro de carvalho e, com certeza, é a melhor.
próxima de si [as verdadeiras respostas no caminho para nós
A textura da folha cheira a vermelho
A forma da folha lembra-me uma mão,
mesmos estão por perto!] trazia-lhe tudo o que ele pedia.
Quando a levanto, posso ver a sombra das nervuras.
Esta história, além de mostrar a feliz intervenção do
inconsciente, mostra que esta ocorre no príncipe que não é tão
inteligente como os outros. Parece que a inteligência não tem
muito a ver com a capacidade de poder ouvir o que o inconsciente
tem a dizer!
Neste poema, a textura cheira a vermelho. Este menino
cruzou o sentido táctil com o olfacto e a visão. Este dom, chamado
sinestesia, é um instrumento eficaz na ampliação da memória. Este
aluno, em particular, apresentava a melhor memória da turma e
estava adiantado um ano em matemática. As imagens mentais
dirigidas são um meio excelente para criar, de acordo com um
Amarilis Pavoni
Os contos e os mitos no ensino.
Uma abordagem junguiana
S. Paulo, Ed. Pedagógica e Universitária, 1989
(excertos adaptados)
ponto de vista diferente, as personagens de uma narrativa. As
crianças relacionam-se de modo muito intenso com os animais e
criam empatia com os seus sentimentos. Elas revelam muito do
que têm dentro de si mesmas quando assumem o papel de um
animal favorito.
Histórias extraordinárias surgem quando a criança adquire as
características e atitudes físicas de uma personagem que encontrou
no exercício de imagens mentais. Estas personagens tornam-se
multidimensionais,
e não
meras
caricaturas
monótonas
e
estereotipadas. Num exercício de imagens mentais em que os
alunos foram instruídos para se transformarem nos seus animais
favoritos, uma criança (Jenny, de 10 anos) escreveu a seguinte
310
148
história:
Eu estava a descer um caminho pedregoso. Tinha
O ELOGIO DA NARRATIVA
calor e sede. A minha boca estava cheia de água. De
repente, vi surgir um tanque e corri rapidamente na sua
direcção. Fui tão depressa que nem reparei que andava
Em vez de deixarmos a nossa vida transformar-se numa
sobre quatro pés. E os meus bigodes estavam a fazer
história, não seria melhor evocar as histórias que a marcaram,
cócegas nas minhas bochechas. Ao chegar ao tanque,
aquelas que lhe ofereceram, fosse através da magia da escuta ou da
imediatamente vi que me tinha transformado num dos
leitura,
meus animais favoritos. Um gato! Um gato com longos
existências
longínquas
e
estrangeiras,
embora
estranhamente familiares? Cada um de nós pode partir à procura
pêlos castanhos. Molhei a pata no tanque e lambi-a com
da narrativa perdida e reencontrar, se não o primeiro conto ouvido,
a ponta da minha áspera língua cor-de-rosa. Depois de
pelo menos a imagem marcante mais antiga associada a um conto,
um certo tempo, imaginei que o gato em que me tinha
indissociada de uma voz, de um serão longínquo da nossa infância,
transformado era exactamente como eu. Com a unha,
de uma viagem de comboio.
desenhei um gato. Até como gato eu podia desenhar
A primeira narrativa, mesmo que muito longínqua no tempo,
gatos melhor do que ninguém.
fica para sempre intacta na nossa memória. Nunca deixou de
Justamente nesse instante senti alguém tocar de
funcionar como uma visão do mundo para nós. Quando a ouvimos
leve na minha pata. “Olá”, disse uma vozinha. Olhei em
de novo, o cenário ilumina-se progressivamente. E o que é uma
volta e não vi nada nem ninguém. “Olha para baixo”,
narrativa? É uma técnica de enunciação que busca implicar um
disse novamente a voz. Olhei para baixo e vi uma
leitor ou um ouvinte numa série de acontecimentos com os quais
joaninha. “Fico contente por alguém me encontrar”,
não tem, em princípio, nada a ver e que coloca os acontecimentos
disse a joaninha. “Estou perdida no nevoeiro e preciso de
evocados num dado campo, ou campos, temporais.
um lar. Quero ser tua amiga”, disse a joaninha. Pensei:
Através da magia da narrativa, acontecimentos estranhos ou
gosto de fazer amigos. Sempre gostei. O facto de ser um
longínquos, que se situam a montante de um presente ele mesmo
gato não deve mudar nada. “Se eu for teu amigo, tu serás
fictício, acabam por me dizer respeito e por quase me pertencer,
minha amiga?”
acabando assim por se juntar ao tempo presente da minha escuta.
149
311
A narrativa é, pois, a disposição metódica de acontecimentos numa
sequência e numa duração,
acontecimentos esses que
“Naturalmente”, disse a joaninha. “Teremos um
o
longo dia amanhã, Jenny”, disse a joaninha. “Como sou
ouvinte/leitor jamais vivenciará, a não ser ficcionalmente.
uma joaninha pequena, vais-me contar uma história
para dormir.” Eu contei-a porque gosto de inventar
O tempo passa e a nossa existência tem acesso ao tempo da
histórias. Quando acordei de manhã, já não tinha
narrativa para poder transformar-se em lenda, em conto, ou em
bigodes. Não tinha longos pêlos castanhos. Era a
romance. Tudo o que nos acontece procura e encontra a sua forma
menina comum de cabelos vermelhos e sardas. Sabia que
narrativa, feliz ou infeliz. No dia-a-dia, damos notícias nossas aos
estava na hora de ir embora. E assim peguei na joaninha
que nos são próximos através de pequenas “novelas” que
e voltei para a sala de aula.
compomos para eles. A minha vida, comunicada e consciente, é
simultaneamente conto, novela, romance…
AVENTURA COM A FADA DAS FLORES
Em Mille Plateaux, Gilles Deleuze propõe uma distinção
interessante entre contos, novelas e romances: A essência da
“novela”, como género literário, não é muito difícil de estabelecer. A
IDADE: de 3 a 12 anos
novela existe quando tudo se organiza em redor das perguntas “O
EXERCÍCIO: 5 minutos
que se passou? O que se terá passado?” O conto, pelo contrário,
CONTINUAÇÃO: 5-15 minutos
capta a atenção do leitor em função do que se vai passar. Há sempre
qualquer coisa que vai acontecer. No romance, está sempre a passar-
Às vezes pode criar-se um exercício de imagens mentais
-se alguma coisa, embora o romance integre, no seu presente
dirigidas com base numa história escrita pelas crianças. Depois de
perpétuo, elementos da novela e do conto.
ler a história da minha filha Heather, de 9 anos, que acompanha este
Contar é um trabalho manual bastante subtil, um bordado
bastante complexo, tecido a partir de uma estrutura maleável, rica
em
combinatórias
possíveis.
Trata-se
de
uma
estrutura
exercício, usei o tema dela para criar este exercício sobre as fadas
das flores. Estas imagens mentais permitem que as crianças
satisfaçam plenamente o seu sentido de magia e de aventura.
impermeável aos conteúdos, significados e valores que cada
Fecha os olhos e concentra a atenção na respiração.
ouvinte/leitor possa projectar na narrativa, a título individual.
Suavemente, inspira... e expira. Enquanto respiras calmamente, o
Segundo Barthes, a nossa época é incapaz de narrar. A articulação
teu corpo torna-se cada vez mais relaxado. Imagina agora que estás
312
150
sentado ao ar livre na relva, num belo dia de sol quente. Estás a
narrativa é reduzida a uma problemática edipiana, da qual depende
deleitar-te ao contemplar o desabrochar de novas flores. Sentes
o prazer do conto. Se o prazer se perde, a vontade de contar
prazer nas suas cores e aromas. De repente, vês um ser diminuto à
também. Seria esse o destino actual e infeliz da narrativa:
tua frente, subindo pela haste de uma linda margarida. Esse ser não
desagregar-se numa “sucessão descoordenada de instantâneos
é maior do que o teu dedo médio; ao voltar-se para ti, faz um sinal
poéticos”, numa sucessão de imagens carregadas de efeitos, mas
de que deves segui-lo. Percebes que também te tornaste pequeno e
vazias de estrutura. Esta afirmação peremptória de Barthes
apressas-te a acompanhar a tua nova amiga. Tens agora três
simplifica a narrativa contemporânea, mas também as causas do
minutos contados no relógio, que é todo o tempo de que necessitas
prazer das narrativas de todas as épocas. Há já muito que o prazer
para realizar uma aventura com esta fada das flores.
da narrativa consiste também em percorrer livremente “imagens
(Passados três minutos) Agora é hora de te despedires da tua
carregadas de afectos”.
amiga e de voltares para cá, repleto de lembranças da tua aventura.
Todas as comunidades humanas conhecidas sempre se
Contarei até dez. Junta-te a mim quando eu contar seis, e abre os
contaram a si mesmas, quer oralmente, quer por escrito. Fizeram-
olhos, sentindo-te alerta e revigorado, quando eu chegar ao dez.
-no para se conhecerem e se compreenderem, a fim de se
Um... dois... três... quatro... cinco... seis... sete... oito... nove... dez.
perpetuarem. Fizeram-no através de mitos, lendas, contos,
epopeias e fábulas; através de frescos e de filmes, de tragédias,
comédias e dramas; através de romances e novelas, histórias e
rumores. Em todas estas formas, coexistem dois tipos de leitura:
AS FADAS DAS FLORES
uma que segue a lógica da narrativa estruturada, outra que segue a
Numa pequena aldeia da Irlanda, vivia uma menina
intensidade dos “instantâneos poéticos”.
chamada Mindy. Ela morava num lindo chalezinho. Do lado
Contrariamente ao que dizia Roland Barthes, continuamos a
fora do chalé havia todo o tipo de flores que se possa imaginar,
narrar. A consciência dos mecanismos da narrativa, bem como as
e a margear as flores havia caminhos de tijolos. As flores
capacidades de desconstrução e distanciação não datam de agora,
cresciam a toda a volta do chalé num carreiro de quase dois
longe disso. Nem são, tão pouco, uma consequência brutal e
metros de largura. Para lá dos caminhos e das flores, havia um
moderna das investigações empreendidas pela linguística, pela
relvado onde Mindy gostava de brincar. Mindy tinha dez anos
semiologia, pela psicanálise, pelo marxismo e pela sociologia, que
e cabelos louros compridos. Morava com a mãe, o pai e a sua
talvez tenham neutralizado a arte de contar e suprimido o desejo
151
313
de contar menos do que Barthes pressupõe.
irmãzinha, Holly.
Há já muito tempo que a narrativa tomou consciência de si
Um dia Mindy estava sentada no relvado, a olhar para
própria, dos seus “truques”, das suas técnicas, e que aprendeu a
todas as flores, quando percebeu um diminuto ser alado de
jogar com estes elementos. Qualquer narrador hábil e admirado
quase dois centímetros e meio de altura, sentado numa
tinha de ser também um teórico espontâneo da sua prática, se
graciosa flor branca, a conversar com uma joaninha. Dizia:
quisesse captar um auditório. As interpretações psicanalíticas são,
“Ninguém quer brincar comigo, joaninha. Estão todos muito
simultaneamente, fáceis e eficazes, já que são sempre redutoras. O
ocupados.” Mindy assustou a joaninha e a menina quando
problema é que passam, sistematicamente, ao lado da beleza e da
disse: “Eu brinco contigo; afinal de contas, quem és tu?” A
estranheza daquilo que interpretam. Será que a psicanálise faz
menina disse: “O meu nome é Emília. Sou uma fada das flores.”
“falar” os textos, precisamente para evitar que certas coisas sejam
Mindy brincou com Emília o resto do dia até que a chamaram
ditas? Que coisas serão essas?
para jantar. Depois do jantar, leu para Holly e, em seguida, foi
dormir.
O que retemos dos mitos, bem como dos contos tradicionais,
são episódios de encontros, imagens surpreendentes que acabam
A meio da noite uma torrente de luz brilhou nos seus
por se destacar do contexto em que estão inseridas. Fruímos dessas
olhos. Quando acordou, viu-se num pequeno leito de pétalas
passagens, desses deslocamentos ao Outro e ao Outro Lado, das
de rosa em lugar do cobertor. Mindy olhou para si e viu que
transgressões e dos exageros que a situação narrativa nos permite.
tinha asas. Levantou-se e olhou em redor. Estava num
Toda a narrativa é sedutora na medida em que propõe uma
lugarzinho onde havia uma escada que subia até uma porta.
aventura, uma forma de ir mais além.
Galgou-a e bateu na porta. Emília abriu. “Bom dia”, disse.
Mindy perguntou: “Por que estou tão pequena quanto tu?”
Ouvir uma história permite-nos retirar da matéria narrativa
Emília replicou: “Não há tempo para explicar. Quero que
nomes, cenas, objectos fantásticos, situações particulares, gestos, e
conheças o rei e a rainha das fadas das flores.” Saíram e
expressões com os quais vamos poder fazer qualquer coisa.
estavam numa aldeia onde todas as casas e lojas eram feitas
Esperamos, secretamente, poder ir mais longe na nossa própria
de cogumelos. Foi numa casa de cogumelo que Mindy acordou.
vida, a fim de nos inquietarmos, de nos colocarmos questões, coisa
Nunca as tinha visto quando estava a brincar, porque elas
que não faríamos se não tivéssemos encontrado essa narrativa. O
ficam muito bem escondidas debaixo das flores.
desejo da narrativa não é senão a necessidade de ir colher e
314
152
Foram para o palácio de cogumelo. De início, andavam,
recolher elementos narrativos extraordinariamente variados, para
mas depois Mindy aprendeu a voar, de modo que fizeram um
sempre alheios à realidade quotidiana e à nossa vida, mas
voo até chegar ao grande e imponente cogumelo. Ao ver como
susceptíveis de a esclarecer plenamente.
Emília era pequena comparada com o rei e a rainha, Mindy
espantou-se; eles tinham quase dez centímetros e Emília
Pierre Péju
L’archipel des contes
Paris, Aubier, 1989
(Tradução e adaptação)
apenas uns dois e meio. Mas, por outro lado, Emília não tinha
a idade do rei e da rainha. Estes ficaram muito contentes em
ter Mindy como uma fada das flores. Elas não se demoraram
muito porque Emília estava ansiosa por mostrar tudo à sua
nova amiga. Ao voltarem à aldeia, ela apresentou Mindy ao
pai, cujo nome era Tom, à irmã, Elizabete, e à mãe, Maureen.
Moravam todos com Emília, mas não estavam em casa de
manhã.
Emília e Mindy brincaram uma com a outra todos os
dias e divertiram-se imenso até que, um dia, Mindy ouviu a sua
mãe a chorar porque pensava que ela tinha ido embora. Dali a
alguns dias, Mindy sentiu saudades e quis voltar para casa,
mas nenhuma das fadas sabia como fazê-la voltar ao tamanho
normal. Um dia, Emília saiu de manhã bem cedo para
descobrir como fazer Mindy voltar ao tamanho normal. No
caminho encontrou o seu amigo gafanhoto, “Gafanhoto, como
posso fazer a minha amiga voltar ao tamanho normal?”
“Emília, deves saber que podes ter tudo o que quiseres, se
disseres o que queres à flor branca silvestre.” “Muito obrigada,
gafanhoto, adeus”, disse Emília. E foi a correr para casa contar
tudo a Mindy. Quando Mindy ouviu isto, disse adeus a todos e
153
315
foi falar com a flor branca silvestre. Murmurava: “Eu gostaria
de voltar ao meu tamanho normal, se tu deixasses, minha
linda flor.” Imediatamente se viu de volta à sua confortável
cama. Somente ela e as fadas das flores se lembrarão do
maravilhoso passeio de Mindy ao país das fadas.
Uma imagem positiva de si mesmo
Um dos mais importantes efeitos secundários do uso de
imagens mentais dirigidas é o desenvolvimento de uma imagem
positiva de si mesmo. As crianças aprendem melhor quando crêem
que podem fazê-lo. Essa atitude positiva comunica-se a tudo o que
fazem. A maioria das crianças vale-se das outras para se
tranquilizar quanto às próprias capacidades. As crianças que
desenvolveram uma imagem de si mesmas como pessoas criativas e
capazes não têm constante necessidade de reconhecimento dos
outros. Elas sabem que são capazes!
A criança que se imagina a melhorar determinada habilidade,
a realizar bem uma prova ou a aprender com facilidade algo de
novo, começa a acreditar que isso é, de facto, possível. À medida
que a habilidade desejada se aprimora ou a nota desejada num
exame é alcançada, a confiança da criança em si mesma fortalece-se. Ela aprende a ter confiança em si, na sua capacidade de
aprender e de ser bem-sucedida.
Um facto importante a lembrar é que, quando estamos
felizes, tornamos óptima a nossa capacidade de aprender. Devido à
maneira como é estruturado o cérebro, é impossível separar as
emoções da aprendizagem. Os caminhos neurais entre o neocórtex
154
(o cérebro cognitivo) e o sistema límbico (o cérebro emocional)
estão sempre abertos, mesmo nas pessoas que crêem que as suas
acções
são
dirigidas
exclusivamente
pelo
intelecto.
Por
conseguinte, a primeira coisa que temos a fazer para preparar uma
criança a fim de que aprenda é criar uma adequada estrutura
mental.
Percebi isto quando coordenei um exercício de imagens
mentais dirigidas sobre a ideia de si mesmo com um grupo de
índios norte-americanos, do sétimo ano, em British Columbia. No
final do exercício, perguntei ao grupo em que habilidades
imaginavam que estavam a melhorar. Um dos jovens alunos viu-se
a apanhar mais peixe; outra viu-se a pintar com mais destreza;
outro viu-se a melhorar em matemática. Uma menina veio no final
da aula e, com uma voz quase sussurrada, disse: “Eu não me vi a
melhorar na escola ou no desporto. Apenas me vi como alguém
O CONTADOR DE HISTÓRIAS
Yacoub era pobre, mas despreocupado e feliz, livre como um
saltimbanco. Sonhava sempre cada vez mais alto... Em boa verdade,
estava apaixonado pelo mundo. Porém, o mundo à sua volta
feliz.”
O avô dela, de setenta e oito anos, um ancião da tribo e
professor da escola, estava presente durante o exercício e ouviu a
resposta da neta. Numa reunião de professores, naquela tarde,
parecia-lhe sombrio, brutal, seco de coração, de alma obscura, e
sofria com isso.
«Como», perguntava-se, «como fazer com que seja melhor?
discutimos os efeitos das imagens mentais sobre a aprendizagem.
Como trazer à bondade estes tristes vivos que vão e vêm sem olhar
Ele disse ao grupo que esta era a coisa mais importante que a neta
os seus semelhantes?» Meditava nestas perguntas pelas ruas de
tinha a aprender na vida: ser feliz. Às vezes estamos tão
Praga, a sua cidade, vagueando e saudando as pessoas, que, mesmo
preocupados em encher os nossos filhos de conhecimentos que
assim, não lhe respondiam.
Ora, uma manhã, quando atravessava uma praça cheia de sol,
esquecemos as coisas mais importantes.
teve uma ideia. «E se lhes contasse histórias?», pensou. «Assim, eu,
Enfrentando a tensão
que penso conhecer o sabor do amor e da beleza, ajudá-los-ia,
A crença de que aprendemos melhor sob tensão não é
155
seguramente, na procura da felicidade!»
317
Pôs-se logo em cima de um banco e começou a contar.
verdadeira. Quem quer que tenha experimentado a “ansiedade de
Admirados, os velhotes, as mulheres e as crianças pararam
um exame” sabe como a tensão e o esforço interferem na
um momento a ouvi-lo. Mas, depois, viraram-lhe as costas e
aprendizagem, assim como na memória. Um simples exercício de
prosseguiram o seu caminho. Achando que não podia mudar o
relaxamento pode aliviar a angústia que muitas vezes acompanha
mundo num dia, Yacoub não perdeu a coragem.
uma tarefa difícil, seja a representar, a falar em público ou a
No dia seguinte voltou àquele mesmo lugar e de novo lançou
ao vento, com voz forte, as palavras mais comoventes. Outras
pessoas pararam para o ouvir, mas em número menor do que na
realizar um exame. A criança pode adquirir controle sobre as
desagradáveis emoções de ansiedade através da respiração e do
relaxamento muscular.
Num projecto financiado pelo governo federal e realizado na
véspera. Alguns riram-se dele. Houve mesmo quem lhe chamasse
louco, mas não quis ouvir. «As palavras que semeio, por certo
germinarão.», pensou. «Um dia entrarão nos espíritos e acordá-los-ão. Tenho de contar, contar sempre. Cada vez mais.»
Teimou, pois, e dia após dia voltou à grande praça de Praga
para falar ao mundo, contar maravilhas, oferecer aos seus
semelhantes o amor que sentia. Todavia, os curiosos tornaram-se
cada vez mais raros, acabaram por desaparecer e, em breve, apenas
Bell High School, em Los Angeles, alunos do nono ano que
estudavam Inglês como segunda língua alcançaram notas
significativamente mais altas em testes de competência linguística
do que aqueles que tinham o inglês como primeira língua. Isto
ocorreu como resultado dos exercícios de relaxamento e do uso de
imagens mentais. Visto que se imaginavam como alunos calmos e
bem-sucedidos, aprendiam mais depressa e retinham na memória
mais informações.
falava para as nuvens, o vento e as silhuetas apressadas, que já só
lhe lançavam uma olhadela de espanto à medida que passavam.
No entanto, não desistiu.
Na sala de aula ou em casa, o uso de um breve exercício de
relaxamento pode ser particularmente eficaz antes de uma reunião
para resolver problemas de relações interpessoais. As crianças,
Descobriu que não sabia nem desejava fazer outra coisa que
assim como os adultos, ficam suficientemente relaxadas para falar
não fosse contar histórias, mesmo que não interessassem a
dos sentimentos de mágoa com bons resultados. Elas aprendem a
ninguém. Começou a dizê-las de olhos fechados, pela única
identificar os seus próprios sentimentos negativos e a dizer como a
felicidade de as ouvir, sem se preocupar se era ouvido ou não.
atitude negativa dos outros as afecta. E as soluções tornam-se mais
Sentiu-se bem e a partir de então só falava assim: de olhos
criativas. O diálogo que vamos transcrever ocorreu entre duas
fechados. As pessoas, temendo as suas extravagâncias, deixaram-no
alunas do jardim-de-infância. Essas meninas faziam parte de um
só, com as suas histórias. E habituaram-se, assim que ouviam a sua
triângulo cujos membros estavam constantemente a manipular-se
318
156
uns aos outros. Fizemos um breve exercício de relaxamento antes
voz ao vento, a evitar a esquina da praça onde Yacoub se
de discutir o problema em questão. Talvez concordem comigo: este
encontrava.
nível de conversa é extraordinariamente maduro para quem tem
Assim se passaram anos.
cinco anos.
Ora, numa noite de Inverno, enquanto, no crepúsculo
indiferente, narrava um conto prodigioso, sentiu que alguém o
Juliana: Ania, feriste de facto os meus sentimentos quando não
me deixaste brincar contigo, com a Jennifer e a Michelle
puxava pela manga. Abriu os olhos e viu uma criança. Esta, fazendo
uma careta engraçada, disse-lhe, esticando-se nas pontas dos pés:
Ania: Não queria ferir os teus sentimentos; apenas não estava
— Não vês que ninguém te ouve, nunca te ouviu, jamais te
ouvirá? O que te leva a viveres assim?
com vontade de brincar contigo.
— Amava com loucura os meus semelhantes — respondeu
Juliana: Mas tu disseste que eu podia brincar contigo quando
saíssemos e isso fez-me realmente sentir excluída.
Yacoub. — Foi por isso que, no tempo em que ainda não eras nascido, me veio o desejo de os tornar felizes!
Ania: Esqueci-me. Podes brincar connosco na hora do lanche.
O miúdo replicou:
— Pois bem, e eles são-no?
— Não… — disse Yacoub, abanando a cabeça.
O ALIADO INTERIOR
— Por que teimas então e nunca desistes? — perguntou
ternamente a criança.
IDADE: de 5 anos à idade adulta
EXERCÍCIO: 5-10 minutos
Yacoub reflectiu por instantes:
CONTINUAÇÃO: 15 minutos
— Conto sempre, é claro, e contarei até morrer — disse. —
Fecha os olhos e concentra a atenção na inspiração e na
Dantes, era para mudar o mundo.
expiração das tuas narinas. Continuando a respirar no teu ritmo,
Calou-se; depois, o olhar iluminou-se, e acrescentou:
imagina que estás a passar por um caminho numa floresta muito
— Hoje, é para que o mundo não me mude, a mim.
densa. À tua volta há belas árvores verdes, e esse caminho desce em
direcção a um murmúrio de água. Chegas a um pequeno curso e
aproximas-te dele, até ver o teu reflexo na água. (Pausa)
Logo percebes outra presença próxima de ti mas sentes-te
157
Henri Gougaud
A árvore dos tesouros
Lisboa, Gradiva, 1988
(Adaptação)
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inteiramente seguro. Vês outro reflexo junto do teu na água. Essa
outra presença pode ser a de um velho sábio, a de um animal ou a
de um ser imaginário que sentes como teu aliado, alguém que já
conheces há muito tempo, alguém em quem podes confiar. O teu
aliado faz um sinal para que o sigas através de uma pequena ponte
que cruza o rio. Vais e vês-te a subir um morro que leva a uma
gruta. O aliado entra na gruta, senta-se e faz um gesto para que o
sigas. (Pausa de um minuto)
É possível que tenhas uma pergunta especial para fazer ao
teu aliado e fá-la neste momento. Ouve atentamente a resposta.
(Pausa de um minuto)
O teu aliado diz-te que podes voltar à hora que quiseres. Ele
estará sempre à tua espera para o ajudares em tudo o que precisar.
Agradeces-lhe e fazes o caminho de volta pela ponte, tornando a
olhar o teu reflexo na água. Vais percebendo como te sentes
enquanto sobes o caminho. Sais da floresta e tornas-te consciente
de estar sentado aqui, plenamente presente. Conta para ti mesmo
até três e, lentamente, abre os olhos.
Reacções ao exercício “o aliado interior”
Eis o que disse Bekki, de 16 anos:
O meu índio voltou para mim, em intervalos, durante
anos. Ele tem estado sobretudo aqui e ali desde que me mudei
para Los Angeles. Nunca me fala verbalmente, mas posso ouvir
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