nunca fui beijada - Thaïs Flores Nogueira Diniz

Transcrição

nunca fui beijada - Thaïs Flores Nogueira Diniz
Nunca Fui Beijada – Uma Recriação Shakespeariana
Michelle de Freitas Victor – Bolsista de Iniciação Científica do Programa
PIBIC/CNPq
Thaïs Flores Nogueira Diniz – Professora Adjunta do Departamento de Letras
Germânicas da UFMG (orientadora)
I
Desde sua invenção, o cinema tem utilizado a literatura como fonte de inspiração
para seus filmes. O interesse de produtores por obras literárias vem variando entre o
sucesso comercial e a respeitabilidade do público em relação a esses textos canônicos,
pois espera-se que o sucesso de uma obra expressa em um meio transfira-se
imediatamente para o outro meio. Os textos de Shakespeare tornaram-se uma fonte
inesgotável para as adaptações cinematográficas, pois, além de o famoso dramaturgo do
séc. XVI ter levantado várias questões com as quais o mundo vem lidando através dos
tempos (relacionamentos familiares, poderes políticos, colonialismo, sem falar na
dicotomia do bem e do mal), ele é extremamente popular no mundo todo. E por se tratar
de um autor tão abrangente e até considerado como o inventor do “ser humano” (Kranz,
2000), produtores talvez vejam nele uma fonte segura para seus filmes (sucesso de
bilheteria garantido).
Segundo Jack Jorgens, Shakespeare vem sendo traduzido pelo cinema, ao longo
dos tempos, de três maneiras básicas que aqui nomearemos como adaptação teatral,
adaptação realista e adaptação contemporânea.
A modalidade teatral, segundo ele, preocupa-se com a preservação das
performances que, geralmente, possuem um elenco distintamente teatral. Ela utiliza o
filme como um veículo transparente. Os filmes de Laurence Olivier, HenriqueV e Hamlet e
os filmes de Kenneth Branagh, Ricardo III e Hamlet, representam versões
cinematográficas desse primeiro tipo ao reconhecerem e explorarem a autoridade e o
prestígio dos textos shakespearianos. São versões que, de certa maneira, se ajustam
com a definição de adaptação “fiel”, na qual a essência do trabalho original é preservada
através das falas, das entradas e saídas dos atores, enfim, de tudo que possa remeter às
produções do século XVI. Nesse caso, é importante que o sentido do filme seja, ou
pretenda ser, o mais próximo possível do texto shakespeariano. A essa modalidade,
Geoffrey Wagner chama de transposition, na qual a peça do dramaturgo é representada
diretamente na tela, com o mínimo de interferência por parte do diretor. O filme é
concebido em termos de um teatro. É como se fosse quase um teatro filmado.
A segunda modalidade, a realista, enfatiza o cenário, a encenação da época, a
música, o figurino. Mais do que um teatro filmado, seria a história da peça exibida através
de um outro sistema de signos, que é o cinema. Tudo que é acrescido serve para trazer à
imaginação do espectador, através da imagem, aqueles aspectos que só poderiam ser
inferidos através da linguagem de Shakespeare. São exemplos de filmes dessa
modalidade The Taming of the Shrew e Romeu e Julieta, de Zeffirelli e tantos outros.
Nesses filmes, o poder das imagens mecanicamente registradas é extremamente
importante, sendo a fala muitas vezes jogada para segundo plano. É o cinema atingindo
sua plenitude, transformando-se na arte do real através do registro da espacialidade dos
objetos. Nessa modalidade, procura-se conservar o enredo da história contada. O
importante é aquilo sem o qual nenhum material se transforma em cinema (Bazin, 1971,
p.112). Trata-se de um realismo físico que não leva em consideração o espectador,
porque o que importa não é como este vê a realidade, mas como ela foi registrada
mecanicamente pela câmera, a única capaz de “mostrar coisas” ao espectador, tudo num
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piscar de olhos. Esta adaptação é o tipo mais popular dos filmes shakespearianos, não só
devido ao fato de produtores estarem familiarizados com ela, e do público apreciar esse
espetáculo de interpretações históricas, mas devido à crença de que Shakespeare seja
um realista. Muitos acreditavam que somente uma tela realista seria capaz de mostrar
todo o potencial das peças do poeta. A esse tipo de adaptação, Wagner chama de
commentary, em que o texto shakespeariano é alterado em algum aspecto, quando assim
o diretor achar ser necessário, o que não é uma violação ou infidelidade para com o texto
original.
Essas duas modalidades tiveram, e ainda têm, o seu valor como reproduções fiéis
dos textos shakespearianos. Porém, com as inovações tecnológicas do cinema, que
proporcionaram novas dimensões aos filmes, a idéia de que um filme, para obter sucesso,
deveria ser fiel a sua fonte literária, foi substituída por outra, em que se defende que o
cinema faz sua própria arte, não precisando ser totalmente fiel ao original. Isso fez com
que essas modalidades deixassem de ser as mais utilizadas, dando lugar a um outro tipo
de adaptação mais contemporânea, que não se preocupa tanto com a fidelidade a
Shakespeare. A esta modalidade Wagner chama de analogy, que representa uma nova
abordagem ao texto shakespeariano, em que se tem um novo trabalho artístico.
Esta, que aqui chamamos de recriação, é um tipo de adaptação que vem sendo
recentemente utilizada por produtores de Shakespeare no cinema. Como não há uma
“obrigação” em ser fiel ao texto, cineastas usam possibilidades expressivas de distorção
da realidade, utilizando, para isso, modernos recursos cinematográficos, os quais
permitem que esta possa ser “trabalhada” e ordenada de acordo com a vontade do
diretor. É o cinema como arte, como recriação. O importante não é a fidelidade, mas
como a abordagem serve aos propósitos ideológicos do diretor. Nela, a aura da obra
adaptada deixa de ser o foco principal, sendo o visual o mais importante – a textura
poética é transformada em poesia visual. Nessa modalidade o dramaturgo perde seu
status privilegiado e os textos servem apenas como um ponto de partida para filmes que
empregam uma grande variedade de estratégias, como paródia, citação, deslocamento e
tradução. Joe Macabeth,O Rei Leão,O Último Grande Herói, Shakespeare Apaixonado
são bons exemplos dessa modalidade. Esses filmes concentram-se na percepção do
passado, visto com os olhos de hoje. Consciente ou inconscientemente, representam uma
leitura do momento atual. Nesse tipo de adaptação, tudo é possível – um mesmo homem
pode se transformar em gêmeos, pode mudar de sexo, pode ser seu passado, seu
presente, seu futuro, pode ser uma versão cômica de si mesmo, tudo isso ao mesmo
tempo.
Ainda que a fidelidade para com o bardo tenha tido seu valor no passado, e talvez
ainda tenha, produtores apostaram num outro tipo de abordagem que, aliada aos vários
recursos cinematográficos de última geração, possibilitaram um enriquecimento notável
aos textos shakespearianos que hoje empolgam e fazem sucesso.
II
O que se pretende com este trabalho é analisar o filme Nunca Fui Beijada,
comédia romântica de Raja Gosnell, como uma adaptação que, segundo minha hipótese,
usou as peças Noite de Reis (Twelfth Night) e Como Gostais (As You Like It), de William
Shakespeare, como fontes.
Em Nunca Fui Beijada, Josie Geller (Drew Barrymore), é revisora de um jornal de
Chicago. Aos 25 anos e com uma vida afetiva inexistente, Josie quer se tornar repórter,
apesar da falta de confiança de seu editor. Sua chance, porém, surge através da missão
designada pelo dono do jornal: cobrir o dia-a-dia dos adolescentes de uma escola,
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disfarçando-se de estudante (missão esta de que dependiam o seu emprego e o do
próprio editor).
A adolescência de Josie havia sido traumática: fora muito estudiosa mas nunca
tivera namorado e, por não ser aceita pelos colegas, recebera o apelido de “Josie nojenta”
(Josie the grossie). Ao reviver os tempos de escola, a desconsolada repórter descobre
que era hoje tão inadequada como no passado. Entretanto, por ser inteligente, acaba se
destacando na aula de inglês, onde se estudava a peça Como Gostais (As You Like It), de
William Shakespeare. Na missão de se infiltrar entre os alunos da escola, acaba
chamando a atenção do professor Sam Coulson (Michael Vartan). Ao longo do filme, os
dois desenvolvem uma afeição mútua.
Seu irmão Rob (David Arquette), que havia sido popular na adolescência, também
se matricula no colégio, e, para ajudá-la, finge já tê-la namorado. Faz comentários e
elogios a Josie, dizendo o quanto ela era especial e como ela lhe havia despedaçado o
coração. Isso ajuda a aceitação de Josie no grupo restrito das garotas mais bonitas e faz
com que seja desejada pelo garoto mais popular do colégio.
Tudo parecia perfeito: ela conseguira se enturmar, era admirada por todos e o
professor, por quem se apaixonara, já deixava transparecer seu afeto. Porém, o editor do
jornal, que monitorava seu trabalho através de uma microcâmera, decide que a matéria
deveria versar sobre o interesse do professor pela “aluna”, pois, segundo ele, este seria
um grande furo jornalístico. Mas Josie se nega a fazer a matéria para não magoar o
professor.
No baile de formatura, Josie, percebendo que uma das colegas estava prestes a
se tornar vítima de uma brincadeira de mau gosto, e lembrando-se do quanto fora
humilhada no passado, revela sua verdadeira identidade, o que causa um enorme mal
estar entre ela, o irmão, o professor e o editor do jornal. O professor sente-se traído e
usado por ela. O editor, ameaçado de perder o emprego, e o irmão perde o lugar no time
do colégio.
Josie, então, tenta remediar a situação. Para isso, decide escrever sobre sua vida
verdadeira num artigo intitulado Nunca Fui Beijada. Nele, conta tudo por que passara até
chegar ali – sua tumultuada adolescência, suas frustrações, humilhações e sua missão
como repórter disfarçada . No fim do artigo, numa tentativa de reconciliação, ela convida o
professor a se encontrar com ela no estádio de baseball, no dia da final do campeonato.
Com a publicação do artigo, os maus-entendidos começam a ser esclarecidos.
Sua matéria fez tanto sucesso que ela e o editor foram mantidos em seu respectivos
cargos, o irmão é contratado pelo treinador de baseball, e o professor, percebendo a
sinceridade de Josie, aceita o convite e vai se encontrar com ela, beijando-a como ela
jamais fora beijada antes.
Por meio de seu disfarce, Josie pôde se redescobrir, fazendo uma viagem interior.
Essa auto-redescoberta se deu, não por ter-se transformado na Josie popular, mas por ter
se aberto de verdade, mostrando ao mundo quem ela realmente era, através do relato de
suas humilhações, frustrações e medos. E é isso que a fez ser aceita. Ao se assumir, ela
faz as pazes com o passado, saindo da casca de patinha feia, para tornar-se uma mulher
aceita e amada. Nas palavras do professor, que dizia, ao citar Shakespeare, “homens e
mulheres não passam de atores no palco do mundo” (Como Gostais, atoII – cenaVII), está
o grande ensinamento do filme. Embora queiramos nos disfarçar para sermos aceitos,
nossa aceitação somente se dará através da revelação de quem verdadeiramente somos.
III
A hipótese de que Haja Gosnell tenha se baseado nas peças shakespearianas
para fazer seu filme é corroborada por várias alusões a situações contidas no filme.
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A primeira é a situação que acontece na própria aula, quando, durante a leitura da
peça Como Gostais, de Shakespeare, o professor cita as passagens em que a heroína se
disfarça de homem.
A segunda é a situação de Rose, que se disfarça de jovem estudante para
conseguir uma matéria jornalística. Esse fato faz alusão às personagens de Shakespeare,
que se disfarçam para atingir seus objetivos: Rosalinda, que fora banida do reino por seu
tio (Como Gostais), disfarça-se de homem para se aproximar de Orlando, a quem ama, e
ter a certeza de seu amor. Viola, que, após o naufrágio do navio em que viajava com seu
irmão gêmeo, (Noite de Reis), disfarça-se, também de homem, para trabalhar com o
duque Orsino, a quem também ama.
A terceira situação é o fato de o disfarce ser também motivo de sofrimento para as
heroínas, pois as impedem de revelar seu amor pelos seus amados.
A quarta situação é o fato de Josie e seu par estarem fantasiados de Rosalinda e
Orlando, personagens da comédia shakespeariana Como Gostais, no baile de formatura.
Finalmente, temos o desfecho semelhante das peças e do filme, em que as
personagens revelam sua verdadeira identidade e passam a viver felizes com seus
amados.
IV
Podemos dizer que Nunca Fui Beijada pertence à modalidade de adaptação que,
neste trabalho, chamamos de recriação, pois não é uma adaptação fiel de Shakespeare.
O filme não captura ou reproduz os diálogos, nem o cenário das peças Noite de Reis e
Como Gostais, mas explora o(s) texto(s) original(is) o suficiente para expressar algo em
comum com a metáfora do dramaturgo sobre os problemas do ser humano. O que o filme
faz é captar a essência das peças e se reinscrever no momento atual, fazendo sentido
para o público contemporâneo. Gosnell recria as peças com suas próprias imagens,
porém preserva o mito – que, no caso, é o disfarce. Além disso, transporta o cenário
pastoral das peças shakespearianas em Noite de Reis e Como Gostais para um cenário
atual: uma escola ginasial contemporânea.
Ainda que o disfarce seja libertador, e possibilite que se faça aquilo que se queira
sem se preocupar com a opinião dos outros, Josie Geller e as personagens
shakespearianas nos provam o contrário: que podemos, e devemos ser aceitos
simplesmente como somos, e, ao assumir quem realmente somos, encontraremos nossa
felicidade.
Apesar de não ter intenção de ser fiel às peças, o filme carrega algo do original – o
motivo do disfarce. O diretor de Nunca Fui Beijada utiliza as duas peças como base para
seu filme, partindo para outra abordagem totalmente inovadora.
Referências bibliográficas
E-mails
KRANZ, David. E-mail em resposta à consulta sobre as razões do grande número de
adaptações de Shakespeare: Dickison College, Carlisle, 2000.
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Livros
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BAZIN, André. What is Cinema? Editado e traduzido por Hugh Gray: Berkeley,
CA, p. 112, 1971.
COURSEN, H.R. Shakespeare: the two traditions. Fairleigh Dickinson, University Press,
1999.
JORGENS, Jack. Ensaio 1. In: Shakespeare on Film. New York: St. Martin’s Press:
Bloomington, p. 3, 1977.
WAGNER, Geoffrey. Adaptation: The Phenomenon. In. Novel to Film: an introduction to
The Theory of Adaptation. Clarendom Press, p.10 – 11, 1996.
Sites pesquisados
http://movies.yahoo.com/shop?d=hv&cf=info&id=1800019201
www.adorocinema.com.br/filmes/nunca-fui-beijada/nunca-fui-beijaa.htm
www.geocities.com/fabrizioguadeli1/nunca_fui_beijada.html
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