a casa Branca de lula
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a casa Branca de lula
6 ilustríssima H H H ab Domingo, 9 DE Dezembro DE 2012 diplomacia 4 A Casa Branca de Lula Os primeiros encontros com George W. Bush resumo Documentos e entrevistas inéditas revelam a parceria entre Lula e FHC para que a aproximação do presidente eleito com George W. Bush fosse a mais tranquila possível. Professor da FGV, Matias Spektor detalha os encontros no livro “18 Dias”, que será lançado pela Objetiva em 2013 e que a “Ilustríssima” adianta trechos em primeira mão. matias spektor dez de dezembro de 2002. Os termômetros em Washington marcavam 1 grau Celsius negativo quando Luiz Inácio Lula da Silva pisou o Salão Oval da Casa Branca pela primeira vez. Ainda faltavam 20 dias para sua posse em Brasília, mas George W. Bush o esperava de pé com a pompa reservada a chefes de Estado. O jogo estava coreografado de maneira delicada porque os presidentes não se conheciam pessoalmente e queriam evitar acidentes. Para surpresa de todos os assessores, ambos relaxaram assim que se viram frente a frente. “Senhor presidente”, disparou Bush, “nesta cidade há quem diga que uma pessoa como o senhor não pode fazer negócios com uma pessoa como eu. Hoje estamos reunidos aqui para mostrar-lhes que estão equivocados”. Como o diálogo era entrecortado por um intérprete, Lula aproveitou o ritmo lento da conversa para medir palavras, enfatizar expressões gentis e mostrar boa vontade. Falou de seu compromisso com as regras do jogo e com a estabilidade econômica. Repetiu que seu objetivo era garantir a cada brasileiro três refeições por dia. Bush ficou encantado. Sobre o principal tema do noticiário da época eles guardaram silêncio: dos preparativos americanos para a invasão do Iraque. Se mencionassem o tema, discordariam. “A coisa boa do Brasil é que deixou claro para nós desde o início qual era sua postura”, lembra a assessora de segurança nacional, Condoleezza Rice. “Outros países prometeram apoio e quando as coisas ficaram difíceis deram para atrás. Isso é algo mais difícil de lidar”. Marcado para durar apenas meia hora, o encontro entre os presidentes se estendeu pelo dobro do tempo. ★ Lula foi à Casa Branca em busca de apoio. A economia brasileira estava por um fio porque as contas públicas não fechavam e havia risco de um ataque especulativo contra a moeda. Um gesto de confiança do presidente americano faria toda a diferença. Lula também precisava desarmar uma bomba-relógio. Poucas semanas mais cedo, deputados do Partido Republicano haviam atacado o PT em carta pública. O presidente da poderosa Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Representantes dos EUA, Henry John Hyde, chegara a escrever que “há uma chance real de que Fidel Castro, Hugo Chávez e Lula da Silva possam constituir um eixo do mal nas Américas”. Bush, por sua vez, deu atenção a Lula porque a América do Sul se encontrava em estado lastimável. Na Argentina, o sistema político havia implodido, jogando milhões de pessoas na pobreza e provocando o maior calote financeiro da história. A Colômbia estava esgarçada pela guerrilha. Na Venezuela, uma tentativa de golpe contra Chávez radicalizara a vida pública. Bush queria um canal direto com Lula. Achava que o custo de tentar algo assim era baixo. ★ Fazer da passagem de Lula por Washington um sucesso demandou um cuidadoso trabalho de bastidores. O presidente eleito chamou a embaixadora americana à época, Donna Hrinak, para uma conversa em São Paulo. “Quero trabalhar com os Estados Unidos”, afirmou. Ela respondeu que então seria “importante evitar surpresas [Lula] Falou de seu compromisso com as regras do jogo e com a estabilidade econômica. Disse que seu objetivo era garantir a cada brasileiro três refeições por dia. Bush ficou encantado Lula foi além. As pessoas, disse à embaixadora dos EUA, não devem confundir minha admiração de juventude pela revolução cubana com minha posição atual negativas”. Não haverá surpresas, garantiu Lula. Confessou ser admirador de Franklin Roosevelt, John Kennedy e Lyndon Johnson. Confidenciou já ter utilizado trechos de um discurso de Johnson sobre a “Guerra Contra a Pobreza” em encontros do PT, sem dizer à plateia que as palavras eram de um presidente americano. Lula foi além. As pessoas, confidenciou, não devem confundir minha admiração de juventude pela revolução cubana com minha posição atual. “Eu defendo a liberdade política e econômica para todos os povos, e hoje em Cuba não há liberdade”. Enquanto isso, José Dirceu dava um anúncio à militância petista. “Nós não vamos fazer confrontação ideológica com os Estados Unidos porque a correlação de forças não permite”. ★ Para aceder à Casa Branca antes da posse, Lula contou com o apoio improvável de seu maior desafeto político —o presidente em exercício, Fernando Henrique Cardoso. O tucano trabalhou para que seu sucessor pudesse operar politicamente na capital americana sem obstáculos. Avalizou em Washington o compromisso petista com a estabilidade financeira. Mandou Pedro Parente, seu braço direito e ministro da Casa Civil, como enviado especial para uma conversa reservada com o chefe de gabinete de Bush: a transição seria estável, a Casa Branca deveria ouvir Lula sem preconceitos. Fernando Henrique também mobilizou seu amigo pessoal e embaixador nos Estados Unidos, Rubens Barbosa, que tirou da gaveta antigas propostas de cooperação. Frustradas no passado, essas ideias agora poderiam dar impulso a uma nova agenda positiva entre os países. Fernando Henrique fez tudo isso em coordenação com Dirceu, com quem manteve encontros pri- vados ao longo do ano de 2002. Nada disso impediu que a relação entre petistas e tucanos continuasse tensa. Fernando Henrique não atuou por benevolência ou simpatia pessoal, mas por puro cálculo político. Se o Brasil quebrasse, antes ou depois da transição, o governo tucano seria visto como a história de um fracasso. Eles trabalharam juntos para evitar o que todos temiam —aquilo que o jornal “The New York Times” expressou com precisão: “Um governo esquerdista do PT e um governo conservador republicano podem ser uma combinação explosiva”. ★ Antes de despedir-se de Bush, Lula pediu a palavra mais uma vez. Presidente, disse compenetrado, quero agradecer-lhe pela posição que seu governo adotou em relação à eleição brasileira. Era uma alusão ao fato de a Casa Branca ter guardado silêncio durante a campanha presidencial brasileira, sem apoiar o candidato tucano, José Serra, e sem criticar o PT, apesar das pressões do Partido Republicano. Bush não entendeu direito. Quando a comitiva brasileira se retirou, perguntou em seguida para a equipe. “O que ele quis dizer com aquilo? Por que ele falou isso?” Alguém explicou. No Brasil muitos achavam que o governo americano jamais permitiria alguém como Lula chegar à Presidência da República. Bush ficou perplexo com a informação. Outro detalhe incomodava o presidente americano. Lula chegou ao encontro com um broche vermelho do PT pregado no terno. Bush ficou surpreso. “E essa estrela?”, perguntou Bush aos assessores mais tarde, “vocês viram a estrela na lapela dele?”. Um embaixador começou a explicar do que se tratava, quando o presidente o interrompeu. “Eu sei que é o emblema do partido... Para aceder à Casa Branca antes da posse, Lula contou com o apoio improvável de seu maior desafeto político —o presidente em exercício, Fernando Henrique Cardoso FHC não atuou por benevolência ou simpatia, mas por puro cálculo político. Se o Brasil quebrasse, antes ou depois da transição, o governo tucano seria visto como um fracasso Mas ele agora é o presidente do Brasil!” Os assessores o tranquilizaram. “Não se preocupe, senhor presidente, ele deixará a estrela de lado assim que assumir o comando”. Do lado de fora da Casa Branca, Lula estava exultante. Na coletiva que deu à imprensa não conseguiu esconder o orgulho. “Volto ao Brasil sabendo que posso contar no presidente Bush como um aliado”. ★ Quando se despediram, Lula e Bush combinaram um novo encontro. Seis meses mais tarde, presidiram a mais ambiciosa reunião de cúpula entre os dois países. Criaram grupos de trabalho, facilitaram negócios privados, montaram uma iniciativa conjunta na área de energia e lançaram um modelo inédito de cooperação — não na América Latina, mas na África. No processo, a Casa Branca inaugurou uma nova maneira de caracterizar o Brasil. Se antes o país não figurava nos documentos estratégicos americanos como “aliado” nem como “grande potência”, agora passaria a receber alguma deferência. O novo raciocínio era assim: democracia multirracial, economia de mercado e potência regional com ambições globais, o Brasil merecia ser mais ouvido. O tom otimista adotado pela Casa Branca, contudo, escondia sérios problemas. Washington e Brasília não tinham o hábito do diálogo político de alto nível, apesar da simpatia pessoal que aproximara Fernando Henrique a Bill Clinton no passado. Além de terem interesses discrepantes, as lideranças políticas de ambos os países nutriam profunda desconfiança umas pelas outras. Por isso, o esquema de aproximação entre Lula e Bush teve vida curta. Suas primeiras rachaduras começaram a aparecer no início do governo Lula. Em 2005, a crise do “mensalão” as expôs de vez. O resto é história.