para falar das flores eoutrascrônicas

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para falar das flores eoutrascrônicas
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PARA FALAR DAS FLORES...
E OUTRAS CRÔNICAS
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VALDIR STEUERNAGEL
PARA FALAR DAS FLORES...
E OUTRAS CRÔNICAS
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Copyright © 2000 by Valdir R. Steuernagel
Projeto Gráfico:
Editora Ultimato
1ª Edição:
Janeiro de 2000
Revisão:
Silêda Silva Steuernagel
Capa:
Adalberto Camargo
CATALOGAÇÃO NA FONTE DO
DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO
Steuernagel, Valdir.
S842p
Para falar das flores... e outras crônicas / Valdir R.
Steuernagel. — Curitiba : Encontro, 2000.
136p.
ISBN 85-86936-14-6
1. Crônicas cristãs. I. Título.
CDD-B869.8
2000
Publicado com autorização e com todos os direitos reservados
EDITORA ULTIMATO LTDA.
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SUMÁRIO
Introdução: Quero celebrar a graça e dançar a vida ..... 7
1ª PARTE: Caminhando com Deus ................................. 11
1. E Deus, quem é? Onde Ele está?........................... 12
2. Para falar das flores ............................................... 16
3. A teologia da barriga do peixe ............................. 21
4. O privilégio dos íntimos ........................................ 25
5. Era só uma maçã... e um homem de Deus .......... 30
6. Impossíveis histórias de vida ................................ 34
7. Hoje eu vi o arco-íris! ............................................ 40
2ª PARTE: Desafios da nossa época ................................. 45
8. O lado direito e o lado esquerdo .................................... 46
9. O menino nu na rampa do lixo ...................................... 49
10. Terra de Deus — terra para todos .................................. 55
11. Eu quero falar sobre política... indignado ...................... 65
12. A realidade virtual, a explosão religiosa e a fé cristã .... 72
3ª PARTE: E a nossa igreja, como vai? ............................ 77
13. O zelo de Deus, o joio e o trigo! .......................... 79
14. Uma apologia da queda ........................................ 87
15. [email protected]éus ................................................... 90
16. De cabeça para baixo! ........................................... 99
4ª PARTE: Histórias para contar .................................... 107
17. Quando os cactos são a paisagem ..................... 108
18. Revisitando a Tailândia ........................................ 114
19. Diário de uma visita à China .............................. 119
20. E vá entender esse Deus! .................................... 130
INTRODUÇÃO
QUERO
CELEBRAR
A GRAÇA E DANÇAR A VIDA
Para muitos de nós, a fé cristã tem sido uma espécie de
companheira de berço. Alguns nasceram cercados de oração. Uma
oração que acompanhou o processo da própria gravidez. Outros
foram levados ao altar ainda infantes. A intenção dos pais poderia ser clara: que esta criança venha a amar e conhecer ao Senhor.
O meu contato explícito consciente com a fé cristã começou na
minha infância, mas se solidificou na juventude.
Eu, como tantos outros neste Brasil da mistura, sou filho de
imigrantes. É uma imigração idosa, que por gerações tem-se
enraizado neste nosso solo tupiniquim mas sempre se recusando
a perder a sua cor e o seu sotaque. Cor branca de alemão (“alemão
batata”, como se dizia na minha infância) e um sotaque que tem
dificuldade em estabelecer a sutil diferença entre -r e -rr. Mas lá
em Joinville, cidade de nome francês e influência alemã, isso
não “errra prrroblema”, pois o sotaque era popular e o alemão a
língua semi-oficial.
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A fé cristã, lá em casa, era uma espécie de adereço cultural.
Ou seja, ser luterano era normal (para não dizer nominal) para
quem era de origem alemã. A igreja era um lugar aonde se ia de
vez em quando, mas especialmente nas ocasiões especiais e nas
datas festivas. Não se podia, por exemplo, deixar de ir à igreja na
sexta-feira da Paixão. Ademais, as crianças não podiam deixar de
ser batizadas.
Mas Deus tem lá os seus caminhos e a sua graça me visitou na
então pequena Joinville. Eu era menino, cavaleiro de bicicleta,
quando, nos sábados à tarde, comecei a participar do chamado
culto infantil, atividade essa que era protagonizada por uma missão pietista, de forte sotaque alemão e hoje intitulada Missão
Evangélica União Cristã. Foi através desse canal da graça que eu
fui confrontado e recebido pelo evangelho. E foi no contexto desse
grupo que eu passei parte da minha infância, adolescência e
juventude. Tempo bonito de graça.
Uns bons anos mais tarde, participando de um curso de revisão de vida, voltei a olhar para a minha infância e juventude e
descobri algo que me deixou profundamente feliz: a fé cristã foi
o espaço onde eu me tornei gente. Ou seja: a identidade da minha vida foi gestada no diálogo com a fé; o meu espaço de independência foi conquistado e afirmado no contexto de encontro
com o evangelho; a minha vocação foi delineada a partir de uma
clara experiência com o chamado de Deus e o mundo se foi abrindo diante dos meus olhos como espaço de encarnação e desafio
de missão, o que aconteceu já no contexto da Aliança Bíblica
Universitária do Brasil.
Tudo isso pode não significar muito para quem cresceu num
contexto onde o evangelho determinava e formulava identidade
e espaços. Mas para mim significou a vida. Nem me atrevo a pensar onde estaria hoje, não fosse por esse encontro com a graça
que o evangelho me proporcionou.
De lá para cá, os anos e o tempo se passaram. Mas o sentido
do espaço para a vida, a afirmação de uma identidade que se
forja a partir do evangelho e a percepção de uma vocação que não
envelhece permanecem comigo e alimentam a juventude da
minha alma. Alma de menino que atira as mãos para o alto
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enquanto caminha, na ânsia de glorificar a Deus. E assim, cativado
por Deus, procuro viver a serviço do Reino de Deus.
Eu vacilo por um momento. Será que este abrir de coração,
falando dessa experiência, não está muito enfeitado? Muito adornado por conceitos redondos que escondem as curvas fechadas
da vida, os buracos inesperados na jornada e as longas e monótonas
retas que nos cansam e dão sono...? Decido correr o risco. O leitor
saberá discernir o que estou querendo dizer: quero celebrar a
graça e dançar a vida. Quero atestar o meu compromisso com o
corpo-Igreja dentro do qual nasci e ao qual pertenço. Quero dar
testemunho de um jeito de viver e dignificar a vida com espaço,
independência e sentido de vocação, conclamando a uma permanência no evangelho como sentido de própria vida.
Este livro fala um pouco dessa caminhada. Coisas avulsas a
tecer o caminho da graça de Deus. Publicadas originalmente na
revista Ultimato, elas estão agora em forma de livro: Para falar
das flores... e outras crônicas.
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1ª PARTE:
ESPIRITUALIDADE:
CAMINHANDO COM DEUS
A espiritualidade parece ter virado uma espécie de palavra da
moda. Mas a sua riqueza é muito bonita.
Quando se fala em espiritualidade, há duas realidades que
deveriam conviver simultaneamente: a vulnerabilidade e a
adoração.
A vulnerabilidade porque através dela é possível chegar mais
perto e deixar os outros chegarem mais perto da nossa realidade.
Percebendo as nossas fraquezas, carências e virtudes. E, de fato,
o caminho do encontro com o outro e com Deus se dá pela nossa
vulnerabilidade.
A adoração, porque é nela que, basicamente, se resume o
significado da vida. Essa vida que não recebe o seu sentido das
coisas que se faz ou tem, mas daquilo que se é na presença de
Deus. Ser, pois, na presença de Deus é o ninho onde se fertiliza a
vida.
Nesta primeira parte, são essas duas realidades que emergem.
Ziguezagueando em minha própria vida, elas aparecem naquilo
que eu penso e escrevo. A começar pela pergunta por Deus, como
se pode ver a seguir.
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1.
E DEUS, QUEM É?
ONDE ELE ESTÁ?
Em verdade, todos nos perguntamos acerca de Deus. Mas são
poucos e é só poucas vezes que se tem a coragem de indagar pela
sua existência e atuação. Muitas vezes, inseguros, temos medo
de admitir o próprio fato de perguntar... “E se Deus souber, o que
Ele vai pensar de mim?” E assim seguimos engolindo as nossas
perguntas e Deus balbuciando para si mesmo: “Como se eu não
soubesse...”
Um tempo atrás, em viagem, eu me vi pensando sobre Deus e
como eu poderia falar dele aos meus filhos. Foi então que eu
escrevi uma carta aos meus “meninos” (coisa de pai que não vê
que os filhos cresceram...), falando com eles e comigo mesmo
acerca de Deus. Chegando em casa, eu a compartilhei com eles,
que me autorizaram a publicá-la.
Cali, 2 de novembro de 1997
Caros meninos,
Dormi bastante e fui tomar um café depois das dez da
manhã. Eu realmente precisava descansar. Até parecia o
Marcos dormindo manhã adentro...
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O pessoal do encontro foi à igreja. Eu acabei ficando,
pois já estava atrasado e queria descansar. Estou, pois, no
quarto do hotel a escrever esta nota para vocês.
Uma noite dessas, na semana antes de eu viajar, eu senti
que todos vocês me perguntavam acerca da existência de
Deus. Eu sei, foi o Marcell, que passa por um momento
específico, que verbalizou a pergunta. Mas ela era de todos
vocês. Ou, melhor dito, de todos nós. Será que Deus
existe ou seria a sua existência uma projeção nossa? Aliás,
foi Feuerbach quem afirmou que Deus seria uma projeção nossa. Mas Feuerbach está morto e Deus está vivo.
Nele nós continuamos pensando, mesmo que seja em sua
própria existência. Mas fazer a pergunta não é nada novo.
Ontem foi Feuerbach, hoje é o Marcell e amanhã sou eu.
O fato é que, se Deus fosse uma projeção nossa, ele seria
muito pequeno. Inadequado e falho. Ele seria como nós,
uma vez que é assim que nós somos. Ele seria a nossa
imagem e semelhança.
Mas dizer isto ainda não se constitui numa prova da existência de Deus. E o fato de ele existir continua sendo uma
dúvida. Minha e de vocês. Aliás, se vocês encontrarem
uma resposta lógica, compartilhem-na comigo, por favor.
Se a questão da prova da existência de Deus é uma
questão lógica, eu sou deixado com uma incógnita.
Pois eu não posso provar nada. Nem para vocês, nem
para mim. A minha lógica, aliás, é muito ilógica e não
deixa de ser filha de mim mesmo, carregando as minhas
limitações e os meus vícios.
Se Deus, portanto, fosse provado pela minha lógica, ele
continuaria a ser muito pequeno. Prova de uma lógica
pequena. Ilógico. Seria um deus do tamanho da minha
prova. Um deus sob o controle da minha lógica.
Se, por um lado, eu quero um deus assim -- um deus cuja
existência é provada pela minha lógica --, esse deus só
reforçaria o meu controle sobre ele. Eu seria dono de
deus e estaria, infelizmente, feliz. Por outro lado, no
entanto, eu não quero um deus assim. Um deus que seja
resultado da minha prova. Pois desse deus eu nunca seria
um filho, e ele seria sempre um produto meu. Uma criação
minha, na medida em que eu domino a prova da sua
existência e satisfaço a minha necessidade lógica.
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Um deus assim eu, de fato, não quero. Ele estaria sob o
meu domínio e não poderia se relacionar comigo. Seria
um deus que não pode nem me abraçar, nem me colocar
a seu serviço.
Eu não quero um deus cuja existência eu possa provar,
pois ele seria um deus que eu posso dominar. Um deus
que não me imbui de consolo e esperança.
Mas, então, eu continuo sem provar a existência de Deus.
Sem saber se ele, logicamente, existe. Sem saber e sozinho. É assim, de fato, que eu vivo: sem saber, sabendo.
Esperando que seja. Confiando em Deus. Sem saber se
Deus existe, mas esperando que ele exista e me entregando nas suas mãos. Querendo ser abraçado, orientado e
mandado. Querendo!
Se Deus existe, eu não o sei logicamente. E sua existência
ele não prova. Ele simplesmente é. Ele é EU SOU. Mas eu
sei que, sem ele, tudo ao meu redor fica muito frio e
sozinho. Me encolhendo, então, eu quero morrer. Faço-o,
no entanto, com medo e inseguro.
Eu sei que preciso do abraço de Deus para poder respirar.
Eu preciso da sua existência para poder existir. Eu preciso
da sua Palavra para poder continuar a saber o caminho a
seguir.
Ao final do dia eu continuo a não saber se Deus existe. A
duvidar, mas a esperar que ele exista. E a me jogar nas
suas mãos sabendo que ele existe.
Em fé, pois, eu decido querê-lo e obedecer a ele. Em fé
me lanço nas suas mãos e experimento o seu abraço. Em
fé me lanço na sua causa e espero viver. Em fé espero ter
rumo na vida a partir dele. Em fé caminho para a eternidade. Pois ele é Deus para além da minha lógica e do
meu conhecimento linear. A existência de Deus passa,
pois, a ser uma questão de fé, que é dom de Deus.
Eu peço, pois, pela fé, e caminho para os seus braços,
a serviço da sua causa . . . enquanto a minha lógica
continua a levantar perguntas. Respondê-las, no entanto,
é diminuir a Deus. E isso eu não posso e nem quero fazer.
Pois ele é o EU SOU e é nele que eu sou. E é nele que eu
espero que vocês sejam.
A ele a glória e a vocês, o meu abraço!
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Hoje já é outro dia. É dia 3 de novembro, e estou integrado
no encontro de que vim participar. O lugar onde estamos
fica fora da cidade. É agradável e bonito sem ser ostensivo.
Continuo a pensar na pergunta de vocês e na minha
resposta. Continuo a pensar na existência de Deus. Aquela resposta acabou se concentrando na impossibilidade
da nossa lógica e na busca da existência de Deus a partir
da sua suficiência, da sua relação, do seu abraço e do seu
serviço. Eu entendo que a minha abordagem foi marcada
pela individualidade e interioridade. Ou seja, nós nos sentimos abraçados por Deus. Mas isso, de forma isolada,
gera o individualismo.
É essencial que aprendamos também a olhar para baixo:
para o pequeno e o pobre. É lá que Deus se encontra.
Cuidando de quem ninguém cuida e convidando-nos a
seguir o seu caminho. Deus não é, de fato, uma questão
abstrata ou filosófica. Quando a nossa pergunta tem essa
direção, só encontramos o vazio do silêncio.
Deus não é uma questão de definição. É uma questão de
relação, que encontra o pequeno e o pobre. Deus não
está lá em cima. Ele está lá em baixo. E é lá que devemos
segui-lo. É só ouvir o salmista.
Aleluia!
Louva, ó minha alma, ao Senhor.
Louvarei ao Senhor durante a minha vida; cantarei
louvores ao meu Deus, enquanto eu viver....
Bem aventurado aquele que tem o Deus de Jacó por
seu auxílio, cuja esperança está no Senhor seu Deus,
que fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há,
e mantém para sempre a sua fidelidade.
Que faz justiça aos oprimidos, e dá pão aos que
têm fome.
O Senhor liberta os encarcerados.
O Senhor abre os olhos aos cegos, o Senhor levanta os
abatidos, o Senhor ama os justos.
O Senhor guarda o peregrino, ampara o órfão e a
viúva, porém transtorna o caminho dos ímpios.
O Senhor reina para sempre...
(Salmo 146, em parte).