FACING MONSTERS : subtítulo provisório para diálogos entre

Transcrição

FACING MONSTERS : subtítulo provisório para diálogos entre
FACING MONSTERS :
subtítulo provisório para diálogos
entre Miguel Bonneville e João Manuel de Oliveira
Todas as semanas, durante dois meses, nos encontrámos online para
falar. Para falar sobre tudo, sobre todos os monstros; os sagrados, os
pessoais, os políticos, filosóficos, culturais, económicos, biológicos…
Eu digo: ‘Eu acho que fui influenciado de tal maneira pelos contos que
acabei por transformar a minha vida num. É uma história clássica.’
O João diz: ‘Através da determinação, de confrontar os problemas e de
matar dragões... então é-se feliz para sempre?’
© Miguel Bonneville e João Manuel Oliveira / 2010
Dia 1
JMO: De que modo é que o teu trabalho
começou a incluir um questionamento do
género?
MB: Logo desde a primeira performance ‘Strip Me, Dress Me’; era sobre a inversão de papéis. Tinha lido um artigo
sobre pornografia e como isso nos influenciava, que os filmes eram feitos por
homens e para homens, e que os papéis
neles representados eram na sua grande
maioria os do homem macho dominador
e o da mulher submissa.
JMO: Estou a ver... um artigo daquela linha que denuncia a objectificação das
mulheres?
MB: Nem tanto. Era uma coisa bastante geral. Era um artigo numa revista de
moda por isso podes imaginar que não
ia muito a fundo na questão, mas foi
uma coisa que me ficou na cabeça, na
qual eu nunca tinha pensado e que resolvi pôr em prática logo depois de sair
da Academia.
JMO: Isso é muito parecido tanto com o
cinema como com as artes visuais; durante muito tempo, a mulher à frente da
câmara ou na tela e os homens atrás, a
criarem-nas.
MB: Sim. E de repente eu transformei
a mulher submissa num monstro. Que
é basicamente como a mulher é vista
quando não é submissa.
JMO: É uma imagem um bocado de
desordem ou de destruição da ordem
e isso é muito comum no teu universo
criativo.
MB: Sim, apesar de no final achar que
o trabalho é sempre muito minimalista.
Acho que também aí procuro um equilíbrio. Estou sempre à procura de um
equilíbrio justo entre o formal e conceptual, homem e mulher, anarquia e ordem
– não que ache que sejam coisas separadas.
JMO: Sim, reconheço essa tensão a
que chamas equilíbrio. Eu chamar-lhe-ia
mais tensão.
MB: Eu gosto mais de lhe chamar equilíbrio.

JMO: Eu não acredito muito em equilíbrios.
MB: Eu tenho que acreditar, apesar de
nunca chegar a um ponto de equilíbrio
total. É tudo sempre desequilibrado,
mas pelo menos aprendo a controlar um
bocado melhor o que foge…
JMO: Essa questão do controlo no teu
trabalho é uma coisa também ela recorrente. Ou achas que não?
MB: Nunca pensei nisso. Controlo em
que sentido?
JMO: É uma questão simples. Como
trabalhas sem ensaios não será um tipo
de trabalho em que acabas por ter que
estar em permanente controlo de ti e da
tua auto-imagem que estás a apresentar? Mais do que eventualmente quando
se trabalha com muitos ensaios, com
scripts and so on.
MB: Isso sim. Mas é uma forma muito
natural de trabalhar porque é assim que
vivo também; planeio muito para depois
executar. Não há ensaios, mas há planos. E depois tanto pode correr como eu
tinha planeado ou não.
JMO: Sim, isso sei. Mas não cria uma
zona de incerteza em comparação com
outros trabalhos mais ensaiados?
MB: Eu acho que todos os trabalhos são
uma zona de incerteza. Há quem ensaie durante meses e chegue à estreia
a achar que aquilo é uma porcaria. Acho
que depende muito. Eu corro sempre o
risco que o trabalho seja uma porcaria.
Mas também corro o risco que o trabalho me ultrapasse e seja muito melhor do
que aquilo que esperava. Acontecem os
dois. Há coisas Bonneville das quais não
gosto e há outras em que penso: como
é que consegui fazer isto? Um trabalho
leva ao outro sempre, como um melhoramento.
JMO: Sim, mas acaba por acontecer...
particularmente nos casos em que o plano é superado ou quando n corre como
tinhas pensado.
MB: Sim, mas é pensado como uma forma de eu me superar mais do que me
surpreender.
JMO: E daí essa ideia de melhoramento
que falavas.
MB: Sim. E por isso é que acho idiota
a questão dos novos artistas ou jovens
artistas. A questão dos paternalismos
e das desculpas e de se pensar nos jovens artistas quase como gente que faz
arte menor. Ainda por cima porque vês
tantos ‘velhos’ artistas a fazerem coisas
absurdas. Acho que é tão subjectivo.
JMO: Ou seja estás a dizer que não tem
nada ver com a idade.
MB: Ouço muitas conversas descabidas acerca dos jovens artistas ainda por
cima porque eu acho que se percebe
logo - ou pelo menos a curto prazo - o
que é que as pessoas têm para oferecer.
E muitos dos jovens artistas só têm para
oferecer uma fachada social, o que é assustador.
JMO: Pois, também acho isso.
JMO: Esse grau de surpresa, de auto
surpreendimento é algo que me parece
muito interessante na tua metodologia
de trabalho.
MB: Visto que estou a falar em pessoas
da minha idade, que em vez de quererem melhorar a situação e de ir um bocadinho contra o que está estabelecido…
MB: Mas não é feito de maneira a que
eu me tente surpreender. Nem penso
nisso.
JMO: Que é quase uma obrigação neste
país...
MB: Tentam arranjar o lugarzinho junto
de quem tem poder e assim obviamente não se vai a lado nenhum porque a
corja já se começa a formar logo desde
o início.
JMO: Pois. Isso é uma coisa que é muito comum. De repente até me lembro de
nomes. E repetem os mestres ad nauseam, tornando-os ainda piores do que
já são.
MB: É que nem repetem. Que fizessem
reposições, sempre era mais interessante mas pronto eu também sou visto
como um verdadeiro arrivista, para não
dizer uma verdadeira puta.
JMO: The artist as a whore.
MB: Mas não me importo muito com
isso. Já me habituei à reputação. Na escola era a mesma coisa. Quando és o
único a levantar questões, ficas sempre
marcado.
MB: Isto começa na família, claro; o
meu irmão era o bom e eu era o mau. Eu
era o que só se interessava por dinheiro,
era invejoso, atirava tudo pelo ar, tinha
ataques, atirava-me contra os móveis e
ria-me…
JMO: Tipo Caim e Abel (ahahah)
MB: E o meu irmão sempre foi muito
bem comportadinho. Vem desde aí. Eu
não me importava muito com o que os
outros pensavam - a minha família é hiper burguesa e hipócrita - se eu se queria o jipe da Barbie, queria o jipe da Barbie e pronto.
Não ia fazer de conta que queria outra
coisa qualquer para os fazer felizes. Por
isso também era conhecido por ser muito teimoso e ter um temperamento difícil.
Apesar de na escola ser um anjinho.
JMO: E achas que isso te construiu uma
reputação?
JMO: Falemos sobre isso então, sobre
as reputações e as marcas. Re-putações.
MB: Sim, claro. Eu era o ‘diferente’.
JMO: Que começa portanto na infância.
MB: Pois as reputações são muito fáceis de se ganhar. Em Portugal então é
de um minuto para o outro; decides tomar uma atitude e se cais na graça de
alguém óptimo, e se não cais óptimo
também. Tudo serve para se ter uma reputação.
MB: Sim, e que depois se prolongou até
agora. E acho que as minhas escolhas
também são feitas a partir dessa reputação e dessa ‘diferença’. Acho que escolho sempre o que é difícil ou o que é
visto como difícil.
JMO: Pois. E a tua foi sendo construída
como? Tipo enfant terrible?
JMO: Portanto quase que poderíamos
dizer que te construiu como sujeito essa
marca de diferença, do difícil, daquele
que não aceita tudo.
MB: Sim. E do estranho também.
JMO: Estranho em que aspecto?
MB: Estranho no sentido em que nem
tudo é o que parece. Havia, por exemplo, um arrumador no meu caminho para
a escola que me perguntava sempre: és
menino ou menina? Podes imaginar o
que isso faz à cabeça de um suposto rapaz de 11 anos principalmente quando a
pergunta é feita em frente aos amigos.
JMO: Pois sei muito bem, aconteceu-me
também. Esse estranho quase que poderia ter o sentido de queer.
MB: Eram os anos 90. Eu era muito influenciado pela moda do andrógino.
Sempre achei que era o que fazia sentido.
JMO: O não estar completamente de
um dos lados do binário.
MB: Sim. E porque é que era preciso
perceber? Porque é que o que é importante era saber se uma pessoa era um
homem ou uma mulher? Antes disso
prefiro saber se é interessante ou não,
se tem alguma coisa a dizer ou não.
JMO: Sim, eu tive um processo parecido em linhas gerais com esse. Também
me questionava sobre a relevância dos
binarismos de género. Porque não devia
ser assim tão relevante.
MB: É para manter a ordem. Para nos
manter mais fáceis de manipular.
JMO: Quase para nos programar e perceber os limites à amplitude da nossa
acção, mantendo-nos numas caixinhas
muito definidoras.
MB: Quanto mais familiazinhas houver
menos problemas nos dão.
JMO: Esse ponto de percepção crítica
parece ter sido importante para começares a trabalhar.
MB: Eu sentia-me constantemente julgado e sem poder nenhum de contestação. Consegui afirmar-me através da
arte.
JMO: Mas o processo até chegares lá
foi penoso, confuso?
MB - Era julgado porque brincava com
bonecas, porque não jogava futebol, porque não comia arroz de frango, porque
vinha de uma família burguesa, porque
usava roupas diferentes das dos outros,
porque não ficava calado e porque não
partia a maçã com a faca. Enfim, sentia
que, segundo os outros, eu fazia sempre
tudo mal. Mas no entanto eu achava que
não era mal, era só outra forma de fazer,
por isso nunca dava o braço a torcer.
JMO: E esse ponto implica sanções sociais.
MB: Sim. Havia a sensação de: as pessoas não gostam de mim. Mas ao mesmo tempo sentia que era aceite, por isso
sempre tive esse lado também de, de
repente, a estranheza ser aceite pela insistência. Aos nove anos decidi que se
podia gostar de rapazes e raparigas e
nunca mudei de opinião depois disso.
JMO: Portanto era também uma questão tanto de normas de comportamento,
como de género, como de sexualidade.
Ias contra muitas expectativas ao mesmo tempo.
MB: Sim, mas sem ter isso muito presente. Não sabia o que é que isso queria
dizer.
JMO: Mas há também um prazer em subverter essas normas, ainda que o preço
seja caro. Um prazer transgressor.
MB: Tinha e tem a ver com uma necessidade. E com o facto de acreditar que
posso dar outras visões válidas do mundo. E, de facto, sou muito persistente à
conta de tanto me dizerem, constantemente, o quão teimoso eu era. Na verdade a minha teimosia levava-me à vitória.
Conseguia o que queria, por isso porque
é que haveria de desistir? Mas é um desgaste enorme.
JMO: E o teu trabalho continua a ter presentes essas necessidades de recusa
de uma ordem imposta de fora?
MB: Sim, mas é mais uma necessidade
de liberdade. Ou seja, o pensamento é
mais positivo. O impulso é mais positivo.
JMO: Eu tenho muito esta ideia que há
um prazer na superação dessa ordem,
um ganho em termos de concretização
de desejo, de dizer que não quero ser
como vocês que têm umas vidas absolutamente convencionais.
MB: Há um prazer, claro. Mas para mim
só será um prazer completo quando seguido do alívio: o alívio de ser compreendido. Porque senão é-se sempre o louco
e o síndrome Van Gogh é uma chatice
no século XXI. O ser marginalizado e só
ser reconhecido como válido depois de
morto. Acho que as pessoas têm o direito a serem reconhecidas em vida, de
terem esse alívio de saberem que estavam a abrir caminho para alguma coisa
melhor ou alguma coisa boa.
JMO: Sim, mas será um reconhecimento colectivo totalizante? É que o facto de
algumas pessoas reconhecerem já me
parece uma forma de alívio.
MB: Sim, mas, por exemplo, se o meu
irmão estivesse a bancar as minhas performances e me dissesse ‘gosto muito,
força aí’, não era o suficiente; era o meu
irmão. É preciso que esse reconhecimento seja um bocadinho mais alargado, tal
como é preciso que a mediocridade seja
posta a nu.
JMO: Ah! Outra questão em comum que
temos! Eu tenho imenso essa necessidade.
MB: E aí acho que só se pode medir com
honestidade: a honestidade do trabalho
e de quem a faz. E quando digo trabalho
quero dizer também vida. É a mesma coisa. A responsabilidade que temos sobre
nós próprios e o trabalho que fazemos
ao longo dos anos em todos os sentidos. É muito raro poder falar-se destas
coisas. Ninguém fala. Todos têm medo.
O medo de a mediocridade ser exposta.
JMO: Eu assisto a montes de medíocres
a passarem à frente em montes de coisas e farto-me de pensar sobre isto; que
vivemos numa ditadura da mediocridade. Porque se fores diferente ou fizeres
as coisas honestamente, you’re fucked.
E vejo muito isso também nas artes, não
só nas ciências; quanto mais fores ao
encontro do que é definido como a média, mais és beneficiado, e ainda mais o
és se não fizeres nadinha que mude minimamente as coisas. Imagina na psicologia, por exemplo: quanto mais básico
e primário, maior é a probabilidade de
teres sucesso ou reconhecimento.
E se fores mesmo tosco, então é de certeza sucesso porque não ameaças os
medíocres que estão no sistema. Agora se dizes coisas que as pessoas nem
querem entender, por mais óbvias que
sejam, e se pões em causa este sono
profundo em que as pessoas parecem
estar, aí nem pensar. Nas artes passa-se
algo semelhante? A mim parece-me que
sim.
MB: Sim, é igual. E com quem vê a mesma coisa. O público quer ver aquilo que
já conhece. Quanto menos esforço, melhor.
JMO: O público é impressionante nesse aspecto em Portugal. Tudo o que
não seja imediatamente evidente, é uma
merda.
MB: Mas depois tu pensas: então se já
está toda a gente tão metida na sua vida,
no seu trabalho, na televisão, na família,
no facebook, nos chats, na vida social e
todos têm tão pouco tempo para pensar... restam os artistas e os cientistas
para fazerem essa parte. Se eles não o
fazem e se se submetem ao que os outros - que não querem pensar – querem,
então está tudo acabado. Não há ninguém que faça um trabalho de pensamento e somos todos carneiros e deus!
JMO: Eu tendi, ao longo dos anos, a tornar-me cada vez mais radical. Feminista radical. Graças a essa sonolência da
academia e da sociedade portuguesa. E
acho que ser feminista ou pensar de forma feminista obriga-nos a isso.
MB: Sabes que isso é tudo muito recente
para mim. Eu era completamente apolítico até há um ano atrás. Depois li “A Ilha”
do Huxley e tudo começou a mudar. E
com a Beauvoir também.
Com a Beauvoir não veio só a questão do feminismo, mas também mais a
questão do existencialismo, claro, e da
política no seu sentido mais lato. Começas a perceber a importância que tem o
facto de agires.
JMO: Mas repara que fazer as performances que tu fizeste, ainda antes de
conheceres a Beauvoir, têm uma leitura
super política. Mesmo que não lhe dês
esse tom. Lembro-me muito bem da
‘Daddy Daddy’, por exemplo, que eu
achei na altura ser muito política até em
relação à política das artes.
MB: Sim, muito. Mas o que eu não quero
é servir-me da política para fazer arte.
JMO: Sim, mas não fazes isso. Agora tocas em questões altamente politizadas
e, ao mexeres nelas, mexes na política,
sem que o trabalho seja política.
MB: Sim, sinto isso em relação ao género também. Não gosto nada de ser
classificado como artista de género,
nem gostaria de ser considerado um artista político. Aliás não gosto nada de ser
classificado, ponto.
JMO: Sem deixarem de ser questões
que estão presentes na tua vida e no teu
trabalho, continuam lá. O que não quer
dizer que o trabalho ou a vida se resumam a isso.
MB: Sim. E por isso é que decidi: performance e autobiografia. São duas coisas
que não me limitam . E isto só porque é
preciso que definas, é preciso que dês
nomes, porque senão não existes. Não
te permitem existir.
JMO: Mas podem ser sempre provisórias, em suspensão, entre aspas.
MB: Sim, claro. Tudo pode ser sempre
provisório e é disso que as pessoas tendem a esquecer-se voluntariamente.
JMO: As pessoas ainda pensam que vivem num mundo moderno à Tati, “Play
Time”, em que há imensas certezas.
Acho uma caricatura óptima da modernidade.
MB: Odiei esse filme. Mas acho que faz
todo o sentido eu odiá-lo. Quando vejo
filmes perco-me completamente neles,
por isso não devo ter gostado nada de
me perder na modernidade.
JMO: Entras em processos de identificações?
MB: Sim. Por exemplo, se há alguém a
fazer sinal com o dedo para alguém se
aproximar, eu, na sala, aproximo-me... e
já me aconteceu também defender-me
de uma pancada. Eu estou mesmo dentro do filme.
JMO: Por exemplo, no ‘Opening Night’
do Cassavetes?
MB: É que não é só nos filmes bons.
Nos maus também. Uma vez num filme
de carros daqueles hiper americanos eu
fiquei agarrado à cadeira porque achei
que estava dentro do carro em altas velocidades, com a respiração suspensa,
a pensar vamos bater, vamos bater. Por
falar em filmes posso dizer-te que os filmes que eu vi mais vezes (e isto significa
mais de 20 vezes) foram o ‘Pretty Woman’ e o ‘Crash’ do Cronenberg; acho
que isto diz muito de mim.
JMO: Ou seja, não fazes um dismissal
da popular culture.
MB: Como é que poderia fazer? Saio
de casa e estou na popular culture. E se
quero falar para o maior numero de pessoas possível acho que tenho que saber
pelo menos o que acontece e de tentar
também subverter esse lado um bocadinho. Lá está - encontrar o equilíbrio.
JMO: E que figuras da cultura pop usas
nesses processos?
MB: O Pop mor - Andy Warhol. E depois
vejo imensas revistas onde se fala de
tudo: música, cinema, moda. As figuras
vão variando mas estou menos ligado à
pop do que quando comecei a apresentar trabalhos. Muito menos.
JMO: Sim, também acho isso, do que
conheço. Por exemplo, foste arrastado
pela vaga Lady Gaga?
MB: Eu acho que ela vem com prazo
de validade ultrapassado. Aquilo já devia ter acontecido no final do século XX,
quando não se falava de outra coisa a
não ser do pós-modernismo. É para se
perceber o quão a cultura pop está em
atraso em relação à actualidade, àquilo
que se faz e pensa agora. Ou sejas com
10 a 20 anos de atraso, no mínimo.
JMO: Isso é curioso porque a ideia que
existe é que a cultura pop é o zeitgeist
ou até à frente.
MB: Mas como é que poderia ser? Se
as pessoas desdenham a estranheza…
tem que ser algo que já conhecem ou
que já ouviram falar ou que já foi introduzido lentamente para que funcione como
fenómeno pop. Como pedir a alguém:
olha assusta-me ali na próxima esquina
quando eu estiver a passar. Não sentes
que é assim?
JMO: Nunca pensei sobre isso. Mas em
termos lógicos tem imenso sentido. É
claro que não pode ser inovador ou contemporâneo, tem que ser atrasado, para
ter recepção massificada.
MB: E acontece o mesmo com o “experimental”, que acho que é a palavra
mais medíocre possível para definir coisas que já se fizeram mil vezes. E que se
defende que é sempre a vanguarda. Em
Portugal há muito o culto do experimental para encobrir mediocridade, das pessoas acharem que estão muito à frente
e são muito incompreendidas e super
intelectuais mas no fundo estão todas
num grupo gigante a achar o mesmo,
ou seja, são mais compreendidas do
que muita gente porque estão todas no
mesmo barco a acharem-se superiores,
quando, no fundo, é só uma alternativa
à pop. O sistema é o mesmo.
JMO: Isso é Portugal. É por demais evidente. Regressemos ao feminismo: sentes-te feminista?
MB: Eu sou feminista, sim. E acho que
cada vez mais radicalmente feminista.
JMO: E o que é que isso quer dizer para ti?
MB: Quer dizer que acho que um futuro para um mundo mais aceitável, mais
inteligente, será um mundo que ouvirá
as mulheres, ou seja, dar-lhes a oportunidade de existir. Porque convém dizer
que as minorias não existem e quando
digo mulheres falo em minorias em geral
- somos todos dominados pelos senhores brancos.
JMO: Podíamos quase dizer que mulheres são tod@s as que são dominadas
pelos senhores brancos.
MB: Sim. ‘Dar oportunidade’ é uma péssima escolha de palavras, já agora. Mas
‘lutar’ também é um bocado horrível.
‘Conquistar’ também. Abrir caminho?
JMO: Pois, as metáforas são todas muito masculinizadas, é uma propriedade
da linguagem. Esses senhores brancos
dominaram a linguagem tempo demais
e ficámos com poucas metáforas sem
serem as deles. E em relação à Simone
de Beauvoir. O que te atraiu/atrai?
MB: Comecei por ler o primeiro livro dela
“A Convidada” e fiquei absorvido pela
forma como ela descreve os pensamentos, esmiuçando sempre mais e mais,
até chegar a algum lado conclusivo.
JMO: Ou seja, a racionalidade dela?
MB: Sim, mas uma racionalidade muito
intuitiva. E depois ela toca em questões
como a bissexualidade e a questão da
monogamia que são muito importantes
para mim. Os monólogos interiores são
mesmo de alguém que repensa o que
significa ser uma mulher em todos os
aspectos.
JMO: Que não se nasce, torna-se. Como
foi o confronto com o ‘Segundo Sexo’?
MB: Não conseguia dormir quando pegava no ‘Segundo Sexo’. Não conseguia
fechar o livro.
JMO: Porquê? O que há de especial
nesse livro?
MB: Põe-te em confronto com a história, exemplifica, rectifica, põe os tabus
todos a nu. E é claro que depois pensas
no Camus, e nos comentários que ele
fez ao livro, e pensas que até um senhor
inteligente é capaz de ser burro.
JMO: Não só o Camus, quase toda inteligentsia francesa.
MB: Sim, mas ele fez um comentário do
género: não interessa a ninguém saber
como é que funciona a menstruação…
E, claro, há o lado autobiográfico da Simone. Ela, para mim, resume tudo o que
é importante.
JMO: É um encontro curioso esse teu
com a Simone. Que consequências teve
para alem de te tirar o sono?
MB: E para além de achar que estava na
segunda guerra mundial? Passei um dia
a ler os diários dela do ‘Força da Idade’
- a parte sobre a guerra - e estava em
casa a acreditar naquilo. Aquilo estava
mesmo a acontecer. E como tinha que
apanhar o comboio no dia seguinte, comecei a achar que iam apanhar-me porque o meu BI estava caducado e ainda
não tinha recebido o cartão novo. Então
decidi ir à cinemateca. Ver o quê? ‘Les
Caribiniéres’ do Godard. Foi um dia horrível. Sinistro. Bom, mas passei a estar
muito mais atento. Atento a tudo. E a ter
vontade de agir, de fazer mais…
JMO: Para além do teu próprio trabalho
artístico ou através dele?
MB: … porque quando encontrei o existencialismo, sabia que aquilo, para mim,
fazia todo o sentido. Mas foi primeiro
através do Camus e do Vergílio Ferreira, mais tarde do Sartre e só depois da
Beauvoir…
JMO: Curioso, eu sou super insensível
ao Camus. Comigo foi mesmo a Simone…
MB: … e foi com a Beauvoir que tudo
fez sentido… para além do meu trabalho artístico. Se bem que isso significa
que me faz agir na minha vida, e a minha
vida e o meu trabalho são a mesma coisa. Utilizo um e outro num e noutro. Este
‘agir’ passa por coisas tão simples como
discutir problemas com os meus amigos
até realmente fazer um trabalho que tenha um pensamento mais politizado ou
mais filosófico. Acho que, no fundo, foi
descobrir uma densidade e descobrir
um conforto por ter havido alguém que
tomou a iniciativa de falar, de escrever,
de agir. Eu não tenho nada a vontade de
inovar. Fico muito feliz quando descubro alguém que pensou naquilo em que
acredito, porque penso que não estou
sozinho. Penso mais num acto de continuação e de melhoramento. E ao mesmo
tempo que li a Beauvoir, li o ‘The Death
of The Family’ do David Cooper e tudo
começou a interligar-se. Aconteceu tudo
muito através de leituras e por isso é que
acho que é tão importante ler. Mas ler
mesmo e não dizer que se lê porque isso
é absurdo.
JMO: Sim, também tenho livros que me
mudaram a vida. Não tanto a Beauvoir,
mas outros.
MB: A minha primeira grande influencia
foi a Duras. Li mais de 30 livros dela,
mas foi muito destrutivo. Eu gosto muito
de “esgotar” autores - fico com a sensação de que não os li se assim não for. Se
gosto verdadeiramente então tenho que
ler tudo ou ver tudo.
JMO: Eu também tenho isso, mas é com
fetiches mesmo; o Foucault ou a Butler
ou a Donna Haraway (as duas últimas
mais do que o Foucault). É uma relação
de investimento libidinal num objecto
cuja relação é tão forte que ficas obsessivo com esse objecto. E é fetiche porque se torna quase sexual.
MB: Mas pelo conteúdo do objecto ou
só pelo objecto em si? Ou pelos dois?
JMO: Pode ser uma ou outra ou as
duas. No meu caso é mais o conteúdo.
Aconteceu-me com a Butler, quando li o
‘Gender Trouble’ e finalmente o percebi,
achei que tinha que ler tudo dela ou a
minha própria existência era posta em
causa.
MB: Gosto desse tipo de urgência. Acho
que é isso que nos faz evoluir. Mesmo
que por vezes seja angustiante.
JMO: É super angustiante e doentio.
MB: Mas eu tenho um certo respeito
pela neurose porque pode servir para realmente fazer coisas importantes.
JMO: E serve. Ou então destrói-te. Eu
agora tenho uma neurose com a ideia
de melancolia no Freud, por exemplo.
E acho que tudo é causado pela melancolia.
MB: Acho que sou muito freudiano apesar de saber que toda a gente o acha
muito passé. Queres desenvolver?
JMO: O argumento até é simples, mas
apetece-me complexificá-lo. É um misto de Freud com Butler; as normas de
género antecedem-te, certo? Ou seja,
antes de seres sujeito, já existem estas
normas. Quando através da linguagem,
acedes a ser sujeito, a ser, as normas impõem-te que te esqueças de uma parte
desse processo, que é aquilo que nunca podes ser. A actividade de luto por
essas coisas que ficaram inconscientes
é a melancolia, devido a esse esquecimento compulsivo. Agora se aplicarmos
ao género, facilmente se percebe que se
só torna um homem aquele que esquece
um desejo por homens. Para se tornar
um homem é preciso existir a melancolia pela homossexualidade perdida, por
isso é tão penalizador psiquicamente
voltar a sentir isso, uns anos mais tarde.
Ando louco com isto da melancolia. Com
a mulher é igual: recalca a homossexualidade também, mas no caso da mulher
ainda é mais psiquicamente destruidor
porque implica passar para uma categoria dominada à partida para um lugar
que é definido pela própria inferioridade.
Assim diz a Butler, o homem mais melancólico é o heterossexual mais agressivo, capaz de matar gays para recalcar
ainda mais essa melancolia que quase o
preenche.
MB: Eu começo a acreditar que a homossexualidade é o que faz sentido
como norma num futuro... Para se chegar a um ideal onde nada disso interessa, acho que é provável que tenhamos
que passar pelo extremo oposto.
JMO: Onde não há género? Nesse lugar
futuro?
MB: Onde não há pressão de escolha,
pelo menos.
JMO: Sim. Seria preciso, no entanto,
acabar com o género para isso acontecer, acho eu.
MB: A questão do casamento, por
exemplo, deixa-me um bocadinho sem
saber o que pensar. Porque é que se
quer constituir família igual às famílias
burguesas que ditam as leis? Não é
precisamente para entrar na “normalidade”? Por um lado acho que, claro,
as pessoas têm o direito à liberdade (...)
de se casarem, mas por outro tenho a
questão: será que não querem entrar
para o mesmo esquema? Ouvi dizer que
em São Francisco os homossexuais não
queriam que os casais heterossexuais
fossem para o parque com as crianças
na zona gay…
JMO: Eu tenho uma visão muito utilitarista disso: se houver quem queira, acho
péssimo que não possa fazê-lo. Não
acho que mude grande coisa, nem acho
que constitua uma revolução. Eu jamais
o faria. Mas havendo quem se queira
meter nesse esgoto que é a família burguesa, why not? Acho que não dá para
ser contra.
MB: Também acho que não dá para ser
contra. Mas acho que dá muito para
pensar.
JMO: Dá, isso dá. Mas que se pense sem
prejudicar a aprovação da lei. Eu acho
importante que se pense imenso nisto.
Mas seria impossível aplicar isso a mim;
a instituição foi feita para criar pessoas
que são propriedade de alguém e manter
os dinheiros e a propriedade a correr entre determinadas linhagens sancionadas
pelo estado, e eu não quero fazer parte
disso. Se me perguntares: és a favor da
extensão do direito a casar a pessoas
gays e lésbicas? Sou, sim senhor. Se me
perguntares: és a favor do casamento?
Não, não sou. Por mim, era abolido. Se
as pessoas conhecessem a história e a
levassem a sério, ‘casamento’ e ‘família’ eram palavrões que ninguém diria,
quanto mais querer fazer parte…E depois com o casamento tenho uma questão: porquê duas pessoas? porquê duas
e não três, quatro, cinco, seis?
MB: Porque foi assim que deus fez…
JMO: Olha e deus?
MB: Não conheço.
JMO: O que achas sobre deus, assim
com letra pequena?
MB: Escrevi sobre isso há pouco tempo
para o meu próximo trabalho. Vou transcrever: Não sei com que idade deixei de
acreditar em deus completamente. Digo
completamente porque sempre tive a
sensação de não acreditar plenamente.
Porque “nunca se sabe”. Do género: eu
acho que ele não existe, mas é melhor
rezar, caso exista. E na verdade eu rezava a Jesus e não a deus - sempre me
pareceu mais credível; pelo menos havia
uma imagem à qual me podia agarrar.
É preciso dizer que a minha mãe não
acreditava em nada; é das pessoas mais
cépticas que conheço, e o meu pai acreditava em tudo. Por isso tinha as duas
visões. E depois há dois aspectos importantes: a minha mãe sempre foi uma
grande defensora da verdade e o meu
pai era conhecido pelas suas mentiras.
por isso, olhando para trás, parece-me
lógica a minha decisão de acreditar na
minha mãe, logo de não acreditar em
deus.
JMO: Gosto deste cruzamento entre
crenças, família e biografia.
MB: No fundo isto resume a minha vida.
Está aqui tudo.
Dia 2
JMO: “A peça não foi pensada assim “
ou “ não tem nada a ver com” - esquecem-se de que a arte contemporânea
vive num regime de sobre-significação.
Nobody could care less sobre a interpretação do criador. Pensei que podíamos
começar por isto, esta tensão entre os
significados que dás quando crias e as
leituras que as pessoas fazem. Queres
partir de exemplos? Situações em que
as leituras das pessoas se confrontassem com a tua.
MB: Acho que, normalmente, tenho sempre leituras parecidas com as minhas.
JMO: Mas nunca tiveste situações em
que ficasses espantado com as leituras
do público?
MB: Não. As perguntas são sempre as
mesmas e os comentários, no fundo,
também. As pessoas não falam muito e
como o trabalho parte de questões autobiográficas acho que ficam com medo
de fazer perguntas pessoais. O que me
aconteceu na Alemanha, por exemplo,
foi genial: dei uma conferência sobre o
meu trabalho e as pessoas estavam muito pouco à vontade para fazer perguntas.
Dois dias depois, duas ou três pessoas
chamaram-me à parte e tivemos conversas longuíssimas sobre um ou outro assunto da conferência. Eu achei que eles
me achavam louco e ponto final, por ter
falado do meu pai, das minhas relações...
Mas depois foi mesmo muito bom poder
falar individualmente, ouvir as histórias
dos outros, porque eu acho que isto não
é nada mais do que uma conversa que
se tenta estabelecer. Por isso quando
me dizem “ a tua vida não me interessa
“ a única coisa que posso dizer é então
não vejas, não venhas, não ouças. Há
um medo muito grande de se falar sobre
si próprio. Dos outros e da vida dos outros não há problema nenhum, mas falar
de si próprio já parece mal.
JMO: Há um livro do José Gil em que ele
afirma que em Portugal as subjectividades não estão completamente construídas e que há um grande falta de reflexão
sobre esse plano pessoal.
MB: Eu acho que não há falta, acho mesmo que não existe. É ‘feio’ ser-se considerado narcisista. Mas o que as pessoas
não sabem é que a história do narciso
tem muito pouco a ver com aquilo que
faço. E o narcisismo torna-se uma desculpa para não se pensar nem olhar para
si próprio, ou para se fingir que não se
olha para si próprio.
JMO: Isso eu também acho. As pessoas esquecem-se que ao mostrares esse
lado, estás também a falar de processos
mais vastos. É uma forma de legitimar
essa lacuna de reflexão mas isso levanos também à tua tentativa de reformular as fronteiras do público e do privado
no teu trabalho. Porque o teu trabalho
admite directamente que se saibam coisas sobre a tua vida sem serem apenas
simbolizadas.
MB: Sim, e o meu discurso parte daquilo que me acontece na vida - acredito
mesmo que é uma alternativa para a tão
falada morte de deus, ou falta de deus.
Acredito na autobiografia e na arte como
melhoramento, como possível prática
diária incorporada. E acho que cada vez
mais se caminha para isso, visto que toda
a gente tem acesso a câmaras de vídeo,
maquinas fotográficas e os materiais de
edição são cada vez mais simples.
JMO: E qual a relação com a morte de
deus?
MB: Em vez de se virarem para deus
ou de entrarem em desespero pela falta
dele, terem a possibilidade de se virarem
para si próprios e fazer da vida uma obra
de arte. Isto tem, claro, muito a ver com
as questões do existencialismo, da responsabilidade.
JMO: Mas não há um perigo? Quase
uma teologia do ego?
MB: Acho que não passa por aí porque
à medida que vais percebendo como é
que funcionas, vai sendo mais fácil lidar
com o mundo.
JMO: E portanto concretiza-se, em vez
de se idealizar?
MB: Sim.
JMO: Se bem que a questão das autobiografias já são muito antigas, como
nota o Foucault quando fala no cuidar
de si nos gregos.
MB: Sim, mas de repente torna-se num
monstro porque é associada à vaidade
e ao narcisismo. Tem conotações muito
negativas e acho que é por pura preguiça. Preguiça de não querer ver, de não
querer trabalhar, de não querer pensar,
porque tudo isso dá trabalho e faz-te
pensar e repensar e questionares de
onde é que tu vens, se faz sentido viveres como vives, o que é que queres
mesmo fazer.
Não é uma tarefa fácil e exige que te
comprometas e exige que sejas honesto
porque senão nunca vai dar a lado nenhum. Já escrevia o senhor Nietzsche à
sua irmã: If you want to be a disciple of
truth then search.
JMO: Pois, eu estava a achar o teu raciocínio muito nietzscheniano. A tua descrição do processo de auto-conhecimento
é quase uma ascese, uma coisa disciplinadora, dura, difícil. Há um fim para essa
busca?
MB: O meu processo é sempre duro.
Acho que há vários fins, mas que talvez
só aconteçam depois de morto.
JMO: Fim, não no sentido de objectivo,
mas no sentido de acabar o processo.
MB: Enquanto estou vivo acho que o fim
é chegar aos 50 e não ter uma crise de
meia idade e pensar que andei a fazer
tudo mal, e andar a compensar comprando carros caros, e a estragar a vida
aos filhos. A honestidade compensa-se
a si própria.
JMO: Sim, é então um processo que
implica um corte em relação ao quê? A
ser apático? A engordar em frente ao televisor?
MB: Sim, por exemplo. Implica agir em
todos os sentidos.
JMO: E em que tipo de situações? Situações convencionais, situações limite…
MB: Em todas as situações. Umas com
certeza vão requerer mais energia do que
outras mas eu penso nisto como uma
prática diária, como quando trabalho; se
não estou a desenhar, estou a escrever,
se não estou a escrever, estou a ler...
A aprendizagem é constante e não deve
ser negligenciada. Falo disto numa forma um bocadinho militar, eu sei, mas
é porque eu preciso mesmo de manter
esta disciplina porque sinto que caio facilmente num registo de preguiça.
JMO: Lembrei-me de um filme realizado pelo Sean Penn em que ele descreve um processo de auto-conhecimento
que acaba quando a pessoa em questão
descobre que tem estar no mato e viver
fora da sociedade e acaba por morrer à
fome. Pensei por analogia com o rigor
dos processos que descreves.
MB: Sim, percebo isso muito bem. Mas
como te disse no outro dia, eu procuro
sempre um equilíbrio. Isso significa ter
de fazer compromissos. Penso muitas
vezes em isolar-me num sítio qualquer
com a minha horta e pronto. Mas depois
qual é a minha função? Parece-me mais
uma fuga.
JMO: Cuidar de ti?
MB: Cuidar de mim num limite, na solidão total ou quase… não é isso que eu
procuro. E há um risco muito grande de
perder a noção do que se passa realmente.
JMO: Há um lado atraente aí que é uma
concentração, mas com custos elevados. Eu fiz uma experiência assim quando era teenager.
MB: Aí é que não correu muito bem ao
Nietzsche. Por isso é que tenho sempre
a noção de poder não ir de encontro aos
extremos a não ser para os tentar juntar
de alguma forma.
JMO: Pois não acho que no final corra.
Porque te desligas de tudo e essa falta
de conexão pode ser perigosa. Mas retomando o processo: é diário, o teu?
MB: Sim, sinto que sim. E vou ressentindo cada vez mais se me desleixo.
JMO: O que é um desleixo nesse quadro?
MB: Por exemplo, se me vejo numa situação em que não me respeito, em que
não respeito a minha vontade. Numa situação tão simples como estar num lugar cheio de gente onde não me apetece
estar e não estar atento o suficiente para
perceber que não devia estar ali e dizer:
pronto, vai para casa.
JMO: É. Tu continuas a fazer?
JMO: Porque esse processo passa-se
mais em casa?
MB: Mas o processo é sempre solitário.
MB: Não, esse é o processo. O processo de percepção do que é que estás a
sentir e do que é que deves fazer em vez
de agires por normas sociais, por aquilo
que deve ser ou parece bem.
JMO: E há espaço para outras pessoas?
JMO: Percebo melhor agora. Eu também ando nesse processo - recusar-me
a fazer coisas só para agradar ou para
cumprir normas que me são impostas,
negociar comigo próprio os limites para
esse poder das normas.
MB: Sim, é essencial. É claro que esta
atenção também passa por perceberes
que tens que dormir, tens que comer,
tens que ficar no sofá a olhar para o tecto. No fundo é isso: atenção, estar atento.
JMO: E terapia?
MB: Eu acho que a terapia é um trabalho
que ajuda a perceber o que é que tu não
és, ou seja, que defesas desnecessárias
andaste a construir, e ajuda-te a estares
atento, claro, mas apenas se quiseres.
Há pessoas que ficam dependentes de
terapia, é outra forma de preguiça e de
não se responsabilizarem.
MB: Estou em fade out, ou seja, vou
menos vezes - já a caminhar para uma
saída.
JMO: E depois continuar esse processo
sozinho?
MB: Há sempre outras pessoas, mas o
processo é teu e és tu que o tens que
fazer. Por mais que se converse sobre
o(s) assunto(s) com alguém quem tem o
poder de mudar as coisas és tu.
JMO: É engraçado, porque dá a sensação que é também a recusa de uma
validação externa, a recusa de depender
que outro/a valide as minhas próprias
conclusões.
MB: Elas deviam validar-se por si próprias.
JMO: Mas ao mesmo tempo, não sentes
que a construção de nós é também ela
uma ficção? Uma narrativa mais ou menos linear que usamos para nos fundar
no mundo?
MB: Mas é isso que fazemos – construir.
E se somos nós que decidimos construir,
é uma ficção. Mas se não há uma verdade universal é assim que temos que
fazer, não? Ou então deixar que construam a tua ficção por ti e isso é que eu já
acho grave.
MO: Claro. Também acho. Estou muito
insistente com isso, porque andei a ler
sobre esses processos esta semana
num livro chamado ‘Subjectivity’, do
qual estou a gostar imenso, que conta a
evolução das teorias sobre a subjectividade desde o Descartes até à Butler.
E é muito interessante veres as mudanças desde a crença de que o EU existe
porque pensa, até à ideia de que o EU
é um fantasma psíquico e que só faz
coisas para continuar a acreditar na sua
existência. Um exemplo: nas prisões
com aqueles panópticos, os presos estão constantemente a ser observados e
vão comportar-se por forma a fazer os
guardiões pensarem que são bons sujeitos, que se reabilitaram, a mudança é no
comportamento e não no eu - até porque esse é inteiramente ficcional.
MB: Gosto dessa ideia de fantasma.
Estamos sempre a afirmar que estamos
vivos. Com o corpo passa-se o mesmo
- nunca podes estar parado por muito
tempo. O corpo tem sempre a tendência
de se mexer, nem que seja um espasmo,
um abrir ou fechar de olhos, para dizer a
si mesmo que não está morto.
JMO: Para se auto convencer de que vive?
MB: Para confirmar.
JMO: E agora?
MB: Os papéis sexuais. Activo/Passivo - Dar/Receber. Isto faz-me confusão
porque eu nunca tive uma preferência
de papel e parece-me que a maior parte
das pessoas se regem por uma escolha
de um ou outro.
JMO - Pois. eu acho que também tem
a ver em só ver o sexo como uma coisa penetrativa porque se pensarmos no
sexo oral, eu tenho imensa dificuldade
em classificar - quem é que o passivo?
Mas qual é a tua ideia sobre isso? Dos
papeis?
MB: Há pouco tempo percebi que estava
a ser um objecto total e comecei a pensar nisso mais seriamente porque até aí
consegui sempre estar mais ou menos
num lugar ‘híbrido’.
JMO: Pois, é quando o parceiro sexual
está numa óptica de papeis, situacionalmente acabas por ter que estar também.
MB: Mesmo em relação à pornografia,
por exemplo, o que me excitava era a
possibilidade de ser um e outro ao mesmo tempo; nunca me identificava só com
o que ‘dá’ ou só com o que ‘recebe’, e
de repente ter que escolher um lado pôsme numa situação muito estranha.
JMO: Será porque ficas um bocado destituído de auto-determinação - teres que
ser aquilo? Fazer aquele papel?
MB: Não, acho que tem a ver com o facto de já não ser um papel, de já não ser
nada, de já não ser eu - podia ser outra
coisa ou pessoa ali no meu lugar porque
não há emoção nenhuma e é puramente
físico.
JMO: Eu acho que há um lado estranho.
Parece que de repente se regressa à heterossexualidade em posição de missionário.
MB: E ao perigo da violação.
JMO - Perigo da violação como?
MB - Se o que interessa é foder e acabou, se há essa distância de emoção,
então podes fazer o que quiseres. A outra pessoa não é uma pessoa, ou seja,
o que eu estou a querer descobrir é o
processo de passar a ver uma pessoa
para passar a ver um objecto porque
parece-me que é maioritariamente um
fenómeno masculino.
JMO: Olha que não. Mesmo nas lésbicas isso pode acontecer. Mas simbolicamente em termos de estereótipos isso
pode acontecer ser um fenómeno masculino.
MB: Porque o homem é que age. Mas
porque é que tem de agir assim é a minha pergunta. Porque não me parece
que seja consciente.
JMO: Eu baralho-me imenso com pessoas assim tão tradicionais.
MB: De repente estás com uma pessoa
que é um robot.
JMO: Pois, claro. Estás a cumprir um
pró-forma. É difícil lidar com isso, com
essa convenção sexual.
MB: Achas que a pornografia tem alguma coisa a ver com isto? Que influencia
o comportamento?
JMO : Não. Não acho nada. É tão fake
que qualquer pessoa percebe que aquilo é outra ordem de discurso. Não acho
que seja uma influencia. Pode é ser imitada, mas isso já não é uma responsabilidade da pornografia, é das pessoas
que escolhem esta ou aquela coisa para
imitar.
MB: Quem vê os meus trabalhos são a
minha mãe e o meu irmão; o meu irmão
compreende tudo, a minha mãe acha
estranho, não percebe, mas interessase e emociona-se, o meu pai às vezes
acompanha o que sai nas revistas - e
não lida muito bem com o facto de ser
uma figura desequilibrada.
MB: Não estou a responsabilizar a pornografia - acho isso ridículo.
JMO: Ah! Sentiste-te num filme porno de
repente?
JMO: E interpela-te sobre isso?
MB: Sim, completamente.
JMO: É preciso contrariar isso. Mas há
um lado interessante para pensar que
é uma tripla equivalência nessas coisas
entre género, orientação sexual e posição sexual. É quase como se ser passivo fosse ser mais homossexual e mais
mulher - e até a palavra significa que
pouco se faz, que se está ali passivamente, parado.
Mas passemos a esse ponto onde tínhamos ficado: explica lá como é que
pões, por exemplo, a tua família no teu
trabalho e quais as reacções deles ao
serem aí representados?
MB: A minha família é a minha primeira influência e acho que deveria ter sido
logo a primeira coisa a ser questionada
porque é dali que eu venho. Questionar
os valores que me foram passados e os
papéis que representamos.
JMO: E como é que a tua família reage
a isso?
MB: Não. Não tem coragem. Ou fá-lo
através de gestos simbólicos como oferecer-me um retrato da minha mãe ou
então escreve-me cartas.
JMO: Portanto sentes que ele tem problemas com a imagem que passas
dele?
MB: Claro que sim. Com a imagem que
passo e com a imagem que tenho. Ele
vive noutro universo, que é oposto ao
meu.
JMO: Como é que é esse universo
dele?
MB: É fechado sobre si próprio e muito
idílico e a mentira torna-se a forma de se
confortar, de culpabilizar os outros e não
olhar para si próprio honestamente. Não
o consegue fazer porque escolhe não o
fazer.
JMO: E prefere viver nessa ilusão? Achas
que é derivado de alguma coisa de classe social?
MB: Acho que tem a ver com geração,
talvez.
JMO: Em que sentido?
MB: Tenho inúmeros exemplos de pais
de outras pessoas, da mesma idade do
meu, que têm comportamentos parecidos. A guerra colonial, o 25 de Abril,
acho que isso serviu também para abanar um bocado a cabeça dos homens da
geração do meu pai.
JMO: Ele fez a guerra?
MB: Não porque se intoxicou para ficar
no hospital.
JMO: Eu também acho que pode ter a
ver. Parece a descrição do meu pai.
MB: Mas não sei. Não posso ter certezas. É uma intuição que provém de
observação. A minha mãe diz-me que
houve uma mudança muito grande (do
antes da guerra e depois da guerra), por
isso imagino que isso tenha causado
mesmo traumas que depois não foram
resolvidos. O meu pai passava a vida
a dizer-nos que devíamos era ir para a
tropa. E no entanto ele intoxicou-se para
não ir para a guerra.
JMO: Pois, é contraditório. Mas não será
aquela coisa dos pais que querem que
os filhos façam o que eles nunca fizeram?
MB: Sim, tudo nele é contraditório. O
meu pai queria ser o nosso melhor amigo, visto que era isso que sentia falta na
relação com o pai dele. Mas o nosso melhor amigo não nos massacra com idiotices burguesas nem nos obriga a fazer
tudo aquilo que ele quer que façamos.
E mesmo confrontado com os factos,
ele acha que a culpa é de alguém, seja
quem for, mas nunca é dele.
JMO: Isso confronta-se muito com o que
disseste sobre a necessidade de honestidade, ou seja, ele parece ir completamente contra o que defendes.
MB: Sim, completamente. E provavelmente o que eu defendo vem precisamente da nossa relação de eu não querer parecer-me com ele, e de ver no que
se tornou a vida dele.
JMO: Por oposição, portanto. E em relação à tua mãe? Vê-la de outra forma.
MB: A minha relação com a minha mãe
mudou muito. Ou melhor, mudou a visão
que eu tinha dela, porque ela para mim
sempre foi a heroína. Mas de repente
também comecei a perceber as falhas
e foi um óptimo trabalho resultante da
terapia: foi elevar um bocadinho o meu
pai e ‘des-elevar’ um bocadinho a minha
mãe. O tal equilíbrio, sempre presente.
JMO: O teu apelido Bonneville é dela ou
dele?
MB: É da minha bisavó Marie Rose Bonneville, do lado da minha mãe.
JMO: Francesa?
MB: Sim.
JMO: E essa opção parece confirmar,
simbolicamente, a preferência pelo lado
materno mas também podia ser só por
gostares do nome.
MB: É pelos dois. Mas acho que simbolicamente vai dar ao mesmo.
JMO: Porque é um statement o nome
que se usa.
MB: Sim, é. A minha bisavó é conhecida como tendo sido incrível. Acho que
fazia imenso trabalho de voluntariado e
que era muito à frente para o seu tempo,
o que passou também para o meu avô;
a minha mãe e as minhas tias foram as
primeiras a usar calças na escola, por
exemplo.
JMO: E o teu irmão também usa Bonneville, não é?
MB: Também. O meu irmão é fundamental nisto tudo e nunca falo dele, ou muito
raramente.
JMO: Nem aparece muito no teu trabalho, pelo menos directamente.
MB: Exacto. Mas no fundo está sempre
lá. Foi por causa dele que me interessei
por arte e que sabia o que era o pósmodernismo aos 13 anos. Porque ele
me mostrava coisas e falava-me delas, e
eu como era neurótico ficava obcecado,
e depois ia procurar mais e mais. Faloume do Van Gogh, do Freud, do simbolismo… foram coisas que fizeram toda
a diferença no meu percurso. Eu levava
- sempre levei - todas as tarefas muito a
sério; tudo o que eu fazia era profissional e tinha objectivos profissionais. Se
escrevia um guião, por exemplo, decidia
tudo. E escrevia guiões de 100 paginas.
JMO: Essa atitude esteve sempre presente?
MB: Sim, sempre. Renovava as colagens
do meu quarto de duas em duas semanas, ficava tardes inteiras a fazer desenhos de roupa e classificava-as; outono/
inverno - primavera/verão,
escrevia o ano, metia-os numa mica e
numa capa, onde também estavam escritos os anos...
JMO: Uma preocupação documental.
Tens esses dossiers ainda?
MB: Sim. Esse foi um lado que herdei do
meu pai, acho. O lado de documentar,
de assinar - ele assinava tudo e fotografava tudo. Até o meu irmão, em coma,
no hospital, está fotografado. O meu pai
era uma espécie de Nan Goldin.
JMO: E tu continuas esse registo da tua
passagem pelo mundo? Será uma preocupação com a efemeridade e a finitude?
MB: Acho que tem a ver com um lado
de afirmar uma diferença, de existir, sim.
Até porque existere, no latim, significa
destacar-se, por isso acho que tem ver
com isso; de dizer eu estive aqui e eu
estive aqui assim.
JMO: Há uma ideia de legado nessas
práticas?
MB: Há. E é preciso ter coragem para
o dizer, visto que parece mal. No fundo
gosto de acreditar que estou a trabalhar
por uma causa que é maior do que eu.
JMO: Pois é. Mas ignorando essas normas, como é que imaginas a recepção
desse legado depois de desapareceres?
MB: Não sei.
JMO: Não imaginas?
MB: Não sei principalmente porque sinto
que estou eternamente a começar alguma coisa. E porque estou em Portugal e
não faço parte nem do futebol, nem do
fado, nem de Fátima. Por isso não sei
que espécie de futuro poderá ter o meu
trabalho depois de eu morrer.
JMO: E ires para fora daqui? Já te ocorreu?
MB: Ocorre-me assim... todos os dias.
JMO: Como eu te compreendo.
MB: Mas não há nenhum lugar onde eu
pense: é ali. Encontrei este lugar, encontrei Lisboa e gosto, apesar de tudo, se
não já não estaria aqui. E tu?
JMO: Nem Berlim?
MB: Nem Berlim.
JMO: Berlim, sim, se falassem inglês e
não precisasse de falar alemão para leccionar lá.
MB: Nenhum lugar é perfeito.
JMO: Mas agora vou dois meses para
Londres e quem sabe…
MB: Mas então pensas nisso a sério.
JMO: Sim, claro.
MB: Quais são os maiores problemas
em viver aqui?
JMO: Há imensos. Começando pela pequenez de pensamento, de acção, de financiamentos, de margem de manobra,
a penúria crónica das instituições, a ausência de interesse das pessoas. Foram
muitos anos de ditadura, as pessoas estupidificaram a um nível impressionante
comparadas com outros países.
MB: Sentes que é um país velho?
JMO: Absolutamente. É um país onde
não há sentido de possibilidade.
MB: Resignado?
JMO: Sim, completamente. Notas isso
em todos os sectores. Mesmo no discurso político em que parece só haver
limitações.
MB: Acho que podemos então falar em
liberdade. Qual é a tua noção de liberdade?
JMO: A minha noção de liberdade é assente na auto-determinação e não encontrar barreiras para essa consciência
de escolha, mas que se passa em todos
os planos. Por exemplo, os jornais e o
jornalismo que fazem é uma barreira ao
desenvolvimento de uma consciência
crítica. A liberdade é essa faculdade de
consciência crítica e auto-determinada.
MB: Há pensamentos recorrentes que
tenho: porque é que tenho que pagar
para estar no mundo que, supostamente, também é meu e porque é que tenho
que conquistar uma liberdade que supostamente já é minha?
JMO: Porque no fundo é ilusória, ou
seja, mesmo este meu discurso sobre a
liberdade parte de um pressuposto prévio de que essa liberdade é uma ficção,
pois as normas que te dizem que és livre
são normas e, por isso, nunca o és verdadeiramente.
MB: E o que me dizes do que disse o
Sartre, de que nunca foi tão livre como
durante a ocupação Nazi?
JMO: O Sartre acreditava na veracidade
desse conceito, eu não.
MB: Pois eu também tenho dificuldade
em acreditar mas gosto que haja a possibilidade de se acreditar nisso.
JMO: E até como feminista, tenho imenso que questionar isso. Por exemplo, o
que é emancipar-se? Ou emancipar?
É um discurso formulado numa época muito ligada à modernidade, com a
ideia de progresso, com a ideia de que
o ser humano se pode emancipar e ser
completamente livre. Quando a própria
concepção disso é super normativa, ocidental e até muito inspirada em homens
heróicos.
MB: E em relação ao budismo, à filosofia
budista, encontras alguma noção mais
plausível?
JMO: Nunca me interessei pelo budismo. E haver mestres imperadores que
reencarnam não me convence rigorosamente nada da bondade da proposta. E
o facto de serem todos homens!
MB: Mas tens uma aceitação da morte
que é muito mais simpática do que na
religião católica.
JMO: Falaciosa, porque assenta na ideia
que vais ter outra vida. Não assenta na
ideia de que its over, finito, kaput.
MB: Sim, mas isso pode trazer benefícios se pensares como eu: não quero ter
outra vida! Ages de forma a que a tua incarnação seja o mais perfeita possível.
JMO: Pode. As pessoas podem continuar enganadas, a auto-melhorar-se, mas
não porque achem que isso é bom, e
sim porque acreditam que terão outra.
É como a ideia da felicidade; uma coisa prática para manter a mão-de-obra
entretida a achar que tudo corre bem
enquanto trabalham imenso - aqui é a
minha costela marxista a falar.
MB: Venha ela. São coisas das quais
não se falam - aliás quase nunca se fala
de nada - e acha-se tudo ultrapassado
porque dá imenso jeito.
JMO: Claro, é um imenso tabu. Tipo: ai
o Marx, que horror! E o Estaline. E cuba.
Mas eu continuo a pensar de forma marxista. Sem grandes hífenes, como era
habitual ou ainda é no P.C. tipo marxismo-leninismo. Eu recorro ao marxismo
e mais enquanto método de perceber o
mundo pois, continuo a achar que uma
análise marxista nos faz perceber imensas coisas. Por exemplo, estas questões
da morte, dos enganos das religiões,
da exploração, da opressão. Repara:
só existem mulheres, porque a categoria foi útil durante o advento do capitalismo para teres umas pessoas que se
ocupassem da reprodução gratuita da
mão de obra e para fundar a separação público privado, deixando que as
forças capitalistas não pagassem a reprodução e a formação da mão de obra
de que depois precisam para ter lucro.
E depois também acho que o capitalismo foi-se apurando ao longo dos anos
para construir formas de subjectividade
que sirvam os interesses do capital. Imagina, por exemplo, a ideia de haverem
trabalhos mais femininos e masculinos.
Normalmente os primeiros muito mais
mal pagos do que os segundos. O Marx
deu-nos os conceitos para pensar isto e
sobretudo mostrou uma quantidade de
problemas no sistema. Aliás não há teoria do lucro sem o Marx que descreveu
bem o sistema capitalista. Ah, e outra
coisinha rápida, é que é possível mudar.
MB: Então és um optimista.
JMO: Não. Nada mesmo. Mas acho que
há coisas que têm mudado e têm que
continuar a mudar. Olha um bom exemplo, são os assuntos ligados às mulheres e a outros grupos oprimidos.
MB: E não achas que acreditar na mudança é ser optimista?
JMO: Não, é ser realista. Não é um discurso católico de esperança, é um discurso de olhar para as sociedades.
MB: Mas, para mim, o optimismo não
tem a ver com esperança, tem a ver com
trabalho.
JMO: Nesse sentido, sim. Mas nem é
optimismo, do meu ponto de vista, porque é impossível que algo não mude em
termos humanos. Porque sempre mudou e foi sempre mudando. Se há coisa
que não existe é constância.
MB: Sim, mas pode mudar para algo pior
e é por isso é que falo no optimismo.
JMO: Pois, mas eu acho possível que
mude para pior por isso não é uma visão
muito optimista. Não é mesmo. Eu acho
que é preciso fazer um trabalho grande
de dar às pessoas outras noções, de resignificar coisas.
MB: Sim, mas por isso mesmo acho que
enquanto se fizer esse trabalho, a probabilidade de existirem mudanças positivas aumenta. E por isso é que é importante não parar.
JMO: Sim e já se notam. Por exemplo
haver mais pessoas que não se acham
nem homens nem mulheres ou que recusam esses rótulos. Mas ainda tens
coisas horrendas; tens o Vaticano, tens
o papa.
MB: O papa é capaz de ser a coisa mais
horrenda.
JMO: E ele vem cá. Nesse plano, é mesmo um nojo. Vamos assistir aos políticos
a rebaixarem-se perante aquela criatura,
as pessoas com bandeirinhas a aclamarem o papa. O único teocrata europeu,
que acha que foi nomeado por deus.
MB: É até um insulto às ideias de Cristo.
JMO: A mim isso tudo me repugna, até a
própria figura de Cristo. Acho mesmo repugnante como figura. É tipo sacralizar a
dor como mote para a humanidade, ou
acreditar que salvou as pessoas por ter
sido torturado e morto. Caso tenha sequer existido. Nunca percebi isto. Salvar
de quê?
MB: Mas isso foi o que inventaram. Já só
sabemos as historinhas. Supostamente
Jesus era o hippie lá da terra e na altura
não havia televisão; as pessoas tinham
que se entreter com outras coisas. E ele
ela descendente boas famílias; a mãe
da Maria era descendente do rei David. Jesus era o rebelde. Acontece isso
imenso nas famílias de bem. No fundo
Jesus disse à mãe que não queria continuar com aquela burguesice. É uma
história como outra qualquer. Mas como
supostamente é muito antiga, tem que
se prestar reverência. É como quando se
dá estrelinhas nos filmes antigos; dá-se
sempre 5 estrelas porque é um clássico,
mesmo que seja uma porcaria.
JMO: Como é que tu vês as religiões?
MB: Eu vejo as religiões como vejo a
política: não quero pertencer a nenhum
lado. Acho que limitam imenso a inteligência.
JMO: Mas há religião no teu trabalho?
Ou não ?
MB: Não vejo religião em lado nenhum
no meu trabalho.
JMO: Eu também não. Mas podia haver
um significado escondido.
MB: Não. Nem vejo um lado ritualista
que é comum haver na performance.
Não vejo nada do meu trabalho como
ritual. Houve uma altura que isso me interessou, mas interessou-me só saber
que existe. Eu prefiro chamar repetição
ao que se pode chamar de ritual porque
não lhe dou essa carga sagrada. Como
lavar os dentes. Eu nem sequer consigo
manter um diário. Um diário no sentido
de escrever todos os dias.
JMO: Mesmo com o teu treino todo?
MB: Se me proponho a isso sinto que ao
terceiro dia já caio num vazio, que não
tenho nada para dizer porque nem houve espaço para isso.
JMO: Mas tu chegaste a fazer um livro…
MB: E não me interessa escrever um diário a contar como foi o meu dia. Acho
que isso não interessa para nada; se
comi amendoins ou salmão… Sim, fiz
um livro porque me propus escrever
um diário de dez dias sobre um acontecimento específico. Se fossem dois
meses acho que teria sido diferente. Ali
era um trabalho de investigação, quase
como se eu fosse um detective.
JMO: E ‘Os diários de C.C. Rausch’?
MB: Isso foi uma obra estranha. Foi uma
espécie de transposição romanesca
numa época muito dura. Nem sei muito
bem como surgiu, mas sentia-me muito
à margem. Muitos dos meus fantasmas
estão ali.
JMO: E gostas de revisitar os teus fantasmas ou de deixá-los estar?
MB: Sim, sem dúvida. Tudo aquilo que
eu fiz até agora, está escrito.
MB: É preciso mandar os fantasmas
para onde eles devem ir, por isso, tenho
que lá ir falar com eles e explicar-lhes a
situação para que não voltem a aparecer. Mas nessa altura eu não sabia muito
bem falar-lhes; deixava que existissem
e documentava a influência que tinham
sobre mim.
JMO: Isso é interessante. Poderes passar daí para a escrita; da escrita para a
escrita.
JMO: E agora já és capaz desse domínio?
MB: Sim. Percebo muito mais rapidamente de onde vêm e porque é que estão ali. E então deixam de ser fantasmas
passam só a ser avisos. Estou a querer
dizer com isto que estou, portanto, menos gótico.

JMO: Mas por acaso essa incursão na
literatura não te deu vontade de o fazer
mais vezes?
MB: Sim. E tenho imensa vontade de
publicar coisas que escrevo, aliás porque acho que é quando penso melhor.
Quando falo sinto que me perco. Ao escrever é diferente, há outro espaço.
JMO: E há tempo para reflectir.
MB: Grande parte do meu trabalho parte
da escrita e eu gostava que no final fosse também escrita e não tão objectual.
Estou muito interessado em fazer desaparecer a forma, mas não sei muito bem
como.
JMO: E a escrita seria uma possibilidade?
MB: Comecei a pensar nisto por causa
de estéticas e gostos e de como, por
vezes, eles nos impedem de irmos mais
longe. Na escrita isso também existe,
claro, mas é diferente, não é tão gritante.
E para mim a escrita tem mais a ver com
ideias do que com a própria escrita, por
isso apaga esse lado do estilo. É muito
objectiva. Talvez seja porque eu não sou
escritor.
JMO: Sim, é um plano interessante de
ver a questão: a escrita como modo de
descrever, sem gostos ou estéticas por
comparação à performance.
MB: Sobretudo como um modo de pensar. Mas acho que ainda tenho muito que
depurar para chegar só à escrita. Saber
exactamente o que quero. Sempre fui
melhor a saber o que não quero.
Dia 3
JMO: Quando começou o teu interesse
nos bambis, veados?
MB: O início da história: Nova Iorque.
Ano 2000. Museu de História Natural.
Estava lá com o meu irmão - tivemos férias pagas pelo meu avô. O Museu de
História Natural de Nova Iorque é gigante e estávamos a ver os animais, e quando passámos por uns Kooloo - acho que
é assim, mas não tenho a certeza - que
são da família dos veados, o meu irmão
apontou para eles e disse: olha tu. Eu fiquei surpreendido e lá fiquei a olhar para
eles - gosto sempre que me façam revelações sobre mim - e cheguei à conclusão que ele tinha razão; eu era muito
parecido com eles. Portanto foi há dez
anos atrás e por pura casualidade.
JMO: E essa afinidade continua a existir.
MB: O meu irmão conhece-me muito
bem e aquilo ficou-me na cabeça. Depois comecei a investigar. Foi-se tornando mais e mais séria à medida que
ia percebendo que não eram só parecenças físicas, mas que havia um lado
simbólico que também tinha muito a ver
comigo.
JMO: Em que medida?
MB: Em várias. Há o Bambi da Disney e aí entramos num pensamento recente
acerca dos contos de fada - mas primeiro a simbologia; os veados (ou cervos)
são símbolo da velocidade e da renovação, e eu acho que ambos estão intrinsecamente ligados ao meu trabalho e à
minha vida - odeio separar assim os dois
como se fossem duas coisas diferentes.
JMO: Sim e no teu caso nem faz sentido
a separação.
MB: Para além disso o veado é, supostamente, um mediador entre o céu e a
terra - e já falámos das minhas eternas
buscas do equilíbrio. E é um animal solitário. Está muito ligado à ideia de acção.
Por estas razões foi-se tornando importante.
JMO: Começou a funcionar quase como
um totem simbólico?
MB: Sim, mas não conscientemente.
JMO: E quando passa a integrar mais
vivamente a tua vida, acaba por transbordar para o teu trabalho?
MB: Acho que foi mais ao contrário porque repesquei a ideia do veado quando precisei de um nome para a minha
persona musical. Depois disso é que foi
crescendo.
JMO: E daí o BlackBambi.
MB: O BlackBambi tem a ver com uma
altura de renovação, de revolução mesmo na minha vida. Marca um período em
que tive que me reestruturar completamente. Foi perto da altura em que fiz a
MB#1. Foram trabalhos onde precisei
de afirmar que eu ainda existia por me
ter deixado consumir numa relação e ter
deixado de existir - ou ter tido essa sensação.
JMO: E em que retomas? Ou melhor, em
que te revives?
MB: Sim.
JMO: Estava a ver as fotos do MB#1.
MB: A Loira, o Urso...
JMO: Sim. O veado não aparece na performance. Aparece na música. Acho que
temos quase ignorado a parte da música
e está pouco abordado. A música começa quando, onde?
MB: Sim, é verdade, não costumo falar
sobre isso. A música existe desde os
13 anos, mais ou menos, porque queria
fazer um filme com os meus amigos e
precisava de uma banda sonora, então
comprei um órgão e comecei a fazer músicas e a gravar tudo em cassetes. Tinha
amigos com bandas e às vezes fazíamos
músicas juntos. Fui sempre fazendo as
minhas músicas num Casio dos anos
80. Depois na altura do electro-clash, li
um artigo sobre o facto deste género estar muito ligado à atitude e postura em
palco e à performance e pensei: porque
não? E então juntei a Sofia, o António e
o Luís e formámos os Hex. Demos uns
quantos concertos mas depois eu e a
Sofia viemos para Lisboa e então ficou
tudo meio parado e acabámos por não
fazer mais nada com os Hex. Continuei
sempre a fazer as minhas músicas no
órgão e depois em 2006 - na altura da
grande crise emocional - decidi que ia
aprender a fazer música no computador,
e o BlackBambi afirmou-se nessa altura.
Ah, não disse, mas o Veado é considerado um animal feminino, claro. O próprio
Bambi é muito andrógino.
JMO: E tem aquela questão com a família - é abandonado? ou a mãe morre?
MB: Sim! É isso. Eu tenho pensado muito nisso estes dias por causa dos contos
de fada. Acho que fui influenciado de tal
maneira pelos contos que acabei por
transformar a minha vida num; é a história clássica. O rapaz que sofre - que tem
o pai autoritário ou ausente, que tem
uma fada madrinha - no meu caso houve
também a história do abuso quando era
criança por isso ainda torna tudo mais
dramático - há essa bruxa má, e depois
há a minha tentativa de sair disso tudo e
de viver feliz para sempre.
MB: Há várias etapas; a vinda para Lisboa, o facto de não me apegar à família,
a decisão de fazer terapia, a decisão de
não me suicidar e de lutar contra esse ciclo negativo, de tornar isso um objectivo
concreto a atingir.
JMO: Queres dissecar isso?
MB: Acho que, no fundo, tudo. Eu era
suposto ter morrido tinha dois ou três
meses, sufocado por almofadas que me
caíram na cara, no berço. Mas fui encontrado a tempo pela senhora que tomou conta de mim desde sempre e que
sempre foi a minha melhor amiga, conselheira, fada madrinha. Ela foi a minha
âncora.
MB: Se me ajudares; isto está tudo ainda
muito fresco. O que o causou foi o ‘Pretty Woman’, que era um filme tipo conto
de fada que eu via todos os dias quando
tinha 9 anos ou menos.
JMO: O ‘Pretty Woman’ com a Julia Roberts que é no fundo um Pigmalião. E
acreditavas nessa possibilidade de regeneração?
MB: Sim. Aliás essas histórias eram sempre as que me marcavam: a Tina Turner,
o Van Gogh, a Pretty Woman, todos quebravam o feitiço de alguma maneira.
JMO: Que é a lógica do conto de fadas.
Através da determinação, de confrontar
os problemas e de matar dragões... então é-se feliz para sempre. E o que é que
te tornava essa experiência tão negativa?
JMO: Que era a tua ama.
MB: Bom, era a empregada da minha
mãe, mas era ama, mãe, amiga, tudo
ao mesmo tempo. Tem uma importância imensa na minha vida embora quase nunca fale dela porque falo mais dos
próprios traumas…
JMO: Portanto histórias que em que há
mudança e em que a personagem rompe um ciclo negativo.
JMO: E ela teve esse papel de tomar
conta de ti? De cuidar?
MB: Sim, exactamente. Se bem que o
Van Gogh foi só depois de morto.
MB: Não só de cuidar mas de me ensinar a cuidar de mim.
JMO: Mas pegando na tua própria história como se dá essa renovação?
JMO: E de te proteger e ensinar-te a
proteger-te.
MB: Sim. É uma mulher incrivelmente
inteligente.
JMO: E que pessoa é que achas que
eles queriam?
JMO: E sentias que precisavas de ser
protegido especificamente do quê?
MB: Acho que não queriam outra pessoa, acho que é mesmo falta de noção
de como se lida com uma criança, de
como se está sempre a dizer: não sejas
assim e esse tipo de frases. E de, claro,
fazerem comparações com o meu irmão
- que é o que acontece sempre quando
há irmãos.
JMO: Claro. A tua família apercebeu-se
dessa tua inquietação com a situação?
De te sentires assim?
MB: Bom, eu acho que não sentia isso.
Não tinha noção. Mas havia o meu pai
que era ao mesmo tempo ausente e ao
mesmo tempo demasiado presente. Os
meus pais separaram-se quando eu tinha 3 anos, mas o meu pai ia sempre
almoçar e jantar lá em casa porque a minha mãe achava importante que estivéssemos com ele. Mas ele é uma pessoa
desequilibrada, e para nós - mãe, irmão,
Té e eu - era uma visita que não era muito bem vinda porque passava a vida a
queixar-se de tudo, a ser altamente autoritário, inconveniente. Depois também
fui abusado sexualmente pelo meu primo. Não sei muito bem que idade tinha.
5, 6, 7, 8? E nunca contei a ninguém até
2008.
JMO: E foi durante muito tempo?
MB: Não sei ao certo. Sei que foram três
vezes diferentes, pelo menos do que me
lembro nitidamente.
JMO: E sentias que o teu contexto era
por essas questões? Uma coisa que vivias negativamente uma experiência de
abuso, o paradigma do pai ausente e
autoritário…
MB: Eu sentia que estava sempre deslocado, que nunca parecia que devia estar
onde estava que não devia ser como era,
que os outros esperavam que eu fosse
outra pessoa e que desejavam isso.
MB: As famílias acham sempre que se
está a tentar ser rebelde, nunca querem
ver para além disso.
JMO: Escolhem não ver?
MB: Sim, é mais cómodo. É mais importante ensinar-se que o guardanapo de
pano deve ficar ao colo e que se deve
agradecer sempre…
JMO: Sim, percebo-te muito bem. Também tive um contexto um bocado assim.
MB: Tu tens irmãos?
JMO: Tenho um irmão mais novo.
MB: E dás-te bem com ele?
JMO: Sim, muito bem. Apesar de pertencermos a mundos completamente
diferentes.
MB: E também tiveste a experiência da
‘boa educação’ burguesa.
JMO: Sim. E do colégio, e de recusar a
masculinidade tradicional desde sempre.
MB: E sentiste também que queriam ver
uma pessoa diferente?
JMO: empre, claro.
MB: E como é que lidaste com isso?
JMO: Muito mal no principio. Depois vim
para Lisboa e cortei com isso. Acho que
sempre recusei a masculinidade como
forma de existência, porque isso seria
ser como o meu pai - e isso era tudo
o que nunca quis ser – que tinha um
bocado esse paradigma do teu, de ser
ausente e demasiado presente, e, para
além, disso era violento comigo. Sempre tivemos uma relação muito complicada, assente no medo, numa espécie
de ódio, mas tudo muito burguesamente
camuflado.
MB: O medo que supostamente é o respeito.
JMO: Sim, mas é medo. Medo que ele
tem de mim e medo que eu tenho dele,
inculcado pelo sistema.
MB: Sim, também aprendi isso; que os
meus pais tinham medo de mim.
JMO: Pois, o meu pai, sim. A minha
mãe, não. E daí também ter uma relação
muito próxima com ela e muito má com
ele.
MB: Sim, eu também era mais próximo
da minha mãe, mas mesmo assim o pilar
era mesmo a Té. Acho que era a única
que sabia falar comigo. A minha mãe
sempre teve muito medo de enfrentar a
verdade.
JMO: Como me recuso a entrar naquelas
coisas de ser exibido como um prémio por ser investigador, doutorado, aos 33
- recusei sempre que o meu pai fizesse
o filme de me mostrar como algo que ele
conseguiu conquistar.
MB: Parece-me que as pessoas têm
filhos para preencherem as próprias falhas.
JMO: Sim, mas depois a coisa corre mal
e tudo lhes fura os planos.
MB: Claro. Como é que se pode esperar
que alguém seja aquilo que nós queremos? É irreal.
JMO: Eu até diria que nem nós podemos
esperar isso.
MB: Aliás acho que quanto mais o esperamos mais somos levados para outro lado, e é por isso que a maior parte dos filhos é o oposto do que os pais
queriam que eles fossem. E depois há
aquele sentimento de “não era bem isto,
mas pronto, respeito”, que é odioso. Os
pais a quererem ser Deus, a definir o teu
destino.
JMO: Acho isso perfeitamente sinistro. O
que é que achas que a tua família queria
para ti?
MB: Não faço ideia. Eu como era conhecido pela minha persistência e como
decidi desde muito cedo que queria ser
actor, acho que ninguém tentou contrariar. Sempre me deixaram seguir o que
quis. Mas a minha mãe e o meu pai não
têm aquelas profissões para os filhos
seguirem. Acho que no fundo o meu pai
queria que eu fosse um socialite bem sucedido, que acho que era o que ele, no
fundo, queria ter sido. Por isso mostrolhe sempre quando sai alguma coisa sobre mim num jornal ou revista porque sei
que fica contente.
Dia 4
MB: E como é que vês esse processo?
JMO: É difícil responder, pois ele vive
numa espécie de concha onde tudo se
passa como se não se passasse nada. Ia
provavelmente achar que eu estou completamente doido e que nada do que
digo é verdade.
JMO: Acho que existe uma ficção política que o capitalismo e o modernismo
identificaram com a ideia de um indivíduo, ou seja, não acho que o indivíduo
exista na realidade. Criaram-se foram as
condições para que essa construção assumisse uma “realidade”. Acho portanto que desse ponto de vista, a própria
ideia de indivíduo é uma ficção com um
objectivo político de normalização dos
comportamentos individuais, e de poder
controlar este ente individual biopoliticamente construído. Eu sei que sou muito
foucaultiano. O que achas deste tipo de
posicionamentos?
MB: Por falar em verdade, qual é a tua
relação com a verdade?
MB: Isso para mim tem uma importância
muito passageira. No dia seguinte já não
interessa nada. Mas ele tira fotocópias
e manda para o meu irmão e para as
minhas tias. No fundo acho que o que
querem é que sejamos bem sucedidos
só que não confiam minimamente em
nós. E então decidem tudo e acham que
o que decidem por nós é o que está certo e é o que não pode falhar.
JMO: Agora achas que isso continua a
passar-se?
JMO: Nenhuma. A verdade não é um
valor absoluto. Acho que cada pessoa constrói versões, e mesmo aquilo
que as pessoas acham que é um facto,
eu tendo a ver como um account. Um
exemplo fácil esclarece o que acho da
verdade: o 11 de Setembro para os EUA,
é um ataque à soberania nacional, um
acto de terrorismo, uma chacina. Para
certas pessoas americanas, trata-se
provavelmente de algo encomendado
pelo Bush, ou pelo menos incitado. Para
os chamados fundamentalistas, trata-se
de um acto de justiça e reparação. Ou
seja, há aqui alguma verdade universal?
Algo que te diga qual é o modo correcto
como as coisas aconteceram? Pronto, a
minha relação é essa. É uma postura de
cepticismo em relação a qualquer tentativa de valor universal.
MB: Não, de todo. Bom., mais ou menos. O meu pai é muito entendido em
todas as matérias
então tem sempre um bom conselho…
MB: Eu tendo a ver a verdade como pessoal (como tudo, não é?). Com certeza
tens uma visão tua do que é verdade em
ti, para ti.
JMO: É como o meu. Eu fico piurso.
JMO: Sim, claro. Mas questiono-me adicionalmente: o que sou eu? O que quer
dizer esse ente, o Eu? Ando a investigar
isso agora; a ideia de que possa existir
um Eu.
JMO: Pois o meu também. Mesmo que
sejam entrevistas sobre homossexualidade. A minha mãe diz que ele lê e gosta
imenso, o que eu acho muito estranho.
MB: Qual achas que seria a reacção dele
ao ler esta conversa?
MB: Acho que me sinto como na primeira vez em que vi o ‘Waking Life’ - acredito nisto tudo porque é tudo possível. E
acho que me vou focando num ou noutro aspecto consoante o que surge na
minha vida.
JMO: Agora ando meio obsessivo com
uma ideia; a ideia de que não nos é possível habitar os nossos corpos completamente, de que há demasiado no corpo que escapa a um controlo racional.
E essa parte é o inabitável. Por exemplo, repara nas ansiedades de controlo
que as pessoas têm - se conseguissem
controlar totalmente não as teriam porque seria óbvio que controlavam e, no
entanto, não controlamos sequer o nosso corpo, que nunca é nosso a meu ver.
Não é muito simples de explicar porque
estou no início mas dá para teres uma
ideia. Controlas mais facilmente um outro corpo do que o corpo em que habitas. E depois contamos umas ficções
sobre o nosso auto-controlo mas que é
tudo completamente ilusório. Comecei
a pensar nisto quando tive ataques de
pânico.
MB: Quais eram as causas dos ataques?
JMO: Várias. Tinham que ver com coisas de infância, medos inculcados, com
o sentir-me sozinho e, por isso, a dificuldade em controlar-me ser maior. Com
problemas de auto-estima, também. A
existência de um outro é muito útil para
nos controlarmos. Já tiveste ataques de
pânico?
MB : cho que tive um. Senti falta de ar,
os pulmões a fechar. Pode ser um ataque de pânico?
JMO – Sim, pode. Sem outra causa aparente, provavelmente é.
MB: Foi o ultimo natal que passei em
família, por isso é que acho que foi um
ataque de pânico. Tinha estado no lado
do meu pai, sem o meu irmão, e sentime ultra deslocado. Depois cheguei a
casa da minha mãe e ninguém reparou
que eu lá estava. Fui para o quarto e tive
esse ataque em que tive que abrir a janela - Dezembro, no Porto - porque não
conseguia respirar e só soluçava.
MB: Pois há assim umas histórias de terapeutas que não são terapeutas.
JMO: Pois, neste caso a coisa correu
mesmo mal porque sendo um consumidor de terapia, tenho formação em psicologia, e isso ajuda muito a desconstruir coisas que eles dizem. E acho que
há coisas que outras pessoas deixam
passar e eu não deixo. E tu? Fazes terapia ainda?
JMO: Ar fresco é muito bom para isso.
E tremias? Eu já tive várias vezes, mesmo muitas. Mas entretanto a terapia tem
funcionado bem.
MB: Sim. Estou em fade out. Agora vou
só de vez em quando. Mas não faz sequer dois anos.
Foi um trabalho muito intenso.
MB: á quanto tempo fazes?
JMO: Envolvia que tipo de coisa?
JMO: Há perto de três anos. Tive uma
experiência má e depois encontrei este
terapeuta, que é excelente.
MB: Havia trabalhos de casa. Escrever,
principalmente. Mas partiu muito de eu
estar constantemente a descobrir, de
sessão para sessão, por onde é que eu
devia ir. Levei a terapia muito a sério,
como faço sempre. Mas, por exemplo,
eu, à partida, quis que o terapeuta fosse
uma mulher.
MB: Eram os dois homens?
JMO: Não, a primeira era uma mulher.
Este segundo foi por recomendação de
outro colega que achou que o António
seria bom terapeuta para mim. E é mesmo.
MB: E porque correu mal com a primeira?
JMO: Ela foi homofóbica numa sessão
e parou ali mesmo. Tinha umas crenças
da proximidade entre homossexualidade masculina e feminilidade e eu passeime.
JMO: Porquê?
MB: Por causa do meu historial não confiava minimamente nos homens.
JMO: Ah, mas sabes eu também fui
aconselhado por outra colega minha,
ex-terapeuta, que me disse para eu procurar alguém que fosse o contrario de
mim. Percebi que seria um homem aparentemente hetero, com ar de surfista,
mais novo. É o António.
MB: Então ela tinha razão. Comigo foi
mesmo pelos trabalhos de casa, ficava
fascinado com aquilo que ela dava para
fazer a uma amiga minha. Ficava cheio
de vontade de fazer também. Depois
não gostei propriamente de os fazer.
Mas escrever uma carta ao meu pai, por
exemplo, foi muito importante. Principalmente porque lhe tinha escrito uma em
2005 e pude comparar.
Foi horrível e muito revelador.
JMO: Uma que estava numa performance?
MB: Não, essa nunca usei porque é mesmo hardcore. Mas foi na altura do Daddy
Daddy. Essa carta serviu de base para a
performance.
JMO : Lembro-me bem do Daddy Daddy. Adorei.
MB: Eu revi há pouco tempo e fiquei
chocado. Era de uma agressividade total. Estou muito mais apaziguado, felizmente.
JMO: É engraçado, lembro-me de ter ficado a gostar imenso do teu trabalho e
de desvalorizar montes de coisas, comparando contigo. Particularmente algumas coisas chatas de dança. Usava um
bocado o teu trabalho como referente
para pensar coisas. Ainda uso. Como
faço com a Carlota (Lagido) também.
Porque me irritam tantas coisas nas artes
performativas; irrita-me imenso a convenção, a construção de personagens
assentes numa teatralidade, o acting, as
dançolas desnecessárias, o modo como
as pessoas dizem as palavras, os cenários, o chão de linóleo, as musicas para
darem o ar de contemporâneo, os pseudo conceptuais, as piadolas…É mais do
que consigo listar !
MB: Parece-te tudo falso?
JMO: Parece-me tudo um cliché, um
dejá vu, e falso nessa medida.
MB: Qual achas que seria a saída?
JMO: Sim, mas vendo também em relação ao teu desenvolvimento, e às coisas
que se faziam, vendo em contexto, fazia
muito sentido.
JMO: Para muitas pessoas, irem fazer
outra coisa. Para outras, darem-se ao
trabalho de se repensarem, de reflectirem sobre o que estão a fazer, e não fazerem um trabalho após o outro em que
é tudo a mesma porcaria.
MB: Quando revi fiquei mesmo aliviado
porque sei que já não estou ali.
MB: Mas não achas que é comum um
artista repetir-se?
JMO: Acho e acho bem, desde que não
seja uma receita. Tipo: faço esta peça
assim e se resulta, todas vão ser assim.
MB: Comodismo, insegurança.
JMO: E mais, a questão dos públicos é
mesmo o que me mete mais nojo para
ser honesto. Em que o/a artista é uma
espécie de puta do público.
MB: Há uma coisa da qual queria muito
falar e que é sempre um tema imparável, que tem a ver com “os novos públicos” e a “formação de públicos”, e com
o facto das pessoas se queixarem do
público, de que ele não existe ou que é
elitista. Como se tivéssemos todos que,
de repente, fazer arte popular e como se
o público estivesse interessado nisso visto que em Portugal isso nem sequer
existe, essa noção de público.
JMO: Isso impressiona-me imenso.
Como se a condição para a arte existir
seja o público - é completamente imbecil.
MB: E como se a vida fosse mudar porque há público ou “outro público”. Tenho
uma noção muito básica de para quem
estou a apresentar trabalhos e começou por causa das conversas do publico elitista, o publico burguês. Mas então
quem faz é o quê? Vem de onde? Das
favelas? Estão à espera de quê?
JMO: E até parece que o Estado investiu
minimamente nisso em termos de formação escolar
na preparação de públicos.
MB: É muito simples: eu acho que as
pessoas que têm a possibilidade de realmente mudar alguma coisa são as pertencentes à burguesia - se é que se pode
falar assim em estratos - porque é quem
tem os meios para o fazer, e porque é
quem domina o mercado e, por isso, é
para nós mesmos que o fazemos, para
pessoas exactamente como nós.
JMO: Eu acho isso tudo uma imbecilidade total, todo esse discurso dos públicos. Repara que o estado não integra
isso na formação das pessoas. E como
é que alguém pode chegar a ir ver algo
de arte contemporânea sem perceber
nada de nada sobre como é que se chegou ali?
MB: Sim, claro. Mas também a noção
que se passa é que é tudo muito fácil:
é só pôr umas pessoas a irem a um museu, não há trabalho nenhum por trás
disso, nem esforço de nenhuma das
partes. A arte é só para ver e dizer que
se viu, portanto. É a isso que se resume.
Tivemos 10.000 visitantes na inauguração de não-sei-o-quê e fica toda a gente
feliz.
JMO: Pois, mas é diferente. Quando me
explicam cada movimento, a ideia subjacente a cada coisa, acho terrível e destrutivo. Corta a possibilidade de projecção. Não me faz impressão a conversa,
faz-me impressão a descodificação.
JMO: Sim, isso eu também acho extraordinário. E isso basta-me, não quero saber mais nada. E prefiro construir o que
quiser sozinho, na minha cabeça. E ficar
assim numa lógica de tecer significados
meus em torno daquilo.
MB: Isso aconteceu no curso de artes
visuais com um artista que foi falar sobre
o seu trabalho. Eu achei o trabalho fortíssimo e ele só falava dos materiais que
tinha usado, de como é que tinha feito
aquilo, como é que filmou, e eu estava a
ter ataques porque ele estava a destruir
o trabalho todo. E no fim perguntei-lhe
porque é que ele estava a fazer aquilo
e não outra coisa qualquer? E ele ficou
muito embasbacado. Expliquei-lhe que
estava a falar com artistas e não com
comerciantes e ele lá me disse que começou por querer fazer arte quando percebeu que não podia ser o irmão, que
ele não podia ser outro. E isso chegoume. Bastava-me essa frase. Quero lá saber se usa metal ou barro, não é esse o
propósito de fazer.
MB: Muitas vezes me perguntam: quem
é o teu publico? E também: quem é o
Miguel Bonneville? O que é que se responde a isto? Eu acho que há duas atitudes a tomar; ou realmente insultar as
pessoas ou então explicar e ter paciência. Eu tenho adoptado a segunda até
porque me obriga mesmo a pensar.
JMO: Detesto uma coisa muito em voga
também que é o quererem que o/a artista explique o que fez. No fim da peça
vem a conversa com artista.
JMO: Eu também prefiro mil vezes essa
frase simples ou simplesmente nada.
Dou-te um exemplo de um artista que
eu adoro, o Felix Gonzalez-Torres; acho
que odiava ouvi-lo a falar sobre os rebuçados que deixa no chão para as pessoas levarem. Ou os posters
MB: Eu já detestei mais, até porque
aprendi a gostar de falar sobre o trabalho. Mas também porque não falo sobre
o trabalho em si.
MB: Há uma coisa que adoro nele que é
o facto de dizer que tudo o que fazia era
para o namorado, que esse era o público
dele.
JMO: A mim fazem-me uma pergunta
que odeio e fico com vontade de insultar
também: como é que um homem pode
ser feminista? Isso tira-me do sério. E
acontece mesmo muito. Eu normalmente digo que não sou homem. Ou o que é
que acha que é um homem? Há certas
perguntas que te deixam numa posição
impossível. Eu não sei muito bem responder a muitas coisas por isso é que
escrevo e penso-as nessa actividade.
Acho sempre que acção faz o actor e
não o actor que a faz - isto em português
percebe-se mal; the deed does the doer.
No sentido que as nossas acções é que
nos fazem.
MB: Hoje disseram-me que as minhas
tatuagens são um macho e uma fêmea;
que a da direita é mais masculina e a da
esquerda mais feminina.
JMO: E tu? És a Trans que fica no meio?
Fico perplexo com as certezas das pessoas em relação ao género; aquela coisa do género: eu sou uma mulher ou eu
faço coisas masculinas ou esta tattoo é
macho. Fico sempre espantado com o
grau de certeza das pessoas.
MB: Nesse contexto eu sou um homem
que faz trabalhos de gaja fodida.
JMO: Eu também, o mais possível. Homem que faz trabalhos de menina inconformada e mal fodida - não é isso que
acham das feministas?
MB: Pois, acho que sim. Ou então que
são lésbicas. Sou então um gajo que faz
trabalho de lésbica. Gosto.
JMO: Eu acho-me politicamente lésbica, mas também não me dou muito bem
com rótulos, e sou um caso meio chato
de rotular.
MB: Ainda bem! No outro dia também
me disseram: és a gaja mais feminista
que eu conheço. Mas acho que é culpa da Beauvoir, se bem que tento não
infiltrá-la nas conversas porque se torna aborrecido estar sempre a invocá-la.
Mas ela lá anda, nos meus bolsos e no
meu sangue.
JMO: No meu caso foi muito. Mas depois apaixonei-me pela Judith Butler.
MB: A verdade é que me acalma. Quando estou em crise, ler Beauvoir é mesmo
muito bom. Também te acontece com a
Butler?
JMO: Imenso. A Butler ela deixa-me em
expectativa, é do tipo: o que é que ela
vai dizer na próxima frase? Sinto sempre que o meu centro de gravidade se
altera.
MB: E a (Beatriz) Preciado?
JMO: Também gosto muito, mas acho
que a Butler já tinha posto aquilo de outra maneira. É um grande debate que
tenho com as pessoas que trabalham
comigo que são muito Preciado freaks.
Para mim há para além da Butler outro
nome forçoso que é a Donna Haraway;
outra que me deixa sempre em estado
aguçado. Fala sobre as fronteiras entre
o humano e o não humano e do prazer na confusão de fronteiras: cyborgs,
cães, vampiros, ratos patenteados em
laboratórios. Mas o curioso não são os
exemplos, é o que ela faz com eles. A
melhor conferência que vi na vida foi
dela. Deixa-me ir buscar uma frase dela.
Esta é a primeira: “Identities seem contradictory, partial, and strategic. With the
hard-won recognition of their social and
historical constitution, gender, race, and
class cannot provide the basis for belief in ‘essential’ unity. There is nothing
about teeing ‘female’ that naturally binds
women. There is not even such a state
as ‘being’ female, itself a highly complex
category constructed in contested sexual scientific discourses and other social
practices. Gender, race, or class consciousness is an achievement forced on
us by the terrible historica experience of
the contradictory social realities of patriarchy, colonialism, and capitalism. And
who counts as ‘us’ in my own rhetoric?
Which identities are available to ground
such a potent political myth called ‘us’,
and what could motivate enlistment in
this collectivity?” A segunda: “This is a
dream not of a common language, but
of a powerful infidel heteroglossia. It is
an imagination of a feminist speaking in
tongues to strike fear into the circuits of
the supersavers of the new right. It means both building and destroying machi-
nes, identities, categories, relationships,
space stories. Though both are bound
in the spiral dance, I would rather be a
cyborg than a goddess.”. São as duas
do ‘Manifesto for Cyborgs’. Mas há óptimas ideias noutros livros dela também.
Eu adoro esta ideia de uma poderosa
e infiel heteroglossia e do fim do mito
da unidade e das feminists speaking in
tongues. É uma linguagem de manifesto
de ruptura com as convenções que me
agrada.
MB: E qual achas que é agora o caminho a fazer, no sentido de romper com
as convenções?
JMO: É este, sem qualquer dúvida. É
destruir o género. É destruir a ideia de
uma essência feminina que só serviu
para dominar as mulheres, e o mesmo
para os homens. É abolir imediatamente
essas categorias. É sermos o que quisermos, tipo: B.I. sexo: azul, sexo: batata sexo: joão oliveira, sexo: no real sex.
Acho que nunca fomos nem homens
nem mulheres e muitos de nós nem sequer humanos.
MB: Leste sobre @ Norrie May-Welby
que conseguiu ficar com género neutro
no passaporte?
JMO: Li e adorei. Mas preferia que fosse
azul, batata ou joão oliveira. E tu? O que
te parece do caminho a fazer?
MB: Parece-me que é muito parecido
com o que dizes, se bem que acho que
ainda demora muito e que primeiro teremos que chegar a um lugar onde as mulheres tenham realmente um lugar, que
está a ser construído muito lentamente.
JMO: Eu acho que é apenas um privilégio patriarcal heterossexual, por isso,
nunca sei o que dizer.
JMO: Há um livro da Virgina Woolf chamado ‘A room of one’s own’ que é sobre
isso. Como reages ao machismo?
JMO: Odeio aquela coisa do ‘gosto de
homens masculinos’, ‘odeio bichas,
nada contra, mas odeio bichas’. Ouvir
uma pessoa gay dizer: odeio bichas,
faz-me imensa espécie.
MB: A própria palavra gay é devida a
quê? A quem? À Judy Garland?
MB: Acho que é uma reacção física de
querer vomitar logo. Com coisas muito
básicas como passar uma rapariga e de
haver logo olhares para trás para apreciar o ‘material’, com a sorte de não ter
havido um comentário pelo meio. É tão
falso, tão construído, tão básico, que só
me apetece desaparecer de vergonha.
E quando digo rapariga também posso
dizer rapaz, na verdade.
JMO: Também eu! Eu fico a querer sair
dali imediatamente.
MB: E depois há quem defenda que é
instinto natural.
MB: Acho que é um fetiche de algumas
pessoas e a doença de outras.
JMO: Sim, também tenho imensos problemas com essas categorias, mas repara que acabamos por usá-las porque
não há uma linguagem livre de categorias.
MB: Eu tento fazer truques, como faço
quando digo sapatos para não dizer nem
ténis nem sapatilhas.

JMO: É uma dificuldade, mas também
tento.
JMO: Eu passo-me com esses discursos
do ‘a vida é mesmo assim’! É biológica!
E normalmente legitimam as coisas mais
atrozes. Legitimam até a violação. Imagina que há teóricos que defendem que
há vantagens adaptativas na violação. E
a masculinidade, como te dás com ela?
MB: E também tento não dizer ‘oh meu
deus’. Prefiro dizer foda-se. É ridículo;
eu não tenho um deus, nem tenho uma
senhora que é nossa.
MB : O que é isso?... É assim que me
dou com ela. Fiz um trabalho sobre masculinidade na escola, quando tinha 16 ou
17 anos; escrevi um parágrafo e mostrei
o ‘Boys Don’t Cry’, e achei suficiente.
MB: Mas é muito difícil não dizê-las porque são expressões que toda a gente
diz, toda a gente as usa.
JMO: Nem uma Igreja. A mania das pessoas dizerem a Igreja. Mas qual igreja?
JMO: E vive-se rodeado disso mesmo
quando não se acredita em nada.
MB: Sim, é por isso que tento evitar dizê-las. E garanto-te que tenho dito muito
mais “asneiras” do que já dizia, mas ao
mesmo tempo é muito libertador. Fodase é o novo Deus.
JMO: Eu digo imensas vezes ‘foda-se’. E
sim, liberta-nos do peso da convenção.
MB: Vai ser o meu próximo facebook
status: fuck is the new god. E já agora,
o facebook? Qual é a utilidade que vês
naquilo?
JMO: É incontornável. Mas tenho uma
relação complicada no sentido em que
aquilo me dá informação e acesso rápido
a pessoas que conheço, mas ao mesmo
tempo coloca-me duas questões: gastame muito tempo e às vezes não quero
estar a ir lá sempre. E a ti?
MB: Eu fui muito resistente, mas depois
percebi que me podia ser muito útil como
plataforma de trabalho em todos os sentidos; num sentido de procura diária e
de diário quase, de pesquisa. E depois
eu não vejo telejornais nem leio jornais
por isso também vou sabendo do que
se passa por ali. Vou conhecendo coisas
óptimas; bandas, autores, artistas...
JMO: Pois, eu também estou um bocado
alheado das coisas. Leio normalmente
jornais estrangeiros. Não tenho a mínima
paciência para a imprensa de merda que
se faz cá. O facebook permite-te esse
acesso?
MB: Basicamente tenho um grupo criado para me poupar aos facebookers que
não têm nada de interessante para dizer.
No sentido de divulgar o meu trabalho é
muito bom. Por isso acho que é como
em tudo: se te protegeres, go for it.

JMO: Pois, eu tenho imensa gente bloqueada e isso facilita imenso. Mas há
um lado que às vezes chateia que é a
ilusão de que estás disponível quando
na realidade não estás.
MB: Pois há esse lado hipócrita dos amigos que não são amigos e que nem sequer queres ver e que não te querem ver
a ti. Mas às vezes há desconhecidos que
se tornam conhecidos muito importantes. Por exemplo, com as minhas tatuagens - o desenho original foi encontrado
através do tumblr de uma rapariga que
é minha amiga no facebook e que põe
sempre coisas óptimas e tem óptimo
gosto. Acho que se percebe muito bem
o que é que as pessoas são através de
uma página daquelas. Já soube de muitos desapontamentos facebookianos,
de pessoas que não esperavam que as
outras fossem tão vazias e tão desinteressantes. Acabas mesmo por perceber
quais são os interesses das pessoas. Há
os casos de pessoas conhecidas que até
achas engraçadas mas depois percebes
que não e que não têm nada a ver com
a imagem que tinhas delas; desfaz-te
logo as projecções. E também acontece
o inverso. E também percebes quem é
que está lá só para cuscar. Por isso, no
fundo, percebes muita coisa através do
facebook, que supostamente é um gadget fútil, e afinal pode ser um revelador
de verdades.
Dia 5
JMO : E o que é que o teu pai acharia ou
diria desta conversa?
MB: Provavelmente não diria nada. Se
fosse publicada num livro, talvez comprasse, me felicitasse, mas nunca falaria
sobre o assunto - pelo menos não directamente. O meu pai tem o hábito de
escrever cartas para evitar confrontos
pessoalmente.
JMO: Escreve-te cartas?
MB: Sim. Agora menos, mas era tudo
sempre falado por carta. No entanto
defende que “a falar é que a gente se
entende”. Acho que isto resume bem o
meu pai.
JMO: Isso é um bocado passivo-aggressivo.
MB: Não é um bocado, é imenso. E é
também uma atitude muito cobarde.
Por isso agora posso dizer que depois
desta frase, quase com certeza receberia uma carta ou um outro presente. No
natal aconteceu isso devido a um artigo
que saiu na Pública no dia da mãe, em
que eu falava da minha mãe e um bocadinho (mal) do meu pai. No natal ele
dá-me sempre a minha prenda de anos
adiantada e este ano era um retrato
antigo da minha mãe assim do género
“não te esqueças da defunta”, a preto e
branco. Foi sinistro. Quando o confrontei e lhe disse que não tinha percebido o
significado daquilo, disse-me que já que
eu gostava tanto da minha mãe, que me
dava um retrato. Não exactamente com
estas palavras mas a tentar ser irónico.
Disse-lhe que estava bem. E agradeci. O
que é que se pode fazer?
JMO: Pois, super passive-aggressive.
MB: Ainda não falaste sobre o teu percurso e encontro com os feminismos…
JMO: Comecei classicamente; formação
em filosofia no secundário e depois psicologia, que odiei. E é nesse quadro que
apareceu a Lígia Amâncio, com quem fiz
tudo academicamente até ao ano passado, até ao fim do doutoramento, e que
me deu a conhecer a cena feminista. Eu
detestava tudo na psicologia tirando os
chamados sectores radicais. Assim fiz
tese de licenciatura, mestrado e doutoramento com ela, em estudos de género. Portanto digamos que isto foi tudo
uma coisa muito mental e racional até
uma certa altura.
MB: Os estudos de género englobam
o quê?
JMO: Englobam tudo a meu ver. O género trata da produção de corpos sexuados a priori, ou seja, antes de haverem
os corpos já há o género que determina quais as leituras que aqueles corpos
vão ter. No meu caso fiz vários estudos
dentro da área desde as coisas mais
clássicas, como a questão do trabalho e
emprego - que sendo importante, não é
bem aquilo que gosto – e depois trabalhei imenso sobre a questão do aborto
na tese de mestrado, que é sobre o discurso oficial da Igreja Católica sobre o
aborto. No doutoramento trabalhei sobre
o debate do aborto em Portugal. A meio
do doutoramento, começaram a surgir
convites e interesses para expandir-me
mais para a área das sexualidades e agora estou mais aí. Apesar de ser sempre
numa perspectiva que cruza o género
também. A minha leitura d o feminismo
é que é um processo/projecto emancipatório que abriu a categoria do humano
a grupos que sempre foram excluídos
da ideia de humano; as mulheres, em
primeiro lugar, e depois todos os grupos
minoritários “raciais”, colonizados, homossexuais, lésbicas, trans, intersexos.
A reflexão e acção feministas, apesar de
todas as suas contradições, abriram a
categoria do humano a estes grupos todos. É a minha teoria sobre o feminismo
e a minha prática feminista é nessa linha,
desse contributo. Depois também há um
lado de reflexão e acho que o feminismo
foi e é a teoria que mais revolucionou as
ciências sociais porque como diria uma
colega minha, a Rhoda Unger, nos anos
60, nos laboratórios de psicologia até os
ratos eram machos. Ou seja, as ciências
não faziam a mais pequena ideia sobre
mulheres, quanto mais outros grupos.
Era tudo na base de estereótipos.
O feminismo veio abrir isso tudo. Nas
artes a mesma coisa, que é hoje onde
gosto mais de ter uma intervenção. Basta pensarmos na Guerrilla Girls.
MB: Em todas as mulheres artistas basicamente... que só começaram a ter algum crédito há muito pouco tempo.
JMO: Tirando aquelas muito reaccionárias que acham que o feminismo não
teve nada a ver com isso e que tudo se
deve ao seu esforço.
MB: E aquelas que pensam que o feminismo é uma coisa ultrapassada? Porque há muito essa ideia.
JMO: São as mesmas normalmente. É
aquilo a que é designado por discurso
queen bee; é tudo graças a elas, que
são extraordinárias e não precisam de
nada. Sem sequer pensarem que há
pouco tempo atrás nunca teriam sequer
um peça sua numa colecção por melhor
que fossem.
MB: Também há muito a noção de que o
feminismo é ser-se contra os homens, é
ser-se lésbica e querer queimar soutiens
a torto e a direito.
JMO: Sim, quando nunca se queimou
um soutien e as própria lésbicas nos
anos 60 foram muito escorraçadas do
chamado feminismo liberal, consideradas como a Lavender Menace - a ameaça lésbica às conquistas da mulher
WASP (White Anglo Saxonic Protestant)
heterossexual. Isso é um retrato muito
caricatural e irrealista do feminismo, que
é um movimento de aliança estratégica
onde está uma diversidade de pessoas.
MB: No entanto existe e bem me lembro
de me contares daquela senhora que te
perguntou porque é que fazias o que fazias, visto que já não tinha nenhum sentido, e que as mulheres já tinham conquistado os seus direitos.
JMO: Acontece imenso virem-me perguntar isso e coisas parecidas. Só mostram a sua ignorância do fenómeno feminista.
MB: Gostava, se quiseres, que deixasses uma mensagem a essas senhoras.
Pode ser?
JMO: Às senhoras e aos senhores, o que
tenho a dizer sobre isso é que leiam. Não
basta as pessoas acharem isto ou aquilo
quando o que dizem está mais que dito
e redito, e sobretudo, não pensem que
são super liberais ou super progressistas
por dizerem isso do feminismo. Só mostram o medo, a incompreensão e a falta
de informação. O feminismo não é uma
coisa do passado, o feminismo é o nosso futuro, e quando tivermos chegado
lá, de certeza que irão perceber. Até lá,
informem-se. Sobre o género também é
preciso dizer, que estudar ou trabalhar o
género é trabalhar sobre a violência de
uma imposição forçada. Um bom exemplo do género a trabalhar é o caso da
Gisberta. Montes de pessoas já levaram
com isso ou com coisas parecidas em
versão redux. Essa história é sinistra e
repara como os meninos que a mataram
funcionaram como os guardiões da ordem do género e os jornais a trataremna como um transexual - no masculino.
Isso para mim atinge um grau de ofensa
a toda a gente numa sociedade. É quase
como aquelas execuções na idade média, se te portas mal, se sais da norma
fazemos-te isto. Repara como a homofobia coexiste tão bem com as normas
de género - quanto mais normativo é um
sistema, mais força tem o outro. O feminismo serve para foder os dois. Nunca
sentiste essa coisa da violência homofóbica na pele?
MB: Sim. É sinistro seres odiado de morte só porque existes. Já fui insultado na
rua mais do que uma vez, só porque
sim.
JMO: Eu também. É como se a tua existência lançasse uma sombra na masculinidade hegemónica deles, que eu acho
ser uma construção super fantasmática
e frágil, porque a mera existência de um
outro, eventualmente não hegemonicamente masculino, os ameaça e os coloca em cheque. É que a masculinidade é
mesmo muito frágil e a construção de si
alicerçada nisso, nesse privilégio, implica
um jogo constante de reafirmação identitária. Tipo: eu tenho que provar constantemente que sou homem ou deixo de
sê-lo. Uma maneira de o fazer é policiar
os outros, fingir que se é tão normativo
que se pode controlar o comportamento
dos outros.
MB: É uma crença. É como acreditar em
deus. É preciso ter-se alguma coisa a
que se agarrar.
JMO: Sim, é uma crença desse tipo. É
tão fantasmática como acreditar em
deus.
MB: São crenças que te fecham todas
as oportunidades de viver com todas as
possibilidades.
JMO: Mas que dão umas certezas identitárias reforçadas pela repetição de
comportamentos. Tem muito a ver com
o comportamento obsessivo.
MB: As pessoas não querem ser livres.
JMO: As pessoas preferem agarrar-se à
certeza de serem alguma coisa e depois
dizem enormidades sobre a crise de valores.
MB: Onde é que se aprende que se é alguma coisa?
JMO : Socialização, família, escola, estado, igreja, nos aparelhos ideológicos
de estado, mas que estão todos em
crise como dizem os sociólogos e economistas de direita. É uma crise terrível
- quando os ouves a descrever o que
entendem por crise, que se tornou um
chavão fácil, chegas à conclusão simplicíssima que se tratam apenas de mudanças.
MB: Mudanças já no limite do necessário.
JMO: No caso da família, a crise é haverem múltiplas formas de família que
eles se recusam a aceitar, e que sempre
existiram. O caso da escola é outro semelhante. Repara como a crise que eles
descrevem é a falta de disciplina e de
respeito pelos professores.
MB: Sim, a crise, basicamente, é já não
estarmos - supostamente - sob um regime fascista.
JMO: Sim, a minha leitura é essa. É claro que há problemas em todas estas instituições mas a coisa não se resolve simplesmente pela brutalidade da ordem ou
por disciplinar.
MB: Se for por aí - e é bem capaz de ir, é
o mais provável – vão rebentar manifestações do pior. Não sentes tudo a fervilhar? Eu sinto que por qualquer coisinha
as pessoas explodem.
JMO : Sim, claro. Sinto que há muita
contestação, mas muito mal dirigida, a
meu ver. Noto que os media acicatam
isso e que querem mesmo que uma coisa dessas aconteça, ou que uma qualquer Ferreira Leite (hahaha) nos salve a
todos e a todas. Afinal a montanha pariu
um rato e a senhora não salvou ninguém
porque ninguém salva nada. Ou a coisa
muda colectivamente ou ninguém salva
nada. Eu fico espantado com a reacção
das pessoas sinceramente. Repara que
tens uma enorme taxa de gente que não
vota, que abdicam de escolher, e depois
queixam-se imenso e choram imenso e
criticam imenso e acham imensíssimas
coisas.
MB: Eu era assim até há bem pouco
tempo porque não tinha mesmo noção
de nada, nem queria ter. Porque odeio
política no sentido dos políticos. Achava
que devia ser apolítico e pronto. Mas entretanto mudei radicalmente de opinião
porque isso também não muda nada.
Continuo a não querer pertencer a partido nenhum, nem quero, mas sei que
posso contribuir para alguma mudança
de outras formas.
JMO: Sim. No meu caso é diferente;
sempre me interessei por política. Acho
que a política é a linguagem das sociedades quer se queira quer não e que
tudo são relações de poder. Não é uma
coisa que eu deseje, é uma evidência
para mim, então interessei-me e comecei a querer saber mais coisas. Sou
mesmo muito politizado e membro de
um partido, do Bloco, mas nunca guiei
a minha intervenção sobre o mundo a
partir dessa pertença. Sendo de um partido, frequento tudo muito pouco mais
por falta de tempo, mas interessa-me o
que se passa politicamente.
Hoje em dia interessam-me muito as
questões da igualdade e as coisas da
cultura porque acho a área da cultura a
mais desqualificada em termos de orçamento do estado e aquela que deveria
crescer mais. Acho que a política da
cultura como parente pobre, faz o país
muito mais pobre.
MB: Pois mas eu acho que é isso que se
quer; um país pobre. Porque não há esforço nenhum para que aconteça o contrário e somos sempre os coitadinhos,
sempre com a história da crise
e dos bons velhos tempos.
JMO: Sim, em absoluto. A cultura nunca saiu da crise. Nos velhos tempos,
nem havia! Acho que as pessoas não se
apercebem do que este país mudou e da
miséria bolorenta em que se vivia.
MB: Mas se ninguém pára para pensar,
como é que se pode perceber uma coisa
que seja?
JMO: Claro. Também sou dessa opinião,
de que as pessoas não pensam assim
tanto e engolem as porcarias que a televisão lhes vomita todos os dias.
MB: És muito generoso. Eu acho que as
pessoas não pensam mesmo nada, nem
querem, porque dá muitas chatices.
No entanto, a diversão é queixarem-se
constantemente.
JMO: Incomoda-me muito essa lamúria
constante, em surdina. Sabes que agora
o que me irrita mais são os media, especialmente os jornais, porque a televisão
já tento não ver. O jornal que leio mais
é o Haaretz; é um jornal de esquerda
progressista israelita, anti-sionista, porque é outro dos meus interesses e tenho
aprendido imenso sobre como conjugar
uma posição que recusa a colonização
e expansão sionista sem cair no anti-semitismo de algumas posições que oiço.
Fico chocado com alguns argumentos
da esquerda em relação a Israel.
MB: Pois estou completamente por fora
desses assuntos.
JMO: Isso é um tema que ando a ler.
Agora que temas te ocupam, para além
dos que já discutimos?
MB: Os meus temas são sempre os
mesmos... agora estou interessado na
tal ideia do conto de fadas e acho que
vou trabalhar sobre essa ideia para a
performance que estreará em Novembro, que é basicamente um filme sobre a
minha vida amorosa/desastrosa.
JMO: E andas a recorrer aos contos de
fadas?
MB: Não propriamente. Ando a ver a minha vida como um conto de fadas; a história do príncipe encantado, isso tudo,
parece que está incrustado em mim e
quero perceber de que maneira não estará incrustado em todos. O feliz para
sempre, o príncipe, a ideia de que temos
que esperar passivamente, de que devemos ter relações monogâmicas, que devemos casar, que há alguém destinado
para nós, alguém que nos escolhe.
JMO: Isso é género.
MB: É a vida. Não está toda a gente à
procura do mesmo? Da história da Disney?
JMO: Não sei. Tenho dúvidas se isso se
encaixe na vida de toda a gente.
MB: É claro que não devo generalizar,
mas há uma ideia romântica do amor. E
de projecção e idealização e de possessão.
JMO: Sim, isso há. Mas hoje em dia há
ideias concorrentes a essa.
MB: Sim, precisamente. Acho que preciso de as pôr em confronto.
JMO: Por exemplo, a recusa disso, os
poliamor. Os e as.
MBvSim, mas é uma ideia que me faz
confusão, porque não sei se seria capaz
de viver numa relação que são várias relações.
JMO: Eu também não sei, mas a ideia n
me faz confusão. É como o casamento,
eu não queria, mas não me faz confusão
que alguém queira.
JMO: Acho que não há nada como questionar. Sinto que é o que ando sempre a
fazer. A desconstrução como prática diária.
MB: E é isso que me faz querer pensar
porquê? Porque é que eu não seria capaz? Confusão neste sentido. Não confusão da ideia em si.
MB: E a construção também - para depois voltar a destruir.

JMO: Claro, desconstruir, reconstruir, em
circulo. Cada vez com menos certezas.
JMO: Ah, isso é outro patamar. Compreendo. A ideia não te faz confusão, viver
a ideia é que te faz confusão.
MB: Isso. Acabo sempre por sentir que
tenho que fazer uma escolha porque
acabo por ter uma preferência, mas não
sei se isso é porque foi o que me foi ensinado ou porque simplesmente é assim.
JMO: O ser assim não acredito - nunca
acreditei nesse argumento.
MB : Pois, na verdade, eu também não.
JMO: Ser ensinado é o que me parece
mais provável.
MB: Acho que preciso esmiuçar o que
parece que não está escondido, o que é
supostamente seguro e imutável.
JMO: Sim, questionar esse posicionamento. E se concluíres que queres ser
poliamor?
MB: Logo verei o que fazer e como trabalhar isso. Não te esqueças que estou
entre o ‘Pretty Woman’ e o ‘Crash’ - acho
que é altura de perceber porquê.
Dia 6
JMO: Há imensas coisas que me são
preciosas das quais não gostei nada à
primeira. A última foi um filme que sei
gostas, o ‘Gerry’ do Gus Van Sant.
MB: Sim. Porque é que não gostaste?
JMO: Fui vê-lo ao cinema quando saiu
e devia estar com a companhia errada.
Sabes que detesto ir ao cinema, apesar
de adorar cinema.
MB: Porquê?
JMO: Odeio ter gente à volta a fazer
barulho; aqueles barulhos humanos do
tipo respirar, mexerem-se nas cadeiras,
falarem, interromperem a minha relação
com o filme…
MB: Eu odeio quando chegam depois
do filme ter começado e também quando há pessoas que comentam o filme
enquanto o vêem.
JMO: Odeio isso tudo! E o ‘Gerry’ foi um
desses casos. Até o associei estupidamente a um survival movie. Mas depois
revi-o aqui em casa, sem incómodos, e
fiquei encantado com o filme.
MB: Eu adoro o filme. Acho que o fui ver
duas vezes ao cinema, mas a sessões
onde não havia ninguém.
JMO: Pois, isso para mim é um grande
problema. Os outros retiram-me a intimidade com o filme. É isso e pessoas que
se riem em cenas em que estão chocadas, e a sua fuga é rirem.
MB: Sim, isso aconteceu imensas vezes
quando fui ver ‘A Pianista’. As pessoas
tinham ataques de riso quando ela tentava ter relações com a mãe.
JMO: E no ‘Anticristo’. Eu fico com vontade de as expulsar dali, fico furioso
mesmo porque me cortam o prazer cinemático. Por isso hoje em dia ver em
DVD é a melhor solução. Perdes é o ecrã
e o som dos cinemas que são muito melhores.
MB: Tens que descobrir as sessões perfeitas. Há sempre umas sem gente ou
quase. Eu agora quase só vou à cinemateca e é mais difícil ter sessões maradas,
mas também acontece. Aliás acontece
até ter realizadores famosos a fazerem
comentários em voz alta do género centro comercial, o que é ainda mais triste.
JMO: Dá vontade de ir boicotar os seus
filmes.
MB: À primeira não gostei nada da Beauvoir; achei-a pirosa. E à primeira também não gostei nada do Cronenberg;
achei-o série B.
JMO: É engraçado como depois se
muda de opinião. Pergunto-me sempre
qual será o ponto de mudança, o que é
que te faz mudar de opinião?
MB: Há sempre qualquer coisa que me
mantém a curiosidade… Não gosto,
mas… é o MAS. Acho que tem muito
a ver com a altura que estás a viver. Há
qualquer coisa que te atrai mas ainda
não estás preparado para perceber ou
qualquer coisa assim.
JMO: Sim, acho que isso tem imensa influência, essa preparação para o acto de
receber.
MB: Com o ‘Crash’ foi assim; vi-o uma
vez e pensei: não sei porque é que falam tanto nisto é um filme serie B - tinha
15 anos. E depois pensei: bom se calhar
escapou-me alguma coisa vou ver outra
vez. E depois pensei: sim, há qualquer
coisa aqui, vou ver outra vez. Até gosto disto, vou ver outra vez. E depois vi-o
quase todos os dias.
JMO: Essa descrição é quase um acto
de rendição, de deixar que a obra te invada.
MB: Sim, mas quando falo nisto as pessoas ficam a olhar para mim de lado...
Tinha 15 anos e é o Crash, não é propriamente um romance de iniciação.
JMO: Eu não acho nada estranho.
MB: Obrigado!

JMO: Também tive experiências assim
muito cedo. Uma foi engraçada; a minha
mãe ofereceu-me os ‘Versículos Satânicos’ do Rushdie, aos 12 anos. Xmas gift.
E o livro fascinou-me imenso - aquela
confusão entre humanos híbridos, de
anjos e demónios, as alegorias, a política o sexo e a religião misturados daquela maneira.
MB: E voltaste a lê-lo mais tarde?
JMO: Sim, claro.
MB: E como foi?
JMO: A mesma relação de encanto mas
muito mais estruturada, com outras ferramentas de leitura. Mas o encanto inicial
ficou lá. Outro bom exemplo foi quando
vi, mais tarde, o ‘Salô’ do Pasolini. Toda
a gente a dizer-me horrores do filme. É
um dos meus filmes preferidos. Sempre
me interessei imenso pelo modo como
toda a filosofia, nomeadamente a alemã,
converge a partir de certo ponto para
tratar a dominação e para a justificar. E
esse filme relê muitas dessas coisas.
MB: Eu também gostei imenso do filme
quando o vi, mas só o vi uma vez.
JMO: Eu vi várias. Marcou-me muito.
Depois, claro, começas a ganhar ferramentas para leres tudo aquilo de outra
maneira. Outro é o ‘Teorema’ também do
Pasolini, que eu adoro absolutamente.
MB: Amo esse filme de morte. E acho
que tem muitas parecenças com o
‘Crash’, como aliás a maior parte dos
filmes que eu gosto, em que há sempre um elemento catalisador que chega
para destruir as regras de bom comportamento, a vida ‘normal’.
JMO: Eu gosto desse tipo de filmes que
colocam o espectador perante as regras
nuas e cruas, e lhes retiram a sua legitimação.
MB: Há uma pergunta que te quero fazer
que acho que tem a ver com isto tudo
que é sobre a função da arte: se achas
que a arte tem uma função e, se sim,
qual é? Ou quais são?
JMO: Eu diria que não há resposta para
isso ou não há uma resposta correcta. A
minha seria muito relativista: pode ter e
pode não ter. Primeiro porque não acredito em funções, segundo porque acho
que a arte pode ter é leituras, agora funções, duvido. Se enquadramos a questão do ponto de vista de interpretações
leituras, aí tem seguramente nem que
sejam estritamente estéticas. Mas é muito raro que as pessoas construam uma
leitura puramente estética, a não ser que
sejam completamente quadradas em
termos de formalismo.
Mas mesmo aí, acho que estão a esconder a leituras que fazem que extravasam
o puro formalismo. Acho que o que me
interessa a mim são as possibilidades
que a obra me dá para me projectar lá,
para atirar para essas leituras o que quero. Um bom exemplo disso é o Lars Von
Trier.; serão os filmes dele misóginos? Eu
diria não, de todo. Mas é possível ler-se
misoginia ou ler-se o grau de misoginia
das sociedades, que é um posicionamento diferente.
MB: Então tem uma função específica,
geral, ou uma função individual?
JMO: Não acho que função seja adequado. Função é subordinar tudo a uma
lógica capitalista que as coisas têm que
existir para um sistema coerente que
lhes gera valor em virtude da sua função
num mercado. Eu prefiro pensar que a
arte dá-nos possibilidades de pensarprefiro mesmo a expressão possibilidade. Por exemplo, que função tem a performance? Tem uma possibilidade de
te dar a ver um mundo a partir daquela
perspectiva, oferece-te um plano de interpretação.
MB: Para mim tem uma função muito
clara, mas porque a faço acontecer.
JMO: Sim, mas que função é essa? É
que função implica uma concepção de
que a cultura é um todo coerente, com
cada prática a ter um determinado papel
nesse todo. Eu acho isso uma visão do
mundo nos anos 50. Funções para mim
têm os electrodomésticos.
MB: Sim. É uma questão então de escolha de palavras. Que sentido tem? Que
função tem? Que possibilidade tem?
JMO: Sim, mas as palavras constroem a
nossa realidade. Nós somos basicamente linguagem.
MB: Não estou a dizer que não. Estou
a tentar encontrar uma que substitua a
‘função’.
JMO: Estive a ler uma coisa sobre isso na
internet e há um teórico do funcionalismo, o Parsons -americano branco wasp
- que teoriza sobre funções sociais e papeis sociais, e na casa dele tudo estava
codificado de acordo com a essa lógica;
a mulher fazia o jantar, a filha mais velha
passava sempre a salada, a outra filha
servia sempre os pratos… A palavra função faz-me sentir em casa dele.
MB: The modern world.
JMO: Sim, a modernidade - esse grande monstro. E a modernidade nos USA
- the belly of the beast.
MB: Eu acho que a ‘função’ também tem
muito a ver com a ‘sacralidade’ no caso
da arte, ou melhor, tem a ver com a modernindade - eu não estou muito lúcido
hoje - da arte como coisa sagrada que
deve ter uma função. Isso ainda existe e
eu acredito muito pouco nesse lado sagrado da arte.
JMO: Eu não acredito mesmo. E porque
é que acreditas pouco?
MB: Porque acho que a arte não deve
ser sagrada. Deve ser integrada no diaa-dia como uma parte básica… acho
que o que quero dizer é que acredito que
deixe de haver estes conceitos todos de
high art e que passe a ser uma prática
diária de toda a gente, como te disse
acerca da autobiografia. E acho que
cada vez mais isso se torna possível,
tudo está acessível para que as pessoas
se possam ver; hoje em dia toda a gente se filma, faz filmes, põe no youtube,
etc. É claro que podem não estar com
objectivos artísticos ou filosóficos, mas
acabam por estar
indirectamente. Faz algum sentido?
JMO: Sim. É uma certa democratização
da arte. Prefiro isso ao termo massificação, mas democratização também
concordo. No meu caso, por exemplo,
vejo o meu trabalho mais como artístico
do que propriamente científico naquele
sentido tradicional.
MB: Eu quero acreditar num futuro em
que o trabalho tenha esse sentido de artístico, de ser uma investigação, e não
uma coisa que tens que fazer para sobreviver. Porque podíamos perfeitamente viver sem esse lado estúpido das 9 às
17h e crises da bolsa…
JMO: Eu vivo sem esse lado, felizmente.
Neste momento, tenho esse privilégio e
sabe –me muito bem, o que se repercute
no trabalho.
MB: Claro. Mas deixa de ter essa conotação de trabalho como demónio.
JMO: Sim, completamente.
MB: Tenho uma amiga que é acusada de
trabalhar pouco e isso põe-me a pensar
mesmo nas coisas ridículas que se dizem. Como se o objectivo último fosse
matares-te a trabalhar.
JMO: Exacto. Ou toda a tua vida ser
estruturada em torno disso. Apesar de
acabar por não ter grandes feriados ou
fins de semana, no meu caso, não me
sinto a fazê-lo por uma obrigação ou por
uma determinação superior. Ler livros
faz parte do meu trabalho, claro. Mas lêlos dá-me imenso gozo.
MB: Mas não estamos sempre a trabalhar? Eu sinto que tudo é trabalho. Não
há separações. Não há modernidade.
JMO: Sim, estamos. O nosso trabalho
é cuidar de nós e isso é cuidar de nós
também. Outra coisa que me acontece
é apaixonar-me muito por certas autoras e autores e investir emocionalmente
neles e nelas. Como a minha paixão de
sempre, o Michel Foucault - na sextafeira dei uma aula em que falei nele e
aquilo sai-me tudo com paixão. Ou com
a Butler, é a mesma coisa. Onde é que
se separa trabalho da vida? Não separo,
pelo menos na minha.
MB: A ideia que passa é como se ao trabalhares não estivesses a viver. Se calhar há muita gente que se sente morta
quando trabalha.
JMO: Pois, a mim, é uma das coisas
que me dá vontade de estar vivo. Depois também tenho um gosto enorme
em dar aulas, dá-me mesmo um prazer
particular. Especialmente quando tens
pessoas que te interpelam e questionam
o que dizes. Aconteceu-me esta semana estar a dar uma aula de introdução à
psicologia gay, lésbica, bi, trans e queer,
e houve uma aluna que me fez montes
de perguntas, e isso deu-me um prazer imenso, precisamente porque a fiz
questionar-se e questionar-me. E isso é
o melhor que podes esperar. Muito melhor que me virem dizer que adoram as
minhas aulas ou assim.
MB: Sim. Percebo isso muito bem. Se
bem que às vezes também é só isso que
podes dizer;
que adoras.
JMO: Sim, também me aconteceu com
um aluno de doutoramento que me veio
dizer que a minha aula tinha sido a melhor que teve na vida e eu fiquei super
estranhado e até envergonhado. Mas
por vezes, acho que sim, que não dá
para dizer mais nada.
MB: E agora uma frase do
Gide: “Everything has been said before, but since nobody listens we have to
keep going back and beginning all over
again.”
JMO: É mesmo. Há sempre um estupor
qualquer que quer inventar a roda outra
vez.
MB: Acho absurdo falar-se de originalidade. É apenas um fenómeno puramente formal. E mesmo assim... Com isto
podíamos voltar à conversa do ‘experimental’.
JMO: Sim. Em que sentido?
MB: Por exemplo, com a música experimental, o que se faz hoje já foi feito há
quarenta anos atrás. O que é que se está
a experimentar então? O que é que é assim tão inovador?
JMO: Eu acho que é tudo desadequado
em termos de conceito, o problema está
aí. Inovar, novidade, experimental, implicam uma abordagem assente na ideia
de progresso.
MB: É como me dizerem que as minhas
performances são muito radicais. Eu não
sou um accionista vienense e mesmo
que fosse não seria radical.
JMO: Achas que essa concepção afecta
o modo como o teu trabalho é recebido?
MB: Não sei. Deve afectar, claro. Acho
que só demonstra ignorância e preguiça.
Não tenho a pretensão de inovar, já disse e repito. Não sei o que isso é.
JMO: Tens que explicar que não és moderno e como tal não acreditas na ideia
de progresso e inovação em relação a
um passado.
MB: Será que a ignorância é devida à
ansiedade? Ao facto de se querer ser
surpreendido?
JMO: Não sei. Como não tenho essas
crenças, tenho dificuldade em perceber
as motivações por detrás disso.
MB: Está-se sempre à procura de alguma coisa que seja melhor, mais surpreendente, mais inovadora, mais intoxicante. No entanto nada disso existe. O
aborrecimento é o inimigo, mas não se
constrói nada que o elimine. É apenas
uma repetição de distracções: ao fim de
semana sai-se à noite, bebe-se, no fim
de semana seguinte é o mesmo.
JMO: Como é que vês então o trabalho
artístico fora desse paradigma da inovação e da originalidade?
MB: Vejo como plataforma de conhecimento. Construir a minha vida como
uma obra de arte o que, no fundo, significa estar atento e fazer o meu melhor.
MB: Mas acho que estou diferente e
noto isso nas reacções dos outros, dos
meus amigos. E de repente penso: realmente estas pessoas que me conhecem
há tanto tempo têm mesmo mérito; eu
era abominável. No outro dia, por exemplo, estava no Porto com dois amigos
meus - dos meus amigos mais antigos
- e entrou um senhor a pedir dinheiro e
veio directo a mim, começou a dar-me
beijos nas mãos, e a pedir-me dinheiro,
e eu pus-lhe a mão no ombro e disse: oh
meu senhor, pronto, não faça isso. não
tenho nada para lhe dar. Quando olhei
para os meus amigos eles estavam em
pânico porque achavam que eu me ia
passar, porque teria sido a minha reacção de há uns anos atrás.
JMO: Mas então melhoraste imenso?
MB: Pois, acho que sim.
MB: Eu acho que sou um bocado moralista, o que é horrível. E acho que posso
ser muito duro a julgar os outros. Mas
acho que é porque também sou muito
duro a julgar-me a mim.
JMO: Os outros chocam-me muito por
vezes, mas num sentido mais ético do
que moral. Impressiona-me imenso as
pessoas não serem capazes, por exemplo, de romper com as normas sociais,
ou então de engolirem tudo o que os media lhes impingem. Isso choca-me muito.
Será isso ser moralista? Também é.
JMO: Eu também tenho esse problema.
MB: Seremos todos moralistas então.
JMO: Ao mesmo tempo parece quase
um padrão moral.
JMO: Pois. Por exemplo, pessoas que
fazem coisas por parecer bem aos outros
choca-me muito e não deveria chocarme. Ou pessoas que tentam adequar-se
ao gosto de outros. Dia 7
JMO - Tenho três perguntas na manga.
MB - Eu tenho uma citação na manga.
JMO - Há uma que não dá para deixar de
fazer: o que queres dizer sobre o papa?
MB: Há uma história sobre isso que posso contar. Quando era mais novo costumava bater na televisão quando não
gostava do que via:
1. quando Portugal perdia os jogos sem
fronteiras
2. quando aparecia a palhaça Tété
3. o papa.
Por isso é um ódio que vem de trás. Recentemente fiz o teste do Proust e na
pergunta ‘qual a coisa que mais odeias?’
(ou parecida) respondi: o Papa. É isso
que tenho a dizer.
JMO: Faço tuas as minhas palavras.
MB: Acho que ele representa tudo o que
está errado. Tudo o que é falso, moralista, mesquinho, racista… Enfim, nem vale
a pena fazer a lista porque é interminável. O outro ainda se auto-flagelava, este
nem isso tem de salvaguarda.
JMO: Eu tenho imensas questões com
isso. Incomoda-me tanto que tive que,
inclusivamente, estudar isso. Hoje em
dia, acho que a igreja representa um regime pré-revolução francesa. Acho-os
medievais.
MB: Queres falar do que estudaste?
JMO: Estudei o modo como eles representam as mulheres no discurso anti
aborto que têm, na minha tese de mestrado. E li as encíclicas e os documentos oficiais do Vaticano para perceber o
modo como as mulheres eram descritas
e representadas. Muito sucintamente,
as mulheres são úteros que podem ser
desapossadas da sua vontade em prol
de um feto que vale mais que elas - e
isto é ser simpático. Li coisas perturbadoras como: a igreja inventou os direitos humanos, e considero o discurso do
aborto que eles têm como hate speech
contra as mulheres.
MB: Penso na morte desde sempre. Já
falei de como era suposto ter morrido
logo aos dois meses e fui salvo. Acho
que começa tudo aí. Depois há a minha
vontade de morrer durante grande parte
da adolescência e depois a decisão de
deixar de querer morrer. Mas de vez em
quando ainda sentir aquele sentimento
de impotência total e de pensar: porque
não? Escrevi uma vez que era como se a
morte se encostasse, como alguém que
encosta a cabeça ao teu ombro. É assim
que vejo a minha relação com a morte.
Acho que percebo mais sobre a morte
do que sobre o amor.
JMO: Sim, muito. Cancro.
MB: Sim, como a Sofia diz no MB#6: na
bíblia, a mulher tem dores no parto porque a Eva é uma besta.
JMO: É-te aparentemente mais próxima?
JMO: Perturba-me imenso a ideia de que
não sou eu a decidir quando morro, que é
algo completamente exterior, como uma
doença, como algo incontrolável. Mas é
mesmo control freak esta postura.
JMO: Lembro-me disso. Mas enfim,
trata-se do universo da misoginia mais
desavergonhada. E melhorou ao longo
dos milénios porque havia teólogos que
diziam que as mulheres eram como sacos de lixo, a fonte de todo mal.
MB: E isso tudo porque percebiam que
eram muito mais espertas do que eles.
Qual complexo de inferioridade mais mal
resolvido.
JMO: Enfim, a outra pergunta que tinha
para te fazer é: Preâmbulo: recentemente morreu o meu cão, e tenho pensado
muito na ideia de morte. Pensas nisso?
Como vês isso?
MB: Acho que a consigo compreender
melhor. É menos conturbada. A relação
com a morte dos outros tem sido leve;
não morreu ninguém especialmente próximo, a não ser a minha avó, mas estava num estado tão deplorável que era
o melhor que podia ter acontecido. E
eu acho sempre que morrer é uma coisa boa - tenho essa costela cigana de
chorar quando se nasce e fazer a festa
quando se morre. Quando se está morto, já não é difícil.
JMO: Eu tenho medo da morte dos outros e da minha. Mas já me consegui
convencer que a minha é inevitável e a
dos outros... pois, também. Com o Valmont, a coisa foi péssima. Mas depois
levamo-lo ao veterinário e foi ‘eutanasiado’ - odeio a expressão foi posto a
dormir.
MB: Estava doente?
MB: Pois, isso assusta-me. Não a morte
em si, mas o que a antecipa. Aí ainda se
está vivo.
JMO: Sim. É pior estar vivo que morto
nessas coisas. E particularmente tenho
horror a hospitais. Comecei a ler sobre
empresas Suiças que fazem eutanásia e
suicídio assistido porque gostei do controlo sobre a situação que se pode ter.
MB: Sim. Acho óptimo que em casos
extremos se possa ter essa opção.
MB: Eu comecei a ler o ‘Tibetan Book
of the Dead’ mas ainda não acabei. Mas
gosto dessa ideia de haver uma preparação poética para a morte em que, basicamente, há um caminho que percorres
até morreres, como uma espécie de meditação. É, pelo menos, apaziguador.
JMO: Sim, mas é incontrolável e isso
assusta-me. É um monstro. A monster
you have to face.
MB: Pois a ideia dos tibetanos é que podes controlar.
JMO: Eu sinto que com a idade te vais
habituando mais à ideia no sentido em
que começas a ter mais morte à tua volta. Assusta-me se calhar mais a ideia de
morrer sozinho.
MB: Eu sempre pensei muito na morte e
na mortalidade, e acho que a minha necessidade de estar sempre a fazer coisas vem daí; uma urgência em conseguir
dizer tudo antes de morrer. Tenho sempre a ideia de que tenho pouco tempo.
JMO: Eu tenho essa ideia também, por
isso escrevo. Tenho essa preocupação
mais presente quando a morte aparece,
como agora.
MB: E não achas que se morre sempre
sozinho?
JMO: Acho, sim. Mas é contraditório. Se
calhar é por saber que se morre sempre
sozinho que não gosto da ideia.
MB: Acho que é um incentivo a que trabalhes no sentido de não teres medo.

JMO: Sim e faço-o. Sobretudo faço-o.
Se resulta, não sei. Mas estou melhor
disso.
MB: Se estás melhor então é porque vai
resultando.
JMO : E a tua citação?
MB: Então, hoje fui à feira do livro com
a Rita - que me pediu conselhos porque
queria comprar um livro da Beauvoir, a
Sofia também comprou um livro da Beauvoir, e encontrámos a Joana que fala
da Beauvoir no MB#6; sinto-me um propagador da Beauvoir. Mas isto era só
uma curiosidade. A Rita queria comprar
Barthes e eu também porque a Joana me
tinha lido um excerto do “Fragmentos
de um discurso amoroso”. Então eu e a
Rita fomos comprar Barthes e apareceu
a Joana nesse momento - o que foi muito bom - e eu abri o livro numa página à
sorte e dizia : “assim todo o homem que
fala da ausência do outro declara-se do
lado feminino: este homem que espera e
que sofre está miraculosamente femininizado. Um homem não é femininizado
por ser invertido, mas por estar apaixonado (mito e utopia: a origem pertenceu,
o futuro pertencerá aos sujeitos em que
existe o feminino).”. E assim se explica
todo o meu trabalho num simples parágrafo.
JMO: É difícil de explicar mas percebote. Tenho essa questão até, num certo
sentido, com as pessoas com quem se
está a trabalhar. Mas gosto mais ainda
dessa ideia de ausência e de espera.
Consegues dizer algo sobre isso em relação ao teu trabalho? E a ti?
JMO: Uma relação primordial com o feminino?
JMO: E no fim, indiferenciam-se no público?
MB: Também, mas mais o facto de falar
da ausência do outro e de estar à espera
e de estar apaixonado.
MB: Sim, acho que e isso que acontece.
Porque podia ser qualquer uma delas.
JMO: Isso eu também acho. Mais do
que o feminino que me parece ruído em
relação ao teu trabalho.
MB: Eu cheguei à conclusão, durante os
ensaios para a peça que fiz com a Joana, no hotel, que não consigo criar se
não estiver apaixonado.
MB: O meu trabalho é sempre dirigido a
um Tu, um Tu que não é necessariamente
o público - quase nunca o é, à partida mas que depois se torna nele. Acho que
é na espera e na ausência que eu crio,
que escrevo para esse Tu, que faço para
esse Tu, e que maturo ideias e que me
maturo nessa espera e nessa ausência.
É aí que me questiono. Porque me questiono sempre em relação aos outros.
JMO: Esse Tu é um tu generalizado ou
pessoas em particular?
MB: Pessoas em particular, sempre. E
no entanto é como se fossem todas o
mesmo.
JMO: E, claro, a corporização desse tu
inicial não sente que o trabalho a interpele individualmente.
MB: Em princípio não, mas está lá, e é
para ela.
JMO: Gosto dessa maneira de começar
um trabalho.
MB: E, por isso, quando me apercebi
que não estava mais apaixonado tive
uma crise; não tinha a quem me dirigir.
Não gosto de me dirigir a pessoas que
não são concretas. Não posso dirigir-me
a uma massa de público. Quero dizer,
posso, já o fiz, mas deixa de ser interessante. Deixa de ser próximo. Passa a
ser um acto mais político ou mais social,
que não tem a ver com uma relação pessoal e íntima que é o que me interessa
realmente. É disso que eu vivo.
JMO: Dessa proximidade e intimidade.
MB: Sim. Quando escreves, como é
para ti?
JMO: Depende do texto. Não tenho uma
regra mas quando se tratam de textos
mais teóricos, que prefiro aos de estudos empíricos, são sempre dirigidos a
alguém. Chego a denunciar quem é a
pessoa no texto. Por exemplo, escrevi
um texto a convite de uma amiga sobre
fazer e desfazer o género na filosofia da
Butler e foi claramente dirigido a ela à Sofia, não à Butler. E já escrevi também a pensar em autoras de que gosto
- a epigrafe da minha tese é uma frase
da Lispector e acho que o próprio texto
foi dirigido ao que eu imagino dela, mas
com as restrições académicas, porque
nós temos umas certas restrições nalguns textos. Mas, sim, reconheço essa
ideia de um Tu específico quando construo um texto. Também já o fiz sem ser
dirigido a um Tu que eu gostasse.
MB: Sim, isso também acontece. Ou dirigido a um Tu que se passa a não gostar. Não deixa de ser um Tu, e de ser específico.
JMO: Claro, mas essa relação com esse
Tu fica marcada no texto. Se é sem ser
a gostar do Tu, podem sair assim umas
coisas mais fucked up.
MB: E tinhas mais alguma pergunta na
manga?
JMO: Sim, é a terceira. Olhando para o
que fizemos vieram-me à cabeça coisas
antigas dos tempos do feminismo radical que eu tanto gosto; a principal é que
estes exercícios transformam o privado
em político e acho que fizemos um ‘Facing Monsters’ muito feminista radical e lembro que ser radical, como diz a Angela Davis, é ir à raiz e não ficar apenas
pela superficialidade. Queres dizer algo
sobre isto?
MB: Acho que poderíamos ir cada vez
mais fundo. Voltando a falar dos mesmos
assuntos. Indo por exaustão e repetição.
Acho que foi e está a ser um primeiro
capítulo muito importante e quanto ao
privado tornar-se politico, já ouvi dizer
de tudo sobre isso, mas eu continuo a
acreditar que sim, porque inevitavelmente é político.
JMO: Eu nesse aspecto tenho a dizer
que neste momento em que estamos,
isso é uma maneira de não sucumbir.
Quando tens o contexto que tivemos e
que temos neste país, é um modo de resistir às imposições e à quase proibição
de pensamento em que se vive. Precisamos destas micro politicas de resistência porque isto está cada vez mais
sufocante. Tenho pelo menos essa sensação, mas pode ser apenas esta semana papal.
MB: Não, acho que é geral. E que se
sente esse sufoco cada vez mais e que
é preciso que se fale nisso. Como é preciso que se fale, ponto.
JMO: É engraçado como às vezes parecemos estar num deserto, mas não é
uma crise de valores, nem é que devêssemos voltar atrás em nada, o problema
é o que o passado continua demasiado
presente e que os fantasmas todos andam por aí.
MB: Há a ilusão da rapidez e da tecnologia mas a verdade é que o mundo avança tão lentamente que quase parece
que não se mexe. Aquilo que se move é
apenas exterior, sempre. O movimento é
sempre formal, o que se diz é sempre o
mesmo, continua a ser o mesmo.
JMO: Uma eterna reciclagem de ideias
velhas.
MB: E a eterna luta pelas mesmas ideias
velhas que contrariam as outras ideias
velhas.
JMO: Sim, também acho. No outro dia li
uma coisa, só uma frase: Every time we
fuck we win. E gostei.

Documentos relacionados