FACING MONSTERS : subtítulo provisório para diálogos entre
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FACING MONSTERS : subtítulo provisório para diálogos entre
FACING MONSTERS : subtítulo provisório para diálogos entre Miguel Bonneville e João Manuel de Oliveira Todas as semanas, durante dois meses, nos encontrámos online para falar. Para falar sobre tudo, sobre todos os monstros; os sagrados, os pessoais, os políticos, filosóficos, culturais, económicos, biológicos… Eu digo: ‘Eu acho que fui influenciado de tal maneira pelos contos que acabei por transformar a minha vida num. É uma história clássica.’ O João diz: ‘Através da determinação, de confrontar os problemas e de matar dragões... então é-se feliz para sempre?’ © Miguel Bonneville e João Manuel Oliveira / 2010 Dia 1 JMO: De que modo é que o teu trabalho começou a incluir um questionamento do género? MB: Logo desde a primeira performance ‘Strip Me, Dress Me’; era sobre a inversão de papéis. Tinha lido um artigo sobre pornografia e como isso nos influenciava, que os filmes eram feitos por homens e para homens, e que os papéis neles representados eram na sua grande maioria os do homem macho dominador e o da mulher submissa. JMO: Estou a ver... um artigo daquela linha que denuncia a objectificação das mulheres? MB: Nem tanto. Era uma coisa bastante geral. Era um artigo numa revista de moda por isso podes imaginar que não ia muito a fundo na questão, mas foi uma coisa que me ficou na cabeça, na qual eu nunca tinha pensado e que resolvi pôr em prática logo depois de sair da Academia. JMO: Isso é muito parecido tanto com o cinema como com as artes visuais; durante muito tempo, a mulher à frente da câmara ou na tela e os homens atrás, a criarem-nas. MB: Sim. E de repente eu transformei a mulher submissa num monstro. Que é basicamente como a mulher é vista quando não é submissa. JMO: É uma imagem um bocado de desordem ou de destruição da ordem e isso é muito comum no teu universo criativo. MB: Sim, apesar de no final achar que o trabalho é sempre muito minimalista. Acho que também aí procuro um equilíbrio. Estou sempre à procura de um equilíbrio justo entre o formal e conceptual, homem e mulher, anarquia e ordem – não que ache que sejam coisas separadas. JMO: Sim, reconheço essa tensão a que chamas equilíbrio. Eu chamar-lhe-ia mais tensão. MB: Eu gosto mais de lhe chamar equilíbrio.  JMO: Eu não acredito muito em equilíbrios. MB: Eu tenho que acreditar, apesar de nunca chegar a um ponto de equilíbrio total. É tudo sempre desequilibrado, mas pelo menos aprendo a controlar um bocado melhor o que foge… JMO: Essa questão do controlo no teu trabalho é uma coisa também ela recorrente. Ou achas que não? MB: Nunca pensei nisso. Controlo em que sentido? JMO: É uma questão simples. Como trabalhas sem ensaios não será um tipo de trabalho em que acabas por ter que estar em permanente controlo de ti e da tua auto-imagem que estás a apresentar? Mais do que eventualmente quando se trabalha com muitos ensaios, com scripts and so on. MB: Isso sim. Mas é uma forma muito natural de trabalhar porque é assim que vivo também; planeio muito para depois executar. Não há ensaios, mas há planos. E depois tanto pode correr como eu tinha planeado ou não. JMO: Sim, isso sei. Mas não cria uma zona de incerteza em comparação com outros trabalhos mais ensaiados? MB: Eu acho que todos os trabalhos são uma zona de incerteza. Há quem ensaie durante meses e chegue à estreia a achar que aquilo é uma porcaria. Acho que depende muito. Eu corro sempre o risco que o trabalho seja uma porcaria. Mas também corro o risco que o trabalho me ultrapasse e seja muito melhor do que aquilo que esperava. Acontecem os dois. Há coisas Bonneville das quais não gosto e há outras em que penso: como é que consegui fazer isto? Um trabalho leva ao outro sempre, como um melhoramento. JMO: Sim, mas acaba por acontecer... particularmente nos casos em que o plano é superado ou quando n corre como tinhas pensado. MB: Sim, mas é pensado como uma forma de eu me superar mais do que me surpreender. JMO: E daí essa ideia de melhoramento que falavas. MB: Sim. E por isso é que acho idiota a questão dos novos artistas ou jovens artistas. A questão dos paternalismos e das desculpas e de se pensar nos jovens artistas quase como gente que faz arte menor. Ainda por cima porque vês tantos ‘velhos’ artistas a fazerem coisas absurdas. Acho que é tão subjectivo. JMO: Ou seja estás a dizer que não tem nada ver com a idade. MB: Ouço muitas conversas descabidas acerca dos jovens artistas ainda por cima porque eu acho que se percebe logo - ou pelo menos a curto prazo - o que é que as pessoas têm para oferecer. E muitos dos jovens artistas só têm para oferecer uma fachada social, o que é assustador. JMO: Pois, também acho isso. JMO: Esse grau de surpresa, de auto surpreendimento é algo que me parece muito interessante na tua metodologia de trabalho. MB: Visto que estou a falar em pessoas da minha idade, que em vez de quererem melhorar a situação e de ir um bocadinho contra o que está estabelecido… MB: Mas não é feito de maneira a que eu me tente surpreender. Nem penso nisso. JMO: Que é quase uma obrigação neste país... MB: Tentam arranjar o lugarzinho junto de quem tem poder e assim obviamente não se vai a lado nenhum porque a corja já se começa a formar logo desde o início. JMO: Pois. Isso é uma coisa que é muito comum. De repente até me lembro de nomes. E repetem os mestres ad nauseam, tornando-os ainda piores do que já são. MB: É que nem repetem. Que fizessem reposições, sempre era mais interessante mas pronto eu também sou visto como um verdadeiro arrivista, para não dizer uma verdadeira puta. JMO: The artist as a whore. MB: Mas não me importo muito com isso. Já me habituei à reputação. Na escola era a mesma coisa. Quando és o único a levantar questões, ficas sempre marcado. MB: Isto começa na família, claro; o meu irmão era o bom e eu era o mau. Eu era o que só se interessava por dinheiro, era invejoso, atirava tudo pelo ar, tinha ataques, atirava-me contra os móveis e ria-me… JMO: Tipo Caim e Abel (ahahah) MB: E o meu irmão sempre foi muito bem comportadinho. Vem desde aí. Eu não me importava muito com o que os outros pensavam - a minha família é hiper burguesa e hipócrita - se eu se queria o jipe da Barbie, queria o jipe da Barbie e pronto. Não ia fazer de conta que queria outra coisa qualquer para os fazer felizes. Por isso também era conhecido por ser muito teimoso e ter um temperamento difícil. Apesar de na escola ser um anjinho. JMO: E achas que isso te construiu uma reputação? JMO: Falemos sobre isso então, sobre as reputações e as marcas. Re-putações. MB: Sim, claro. Eu era o ‘diferente’. JMO: Que começa portanto na infância. MB: Pois as reputações são muito fáceis de se ganhar. Em Portugal então é de um minuto para o outro; decides tomar uma atitude e se cais na graça de alguém óptimo, e se não cais óptimo também. Tudo serve para se ter uma reputação. MB: Sim, e que depois se prolongou até agora. E acho que as minhas escolhas também são feitas a partir dessa reputação e dessa ‘diferença’. Acho que escolho sempre o que é difícil ou o que é visto como difícil. JMO: Pois. E a tua foi sendo construída como? Tipo enfant terrible? JMO: Portanto quase que poderíamos dizer que te construiu como sujeito essa marca de diferença, do difícil, daquele que não aceita tudo. MB: Sim. E do estranho também. JMO: Estranho em que aspecto? MB: Estranho no sentido em que nem tudo é o que parece. Havia, por exemplo, um arrumador no meu caminho para a escola que me perguntava sempre: és menino ou menina? Podes imaginar o que isso faz à cabeça de um suposto rapaz de 11 anos principalmente quando a pergunta é feita em frente aos amigos. JMO: Pois sei muito bem, aconteceu-me também. Esse estranho quase que poderia ter o sentido de queer. MB: Eram os anos 90. Eu era muito influenciado pela moda do andrógino. Sempre achei que era o que fazia sentido. JMO: O não estar completamente de um dos lados do binário. MB: Sim. E porque é que era preciso perceber? Porque é que o que é importante era saber se uma pessoa era um homem ou uma mulher? Antes disso prefiro saber se é interessante ou não, se tem alguma coisa a dizer ou não. JMO: Sim, eu tive um processo parecido em linhas gerais com esse. Também me questionava sobre a relevância dos binarismos de género. Porque não devia ser assim tão relevante. MB: É para manter a ordem. Para nos manter mais fáceis de manipular. JMO: Quase para nos programar e perceber os limites à amplitude da nossa acção, mantendo-nos numas caixinhas muito definidoras. MB: Quanto mais familiazinhas houver menos problemas nos dão. JMO: Esse ponto de percepção crítica parece ter sido importante para começares a trabalhar. MB: Eu sentia-me constantemente julgado e sem poder nenhum de contestação. Consegui afirmar-me através da arte. JMO: Mas o processo até chegares lá foi penoso, confuso? MB - Era julgado porque brincava com bonecas, porque não jogava futebol, porque não comia arroz de frango, porque vinha de uma família burguesa, porque usava roupas diferentes das dos outros, porque não ficava calado e porque não partia a maçã com a faca. Enfim, sentia que, segundo os outros, eu fazia sempre tudo mal. Mas no entanto eu achava que não era mal, era só outra forma de fazer, por isso nunca dava o braço a torcer. JMO: E esse ponto implica sanções sociais. MB: Sim. Havia a sensação de: as pessoas não gostam de mim. Mas ao mesmo tempo sentia que era aceite, por isso sempre tive esse lado também de, de repente, a estranheza ser aceite pela insistência. Aos nove anos decidi que se podia gostar de rapazes e raparigas e nunca mudei de opinião depois disso. JMO: Portanto era também uma questão tanto de normas de comportamento, como de género, como de sexualidade. Ias contra muitas expectativas ao mesmo tempo. MB: Sim, mas sem ter isso muito presente. Não sabia o que é que isso queria dizer. JMO: Mas há também um prazer em subverter essas normas, ainda que o preço seja caro. Um prazer transgressor. MB: Tinha e tem a ver com uma necessidade. E com o facto de acreditar que posso dar outras visões válidas do mundo. E, de facto, sou muito persistente à conta de tanto me dizerem, constantemente, o quão teimoso eu era. Na verdade a minha teimosia levava-me à vitória. Conseguia o que queria, por isso porque é que haveria de desistir? Mas é um desgaste enorme. JMO: E o teu trabalho continua a ter presentes essas necessidades de recusa de uma ordem imposta de fora? MB: Sim, mas é mais uma necessidade de liberdade. Ou seja, o pensamento é mais positivo. O impulso é mais positivo. JMO: Eu tenho muito esta ideia que há um prazer na superação dessa ordem, um ganho em termos de concretização de desejo, de dizer que não quero ser como vocês que têm umas vidas absolutamente convencionais. MB: Há um prazer, claro. Mas para mim só será um prazer completo quando seguido do alívio: o alívio de ser compreendido. Porque senão é-se sempre o louco e o síndrome Van Gogh é uma chatice no século XXI. O ser marginalizado e só ser reconhecido como válido depois de morto. Acho que as pessoas têm o direito a serem reconhecidas em vida, de terem esse alívio de saberem que estavam a abrir caminho para alguma coisa melhor ou alguma coisa boa. JMO: Sim, mas será um reconhecimento colectivo totalizante? É que o facto de algumas pessoas reconhecerem já me parece uma forma de alívio. MB: Sim, mas, por exemplo, se o meu irmão estivesse a bancar as minhas performances e me dissesse ‘gosto muito, força aí’, não era o suficiente; era o meu irmão. É preciso que esse reconhecimento seja um bocadinho mais alargado, tal como é preciso que a mediocridade seja posta a nu. JMO: Ah! Outra questão em comum que temos! Eu tenho imenso essa necessidade. MB: E aí acho que só se pode medir com honestidade: a honestidade do trabalho e de quem a faz. E quando digo trabalho quero dizer também vida. É a mesma coisa. A responsabilidade que temos sobre nós próprios e o trabalho que fazemos ao longo dos anos em todos os sentidos. É muito raro poder falar-se destas coisas. Ninguém fala. Todos têm medo. O medo de a mediocridade ser exposta. JMO: Eu assisto a montes de medíocres a passarem à frente em montes de coisas e farto-me de pensar sobre isto; que vivemos numa ditadura da mediocridade. Porque se fores diferente ou fizeres as coisas honestamente, you’re fucked. E vejo muito isso também nas artes, não só nas ciências; quanto mais fores ao encontro do que é definido como a média, mais és beneficiado, e ainda mais o és se não fizeres nadinha que mude minimamente as coisas. Imagina na psicologia, por exemplo: quanto mais básico e primário, maior é a probabilidade de teres sucesso ou reconhecimento. E se fores mesmo tosco, então é de certeza sucesso porque não ameaças os medíocres que estão no sistema. Agora se dizes coisas que as pessoas nem querem entender, por mais óbvias que sejam, e se pões em causa este sono profundo em que as pessoas parecem estar, aí nem pensar. Nas artes passa-se algo semelhante? A mim parece-me que sim. MB: Sim, é igual. E com quem vê a mesma coisa. O público quer ver aquilo que já conhece. Quanto menos esforço, melhor. JMO: O público é impressionante nesse aspecto em Portugal. Tudo o que não seja imediatamente evidente, é uma merda. MB: Mas depois tu pensas: então se já está toda a gente tão metida na sua vida, no seu trabalho, na televisão, na família, no facebook, nos chats, na vida social e todos têm tão pouco tempo para pensar... restam os artistas e os cientistas para fazerem essa parte. Se eles não o fazem e se se submetem ao que os outros - que não querem pensar – querem, então está tudo acabado. Não há ninguém que faça um trabalho de pensamento e somos todos carneiros e deus! JMO: Eu tendi, ao longo dos anos, a tornar-me cada vez mais radical. Feminista radical. Graças a essa sonolência da academia e da sociedade portuguesa. E acho que ser feminista ou pensar de forma feminista obriga-nos a isso. MB: Sabes que isso é tudo muito recente para mim. Eu era completamente apolítico até há um ano atrás. Depois li “A Ilha” do Huxley e tudo começou a mudar. E com a Beauvoir também. Com a Beauvoir não veio só a questão do feminismo, mas também mais a questão do existencialismo, claro, e da política no seu sentido mais lato. Começas a perceber a importância que tem o facto de agires. JMO: Mas repara que fazer as performances que tu fizeste, ainda antes de conheceres a Beauvoir, têm uma leitura super política. Mesmo que não lhe dês esse tom. Lembro-me muito bem da ‘Daddy Daddy’, por exemplo, que eu achei na altura ser muito política até em relação à política das artes. MB: Sim, muito. Mas o que eu não quero é servir-me da política para fazer arte. JMO: Sim, mas não fazes isso. Agora tocas em questões altamente politizadas e, ao mexeres nelas, mexes na política, sem que o trabalho seja política. MB: Sim, sinto isso em relação ao género também. Não gosto nada de ser classificado como artista de género, nem gostaria de ser considerado um artista político. Aliás não gosto nada de ser classificado, ponto. JMO: Sem deixarem de ser questões que estão presentes na tua vida e no teu trabalho, continuam lá. O que não quer dizer que o trabalho ou a vida se resumam a isso. MB: Sim. E por isso é que decidi: performance e autobiografia. São duas coisas que não me limitam . E isto só porque é preciso que definas, é preciso que dês nomes, porque senão não existes. Não te permitem existir. JMO: Mas podem ser sempre provisórias, em suspensão, entre aspas. MB: Sim, claro. Tudo pode ser sempre provisório e é disso que as pessoas tendem a esquecer-se voluntariamente. JMO: As pessoas ainda pensam que vivem num mundo moderno à Tati, “Play Time”, em que há imensas certezas. Acho uma caricatura óptima da modernidade. MB: Odiei esse filme. Mas acho que faz todo o sentido eu odiá-lo. Quando vejo filmes perco-me completamente neles, por isso não devo ter gostado nada de me perder na modernidade. JMO: Entras em processos de identificações? MB: Sim. Por exemplo, se há alguém a fazer sinal com o dedo para alguém se aproximar, eu, na sala, aproximo-me... e já me aconteceu também defender-me de uma pancada. Eu estou mesmo dentro do filme. JMO: Por exemplo, no ‘Opening Night’ do Cassavetes? MB: É que não é só nos filmes bons. Nos maus também. Uma vez num filme de carros daqueles hiper americanos eu fiquei agarrado à cadeira porque achei que estava dentro do carro em altas velocidades, com a respiração suspensa, a pensar vamos bater, vamos bater. Por falar em filmes posso dizer-te que os filmes que eu vi mais vezes (e isto significa mais de 20 vezes) foram o ‘Pretty Woman’ e o ‘Crash’ do Cronenberg; acho que isto diz muito de mim. JMO: Ou seja, não fazes um dismissal da popular culture. MB: Como é que poderia fazer? Saio de casa e estou na popular culture. E se quero falar para o maior numero de pessoas possível acho que tenho que saber pelo menos o que acontece e de tentar também subverter esse lado um bocadinho. Lá está - encontrar o equilíbrio. JMO: E que figuras da cultura pop usas nesses processos? MB: O Pop mor - Andy Warhol. E depois vejo imensas revistas onde se fala de tudo: música, cinema, moda. As figuras vão variando mas estou menos ligado à pop do que quando comecei a apresentar trabalhos. Muito menos. JMO: Sim, também acho isso, do que conheço. Por exemplo, foste arrastado pela vaga Lady Gaga? MB: Eu acho que ela vem com prazo de validade ultrapassado. Aquilo já devia ter acontecido no final do século XX, quando não se falava de outra coisa a não ser do pós-modernismo. É para se perceber o quão a cultura pop está em atraso em relação à actualidade, àquilo que se faz e pensa agora. Ou sejas com 10 a 20 anos de atraso, no mínimo. JMO: Isso é curioso porque a ideia que existe é que a cultura pop é o zeitgeist ou até à frente. MB: Mas como é que poderia ser? Se as pessoas desdenham a estranheza… tem que ser algo que já conhecem ou que já ouviram falar ou que já foi introduzido lentamente para que funcione como fenómeno pop. Como pedir a alguém: olha assusta-me ali na próxima esquina quando eu estiver a passar. Não sentes que é assim? JMO: Nunca pensei sobre isso. Mas em termos lógicos tem imenso sentido. É claro que não pode ser inovador ou contemporâneo, tem que ser atrasado, para ter recepção massificada. MB: E acontece o mesmo com o “experimental”, que acho que é a palavra mais medíocre possível para definir coisas que já se fizeram mil vezes. E que se defende que é sempre a vanguarda. Em Portugal há muito o culto do experimental para encobrir mediocridade, das pessoas acharem que estão muito à frente e são muito incompreendidas e super intelectuais mas no fundo estão todas num grupo gigante a achar o mesmo, ou seja, são mais compreendidas do que muita gente porque estão todas no mesmo barco a acharem-se superiores, quando, no fundo, é só uma alternativa à pop. O sistema é o mesmo. JMO: Isso é Portugal. É por demais evidente. Regressemos ao feminismo: sentes-te feminista? MB: Eu sou feminista, sim. E acho que cada vez mais radicalmente feminista. JMO: E o que é que isso quer dizer para ti? MB: Quer dizer que acho que um futuro para um mundo mais aceitável, mais inteligente, será um mundo que ouvirá as mulheres, ou seja, dar-lhes a oportunidade de existir. Porque convém dizer que as minorias não existem e quando digo mulheres falo em minorias em geral - somos todos dominados pelos senhores brancos. JMO: Podíamos quase dizer que mulheres são tod@s as que são dominadas pelos senhores brancos. MB: Sim. ‘Dar oportunidade’ é uma péssima escolha de palavras, já agora. Mas ‘lutar’ também é um bocado horrível. ‘Conquistar’ também. Abrir caminho? JMO: Pois, as metáforas são todas muito masculinizadas, é uma propriedade da linguagem. Esses senhores brancos dominaram a linguagem tempo demais e ficámos com poucas metáforas sem serem as deles. E em relação à Simone de Beauvoir. O que te atraiu/atrai? MB: Comecei por ler o primeiro livro dela “A Convidada” e fiquei absorvido pela forma como ela descreve os pensamentos, esmiuçando sempre mais e mais, até chegar a algum lado conclusivo. JMO: Ou seja, a racionalidade dela? MB: Sim, mas uma racionalidade muito intuitiva. E depois ela toca em questões como a bissexualidade e a questão da monogamia que são muito importantes para mim. Os monólogos interiores são mesmo de alguém que repensa o que significa ser uma mulher em todos os aspectos. JMO: Que não se nasce, torna-se. Como foi o confronto com o ‘Segundo Sexo’? MB: Não conseguia dormir quando pegava no ‘Segundo Sexo’. Não conseguia fechar o livro. JMO: Porquê? O que há de especial nesse livro? MB: Põe-te em confronto com a história, exemplifica, rectifica, põe os tabus todos a nu. E é claro que depois pensas no Camus, e nos comentários que ele fez ao livro, e pensas que até um senhor inteligente é capaz de ser burro. JMO: Não só o Camus, quase toda inteligentsia francesa. MB: Sim, mas ele fez um comentário do género: não interessa a ninguém saber como é que funciona a menstruação… E, claro, há o lado autobiográfico da Simone. Ela, para mim, resume tudo o que é importante. JMO: É um encontro curioso esse teu com a Simone. Que consequências teve para alem de te tirar o sono? MB: E para além de achar que estava na segunda guerra mundial? Passei um dia a ler os diários dela do ‘Força da Idade’ - a parte sobre a guerra - e estava em casa a acreditar naquilo. Aquilo estava mesmo a acontecer. E como tinha que apanhar o comboio no dia seguinte, comecei a achar que iam apanhar-me porque o meu BI estava caducado e ainda não tinha recebido o cartão novo. Então decidi ir à cinemateca. Ver o quê? ‘Les Caribiniéres’ do Godard. Foi um dia horrível. Sinistro. Bom, mas passei a estar muito mais atento. Atento a tudo. E a ter vontade de agir, de fazer mais… JMO: Para além do teu próprio trabalho artístico ou através dele? MB: … porque quando encontrei o existencialismo, sabia que aquilo, para mim, fazia todo o sentido. Mas foi primeiro através do Camus e do Vergílio Ferreira, mais tarde do Sartre e só depois da Beauvoir… JMO: Curioso, eu sou super insensível ao Camus. Comigo foi mesmo a Simone… MB: … e foi com a Beauvoir que tudo fez sentido… para além do meu trabalho artístico. Se bem que isso significa que me faz agir na minha vida, e a minha vida e o meu trabalho são a mesma coisa. Utilizo um e outro num e noutro. Este ‘agir’ passa por coisas tão simples como discutir problemas com os meus amigos até realmente fazer um trabalho que tenha um pensamento mais politizado ou mais filosófico. Acho que, no fundo, foi descobrir uma densidade e descobrir um conforto por ter havido alguém que tomou a iniciativa de falar, de escrever, de agir. Eu não tenho nada a vontade de inovar. Fico muito feliz quando descubro alguém que pensou naquilo em que acredito, porque penso que não estou sozinho. Penso mais num acto de continuação e de melhoramento. E ao mesmo tempo que li a Beauvoir, li o ‘The Death of The Family’ do David Cooper e tudo começou a interligar-se. Aconteceu tudo muito através de leituras e por isso é que acho que é tão importante ler. Mas ler mesmo e não dizer que se lê porque isso é absurdo. JMO: Sim, também tenho livros que me mudaram a vida. Não tanto a Beauvoir, mas outros. MB: A minha primeira grande influencia foi a Duras. Li mais de 30 livros dela, mas foi muito destrutivo. Eu gosto muito de “esgotar” autores - fico com a sensação de que não os li se assim não for. Se gosto verdadeiramente então tenho que ler tudo ou ver tudo. JMO: Eu também tenho isso, mas é com fetiches mesmo; o Foucault ou a Butler ou a Donna Haraway (as duas últimas mais do que o Foucault). É uma relação de investimento libidinal num objecto cuja relação é tão forte que ficas obsessivo com esse objecto. E é fetiche porque se torna quase sexual. MB: Mas pelo conteúdo do objecto ou só pelo objecto em si? Ou pelos dois? JMO: Pode ser uma ou outra ou as duas. No meu caso é mais o conteúdo. Aconteceu-me com a Butler, quando li o ‘Gender Trouble’ e finalmente o percebi, achei que tinha que ler tudo dela ou a minha própria existência era posta em causa. MB: Gosto desse tipo de urgência. Acho que é isso que nos faz evoluir. Mesmo que por vezes seja angustiante. JMO: É super angustiante e doentio. MB: Mas eu tenho um certo respeito pela neurose porque pode servir para realmente fazer coisas importantes. JMO: E serve. Ou então destrói-te. Eu agora tenho uma neurose com a ideia de melancolia no Freud, por exemplo. E acho que tudo é causado pela melancolia. MB: Acho que sou muito freudiano apesar de saber que toda a gente o acha muito passé. Queres desenvolver? JMO: O argumento até é simples, mas apetece-me complexificá-lo. É um misto de Freud com Butler; as normas de género antecedem-te, certo? Ou seja, antes de seres sujeito, já existem estas normas. Quando através da linguagem, acedes a ser sujeito, a ser, as normas impõem-te que te esqueças de uma parte desse processo, que é aquilo que nunca podes ser. A actividade de luto por essas coisas que ficaram inconscientes é a melancolia, devido a esse esquecimento compulsivo. Agora se aplicarmos ao género, facilmente se percebe que se só torna um homem aquele que esquece um desejo por homens. Para se tornar um homem é preciso existir a melancolia pela homossexualidade perdida, por isso é tão penalizador psiquicamente voltar a sentir isso, uns anos mais tarde. Ando louco com isto da melancolia. Com a mulher é igual: recalca a homossexualidade também, mas no caso da mulher ainda é mais psiquicamente destruidor porque implica passar para uma categoria dominada à partida para um lugar que é definido pela própria inferioridade. Assim diz a Butler, o homem mais melancólico é o heterossexual mais agressivo, capaz de matar gays para recalcar ainda mais essa melancolia que quase o preenche. MB: Eu começo a acreditar que a homossexualidade é o que faz sentido como norma num futuro... Para se chegar a um ideal onde nada disso interessa, acho que é provável que tenhamos que passar pelo extremo oposto. JMO: Onde não há género? Nesse lugar futuro? MB: Onde não há pressão de escolha, pelo menos. JMO: Sim. Seria preciso, no entanto, acabar com o género para isso acontecer, acho eu. MB: A questão do casamento, por exemplo, deixa-me um bocadinho sem saber o que pensar. Porque é que se quer constituir família igual às famílias burguesas que ditam as leis? Não é precisamente para entrar na “normalidade”? Por um lado acho que, claro, as pessoas têm o direito à liberdade (...) de se casarem, mas por outro tenho a questão: será que não querem entrar para o mesmo esquema? Ouvi dizer que em São Francisco os homossexuais não queriam que os casais heterossexuais fossem para o parque com as crianças na zona gay… JMO: Eu tenho uma visão muito utilitarista disso: se houver quem queira, acho péssimo que não possa fazê-lo. Não acho que mude grande coisa, nem acho que constitua uma revolução. Eu jamais o faria. Mas havendo quem se queira meter nesse esgoto que é a família burguesa, why not? Acho que não dá para ser contra. MB: Também acho que não dá para ser contra. Mas acho que dá muito para pensar. JMO: Dá, isso dá. Mas que se pense sem prejudicar a aprovação da lei. Eu acho importante que se pense imenso nisto. Mas seria impossível aplicar isso a mim; a instituição foi feita para criar pessoas que são propriedade de alguém e manter os dinheiros e a propriedade a correr entre determinadas linhagens sancionadas pelo estado, e eu não quero fazer parte disso. Se me perguntares: és a favor da extensão do direito a casar a pessoas gays e lésbicas? Sou, sim senhor. Se me perguntares: és a favor do casamento? Não, não sou. Por mim, era abolido. Se as pessoas conhecessem a história e a levassem a sério, ‘casamento’ e ‘família’ eram palavrões que ninguém diria, quanto mais querer fazer parte…E depois com o casamento tenho uma questão: porquê duas pessoas? porquê duas e não três, quatro, cinco, seis? MB: Porque foi assim que deus fez… JMO: Olha e deus? MB: Não conheço. JMO: O que achas sobre deus, assim com letra pequena? MB: Escrevi sobre isso há pouco tempo para o meu próximo trabalho. Vou transcrever: Não sei com que idade deixei de acreditar em deus completamente. Digo completamente porque sempre tive a sensação de não acreditar plenamente. Porque “nunca se sabe”. Do género: eu acho que ele não existe, mas é melhor rezar, caso exista. E na verdade eu rezava a Jesus e não a deus - sempre me pareceu mais credível; pelo menos havia uma imagem à qual me podia agarrar. É preciso dizer que a minha mãe não acreditava em nada; é das pessoas mais cépticas que conheço, e o meu pai acreditava em tudo. Por isso tinha as duas visões. E depois há dois aspectos importantes: a minha mãe sempre foi uma grande defensora da verdade e o meu pai era conhecido pelas suas mentiras. por isso, olhando para trás, parece-me lógica a minha decisão de acreditar na minha mãe, logo de não acreditar em deus. JMO: Gosto deste cruzamento entre crenças, família e biografia. MB: No fundo isto resume a minha vida. Está aqui tudo. Dia 2 JMO: “A peça não foi pensada assim “ ou “ não tem nada a ver com” - esquecem-se de que a arte contemporânea vive num regime de sobre-significação. Nobody could care less sobre a interpretação do criador. Pensei que podíamos começar por isto, esta tensão entre os significados que dás quando crias e as leituras que as pessoas fazem. Queres partir de exemplos? Situações em que as leituras das pessoas se confrontassem com a tua. MB: Acho que, normalmente, tenho sempre leituras parecidas com as minhas. JMO: Mas nunca tiveste situações em que ficasses espantado com as leituras do público? MB: Não. As perguntas são sempre as mesmas e os comentários, no fundo, também. As pessoas não falam muito e como o trabalho parte de questões autobiográficas acho que ficam com medo de fazer perguntas pessoais. O que me aconteceu na Alemanha, por exemplo, foi genial: dei uma conferência sobre o meu trabalho e as pessoas estavam muito pouco à vontade para fazer perguntas. Dois dias depois, duas ou três pessoas chamaram-me à parte e tivemos conversas longuíssimas sobre um ou outro assunto da conferência. Eu achei que eles me achavam louco e ponto final, por ter falado do meu pai, das minhas relações... Mas depois foi mesmo muito bom poder falar individualmente, ouvir as histórias dos outros, porque eu acho que isto não é nada mais do que uma conversa que se tenta estabelecer. Por isso quando me dizem “ a tua vida não me interessa “ a única coisa que posso dizer é então não vejas, não venhas, não ouças. Há um medo muito grande de se falar sobre si próprio. Dos outros e da vida dos outros não há problema nenhum, mas falar de si próprio já parece mal. JMO: Há um livro do José Gil em que ele afirma que em Portugal as subjectividades não estão completamente construídas e que há um grande falta de reflexão sobre esse plano pessoal. MB: Eu acho que não há falta, acho mesmo que não existe. É ‘feio’ ser-se considerado narcisista. Mas o que as pessoas não sabem é que a história do narciso tem muito pouco a ver com aquilo que faço. E o narcisismo torna-se uma desculpa para não se pensar nem olhar para si próprio, ou para se fingir que não se olha para si próprio. JMO: Isso eu também acho. As pessoas esquecem-se que ao mostrares esse lado, estás também a falar de processos mais vastos. É uma forma de legitimar essa lacuna de reflexão mas isso levanos também à tua tentativa de reformular as fronteiras do público e do privado no teu trabalho. Porque o teu trabalho admite directamente que se saibam coisas sobre a tua vida sem serem apenas simbolizadas. MB: Sim, e o meu discurso parte daquilo que me acontece na vida - acredito mesmo que é uma alternativa para a tão falada morte de deus, ou falta de deus. Acredito na autobiografia e na arte como melhoramento, como possível prática diária incorporada. E acho que cada vez mais se caminha para isso, visto que toda a gente tem acesso a câmaras de vídeo, maquinas fotográficas e os materiais de edição são cada vez mais simples. JMO: E qual a relação com a morte de deus? MB: Em vez de se virarem para deus ou de entrarem em desespero pela falta dele, terem a possibilidade de se virarem para si próprios e fazer da vida uma obra de arte. Isto tem, claro, muito a ver com as questões do existencialismo, da responsabilidade. JMO: Mas não há um perigo? Quase uma teologia do ego? MB: Acho que não passa por aí porque à medida que vais percebendo como é que funcionas, vai sendo mais fácil lidar com o mundo. JMO: E portanto concretiza-se, em vez de se idealizar? MB: Sim. JMO: Se bem que a questão das autobiografias já são muito antigas, como nota o Foucault quando fala no cuidar de si nos gregos. MB: Sim, mas de repente torna-se num monstro porque é associada à vaidade e ao narcisismo. Tem conotações muito negativas e acho que é por pura preguiça. Preguiça de não querer ver, de não querer trabalhar, de não querer pensar, porque tudo isso dá trabalho e faz-te pensar e repensar e questionares de onde é que tu vens, se faz sentido viveres como vives, o que é que queres mesmo fazer. Não é uma tarefa fácil e exige que te comprometas e exige que sejas honesto porque senão nunca vai dar a lado nenhum. Já escrevia o senhor Nietzsche à sua irmã: If you want to be a disciple of truth then search. JMO: Pois, eu estava a achar o teu raciocínio muito nietzscheniano. A tua descrição do processo de auto-conhecimento é quase uma ascese, uma coisa disciplinadora, dura, difícil. Há um fim para essa busca? MB: O meu processo é sempre duro. Acho que há vários fins, mas que talvez só aconteçam depois de morto. JMO: Fim, não no sentido de objectivo, mas no sentido de acabar o processo. MB: Enquanto estou vivo acho que o fim é chegar aos 50 e não ter uma crise de meia idade e pensar que andei a fazer tudo mal, e andar a compensar comprando carros caros, e a estragar a vida aos filhos. A honestidade compensa-se a si própria. JMO: Sim, é então um processo que implica um corte em relação ao quê? A ser apático? A engordar em frente ao televisor? MB: Sim, por exemplo. Implica agir em todos os sentidos. JMO: E em que tipo de situações? Situações convencionais, situações limite… MB: Em todas as situações. Umas com certeza vão requerer mais energia do que outras mas eu penso nisto como uma prática diária, como quando trabalho; se não estou a desenhar, estou a escrever, se não estou a escrever, estou a ler... A aprendizagem é constante e não deve ser negligenciada. Falo disto numa forma um bocadinho militar, eu sei, mas é porque eu preciso mesmo de manter esta disciplina porque sinto que caio facilmente num registo de preguiça. JMO: Lembrei-me de um filme realizado pelo Sean Penn em que ele descreve um processo de auto-conhecimento que acaba quando a pessoa em questão descobre que tem estar no mato e viver fora da sociedade e acaba por morrer à fome. Pensei por analogia com o rigor dos processos que descreves. MB: Sim, percebo isso muito bem. Mas como te disse no outro dia, eu procuro sempre um equilíbrio. Isso significa ter de fazer compromissos. Penso muitas vezes em isolar-me num sítio qualquer com a minha horta e pronto. Mas depois qual é a minha função? Parece-me mais uma fuga. JMO: Cuidar de ti? MB: Cuidar de mim num limite, na solidão total ou quase… não é isso que eu procuro. E há um risco muito grande de perder a noção do que se passa realmente. JMO: Há um lado atraente aí que é uma concentração, mas com custos elevados. Eu fiz uma experiência assim quando era teenager. MB: Aí é que não correu muito bem ao Nietzsche. Por isso é que tenho sempre a noção de poder não ir de encontro aos extremos a não ser para os tentar juntar de alguma forma. JMO: Pois não acho que no final corra. Porque te desligas de tudo e essa falta de conexão pode ser perigosa. Mas retomando o processo: é diário, o teu? MB: Sim, sinto que sim. E vou ressentindo cada vez mais se me desleixo. JMO: O que é um desleixo nesse quadro? MB: Por exemplo, se me vejo numa situação em que não me respeito, em que não respeito a minha vontade. Numa situação tão simples como estar num lugar cheio de gente onde não me apetece estar e não estar atento o suficiente para perceber que não devia estar ali e dizer: pronto, vai para casa. JMO: É. Tu continuas a fazer? JMO: Porque esse processo passa-se mais em casa? MB: Mas o processo é sempre solitário. MB: Não, esse é o processo. O processo de percepção do que é que estás a sentir e do que é que deves fazer em vez de agires por normas sociais, por aquilo que deve ser ou parece bem. JMO: E há espaço para outras pessoas? JMO: Percebo melhor agora. Eu também ando nesse processo - recusar-me a fazer coisas só para agradar ou para cumprir normas que me são impostas, negociar comigo próprio os limites para esse poder das normas. MB: Sim, é essencial. É claro que esta atenção também passa por perceberes que tens que dormir, tens que comer, tens que ficar no sofá a olhar para o tecto. No fundo é isso: atenção, estar atento. JMO: E terapia? MB: Eu acho que a terapia é um trabalho que ajuda a perceber o que é que tu não és, ou seja, que defesas desnecessárias andaste a construir, e ajuda-te a estares atento, claro, mas apenas se quiseres. Há pessoas que ficam dependentes de terapia, é outra forma de preguiça e de não se responsabilizarem. MB: Estou em fade out, ou seja, vou menos vezes - já a caminhar para uma saída. JMO: E depois continuar esse processo sozinho? MB: Há sempre outras pessoas, mas o processo é teu e és tu que o tens que fazer. Por mais que se converse sobre o(s) assunto(s) com alguém quem tem o poder de mudar as coisas és tu. JMO: É engraçado, porque dá a sensação que é também a recusa de uma validação externa, a recusa de depender que outro/a valide as minhas próprias conclusões. MB: Elas deviam validar-se por si próprias. JMO: Mas ao mesmo tempo, não sentes que a construção de nós é também ela uma ficção? Uma narrativa mais ou menos linear que usamos para nos fundar no mundo? MB: Mas é isso que fazemos – construir. E se somos nós que decidimos construir, é uma ficção. Mas se não há uma verdade universal é assim que temos que fazer, não? Ou então deixar que construam a tua ficção por ti e isso é que eu já acho grave. MO: Claro. Também acho. Estou muito insistente com isso, porque andei a ler sobre esses processos esta semana num livro chamado ‘Subjectivity’, do qual estou a gostar imenso, que conta a evolução das teorias sobre a subjectividade desde o Descartes até à Butler. E é muito interessante veres as mudanças desde a crença de que o EU existe porque pensa, até à ideia de que o EU é um fantasma psíquico e que só faz coisas para continuar a acreditar na sua existência. Um exemplo: nas prisões com aqueles panópticos, os presos estão constantemente a ser observados e vão comportar-se por forma a fazer os guardiões pensarem que são bons sujeitos, que se reabilitaram, a mudança é no comportamento e não no eu - até porque esse é inteiramente ficcional. MB: Gosto dessa ideia de fantasma. Estamos sempre a afirmar que estamos vivos. Com o corpo passa-se o mesmo - nunca podes estar parado por muito tempo. O corpo tem sempre a tendência de se mexer, nem que seja um espasmo, um abrir ou fechar de olhos, para dizer a si mesmo que não está morto. JMO: Para se auto convencer de que vive? MB: Para confirmar. JMO: E agora? MB: Os papéis sexuais. Activo/Passivo - Dar/Receber. Isto faz-me confusão porque eu nunca tive uma preferência de papel e parece-me que a maior parte das pessoas se regem por uma escolha de um ou outro. JMO - Pois. eu acho que também tem a ver em só ver o sexo como uma coisa penetrativa porque se pensarmos no sexo oral, eu tenho imensa dificuldade em classificar - quem é que o passivo? Mas qual é a tua ideia sobre isso? Dos papeis? MB: Há pouco tempo percebi que estava a ser um objecto total e comecei a pensar nisso mais seriamente porque até aí consegui sempre estar mais ou menos num lugar ‘híbrido’. JMO: Pois, é quando o parceiro sexual está numa óptica de papeis, situacionalmente acabas por ter que estar também. MB: Mesmo em relação à pornografia, por exemplo, o que me excitava era a possibilidade de ser um e outro ao mesmo tempo; nunca me identificava só com o que ‘dá’ ou só com o que ‘recebe’, e de repente ter que escolher um lado pôsme numa situação muito estranha. JMO: Será porque ficas um bocado destituído de auto-determinação - teres que ser aquilo? Fazer aquele papel? MB: Não, acho que tem a ver com o facto de já não ser um papel, de já não ser nada, de já não ser eu - podia ser outra coisa ou pessoa ali no meu lugar porque não há emoção nenhuma e é puramente físico. JMO: Eu acho que há um lado estranho. Parece que de repente se regressa à heterossexualidade em posição de missionário. MB: E ao perigo da violação. JMO - Perigo da violação como? MB - Se o que interessa é foder e acabou, se há essa distância de emoção, então podes fazer o que quiseres. A outra pessoa não é uma pessoa, ou seja, o que eu estou a querer descobrir é o processo de passar a ver uma pessoa para passar a ver um objecto porque parece-me que é maioritariamente um fenómeno masculino. JMO: Olha que não. Mesmo nas lésbicas isso pode acontecer. Mas simbolicamente em termos de estereótipos isso pode acontecer ser um fenómeno masculino. MB: Porque o homem é que age. Mas porque é que tem de agir assim é a minha pergunta. Porque não me parece que seja consciente. JMO: Eu baralho-me imenso com pessoas assim tão tradicionais. MB: De repente estás com uma pessoa que é um robot. JMO: Pois, claro. Estás a cumprir um pró-forma. É difícil lidar com isso, com essa convenção sexual. MB: Achas que a pornografia tem alguma coisa a ver com isto? Que influencia o comportamento? JMO : Não. Não acho nada. É tão fake que qualquer pessoa percebe que aquilo é outra ordem de discurso. Não acho que seja uma influencia. Pode é ser imitada, mas isso já não é uma responsabilidade da pornografia, é das pessoas que escolhem esta ou aquela coisa para imitar. MB: Quem vê os meus trabalhos são a minha mãe e o meu irmão; o meu irmão compreende tudo, a minha mãe acha estranho, não percebe, mas interessase e emociona-se, o meu pai às vezes acompanha o que sai nas revistas - e não lida muito bem com o facto de ser uma figura desequilibrada. MB: Não estou a responsabilizar a pornografia - acho isso ridículo. JMO: Ah! Sentiste-te num filme porno de repente? JMO: E interpela-te sobre isso? MB: Sim, completamente. JMO: É preciso contrariar isso. Mas há um lado interessante para pensar que é uma tripla equivalência nessas coisas entre género, orientação sexual e posição sexual. É quase como se ser passivo fosse ser mais homossexual e mais mulher - e até a palavra significa que pouco se faz, que se está ali passivamente, parado. Mas passemos a esse ponto onde tínhamos ficado: explica lá como é que pões, por exemplo, a tua família no teu trabalho e quais as reacções deles ao serem aí representados? MB: A minha família é a minha primeira influência e acho que deveria ter sido logo a primeira coisa a ser questionada porque é dali que eu venho. Questionar os valores que me foram passados e os papéis que representamos. JMO: E como é que a tua família reage a isso? MB: Não. Não tem coragem. Ou fá-lo através de gestos simbólicos como oferecer-me um retrato da minha mãe ou então escreve-me cartas. JMO: Portanto sentes que ele tem problemas com a imagem que passas dele? MB: Claro que sim. Com a imagem que passo e com a imagem que tenho. Ele vive noutro universo, que é oposto ao meu. JMO: Como é que é esse universo dele? MB: É fechado sobre si próprio e muito idílico e a mentira torna-se a forma de se confortar, de culpabilizar os outros e não olhar para si próprio honestamente. Não o consegue fazer porque escolhe não o fazer. JMO: E prefere viver nessa ilusão? Achas que é derivado de alguma coisa de classe social? MB: Acho que tem a ver com geração, talvez. JMO: Em que sentido? MB: Tenho inúmeros exemplos de pais de outras pessoas, da mesma idade do meu, que têm comportamentos parecidos. A guerra colonial, o 25 de Abril, acho que isso serviu também para abanar um bocado a cabeça dos homens da geração do meu pai. JMO: Ele fez a guerra? MB: Não porque se intoxicou para ficar no hospital. JMO: Eu também acho que pode ter a ver. Parece a descrição do meu pai. MB: Mas não sei. Não posso ter certezas. É uma intuição que provém de observação. A minha mãe diz-me que houve uma mudança muito grande (do antes da guerra e depois da guerra), por isso imagino que isso tenha causado mesmo traumas que depois não foram resolvidos. O meu pai passava a vida a dizer-nos que devíamos era ir para a tropa. E no entanto ele intoxicou-se para não ir para a guerra. JMO: Pois, é contraditório. Mas não será aquela coisa dos pais que querem que os filhos façam o que eles nunca fizeram? MB: Sim, tudo nele é contraditório. O meu pai queria ser o nosso melhor amigo, visto que era isso que sentia falta na relação com o pai dele. Mas o nosso melhor amigo não nos massacra com idiotices burguesas nem nos obriga a fazer tudo aquilo que ele quer que façamos. E mesmo confrontado com os factos, ele acha que a culpa é de alguém, seja quem for, mas nunca é dele. JMO: Isso confronta-se muito com o que disseste sobre a necessidade de honestidade, ou seja, ele parece ir completamente contra o que defendes. MB: Sim, completamente. E provavelmente o que eu defendo vem precisamente da nossa relação de eu não querer parecer-me com ele, e de ver no que se tornou a vida dele. JMO: Por oposição, portanto. E em relação à tua mãe? Vê-la de outra forma. MB: A minha relação com a minha mãe mudou muito. Ou melhor, mudou a visão que eu tinha dela, porque ela para mim sempre foi a heroína. Mas de repente também comecei a perceber as falhas e foi um óptimo trabalho resultante da terapia: foi elevar um bocadinho o meu pai e ‘des-elevar’ um bocadinho a minha mãe. O tal equilíbrio, sempre presente. JMO: O teu apelido Bonneville é dela ou dele? MB: É da minha bisavó Marie Rose Bonneville, do lado da minha mãe. JMO: Francesa? MB: Sim. JMO: E essa opção parece confirmar, simbolicamente, a preferência pelo lado materno mas também podia ser só por gostares do nome. MB: É pelos dois. Mas acho que simbolicamente vai dar ao mesmo. JMO: Porque é um statement o nome que se usa. MB: Sim, é. A minha bisavó é conhecida como tendo sido incrível. Acho que fazia imenso trabalho de voluntariado e que era muito à frente para o seu tempo, o que passou também para o meu avô; a minha mãe e as minhas tias foram as primeiras a usar calças na escola, por exemplo. JMO: E o teu irmão também usa Bonneville, não é? MB: Também. O meu irmão é fundamental nisto tudo e nunca falo dele, ou muito raramente. JMO: Nem aparece muito no teu trabalho, pelo menos directamente. MB: Exacto. Mas no fundo está sempre lá. Foi por causa dele que me interessei por arte e que sabia o que era o pósmodernismo aos 13 anos. Porque ele me mostrava coisas e falava-me delas, e eu como era neurótico ficava obcecado, e depois ia procurar mais e mais. Faloume do Van Gogh, do Freud, do simbolismo… foram coisas que fizeram toda a diferença no meu percurso. Eu levava - sempre levei - todas as tarefas muito a sério; tudo o que eu fazia era profissional e tinha objectivos profissionais. Se escrevia um guião, por exemplo, decidia tudo. E escrevia guiões de 100 paginas. JMO: Essa atitude esteve sempre presente? MB: Sim, sempre. Renovava as colagens do meu quarto de duas em duas semanas, ficava tardes inteiras a fazer desenhos de roupa e classificava-as; outono/ inverno - primavera/verão, escrevia o ano, metia-os numa mica e numa capa, onde também estavam escritos os anos... JMO: Uma preocupação documental. Tens esses dossiers ainda? MB: Sim. Esse foi um lado que herdei do meu pai, acho. O lado de documentar, de assinar - ele assinava tudo e fotografava tudo. Até o meu irmão, em coma, no hospital, está fotografado. O meu pai era uma espécie de Nan Goldin. JMO: E tu continuas esse registo da tua passagem pelo mundo? Será uma preocupação com a efemeridade e a finitude? MB: Acho que tem a ver com um lado de afirmar uma diferença, de existir, sim. Até porque existere, no latim, significa destacar-se, por isso acho que tem ver com isso; de dizer eu estive aqui e eu estive aqui assim. JMO: Há uma ideia de legado nessas práticas? MB: Há. E é preciso ter coragem para o dizer, visto que parece mal. No fundo gosto de acreditar que estou a trabalhar por uma causa que é maior do que eu. JMO: Pois é. Mas ignorando essas normas, como é que imaginas a recepção desse legado depois de desapareceres? MB: Não sei. JMO: Não imaginas? MB: Não sei principalmente porque sinto que estou eternamente a começar alguma coisa. E porque estou em Portugal e não faço parte nem do futebol, nem do fado, nem de Fátima. Por isso não sei que espécie de futuro poderá ter o meu trabalho depois de eu morrer. JMO: E ires para fora daqui? Já te ocorreu? MB: Ocorre-me assim... todos os dias. JMO: Como eu te compreendo. MB: Mas não há nenhum lugar onde eu pense: é ali. Encontrei este lugar, encontrei Lisboa e gosto, apesar de tudo, se não já não estaria aqui. E tu? JMO: Nem Berlim? MB: Nem Berlim. JMO: Berlim, sim, se falassem inglês e não precisasse de falar alemão para leccionar lá. MB: Nenhum lugar é perfeito. JMO: Mas agora vou dois meses para Londres e quem sabe… MB: Mas então pensas nisso a sério. JMO: Sim, claro. MB: Quais são os maiores problemas em viver aqui? JMO: Há imensos. Começando pela pequenez de pensamento, de acção, de financiamentos, de margem de manobra, a penúria crónica das instituições, a ausência de interesse das pessoas. Foram muitos anos de ditadura, as pessoas estupidificaram a um nível impressionante comparadas com outros países. MB: Sentes que é um país velho? JMO: Absolutamente. É um país onde não há sentido de possibilidade. MB: Resignado? JMO: Sim, completamente. Notas isso em todos os sectores. Mesmo no discurso político em que parece só haver limitações. MB: Acho que podemos então falar em liberdade. Qual é a tua noção de liberdade? JMO: A minha noção de liberdade é assente na auto-determinação e não encontrar barreiras para essa consciência de escolha, mas que se passa em todos os planos. Por exemplo, os jornais e o jornalismo que fazem é uma barreira ao desenvolvimento de uma consciência crítica. A liberdade é essa faculdade de consciência crítica e auto-determinada. MB: Há pensamentos recorrentes que tenho: porque é que tenho que pagar para estar no mundo que, supostamente, também é meu e porque é que tenho que conquistar uma liberdade que supostamente já é minha? JMO: Porque no fundo é ilusória, ou seja, mesmo este meu discurso sobre a liberdade parte de um pressuposto prévio de que essa liberdade é uma ficção, pois as normas que te dizem que és livre são normas e, por isso, nunca o és verdadeiramente. MB: E o que me dizes do que disse o Sartre, de que nunca foi tão livre como durante a ocupação Nazi? JMO: O Sartre acreditava na veracidade desse conceito, eu não. MB: Pois eu também tenho dificuldade em acreditar mas gosto que haja a possibilidade de se acreditar nisso. JMO: E até como feminista, tenho imenso que questionar isso. Por exemplo, o que é emancipar-se? Ou emancipar? É um discurso formulado numa época muito ligada à modernidade, com a ideia de progresso, com a ideia de que o ser humano se pode emancipar e ser completamente livre. Quando a própria concepção disso é super normativa, ocidental e até muito inspirada em homens heróicos. MB: E em relação ao budismo, à filosofia budista, encontras alguma noção mais plausível? JMO: Nunca me interessei pelo budismo. E haver mestres imperadores que reencarnam não me convence rigorosamente nada da bondade da proposta. E o facto de serem todos homens! MB: Mas tens uma aceitação da morte que é muito mais simpática do que na religião católica. JMO: Falaciosa, porque assenta na ideia que vais ter outra vida. Não assenta na ideia de que its over, finito, kaput. MB: Sim, mas isso pode trazer benefícios se pensares como eu: não quero ter outra vida! Ages de forma a que a tua incarnação seja o mais perfeita possível. JMO: Pode. As pessoas podem continuar enganadas, a auto-melhorar-se, mas não porque achem que isso é bom, e sim porque acreditam que terão outra. É como a ideia da felicidade; uma coisa prática para manter a mão-de-obra entretida a achar que tudo corre bem enquanto trabalham imenso - aqui é a minha costela marxista a falar. MB: Venha ela. São coisas das quais não se falam - aliás quase nunca se fala de nada - e acha-se tudo ultrapassado porque dá imenso jeito. JMO: Claro, é um imenso tabu. Tipo: ai o Marx, que horror! E o Estaline. E cuba. Mas eu continuo a pensar de forma marxista. Sem grandes hífenes, como era habitual ou ainda é no P.C. tipo marxismo-leninismo. Eu recorro ao marxismo e mais enquanto método de perceber o mundo pois, continuo a achar que uma análise marxista nos faz perceber imensas coisas. Por exemplo, estas questões da morte, dos enganos das religiões, da exploração, da opressão. Repara: só existem mulheres, porque a categoria foi útil durante o advento do capitalismo para teres umas pessoas que se ocupassem da reprodução gratuita da mão de obra e para fundar a separação público privado, deixando que as forças capitalistas não pagassem a reprodução e a formação da mão de obra de que depois precisam para ter lucro. E depois também acho que o capitalismo foi-se apurando ao longo dos anos para construir formas de subjectividade que sirvam os interesses do capital. Imagina, por exemplo, a ideia de haverem trabalhos mais femininos e masculinos. Normalmente os primeiros muito mais mal pagos do que os segundos. O Marx deu-nos os conceitos para pensar isto e sobretudo mostrou uma quantidade de problemas no sistema. Aliás não há teoria do lucro sem o Marx que descreveu bem o sistema capitalista. Ah, e outra coisinha rápida, é que é possível mudar. MB: Então és um optimista. JMO: Não. Nada mesmo. Mas acho que há coisas que têm mudado e têm que continuar a mudar. Olha um bom exemplo, são os assuntos ligados às mulheres e a outros grupos oprimidos. MB: E não achas que acreditar na mudança é ser optimista? JMO: Não, é ser realista. Não é um discurso católico de esperança, é um discurso de olhar para as sociedades. MB: Mas, para mim, o optimismo não tem a ver com esperança, tem a ver com trabalho. JMO: Nesse sentido, sim. Mas nem é optimismo, do meu ponto de vista, porque é impossível que algo não mude em termos humanos. Porque sempre mudou e foi sempre mudando. Se há coisa que não existe é constância. MB: Sim, mas pode mudar para algo pior e é por isso é que falo no optimismo. JMO: Pois, mas eu acho possível que mude para pior por isso não é uma visão muito optimista. Não é mesmo. Eu acho que é preciso fazer um trabalho grande de dar às pessoas outras noções, de resignificar coisas. MB: Sim, mas por isso mesmo acho que enquanto se fizer esse trabalho, a probabilidade de existirem mudanças positivas aumenta. E por isso é que é importante não parar. JMO: Sim e já se notam. Por exemplo haver mais pessoas que não se acham nem homens nem mulheres ou que recusam esses rótulos. Mas ainda tens coisas horrendas; tens o Vaticano, tens o papa. MB: O papa é capaz de ser a coisa mais horrenda. JMO: E ele vem cá. Nesse plano, é mesmo um nojo. Vamos assistir aos políticos a rebaixarem-se perante aquela criatura, as pessoas com bandeirinhas a aclamarem o papa. O único teocrata europeu, que acha que foi nomeado por deus. MB: É até um insulto às ideias de Cristo. JMO: A mim isso tudo me repugna, até a própria figura de Cristo. Acho mesmo repugnante como figura. É tipo sacralizar a dor como mote para a humanidade, ou acreditar que salvou as pessoas por ter sido torturado e morto. Caso tenha sequer existido. Nunca percebi isto. Salvar de quê? MB: Mas isso foi o que inventaram. Já só sabemos as historinhas. Supostamente Jesus era o hippie lá da terra e na altura não havia televisão; as pessoas tinham que se entreter com outras coisas. E ele ela descendente boas famílias; a mãe da Maria era descendente do rei David. Jesus era o rebelde. Acontece isso imenso nas famílias de bem. No fundo Jesus disse à mãe que não queria continuar com aquela burguesice. É uma história como outra qualquer. Mas como supostamente é muito antiga, tem que se prestar reverência. É como quando se dá estrelinhas nos filmes antigos; dá-se sempre 5 estrelas porque é um clássico, mesmo que seja uma porcaria. JMO: Como é que tu vês as religiões? MB: Eu vejo as religiões como vejo a política: não quero pertencer a nenhum lado. Acho que limitam imenso a inteligência. JMO: Mas há religião no teu trabalho? Ou não ? MB: Não vejo religião em lado nenhum no meu trabalho. JMO: Eu também não. Mas podia haver um significado escondido. MB: Não. Nem vejo um lado ritualista que é comum haver na performance. Não vejo nada do meu trabalho como ritual. Houve uma altura que isso me interessou, mas interessou-me só saber que existe. Eu prefiro chamar repetição ao que se pode chamar de ritual porque não lhe dou essa carga sagrada. Como lavar os dentes. Eu nem sequer consigo manter um diário. Um diário no sentido de escrever todos os dias. JMO: Mesmo com o teu treino todo? MB: Se me proponho a isso sinto que ao terceiro dia já caio num vazio, que não tenho nada para dizer porque nem houve espaço para isso. JMO: Mas tu chegaste a fazer um livro… MB: E não me interessa escrever um diário a contar como foi o meu dia. Acho que isso não interessa para nada; se comi amendoins ou salmão… Sim, fiz um livro porque me propus escrever um diário de dez dias sobre um acontecimento específico. Se fossem dois meses acho que teria sido diferente. Ali era um trabalho de investigação, quase como se eu fosse um detective. JMO: E ‘Os diários de C.C. Rausch’? MB: Isso foi uma obra estranha. Foi uma espécie de transposição romanesca numa época muito dura. Nem sei muito bem como surgiu, mas sentia-me muito à margem. Muitos dos meus fantasmas estão ali. JMO: E gostas de revisitar os teus fantasmas ou de deixá-los estar? MB: Sim, sem dúvida. Tudo aquilo que eu fiz até agora, está escrito. MB: É preciso mandar os fantasmas para onde eles devem ir, por isso, tenho que lá ir falar com eles e explicar-lhes a situação para que não voltem a aparecer. Mas nessa altura eu não sabia muito bem falar-lhes; deixava que existissem e documentava a influência que tinham sobre mim. JMO: Isso é interessante. Poderes passar daí para a escrita; da escrita para a escrita. JMO: E agora já és capaz desse domínio? MB: Sim. Percebo muito mais rapidamente de onde vêm e porque é que estão ali. E então deixam de ser fantasmas passam só a ser avisos. Estou a querer dizer com isto que estou, portanto, menos gótico.  JMO: Mas por acaso essa incursão na literatura não te deu vontade de o fazer mais vezes? MB: Sim. E tenho imensa vontade de publicar coisas que escrevo, aliás porque acho que é quando penso melhor. Quando falo sinto que me perco. Ao escrever é diferente, há outro espaço. JMO: E há tempo para reflectir. MB: Grande parte do meu trabalho parte da escrita e eu gostava que no final fosse também escrita e não tão objectual. Estou muito interessado em fazer desaparecer a forma, mas não sei muito bem como. JMO: E a escrita seria uma possibilidade? MB: Comecei a pensar nisto por causa de estéticas e gostos e de como, por vezes, eles nos impedem de irmos mais longe. Na escrita isso também existe, claro, mas é diferente, não é tão gritante. E para mim a escrita tem mais a ver com ideias do que com a própria escrita, por isso apaga esse lado do estilo. É muito objectiva. Talvez seja porque eu não sou escritor. JMO: Sim, é um plano interessante de ver a questão: a escrita como modo de descrever, sem gostos ou estéticas por comparação à performance. MB: Sobretudo como um modo de pensar. Mas acho que ainda tenho muito que depurar para chegar só à escrita. Saber exactamente o que quero. Sempre fui melhor a saber o que não quero. Dia 3 JMO: Quando começou o teu interesse nos bambis, veados? MB: O início da história: Nova Iorque. Ano 2000. Museu de História Natural. Estava lá com o meu irmão - tivemos férias pagas pelo meu avô. O Museu de História Natural de Nova Iorque é gigante e estávamos a ver os animais, e quando passámos por uns Kooloo - acho que é assim, mas não tenho a certeza - que são da família dos veados, o meu irmão apontou para eles e disse: olha tu. Eu fiquei surpreendido e lá fiquei a olhar para eles - gosto sempre que me façam revelações sobre mim - e cheguei à conclusão que ele tinha razão; eu era muito parecido com eles. Portanto foi há dez anos atrás e por pura casualidade. JMO: E essa afinidade continua a existir. MB: O meu irmão conhece-me muito bem e aquilo ficou-me na cabeça. Depois comecei a investigar. Foi-se tornando mais e mais séria à medida que ia percebendo que não eram só parecenças físicas, mas que havia um lado simbólico que também tinha muito a ver comigo. JMO: Em que medida? MB: Em várias. Há o Bambi da Disney e aí entramos num pensamento recente acerca dos contos de fada - mas primeiro a simbologia; os veados (ou cervos) são símbolo da velocidade e da renovação, e eu acho que ambos estão intrinsecamente ligados ao meu trabalho e à minha vida - odeio separar assim os dois como se fossem duas coisas diferentes. JMO: Sim e no teu caso nem faz sentido a separação. MB: Para além disso o veado é, supostamente, um mediador entre o céu e a terra - e já falámos das minhas eternas buscas do equilíbrio. E é um animal solitário. Está muito ligado à ideia de acção. Por estas razões foi-se tornando importante. JMO: Começou a funcionar quase como um totem simbólico? MB: Sim, mas não conscientemente. JMO: E quando passa a integrar mais vivamente a tua vida, acaba por transbordar para o teu trabalho? MB: Acho que foi mais ao contrário porque repesquei a ideia do veado quando precisei de um nome para a minha persona musical. Depois disso é que foi crescendo. JMO: E daí o BlackBambi. MB: O BlackBambi tem a ver com uma altura de renovação, de revolução mesmo na minha vida. Marca um período em que tive que me reestruturar completamente. Foi perto da altura em que fiz a MB#1. Foram trabalhos onde precisei de afirmar que eu ainda existia por me ter deixado consumir numa relação e ter deixado de existir - ou ter tido essa sensação. JMO: E em que retomas? Ou melhor, em que te revives? MB: Sim. JMO: Estava a ver as fotos do MB#1. MB: A Loira, o Urso... JMO: Sim. O veado não aparece na performance. Aparece na música. Acho que temos quase ignorado a parte da música e está pouco abordado. A música começa quando, onde? MB: Sim, é verdade, não costumo falar sobre isso. A música existe desde os 13 anos, mais ou menos, porque queria fazer um filme com os meus amigos e precisava de uma banda sonora, então comprei um órgão e comecei a fazer músicas e a gravar tudo em cassetes. Tinha amigos com bandas e às vezes fazíamos músicas juntos. Fui sempre fazendo as minhas músicas num Casio dos anos 80. Depois na altura do electro-clash, li um artigo sobre o facto deste género estar muito ligado à atitude e postura em palco e à performance e pensei: porque não? E então juntei a Sofia, o António e o Luís e formámos os Hex. Demos uns quantos concertos mas depois eu e a Sofia viemos para Lisboa e então ficou tudo meio parado e acabámos por não fazer mais nada com os Hex. Continuei sempre a fazer as minhas músicas no órgão e depois em 2006 - na altura da grande crise emocional - decidi que ia aprender a fazer música no computador, e o BlackBambi afirmou-se nessa altura. Ah, não disse, mas o Veado é considerado um animal feminino, claro. O próprio Bambi é muito andrógino. JMO: E tem aquela questão com a família - é abandonado? ou a mãe morre? MB: Sim! É isso. Eu tenho pensado muito nisso estes dias por causa dos contos de fada. Acho que fui influenciado de tal maneira pelos contos que acabei por transformar a minha vida num; é a história clássica. O rapaz que sofre - que tem o pai autoritário ou ausente, que tem uma fada madrinha - no meu caso houve também a história do abuso quando era criança por isso ainda torna tudo mais dramático - há essa bruxa má, e depois há a minha tentativa de sair disso tudo e de viver feliz para sempre. MB: Há várias etapas; a vinda para Lisboa, o facto de não me apegar à família, a decisão de fazer terapia, a decisão de não me suicidar e de lutar contra esse ciclo negativo, de tornar isso um objectivo concreto a atingir. JMO: Queres dissecar isso? MB: Acho que, no fundo, tudo. Eu era suposto ter morrido tinha dois ou três meses, sufocado por almofadas que me caíram na cara, no berço. Mas fui encontrado a tempo pela senhora que tomou conta de mim desde sempre e que sempre foi a minha melhor amiga, conselheira, fada madrinha. Ela foi a minha âncora. MB: Se me ajudares; isto está tudo ainda muito fresco. O que o causou foi o ‘Pretty Woman’, que era um filme tipo conto de fada que eu via todos os dias quando tinha 9 anos ou menos. JMO: O ‘Pretty Woman’ com a Julia Roberts que é no fundo um Pigmalião. E acreditavas nessa possibilidade de regeneração? MB: Sim. Aliás essas histórias eram sempre as que me marcavam: a Tina Turner, o Van Gogh, a Pretty Woman, todos quebravam o feitiço de alguma maneira. JMO: Que é a lógica do conto de fadas. Através da determinação, de confrontar os problemas e de matar dragões... então é-se feliz para sempre. E o que é que te tornava essa experiência tão negativa? JMO: Que era a tua ama. MB: Bom, era a empregada da minha mãe, mas era ama, mãe, amiga, tudo ao mesmo tempo. Tem uma importância imensa na minha vida embora quase nunca fale dela porque falo mais dos próprios traumas… JMO: Portanto histórias que em que há mudança e em que a personagem rompe um ciclo negativo. JMO: E ela teve esse papel de tomar conta de ti? De cuidar? MB: Sim, exactamente. Se bem que o Van Gogh foi só depois de morto. MB: Não só de cuidar mas de me ensinar a cuidar de mim. JMO: Mas pegando na tua própria história como se dá essa renovação? JMO: E de te proteger e ensinar-te a proteger-te. MB: Sim. É uma mulher incrivelmente inteligente. JMO: E que pessoa é que achas que eles queriam? JMO: E sentias que precisavas de ser protegido especificamente do quê? MB: Acho que não queriam outra pessoa, acho que é mesmo falta de noção de como se lida com uma criança, de como se está sempre a dizer: não sejas assim e esse tipo de frases. E de, claro, fazerem comparações com o meu irmão - que é o que acontece sempre quando há irmãos. JMO: Claro. A tua família apercebeu-se dessa tua inquietação com a situação? De te sentires assim? MB: Bom, eu acho que não sentia isso. Não tinha noção. Mas havia o meu pai que era ao mesmo tempo ausente e ao mesmo tempo demasiado presente. Os meus pais separaram-se quando eu tinha 3 anos, mas o meu pai ia sempre almoçar e jantar lá em casa porque a minha mãe achava importante que estivéssemos com ele. Mas ele é uma pessoa desequilibrada, e para nós - mãe, irmão, Té e eu - era uma visita que não era muito bem vinda porque passava a vida a queixar-se de tudo, a ser altamente autoritário, inconveniente. Depois também fui abusado sexualmente pelo meu primo. Não sei muito bem que idade tinha. 5, 6, 7, 8? E nunca contei a ninguém até 2008. JMO: E foi durante muito tempo? MB: Não sei ao certo. Sei que foram três vezes diferentes, pelo menos do que me lembro nitidamente. JMO: E sentias que o teu contexto era por essas questões? Uma coisa que vivias negativamente uma experiência de abuso, o paradigma do pai ausente e autoritário… MB: Eu sentia que estava sempre deslocado, que nunca parecia que devia estar onde estava que não devia ser como era, que os outros esperavam que eu fosse outra pessoa e que desejavam isso. MB: As famílias acham sempre que se está a tentar ser rebelde, nunca querem ver para além disso. JMO: Escolhem não ver? MB: Sim, é mais cómodo. É mais importante ensinar-se que o guardanapo de pano deve ficar ao colo e que se deve agradecer sempre… JMO: Sim, percebo-te muito bem. Também tive um contexto um bocado assim. MB: Tu tens irmãos? JMO: Tenho um irmão mais novo. MB: E dás-te bem com ele? JMO: Sim, muito bem. Apesar de pertencermos a mundos completamente diferentes. MB: E também tiveste a experiência da ‘boa educação’ burguesa. JMO: Sim. E do colégio, e de recusar a masculinidade tradicional desde sempre. MB: E sentiste também que queriam ver uma pessoa diferente? JMO: empre, claro. MB: E como é que lidaste com isso? JMO: Muito mal no principio. Depois vim para Lisboa e cortei com isso. Acho que sempre recusei a masculinidade como forma de existência, porque isso seria ser como o meu pai - e isso era tudo o que nunca quis ser – que tinha um bocado esse paradigma do teu, de ser ausente e demasiado presente, e, para além, disso era violento comigo. Sempre tivemos uma relação muito complicada, assente no medo, numa espécie de ódio, mas tudo muito burguesamente camuflado. MB: O medo que supostamente é o respeito. JMO: Sim, mas é medo. Medo que ele tem de mim e medo que eu tenho dele, inculcado pelo sistema. MB: Sim, também aprendi isso; que os meus pais tinham medo de mim. JMO: Pois, o meu pai, sim. A minha mãe, não. E daí também ter uma relação muito próxima com ela e muito má com ele. MB: Sim, eu também era mais próximo da minha mãe, mas mesmo assim o pilar era mesmo a Té. Acho que era a única que sabia falar comigo. A minha mãe sempre teve muito medo de enfrentar a verdade. JMO: Como me recuso a entrar naquelas coisas de ser exibido como um prémio por ser investigador, doutorado, aos 33 - recusei sempre que o meu pai fizesse o filme de me mostrar como algo que ele conseguiu conquistar. MB: Parece-me que as pessoas têm filhos para preencherem as próprias falhas. JMO: Sim, mas depois a coisa corre mal e tudo lhes fura os planos. MB: Claro. Como é que se pode esperar que alguém seja aquilo que nós queremos? É irreal. JMO: Eu até diria que nem nós podemos esperar isso. MB: Aliás acho que quanto mais o esperamos mais somos levados para outro lado, e é por isso que a maior parte dos filhos é o oposto do que os pais queriam que eles fossem. E depois há aquele sentimento de “não era bem isto, mas pronto, respeito”, que é odioso. Os pais a quererem ser Deus, a definir o teu destino. JMO: Acho isso perfeitamente sinistro. O que é que achas que a tua família queria para ti? MB: Não faço ideia. Eu como era conhecido pela minha persistência e como decidi desde muito cedo que queria ser actor, acho que ninguém tentou contrariar. Sempre me deixaram seguir o que quis. Mas a minha mãe e o meu pai não têm aquelas profissões para os filhos seguirem. Acho que no fundo o meu pai queria que eu fosse um socialite bem sucedido, que acho que era o que ele, no fundo, queria ter sido. Por isso mostrolhe sempre quando sai alguma coisa sobre mim num jornal ou revista porque sei que fica contente. Dia 4 MB: E como é que vês esse processo? JMO: É difícil responder, pois ele vive numa espécie de concha onde tudo se passa como se não se passasse nada. Ia provavelmente achar que eu estou completamente doido e que nada do que digo é verdade. JMO: Acho que existe uma ficção política que o capitalismo e o modernismo identificaram com a ideia de um indivíduo, ou seja, não acho que o indivíduo exista na realidade. Criaram-se foram as condições para que essa construção assumisse uma “realidade”. Acho portanto que desse ponto de vista, a própria ideia de indivíduo é uma ficção com um objectivo político de normalização dos comportamentos individuais, e de poder controlar este ente individual biopoliticamente construído. Eu sei que sou muito foucaultiano. O que achas deste tipo de posicionamentos? MB: Por falar em verdade, qual é a tua relação com a verdade? MB: Isso para mim tem uma importância muito passageira. No dia seguinte já não interessa nada. Mas ele tira fotocópias e manda para o meu irmão e para as minhas tias. No fundo acho que o que querem é que sejamos bem sucedidos só que não confiam minimamente em nós. E então decidem tudo e acham que o que decidem por nós é o que está certo e é o que não pode falhar. JMO: Agora achas que isso continua a passar-se? JMO: Nenhuma. A verdade não é um valor absoluto. Acho que cada pessoa constrói versões, e mesmo aquilo que as pessoas acham que é um facto, eu tendo a ver como um account. Um exemplo fácil esclarece o que acho da verdade: o 11 de Setembro para os EUA, é um ataque à soberania nacional, um acto de terrorismo, uma chacina. Para certas pessoas americanas, trata-se provavelmente de algo encomendado pelo Bush, ou pelo menos incitado. Para os chamados fundamentalistas, trata-se de um acto de justiça e reparação. Ou seja, há aqui alguma verdade universal? Algo que te diga qual é o modo correcto como as coisas aconteceram? Pronto, a minha relação é essa. É uma postura de cepticismo em relação a qualquer tentativa de valor universal. MB: Não, de todo. Bom., mais ou menos. O meu pai é muito entendido em todas as matérias então tem sempre um bom conselho… MB: Eu tendo a ver a verdade como pessoal (como tudo, não é?). Com certeza tens uma visão tua do que é verdade em ti, para ti. JMO: É como o meu. Eu fico piurso. JMO: Sim, claro. Mas questiono-me adicionalmente: o que sou eu? O que quer dizer esse ente, o Eu? Ando a investigar isso agora; a ideia de que possa existir um Eu. JMO: Pois o meu também. Mesmo que sejam entrevistas sobre homossexualidade. A minha mãe diz que ele lê e gosta imenso, o que eu acho muito estranho. MB: Qual achas que seria a reacção dele ao ler esta conversa? MB: Acho que me sinto como na primeira vez em que vi o ‘Waking Life’ - acredito nisto tudo porque é tudo possível. E acho que me vou focando num ou noutro aspecto consoante o que surge na minha vida. JMO: Agora ando meio obsessivo com uma ideia; a ideia de que não nos é possível habitar os nossos corpos completamente, de que há demasiado no corpo que escapa a um controlo racional. E essa parte é o inabitável. Por exemplo, repara nas ansiedades de controlo que as pessoas têm - se conseguissem controlar totalmente não as teriam porque seria óbvio que controlavam e, no entanto, não controlamos sequer o nosso corpo, que nunca é nosso a meu ver. Não é muito simples de explicar porque estou no início mas dá para teres uma ideia. Controlas mais facilmente um outro corpo do que o corpo em que habitas. E depois contamos umas ficções sobre o nosso auto-controlo mas que é tudo completamente ilusório. Comecei a pensar nisto quando tive ataques de pânico. MB: Quais eram as causas dos ataques? JMO: Várias. Tinham que ver com coisas de infância, medos inculcados, com o sentir-me sozinho e, por isso, a dificuldade em controlar-me ser maior. Com problemas de auto-estima, também. A existência de um outro é muito útil para nos controlarmos. Já tiveste ataques de pânico? MB : cho que tive um. Senti falta de ar, os pulmões a fechar. Pode ser um ataque de pânico? JMO – Sim, pode. Sem outra causa aparente, provavelmente é. MB: Foi o ultimo natal que passei em família, por isso é que acho que foi um ataque de pânico. Tinha estado no lado do meu pai, sem o meu irmão, e sentime ultra deslocado. Depois cheguei a casa da minha mãe e ninguém reparou que eu lá estava. Fui para o quarto e tive esse ataque em que tive que abrir a janela - Dezembro, no Porto - porque não conseguia respirar e só soluçava. MB: Pois há assim umas histórias de terapeutas que não são terapeutas. JMO: Pois, neste caso a coisa correu mesmo mal porque sendo um consumidor de terapia, tenho formação em psicologia, e isso ajuda muito a desconstruir coisas que eles dizem. E acho que há coisas que outras pessoas deixam passar e eu não deixo. E tu? Fazes terapia ainda? JMO: Ar fresco é muito bom para isso. E tremias? Eu já tive várias vezes, mesmo muitas. Mas entretanto a terapia tem funcionado bem. MB: Sim. Estou em fade out. Agora vou só de vez em quando. Mas não faz sequer dois anos. Foi um trabalho muito intenso. MB: á quanto tempo fazes? JMO: Envolvia que tipo de coisa? JMO: Há perto de três anos. Tive uma experiência má e depois encontrei este terapeuta, que é excelente. MB: Havia trabalhos de casa. Escrever, principalmente. Mas partiu muito de eu estar constantemente a descobrir, de sessão para sessão, por onde é que eu devia ir. Levei a terapia muito a sério, como faço sempre. Mas, por exemplo, eu, à partida, quis que o terapeuta fosse uma mulher. MB: Eram os dois homens? JMO: Não, a primeira era uma mulher. Este segundo foi por recomendação de outro colega que achou que o António seria bom terapeuta para mim. E é mesmo. MB: E porque correu mal com a primeira? JMO: Ela foi homofóbica numa sessão e parou ali mesmo. Tinha umas crenças da proximidade entre homossexualidade masculina e feminilidade e eu passeime. JMO: Porquê? MB: Por causa do meu historial não confiava minimamente nos homens. JMO: Ah, mas sabes eu também fui aconselhado por outra colega minha, ex-terapeuta, que me disse para eu procurar alguém que fosse o contrario de mim. Percebi que seria um homem aparentemente hetero, com ar de surfista, mais novo. É o António. MB: Então ela tinha razão. Comigo foi mesmo pelos trabalhos de casa, ficava fascinado com aquilo que ela dava para fazer a uma amiga minha. Ficava cheio de vontade de fazer também. Depois não gostei propriamente de os fazer. Mas escrever uma carta ao meu pai, por exemplo, foi muito importante. Principalmente porque lhe tinha escrito uma em 2005 e pude comparar. Foi horrível e muito revelador. JMO: Uma que estava numa performance? MB: Não, essa nunca usei porque é mesmo hardcore. Mas foi na altura do Daddy Daddy. Essa carta serviu de base para a performance. JMO : Lembro-me bem do Daddy Daddy. Adorei. MB: Eu revi há pouco tempo e fiquei chocado. Era de uma agressividade total. Estou muito mais apaziguado, felizmente. JMO: É engraçado, lembro-me de ter ficado a gostar imenso do teu trabalho e de desvalorizar montes de coisas, comparando contigo. Particularmente algumas coisas chatas de dança. Usava um bocado o teu trabalho como referente para pensar coisas. Ainda uso. Como faço com a Carlota (Lagido) também. Porque me irritam tantas coisas nas artes performativas; irrita-me imenso a convenção, a construção de personagens assentes numa teatralidade, o acting, as dançolas desnecessárias, o modo como as pessoas dizem as palavras, os cenários, o chão de linóleo, as musicas para darem o ar de contemporâneo, os pseudo conceptuais, as piadolas…É mais do que consigo listar ! MB: Parece-te tudo falso? JMO: Parece-me tudo um cliché, um dejá vu, e falso nessa medida. MB: Qual achas que seria a saída? JMO: Sim, mas vendo também em relação ao teu desenvolvimento, e às coisas que se faziam, vendo em contexto, fazia muito sentido. JMO: Para muitas pessoas, irem fazer outra coisa. Para outras, darem-se ao trabalho de se repensarem, de reflectirem sobre o que estão a fazer, e não fazerem um trabalho após o outro em que é tudo a mesma porcaria. MB: Quando revi fiquei mesmo aliviado porque sei que já não estou ali. MB: Mas não achas que é comum um artista repetir-se? JMO: Acho e acho bem, desde que não seja uma receita. Tipo: faço esta peça assim e se resulta, todas vão ser assim. MB: Comodismo, insegurança. JMO: E mais, a questão dos públicos é mesmo o que me mete mais nojo para ser honesto. Em que o/a artista é uma espécie de puta do público. MB: Há uma coisa da qual queria muito falar e que é sempre um tema imparável, que tem a ver com “os novos públicos” e a “formação de públicos”, e com o facto das pessoas se queixarem do público, de que ele não existe ou que é elitista. Como se tivéssemos todos que, de repente, fazer arte popular e como se o público estivesse interessado nisso visto que em Portugal isso nem sequer existe, essa noção de público. JMO: Isso impressiona-me imenso. Como se a condição para a arte existir seja o público - é completamente imbecil. MB: E como se a vida fosse mudar porque há público ou “outro público”. Tenho uma noção muito básica de para quem estou a apresentar trabalhos e começou por causa das conversas do publico elitista, o publico burguês. Mas então quem faz é o quê? Vem de onde? Das favelas? Estão à espera de quê? JMO: E até parece que o Estado investiu minimamente nisso em termos de formação escolar na preparação de públicos. MB: É muito simples: eu acho que as pessoas que têm a possibilidade de realmente mudar alguma coisa são as pertencentes à burguesia - se é que se pode falar assim em estratos - porque é quem tem os meios para o fazer, e porque é quem domina o mercado e, por isso, é para nós mesmos que o fazemos, para pessoas exactamente como nós. JMO: Eu acho isso tudo uma imbecilidade total, todo esse discurso dos públicos. Repara que o estado não integra isso na formação das pessoas. E como é que alguém pode chegar a ir ver algo de arte contemporânea sem perceber nada de nada sobre como é que se chegou ali? MB: Sim, claro. Mas também a noção que se passa é que é tudo muito fácil: é só pôr umas pessoas a irem a um museu, não há trabalho nenhum por trás disso, nem esforço de nenhuma das partes. A arte é só para ver e dizer que se viu, portanto. É a isso que se resume. Tivemos 10.000 visitantes na inauguração de não-sei-o-quê e fica toda a gente feliz. JMO: Pois, mas é diferente. Quando me explicam cada movimento, a ideia subjacente a cada coisa, acho terrível e destrutivo. Corta a possibilidade de projecção. Não me faz impressão a conversa, faz-me impressão a descodificação. JMO: Sim, isso eu também acho extraordinário. E isso basta-me, não quero saber mais nada. E prefiro construir o que quiser sozinho, na minha cabeça. E ficar assim numa lógica de tecer significados meus em torno daquilo. MB: Isso aconteceu no curso de artes visuais com um artista que foi falar sobre o seu trabalho. Eu achei o trabalho fortíssimo e ele só falava dos materiais que tinha usado, de como é que tinha feito aquilo, como é que filmou, e eu estava a ter ataques porque ele estava a destruir o trabalho todo. E no fim perguntei-lhe porque é que ele estava a fazer aquilo e não outra coisa qualquer? E ele ficou muito embasbacado. Expliquei-lhe que estava a falar com artistas e não com comerciantes e ele lá me disse que começou por querer fazer arte quando percebeu que não podia ser o irmão, que ele não podia ser outro. E isso chegoume. Bastava-me essa frase. Quero lá saber se usa metal ou barro, não é esse o propósito de fazer. MB: Muitas vezes me perguntam: quem é o teu publico? E também: quem é o Miguel Bonneville? O que é que se responde a isto? Eu acho que há duas atitudes a tomar; ou realmente insultar as pessoas ou então explicar e ter paciência. Eu tenho adoptado a segunda até porque me obriga mesmo a pensar. JMO: Detesto uma coisa muito em voga também que é o quererem que o/a artista explique o que fez. No fim da peça vem a conversa com artista. JMO: Eu também prefiro mil vezes essa frase simples ou simplesmente nada. Dou-te um exemplo de um artista que eu adoro, o Felix Gonzalez-Torres; acho que odiava ouvi-lo a falar sobre os rebuçados que deixa no chão para as pessoas levarem. Ou os posters MB: Eu já detestei mais, até porque aprendi a gostar de falar sobre o trabalho. Mas também porque não falo sobre o trabalho em si. MB: Há uma coisa que adoro nele que é o facto de dizer que tudo o que fazia era para o namorado, que esse era o público dele. JMO: A mim fazem-me uma pergunta que odeio e fico com vontade de insultar também: como é que um homem pode ser feminista? Isso tira-me do sério. E acontece mesmo muito. Eu normalmente digo que não sou homem. Ou o que é que acha que é um homem? Há certas perguntas que te deixam numa posição impossível. Eu não sei muito bem responder a muitas coisas por isso é que escrevo e penso-as nessa actividade. Acho sempre que acção faz o actor e não o actor que a faz - isto em português percebe-se mal; the deed does the doer. No sentido que as nossas acções é que nos fazem. MB: Hoje disseram-me que as minhas tatuagens são um macho e uma fêmea; que a da direita é mais masculina e a da esquerda mais feminina. JMO: E tu? És a Trans que fica no meio? Fico perplexo com as certezas das pessoas em relação ao género; aquela coisa do género: eu sou uma mulher ou eu faço coisas masculinas ou esta tattoo é macho. Fico sempre espantado com o grau de certeza das pessoas. MB: Nesse contexto eu sou um homem que faz trabalhos de gaja fodida. JMO: Eu também, o mais possível. Homem que faz trabalhos de menina inconformada e mal fodida - não é isso que acham das feministas? MB: Pois, acho que sim. Ou então que são lésbicas. Sou então um gajo que faz trabalho de lésbica. Gosto. JMO: Eu acho-me politicamente lésbica, mas também não me dou muito bem com rótulos, e sou um caso meio chato de rotular. MB: Ainda bem! No outro dia também me disseram: és a gaja mais feminista que eu conheço. Mas acho que é culpa da Beauvoir, se bem que tento não infiltrá-la nas conversas porque se torna aborrecido estar sempre a invocá-la. Mas ela lá anda, nos meus bolsos e no meu sangue. JMO: No meu caso foi muito. Mas depois apaixonei-me pela Judith Butler. MB: A verdade é que me acalma. Quando estou em crise, ler Beauvoir é mesmo muito bom. Também te acontece com a Butler? JMO: Imenso. A Butler ela deixa-me em expectativa, é do tipo: o que é que ela vai dizer na próxima frase? Sinto sempre que o meu centro de gravidade se altera. MB: E a (Beatriz) Preciado? JMO: Também gosto muito, mas acho que a Butler já tinha posto aquilo de outra maneira. É um grande debate que tenho com as pessoas que trabalham comigo que são muito Preciado freaks. Para mim há para além da Butler outro nome forçoso que é a Donna Haraway; outra que me deixa sempre em estado aguçado. Fala sobre as fronteiras entre o humano e o não humano e do prazer na confusão de fronteiras: cyborgs, cães, vampiros, ratos patenteados em laboratórios. Mas o curioso não são os exemplos, é o que ela faz com eles. A melhor conferência que vi na vida foi dela. Deixa-me ir buscar uma frase dela. Esta é a primeira: “Identities seem contradictory, partial, and strategic. With the hard-won recognition of their social and historical constitution, gender, race, and class cannot provide the basis for belief in ‘essential’ unity. There is nothing about teeing ‘female’ that naturally binds women. There is not even such a state as ‘being’ female, itself a highly complex category constructed in contested sexual scientific discourses and other social practices. Gender, race, or class consciousness is an achievement forced on us by the terrible historica experience of the contradictory social realities of patriarchy, colonialism, and capitalism. And who counts as ‘us’ in my own rhetoric? Which identities are available to ground such a potent political myth called ‘us’, and what could motivate enlistment in this collectivity?” A segunda: “This is a dream not of a common language, but of a powerful infidel heteroglossia. It is an imagination of a feminist speaking in tongues to strike fear into the circuits of the supersavers of the new right. It means both building and destroying machi- nes, identities, categories, relationships, space stories. Though both are bound in the spiral dance, I would rather be a cyborg than a goddess.”. São as duas do ‘Manifesto for Cyborgs’. Mas há óptimas ideias noutros livros dela também. Eu adoro esta ideia de uma poderosa e infiel heteroglossia e do fim do mito da unidade e das feminists speaking in tongues. É uma linguagem de manifesto de ruptura com as convenções que me agrada. MB: E qual achas que é agora o caminho a fazer, no sentido de romper com as convenções? JMO: É este, sem qualquer dúvida. É destruir o género. É destruir a ideia de uma essência feminina que só serviu para dominar as mulheres, e o mesmo para os homens. É abolir imediatamente essas categorias. É sermos o que quisermos, tipo: B.I. sexo: azul, sexo: batata sexo: joão oliveira, sexo: no real sex. Acho que nunca fomos nem homens nem mulheres e muitos de nós nem sequer humanos. MB: Leste sobre @ Norrie May-Welby que conseguiu ficar com género neutro no passaporte? JMO: Li e adorei. Mas preferia que fosse azul, batata ou joão oliveira. E tu? O que te parece do caminho a fazer? MB: Parece-me que é muito parecido com o que dizes, se bem que acho que ainda demora muito e que primeiro teremos que chegar a um lugar onde as mulheres tenham realmente um lugar, que está a ser construído muito lentamente. JMO: Eu acho que é apenas um privilégio patriarcal heterossexual, por isso, nunca sei o que dizer. JMO: Há um livro da Virgina Woolf chamado ‘A room of one’s own’ que é sobre isso. Como reages ao machismo? JMO: Odeio aquela coisa do ‘gosto de homens masculinos’, ‘odeio bichas, nada contra, mas odeio bichas’. Ouvir uma pessoa gay dizer: odeio bichas, faz-me imensa espécie. MB: A própria palavra gay é devida a quê? A quem? À Judy Garland? MB: Acho que é uma reacção física de querer vomitar logo. Com coisas muito básicas como passar uma rapariga e de haver logo olhares para trás para apreciar o ‘material’, com a sorte de não ter havido um comentário pelo meio. É tão falso, tão construído, tão básico, que só me apetece desaparecer de vergonha. E quando digo rapariga também posso dizer rapaz, na verdade. JMO: Também eu! Eu fico a querer sair dali imediatamente. MB: E depois há quem defenda que é instinto natural. MB: Acho que é um fetiche de algumas pessoas e a doença de outras. JMO: Sim, também tenho imensos problemas com essas categorias, mas repara que acabamos por usá-las porque não há uma linguagem livre de categorias. MB: Eu tento fazer truques, como faço quando digo sapatos para não dizer nem ténis nem sapatilhas.  JMO: É uma dificuldade, mas também tento. JMO: Eu passo-me com esses discursos do ‘a vida é mesmo assim’! É biológica! E normalmente legitimam as coisas mais atrozes. Legitimam até a violação. Imagina que há teóricos que defendem que há vantagens adaptativas na violação. E a masculinidade, como te dás com ela? MB: E também tento não dizer ‘oh meu deus’. Prefiro dizer foda-se. É ridículo; eu não tenho um deus, nem tenho uma senhora que é nossa. MB : O que é isso?... É assim que me dou com ela. Fiz um trabalho sobre masculinidade na escola, quando tinha 16 ou 17 anos; escrevi um parágrafo e mostrei o ‘Boys Don’t Cry’, e achei suficiente. MB: Mas é muito difícil não dizê-las porque são expressões que toda a gente diz, toda a gente as usa. JMO: Nem uma Igreja. A mania das pessoas dizerem a Igreja. Mas qual igreja? JMO: E vive-se rodeado disso mesmo quando não se acredita em nada. MB: Sim, é por isso que tento evitar dizê-las. E garanto-te que tenho dito muito mais “asneiras” do que já dizia, mas ao mesmo tempo é muito libertador. Fodase é o novo Deus. JMO: Eu digo imensas vezes ‘foda-se’. E sim, liberta-nos do peso da convenção. MB: Vai ser o meu próximo facebook status: fuck is the new god. E já agora, o facebook? Qual é a utilidade que vês naquilo? JMO: É incontornável. Mas tenho uma relação complicada no sentido em que aquilo me dá informação e acesso rápido a pessoas que conheço, mas ao mesmo tempo coloca-me duas questões: gastame muito tempo e às vezes não quero estar a ir lá sempre. E a ti? MB: Eu fui muito resistente, mas depois percebi que me podia ser muito útil como plataforma de trabalho em todos os sentidos; num sentido de procura diária e de diário quase, de pesquisa. E depois eu não vejo telejornais nem leio jornais por isso também vou sabendo do que se passa por ali. Vou conhecendo coisas óptimas; bandas, autores, artistas... JMO: Pois, eu também estou um bocado alheado das coisas. Leio normalmente jornais estrangeiros. Não tenho a mínima paciência para a imprensa de merda que se faz cá. O facebook permite-te esse acesso? MB: Basicamente tenho um grupo criado para me poupar aos facebookers que não têm nada de interessante para dizer. No sentido de divulgar o meu trabalho é muito bom. Por isso acho que é como em tudo: se te protegeres, go for it.  JMO: Pois, eu tenho imensa gente bloqueada e isso facilita imenso. Mas há um lado que às vezes chateia que é a ilusão de que estás disponível quando na realidade não estás. MB: Pois há esse lado hipócrita dos amigos que não são amigos e que nem sequer queres ver e que não te querem ver a ti. Mas às vezes há desconhecidos que se tornam conhecidos muito importantes. Por exemplo, com as minhas tatuagens - o desenho original foi encontrado através do tumblr de uma rapariga que é minha amiga no facebook e que põe sempre coisas óptimas e tem óptimo gosto. Acho que se percebe muito bem o que é que as pessoas são através de uma página daquelas. Já soube de muitos desapontamentos facebookianos, de pessoas que não esperavam que as outras fossem tão vazias e tão desinteressantes. Acabas mesmo por perceber quais são os interesses das pessoas. Há os casos de pessoas conhecidas que até achas engraçadas mas depois percebes que não e que não têm nada a ver com a imagem que tinhas delas; desfaz-te logo as projecções. E também acontece o inverso. E também percebes quem é que está lá só para cuscar. Por isso, no fundo, percebes muita coisa através do facebook, que supostamente é um gadget fútil, e afinal pode ser um revelador de verdades. Dia 5 JMO : E o que é que o teu pai acharia ou diria desta conversa? MB: Provavelmente não diria nada. Se fosse publicada num livro, talvez comprasse, me felicitasse, mas nunca falaria sobre o assunto - pelo menos não directamente. O meu pai tem o hábito de escrever cartas para evitar confrontos pessoalmente. JMO: Escreve-te cartas? MB: Sim. Agora menos, mas era tudo sempre falado por carta. No entanto defende que “a falar é que a gente se entende”. Acho que isto resume bem o meu pai. JMO: Isso é um bocado passivo-aggressivo. MB: Não é um bocado, é imenso. E é também uma atitude muito cobarde. Por isso agora posso dizer que depois desta frase, quase com certeza receberia uma carta ou um outro presente. No natal aconteceu isso devido a um artigo que saiu na Pública no dia da mãe, em que eu falava da minha mãe e um bocadinho (mal) do meu pai. No natal ele dá-me sempre a minha prenda de anos adiantada e este ano era um retrato antigo da minha mãe assim do género “não te esqueças da defunta”, a preto e branco. Foi sinistro. Quando o confrontei e lhe disse que não tinha percebido o significado daquilo, disse-me que já que eu gostava tanto da minha mãe, que me dava um retrato. Não exactamente com estas palavras mas a tentar ser irónico. Disse-lhe que estava bem. E agradeci. O que é que se pode fazer? JMO: Pois, super passive-aggressive. MB: Ainda não falaste sobre o teu percurso e encontro com os feminismos… JMO: Comecei classicamente; formação em filosofia no secundário e depois psicologia, que odiei. E é nesse quadro que apareceu a Lígia Amâncio, com quem fiz tudo academicamente até ao ano passado, até ao fim do doutoramento, e que me deu a conhecer a cena feminista. Eu detestava tudo na psicologia tirando os chamados sectores radicais. Assim fiz tese de licenciatura, mestrado e doutoramento com ela, em estudos de género. Portanto digamos que isto foi tudo uma coisa muito mental e racional até uma certa altura. MB: Os estudos de género englobam o quê? JMO: Englobam tudo a meu ver. O género trata da produção de corpos sexuados a priori, ou seja, antes de haverem os corpos já há o género que determina quais as leituras que aqueles corpos vão ter. No meu caso fiz vários estudos dentro da área desde as coisas mais clássicas, como a questão do trabalho e emprego - que sendo importante, não é bem aquilo que gosto – e depois trabalhei imenso sobre a questão do aborto na tese de mestrado, que é sobre o discurso oficial da Igreja Católica sobre o aborto. No doutoramento trabalhei sobre o debate do aborto em Portugal. A meio do doutoramento, começaram a surgir convites e interesses para expandir-me mais para a área das sexualidades e agora estou mais aí. Apesar de ser sempre numa perspectiva que cruza o género também. A minha leitura d o feminismo é que é um processo/projecto emancipatório que abriu a categoria do humano a grupos que sempre foram excluídos da ideia de humano; as mulheres, em primeiro lugar, e depois todos os grupos minoritários “raciais”, colonizados, homossexuais, lésbicas, trans, intersexos. A reflexão e acção feministas, apesar de todas as suas contradições, abriram a categoria do humano a estes grupos todos. É a minha teoria sobre o feminismo e a minha prática feminista é nessa linha, desse contributo. Depois também há um lado de reflexão e acho que o feminismo foi e é a teoria que mais revolucionou as ciências sociais porque como diria uma colega minha, a Rhoda Unger, nos anos 60, nos laboratórios de psicologia até os ratos eram machos. Ou seja, as ciências não faziam a mais pequena ideia sobre mulheres, quanto mais outros grupos. Era tudo na base de estereótipos. O feminismo veio abrir isso tudo. Nas artes a mesma coisa, que é hoje onde gosto mais de ter uma intervenção. Basta pensarmos na Guerrilla Girls. MB: Em todas as mulheres artistas basicamente... que só começaram a ter algum crédito há muito pouco tempo. JMO: Tirando aquelas muito reaccionárias que acham que o feminismo não teve nada a ver com isso e que tudo se deve ao seu esforço. MB: E aquelas que pensam que o feminismo é uma coisa ultrapassada? Porque há muito essa ideia. JMO: São as mesmas normalmente. É aquilo a que é designado por discurso queen bee; é tudo graças a elas, que são extraordinárias e não precisam de nada. Sem sequer pensarem que há pouco tempo atrás nunca teriam sequer um peça sua numa colecção por melhor que fossem. MB: Também há muito a noção de que o feminismo é ser-se contra os homens, é ser-se lésbica e querer queimar soutiens a torto e a direito. JMO: Sim, quando nunca se queimou um soutien e as própria lésbicas nos anos 60 foram muito escorraçadas do chamado feminismo liberal, consideradas como a Lavender Menace - a ameaça lésbica às conquistas da mulher WASP (White Anglo Saxonic Protestant) heterossexual. Isso é um retrato muito caricatural e irrealista do feminismo, que é um movimento de aliança estratégica onde está uma diversidade de pessoas. MB: No entanto existe e bem me lembro de me contares daquela senhora que te perguntou porque é que fazias o que fazias, visto que já não tinha nenhum sentido, e que as mulheres já tinham conquistado os seus direitos. JMO: Acontece imenso virem-me perguntar isso e coisas parecidas. Só mostram a sua ignorância do fenómeno feminista. MB: Gostava, se quiseres, que deixasses uma mensagem a essas senhoras. Pode ser? JMO: Às senhoras e aos senhores, o que tenho a dizer sobre isso é que leiam. Não basta as pessoas acharem isto ou aquilo quando o que dizem está mais que dito e redito, e sobretudo, não pensem que são super liberais ou super progressistas por dizerem isso do feminismo. Só mostram o medo, a incompreensão e a falta de informação. O feminismo não é uma coisa do passado, o feminismo é o nosso futuro, e quando tivermos chegado lá, de certeza que irão perceber. Até lá, informem-se. Sobre o género também é preciso dizer, que estudar ou trabalhar o género é trabalhar sobre a violência de uma imposição forçada. Um bom exemplo do género a trabalhar é o caso da Gisberta. Montes de pessoas já levaram com isso ou com coisas parecidas em versão redux. Essa história é sinistra e repara como os meninos que a mataram funcionaram como os guardiões da ordem do género e os jornais a trataremna como um transexual - no masculino. Isso para mim atinge um grau de ofensa a toda a gente numa sociedade. É quase como aquelas execuções na idade média, se te portas mal, se sais da norma fazemos-te isto. Repara como a homofobia coexiste tão bem com as normas de género - quanto mais normativo é um sistema, mais força tem o outro. O feminismo serve para foder os dois. Nunca sentiste essa coisa da violência homofóbica na pele? MB: Sim. É sinistro seres odiado de morte só porque existes. Já fui insultado na rua mais do que uma vez, só porque sim. JMO: Eu também. É como se a tua existência lançasse uma sombra na masculinidade hegemónica deles, que eu acho ser uma construção super fantasmática e frágil, porque a mera existência de um outro, eventualmente não hegemonicamente masculino, os ameaça e os coloca em cheque. É que a masculinidade é mesmo muito frágil e a construção de si alicerçada nisso, nesse privilégio, implica um jogo constante de reafirmação identitária. Tipo: eu tenho que provar constantemente que sou homem ou deixo de sê-lo. Uma maneira de o fazer é policiar os outros, fingir que se é tão normativo que se pode controlar o comportamento dos outros. MB: É uma crença. É como acreditar em deus. É preciso ter-se alguma coisa a que se agarrar. JMO: Sim, é uma crença desse tipo. É tão fantasmática como acreditar em deus. MB: São crenças que te fecham todas as oportunidades de viver com todas as possibilidades. JMO: Mas que dão umas certezas identitárias reforçadas pela repetição de comportamentos. Tem muito a ver com o comportamento obsessivo. MB: As pessoas não querem ser livres. JMO: As pessoas preferem agarrar-se à certeza de serem alguma coisa e depois dizem enormidades sobre a crise de valores. MB: Onde é que se aprende que se é alguma coisa? JMO : Socialização, família, escola, estado, igreja, nos aparelhos ideológicos de estado, mas que estão todos em crise como dizem os sociólogos e economistas de direita. É uma crise terrível - quando os ouves a descrever o que entendem por crise, que se tornou um chavão fácil, chegas à conclusão simplicíssima que se tratam apenas de mudanças. MB: Mudanças já no limite do necessário. JMO: No caso da família, a crise é haverem múltiplas formas de família que eles se recusam a aceitar, e que sempre existiram. O caso da escola é outro semelhante. Repara como a crise que eles descrevem é a falta de disciplina e de respeito pelos professores. MB: Sim, a crise, basicamente, é já não estarmos - supostamente - sob um regime fascista. JMO: Sim, a minha leitura é essa. É claro que há problemas em todas estas instituições mas a coisa não se resolve simplesmente pela brutalidade da ordem ou por disciplinar. MB: Se for por aí - e é bem capaz de ir, é o mais provável – vão rebentar manifestações do pior. Não sentes tudo a fervilhar? Eu sinto que por qualquer coisinha as pessoas explodem. JMO : Sim, claro. Sinto que há muita contestação, mas muito mal dirigida, a meu ver. Noto que os media acicatam isso e que querem mesmo que uma coisa dessas aconteça, ou que uma qualquer Ferreira Leite (hahaha) nos salve a todos e a todas. Afinal a montanha pariu um rato e a senhora não salvou ninguém porque ninguém salva nada. Ou a coisa muda colectivamente ou ninguém salva nada. Eu fico espantado com a reacção das pessoas sinceramente. Repara que tens uma enorme taxa de gente que não vota, que abdicam de escolher, e depois queixam-se imenso e choram imenso e criticam imenso e acham imensíssimas coisas. MB: Eu era assim até há bem pouco tempo porque não tinha mesmo noção de nada, nem queria ter. Porque odeio política no sentido dos políticos. Achava que devia ser apolítico e pronto. Mas entretanto mudei radicalmente de opinião porque isso também não muda nada. Continuo a não querer pertencer a partido nenhum, nem quero, mas sei que posso contribuir para alguma mudança de outras formas. JMO: Sim. No meu caso é diferente; sempre me interessei por política. Acho que a política é a linguagem das sociedades quer se queira quer não e que tudo são relações de poder. Não é uma coisa que eu deseje, é uma evidência para mim, então interessei-me e comecei a querer saber mais coisas. Sou mesmo muito politizado e membro de um partido, do Bloco, mas nunca guiei a minha intervenção sobre o mundo a partir dessa pertença. Sendo de um partido, frequento tudo muito pouco mais por falta de tempo, mas interessa-me o que se passa politicamente. Hoje em dia interessam-me muito as questões da igualdade e as coisas da cultura porque acho a área da cultura a mais desqualificada em termos de orçamento do estado e aquela que deveria crescer mais. Acho que a política da cultura como parente pobre, faz o país muito mais pobre. MB: Pois mas eu acho que é isso que se quer; um país pobre. Porque não há esforço nenhum para que aconteça o contrário e somos sempre os coitadinhos, sempre com a história da crise e dos bons velhos tempos. JMO: Sim, em absoluto. A cultura nunca saiu da crise. Nos velhos tempos, nem havia! Acho que as pessoas não se apercebem do que este país mudou e da miséria bolorenta em que se vivia. MB: Mas se ninguém pára para pensar, como é que se pode perceber uma coisa que seja? JMO: Claro. Também sou dessa opinião, de que as pessoas não pensam assim tanto e engolem as porcarias que a televisão lhes vomita todos os dias. MB: És muito generoso. Eu acho que as pessoas não pensam mesmo nada, nem querem, porque dá muitas chatices. No entanto, a diversão é queixarem-se constantemente. JMO: Incomoda-me muito essa lamúria constante, em surdina. Sabes que agora o que me irrita mais são os media, especialmente os jornais, porque a televisão já tento não ver. O jornal que leio mais é o Haaretz; é um jornal de esquerda progressista israelita, anti-sionista, porque é outro dos meus interesses e tenho aprendido imenso sobre como conjugar uma posição que recusa a colonização e expansão sionista sem cair no anti-semitismo de algumas posições que oiço. Fico chocado com alguns argumentos da esquerda em relação a Israel. MB: Pois estou completamente por fora desses assuntos. JMO: Isso é um tema que ando a ler. Agora que temas te ocupam, para além dos que já discutimos? MB: Os meus temas são sempre os mesmos... agora estou interessado na tal ideia do conto de fadas e acho que vou trabalhar sobre essa ideia para a performance que estreará em Novembro, que é basicamente um filme sobre a minha vida amorosa/desastrosa. JMO: E andas a recorrer aos contos de fadas? MB: Não propriamente. Ando a ver a minha vida como um conto de fadas; a história do príncipe encantado, isso tudo, parece que está incrustado em mim e quero perceber de que maneira não estará incrustado em todos. O feliz para sempre, o príncipe, a ideia de que temos que esperar passivamente, de que devemos ter relações monogâmicas, que devemos casar, que há alguém destinado para nós, alguém que nos escolhe. JMO: Isso é género. MB: É a vida. Não está toda a gente à procura do mesmo? Da história da Disney? JMO: Não sei. Tenho dúvidas se isso se encaixe na vida de toda a gente. MB: É claro que não devo generalizar, mas há uma ideia romântica do amor. E de projecção e idealização e de possessão. JMO: Sim, isso há. Mas hoje em dia há ideias concorrentes a essa. MB: Sim, precisamente. Acho que preciso de as pôr em confronto. JMO: Por exemplo, a recusa disso, os poliamor. Os e as. MBvSim, mas é uma ideia que me faz confusão, porque não sei se seria capaz de viver numa relação que são várias relações. JMO: Eu também não sei, mas a ideia n me faz confusão. É como o casamento, eu não queria, mas não me faz confusão que alguém queira. JMO: Acho que não há nada como questionar. Sinto que é o que ando sempre a fazer. A desconstrução como prática diária. MB: E é isso que me faz querer pensar porquê? Porque é que eu não seria capaz? Confusão neste sentido. Não confusão da ideia em si. MB: E a construção também - para depois voltar a destruir.  JMO: Claro, desconstruir, reconstruir, em circulo. Cada vez com menos certezas. JMO: Ah, isso é outro patamar. Compreendo. A ideia não te faz confusão, viver a ideia é que te faz confusão. MB: Isso. Acabo sempre por sentir que tenho que fazer uma escolha porque acabo por ter uma preferência, mas não sei se isso é porque foi o que me foi ensinado ou porque simplesmente é assim. JMO: O ser assim não acredito - nunca acreditei nesse argumento. MB : Pois, na verdade, eu também não. JMO: Ser ensinado é o que me parece mais provável. MB: Acho que preciso esmiuçar o que parece que não está escondido, o que é supostamente seguro e imutável. JMO: Sim, questionar esse posicionamento. E se concluíres que queres ser poliamor? MB: Logo verei o que fazer e como trabalhar isso. Não te esqueças que estou entre o ‘Pretty Woman’ e o ‘Crash’ - acho que é altura de perceber porquê. Dia 6 JMO: Há imensas coisas que me são preciosas das quais não gostei nada à primeira. A última foi um filme que sei gostas, o ‘Gerry’ do Gus Van Sant. MB: Sim. Porque é que não gostaste? JMO: Fui vê-lo ao cinema quando saiu e devia estar com a companhia errada. Sabes que detesto ir ao cinema, apesar de adorar cinema. MB: Porquê? JMO: Odeio ter gente à volta a fazer barulho; aqueles barulhos humanos do tipo respirar, mexerem-se nas cadeiras, falarem, interromperem a minha relação com o filme… MB: Eu odeio quando chegam depois do filme ter começado e também quando há pessoas que comentam o filme enquanto o vêem. JMO: Odeio isso tudo! E o ‘Gerry’ foi um desses casos. Até o associei estupidamente a um survival movie. Mas depois revi-o aqui em casa, sem incómodos, e fiquei encantado com o filme. MB: Eu adoro o filme. Acho que o fui ver duas vezes ao cinema, mas a sessões onde não havia ninguém. JMO: Pois, isso para mim é um grande problema. Os outros retiram-me a intimidade com o filme. É isso e pessoas que se riem em cenas em que estão chocadas, e a sua fuga é rirem. MB: Sim, isso aconteceu imensas vezes quando fui ver ‘A Pianista’. As pessoas tinham ataques de riso quando ela tentava ter relações com a mãe. JMO: E no ‘Anticristo’. Eu fico com vontade de as expulsar dali, fico furioso mesmo porque me cortam o prazer cinemático. Por isso hoje em dia ver em DVD é a melhor solução. Perdes é o ecrã e o som dos cinemas que são muito melhores. MB: Tens que descobrir as sessões perfeitas. Há sempre umas sem gente ou quase. Eu agora quase só vou à cinemateca e é mais difícil ter sessões maradas, mas também acontece. Aliás acontece até ter realizadores famosos a fazerem comentários em voz alta do género centro comercial, o que é ainda mais triste. JMO: Dá vontade de ir boicotar os seus filmes. MB: À primeira não gostei nada da Beauvoir; achei-a pirosa. E à primeira também não gostei nada do Cronenberg; achei-o série B. JMO: É engraçado como depois se muda de opinião. Pergunto-me sempre qual será o ponto de mudança, o que é que te faz mudar de opinião? MB: Há sempre qualquer coisa que me mantém a curiosidade… Não gosto, mas… é o MAS. Acho que tem muito a ver com a altura que estás a viver. Há qualquer coisa que te atrai mas ainda não estás preparado para perceber ou qualquer coisa assim. JMO: Sim, acho que isso tem imensa influência, essa preparação para o acto de receber. MB: Com o ‘Crash’ foi assim; vi-o uma vez e pensei: não sei porque é que falam tanto nisto é um filme serie B - tinha 15 anos. E depois pensei: bom se calhar escapou-me alguma coisa vou ver outra vez. E depois pensei: sim, há qualquer coisa aqui, vou ver outra vez. Até gosto disto, vou ver outra vez. E depois vi-o quase todos os dias. JMO: Essa descrição é quase um acto de rendição, de deixar que a obra te invada. MB: Sim, mas quando falo nisto as pessoas ficam a olhar para mim de lado... Tinha 15 anos e é o Crash, não é propriamente um romance de iniciação. JMO: Eu não acho nada estranho. MB: Obrigado!  JMO: Também tive experiências assim muito cedo. Uma foi engraçada; a minha mãe ofereceu-me os ‘Versículos Satânicos’ do Rushdie, aos 12 anos. Xmas gift. E o livro fascinou-me imenso - aquela confusão entre humanos híbridos, de anjos e demónios, as alegorias, a política o sexo e a religião misturados daquela maneira. MB: E voltaste a lê-lo mais tarde? JMO: Sim, claro. MB: E como foi? JMO: A mesma relação de encanto mas muito mais estruturada, com outras ferramentas de leitura. Mas o encanto inicial ficou lá. Outro bom exemplo foi quando vi, mais tarde, o ‘Salô’ do Pasolini. Toda a gente a dizer-me horrores do filme. É um dos meus filmes preferidos. Sempre me interessei imenso pelo modo como toda a filosofia, nomeadamente a alemã, converge a partir de certo ponto para tratar a dominação e para a justificar. E esse filme relê muitas dessas coisas. MB: Eu também gostei imenso do filme quando o vi, mas só o vi uma vez. JMO: Eu vi várias. Marcou-me muito. Depois, claro, começas a ganhar ferramentas para leres tudo aquilo de outra maneira. Outro é o ‘Teorema’ também do Pasolini, que eu adoro absolutamente. MB: Amo esse filme de morte. E acho que tem muitas parecenças com o ‘Crash’, como aliás a maior parte dos filmes que eu gosto, em que há sempre um elemento catalisador que chega para destruir as regras de bom comportamento, a vida ‘normal’. JMO: Eu gosto desse tipo de filmes que colocam o espectador perante as regras nuas e cruas, e lhes retiram a sua legitimação. MB: Há uma pergunta que te quero fazer que acho que tem a ver com isto tudo que é sobre a função da arte: se achas que a arte tem uma função e, se sim, qual é? Ou quais são? JMO: Eu diria que não há resposta para isso ou não há uma resposta correcta. A minha seria muito relativista: pode ter e pode não ter. Primeiro porque não acredito em funções, segundo porque acho que a arte pode ter é leituras, agora funções, duvido. Se enquadramos a questão do ponto de vista de interpretações leituras, aí tem seguramente nem que sejam estritamente estéticas. Mas é muito raro que as pessoas construam uma leitura puramente estética, a não ser que sejam completamente quadradas em termos de formalismo. Mas mesmo aí, acho que estão a esconder a leituras que fazem que extravasam o puro formalismo. Acho que o que me interessa a mim são as possibilidades que a obra me dá para me projectar lá, para atirar para essas leituras o que quero. Um bom exemplo disso é o Lars Von Trier.; serão os filmes dele misóginos? Eu diria não, de todo. Mas é possível ler-se misoginia ou ler-se o grau de misoginia das sociedades, que é um posicionamento diferente. MB: Então tem uma função específica, geral, ou uma função individual? JMO: Não acho que função seja adequado. Função é subordinar tudo a uma lógica capitalista que as coisas têm que existir para um sistema coerente que lhes gera valor em virtude da sua função num mercado. Eu prefiro pensar que a arte dá-nos possibilidades de pensarprefiro mesmo a expressão possibilidade. Por exemplo, que função tem a performance? Tem uma possibilidade de te dar a ver um mundo a partir daquela perspectiva, oferece-te um plano de interpretação. MB: Para mim tem uma função muito clara, mas porque a faço acontecer. JMO: Sim, mas que função é essa? É que função implica uma concepção de que a cultura é um todo coerente, com cada prática a ter um determinado papel nesse todo. Eu acho isso uma visão do mundo nos anos 50. Funções para mim têm os electrodomésticos. MB: Sim. É uma questão então de escolha de palavras. Que sentido tem? Que função tem? Que possibilidade tem? JMO: Sim, mas as palavras constroem a nossa realidade. Nós somos basicamente linguagem. MB: Não estou a dizer que não. Estou a tentar encontrar uma que substitua a ‘função’. JMO: Estive a ler uma coisa sobre isso na internet e há um teórico do funcionalismo, o Parsons -americano branco wasp - que teoriza sobre funções sociais e papeis sociais, e na casa dele tudo estava codificado de acordo com a essa lógica; a mulher fazia o jantar, a filha mais velha passava sempre a salada, a outra filha servia sempre os pratos… A palavra função faz-me sentir em casa dele. MB: The modern world. JMO: Sim, a modernidade - esse grande monstro. E a modernidade nos USA - the belly of the beast. MB: Eu acho que a ‘função’ também tem muito a ver com a ‘sacralidade’ no caso da arte, ou melhor, tem a ver com a modernindade - eu não estou muito lúcido hoje - da arte como coisa sagrada que deve ter uma função. Isso ainda existe e eu acredito muito pouco nesse lado sagrado da arte. JMO: Eu não acredito mesmo. E porque é que acreditas pouco? MB: Porque acho que a arte não deve ser sagrada. Deve ser integrada no diaa-dia como uma parte básica… acho que o que quero dizer é que acredito que deixe de haver estes conceitos todos de high art e que passe a ser uma prática diária de toda a gente, como te disse acerca da autobiografia. E acho que cada vez mais isso se torna possível, tudo está acessível para que as pessoas se possam ver; hoje em dia toda a gente se filma, faz filmes, põe no youtube, etc. É claro que podem não estar com objectivos artísticos ou filosóficos, mas acabam por estar indirectamente. Faz algum sentido? JMO: Sim. É uma certa democratização da arte. Prefiro isso ao termo massificação, mas democratização também concordo. No meu caso, por exemplo, vejo o meu trabalho mais como artístico do que propriamente científico naquele sentido tradicional. MB: Eu quero acreditar num futuro em que o trabalho tenha esse sentido de artístico, de ser uma investigação, e não uma coisa que tens que fazer para sobreviver. Porque podíamos perfeitamente viver sem esse lado estúpido das 9 às 17h e crises da bolsa… JMO: Eu vivo sem esse lado, felizmente. Neste momento, tenho esse privilégio e sabe –me muito bem, o que se repercute no trabalho. MB: Claro. Mas deixa de ter essa conotação de trabalho como demónio. JMO: Sim, completamente. MB: Tenho uma amiga que é acusada de trabalhar pouco e isso põe-me a pensar mesmo nas coisas ridículas que se dizem. Como se o objectivo último fosse matares-te a trabalhar. JMO: Exacto. Ou toda a tua vida ser estruturada em torno disso. Apesar de acabar por não ter grandes feriados ou fins de semana, no meu caso, não me sinto a fazê-lo por uma obrigação ou por uma determinação superior. Ler livros faz parte do meu trabalho, claro. Mas lêlos dá-me imenso gozo. MB: Mas não estamos sempre a trabalhar? Eu sinto que tudo é trabalho. Não há separações. Não há modernidade. JMO: Sim, estamos. O nosso trabalho é cuidar de nós e isso é cuidar de nós também. Outra coisa que me acontece é apaixonar-me muito por certas autoras e autores e investir emocionalmente neles e nelas. Como a minha paixão de sempre, o Michel Foucault - na sextafeira dei uma aula em que falei nele e aquilo sai-me tudo com paixão. Ou com a Butler, é a mesma coisa. Onde é que se separa trabalho da vida? Não separo, pelo menos na minha. MB: A ideia que passa é como se ao trabalhares não estivesses a viver. Se calhar há muita gente que se sente morta quando trabalha. JMO: Pois, a mim, é uma das coisas que me dá vontade de estar vivo. Depois também tenho um gosto enorme em dar aulas, dá-me mesmo um prazer particular. Especialmente quando tens pessoas que te interpelam e questionam o que dizes. Aconteceu-me esta semana estar a dar uma aula de introdução à psicologia gay, lésbica, bi, trans e queer, e houve uma aluna que me fez montes de perguntas, e isso deu-me um prazer imenso, precisamente porque a fiz questionar-se e questionar-me. E isso é o melhor que podes esperar. Muito melhor que me virem dizer que adoram as minhas aulas ou assim. MB: Sim. Percebo isso muito bem. Se bem que às vezes também é só isso que podes dizer; que adoras. JMO: Sim, também me aconteceu com um aluno de doutoramento que me veio dizer que a minha aula tinha sido a melhor que teve na vida e eu fiquei super estranhado e até envergonhado. Mas por vezes, acho que sim, que não dá para dizer mais nada. MB: E agora uma frase do Gide: “Everything has been said before, but since nobody listens we have to keep going back and beginning all over again.” JMO: É mesmo. Há sempre um estupor qualquer que quer inventar a roda outra vez. MB: Acho absurdo falar-se de originalidade. É apenas um fenómeno puramente formal. E mesmo assim... Com isto podíamos voltar à conversa do ‘experimental’. JMO: Sim. Em que sentido? MB: Por exemplo, com a música experimental, o que se faz hoje já foi feito há quarenta anos atrás. O que é que se está a experimentar então? O que é que é assim tão inovador? JMO: Eu acho que é tudo desadequado em termos de conceito, o problema está aí. Inovar, novidade, experimental, implicam uma abordagem assente na ideia de progresso. MB: É como me dizerem que as minhas performances são muito radicais. Eu não sou um accionista vienense e mesmo que fosse não seria radical. JMO: Achas que essa concepção afecta o modo como o teu trabalho é recebido? MB: Não sei. Deve afectar, claro. Acho que só demonstra ignorância e preguiça. Não tenho a pretensão de inovar, já disse e repito. Não sei o que isso é. JMO: Tens que explicar que não és moderno e como tal não acreditas na ideia de progresso e inovação em relação a um passado. MB: Será que a ignorância é devida à ansiedade? Ao facto de se querer ser surpreendido? JMO: Não sei. Como não tenho essas crenças, tenho dificuldade em perceber as motivações por detrás disso. MB: Está-se sempre à procura de alguma coisa que seja melhor, mais surpreendente, mais inovadora, mais intoxicante. No entanto nada disso existe. O aborrecimento é o inimigo, mas não se constrói nada que o elimine. É apenas uma repetição de distracções: ao fim de semana sai-se à noite, bebe-se, no fim de semana seguinte é o mesmo. JMO: Como é que vês então o trabalho artístico fora desse paradigma da inovação e da originalidade? MB: Vejo como plataforma de conhecimento. Construir a minha vida como uma obra de arte o que, no fundo, significa estar atento e fazer o meu melhor. MB: Mas acho que estou diferente e noto isso nas reacções dos outros, dos meus amigos. E de repente penso: realmente estas pessoas que me conhecem há tanto tempo têm mesmo mérito; eu era abominável. No outro dia, por exemplo, estava no Porto com dois amigos meus - dos meus amigos mais antigos - e entrou um senhor a pedir dinheiro e veio directo a mim, começou a dar-me beijos nas mãos, e a pedir-me dinheiro, e eu pus-lhe a mão no ombro e disse: oh meu senhor, pronto, não faça isso. não tenho nada para lhe dar. Quando olhei para os meus amigos eles estavam em pânico porque achavam que eu me ia passar, porque teria sido a minha reacção de há uns anos atrás. JMO: Mas então melhoraste imenso? MB: Pois, acho que sim. MB: Eu acho que sou um bocado moralista, o que é horrível. E acho que posso ser muito duro a julgar os outros. Mas acho que é porque também sou muito duro a julgar-me a mim. JMO: Os outros chocam-me muito por vezes, mas num sentido mais ético do que moral. Impressiona-me imenso as pessoas não serem capazes, por exemplo, de romper com as normas sociais, ou então de engolirem tudo o que os media lhes impingem. Isso choca-me muito. Será isso ser moralista? Também é. JMO: Eu também tenho esse problema. MB: Seremos todos moralistas então. JMO: Ao mesmo tempo parece quase um padrão moral. JMO: Pois. Por exemplo, pessoas que fazem coisas por parecer bem aos outros choca-me muito e não deveria chocarme. Ou pessoas que tentam adequar-se ao gosto de outros. Dia 7 JMO - Tenho três perguntas na manga. MB - Eu tenho uma citação na manga. JMO - Há uma que não dá para deixar de fazer: o que queres dizer sobre o papa? MB: Há uma história sobre isso que posso contar. Quando era mais novo costumava bater na televisão quando não gostava do que via: 1. quando Portugal perdia os jogos sem fronteiras 2. quando aparecia a palhaça Tété 3. o papa. Por isso é um ódio que vem de trás. Recentemente fiz o teste do Proust e na pergunta ‘qual a coisa que mais odeias?’ (ou parecida) respondi: o Papa. É isso que tenho a dizer. JMO: Faço tuas as minhas palavras. MB: Acho que ele representa tudo o que está errado. Tudo o que é falso, moralista, mesquinho, racista… Enfim, nem vale a pena fazer a lista porque é interminável. O outro ainda se auto-flagelava, este nem isso tem de salvaguarda. JMO: Eu tenho imensas questões com isso. Incomoda-me tanto que tive que, inclusivamente, estudar isso. Hoje em dia, acho que a igreja representa um regime pré-revolução francesa. Acho-os medievais. MB: Queres falar do que estudaste? JMO: Estudei o modo como eles representam as mulheres no discurso anti aborto que têm, na minha tese de mestrado. E li as encíclicas e os documentos oficiais do Vaticano para perceber o modo como as mulheres eram descritas e representadas. Muito sucintamente, as mulheres são úteros que podem ser desapossadas da sua vontade em prol de um feto que vale mais que elas - e isto é ser simpático. Li coisas perturbadoras como: a igreja inventou os direitos humanos, e considero o discurso do aborto que eles têm como hate speech contra as mulheres. MB: Penso na morte desde sempre. Já falei de como era suposto ter morrido logo aos dois meses e fui salvo. Acho que começa tudo aí. Depois há a minha vontade de morrer durante grande parte da adolescência e depois a decisão de deixar de querer morrer. Mas de vez em quando ainda sentir aquele sentimento de impotência total e de pensar: porque não? Escrevi uma vez que era como se a morte se encostasse, como alguém que encosta a cabeça ao teu ombro. É assim que vejo a minha relação com a morte. Acho que percebo mais sobre a morte do que sobre o amor. JMO: Sim, muito. Cancro. MB: Sim, como a Sofia diz no MB#6: na bíblia, a mulher tem dores no parto porque a Eva é uma besta. JMO: É-te aparentemente mais próxima? JMO: Perturba-me imenso a ideia de que não sou eu a decidir quando morro, que é algo completamente exterior, como uma doença, como algo incontrolável. Mas é mesmo control freak esta postura. JMO: Lembro-me disso. Mas enfim, trata-se do universo da misoginia mais desavergonhada. E melhorou ao longo dos milénios porque havia teólogos que diziam que as mulheres eram como sacos de lixo, a fonte de todo mal. MB: E isso tudo porque percebiam que eram muito mais espertas do que eles. Qual complexo de inferioridade mais mal resolvido. JMO: Enfim, a outra pergunta que tinha para te fazer é: Preâmbulo: recentemente morreu o meu cão, e tenho pensado muito na ideia de morte. Pensas nisso? Como vês isso? MB: Acho que a consigo compreender melhor. É menos conturbada. A relação com a morte dos outros tem sido leve; não morreu ninguém especialmente próximo, a não ser a minha avó, mas estava num estado tão deplorável que era o melhor que podia ter acontecido. E eu acho sempre que morrer é uma coisa boa - tenho essa costela cigana de chorar quando se nasce e fazer a festa quando se morre. Quando se está morto, já não é difícil. JMO: Eu tenho medo da morte dos outros e da minha. Mas já me consegui convencer que a minha é inevitável e a dos outros... pois, também. Com o Valmont, a coisa foi péssima. Mas depois levamo-lo ao veterinário e foi ‘eutanasiado’ - odeio a expressão foi posto a dormir. MB: Estava doente? MB: Pois, isso assusta-me. Não a morte em si, mas o que a antecipa. Aí ainda se está vivo. JMO: Sim. É pior estar vivo que morto nessas coisas. E particularmente tenho horror a hospitais. Comecei a ler sobre empresas Suiças que fazem eutanásia e suicídio assistido porque gostei do controlo sobre a situação que se pode ter. MB: Sim. Acho óptimo que em casos extremos se possa ter essa opção. MB: Eu comecei a ler o ‘Tibetan Book of the Dead’ mas ainda não acabei. Mas gosto dessa ideia de haver uma preparação poética para a morte em que, basicamente, há um caminho que percorres até morreres, como uma espécie de meditação. É, pelo menos, apaziguador. JMO: Sim, mas é incontrolável e isso assusta-me. É um monstro. A monster you have to face. MB: Pois a ideia dos tibetanos é que podes controlar. JMO: Eu sinto que com a idade te vais habituando mais à ideia no sentido em que começas a ter mais morte à tua volta. Assusta-me se calhar mais a ideia de morrer sozinho. MB: Eu sempre pensei muito na morte e na mortalidade, e acho que a minha necessidade de estar sempre a fazer coisas vem daí; uma urgência em conseguir dizer tudo antes de morrer. Tenho sempre a ideia de que tenho pouco tempo. JMO: Eu tenho essa ideia também, por isso escrevo. Tenho essa preocupação mais presente quando a morte aparece, como agora. MB: E não achas que se morre sempre sozinho? JMO: Acho, sim. Mas é contraditório. Se calhar é por saber que se morre sempre sozinho que não gosto da ideia. MB: Acho que é um incentivo a que trabalhes no sentido de não teres medo.  JMO: Sim e faço-o. Sobretudo faço-o. Se resulta, não sei. Mas estou melhor disso. MB: Se estás melhor então é porque vai resultando. JMO : E a tua citação? MB: Então, hoje fui à feira do livro com a Rita - que me pediu conselhos porque queria comprar um livro da Beauvoir, a Sofia também comprou um livro da Beauvoir, e encontrámos a Joana que fala da Beauvoir no MB#6; sinto-me um propagador da Beauvoir. Mas isto era só uma curiosidade. A Rita queria comprar Barthes e eu também porque a Joana me tinha lido um excerto do “Fragmentos de um discurso amoroso”. Então eu e a Rita fomos comprar Barthes e apareceu a Joana nesse momento - o que foi muito bom - e eu abri o livro numa página à sorte e dizia : “assim todo o homem que fala da ausência do outro declara-se do lado feminino: este homem que espera e que sofre está miraculosamente femininizado. Um homem não é femininizado por ser invertido, mas por estar apaixonado (mito e utopia: a origem pertenceu, o futuro pertencerá aos sujeitos em que existe o feminino).”. E assim se explica todo o meu trabalho num simples parágrafo. JMO: É difícil de explicar mas percebote. Tenho essa questão até, num certo sentido, com as pessoas com quem se está a trabalhar. Mas gosto mais ainda dessa ideia de ausência e de espera. Consegues dizer algo sobre isso em relação ao teu trabalho? E a ti? JMO: Uma relação primordial com o feminino? JMO: E no fim, indiferenciam-se no público? MB: Também, mas mais o facto de falar da ausência do outro e de estar à espera e de estar apaixonado. MB: Sim, acho que e isso que acontece. Porque podia ser qualquer uma delas. JMO: Isso eu também acho. Mais do que o feminino que me parece ruído em relação ao teu trabalho. MB: Eu cheguei à conclusão, durante os ensaios para a peça que fiz com a Joana, no hotel, que não consigo criar se não estiver apaixonado. MB: O meu trabalho é sempre dirigido a um Tu, um Tu que não é necessariamente o público - quase nunca o é, à partida mas que depois se torna nele. Acho que é na espera e na ausência que eu crio, que escrevo para esse Tu, que faço para esse Tu, e que maturo ideias e que me maturo nessa espera e nessa ausência. É aí que me questiono. Porque me questiono sempre em relação aos outros. JMO: Esse Tu é um tu generalizado ou pessoas em particular? MB: Pessoas em particular, sempre. E no entanto é como se fossem todas o mesmo. JMO: E, claro, a corporização desse tu inicial não sente que o trabalho a interpele individualmente. MB: Em princípio não, mas está lá, e é para ela. JMO: Gosto dessa maneira de começar um trabalho. MB: E, por isso, quando me apercebi que não estava mais apaixonado tive uma crise; não tinha a quem me dirigir. Não gosto de me dirigir a pessoas que não são concretas. Não posso dirigir-me a uma massa de público. Quero dizer, posso, já o fiz, mas deixa de ser interessante. Deixa de ser próximo. Passa a ser um acto mais político ou mais social, que não tem a ver com uma relação pessoal e íntima que é o que me interessa realmente. É disso que eu vivo. JMO: Dessa proximidade e intimidade. MB: Sim. Quando escreves, como é para ti? JMO: Depende do texto. Não tenho uma regra mas quando se tratam de textos mais teóricos, que prefiro aos de estudos empíricos, são sempre dirigidos a alguém. Chego a denunciar quem é a pessoa no texto. Por exemplo, escrevi um texto a convite de uma amiga sobre fazer e desfazer o género na filosofia da Butler e foi claramente dirigido a ela à Sofia, não à Butler. E já escrevi também a pensar em autoras de que gosto - a epigrafe da minha tese é uma frase da Lispector e acho que o próprio texto foi dirigido ao que eu imagino dela, mas com as restrições académicas, porque nós temos umas certas restrições nalguns textos. Mas, sim, reconheço essa ideia de um Tu específico quando construo um texto. Também já o fiz sem ser dirigido a um Tu que eu gostasse. MB: Sim, isso também acontece. Ou dirigido a um Tu que se passa a não gostar. Não deixa de ser um Tu, e de ser específico. JMO: Claro, mas essa relação com esse Tu fica marcada no texto. Se é sem ser a gostar do Tu, podem sair assim umas coisas mais fucked up. MB: E tinhas mais alguma pergunta na manga? JMO: Sim, é a terceira. Olhando para o que fizemos vieram-me à cabeça coisas antigas dos tempos do feminismo radical que eu tanto gosto; a principal é que estes exercícios transformam o privado em político e acho que fizemos um ‘Facing Monsters’ muito feminista radical e lembro que ser radical, como diz a Angela Davis, é ir à raiz e não ficar apenas pela superficialidade. Queres dizer algo sobre isto? MB: Acho que poderíamos ir cada vez mais fundo. Voltando a falar dos mesmos assuntos. Indo por exaustão e repetição. Acho que foi e está a ser um primeiro capítulo muito importante e quanto ao privado tornar-se politico, já ouvi dizer de tudo sobre isso, mas eu continuo a acreditar que sim, porque inevitavelmente é político. JMO: Eu nesse aspecto tenho a dizer que neste momento em que estamos, isso é uma maneira de não sucumbir. Quando tens o contexto que tivemos e que temos neste país, é um modo de resistir às imposições e à quase proibição de pensamento em que se vive. Precisamos destas micro politicas de resistência porque isto está cada vez mais sufocante. Tenho pelo menos essa sensação, mas pode ser apenas esta semana papal. MB: Não, acho que é geral. E que se sente esse sufoco cada vez mais e que é preciso que se fale nisso. Como é preciso que se fale, ponto. JMO: É engraçado como às vezes parecemos estar num deserto, mas não é uma crise de valores, nem é que devêssemos voltar atrás em nada, o problema é o que o passado continua demasiado presente e que os fantasmas todos andam por aí. MB: Há a ilusão da rapidez e da tecnologia mas a verdade é que o mundo avança tão lentamente que quase parece que não se mexe. Aquilo que se move é apenas exterior, sempre. O movimento é sempre formal, o que se diz é sempre o mesmo, continua a ser o mesmo. JMO: Uma eterna reciclagem de ideias velhas. MB: E a eterna luta pelas mesmas ideias velhas que contrariam as outras ideias velhas. JMO: Sim, também acho. No outro dia li uma coisa, só uma frase: Every time we fuck we win. E gostei.