Caminhos da humanização na saúde

Transcrição

Caminhos da humanização na saúde
IZABEL CRISTINA RIOS
Objetivos:
• Ferramenta de gestão para melhorar a qualidade e a eficácia da atenção dispensada aos usuários do HC
FMUSP;
• Conceber e implantar novas iniciativas de humanização que venham beneficiar os usuários e os profissionais
de saúde;
• Desenvolver um conjunto de indicadores de resultados e sistema de incentivo ao tratamento humanizado;
• Modernizar as relações de trabalho, tornando as Unidades mais harmônicas, com profissionais preparados para
a humanização no cuidado.
Izabel Cristina Rios é médica, formada pela
FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), Psiquiatra e Psicanalista,
com experiência nas áreas Clínica, Educação
em Saúde e Desenvolvimento Humano e Institucional. Atua principalmente nos seguintes
temas: Humanização, Humanidades Médicas, Saúde Mental, e Educação Médica. No
CEDEM-FMUSP (Centro de Desenvolvimento
da Educação Médica FMUSP) é pesquisadora,
coordena o Grupo das Disciplinas de Humanidades Médicas e integra o Comitê HUMANIZA
HC-FMUSP. No CRT DST aids (Centro de Referência e Treinamento em Doenças Sexualmente Transmissíveis e aids) foi coordenadora do
Comitê de Humanização e diretora do Núcleo
de Desenvolvimento Institucional e Educação.
Foi coordenadora da Área de Humanização da
Coordenação dos Institutos de Pesquisa da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Na
Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo,
coordenou grupos de Educação Permanente e
Saúde Mental no Programa Saúde da Família.
Planejou e implementou o Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS) Casa Viva.
Equipe Coordenadora do Humaniza HC:
Profa. Dra. Linamara Rizzo Battistella, Dra. Valéria Pereira de Souza, Dr. Fábio Pacheco Muniz de Souza e Castro,
Dra. Polyanna Costa Lucinda e Dra Izabel Cristina Rios constituem o GRUPO DE TRABALHO COMITÊ DE HUMANIZAÇÃO da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo – Comitê HUMANIZA HC.
Informações: http://www.hcnet.usp.br/humaniza/
A Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) também mantém um
outro projeto, em parceria com as Secretarias de Estado da Saúde e dos Direitos da Pessoa com
Deficiência, voltado à humanização da saúde: a Rede de Reabilitação Lucy Montoro.
• Conta com uma Unidade Móvel de Reabilitação e unidades fixas de hospitais e centros de reabilitação, na
capital e em diversas cidades do Estado de São Paulo.
• Viagens da Unidade Móvel pelo estado para fornecimento de órteses, próteses e meios de locomoção a
pessoas com deficiência, onde não haja unidade fixa.
• Investimento de R$ 52 milhões na construção e ampliação das primeiras unidades fixas e funcionamento até 2010.
• Capacidade de 100 mil atendimentos mensais.
CAMINHOS DA HUMANIZAÇÃO NA SAÚDE
Comitê Humaniza HC FMUSP:
valorização da vida e da cidadania
Caminhos da Humanização na Saúde é um
livro composto por artigos e relatos que apresentam ao leitor a experiência da autora com
o trabalho da Humanização em vários contextos do campo público da Saúde no Estado de
São Paulo.
CAMINHOS DA
HUMANIZAÇÃO
NA SAÚDE
PRÁTICA E REFLEXÃO
Alguns textos revelam seu mergulho teórico
em territórios do conhecimento que permitem compreender e interpretar cenários, fatos
e práticas, que re-significados ganham vigor
para outros desdobramentos.
Outros textos relatam experiências, às vezes
no modo do “como fazer”, sem a pretensão
de dar receitas prontas (que não existem),
mas com a vontade de contar uma história de
trabalho que pode servir de base para outros
projetos.
A heterogeneidade dos textos testemunha algumas entre as muitas possibilidades para o
pensar e o agir nessa temática. Mas em todos
os casos, apresentam-se concepções e metodologias que se contrapõem a certa banalização do tema (que desqualifica o potencial
transformador da Humanização sobre as práticas e mentalidades na área da Saúde).
Os caminhos são muitos...
E este livro tem a intenção de estimular em
todos que encontraram na área da Saúde o
lugar para a expressão do seu encantamento pela vida humana, o desejo de criar outras
formas mais eficientes e significativas de cuidar das pessoas, mais gratificantes e fortalecedoras para os seus profissionais.
CAMINHOS DA
HUMANIZAÇÃO
NA SAÚDE
PRÁTICA E REFLEXÃO
Izabel Cristina Rios
2009
1
Produção Editorial: Áurea Editora
Coordenação: Dirceu Pereira Jr.
Edição: Milton Bellintani
Revisão: Silvia Marangoni
Projeto Gráfico e Diagramação: Mveras Design Gráfico
Apoio Oficial:
Rede de Reabilitação Lucy Montoro
Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FFMUSP)
Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência
Governo do Estado de São Paulo
Dados
Internacionais de Catalogação na Publicação
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Rios, Izabel Cristina
Caminhos da humanização na saúde : prática e
reflexão / Izabel Cristina Rios. -- São Paulo :
Áurea Editora, 2009.
Bibliografia.
1. Humanização dos serviços de saúde 2. Médico
e paciente I. Título.
09-06602
CDD-362.19892
Índices para catálogo sistemático:
1. Humanização dos serviços de saúde :
Bem-estar social
362.19892
2
(CIP)
Para Eduardo
3
SUMÁRIO
Prefácio - Dra. Linamara Rizzo Battistella................................................. 05
1. Humanização
A essência da ação técnica e ética nas práticas de saúde............................. 07
2. Violência e Humanização........................................................................... 27
3. O realce à Subjetividade
Assim começa a humanização na atenção à saúde....................................... 39
4. A cultura institucional da humanização.................................................. 57
5. Modelo de curso de humanização para serviços de saúde
Conceitos e estratégias para a ação.................................................................71
6. Humanização no ambiente de trabalho
O estudo de fatores psicossociais...................................................................101
7. Oficinas de humanização
Aproximando as pessoas para o diálogo........................................................119
8. Recepção humanizada
O programa jovens acolhedores..................................................................... 129
9. Rodas de conversa
Aprendendo saúde mental no PSF................................................................ 137
10. Impressões dos trabalhadores de uma unidade básica de saúde sobre
o seu trabalho.................................................................................................151
11. Em busca da humanização nos serviços de saúde
A questão do método..................................................................................... 167
4
PREFÁCIO
Linamara Rizzo Battistella
Humanizar a assistência é conceito e atitude! O Programa Nacional de Humanização Hospitalar, criado em 2000, assumiu o desafio de
“ofertar atendimento de qualidade, articulando os avanços tecnológicos
com acolhimento, melhoria dos cuidados e das condições de trabalho dos
profissionais”. Este conceito depende da mudança de atitude em direção a
cultura da excelência e da gestão dos processos de trabalho.
Humanização é ferramenta de gestão, pois valoriza a qualidade do
atendimento, preserva as dimensões biológicas, psicológicas e sociais dos
usuários e enfatiza a comunicação e a integração dos profissionais.
Fundada no respeito à vulnerabilidade humana e na crença de
que a relação entre dois atores, profissional e paciente, está sempre sujeita
a emoções que devem ser guiadas pelo sentimento de compromisso e de
compaixão. Assim, sem esquecer a objetividade, é preciso interpretar a
experiência de viver a doença, as seqüelas e a deficiência.
Neste livro está traduzida, com muita riqueza, a experiência da humanização na assistência aos doentes crônicos e às pessoas com deficiência,
para as quais a qualidade do cuidado supera a esperança de cura. Mas a
autora vai mais longe, fornecendo as diretrizes para a implantação e o desenvolvimento do programa de humanização hospitalar. Este livro traduz a
experiência da Dra. Izabel Cristina Rios, profissional, dedicada ao “cuidar” e
apresenta os resultados de experiências bem sucedidas, de ensinar os jovens
médicos sobre a importância da humanização do cuidado.
A esperança emerge a partir do exercício de escutar-nos uns aos
outros e de reconhecer no sofrimento o direito ao atendimento precoce,
resolutivo e de qualidade. O fortalecimento dos vulneráveis é alcançado
com base nos direitos humanos e no respeito pela dignidade individual.
Respeito é atributo indissociável da personalidade da Dra. Izabel Rios, que
5
militou no programa de humanização desde a sua concepção, ajudou a
implantar esta estratégia na Secretaria de Estado de Saúde e, mais recentemente, no Hospital das Clínicas da FMUSP. Apoiar a edição deste livro
sinaliza o compromisso do Governo do Estado de São Paulo em oferecer ao
lado das modernas tecnologias da área de saúde, profissionais qualificados
e sensíveis aos valores e crenças que permeiam a emoção do paciente e
seus familiares.
A implantação destes programas de humanização na Rede de Reabilitação Lucy Montoro é um imperativo! O governo do Estado de São
Paulo valoriza a oferta de modernas tecnologias na área de saúde, mas enfatiza a necessidade permanente de qualificar, sensibilizar, e comprometer
os profissionais com a humanização da assistência à saúde.
Linamara Rizzo Battistella é Médica Fisiatra, Professora da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo, Coordenadora do Comitê de Humanização da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas da Faculdade
de Medicina da USP, Comitê Humaniza HC, e Secretária de Estado dos
Direitos da Pessoa com Deficiência do Governo do Estado de São Paulo.
6
CAPÍTULO I
HUMANIZAÇÃO:
A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS
PRÁTICAS DE SAÚDEa
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
A humanização é hoje um tema frequente nos serviços públicos de
Saúde, nos textos oficiais e nas publicações da área da Saúde Coletiva.
Embora o termo laico humanização possa guardar em si um traço
maniqueísta, seu uso histórico o consagra como aquele que rememora
movimentos de recuperação de valores humanos esquecidos, ou solapados
em tempos de frouxidão ética. No nosso horizonte histórico, a humanização desponta, novamente, no momento em que a sociedade pós-moderna
passa por uma revisão de valores e atitudes. Não é possível pensar a humanização na saúde sem antes dar uma olhada no que acontece no mundo
contemporâneo...
Em uma visão panorâmica, a época da pós-modernidade1,2 se caracteriza pelo reordenamento social decorrente do capitalismo multinacional
e a globalização econômica. Desabaram os ideais utópicos, políticos, éticos
e estéticos da modernidade que creditavam ao projeto iluminista a construção de um mundo melhor, movido pela razão humana. As pessoas, cada
vez mais descrentes da política e das ideias revolucionárias que, na prática, deram poder a governos corruptos e incapazes de promover o bem da
nação, não buscaram mais seus referenciais de identificação nos grandes
coletivos sociais, mas sim em si mesmas. Para certos autores, essa é uma
das principais características do que eles chamam de época hipermoderna
ou supermoderna3,4: a figura do excesso e da deformação notadamente no
que se refere ao “eu”.
Nessa vertente, Lasch dá aos tempos atuais o nome de Cultura Narcísica, e Debors, de Sociedade do Espetáculo5,6 , ora ressaltando o individualismo, o culto ao corpo e a supervalorização dos aspectos da aparência
estética, ora ressaltando o exibicionismo, a captura pela imagem e o comportamento histriônico que se realiza como espetáculo.
No campo das relações, a perda de suportes sociais e éticos, somada
ao modo narcísico de ser, cria as condições para a intolerância à diferença,
e o outro é visto não como parceiro ou aliado, mas como ameaça. Tal disposição, associada à rapidez e pouco estímulo à reflexão sobre os aspectos
existenciais e morais do viver humano, faz com que a violência – que (por
motivos que fogem ao alcance deste artigo) é parte do nosso cotidiano – se
apresente também como modo de resolver conflitos.
8
a
Publicado na forma de artigo na Revista Brasileira de Educação Médica, v., n., 2008.
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
No contraponto, do meio do século XX para cá, começam a se desenhar respostas para a sociedade assim estabelecida. Direitos Humanos, Bioética, Proteção Ambiental, Cidadania, mais do que conceitos emergentes7, são
práticas que vão ganhando espaço no dia-a-dia das pessoas, chamando-nos
para o trabalho de construção de outra realidade.
Na área da Saúde surgiram várias iniciativas com o nome de humanização. É bem provável que esse termo tenha sido forjado há umas
duas décadas, quando os acordes da luta anti-manicomial, na área da
Saúde Mental8 , e do movimento feminista pela humanização do parto e
nascimento, na área da Saúde da Mulher 9, começaram a ganhar volume e
produzir ruído suficiente para registrar marca histórica.
Desde então, vários hospitais, predominantemente do setor público,
começaram a desenvolver ações que chamavam de “humanizadoras”. Inicialmente, eram ações que tornavam o ambiente hospitalar mais afável:
atividades lúdicas, lazer, entretenimento ou arte, melhorias na aparência
física dos serviços. Não chegavam a abalar ou modificar substancialmente a
organização do trabalho ou o modo de gestão, tampouco a vida das pessoas,
mas faziam o papel de válvulas de escape para diminuir o sofrimento que o
ambiente hospitalar provoca em pacientes e trabalhadores. Pouco a pouco, a
ideia foi ganhando consistência, resultando alterações de rotina (por exemplo, visita livre, acompanhante, dieta personalizada).
Em 2001, quando a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo
fez um levantamento dos hospitais públicos do Estado que desenvolviam
ações humanizadoras, praticamente todos faziam alguma coisa nesse sentido. O mesmo se verificou em noventa e quatro hospitais de referência no
país, escolhidos pelo Ministério da Saúde, praticamente na mesma época.
A iniciativa partia dos próprios trabalhadores, independentemente de incentivo ou determinação dos gestores locais. Tratava-se de uma resposta
a essa necessidade sentida e reconhecida pelas pessoas em seus ambientes
de trabalho.
Hoje, várias sondagens conceituais, manifestações ideológicas, construções teóricas e técnicas e programas temáticos fazem da humanização
um instigante campo de inovação da produção teórica e prática na área
da Saúde10.
9
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
Sob vários olhares, a Humanização pode ser compreendida como:
- Princípio de conduta de base humanista e ética
- Movimento contra a violência institucional na área da Saúde
- Política pública para a atenção e gestão no SUS
- Metodologia auxiliar para a gestão participativa
- Tecnologia do cuidado na assistência à saúde
Em nosso entender, a Humanização se fundamenta no respeito e
valorização da pessoa humana, e constitui um processo que visa à transformação da cultura institucional, por meio da construção coletiva de
compromissos éticos e de métodos para as ações de atenção à Saúde e de
gestão dos serviços. Esse conceito amplo abriga as diversas visões da humanização supracitadas como abordagens complementares, que permitem
a realização dos propósitos para os quais aponta sua definição.
A humanização reconhece o campo das subjetividades como instância fundamental para a melhor compreensão dos problemas e para a busca
de soluções compartilhadas. Participação, autonomia, responsabilidade e
atitude solidária são valores que caracterizam esse modo de fazer saúde
que resulta, ao final, em mais qualidade na atenção e melhores condições
de trabalho. Sua essência é a aliança da competência técnica e tecnológica
com a competência ética e relacional.
Humanização e ética
“Humanizar o quê? Por acaso não somos humanos?” (Auxiliar de
Enfermagem de uma UBS da SMS-SP)
Há alguns anos, quando o assunto humanização chegou aos serviços de Saúde, a reação dos trabalhadores foi a mais variada possível. Algumas pessoas (que já trabalhavam com ações humanizadoras) sentiram-se
finalmente reconhecidas e encontraram seus pares, mas a maioria (que não
fazia a mínima ideia do que se tratava) reagiu com desdém ou indignação:
não eram humanos, afinal? Humanizar os serviços soava como um insulto.
Entretanto, tão logo se começava a discutir a humanização como o processo de construção da ética relacional que recuperava valores humanísticos
esmaecidos pelo cotidiano institucional ora aflito, ora desvitalizado, ficava
clara a importância de trazer tal discussão para o campo da Saúde. A Me10
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
dicina (e certamente todas as profissões que se destinam ao cuidar) é uma
prática ético-dependente11, ou seja, ainda que o mundo se acabe em um
livre agredir, em que vença o mais forte, o mais rico, ou o mais bonito, na
área da Saúde é imprescindível a educação para a ética nas relações entre
as pessoas, sem a qual não é possível realizar a missão que nos destina
essa escolha profissional.
Humanizar, então, não se refere a uma progressão na escala biológica ou antropológica, o que seria totalmente absurdo, mas ao reconhecimento da natureza humana em sua essência e a elaboração de acordos
de cooperação, de diretrizes de conduta ética, de atitudes profissionais
condizentes com valores humanos coletivamente pactuados.
No sentido filosófico, humanização é um termo que encontra suas raízes no Humanismo12, corrente filosófica que reconhece o valor e a dignidade
do Homem – a medida de todas as coisas – considerando sua natureza, seus
limites, interesses e potenciais. O Humanismo busca compreender o Homem
e criar meios para que os indivíduos compreendam uns aos outros.
Na leitura psicanalítica, o termo fala do lugar da subjetividade no
campo da Saúde. Humanização, como tornar humano, significa admitir
todas as dimensões humanas – históricas, sociais, artísticas, subjetivas,
sagradas ou nefastas – e possibilitar escolhas conscientes e responsáveis.
A Psicanálise se encontra com o Humanismo quando coloca no centro do seu campo de investigação, compreensão e intervenção, o homem
e sua natureza humana (que pode ser tão divina quanto demoníaca... No
mais das vezes, as duas... Na melhor das hipóteses, a primeira cuidando
para que a segunda se mantenha o mais quieta possível). A natureza humana comporta pulsões para a construção e para a agressão. Em nossa essência, temos potencial para agir tanto em um sentido quanto em outro. O
julgamento ético de cada ato e a sua escolha são tarefa psíquica constante,
que põe em jogo os valores que a cultura nos dá por referência e os desejos
que se ocultam no íntimo de cada um. Reconhecer a importância dessas
características humanas é o primeiro passo para a humanização.
O segundo passo é desenvolver métodos que permitam a inserção de
tais aspectos humanos no pensar e agir sobre os processos saúde-adoecimento-cura e nas relações de trabalho. Trata-se de criar espaços legítimos
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HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
de fala e escuta que devolvam à palavra sua potência reveladora e transformadora13.
Na relação do profissional com o paciente, a escuta não é só um ato
generoso e de boa vontade, mas um imprescindível recurso técnico para
o diagnóstico e a adesão terapêutica. Na relação entre profissionais, esses
espaços são a base para o exercício da gestão participativa e da transdisciplinaridade.
Na vertente moral, a humanização pode evocar valores humanitários como: respeito, solidariedade, compaixão, empatia, bondade, todos
valores morais7 pensados como juízos sobre as ações humanas que as definem como boas ou más, representando uma determinada visão de mundo
em um dado tempo e lugar e, portanto, mutáveis de acordo com as transformações da sociedade. A humanização propõe a construção coletiva de
valores que resgatem a dignidade humana na área da Saúde e o exercício
da ética, aqui pensada como um princípio organizador da ação. O agir
ético, neste ponto de vista, se refere à reflexão crítica que cada um de nós,
profissional da saúde, tem o dever de realizar, confrontando os princípios
institucionais com os próprios valores, seu modo de ser e pensar e agir no
sentido do Bem... Claro que seria um ato de violência se, em nome da humanização, determinássemos quais os valores pessoais que cada um deve
ter. Entretanto, na dimensão institucional, tratam-se de valores fundamentais para balizar a atitude profissional de todos com diretrizes éticas que
expressem o que, coletivamente, se considera bom e justo.
A ética, assim pensada, torna-se um importante instrumento contra
a violência e a favor da humanização.
Humanização e violência institucional
Na sua história, a humanização surge, então, como resposta espontânea a um estado de tensão, insatisfação e sofrimento tanto dos profissionais
quanto dos pacientes, diante de fatos e fenômenos que configuram o que
chamamos de violência institucional na Saúde. (Violência Institucional14
aqui se refere à expressão cunhada na História recente para definir a utilização de castigos, abusos e arbitrariedades praticados nas prisões, escolas e
instituições psiquiátricas, com a conivência do Estado e da sociedade).
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HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
Na área da Saúde, a violência institucional decorre de relações sociais marcadas pela sujeição dos indivíduos. Historicamente, a organização hierárquica do hospital do século XIX foi uma importante estratégia
da Medicina da época moderna14 para o desenvolvimento da clínica e da
tecnologia médica. Aumentou o acesso da população ao atendimento e
propiciou grandes avanços técnicos. Entretanto, junto a esses progressos,
também se engendraram situações que tornaram o hospital lugar de sofrimento15. O não reconhecimento das subjetividades envolvidas nas práticas
assistenciais no interior de uma estrutura caracterizada pela rigidez hierárquica, controle, ausência de direito ou recurso das decisões superiores,
forma de circulação da comunicação apenas descendente, descaso pelos
aspectos humanísticos, e disciplina autoritária, fizeram do hospital um
lugar onde as pessoas são tratadas como coisas e prevalece o desrespeito à
sua autonomia e a falta de solidariedade15.
A própria organização científica do trabalho (fortemente presente
na área da Saúde) fragmenta o processo que vai do início ao fim da produção, seja de bens, seja de serviços, deixando cada etapa do processo a
cargo de um grupo de trabalhadores que acaba tendo apenas a visão da
parte que lhe cabe e não do todo. Essa estratégia agiliza e multiplica o resultado, entretanto cria um estado de alienação em relação à importância
de cada um para a realização completa da tarefa que, na área da Saúde,
tem como consequência a naturalização do sofrimento e a diminuição do
compromisso e da responsabilidade na produção da saúde.
Desenha-se, assim, um cenário social e institucional, em que a falta
de sensibilidade e de valores humanísticos abre espaço para que o comportamento violento (expresso em atos de brutalidade explícita ou sofisticados disfarces da intolerância e do desprezo) passe a ser a norma e não
a exceção.
Outro fator que contribui para esse estado de coisas é a medicalização do viver humano. Inicialmente, a medicalização se referia à transformação de problemas sociais em problemas de saúde. Por exemplo: antes de
encarnar no corpo, a fome é um problema da pobreza ou da educação, depois de um tempo vira desnutrição. Combater a fome é diferente de tratar
a desnutrição do ponto de vista social (uma coisa é dar atenção à Saúde,
13
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
outra é mudar a distribuição de renda). Aos poucos, a medicalização foi
abrangendo problemas que em épocas anteriores não teriam a Medicina
como destino, mas sim outras áreas do saber. Com o aumento da crença
das pessoas no que consideram verdades científicas na área da Saúde, e a
decadência do valor socialmente dado às outras formas de compreensão
da existência humana, toda e qualquer expressão da vida passa por um
diagnóstico previsto em algum CID (Código Internacional das Doenças), e
busca remédio na Medicina. Assim, toda tristeza vira depressão, toda inquietação vira ansiedade e todo mundo procura os serviços de Saúde atrás
de respostas rápidas e deglutíveis, mesmo que não funcionem...
Ao lado desse fenômeno cultural da contemporaneidade, em nossa
realidade, o sucateamento dos serviços de saúde devido à má gestão da
coisa pública ou aos sempre insuficientes investimentos frente aos crescentes custos da Medicina Biotecnológica, levou à pletora do acesso aos
serviços e ao esgotamento dos profissionais para atender. Filas intermináveis, pacientes mal atendidos por profissionais mal remunerados e desvalorizados, e todo tipo de conflito passaram a ser comuns nessa arena assim
armada.
Como dito anteriormente, a humanização surgiu em resposta a esse
enredo, na forma de ações localizadas, e foi se instituindo até chegar,
hoje, à forma de uma política pública na área da Saúde. Não por acaso, a
humanização une suas primeiras vozes nos hospitais, fazendo coro a um
movimento contrário à situação em que há aqueles que mandam e decidem e outros que obedecem e não opinam sobre nada. Nesse sentido, a
humanização buscava nas ações humanizadoras a recuperação não só da
saúde física, mas principalmente do respeito, do direito, da generosidade,
da expressão subjetiva e dos desejos das pessoas.
Humanização como política pública para a atenção e gestão no SUS
A humanização nasceu dentro do SUS. Os princípios do SUS16 são totalmente de inspiração humanista: universalidade, integralidade, equidade e
participação social. Levados às últimas consequências definem a humanização em qualquer concepção, em qualquer instância de atenção ou gestão. Tal
caráter faz do SUS, hoje, o principal sistema de inclusão social deste país.
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HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
Enquanto na maioria dos hospitais privados a humanização foi tratada como cosmética da atenção – recepcionistas jovens e bonitas, bem
vestidas e maquiadas, ambientes bem decorados que não devem nada aos
hotéis de luxo, frigobar no quarto e lojinha de conveniência –, nos hospitais públicos e movimentos sociais a humanização escapa aos modelos
comerciais e recupera dos ideais do SUS a prática da cidadania.
Quase vinte anos depois da sua criação, o SUS é o sistema idealizado
para os anseios de saúde do povo brasileiro, mas é também o sistema de
saúde público que apresenta as contradições e heterogeneidades que caracterizam a nossa sociedade: serviços modernos, e de ponta tecnológica,
ao lado de serviços sucateados nos quais a cronificação do modo obsoleto
de operar o serviço público, a burocratização e os fenômenos que caracterizam situações de violência institucional estão presentes.
No ano 2000, o Ministério da Saúde, sensível às manifestações setoriais e às diversas iniciativas locais de humanização das práticas de saúde, criou o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH). O PNHAH era um programa que estimulava a disseminação
das ideias da Humanização, os diagnósticos situacionais e a promoção de
ações humanizadoras de acordo com realidades locais. Inovador e bem
construído por um grupo de psicanalistas, o programa tinha forte acento na transformação das relações interpessoais pelo aprofundamento da
compreensão dos fenômenos no campo das subjetividades.
Em 2003, o Ministério da Saúde passou o PNHAH por uma revisão, e
lançou a Política Nacional de Humanização (PNH)16, que mudou o patamar
de alcance da humanização dos hospitais para toda a rede SUS e definiu
uma política cujo foco passou a ser, principalmente, os processos de gestão
e de trabalho. Como política, a PNH se apresenta como um conjunto de diretrizes transversais que norteiam toda atividade institucional que envolva
usuários ou profissionais da Saúde, em qualquer instância de efetuação.
Tais diretrizes apontam como caminho:
- A valorização da dimensão subjetiva e social em todas as práticas
de atenção e gestão fortalecendo compromissos e responsabilidade;
- O fortalecimento do trabalho em equipe, estimulando a transdisciplinaridade e a grupalidade;
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HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
- A utilização da informação, comunicação, educação permanente e
dos espaços da gestão na construção de autonomia e protagonismo;
- A promoção do cuidado (pessoal e institucional) ao cuidador.
Nessa vertente, a humanização focaliza com especial atenção os
processos de trabalho e os modelos de gestão e planejamento, interferindo
no cerne da vida institucional, local onde de fato se engendram os vícios e
os abusos da violência institucional. O resultado esperado é a valorização
das pessoas em todas as práticas de atenção e gestão, a integração, o compromisso e a responsabilidade de todos com o bem comum.
Para sua implementação16, a PNH atua nos eixos de institucionalização que operaram a mudança de cultura a que se propõe. Tais eixos compreendem a inserção das diretrizes da humanização nos planos estaduais e
municipais dos vários governos, nos programas de Educação Permanente,
nos cursos profissionalizantes e instituições formadoras da área da Saúde,
na mídia, nas ações de atenção integral à Saúde, no estímulo à pesquisa
relacionada ao tema, vinculando-os ao repasse de recursos.
Várias ações e indicadores de validação e monitoramento foram desenvolvidos pelo Ministério da Saúde para estimular e acompanhar os
processos de humanização não só nos hospitais, mas nos três níveis de
atenção à Saúde no SUS. A estratégia de criação e fortalecimento dos Grupos de Trabalho de Humanização nas instituições (grupos formados por
pessoas ligadas ao tema e aos gestores dos serviços de Saúde, com o papel
de implementar a PNH na sua unidade) merece considerações à parte e
ajustes (veja último capítulo deste livro), mesmo assim mostrou-se exitosa
em vários locais, acumulando bons exemplos de trabalho na área.
Entretanto, a humanização só se torna realidade em uma instituição
quando seus gestores fazem dela mais que retórica, um modelo de fazer
gestão. Boas intenções e programas limitados a ações circunstanciais não
sustentam a humanização como processo transformador. Os instrumentos
que de fato asseguram esse processo são: a informação, a educação permanente, a qualidade e a gestão participativa.
Enfim, pensar a humanização como política significa menos o que
fazer e mais como fazer. Embora importantes, não são necessariamente as
ações ditas humanizadoras que determinam um caráter humanizado ao
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HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
serviço como um todo, mas a consideração aos princípios conceituais que
definem a humanização como a base para toda e qualquer atividade. Este é
o grande desafio: criar uma nova cultura de funcionamento institucional e
de relacionamentos na qual, cotidianamente, se façam presente os valores
da humanização.
Humanização e a gestão participativa
Com a PNH, a humanização alcança os processos de gestão e organização do trabalho nos serviços de Saúde, e a gestão participativa desponta como modelo eleito para a realização dessa política. Quando falamos em gestão participativa ou cogestão estamos nos referindo ao modo
de administrar que não se basta na linha superior de comando e inclui o
pensar e o fazer coletivo17.
As estratégias para a gestão participativa nos serviços de Saúde devem ser estudadas caso a caso, partindo do conhecimento das realidades
institucionais específicas, entretanto algumas ações que a propiciam em
qualquer contexto são:
- A criação de espaços de discussão para a contextualização dos
impasses, sofrimentos, angústias e desgastes a que se submetem os profissionais de Saúde no dia-a-dia pela própria natureza do seu trabalho;
- O pensar e decidir coletivamente sobre a organização do trabalho,
envolvendo gestores, usuários e trabalhadores, em grupos com diversas
formações;
- A criação de equipes transdisciplinares efetivas que sustentem a
diversidade dos vários discursos presentes na instituição, promovendo o
aproveitamento da inteligência coletiva.
De um modo mais específico, a gestão participativa se dá por meio
da criação de instâncias de participação nas quais é possível considerar e
estabelecer consensos entre desejos e interesses diversos, por exemplo:
- O conselho gestor de saúde, que aglutina gestores, trabalhadores e
usuários para decidir os rumos institucionais;
- A ouvidoria, que faz a mediação entre usuários e instituição para
a solução de problemas particulares;
- As equipes de referência, que se compõem de profissionais que
17
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
juntos acompanham pacientes comuns ao grupo;
- Os grupos de trabalho de humanização, que fazem a escuta institucional e criam dispositivos comunicacionais;
- As visitas abertas, que propiciam as parcerias com familiares para
o cuidado de seus parentes.
Algumas ferramentas, como as pesquisas de satisfação dos usuários e dos trabalhadores, ou as pesquisas de clima institucional e de fatores psicossociais do trabalho (FPST), podem ser bastante úteis para certos
diagnósticos institucionais e para o planejamento da ambiência (ambiente
físico, social, interpessoal) e da organização dos processos de trabalho. (Os
FPST18 são dimensões referentes à gestão, organização e relações interpessoais no trabalho, que no ambiente físico e relacional podem produzir a
satisfação e o sentimento de realização, ou no seu revés, o sofrimento e o
adoecimento do trabalhador. Permitem o estudo de como os trabalhadores percebem a instituição, privilegiando o olhar subjetivo da experiência
do trabalho na vida das pessoas em determinado tempo e lugar. Os fatores
psicossociais que relacionam saúde e satisfação no trabalho abrangem: estabilidade no emprego, salários e benefícios, relações sociais no trabalho,
supervisão e chefia, ambiente físico de trabalho, reconhecimento e valorização, oportunidades de desenvolvimento profissional, conteúdo, variedade e
desafio no trabalho, qualificação, autonomia, subutilização de habilidades e
competências, carga de trabalho (física, cognitiva ou emocional.)
Particularmente importantes são as estratégias, metodologias e ferramentas que se destinam ao desenvolvimento do profissional da área da
Saúde. Acreditamos que a possibilidade de promover atendimentos verdadeiramente humanizados requer, necessariamente, a educação dos profissionais da Saúde dentro dos princípios da humanização e o desenvolvimento de ações institucionais visando ao cuidado e à atenção às situações
de sofrimento e estresse decorrentes do próprio trabalho e ambiente em
que se dão as práticas de saúde.
Nessa direção, a Educação Permanente19 é uma estratégia para o
exercício da gestão participativa que visa à transformação das práticas de
formação, de atenção, e de gestão, na área da Saúde. Baseada na aprendizagem significativa, a educação permanente constrói os saberes a partir
18
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
das experiências das pessoas. Nas rodas de conversa, oficinas e reuniões
discutem-se os problemas, propõem-se soluções gerenciais, mudanças na
organização do trabalho e definem-se ações educativas de acordo com as
necessidades observadas.
Dessa maneira faz-se da gestão participativa o caminho para a humanização dos serviços. Entretanto, como há poucos gestores com formação técnica para essa metodologia, ainda são raras as experiências dessa
forma inovadora de fazer gestão de pessoas.
Humanização e a tecnologia do cuidado na assistência à saúde
Na assistência à Saúde, a supremacia do recorte biológico e o autoritarismo dos discursos de saber e poder deflagraram crítica contundente
ao modelo biomédico de atenção. No aprofundamento do estudo das situações conjunturais associadas a esse fato, chegou-se ao que se pensa hoje
sobre a humanização na vertente da indissolubilidade da relação entre
atenção e gestão. Por outra linha do pensar (que também se articula com o
que expusemos até aqui neste artigo), o foco ilumina a relação do profissional da saúde com o paciente e o resultado desse encontro.
Na Medicina, o tecnicismo da prática atual descartou os aspectos
humanísticos no cuidado à saúde12. A biotecnologia aplicada à Medicina
propiciou indiscutíveis conquistas para o bem das pessoas (alguém hoje
consegue imaginar um procedimento cirúrgico, até mesmo de pequeno
porte, sem anestesia, por exemplo?). Estudos mostram que os recursos
tecnológicos, a visão centrada nos aspectos biológicos da doença, e a organização do trabalho médico para o atendimento de massa ampliaram o
acesso da população aos bens e serviços de Saúde, mas, em compensação,
criou um abismo entre o médico e o paciente.
A tecnologia que é determinante para aumentar a sobrevida humana
e para a diminuição drástica do sofrimento devido aos males que acometem a saúde, tornou-se um intermediário que afasta os profissionais do
contato mais próximo e mais demorado com o paciente, não só por que
agiliza o atendimento e aumenta a produtividade contada em números,
mas também por que fascina e captura o interesse dos profissionais da
Saúde, particularmente dos médicos. Os pacientes passam, então, à con19
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
dição de objetos de estudo e manipulação na construção do saber e da
prática científica. E os profissionais, à condição de peças e engrenagens
que fazem funcionar a máquina institucional. O tecnicismo perde de vista
estados vivenciais importantes para a realização do cuidado à saúde.
Já no modelo psicossocial agregam-se saberes de teorias compreensivas sobre o vínculo, capazes de desvendar atitudes e emoções que
facilitam ou impedem o bom diagnóstico e a aliança terapêutica20,10. Por
exemplo, a Psicanálise ensina que, ao adoecer, a pessoa vive um processo
que chamamos de regressão narcísica21, que, em graus variáveis de acordo
com a história pessoal, a personalidade e a gravidade de sua doença a
torna mais frágil, mais sensível e mais dependente daquele que lhe presta
cuidados. É como se o paciente, inconscientemente, voltasse aos tempos
em que era cuidado por sua mãe e dela dependia para sua sobrevivência.
Desconsiderar esse estado, ou tratar o paciente com displicência, superficialidade ou mesmo pressa e desatenção às suas emoções, não é só uma
falha ética, mas sim um erro técnico que pode provocar danos para o paciente e o fracasso do tratamento. Por outro lado, não se trata de entender
o paciente como infantilizado e desconsiderar sua autonomia, o que seria
além de antiético, o descumprimento de um direito dos usuários de serviços de saúde22. Ou seja, não basta bom senso e paciência, é preciso que o
profissional aprenda teorias e técnicas relacionais.
Entretanto, mesmo conscientes da importância do campo da subjetividade na Saúde, da ênfase dada ao princípio da integralidade e do
desenvolvimento de tecnologias leves destinadas ao aprimoramento da
atenção (particularmente no campo da atenção básica à saúde20), para a
maioria dos profissionais, o modo tecnicamente humanizado permanece
como utopia – aquele que seria o jeito certo de fazer, mas não dá ou não
adianta.
O grande nó ainda não desatado talvez tenha a ver com a necessidade de desenvolver nos profissionais o interesse legítimo pelo paciente. Tarefa nada fácil nos tempos atuais, em que, como discutido anteriormente,
prevalece o individualismo e o jeito narcísico de ser, inclusive na própria
formação acadêmica dos profissionais da Saúde.
20
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
Humanização e ensino médico
Embora a PNH tenha como um dos seus eixos de implementação a
inserção das diretrizes da humanização nas escolas formadoras de profissionais da área da Saúde, na prática, sua presença no ensino superior
ainda é pálida e sôfrega.
No ensino médico, há algum tempo, várias escolas daqui e de outras partes do mundo colocaram disciplinas de humanidades médicas nos
seus currículos de graduação. As experiências são bem heterogêneas, mas
é comum a dificuldade de integração dos temas humanísticos ao escopo
da Medicina23. Ainda que essenciais para a boa prática médica, para muitos alunos e professores as disciplinas de humanidades médicas são tidas
como prescindíveis e desinteressantes.
A humanização se inscreve como um tema dentro dessas disciplinas,
mas frequentemente é abordada de forma superficial e periférica. Na nossa
experiência de trabalho em uma disciplina de humanidades, percebemos
que os alunos desconhecem completamente a abrangência significativa da
humanização nas práticas de saúde. Ao final das discussões sobre o tema,
mostram-se bastante surpresos ao descobrir que se trata de algo bem mais
complexo e bem mais diretamente ligado ao exercício da Medicina do que
as ideias de “ser bonzinho”, “ser educado” e “agradar ao paciente” que trazem nas suas associações ao tema e traduzem preconceito e descaso com
o que mal conhecem.
Por outro lado, embora muitos hospitais-escola tenham Comitês de
Humanização, o tema ainda é relativamente recente no cotidiano da maioria das práticas de atenção e ensino15. Sobre esta questão, no Seminário
Internacional de Gestão – Mostra SES-SP de 2008, uma pesquisa realizada
com residentes do primeiro e último ano da Residência Médica do Hospital
Heliópolis da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo24 – para a qual
convergem alunos formados em diferentes escolas do estado – revelou
dados curiosos. Na entrada à Residência, os médicos apresentavam vaga
noção do que seria humanização, considerando-a mais focada na qualidade da relação médico-paciente. Na saída da Residência, a maioria deles
apresentou maior falta de informação e de interesse pelo assunto, inclusive
considerando que a humanização tem menos a ver com o seu trabalho e
21
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
mais com o serviço de voluntários, a administração hospitalar, os psicólogos e assistentes sociais.
Esses achados corroboram nossas observações tanto no que se refere
à timidez com que o tema está inscrito na formação médica, quanto ao fato
de que ainda é prevalente nos hospitais a ideia da humanização voltada para
ações pontuais que amenizam as tensões cotidianas da vida intra-hospitalar.
Outra observação importante é que além de não ter havido acréscimo no seu
aprendizado ao longo da Residência, houve uma distorção do que trata a
humanização e a sua importância no trabalho médico.
Estudos que vão ao encontro da compreensão do papel da tecnologia e das mudanças sociais do trabalho médico11, ou do atendimento hospitalar 15 mostram que as transformações tecnológicas da Medicina e o
modo como se organiza hoje o trabalho médico não favorecem o discurso
e a prática da humanização. A própria mudança do PNHAH para a PNH
(que aumenta o campo iluminado da humanização, mantendo foco nas relações intersubjetivas, mas acentuando a necessidade de mudar processos
de gestão e organização do trabalho na área da Saúde) tem como base a
realidade descrita nesses e noutros trabalhos.
Parece fundamental que o ensino da humanização na formação médica deve partir da conscientização do tema em todos os âmbitos nos quais
se dá o aprendizado. É preciso que os hospitais-escola desenvolvam a PNH
no seu dia-a-dia, ao mesmo tempo em que as disciplinas de humanidades
curriculares trabalhem seus conteúdos com os alunos, em um verdadeiro
movimento de integração serviço-escola.
Outro aspecto fundamental para o desenvolvimento da humanização no ensino médico é a inclusão dos seus princípios e diretrizes na gestão educacional, e a presença de espaços de construção de subjetividade,
escuta e exercício de reflexão sobre a vida de estudante e de médico, como
se observa nos programas de tutoria25.
Na condição de espaços nos quais se cultiva o vínculo, o respeito à
diferença de opinião, a construção coletiva de ideias e juízos sobre os mais
diversos temas do cotidiano médico, os programas de tutoria são locus
privilegiados para o cultivo da humanização no ensino médico. Cenário
que abriga histórias de vida, vivências comuns ao estudante de Medicina,
22
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
situações que podem estar na frente ou atrás dos panos e que podem e
devem ser conscientemente abordadas, trocando o cinismo pela ética.
Do caminho percorrido ao que ainda temos que percorrer...
No tempo em que na Medicina havia poucos recursos para o diagnóstico e tratamento, a presença do médico ao lado do paciente, observando-o minuciosamente, acompanhando sua evolução, ampliando seu
conhecimento acerca da sua vida e hábitos, eram atitudes necessárias para
o próprio exercício da profissão11. Essa atitude, mais próxima ao que hoje
se postula para a humanização das práticas, não era algo da ordem do
amor ao próximo, como, ingenuamente, uma certa visão romântica tende
a insinuar. Vários relatos da história da Medicina mostram o grande interesse científico dos médicos na busca de soluções para os males do corpo,
alguns levados pelo altruísmo, outros pela vaidade26. Durante muito tempo, a proximidade com o paciente era quase um imperativo técnico para o
exercício da boa Medicina11.
As mudanças sociais e culturais que atravessaram os tempos desde
essa época transformaram a face da Medicina e das práticas de saúde, chegando ao contexto que discutimos neste artigo e suas implicações no surgimento da humanização na Saúde. Começando por ações isoladas, pontuais,
amadoras, a humanização foi desenvolvendo conceitos e tecnologias para
sua aplicação tanto no campo das relações profissionais-pacientes, quanto
no campo da gestão, chegando à forma de política pública na Saúde.
Entretanto, a falta de compreensão mais profunda da dimensão psicossocial que envolve os processos saúde-doença, a falta de compromisso com o resultado do trabalho, a falta de decisões compartilhadas com
pacientes, de projetos assistenciais discutidos em equipe multidisciplinar,
e mesmo de gestão participativa nos serviços de Saúde, tornam a humanização do cuidado um projeto ideal ainda bem distante da realidade dos
serviços de Saúde.
Trabalhamos durante vários anos junto aos hospitais públicos
da Secretaria de Estado da Saúde coordenando a Área de Humanização e
pudemos observar que além desses problemas estruturais referentes principalmente à gestão dos serviços, há um outro lado do problema que, menos
23
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
evidente e mais entranhado na cultura dos serviços, também dificulta muito as mudanças de comportamento que a humanização advoga. Trata-se
do que cada profissional espera da sua profissão. Para muitos, o trabalho
é o dever a ser cumprido para dar direito ao salário. Para outros é também
caminho para a satisfação pessoal, a superação de desafios, o prazer de ser
alguém que faz diferença na vida dos outros, e na própria vida.
De acordo com nossa experiência e ponto de vista, a humanização
só terá assegurado seu lugar na relação do profissional com o paciente
quando se mostrar indispensável para os bons resultados que o profissional deseja de si mesmo no seu trabalho27. Para isso, há que se provocar (se
é que isso é possível) uma descoberta fundamental na vida dos profissionais de Saúde: a recuperação do desejo e do prazer de cuidar, algo que, de
tão distante dos valores culturais que predominam na contemporaneidade,
parece irremediavelmente perdido, mas quem sabe...
Aí então, a necessidade de bem cuidar será sentida como uma disposição que pode mover o desejo de aprender um outro jeito de ser e fazer
o encontro clínico no campo intersubjetivo e, mais além deste, realizar a
humanização em toda sua amplitude.
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25
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26
CAPÍTULO II
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
A capacidade de ver
José Saramago, em seu “Ensaio sobre a cegueira” (p. 10) retira do
Livro dos Conselhos a epígrafe1:
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.
E nos faz mergulhar numa história fantástica na qual uma misteriosa epidemia de cegueira branca acomete as pessoas de um país e, à medida
que cada vez mais pessoas não podem ver o mundo, preocupadas consigo
mesmas e sua sobrevivência individual, destroem-se as bases da organização social vigente e se instala um estado de coisas em que domina o
espírito do “salve-se-quem-puder”, a “lei do mais forte”, o individualismo,
a ganância, o colapso de valores humanistas. O resultado é uma sociedade caótica, destrutiva e suicida. Os personagens que conseguem manter
princípios éticos e ações solidárias, sustentando uma organização coletiva
baseada no respeito e cooperação, são os que escapam de ser tragados pela
violência de uma multidão cega, potencialmente assassina, que percebe os
outros como inimigos.
O autor tece uma analogia entre a perda da visão e a progressiva
perda da humanidade decorrente do egoísmo de quem não consegue enxergar o mundo como um lugar a ser compartilhado por todos, mas um
lugar hostil que se presta a prover necessidades particulares.
Qualquer semelhança com situações das sociedades contemporâneas
certamente não é mera coincidência. Saramago escreveu esse romance
com clara intenção de fazer uma contundente crítica à dissolução de valores éticos e alertar sobre a decadência humana e social que acomete a
sociedade quando esses valores entram em crise.
Por isso, a epígrafe nos precipita à responsabilidade: se podemos
ver o que está acontecendo, devemos buscar a reparação. Ver, conhecer,
refletir sobre si mesmo, os outros e as situações que nos envolvem em
contexto particular e coletivo. É o princípio da ética, da cidadania, da
humanização.
Princípio que emerge da concepção de homem comum no lugar social e tempo histórico da modernidade. Podemos dizer que a noção de
cidadania2 que temos hoje (um sistema de direitos e deveres que se aplicam a todos os membros de uma sociedade) é uma evolução cujo ponto
28
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
de partida foram as modificações econômicas, políticas e sociais que se
iniciaram a partir do século XVI.
O mercantilismo e a criação de bases para o desenvolvimento do
capitalismo3,4,5 iniciante exigiu uma sociedade organizada sob o esquema político representado pela figura do Estado, cuja consolidação se deu,
principalmente, através da modificação do conceito do lugar do homem
comum na sociedade. Cada indivíduo passou a ser importante porque o Estado construiu seus alicerces na coletividade. Nas sociedades capitalistas,
o homem comum é chamado de cidadão e ocupa um lugar estratégico na
sua constituição, dinâmica e sobrevivência, e as instituições surgem como
dispositivos de ação para a organização da sociedade e manutenção da
ordem. Nesse contexto, a vida como valor máximo do ser humano passa
a ter uma importância particular, quando a esse valor supostamente natural agregam-se outros que permitem o uso das práticas de saúde como
estratégia de ação sobre a população para, através da promoção da saúde
e da reprodução, manter-se a vida, a saúde da força de trabalho e na contemporaneidade, o consumo.
Entretanto, nessa configuração da sociedade em que todos são ditos cidadãos – teoricamente com direitos iguais (inclusive de acesso a
bens), mas que na lógica capitalista não estão ao alcance de todos – não
se mantém a ordem das coisas sem que opere a violência3,6, nos seus mais
diversos matizes.
A violência7 aparece como problema histórico e social em todas as
sociedades, e nas sociedades da modernidade aparece como instrumento
de organização e dominação. A violência revela estruturas de dominação
de classes, grupos, indivíduos, etnias, faixas etárias, gêneros, nações e surge como resultado de tensões entre os que querem manter certos lugares e
privilégios e os que se rebelam contra eles, não necessariamente por sede
de justiça, mas muitas vezes apenas por fome de poder...
Na nossa sociedade, a violência8 se revela estrutural ante a desigualdade social e a incapacidade do Estado de suprir as necessidades de toda
população, criando um contingente de excluídos que não tem meios para
exercer seus direitos e deveres cidadãos. A exclusão social não é só uma
questão de pobreza, mas principalmente de ausência de poder público e
29
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
sua substituição por um poder paralelo, marginal e violento cujas regras
não respeitam as leis do coletivo, porque nesses espaços de não-governo
instauram-se domínios que governam com regras particulares.
Vivemos em uma sociedade violenta9: em 2006, as causas externas
foram a terceira causa de morte na população brasileira, sendo que entre
essas, os homicídios ocuparam o primeiro lugar. Não se tratam só dos atos
de brutalidade criminosos (que já são bastante altos), o que cada vez mais
chama a atenção é a prevalência de um modo subjetivo de lidar com situações cotidianas e resolver conflitos pelo uso da violência.
Na contemporaneidade10, o individualismo e a desigualdade relativos ao modo capitalista de organização social, a deterioração e descrença
nas instituições, as rupturas na malha de apoio social e a banalização da
violência pela mídia tornam o viver violento um modo de estar no mundo
quase aceitável, uma vez que a essas situações agregam-se valores que
alimentam tal comportamento:
- A competitividade extrema que coloca o outro no lugar do inimigo
em potencial e não como parceiro;
- O culto ao machismo e à força bruta como expressão de poder e
virilidade;
- A adoção de figuras sociais de exuberante comportamento narcísico como modelos identificatórios;
- A capacidade de consumo como valor maior que a capacidade
ética na construção da identidade pessoal;
- A busca do prazer fácil e imediato;
- A velocidade e superficialidade dos contatos interpessoais, valendo mais a quantidade e o valor instrumental das relações, que a qualidade
do encontro;
- A desqualificação de outros modos de pensar a existência humana
(senso comum, Religião, Filosofia, Arte e Ciência) em favor do limitado
discurso da ciência positivista;
- A desvalorização da vida, a coisificação das pessoas;
- A medicalização, ou a transformação do mal-estar existencial (não
mais representado em outros campos do saber) em vago e doloroso malestar, vagando pelo corpo.
30
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
Fatores psíquicos individuais11 também contribuem para o comportamento violento, entretanto cabe lembrar que tais fatores são constitutivamente dependentes da cultura. Estudo de Vethencourt11 com jovens delinquentes pobres da Venezuela revelou, em suas histórias de vida,
crianças que cresceram em ambiente pobre material e afetivamente, em
meio a situações de violência e ausência de expectativas de realização
de projetos pessoais. Tais jovens apresentavam desestruturação sutil da
personalidade, desorganização do comportamento em relação a valores
socialmente aceitos, regressão e reativação de núcleos de violência narcísicos, perda do autocontrole pela estigmatização, recrudescimento da raiva
contra o outro e contra o próprio grupo.
Enfim, em uma visão macroscópica, a violência é um problema social, histórico e cultural que decorre de relações sociais marcadas por contradições e diferentes formas de dominação, presente em todas as sociedades, em tonalidades e graus de aceitação variáveis.
O comportamento violento é instrumental, latente nos valores culturais vigentes, e manifesto no modo de ser cotidiano das pessoas. A opinião
pública condena a violência, mas admite situações em que é aceitável,
protegida e mesmo naturalizada. Instituições respeitáveis como a família
(no que tange à violência doméstica), a escola, as empresas, o hospital, nos
seus bastidores “podem” se amparar em ideologias que sustentam o uso da
violência como meio.
Aproximando nossa lente para o campo das subjetividades7, a violência se apresenta como um modo de relação humana, um comportamento
que se molda dentro da cultura e dos valores reproduzidos nas instituições,
começando pela família e depois avançando para outros espaços sociais. É
assustador, mas, nesta sociedade, com frequência, dependendo do momento
ou situação estaremos correndo o risco de sermos vítimas ou algozes.
O território da cegueira branca...
Nas instituições, a violência decorre da cultura geral de violência
de que falávamos e da organização visando a manutenção da ordem que
consolida lugares de poder e controle dos sujeitos.
Sobre a instituição12 devemos lembrar que ela é condição básica
31
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
do desenvolvimento humano. Produto das interações humanas. Nascemos
numa família, crescemos construindo nossa identidade nos grupos que
participamos, seja a escola, a religião, o trabalho, a tribo. Portanto, sempre
estaremos ligados uns aos outros em graus variáveis. A questão, portanto,
não é crucificar a instituição, mas perceber suas várias finalidades, pensálas e transformá-las a partir de valores éticos revigorados.
Na dinâmica institucional12, o modo de relação que está na base de
qualquer tipo de violência, a relação de domínio e submissão, também
se apresenta no que chama de violência institucional na Saúde. Segundo
Foucault, a violência institucional3 historicamente se engendrou nos presídios, escolas, instituições psiquiátricas, que usavam o castigo moralmente
legitimado pela sociedade.
A violência institucional na área da Saúde decorre de relações sociais marcadas pela sujeição dos indivíduos. Data na transformação do
hospital antigo no hospital moderno3,5, sob os então “novos” métodos
organizacionais. Historicamente, foi se configurando desde o controle,
a alienação e o não reconhecimento das subjetividades envolvidas nas
práticas assistenciais. Na vertente da organização científica do trabalho
criaram-se as castas dos que pensam e dos que obedecem, levando-se ao
estado de alienação do sujeito em relação ao seu trabalho, à instituição e
ao contexto social em que se inscreve a sua prática que não só torna seu
trabalho mecânico e sem sentido como potencialmente violento, porque
perde qualidades fundamentais para o contato técnico e sensível necessário às relações intersubjetivas na Saúde.
O assim chamado institucionalismo11 resulta dessa forma de violência e faz com que a instituição de saúde passe a provocar doença ao invés
do cuidado e da cura. Fatores que levam ao desenvolvimento do quadro
clínico são:
- Uso da disciplina e rigidez hierárquica para organização e controle
do trabalho;
- Supremacia do fenômeno biológico e da intervenção sobre um
corpo descontextualizado de sua história;
- “Dessubjetivação” das pessoas envolvidas nas práticas;
- Desenvolvimento de especialidades e tecnologias que fazem a clí-
32
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
nica das doenças e não a clínica das pessoas historicamente constituídas;
- Hegemonia do discurso médico em torno do qual orbitam discursos de
outras disciplinas, na maioria das vezes construídos sobre o mesmo modelo;
- Uso do discurso do saber para o exercício do poder e de diversos
tipos de comportamento de dominação e submissão tanto entre profissionais, quanto em relação aos pacientes;
- Formas de comunicação apenas descendentes e ausência de direito
ou recurso das decisões superiores.
Por outro lado, temos que considerar alguns elementos mais sutis
que escapam a essa constatação sobre o modo como se encontra hoje a
vida institucional na Saúde. Lembremo-nos de que, em cada época, se
constroem saberes legitimados socialmente, diretamente implicados nas
práticas sociais, entre as quais a Saúde.
Na nossa sociedade coloca-se a ciência positivista como hegemônica4 e desautoriza-se outros campos que anteriormente davam respostas
às inquietações humanas como a Arte, a Religião, a Filosofia, os espaços
coletivos de reflexão. Com isso, a sociedade ganha eficiência nas áreas
tecnológicas, mas perde sustentação humanística para compreender a subjetividade humana.
Por exemplo: diminuindo as vias de escoamento representacional,
o mal- estar existencial passa a ser percebido como sensação de doença
e requer respostas na Medicina, no remédio, na intervenção no corpo13.
Acrescente-se a maior ou menor vulnerabilidade psíquica e biológica de
cada um para o surgimento da patologia mental e temos a prevalência
crescente dessas patologias: estados depressivos, estados ansiosos e fóbicos, somatizações, adições (obesidade, alcoolismo, abuso de drogas).
Consoante a essa demanda, desde a década de 1970 vem se desenvolvendo um modo de fazer clínica psiquiátrica que se apoia preferencialmente na teoria dos neurotransmissores e no uso de drogas, tanto para
os casos em que os sintomas são indiscutíveis manifestações reativas a
situações inerentes ao estar vivo, quanto aos casos de indicação precisa.
Passamos da fase em que todo comportamento incompatível aos ideais da sociedade burguesa era passível de internação e a loucura3 estava
ligada à paixão, à falta de reflexão, contrapondo-se ao juízo e à virtude.
33
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
Os avanços médicos do século XX desenvolveram outras referências para
a patologia mental, menos apoiadas no juízo moral do comportamento
desviante e mais “científica” dentro dos princípios da Medicina moderna.
Entretanto, indo de um extremo para o outro nos encontramos diante da
absurda situação que nos coloca os códigos de classificação de doenças2,
no seu furor nosográfico que patologiza as expressões humanas em todas
suas nuances, prestando-se muito mais aos interesses pecuniários dos seguros saúde e ao progresso das vendas de psicofármacos pelas indústrias
farmacêuticas, que aos propósitos terapêuticos a que se destinariam por
princípio.
Nesse sentido, a humanização na Saúde (contra a violência institucional) chama à reflexão sobre em que se apoiam nossos saberes e práticas
e quanto somos carregados por determinações sociais que imprimem interesses na nossa atividade.
Longe da cegueira, perto da humanização
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”
Retomo a epígrafe porque acredito que esse é o nosso movimento
de escolha.
Pensar a humanização, sob o ponto de vista que adotei neste trabalho, diz respeito a pensar em que contexto sociocultural se engendram as
patologias e as práticas de saúde das quais somos agentes.
Vivemos numa sociedade complexa10, que, entre outros aspectos, se
caracteriza pela velocidade e profusão de informações, superficialidade
das relações afetivas e desarticulação dos universos simbólicos que tecem
a malha de apoio social do indivíduo no coletivo. Preconiza-se o livre
acesso aos bens de consumo sem que se forneçam democraticamente os
meios práticos para o seu alcance. Exaltam-se o individualismo, a competitividade e o sucesso pessoal à custa da neutralização das diferenças e o
acomodamento a modelos idealizados de bem-estar e prazer que limitam
expressões diversas das subjetividades e não são possíveis a todos.
Nesse meio, as patologias e principalmente as mentais reproduzem
no cenário da vida privada o modo de funcionamento social sustentado na
contradição, alienação, isolamento e angústia.
34
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
Se deslocarmos nosso foco de observação para o interior das instituições de Saúde12, não será surpresa perceber que também nelas essas vivências se expressam, em graus variáveis. Subliminarmente, a não consciência
da estrutura maior em que estamos imersos reproduz tudo aquilo que observamos como características das sociedades contemporâneas: aprisionamento a valores descontextualizados, alienação, indiferenciação, individualismo
e o aniquilamento das chances de manifestações de subjetividade.
Voltando às nossas reflexões iniciais, consideramos que as ações de
promoção da saúde devem ter como base a compreensão da vida humana
na diversidade de suas expressões individual e coletiva. Tal atitude pressupõe a consciência de que todos nós estamos imersos nesse universo histórico de representações da vida, do prazer, do sofrimento, da morte, no qual
se armam encruzilhadas que, para alguns, é a captura para a doença.
Os vários discursos na instituição constituem-se da sobreposição
do sujeito psíquico (que comporta a dimensão de cada história pessoal)
no sujeito institucional (lugar de representação, de imagos culturais, de
papel social). Recuperar o lugar dessas duas dimensões é a perspectiva da
humanização.
A humanização como reação à violência institucional na Saúde busca recuperar o lugar das várias dimensões discursivas dos sujeitos que
atuam ou recorrem às instituições de saúde, desconstruindo relações de
dominação-submissão e dando lugar à construção de saberes compartilhados e o desenvolvimento dos potenciais de inteligência coletiva14 definidos
por Levy como “a valorização, a utilização otimizada e a colocação em sinergia das competências, imaginações e energias intelectuais, independentemente de sua diversidade qualitativa e de sua localização” (Levy, 1993,
p.36), que se traduz na comunicação, no debate e na divulgação das ideias
para a construção de projetos e ações coletivas em sinergia com princípios,
missão e visão institucional coletivamente construídos.
Cabe novamente perguntar: qual é o nosso papel como agentes de
Saúde nessa sociedade?
Não temos como negar que respondemos por pelo menos duas funções, uma manifesta, outra nem tanto. Nossa função manifesta é a promoção da saúde, e a outra é a criação de respostas para conflitos inerentes à
35
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
vida na sociedade que, direta ou indiretamente, recaem sobre os corpos.
Nessa vertente, tanto quem pratica quanto quem recebe cuidados de
saúde está exercendo cidadania. E mais, ambos estão atuando no campo
dos direitos, em contraponto à violência. Os direitos humanos15 constituem um sistema de conhecimento e prática que busca integrar direitos
subjetivos com direitos sociais – algo absolutamente em sintonia com a
humanização.
Os direitos subjetivos falam das liberdades individuais, e os direitos
sociais, dos direitos que devem ser garantidos pelo estado: saúde, trabalho,
educação entre outros.
Os direitos absolutos são exatamente o campo do nosso trabalho e
a base de qualquer perspectiva de cidadania tanto para os profissionais
quanto para os pacientes. Entre eles estão: o direito à vida, a não ser discriminado, a não ser torturado ou receber tratamento ou punição cruel,
desumana ou degradante, a ser reconhecido como pessoa perante a lei e à
liberdade de pensamento.
O bom cuidado da saúde é um direito humano e quando podemos
exercer nossas atividades profissionais decentemente estamos exercendo
nossos direitos de cidadão, caso contrário estamos no meio da encenação
de uma farsa, cegos ou não.
Para finalizar, gostaria de lembrar a crônica de Carlos Drummond
de Andrade,16 nos dizendo da fixação humana pelo verbo matar, que desliza seu desejo homicida nos vértices de inocentes expressões linguísticas
cotidianas com as quais vivemos matando o tempo, matando a fome. Matamos aula, matamos charadas. Nosso dedo polegar é o mata piolhos. E
termina brincando e nos chamando a refletir que:
“Se a linguagem espelha o homem, e se o homem adorna a linguagem com tais subpensamentos de matar, não admira que os atos de
banditismo, a explosão intencional de aviões, o fuzilamento de reféns, o
bombardeio aéreo de alvos residenciais, as bombas e a variada tragédia dos
dias modernos se revele como afirmação cotidiana do lado perverso do ser
humano. Admira é que existam a pesquisa de antibióticos, Cruz Vermelha
Internacional, Mozart, o amor.” (1993, p.67.)
Não sei por quê... Mas acredito no poeta!
36
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
Referências Bibliográficas
1. Saramago, J. Ensaio sobre a cegueira, São Paulo, Companhia das
Letras, 1995.
2. Bezerra Jr, B. org. Cidadania e Loucura, Petrópolis, Editora Vozes e
Abrasco, 1987.
3. Foucault, M. Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1986
4. Mendes Gonçalves, R. B. Medicina e história: raízes sociais do trabalho médico, tese de doutorado, FMUSP, 1979, mimeo.
5. Foucault, M. O nascimento da clínica, Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1977.
6. SBPC, Violência, Revista Ciência e Cultura, nº.1, 2002.
7. Costa, J.F. Violência e Psicanálise, Rio de Janeiro, Graal, 1986.
8. Minayo, M.C. Violência e Saúde como um campo interdisciplinar e de
ação coletiva, História, Ciências, Saúde vol.IV, nov 1997-fev 1998.
9. Ministério da Saúde, Saúde Brasil 2006: Uma análise da desigualdade em saúde, Brasília-DF, 2006.
10. Birman, J. Mal Estar na Atualidade, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.
11. Vethencourt, J. L., Psicología de la violencia. Gaceta APUCV/IPP,
62: 5-10, 1990.
12. Souza, M. L. R. O Hospital: um lugar terapêutico? Percurso nº.9, 2,1992.
13. Benoit, P. Psicanálise e Medicina. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1989.
14. Levy, P. As tecnologias da Inteligência – O futuro do pensamento na
era da informática. São Paulo: Editora 34, 1993
15. Ayres, J. R., Calazans, G., França Jr, I. “Saúde coletiva e direitos humanos – um diálogo possível e necessário” Anais do VI Congresso Brasileiro
de Saúde Coletiva.
16. Andrade, C. D De notícias e não-notícias faz-se a crônica, Rio de
Janeiro, Record, 6ª. Ed, 1993.
37
CAPÍTULO III
O Realce à Subjetividade:
assim começa a Humanização
na atenção à Saúde
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
“Porque eu sou do tamanho do que vejo, e não do tamanho da minha
altura.” Alberto Caieiro
Para começar...
O primeiro princípio norteador da PNH “A valorização da dimensão
subjetiva e social em todas as práticas de atenção e gestão”1, logo no início
da sua cartilha, destaca a importância da dimensão subjetiva na Humanização, dimensão esta que, ao longo do último século, foi se esmaecendo
das práticas até a quase total desconsideração2, muito embora, inerente à
condição humana, jamais possa desaparecer. Mas, o que se quer dizer com
valorizar a dimensão subjetiva, ou em outros termos, trabalhar no campo
da subjetividade na área da Saúde?
Minha proposta neste texto é fazer algumas reflexões sobre essa
questão, particularmente no que se refere à atenção, sem pretensão de dar
conta do assunto, mas com desejo de aproximação ao tema. Para começar,
vou assumir a redação na primeira pessoa do singular, porque se trata da
minha visão sobre o assunto, e por que me parece meio estranho falar de
subjetividade usando uma linguagem que não considera a própria...
É possível que há uns bons anos, mais precisamente até a década
de 1940, a relação médico-paciente fosse mais próxima, e nesse sentido
mais humana, uma vez que diante de tão poucos recursos diagnósticos e
terapêuticos, a proximidade do médico com seu paciente era quase um
imperativo técnico3 para o seu ofício. No clássico Tratado de Medicina
Interna de Cecil4, Lewis Thomas ilustra essa afirmação ao narrar uma impressão sua guardada da infância a respeito dos poucos recursos da Medicina e a dedicação do médico, no caso, seu pai: “Há aqui um mistério, e
esse é um aspecto da medicina que tem sido esquecido por muitas pessoas,
médicos e pacientes. Uma vez identificada a natureza da enfermidade e a
notícia transmitida ao paciente, aconteciam várias outras coisas. Primeiro, o médico assumia a responsabilidade pelo desfecho, fosse ele o melhor
ou o pior. E talvez mais importante que tudo, ele se tornava um arrimo.
Tornar-se um arrimo significava passar aos fatos, o que o médico fazia:
ele podia não ter muito na sua maleta preta e não ter poções mágicas para
servir e certamente nada que pudesse colocar ou tirar de um computador,
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Heterônimo de Fernando Pessoa – “ Guardador de Rebanhos” , Poemas Completos
de Alberto Caeiro, Editora Martin Claret, 1ª. ed., 2006.
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
porém ele tinha sua presença e aí estava a diferença. Sir William Osler
costumava ensinar que isso poderia fazer toda a diferença do mundo, caso
o médico entendesse o que estava ocorrendo ao seu paciente e usasse essa
compreensão e se tornasse disponível ao mesmo tempo como uma fonte de
esperança e força, esses atos de habilidade profissional poderiam melhorar a situação. Eu acredito nessas coisas, mesmo que não as compreenda
bem.” (Cecil, 1984, pp. 38-39) A presença do médico e o cuidado possível
pelo conhecimento e compreensão da situação do paciente são tidos pelo
autor como atos de habilidade profissional.
As grandes mudanças que marcaram nossa História contemporânea5 refletem-se na área da Saúde em cenários nos quais nessa antiga
mala preta (que hoje mais parece uma bolsa de Mary Poppins) há muito
mais recursos para diagnosticar, intervir e medicar, e cada vez menos a
presença realmente interessada e disponível do médico, e sejamos justos,
não só deste, mas de toda estrutura do serviço de Saúde, que acaba se
configurando em um labirinto frio e impessoal. Mudanças no processo
de trabalho médico3 decorrentes da capitalização da Medicina e o aparato
institucional e tecnológico interposto na relação com o paciente, assim
como a organização hierárquica, a comunicação descendente e a gestão
centralizada dos serviços respondem por grande parte do mal-estar das
instituições de Saúde. Mal-estar que desencadeou movimentos teóricopráticos6 que hoje se agregam sob a bandeira da Humanização, que bem
antes de ser política pública (Política Nacional de Humanização – PNH),
se expressava na luta antimanicomial, na humanização do parto e nascimento, na criação de ambientes hospitalares mais acolhedores, partindo
do ponto comum de tentar ultrapassar o recorte biológico e alcançar as
muitas dimensões existenciais da pessoa que busca atenção à saúde (e da
que lhe atende!).
Com certeza, o primeiro nó crítico da realidade das práticas de Saúde
que, sob o enfoque da humanização, procurou-se desatar foi a questão da
“dessubjetivação” dos envolvidos nessas práticas. Por esse caminho, uma
das primeiras conceituações7 adotadas na Secretaria de Estado da Saúde de
São Paulo para a Humanização dizia: “Humanização é o processo de transformação da cultura institucional que reconhece os aspectos subjetivos das
41
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
relações humanas, os valores socioculturais e os funcionamentos institucionais na compreensão dos problemas e elaboração de ações de saúde,
melhorando as condições de trabalho e a qualidade do atendimento.” (Rios,
2003, pp.20), conceito que pouco tempo depois encontrou respaldo na
referida cartilha da PNH1.
Sem nos deixar cair na busca nostálgica do médico à semelhança do
pai do nosso protagonista citado há pouco neste texto (que era o médico
do seu tempo), posto que hoje os tempos são outros, voltando à minha
questão inicial, a pergunta é: do que trata essa dimensão subjetiva escotomizada que agora queremos que venha à luz dos nossos olhos? Reitero:
não acredito nas propostas de se tentar recuperar um modo de ser de outras épocas, ainda que aparentemente fosse mais acolhedor, uma vez que
pensar a subjetividade, e o trabalho nesse campo, hoje envolve conhecimentos e habilidades técnicas e éticas marcadamente contemporâneas.
Dos meus autores mais caros8,9,10 utilizo a definição de subjetividade
como o resultado de processos relacionais contínuos de natureza biológica,
histórica, psíquica, social, cultural, religiosa, que se condensam ou sedimentam no indivíduo e lhe determinam características particulares. Resultado
de processos relacionais, a subjetividade tem caráter dinâmico, contínuo e
sistêmico, e se constrói nas relações com o mundo e com as pessoas11.
A subjetividade nos diz sobre o modo ou modos de ser das pessoas
em determinado tempo e lugar. Embora as pessoas sejam bastante diferentes entre si, as subjetividades8 se constituem da interação entre o mundo
interno (incluindo a biologia) e a história, valores e lugares da cultura
da época, presentes desde antes do nascimento, a começar pela própria
família que preparou o berço. Comporta um plano singular (aquilo que só
diz respeito a mim mesma – minha constituição física, minha biografia,
meus desejos e atos) e um plano coletivo (aquilo que compartilho com outros seres humanos em um mesmo tempo – a linguagem, as necessidades
básicas, os valores socioculturais). De forma muito simplificada, a título
de exemplo, diríamos que a subjetividade capitalista12 produz a homogeneização dos indivíduos, a normatização e massificação do pensamento
segundo um sistema de valores consumistas. A subjetividade narcísica dos
tempos atuais8, 9 produz comportamentos de descrença em relação ao ou-
42
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
tro, isolamento e solidão, segundo um sistema de valores que têm o eu
como sua referência. Portanto, quando falamos de subjetividade estamos
dizendo de processos que se dão no indivíduo e no coletivo determinando
modos de ser no singular e no plural. Assim como o mundo externo incide
sobre nosso mundo interno, e nesse encontro molda nossa identidade, nós
também somos agentes de transformação do mundo externo, cenário onde
expressamos nossa singularidade.
No campo da subjetividade, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo, não existe neutralidade nas relações humanas. Mesmo quando
aparentemente distanciadas pelo saber específico de uma técnica que trabalha na concretude do corpo, como faz o modelo biomédico2 de atenção à
saúde. Ainda que nesse modelo de atenção o corpo seja pensado pelos profissionais como organismo, para o paciente e sua família, continua sendo
corpo com nome próprio, portanto histórico, social, psíquico. E mais, no
que se refere às relações que se estabelecem, pode-se ignorar os efeitos
subjetivos que causam nos profissionais, pacientes e familiares, mas suas
memórias vão guardar essas marcas silenciosas, e não menos atuantes na
constante remodelagem das subjetividades das pessoas envolvidas.
Isto posto, através do prisma psicanalítico, proponho uma vista panorâmica da dimensão subjetiva da condição de paciente e da condição de
profissional da Saúde manifestas no dia-a-dia do nosso trabalho quando
do encontro de ambos.
O paciente e os aspectos psíquicos do adoecimento
Em um tempo distante, cada um de nós teve uma primeira pessoa
que cuidou de nós quando éramos bebês. E depois vieram outros: pessoas
da família ou não, médicos, professores, amigos. A subjetividade começa
a ser construída em uma relação13 que se dá no território que compreende
o corpo do bebê e da sua mãe. O corpo a todo tempo cuidado, protegido,
acariciado, é o palco de histórias e emoções que são construídas e guardadas na memória que assim é, tanto psíquica, quanto corporal13,14. Sobre o
corpo biológico do bebê em relação com o outro que lhe cuida se constrói
o que, na Psicanálise, chamamos de corpo erógeno14,15, ou seja, uma estrutura que é ao mesmo tempo física, emocional e histórica. Carrega a mate-
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O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
rialidade da carne, líquidos e processos físico-químicos no mesmo invólucro
da alma. Por isso, tocar o corpo será sempre provocar sensações, puxar pela
memória, e escrever mais uma linha na história da vida da pessoa.
Na prática, não existe procedimento técnico, clínico ou cirúrgico,
que não provoque emoções, sentimentos, lembranças, e não deixe seus
rastros de impressões, efeitos e memória. Isso é importante porque os pacientes podem reagir ao contato físico com o profissional da Saúde de um
modo que a gente muitas vezes não entende, porque não se trata apenas de
um sentir por vias neurais... Mas um sentir carregado de vivências muitas
vezes inconscientes para o próprio paciente. Nessa hora, precisamos dar
um desconto e mesmo que jamais saibamos os porquês de suas reações, a
nós cabe a calma, a habilidade para contornar a situação e se possível, a
sabedoria de não julgá-los.
Tocar o corpo, mesmo que feito de modo absolutamente técnico e
ético (como sempre deve ser, sendo o contrário totalmente inaceitável),
nunca será sentido como um ato asséptico. Particularmente quando o tema
a ser revisto no corpo for o sexo.
Sexo e subjetividade formam uma trama irredutível. De novo, da
Psicanálise, aprendemos que o desenvolvimento da sexualidade está na
base do desenvolvimento da identidade14,15. Nascemos seres sexuados, e
antes mesmo de nos sabermos como um “eu” vivente, recebemos nomes
e cuidados segundo o gênero. Para os meninos, azul. Rosa, para as meninas... É bem verdade que a sexualidade infantil13,14 (e hoje, espera-se que
todo profissional da Saúde saiba) não é a mesma coisa que a sexualidade
adulta, mas é no ambiente cultural que suas insígnias se inscrevem. No
campo da subjetividade e dos processos relacionais que o constituem, a
construção da identidade se dá junto ao desenvolvimento da sexualidade
durante a infância e a adolescência pela composição de vivências corporais, culturais e emocionais que formam a matriz da personalidade adulta.
O processo é bastante complexo e absolutamente belo, como só é possível
na natureza essencialmente humana da nossa existência.
Não sei se tão breve colocação de um tema cujo aprofundamento
foge ao escopo deste texto seja suficiente para fazer perceber que, no nosso cotidiano de profissionais da Saúde, precisamos estar atentos porque,
44
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
em sã consciência, ninguém pensa em sexo como genitais internos e externos do ponto de vista semiológico (exceto nós, talvez...). Lembro agora
de um episódio no posto de saúde em que eu trabalhava. A educadora de
Saúde fazia grupos de gestantes para ensinar como funciona o organismo
feminino na gravidez. Ela tinha vários materiais ilustrativos, com fotos e
modelos tridimensionais de útero, ovários, útero gravídico, fetos, enfim...
No primeiro encontro com as gestantes, seu objetivo era ensinar-lhes o
que é a fecundação do óvulo pelo espermatozóide. Bem intencionada, ela
começou o encontro perguntando às moças ali presentes: vocês sabem
como engravidaram? E aí foi risinho para cá, faces coradas para lá e estava
literalmente na cara que todo mundo pensou numa cena, num lugar, numa
pessoa, em tudo, menos no óvulo com o espermatozóide!
Não dá para separar a memória do corpo.
E quando a pessoa adoece, então...
Com a disseminação das informações de toda e qualquer natureza
pelos meios de comunicação, qualquer pessoa tem acesso a notícias de
cunho médico, ainda que muitas vezes de forma e conteúdo inadequados.
O tempo da inocência acabou... É cada vez mais comum o paciente chegar
com um diagnóstico em mente e querer dirigir a prescrição, conforme viu
na televisão e na Internet. O profissional da Saúde não é mais o detentor
de um saber guardado entre seus pares, mas alguém que deve ser capaz
de mediar esse saber junto aos seus pacientes e sociedade, considerando a
singularidade de seu acontecer em cada pessoa.
O que precisamos ter em mente é que, o paciente, bem informado ou
não acerca da sua doença, quando se apresenta para nós é, antes de tudo,
alguém que pensa e reage à sua doença de modo particular e inconscientemente busca em nós mais que o conhecimento sobre sua doença, o suporte
para os acontecimentos psíquicos devidos a esse adoecimento. As possibilidades são muitas, mas invariavelmente, o que acontece são singularidades diretamente vinculadas às experiências de vida. Porque como dizia,
não há acontecimento no corpo que não evoque lembranças, sentimentos,
culpas, desejos e tratar um paciente como um todo significa ter sensibilidade para tudo isso, ou no mínimo, respeito e comportamento ético.
Lembremos que cada um teve uma experiência particular com o primeiro
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O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
cuidador e os demais que surgiram ao longo da vida, e assim quando do
encontro com o profissional de Saúde no momento do adoecer, vai nele
depositar demandas que se referem a essas vivências, o que pode facilitar a
construção do vínculo terapêutico ou impedi-lo totalmente, de acordo com
a capacidade do profissional de perceber ou não essa dimensão afetiva do
paciente, presente no modo como o paciente se dirige a ele e, em quase
todos os casos, manifesta explicitamente quando ele sabe conversar com o
paciente sobre a vida e não só sobre sintomas.
Há pouco tempo acompanhei um familiar a uma consulta com um
médico especialista, professor titular de uma importante escola médica de
São Paulo. A paciente apresentava-se bastante fragilizada devido à doença
e recorrera a ele, que sendo médico e professor, lhe trazia à lembrança o
marido há muitos anos falecido e que também tinha sido médico e professor de Medicina. Um médico muito querido e admirado por sua competência técnica e humana. Bem, o nosso professor aqui a recebeu com elegante
e educada frieza, em quinze minutos escrutinou-a com precisão técnica
e mandou fazer alguns exames. Quando ela o interrogou sobre o retorno
para ver os exames, ele lhe disse que os mandasse pelo correio e ele lhe
daria as orientações terapêuticas por telefone. Inconformada, pois o retorno para complementação da primeira consulta trata-se inclusive de um
direito do paciente segundo o Código de Ética Médica, em vão ela tentou
reivindicar mais espaço de encontro e de conversa com o professor titular,
que se manteve firme como o mármore do piso do seu belo consultório
particular. O problema da falta de competência ético-relacional na atenção
à Saúde não é privilégio dos serviços públicos como às vezes querem nos
fazer crer... Acontece também nos melhores endereços da cidade.
Alguns autores14, 16,17 postulam que ao adoecer, principalmente
quando de um evento mórbido relativamente grave, é comum ocorrer o
processo de regressão narcísica, ou de retorno do interesse e energia (libido) da pessoa para ela mesma. O retorno ao narcisismo14 diz respeito ao
modo de funcionamento psíquico que guarda semelhança com o modo
subjetivo característico dos tempos precoces da vida psíquica normal, mas
que no caso de um adulto pode significar comportamentos incômodos
para ele próprio e seus cuidadores. Nesse modo de funcionamento psíqui-
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O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
co14, ressurgem sentimentos habituais na tenra infância, ligados a vivências
de desamparo e dor e a necessidade de ser cuidado por alguém dotado de
especial capacidade de empatia e poder de proteção, tal como foi a mãe, ou
sua substituta. A emergência dessas emoções por si só já pode desencadear
muita angústia ao paciente, pois, na maioria das vezes, estamos falando de
um adulto, uma pessoa independente, que estava vivendo dentro de contingências mais ou menos sob seu controle até ser interrompido pela doença. O
abalo que a doença causa na imagem que o sujeito tem de si e a necessidade
de cuidados para restaurá-la pode aparecer na forma de exigências ansiosas
do paciente e de seus familiares para com o profissional da Saúde.
Por outro lado, o desligamento das energias psíquicas dirigidas ao
mundo e a sua consequente volta para si mesmo (regressão narcísica) faz
parte de um processo necessário para o acúmulo de forças para o restabelecimento. Se os conflitos que esse estado pode acarretar forem bem equacionados, ou seja, se o profissional compreender que se trata de alguém fragilizado vivendo um momento difícil, saber um pouco de sua vida anterior
(como em outras situações difíceis ele se comportou, o que lhe faz bem ou
mal, enfim saber um pouco do modo de ser do paciente), e principalmente
se conscientizar de que muito do que depositar nele (profissional) se deve a
esse estado de coisas e não propriamente a algum tipo de julgamento sobre o
mesmo, é muito provável que ao invés de confusão e perplexidade, paciente
e profissional da Saúde unam esforços no sentido da cura.
A escuta do que os pacientes contam nas bordas do roteiro da anamnese nos revela o quanto a doença não é algo externo à suas vidas, como
a princípio pode parecer. Ao contrário, o adoecimento está ligado ao modo
de ser e viver das pessoas, sendo que a terapêutica deve considerar essa
ordem de valor. Esta observação é particularmente valiosa para as doenças
crônicas e aquelas chamadas psicossomáticas17 (mas cabe ressaltar que
todo ser humano é psicossomático, ainda que tenhamos dificuldades para
alcançar a dimensão mais verdadeira dessa afirmação).
Para outras pessoas, a regressão, a demanda de cuidados e a mobilização da família pode ser algo desejado. Pode ser do interesse do paciente
enquistar-se na condição de doente14,16, como uma forma de vida protegida e circunscrita no refúgio da doença. Nesses casos, a cura pode ser sen-
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O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
tida como uma ameaça e para que ela ocorra será necessário trabalhar pela
aquisição de capacidade para cuidar de si mesmo e assumir uma atitude de
maturidade, o que nem sempre será possível sem a ajuda de psicoterapia.
Há também aqueles casos em que a doença é uma forma de se obter
gratificações sociais diversas ou mesmo se livrar de grandes sofrimentos
psíquicos contra os quais não se consegue encontrar outras armas, por
exemplo, quando a doença exige que o sujeito se afaste de relações ou
situações que lhe são incômodas18. Infelizmente, essa situação é muito
recorrente entre pessoas vivendo situações de trabalho penoso, muito freqüentemente na área da Saúde e da Educação... O modelo mecanicista18
que as instituições adotam para o trabalho na Saúde, além de não promover a saúde integral dos pacientes, é também causa de adoecimento para
nós mesmos.
Por fim, cabe lembrar que o lado oculto da queixa, ao qual estamos
nos referindo nessas reflexões sobre aspectos subjetivos do adoecimento,
é, na maioria das vezes, oculto também para o próprio paciente, pois se
tratam de manifestações inconscientes. Este, sem saber, repete junto ao
profissional de Saúde padrões de vinculação19 semelhantes aos que viveu
com sua mãe, com seu pai, ou com aqueles que foram significativos em
sua vida em outros tempos. Demanda-lhes o amor, ou a responsabilidade,
ou a correção que esperava dessas figuras, e responde conforme seu desejo
de ser amado ou de desafiar uma autoridade.
O profissional da saúde e o lugar do cuidador
Meu convite agora é acompanhar algumas ideias sobre o lugar do
profissional da Saúde (aqui pensado e referido como cuidador) no contexto atual das práticas de saúde e mais particularmente no que se refere
a seus matizes subjetivos. Penso esse lugar como uma instância sobredeterminada que comporta o papel social que é atribuído ao profissional, o
imaginário cultural do qual faz parte, as películas mnêmicas que o paciente lhe deposita (como vimos anteriormente) e, é claro, sua pessoa real, sua
personalidade e história pessoal.
O papel social3 do profissional da Saúde é definido pelo modo como
se organiza a sociedade. Não pretendo aprofundar este estudo nessa ver-
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O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
tente, mas vale a pena lembrar que esse papel comporta o cumprimento de
funções que respondem a demandas dirigidas a uma área técnica específica (referentes à profissão propriamente dita) e a demandas que se dirigem
ao universo representacional da área da Saúde na nossa sociedade20: lugar
de promoção da saúde, de amortecimento de conflitos sociais, de medicalização, ou de referenciamento do mal-estar social e psíquico vivenciados
como doença no corpo, produção de riqueza através da venda de serviços,
equipamentos, insumos, drogas, enfim, está no papel social ser agente de
várias ações de um conjunto maior sob regência da sociedade como um
todo.
Outra dimensão que pesa na construção do lugar do cuidador diz
respeito ao imaginário cultural16, aqui definido como conjunto de representações forjadas historicamente que compõem a identidade cultural do
cuidador para o paciente e para o próprio profissional dentro de uma
mesma época e lugar. Por exemplo, da imagem do curador-sacerdote e
seus rituais, passando ao médico hipocrático que conduz a restauração
do equilíbrio do homem com a natureza, até chegar ao médico moderno
e os milagres tecnológicos que “vencem a morte”, sobre o profissional
da Saúde recai tudo o que o paciente não sabe de si mesmo e espera que
o cuidador saiba. Espera-se que seja piedoso e solidário, um missionário
que dedique sua vida ao cuidado do próximo, um cientista que descubra
a origem e o fim dos males, um profundo conhecedor do corpo humano e
das técnicas e tecnologias capazes de manter seu perfeito funcionamento,
beleza e vitalidade.
Mas é importante notar que tais imagens, ainda que carregadas de
rastros históricos, se referem ao nosso tempo, a contemporaneidade. Vejamos um dos porquês. O ato de cuidar, até o século XIX, significava tratar
a doença com todos os (poucos) meios possíveis e esperar que Deus processasse a cura. Ao médico cabia fazer diagnóstico e prognóstico já que os
recursos terapêuticos e tecnológicos eram muito escassos. Vem daí a frase
célebre de Ambroise Paré “Eu o tratei, Deus o curou”(cit Benoit, 1989,p.98).
À doença, à cura e à morte restava uma face oculta, referente à vida secreta do enfermo, cujo mistério era acessível apenas a Deus, cabendo a este o
ato decisivo sobre seu destino. Com a descoberta da penicilina e o advento
49
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
dos antibióticos na década de 50, foi se criando uma nova concepção do
que seria o tratamento. Em surdina, foi ocorrendo a transferência do papel
divino de curar para o papel do médico e da terapêutica medicamentosa
na sociedade contemporânea. Nesse movimento fez-se também a transferência dos questionamentos psíquicos sobre a vida, o sofrimento, a dor e a
morte. “Onipotências à parte, o certo é que, ao se transformar o hospital,
e não a casa, no local onde as pessoas adoecem e morrem, todas essas
questões anteriormente compartidas pela sociedade como um todo se encontram agora circunscritas àquele espaço.” (Pitta, 1990, p.31).
Quando uma pessoa adoece, conscientemente procura no cuidador
a resposta para a doença e, inconscientemente, para os acontecimentos
ocultos que acompanham o adoecer. O lado oculto que se apresenta na
base da relação do profissional da Saúde e o paciente são as questões existenciais (a face encoberta do sofrimento, da dor e da morte) e históricopessoais (a vida íntima do paciente, sua realidade psíquica, desejos, medos,
culpas, amores e ódios mortais...) que podem ou não estar incidindo sobre
o corpo e o modo de entender e reagir ao adoecimento.
A essas dimensões mais ou menos compartilhadas por todos cuidadores de uma época, soma-se a dimensão pessoal. Nesta, um aspecto
importante que contribui fortemente para a constituição da sua atitude e
identidade profissional é a formação acadêmica21. A observação dos professores em ação, assim como os métodos de ensino e a cultura institucional da escola, imprime marcas, induz modelos, carrega emblemas e
valores morais. Em todas as profissões da área da Saúde, mas certamente
na Medicina e enfermagem, o profissional vai deparar constantemente
com questões da vida, do sofrimento e da morte e a responsabilidade direta
sobre elas. Algo fascinante, mas muito assustador e angustiante. Não serão
poucas vezes que sentimentos de onipotência se reverterão em impotência
e culpa. Se desde a formação21 não se aborda de forma humanística os
conflitos tanto de pacientes quanto de profissionais, mas ao contrário, ora
sumariamente negando-os, ora rechaçando-os por meio do distanciamento
afetivo e do discurso científico, o resultado é aquele conhecido por todos
nós na prática: aumento da distância entre profissional e paciente, aumento das defesas contra o sentir, e reforço da postura tecnicista e até mesmo
50
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
cínica, por não se saber lidar com emoções próprias e dos pacientes.
O profissional da Saúde nunca estará imune às determinações do papel social, do lugar imaginário, das demandas conscientes e inconscientes
dos pacientes, da formação acadêmica e, como não poderia deixar de ser,
principalmente da sua personalidade. Tanto que a pessoa do profissional
é decisiva para o resultado do cuidado ao paciente. Sua visão de mundo,
valores, desejos, história, relação com a profissão, convicções religiosas,
políticas e científicas, enfim todo o seu ser subjetivo influi sobre o modo
como se dá a sua prática diária, e as transferências19 psíquicas (inconscientes) do profissional e do paciente.
Desenvolver sensibilidade para o conhecimento próprio e do outro pode ser protetor contra sentimentos inerentes à própria natureza do
trabalho22, 18, entretanto não tem sido essa a saída eleita para lidar com
essas questões. Em seu estudo, Pitta observou que o contato íntimo com
pacientes mobiliza desejos e conflitos libidinais nos profissionais que exigem constante dispêndio psíquico para ser controlados, sob o risco de
desencadear forte ansiedade e instabilidade emocional. Para se defender
das sensações de ansiedade, culpa, dúvida e incerteza, os profissionais desenvolvem recursos18 que muitas vezes se voltam contra sua própria saúde,
tornando as pessoas que trabalham na Saúde particularmente suscetíveis
ao sofrimento psíquico e adoecimento devido ao trabalho. Tais recursos
são chamados sistemas sociais de defesa e incluem (Pitta,1990, p.65-67):
1. Fragmentação da relação técnico-paciente;
2. Despersonalização e negação da importância do indivíduo;
3. Distanciamento e negação dos sentimentos;
4. Tentativa de eliminar decisões pelo ritual de desempenho das tarefas;
5. Redução do peso da responsabilidade.
Em outro extremo, a importância do trabalho nessa área, frequentemente, faz com que a vida profissional se hipertrofie ao custo da vida pessoal. O envolvimento do profissional com seu ofício pode chegar a limites
imprecisos entre dedicação e esvaziamento da vida pessoal em outros contextos, reduzindo outras possibilidades de experimentação do mundo e se
restringindo à busca de satisfação estritamente no ambiente de trabalho.
Torna-se comum o sentimento de solidão e o pouco cuidado consigo mes-
51
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
mo quando a vida profissional engloba os espaços da vida pessoal.
O desejo de cura faz parte do tratamento, mas sobreposto à realidade, cria um embate de forças entre a onipotência da vontade e os limites
da existência. Certas perguntas precisam ser consideradas frente ao “furor
curandis”: o que é não desistir de um paciente? O que é aceitar os limites
das possibilidades? O que é o bem? Bem para quem? Para o paciente ou
para o profissional? Até onde nos é permitido avançar na direção do nosso
desejo (ou necessidade), considerando que o desejo é o motor da vida, mas
se delirante e obsessivo torna-se também violento e destrutivo. Reforço:
saber administrar-se bem e com bom senso é a arte da relação interpessoal
e do cuidado consigo mesmo. Reflexões fundamentais para amortecer a
frustração dos inevitáveis fracassos, a depressão e o sentimento de impotência – sofrimentos inerentes à profissão.
Para terminar...
A partir do que foi dito sobre a dinâmica do paciente e o lugar do
cuidador no campo da subjetividade, fica mais claro por que na relação
do profissional de Saúde com o paciente, a terapêutica dificilmente será
recebida somente como uma lista de procedimentos e cuidados, mas sim
como um compromisso que o paciente vai assumir ou não de acordo com
os sentimentos que o profissional da saúde lhe suscite: confiança, hostilidade, desprezo, dependência, amor, raiva... Vimos também que esses sentimentos são desencadeados por ligações inconscientes entre as impressões
do paciente sobre o profissional da Saúde e registros mnêmicos inconscientes da experiência de ser cuidado por alguém, funcionamento psíquico
que Freud chamou de transferência. A transferência19 é um fenômeno inconsciente que ocorre em qualquer relação entre as pessoas, e diz respeito
à projeção de imagens de personagens da história pessoal do indivíduo
sobre a pessoa com quem se dá a relação. Frente a essas reedições de figuras,
geralmente identificatórias, o indivíduo assume posições pré-determinadas
e busca repetir padrões conhecidos de comportamento e satisfação. Constituem verdadeiros clichês, cristalizações de posições e lugares previamente
determinados. Ou seja, podemos estar atentos a isso ou não, mas nosso trabalho sempre estará localizado no terreno das histórias de vida.
52
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
E por aí, encontramos outra face do atendimento humanizado. Como
disse ainda há pouco, o profissional não é um elemento neutro na atenção
à saúde16, 21. O modo como se porta diante do paciente, seja com atitude
carinhosa e maternal, ou autoritária e arrogante, refere-se à sua história
pessoal. O seu temperamento, valores, preconceitos e emoções são ministrados a cada paciente de modo diverso e, na maioria das vezes, não calculado
e sequer percebido. E aí está o problema (e também a solução...). A base do
vínculo que permite uma relação dialógica de confiança e potencialmente
terapêutica se assenta no campo das subjetividades em jogo. Palavras e atos
veiculam mensagens terapêuticas ou iatrogênicas, pois são interpretadas
como vindas de um lugar psíquico19 da história do paciente.
Em grande parte, a arte do trabalho do cuidador21 está em sua capacidade de administrar, com bom senso e adequadamente, a sua própria
pessoa e ao paciente de acordo com as necessidades deste, em doses adequadas. Certamente que para isso, o profissional deve ter algum conhecimento de si mesmo e de seu modo de ser e agir frente às situações e
impasses do seu ofício. O ideal pessoal, o que deseja de si mesmo como
profissional a partir de sua história, seus valores, emoções, preconceitos,
variáveis que inclusive podem mudar frente às diferenças das pessoas envolvidas nessas relações.
Outro fator igualmente importante na relação dessa dupla é o modo
como se organiza o trabalho na instituição de Saúde. O profissional da
Saúde que trabalha sob as rédeas da organização científica do trabalho
sofre as consequências do controle, da disciplina, da fragmentação das
tarefas cuja articulação com a totalidade do processo de trabalho fica obscura. Trabalha, portanto numa situação de alienação22, descontextualização e “dessubjetivação” de suas práticas, pano de fundo que por si só já
serve de elemento facilitador para estados e manifestações patológicas de
ansiedade. Acrescente a natureza do seu trabalho, o regime de turnos18, os
baixos salários que fazem esses profissionais se sobrecarregarem com dois
ou mais empregos, e as condições de trabalho estressantes: temos os requisitos necessários para o colapso da humanização na atenção à saúde.
Nesse sentido, não podemos deixar de assinalar a importância dos
cuidados do profissional consigo mesmo para que se mantenha capaz de
53
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
cuidar dos seus pacientes. Acredito que esse cuidado deva se desenvolver
em dois âmbitos: pessoal e institucional.
Reafirmo aqui a necessidade de o profissional promover o autoconhecimento e refletir sobre o impacto da prática na sua vida. Fantasias de onipotência no trabalho, cujas raízes inconscientes estão nas suas marcas históricas, trazem no seu reverso a culpa e a impotência quando as limitações da
realidade se impõem. A capacidade de transformar essas desilusões de forma
positiva traz progresso para o sujeito, mas em geral isso só é possível quando
são passíveis de análise e reflexão, muitas vezes difíceis e dolorosas.
No âmbito institucional, os programas de humanização têm enfatizado a importância do cuidado do profissional. Além das propostas de
mudanças estruturais na organização dos processos de trabalho e gestão
dos serviços, preconiza-se a criação de espaços de discussão e contextualização dos impasses, sofrimentos, angústias e desgastes a que se submetem
os profissionais da Saúde no seu dia-a-dia. Espaços nos quais seja possível
recuperar histórias e subjetividades pelo exercício da fala e escuta, devolvendo à palavra sua potência terapêutica, organizadora do psiquismo, e
estruturante das relações entre as pessoas. Entretanto, infelizmente, iniciativas concretas nesse sentido ainda são bastante modestas...
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Saúde, Brasília, DF, 2004.
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10. AYRES, J.R. Sujeito, Intersubjetividade e Prática de Saúde, Rev. Ciências e Saúde Coletiva n.6, vol 1, 2001.
11. HABERMAS, J. Consciência Moral e Agir Comunicativo, Rio de
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12. MEZAN, R. Subjetividades Contemporâneas?, Conferências do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, SP, pp.12-17, 1998.
13. WINNICOTT, D W Da Pediatria à Psicanálise, Rio de Janeiro, Francisco
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15. LECLAIRE, S. O corpo erógeno, São Paulo, Escuta, 1992.
16. BENOIT, P. Psicanálise e Medicina. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar,
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17. FERRAZ, F, VOLICH, R M. Psicossoma: psicossomática psicanalítica.
São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 1997. 234 pp
18. PITTA, A. Hospital: dor e morte como ofício . São Paulo: Ed. Hucitec,
1990. 200 pp
19. FREUD, S. A Dinâmica da Transferência, (Edição Standard Brasileira,
v.12, 1912). Rio de Janeiro, Imago, 1980.
20. FOUCAULT, M Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1986
55
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
21. BALINT, M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Ed.
Atheneu, 1988. 291pp
22. DEJOURS, C A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho 2ed., São Paulo, Cortez/Oboré, 1987
56
CAPÍTULO IV
A Cultura Institucional da
Humanização
A Cultura Institucional da Humanização
I. O que estamos chamando de Cultura Institucional da Humanização?
Cultura Institucional ou, segundo outros autores, Cultura
Organizacional1,2 diz respeito ao conjunto de valores, hábitos, procedimentos, normas e afetos produzidos pelas pessoas e pelo conjunto institucional no trabalho. Caracteriza um ambiente de trabalho, influenciando
o comportamento das pessoas no seu interior, tanto para a ação a seu
favor, quanto contra (contracultura). Três dimensões culturais3, presentes
de forma simultânea, fazem parte do que estamos chamando de cultura
institucional:
1. A dimensão tecnológica, que compreende a tecnologia material
(máquinas, materiais diversos) e a tecnologia organizacional (procedimentos técnicos de organização do trabalho, conhecimentos e habilidades para
a ação, definição de papéis);
2. A dimensão institucional, que se refere ao conjunto de normas de
funcionamento e de relacionamentos sociais, crenças e valores compartilhados;
3. A dimensão afetiva, que se traduz pelos sentimentos e emoções que
permeiam as relações entre as pessoas, e destas para com a instituição.
Nessa leitura, a cultura institucional resulta da interação das pessoas
em um coletivo submetido a determinadas leis e princípios de organização
e funcionamento. É produzida por esse ambiente físico e humano e, reciprocamente, produz valores, atitudes e práticas que se expressam no modo
de ser das pessoas no trabalho. Qualquer instituição que deseje promover
mudanças organizacionais e comportamentais efetivas terá que conhecer
muito bem tais funcionamentos e trabalhar no âmbito desse campo marcadamente construído de subjetividades.
Na área pública do setor de Saúde4 essa questão ganhou relevância
quando começou a sofrer duras críticas em relação a algumas de suas características técnicas e políticas, particularmente no que se referia a:
1. A atenção à saúde dominada pelo modelo biomédico de compreensão e intervenção sobre o processo saúde-doença e o decorrente descaso
pelos aspectos humanísticos nele presentes;
2. A organização científica do trabalho que mecaniza procedimentos
que se inscrevem em um campo vivencial que requer elementos afetivos in-
58
A Cultura Institucional da Humanização
compatíveis com essa metodologia de organização do processo de trabalho;
3. O comando clientelista, assentado na rigidez hierárquica e nos
privilégios, na ausência de direito ou recurso das decisões superiores, na
forma de comunicação apenas descendente e na ignorância de saberes
referentes à gestão e administração de serviços.
Irrompeu dentro das próprias instituições um movimento técnico-político contra esse estado de coisas (identificado como uma cultura de violência institucional), que abriu espaço para o surgimento de ações e processos
de contracultura com o nome de Humanização. A Humanização surge, assim,
como resposta espontânea a um estado de tensão, insatisfação e sofrimento
tanto dos profissionais quanto dos pacientes, mediante fatos e fenômenos
somente justificáveis em uma cultura institucional de violência.
Antes da repaginada teórica, prática e política que recebeu nos últimos anos, a humanização se apresentava como um forte desejo das pessoas
pela mudança da cultura institucional na área da Saúde, particularmente
nos hospitais – estes vistos como lugares nos quais prevalecia o desrespeito à autonomia das pessoas e a falta de solidariedade4.
Hoje, a humanização tornou-se tão relevante para as transformações necessárias ao desenvolvimento do setor público da Saúde que o
Ministério da Saúde5 criou a Política Nacional de Humanização (PNH),
com foco na mudança de cultura institucional e nos processos de gestão
e de organização do trabalho. Os oito objetivos principais da PNH6 para a
humanização hospitalar são (Santos-Filho, 2006, p.16-48):
“1. Implementar gestão descentralizada e participativa
2. Assegurar ampliação de acesso, cuidado integral e resolutivo
3. Organizar a atenção e oferta de cuidados a partir da implementação de equipes multiprofissionais com métodos e instrumentos de orientação do trabalho
4. Propiciar participação e valorização dos trabalhadores no processo e gestão do trabalho
5. Promover Educação Permanente dos trabalhadores
6. Assegurar direitos dos usuários, controle social e ações de promoção à saúde no âmbito hospitalar
7. Adequar áreas físicas (seguindo o conceito de ambiência nos pro-
59
A Cultura Institucional da Humanização
jetos arquitetônicos e provisão de recursos materiais e insumos)
8. Promover qualificação e otimização a partir de instrumentos sistemáticos de avaliação”
Para o monitoramento6 de sua implementação criou indicadores de
referência que exigem ações transformadoras concretas na realidade dos
serviços. Destacam-se entre tais indicadores: a existência de plano de gestão
e avaliação baseado em metas; colegiado de gestão da unidade de saúde,
conselho gestor; projetos terapêuticos singulares elaborados por equipes
multiprofissionais; planos de trabalho estabelecidos com os trabalhadores,
baseados em resultados de avaliação de desempenho; processos sistemáticos
de avaliação de clima institucional e satisfação dos trabalhadores.
A Humanização não se basta mais em atividades lúdicas e amenidades para “amaciar” o ambiente de trabalho. Requer ações planejadas para
o desenvolvimento dos eixos que, segundo as referências tomadas neste
texto, definem a cultura institucional.
A PNH propõe uma grande mudança organizacional que permitirá
maior eficiência no setor e a valorização das pessoas em todas as práticas
de atenção e gestão. Mudança que envolve, essencialmente, comportamentos e relações de poder no sentido da gestão participativa7 ou co-gestão aqui definida como uma prática política, pedagógica e administrativa
que não se esgota na linha superior de mando e inclui o pensar e o fazer
coletivo, dando voz e vez para todas as pessoas envolvidas na atenção e
gestão das práticas de saúde. O que nos traz de volta à premissa inicial
deste texto, ou seja, promover a cultura da humanização é base para qualquer outro desenvolvimento previsto na PNH, ainda que, como veremos
adiante, a promoção dessa cultura, de certa forma, seja em si mesmo o
início da construção da gestão participativa a que se almeja.
Na prática cotidiana, algumas ações que fazem parte de todo programa de desenvolvimento da cultura da humanização nos serviços, indiretamente, criam bases para a gestão participativa, em qualquer contexto,
porque promovem a criação de espaços de discussão para a contextualização dos impasses, sofrimentos, angústias e desgastes a que se submetem
os profissionais de saúde no dia-a-dia (pela própria natureza do seu traba-
60
A Cultura Institucional da Humanização
lho), e estimulam o pensar e decidir coletivamente sobre a organização do
trabalho, envolvendo gestores, usuários e trabalhadores, em grupos com
diversas formações.
De um modo mais específico, a gestão participativa se dá por meio
da criação de instâncias de participação nas quais é possível considerar e
estabelecer consensos entre desejos e interesses diversos, do mesmo modo
que a prática da humanização para a mudança da cultura institucional.
Por exemplo: o conselho gestor de Saúde aglutina gestores, trabalhadores
e usuários para decidir os rumos institucionais; a ouvidoria faz a mediação entre usuários e instituição para a solução de problemas em âmbito
mais particular; as equipes de referência se compõem de profissionais que,
juntos, acompanham pacientes comuns ao grupo; os grupos de trabalho
de humanização fazem a escuta institucional e criam dispositivos comunicacionais; as visitas abertas propiciam parcerias com familiares para o
cuidado de seus parentes. Todos esses espaços fazem parte da PNH e de
qualquer proposta de gestão participativa.
Também de uso comum para a humanização dos serviços, algumas
ferramentas como as pesquisas de satisfação dos usuários e dos trabalhadores, ou as pesquisas de clima institucional e de fatores psicossociais do
trabalho8, podem ser bastante úteis para diagnósticos institucionais e para
o planejamento da ambiência (ambiente físico, social, interpessoal) e da
organização dos processos de trabalho.
Particularmente importantes são as estratégias, metodologias e ferramentas que se destinam ao desenvolvimento do profissional da área da
Saúde. Acreditamos que a atitude verdadeiramente humanizada requer,
necessariamente, a educação dos profissionais da saúde dentro dos princípios da humanização e o desenvolvimento de ações protetoras contra
as situações de sofrimento e estresse decorrentes do próprio trabalho e
ambiente em que se dão as práticas de saúde. Nessa direção, a PNH elege a
Educação Permanente9 como principal estratégia para o desenvolvimento
profissional na área da Saúde. Baseada na aprendizagem significativa, a
Educação Permanente constrói os saberes a partir das experiências das
pessoas. Nas rodas de conversa, oficinas e reuniões discutem-se os problemas de trabalho, propõem-se soluções gerenciais, mudanças na sua or-
61
A Cultura Institucional da Humanização
ganização e definem-se ações educativas de acordo com as necessidades
observadas.
Enfim, sabemos que a Humanização só se torna realidade em uma
instituição quando seus gestores fazem dela mais que um discurso, uma
cultura e um modelo de gestão. Retórica, boas intenções e programas limitados a ações circunstanciais não sustentam a humanização como processo transformador.
II. Como promover a cultura da humanização nos serviços de saúde?
O caso do CRT DST/Aids
A resposta à pergunta sobre como fazer para mudar a cultura nos
serviços de Saúde no sentido da humanização começou a ser formulada
antes mesmo da PNH, no programa que a antecedeu, o PNHAH (Programa
Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar), também do Ministério da Saúde. A estratégia proposta previa a criação de Comitês ou Grupos
de Trabalho de Humanização nos serviços de Saúde com a missão de planejar e implementar um plano de trabalho adequado à realidade e recursos
de cada instituição. O trabalho no CRT DST/Aids (Centro de Referência e
Treinamento em Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids do Programa
Estadual e da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo) tentou caminhar nessa direção. Passaremos agora ao relato dessa experiência.
Ações humanizadoras e atitudes em sintonia com os princípios citados sempre fizeram parte do CRT DST/Aids, pela sua própria história
de militância e parceria com a comunidade na luta pela cidadania e pelo
combate e controle da Aids no Estado. Em 2004, com a intenção de fazer
da humanização o fio condutor de uma ética que passasse por todos os
processos institucionais, o CRT nos convidou para elaborar e coordenar a
execução de um Plano de Desenvolvimento da Cultura da Humanização,
de acordo com a PNH.
Iniciamos o trabalho com um estudo exploratório das representações3 referentes à Humanização aqui compreendidas como as ideias,
imagens, palavras, expressões ou conceitos investigados com metodologia
qualitativa de pesquisa. Por meio de entrevistas em profundidade com
pessoas identificadas como informantes-chave de setores responsáveis
62
A Cultura Institucional da Humanização
pela assistência aos usuários e pela gestão de pessoas foi possível construir um primeiro desenho do que, no imaginário social desta instituição,
naquele momento, se configurava como Humanização. A escolha dessa
metodologia10,11,12 encontra amparo na literatura atual quando se refere a
estudos no campo da subjetividade. De forma bem resumida, a Humanização era compreendida como um modo afetivo de cuidar dos pacientes
“passar a mão na sua cabeça” e fazer tudo o que eles quisessem. As reações
frente a essa visão eram diversas, mas também de caráter emocional, simpáticas ou ciumentas, ou mesmo tão infantilizadas quanto a própria concepção que tinham sobre o tema... “Por que tudo para eles (os pacientes) e
nada para nós?”. Embora reconhecendo a existência de várias ações voltadas para os funcionários (Projeto Cuidando do Cuidador, Acolhimento
de Novos Funcionários, Atendimento da Medicina do Trabalho), era muito
comum entre os trabalhadores o comportamento de comparação e queixa.
Outras ações tidas como humanizadoras também se inscreviam no registro
da hospitalidade: brinquedoteca, Projeto Leia Comigo, arte terapia, coral,
teatro, feiras de funcionários e pacientes.
Era preciso promover uma discussão sobre Humanização, no seu sentido mais amplo, com a instituição inteira. O Plano de Desenvolvimento da
Cultura da Humanização para o CRT compunha-se das seguintes etapas:
1º. Passo: Sensibilização dos gestores sobre o que é a humanização
das práticas de atenção e gestão;
2º. Passo: Criação de um Comitê de Humanização com representantes de toda comunidade CRT;
3º. Passo: Capacitação do Comitê para os temas da humanização;
4º. Passo: Elaboração do plano de trabalho do Comitê para o período
2005-2006;
5º. Passo: Aprovação do plano pela Diretoria Técnica;
6º. Passo: Divulgação do plano para todo o corpo diretivo da instituição;
7º. Passo: Implementação do plano no biênio 2005-2006 ;
8º. Passo: Avaliação do trabalho realizado e modelagens para o próximo período.
Seguindo os passos assim definidos, realizamos quatro seminários
com os gestores das diversas áreas que compõem o CRT. Nesses encontros,
63
A Cultura Institucional da Humanização
pudemos discutir o tema com um pouco mais de profundidade, e identificar
as principais dificuldades para implantar a PNH do ponto de vista desse grupo. Para eles, o maior problema seria, uma vez iniciado, manter o processo,
pois se trata de algo que não permite conclusão em curto espaço de tempo
e a tendência desses projetos é ir se perdendo ao longo do tempo. Também
conversei, em particular, com cada gestor de grande área sobre suas dúvidas
e preocupações referentes à PNH e a escolha de uma pessoa representante da
sua área para compor o Comitê de Humanização do CRT.
O segundo passo foi a criação do Comitê. Cada gestor de grande área
indicou dois representantes e ainda incluímos no grupo dois usuários, dois
funcionários da ouvidoria, do grêmio de funcionários, do sindicato, da
então CIPA, da Comissão de Ética em Pesquisa, das Terceirizadas, da Qualidade e da Comunicação Social. O grupo assim formado, durante quatro
meses, participou de um curso de capacitação com metodologia de aprendizagem significativa e exposições dialogadas sobre os seguintes temas:
- História e conceitos de Humanização e da PNH;
- A Humanização no ambiente institucional do CRT;
- Subjetividade e cuidado nas práticas de Saúde;
- Estratégias, metodologias e ferramentas para a Humanização;
- Estrutura, missão e gestão do Comitê de Humanização;
- Elaboração do plano de trabalho.
Ao longo do curso, discutimos cada tema por referência à sua realidade no CRT e assim embasamos a construção e o funcionamento do Comitê
(descrito no seu regimento interno), e o plano de trabalho para o biênio 20052006, quando estreamos oficialmente no CRT, e na SES-SP, publicados no
Diário Oficial. Estava criado o Comitê de Humanização do CRT DST/Aids.
Sobre sua estrutura e funcionamento: o Comitê era um grupo formado por representantes de toda a comunidade CRT e uma coordenadora,
ligado diretamente à Diretoria Técnica e à área de Recursos Humanos,
definido como uma instância que trabalhava para a compreensão da nossa
realidade e para a elaboração (e às vezes, coordenação) de propostas para
o desenvolvimento da cultura institucional da Humanização.
Suas principais funções diziam respeito a fazer reconhecimentos diagnósticos de situação, disseminar as ideias da cultura da humanização em to-
64
A Cultura Institucional da Humanização
dos os espaços institucionais e propor ações e projetos junto às áreas a partir de suas realidades locais. Para cada projeto, formavam-se grupos-tarefa
compostos por pessoas do Comitê e outras de vários setores, com a duração
do tempo necessário para o planejamento e execução da tarefa. Todos os
grupos-tarefa eram supervisionados pela coordenadora do Comitê. Todos os
projetos, aprovados e incluídos no Planejamento Estratégico do CRT.
Na nossa visão, a cultura da Humanização se processa em dois planos de ação: junto às pessoas, discutindo e construindo valores que farão
parte das diretrizes de conduta ética e profissional, e junto às instâncias
gestoras, desenvolvendo competências para a gestão participativa.
Desse horizonte e da experiência real, no exercício de suas funções,
durante o período de 2005 a 2006, o comitê desenvolveu os seguintes
projetos e ações:
1. Oficinas de humanização para usuários, gestores e funcionários:
Realizamos 34 oficinas (30 para funcionários, 2 para usuários e 2
para gestores), alcançando 480 pessoas, dois terços do número total de
funcionários. As oficinas tinham como objetivo a divulgação e discussão
das ideias da Humanização, assim como os valores coletivos que devem
nortear a ação de todos na instituição. Metodologias ativas foram usadas
para estimular a participação das pessoas e na avaliação da atividade, a
maioria dos participantes (88%) achou o trabalho bom ou ótimo e gostaria
que houvesse mais oficinas dessa natureza.
2. Levantamento das ações humanizadoras no CRT:
Foi feita uma pesquisa para saber e divulgar o que as pessoas consideravam ações humanizadoras no CRT. Na visão dos trabalhadores, as
três ações principais eram: o acolhimento de novos funcionários, as ações
da Medicina do Trabalho (atendimento médico, programas de Saúde e de
qualidade de vida), o projeto Cuidando do Cuidador (espaço de encontro
para discutir temas relativos ao cotidiano do trabalho). Na visão dos usuários, as três principais ações eram: o acolhimento do pronto atendimento,
o grupo de adesão e a ouvidoria.
3. Pesquisa de satisfação do funcionário e clima institucional:
Com o objetivo de entender a visão dos trabalhadores sobre o trabalho no CRT, realizamos junto aos profissionais uma pesquisa de fatores
65
A Cultura Institucional da Humanização
psicossociais do trabalho (aspectos referentes à gestão, organização do
trabalho e relações interpessoais). Participaram da pesquisa 609 dos 731
funcionários em atividade, além das Terceirizadas (Cozinha, Segurança e
Limpeza), totalizando 83,3% do conjunto. Os resultados mostraram que os
trabalhadores do CRT DST/Aids tinham alto nível de consciência e motivação para o trabalho. Entretanto, mostravam-se insatisfeitos quanto à
participação e autonomia.
4. Condução do processo de constituição do conselho gestor do CRT:
Com o objetivo de constituir um Conselho Gestor no CRT DST/Aids
de forma integrada, participativa, envolvendo todos os segmentos desde sua concepção, o Comitê de Humanização organizou um evento para
usuários, funcionários e gestores para a discussão pública sobre controle
social e o convite à participação no trabalho. O grupo de trabalho organizado a partir desse evento contou com usuários, trabalhadores e uma
coordenadora com experiência em técnica de grupo operativo. Fez uma
agenda de reuniões quinzenais, ao longo das quais elaborou e executou o
plano de trabalho com as seguintes ações: divulgação das leis que regem
o controle social no SUS, definição de critérios para a candidatura de trabalhadores e usuários, organização de palestras e seminários abertos para
divulgação do que é um conselho gestor e do processo eleitoral na instituição, divulgação dos candidatos aceitos, organização do processo eleitoral
e posse dos eleitos. Além da criação do COGES-CRT, esse trabalho resultou
em maior discussão das ideias sobre controle social, participação popular,
gestão participativa, trabalho em equipe e humanização entre usuários,
gestores e trabalhadores da instituição.
Ao final desses dois anos de trabalho, pode-se dizer que a Humanização passou a constar da vida institucional, ainda que mais como horizonte utópico, que realidade concreta.
Em 2007, o Comitê realizou a Semana da Humanização, um grande
evento de integração de todas as áreas do CRT em torno do tema. Cada
representante de grande área e a coordenação do Comitê fizeram uma consulta aos funcionários sobre como percebiam a humanização no seu setor
e em seu próprio comportamento. Depois, com cada equipe, escolheram-se
os pontos de vista comuns a cada grupo e elaboraram pôsteres expondo as
66
A Cultura Institucional da Humanização
ideias do setor. O gestor responsável pela área recebeu o relatório completo
dessa investigação e durante sua participação na mesa de encerramento
do evento apresentou propostas de solução para os problemas apontados.
Durante a semana, os pôsteres e fotos das equipes ficaram expostos e todos
os dias, pela manhã, ou à tarde desenvolveram-se atividades: oficinas, palestras, seminários sobre vários temas da Humanização. O encerramento se
deu com essa mesa redonda composta pelo corpo diretivo do CRT, seguida
por um coquetel.
III. Nem só caminho suave, nem só caminho das pedras...
No início do nosso trabalho com a Humanização para os hospitais
da SES-SP, perguntávamos se chegaria um tempo em que não seria mais
preciso haver um Comitê de Humanização nas instituições para que a
Humanização se sustentasse como prática diária nos serviços. Ainda não
temos essa resposta, mas o momento presente nos diz que esse tempo (se
houver) ainda está bem longe.
Não são poucas as dificuldades enfrentadas ao longo desse caminho.
Em nossa experiência, os principais obstáculos ao seu desenvolvimento são:
- No próprio Comitê de Humanização: um dos problemas cruciais
é conseguir compor um comitê com membros que de fato sejam pessoas
sensíveis ao tema, próximas aos gestores e às equipes de sua área, com
tempo e vontade de trabalhar. Manter essas mesmas pessoas nos projetos
iniciados é outro problema. O rodízio de participantes é grande, dificultando muito a continuidade dos processos, ou sobrecarregando aqueles que
permanecem até o fim;
- No cotidiano institucional: é comum observarmos atitudes de resistência às ideias novas que a Humanização prega na contramão dos
valores narcísicos vigentes em nossa sociedade, do comodismo geral, do
descaso e inércia que caracterizam o comportamento de muitos funcionários públicos assegurados em sua estabilidade de emprego. Também é frequente o surgimento de resistências corporativas contra o que entendem
como um ataque ao seu poder de classe;
- No corpo diretivo: um grande problema é o despreparo dos gestores. Muitos gestores não têm qualquer formação para o seu trabalho. São
67
A Cultura Institucional da Humanização
amadores e aprenderam ofício na prática (com todos os vícios e virtudes).
A estrutura do poder é engessada e, mesmo diante de evidências contundentes da incompetência de alguns, não muda, não abre espaço para
novos talentos, não cria um plano de carreira interno que possibilite a
ascensão das pessoas pelo esforço, capacidade e desempenho.
No caso do CRT, a Humanização cresceu e apareceu. Somado ao que
já existia e foi potencializado, ao que foi planejado e feito pelo próprio
Comitê e ao que foi estimulado pela disseminação das ideias da humanização, percebe-se um intenso movimento discursivo que ao longo do tempo,
espera-se, consolide a cultura da Humanização.
O trabalho em equipe envolvendo usuários e trabalhadores revelouse estratégia bem sucedida tanto para o alcance do objetivo comum a que
se destina, quanto como meio, em si mesmo, para a participação comunitária na instituição. A aliança por meio do trabalho diminui a distância
entre o paciente e o profissional de Saúde, sem descaracterizar lugares
e competências. O técnico tem a especificidade do seu conhecimento, o
usuário a força do seu saber e, ambos, o compromisso com uma história
em construção.
Outra via derivada do compromisso com a Humanização foi a criação de um espaço institucional voltado especificamente para o aprimoramento da instituição e de seus trabalhadores. Em 2007, a área de Recursos Humanos criou o Núcleo de Desenvolvimento13, com a missão de:
“Promover o desenvolvimento pessoal e profissional por meio da educação
permanente, da valorização dos profissionais, do aprimoramento das competências e talento das pessoas. Promover o desenvolvimento institucional
mediante políticas e ações que fortaleçam a cultura da humanização, a
gestão participativa e a organização dos processos de trabalho” (CRT DST/
Aids, 2007, p.3).
O Núcleo de Desenvolvimento constitui-se em um setor destinado
às questões da Humanização no seu sentido mais amplo. Muitas pessoas
que trabalhavam no Comitê foram para o Núcleo de Desenvolvimento,
mas, diferentemente do que acontece no Comitê, que trabalha pela humanização contando com a participação de pessoas que, além de todas as suas
tarefas habituais ainda contribuem para as tarefas da Humanização, o Núcleo
68
A Cultura Institucional da Humanização
de Desenvolvimento tem uma equipe voltada especificamente para o tema.
Entendemos esse desdobramento como um grande avanço, e é com
contentamento que vemos, ao longo desses poucos anos, as ideias da humanização ganhando espaço no CRT, assumindo diversos contornos e discursos.
Como no caso descrito, há várias experiências bem sucedidas de
serviços que estão sendo repensadas a partir das ideias da Humanização.
Mas, honestamente, temos de admitir: se por um lado a referência à Humanização tornou-se presente no dia-a-dia de muitos serviços de Saúde de
forma institucionalizada, sua manifestação espontânea no comportamento
das pessoas, ou sua prática profissional na gestão e na organização do
trabalho ainda requer tempo e investimento...
Referências Bibliográficas
1. BERNARDES, C. Teoria geral das organizações: os fundamentos da administração integrada. São Paulo: Atlas, 1988.
2. SCHEIN, E. Coming to a new awareness of organizational culture. Sloan
Manag. Rev., n.25, p.3-16,1984.
3. FALCÃO, E. B. M.; SIQUEIRA, A. H. Pensar cientificamente: representação de uma cultura, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.91-108,
2003.
4. SÁ, M. C. Em busca de uma porta de saída: os destinos da solidariedade,
da cooperação e do cuidado com a vida na porta de entrada de um hospital
de emergência (Tese), São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2005.
5. Brasil, Ministério da Saúde. HUMANIZASUS: Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde, Brasília, DF, 2004.
6. SANTOS-FILHO, S. B. Monitoramento e Avaliação na Política Nacional
de Humanização na Atenção Básica e Hospitalar – Manual com Eixos Avaliativos e Indicadores de Referência. Ministério da Saúde, DF, 2006.
7. Brasil. MINISTÉRIO DA SAÚDE (MS) Gestão e Formação nos Processos
de Trabalho, Brasília, DF, 2004.
8. KRISTENSEN, T.S. The demand-control support model: methodological
69
A Cultura Institucional da Humanização
challenges for future research. Stress Med, 11:17-26pp., 1995.
9. Brasil. Ministério da Saúde. A educação permanente entra na roda: pólos de educação permanente em saúde, Brasília, DF, 2005. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/educacao_permanente_entra_na_roda.pdf>. Acesso em: 24/06/2008.
10. MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em
saúde, São Paulo-Rio de Janeiro, Hucitec-Abrasco, 1994.
11. DENZIN, N. & LINCOLN, Y.S. Handbook of qualitative research. 2nd ed.
Thousand Oaks: Sage Pub., 2000.
12. LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A. M.; TEIXEIRA, J. V. O discurso do sujeito coletivo: uma nova abordagem metodológica. Caxias do Sul: EDUSC, 2000.
13. São Paulo CRT DST/aids Planejamento Estratégico do Núcleo de Desenvolvimento da Gerência de Recursos Humanos, São Paulo, 2007.
70
CAPÍTULO V
Modelo de Curso de
Humanização para Serviços
de Saúde
Conceitos básicos e estratégias para a ação
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Desde 2000, quando o Ministério da Saúde lançou o PNHAH (Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar), até os dias
de hoje, passando pela PNH (Política Nacional de Humanização) lançada
em 2003, constituem-se estratégia fundamental para o desenvolvimento
da cultura da Humanização nas instituições os chamados comitês, núcleos ou grupos de trabalho de Humanização. Entende-se que, sendo a Humanização um processo de transformação, é necessário que haja pessoas
capacitadas para sua compreensão teórica e utilização de metodologias
adequadas à sua implementação nos serviços.
A nosso ver, o Comitê é a primeira estratégia de desenvolvimento
da cultura da Humanização. Depois, como discutiremos no último capítulo
deste livro, outros recursos se fazem necessários. Entretanto, como primeiro passo para a construção de um novo cenário institucional, o Comitê é
fundamental.
Na área da Saúde, a Humanização se faz essencialmente:
1. Trabalhando a instituição;
2. Trabalhando as pessoas.
Ações simultâneas que envolvem várias pessoas em lugares, tempos
e projetos diferentes. Para que esse processo ocorra de forma integrada
e articulada é necessário que se constitua um “grupo pensante e atuante”, representativo de todos os setores e também dos usuários da instituição, empoderado pela vontade política e apoio do gestor, e composto por
pessoas tecnicamente competentes para as tarefas da humanização. Esse
grupo é o que doravante chamaremos de Comitê de Humanização, cuja
formação nos propomos agora a discutir e apresentar o modelo de trabalho
que utilizamos na Secretaria de Estado da Saúde, quando coordenamos o
Curso de Humanização na Área da Saúde – Conceitos e Estratégias para a
Ação, ministrado no período de agosto a dezembro de 2005.
A constituição do Comitê fica bastante facilitada se houver na instituição um profissional de nível superior da Saúde que possa ocupar o
lugar de coordenador do grupo. É importante que esse profissional seja
alguém reconhecido na instituição entre os trabalhadores e também pelos
gestores. Deve ser alguém com acesso aos gestores e por estes, respeitado.
É importante que seja alguém capaz de promover a aglutinação de pes-
72
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
soas sensíveis ao tema da Humanização e de atuar como um facilitador
para a compreensão teórica e prática da Humanização, capaz de transmitir
conhecimentos adquiridos e reconstruí-los em sua realidade local, provocando efeito multiplicador do saber e fazer humanizado.
Com o intuito de desenvolver profissionais dos hospitais públicos
estaduais para essa função de coordenador de Comitê de Humanização, em
2005 realizamos um curso para quarenta e dois hospitais. Da experiência
adquirida nesse trabalho, acrescida das atualizações que hoje se fazem
necessárias ao trabalho nessa área, elaboramos o projeto pedagógico de
um curso de humanização para capacitação de profissionais de Saúde que
queiram construir um comitê de humanização em seu serviço, ou mesmo
renovar saberes e planos do grupo em que atuam. A seguir, apresentamos
o Projeto Pedagógico.
Projeto pedagógico
Público-alvo
Profissionais da Saúde com nível universitário, gestores, gerentes e
diretores de unidades de Saúde com interesse em coordenar o processo de Humanização nos seus serviços.
Objetivo geral
Informar e capacitar os profissionais para a apreensão conceitual da
Humanização e a elaboração de estratégias para a sua aplicação prática no desenvolvimento humano e institucional em sua unidade.
Objetivos específicos
- Apresentar conceitos de Humanização;
- Apresentar experiências práticas de humanização na Saúde;
- Apresentar estratégias para a construção do Comitê de Humanização;
- Discutir as funções do Comitê de Humanização;
- Discutir as funções do coordenador do Comitê de Humanização;
- Auxiliar a elaboração de plano de trabalho de cada instituição.
73
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Conteúdo programático
1. Construção do conceito de Humanização / Experiências de humanização na área da Saúde;
2. Humanização com o foco nas pessoas:
- O olhar humano sobre o processo de adoecimento e o cuidar da
saúde;
- Fatores psicossociais do trabalho e o cuidado que deve ser dedicado àqueles que cuidam da saúde das pessoas.
3. Humanização com o foco na instituição:
- A Política de Educação Permanente;
- Os indicadores de humanização da PNH.
4. Estratégias para desenvolver a cultura da Humanização nos serviços;
5. Elaboração do plano de ação para a instituição de cada participante.
Estratégias de ensino-aprendizagem
As turmas podem ser de até 40 participantes.
O curso conta com carga horária total de trinta e duas horas (32h)
distribuídas em cinco aulas de quatro horas (4h) cada, uma por semana,
durante cinco semanas. Depois, se prevê um período de dispersão de três
meses e mais três encontros de quatro horas (4h) de duração, um por semana, para acompanhamento da execução do plano de ação desenhado na
primeira fase do curso.
Um coordenador orquestra as atividades de cada encontro, auxiliado
por quatro monitores que acompanham o trabalho nos pequenos grupos.
Cada encontro começa com uma atividade dirigida pelo coordenador do
curso e depois de um breve intervalo a turma é dividida em quatro grupos
de dez alunos para o trabalho prático e tarefa referente à sua realidade
institucional particular.
Na primeira parte do encontro usam-se aulas expositivas, discussão
de situações vividas, jogos dramáticos, recursos de linguagem audiovisual.
Na segunda parte, tarefas monitoradas em grupo.
Avaliação
Ao final da primeira fase do curso, procede-se à avaliação qualitati-
74
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
va das atividades desenvolvidas, no que se refere à:
- Assimilação das ideias da humanização;
- Elaboração dos planos de trabalhos individuais.
Após o último encontro para acompanhamento dos planos de ação,
avalia-se a situação em que estes se encontram e encaminham-se ações
futuras para correção de rota ou acertos de sua implementação.
Roteiro das aulas
1. Primeira aula – Humanização na Saúde.
Parte 1 – Apresentação do vídeo com documentário curta-metragem
Ilha das Flores, de Eduardo Coutinho, seguida de discussão sobre os
aspectos socioculturais (de nossa época) que o filme critica em contraponto aos valores do Humanismo – tempo estimado de 1 hora.
Parte 2 – Aula expositiva sobre História e conceitos da Humanização na Saúde (anexo 1) – tempo estimado de 40 minutos.
Intervalo – 20 minutos.
Parte 3 – Trabalho em pequenos grupos com monitor – tempo estimado de 1 hora.
Roteiro de discussão:
- Situação atual dos GTHs (Comitês ou Núcleos) de cada serviço;
- Como eles se situam em relação à PNH?
Relatório – tempo estimado de 1 hora.
Esquema do relatório:
- Quem somos: como está constituído o atual GTH, ou não temos
GTH, ou quem são os profissionais desta equipe que participam ou
querem participar dos projetos da humanização neste serviço.
- Nosso GTH representa a instituição?
- Como deveríamos nos compor para que o GTH do nosso serviço
representasse a instituição?
- Quais os princípios que devem orientar uma política de Humanização para o nosso serviço?
2. Segunda aula – O olhar humano sobre o processo de adoeci-
75
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
mento e o cuidar na Saúde.
Parte 1 – Oficina: Jogo do Abrigo Nuclear (anexo 2)
Divide-se a turma em três grupos. Cada grupo discute a tarefa proposta e escolhe um redator de suas escolhas. Os redatores apresentam o trabalho de cada grupo para toda a turma – tempo estimado
de 1 hora.
Parte 2 – Aula expositiva sobre aspectos subjetivos do adoecimento
(anexo 3) – tempo estimado de 40 minutos.
Intervalo – tempo estimado de 20 minutos.
Parte 3 – Trabalho em pequenos grupos com monitor – tempo estimado de 1 hora.
Roteiro de discussão:
- Quais os problemas que observamos nas relações entre profissionais e usuários?
- Que trabalhos desenvolvemos para melhorar essas relações?
Relatório – tempo estimado de 1 hora
Esquema do relatório:
- Quais os princípios éticos que devem orientar as relações entre as
pessoas no nosso serviço?
- Que ações podemos promover para o desenvolvimento dessa atitude ética coletiva que queremos para o nosso serviço?
- Que ações podem melhorar a qualidade do atendimento que oferecemos aos usuários?
3. Terceira aula – Fatores psicossociais do trabalho e o cuidado que
deve ser dedicado àqueles que cuidam da saúde das pessoas.
Parte 1 – Oficina: Leitura da fábula O anel (anexo 4)
Discussão da leitura em três grupos, tendo como questão o nosso
valor como trabalhadores da Saúde e as situações de Humanização
(ou não) em nosso cotidiano – tempo estimado de 1 hora.
Parte 2 – Trabalho em pequenos grupos com monitor – tempo estimado de1 hora.
Roteiro de discussão:
- Que problemas observamos em nosso ambiente de trabalho?
76
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
- Que trabalhos desenvolvemos para cuidar dos nossos trabalhadores?
Intervalo – tempo estimado de 20 minutos.
Parte 3 – Aula expositiva sobre cuidado para com o cuidador (anexo
5) – tempo estimado de 40 minutos.
Relatório – tempo estimado de 1 hora.
Esquema do relatório:
- Quais ações já desenvolvemos para os trabalhadores em nosso
serviço?
- Que outras ações podemos promover para o desenvolvimento humano e institucional? Como fazer?
4. Quarta aula – Estratégias para desenvolver a cultura da Humanização nos serviços.
Parte 1 – Aula expositiva sobre Educação Permanente (anexo 6),
e indicadores de Humanização da PNH – tempo estimado de 40
minutos.
Parte 2 – Trabalho em pequenos grupos com monitor – tempo estimado de 1 hora.
Roteiro de discussão:
- Quais os principais problemas de gestão que observamos em nosso
serviço?
Intervalo – tempo estimado de 20 minutos.
Parte 3 – Trabalho em pequenos grupos com monitor – tempo estimado de 1 hora.
Roteiro de discussão:
- Dos indicadores da PNH, em cada eixo, quais escolhemos para o
nosso atual plano de trabalho?
Parte 4 – Elaboração do pré-projeto do GTH do serviço – tempo
estimado de 1 hora.
Utilizando os relatórios realizados nos encontros anteriores e os indicadores escolhidos, o grupo deverá montar o pré-projeto de constituição de um GTH ou do plano de trabalho de seu GTH, conforme
o modelo descrito no quadro.
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Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Nome do projeto/plano
Introdução/Justificativas
Objetivos
Estrutura do Comitê
- Composição
- Funções
- Subordinação direta
- Normas de funcionamento
Etapas e Agenda da criação e implantação do Comitê
Proposta de Plano de Ação para o Comitê
- Ações com foco na gestão
- Ações com foco no usuário
- Ações com foco no trabalhador da Saúde
- Indicadores da PNH para monitoramento das ações
5. Quinta aula – Discussão dos planos de ação.
Parte 1 – Trabalho em pequenos grupos com monitor – tempo estimado de 3 horas.
Apresentação de cada plano de ação e comentários, sugestões, acréscimos pertinentes.
Intervalo – 20 minutos.
Parte 2 – Avaliação e encerramento do curso – tempo estimado de
40 minutos.
Após três meses faz-se uma conversa com cada grupo para acompanhar o andamento do projeto ou plano de trabalho. Em 2006, quando
foram realizados os encontros de avaliação previstos observamos que setenta por cento (70%) dos hospitais que participaram do curso conseguiram implantar seus projetos/planos de trabalho naquele ano.
Os Comitês de Humanização bem construídos e legitimados institucionalmente são fundamentais para as mudanças que se preconizam com
a Humanização. O curso que aqui apresentamos pode ser um começo.
78
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Agradecimentos
À Cleusa Maria Gomes de Abreu – CRH/SES-SP e monitoras convidadas para os cursos realizados, em 2005, no Centro de Desenvolvimento de Recursos Humanos da SES-SP: Yolanda Memrava Mendes, Cristina
Rossi de Almeida Alonso, e Solange Guedes de Oliveira.
Anexo 1 – Aula expositiva sobre humanização
Textos de apoio
- Humanização: a essência da ação técnica e ética nas práticas de
Saúde
- Violência e Humanização
Fonte dos slides
- Brasil. Ministério da Saúde. HUMANIZASUS – Política Nacional de
Humanização do Ministério da Saúde, Brasília, DF, 2004.
Humanização
É o processo de transformação da cultura institucional que
reconhece e valoriza os aspectos subjetivos, históricos e
socioculturais de usuários e profissionais, assim como os
funcionamentos institucionais, para a compreensão dos
problemas e elaboração de ações que promovam boas
condições de trabalho e qualidade no atendimento.
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Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Ministério da Saúde
• PNHAH (2000) - Subjetividades e relações entre as pessoas
• PNH (2003) - Modelos de gestão e processo de trabalho
Humanização como política
• Eixo norteador das práticas em saúde em todas as
instâncias do SUS, destacando o aspecto subjetivo presente
em qualquer ação humana: olhar cada sujeito em sua
história de vida e – como sujeito de um coletivo – sujeito da
história de muitas vidas.
• Traduz princípios e modos de operar no conjunto das
relações dos diferentes atores da rede SUS.
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Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Princípios norteadores da política de humanização
• Compromisso com a democratização das relações de
trabalho
• Valorização dos profissionais da rede, estimulando
processos de educação permanente
• Estruturar a atenção à saúde em todos os níveis
mediante critérios de acolhimento, vínculo, resolutividade,
integralidade e responsabilização entre trabalhadores,
gestores e usuários na rede de serviços.
• Promover ampliação e fortalecimento do controle social, com
gestões democráticas e participativas nos serviços de saúde.
• Promover ambiência acolhedora nos serviços de saúde.
Princípios norteadores da política de humanização
• Valorização da dimensão subjetiva e social em todas as
práticas de atenção e gestão
• Construção de autonomia e protagonismo dos sujeitos
• Apoio à construção de redes cooperativas, solidárias e
comprometidas com a produção de saúde e produção de
sujeitos
• Fortalecimento do controle social
• Fortalecimento do trabalho em equipe, favorecendo a
transversalidade e a grupalidade
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Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Exemplos de Ações Humanizadoras
• Recepção Humanizada/ Acolhimento
• Humanização do parto e nascimento
• Saúde mental do trabalhador da área da saúde
• Brinquedoteca
• Oficina de artes para pacientes e funcionários
• Atividades de sala de espera
• Biblioteca circulante, salas de leitura, Leia Comigo
• Oficinas de humanização para funcionários
• E muitos e muitos outros...
Humanização na área da saúde se faz
• Trabalhando a Instituição – Gestão e processo de trabalho
• Trabalhando as pessoas – Atitudes e padrão de ética
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Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Princípios norteadores da política de humanização
• Sensibilização dos gestores e diretores para o conceito e
as diretrizes da humanização
• Divulgação interna da humanização
• Organização do Grupo de Trabalho de Humanização (GTH)
da instituição
• Capacitação do GTH para a construção de um plano de
trabalho de humanização e para o exercício de suas funções.
Anexo 2 – Dinâmica de grupo
Abrigo Nuclear
Fonte: SÃO PAULO (ESTADO). SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE. Manual de Treinamento Introdutório do Programa Saúde da Família.
São Paulo: Polo de Educação Permanente em Saúde da Região Metropolitana de São Paulo, 2002.
Dentro de poucos minutos haverá um bombardeio aéreo sobre nós.
Em face desta ameaça de destruição imediata, faz-se necessário uma decisão igualmente imediata: existe neste lugar um abrigo nuclear perfeito,
capaz de abrigar apenas sete pessoas entre doze que querem nele se instalar neste momento.
Você e o seu grupo têm lugar garantido nele e serão os responsáveis
pela escolha dos outros seis que ficarão protegidos no abrigo.
Entre os que se apresentam nesta lista, escolham os seus seis companheiros:
-Um violinista de 40 anos, drogadependente
-Um advogado de 25 anos
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Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
-A esposa do advogado, 24 anos que acaba de sair de um manicômio. Ambos só aceitam ir para o abrigo juntos.
-Um sacerdote de 76 anos
-Uma prostituta de 28 anos
-Um ateu de 18 anos, autor de vários assassinatos
-Uma universitária religiosa carismática que fez voto de castidade
-Um biólogo, 32 anos, que sofre de ataques epilépticos
-Um homossexual, 47 anos, poliglota
-Um físico de 29 anos que só entra no abrigo se levar sua arma
-Um declamador fanático pela Bíblia, 20 anos de idade
-Uma menina de 12 anos com baixo QI
Anexo 3 – Aula expositiva sobre aspectos subjetivos do cuidado
Texto de apoio
- O realce à subjetividade – assim começa a Humanização da atenção à Saúde
Aspectos subjetivos
Aspectos éticos
Conceito de humanização: Humanização é o processo
de transformação da cultura institucional que reconhece
os aspectos subjetivos das relações humanas, os valores
socioculturais e os funcionamentos institucionais na
compreensão dos problemas e elaboração de ações de
saúde, melhorando as condições de trabalho e a qualidade
do atendimento.
Primeiro princípio norteador da PNH:
- Valorização da dimensão subjetiva e social em todas
as práticas de atenção e gestão.
84
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
“Porque eu sou do tamanho daquilo que
vejo, e não do tamanho da minha altura.”
(Alberto Caiero)
A subjetividade é o resultado de processos contínuos de
natureza biológica, histórica, psíquica, social, cultural,
religiosa, que se condensam ou sedimentam no indivíduo e
lhe determinam características particulares.
Diz respeito ao modo ou modos de ser.
Comporta um plano singular (aquilo que só diz respeito a
mim mesmo - minha biografia, meus desejos, atos) e um
plano coletivo (aquilo que compartilhamos com outros
seres humanos num mesmo tempo – a linguagem, as
necessidades básicas, os valores socioculturais).
85
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
O paciente e os aspectos psíquicos do adoecimento
• Regressão ao adoecer
• O adoecimento ligado ao modo de ser e viver
• A condição de doente como uma forma de vida protegida
• A doença como forma de obter gratificações sociais
A pessoa do profissional de saúde
O profissional não é um elemento neutro. O modo como
se porta diante do paciente, seja com atitude carinhosa
e maternal, ou autoritária e arrogante, refere-se à sua
história pessoal. O seu temperamento, valores, preconceitos
e emoções estarão sendo ministrados a cada paciente de
modo diverso e na maioria das vezes não calculado e sequer
percebido.
E é aí que está o problema (e também a solução...)
86
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Anexo 4 – Leitura em grupo do texto
O Anel
Um aluno chegou ao professor com um problema:
- Venho aqui, professor, porque me sinto tão pouca coisa, que não
tenho forças para fazer nada. Dizem que não sirvo para nada, que não faço
nada direito, que sou lerdo e muito idiota. Como posso melhorar? O que
posso fazer para que me valorizem mais?
O professor, sem olhá-lo, disse:
- Sinto muito meu jovem, mas agora não posso ajudá-lo, devo primeiro resolver meu próprio problema. Talvez depois. E, fazendo, uma pausa falou: Se você me ajudar, eu posso resolver meu problema com mais
rapidez e depois talvez possa ajudar você a resolver o seu.
- C...claro, professor, gaguejou o jovem, mas se sentiu outra vez
desvalorizado.
O professor tirou um anel que usava no dedo pequeno, deu ao garoto e disse:
- Monte no cavalo e vá até o mercado. Deve vender esse anel porque
tenho que pagar uma dívida. É preciso que obtenha pelo anel o máximo
possível, mas não aceite menos que uma moeda de ouro. Vá e volte com a
moeda o mais rápido possível.
O jovem pegou o anel e partiu. Mal chegou ao mercado começou a oferecer o anel aos mercadores. Eles olhavam com algum interesse, até o jovem
dizer quanto pretendia pelo anel. Quando o jovem mencionava uma moeda de
ouro, alguns riam, outros saiam sem ao menos olhar para ele. Só um velhinho
foi amável a ponto de explicar que uma moeda de ouro era muito valiosa para
comprar um anel. Tentando ajudar o jovem, chegou a oferecer uma moeda de
prata e mais uma de cobre, mas o jovem seguia as instruções de não aceitar
menos que uma moeda de ouro e recusava as ofertas.
Depois de oferecer a joia a todos que passavam pelo mercado e abatido pelo fracasso, montou no cavalo e voltou. O jovem desejou ter uma
moeda de ouro para que ele mesmo pudesse comprar o anel, livrando a
preocupação de seu professor e assim podendo receber sua ajuda e conselhos. Entrou na casa e disse:
- Professor, sinto muito, mas é impossível conseguir o que me pediu.
87
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Talvez pudesse conseguir 2 ou 3 moedas de prata, mas não acho que se
possa enganar ninguém sobre o valor do anel.
- Importante o que me disse meu jovem, disse sorridente. Devemos
saber primeiro o valor do anel. Volte a montar no cavalo e vá até o joalheiro. Quem melhor para saber o valor exato do anel? Diga que quer vender
o anel e pergunte quanto ele te dá por ele.
Mas não importa o quanto ele te ofereça, não o venda. Volte aqui
com meu anel.
O jovem foi até o joalheiro e lhe deu o anel para examinar. O joalheiro examinou o anel com uma lupa, pesou o anel e disse:
- Diga ao seu professor que, se ele quer vender agora, não posso dar
mais que 58 moedas de ouro pelo anel.
- 58 MOEDAS DE OURO! Exclamou o jovem.
- Sim, replicou o joalheiro, eu sei que com tempo eu poderia oferecer
cerca de 70 moedas, mas se a venda é urgente...
O jovem correu emocionado à casa do professor para contar o que
ocorreu. Depois de ouvir tudo que o jovem lhe contou, o professor disse:
- Você é como esse anel, uma joia valiosa e única. Só pode ser avaliada por um especialista. Pensava que qualquer um podia descobrir o seu
verdadeiro valor? E dizendo isso voltou a colocar o anel no dedo.
- Todos somos como esta joia. Valiosos e únicos e andamos por
todos os mercados da vida pretendendo que pessoas inexperientes nos
valorizem. Repense o seu valor!
Autor desconhecido
Anexo 5 – Aula expositiva sobre fatores psicossociais do trabalho
Textos de apoio
- O realce à subjetividade – assim começa a Humanização da atenção à saúde.
- Humanização no Ambiente de Trabalho – o estudo dos fatores
psicossociais.
88
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Fonte dos slides
- Pitta, A. Hospital: dor e morte como ofício . São Paulo: Ed. Hucitec,
1990.
- Volich, R. M. Entre uma angústia a outra..., Boletim de Novidades Pulsional, São Paulo, n.80 pp. 37-45, 1995.
- Dejours, C. “A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho” 2ed., São Paulo, Cortez/Oboré, 1987.
Objetivo deste encontro
Discutir os fatores psicossociais do trabalho e os
cuidados que devem ser dedicados àqueles que
trabalham pela saúde das pessoas.
A saúde do profissional da saúde
Na literatura geral: problemas de sono, perturbações na vida
familiar, tendências depressivas, problemas gástricos, fadiga
e estresse.
No estudo da Anna Pitta num hospital público da capital
paulista foram encontrados:
42,1% dos trabalhadores referiam problemas de saúde
60,2% queixas gênito-urinárias
57,7% poliqueixas
53,1% transtornos mentais
50,0% queixas mal definidas
42,0% doenças do aparelho digestivo
89
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Estratégias defensivas contra a sobrecarga emocional
• Coesão da equipe
• Hiperatividade verbal ou cinética
• Absenteísmo
• Chistes, anedotas
• Agressividade reativa contra pacientes e colegas
(Libouban)
Fatores psicossociais do trabalho
Segundo a Organização Internacional do Trabalho:
“ FPST são aqueles que se referem à interação entre e
no meio ambiente de trabalho, conteúdo do trabalho,
condições organizacionais e habilidades do trabalhador,
necessidades, cultura, causas extra-trabalho pessoais que
podem, por meio de percepções e experiência, influenciar
a saúde, o desempenho no trabalho e a satisfação no
trabalho.”
90
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Fatores psicossociais e satisfação no trabalho
• Estabilidade no emprego
• Salários e benefícios
• Relações sociais no trabalho
• Supervisão e Chefia
• Ambiente físico de trabalho
• Reconhecimento e valorização
• Oportunidades de desenvolvimento profissional
• Conteúdo, variedade e desafio no trabalho
• Espaços de fala e escuta
• Qualificação
• Autonomia
• Subutilização de habilidades e competências
• Carga de trabalho (física, cognitivas ou emocionais)
Alguns instrumentos de avaliação do ambiente de
trabalho e estresse
COPSOC – Copenhagen Psychosocial Questionnaire
Burn-Out Inventory – Maslach e Jackson
Pesquisa de satisfação do profissional – Ministério da
Saúde (PNHAH)
91
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Cuidando do profissional da área da saúde
“A forma suicida com que nos deixamos invadir pela
violência, sem nada fazer, é talvez um sinal desse desejo
latente de destruir o que não temos coragem para
transformar.”
Christophe Dejours
Âmbito Pessoal
“Tratar o outro é antes de mais nada, poder entrar
em contato com nosso próprio sofrimento e com as
expectativas que ele evoca em nosso foro mais íntimo.
Cuidando das feridas do outro, podemos também efetuar
o trabalho permanente de reparação de nossas próprias
feridas narcísicas.”
R. Volich
92
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Âmbito Institucional
Pensar a organização do trabalho, envolver gestores, pessoal de
RH, sensibilizando-os para as transformações necessárias no
ambiente de trabalho.
Promover a transparência organizativa e a participação do
trabalhador nas decisões relacionadas à sua tarefa e condições de
trabalho.
Garantir a todos oportunidades de desenvolvimento de habilidades
e conhecimentos.
Criar espaços para a contextualização e discussão dos impasses,
sofrimentos, angústias e desgastes a que se submetem os
profissionais de saúde no seu dia a dia.
Criar equipes interdisciplinares efetivas que sustentem a
diversidade dos vários discursos presentes na instituição.
Anexo 6 – Aula expositiva sobre Educação Permanente
Textos de apoio
- A cultura institucional da humanização
- Humanização e Educação Permanente
Fonte dos slides
- SUS de A a Z - http://dtr2004.saude.gov.br/susdeaz Departamento
de Gestão da Educação na Saúde/ SGTES/MS
- BERBEL, N. N.: “Problematization” and Problem-Based Learning:
different words or different ways? Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v.2, n.2, 1998.
93
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Análise crítica da formação e desenvolvimento de
pessoas para o SUS
• Inadequação da formação profissional em todos os níveis
às necessidades do SUS (capacidade de resolução, vínculo e
responsabilização);
• Má distribuição das instituições formadoras e das oportunidades
de formação;
• Profusão de iniciativas de capacitação pontuais, desarticuladas e
fragmentadas;
• Baixa capacitação pedagógica em metodologias ativas de
docentes, preceptores, tutores e orientadores dos serviços;
•Sistema de avaliação do ensino não pergunta sobre os
compromissos institucionais com o SUS, valoriza titulação de
professores.
Política de formação para o SUS
CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE: Resolução nº 335, de 27
de novembro de 2003.
Portaria MS no 198/GM/MS - 13 de fevereiro de 2004.
Objetivo
Construir uma política nacional de formação e
desenvolvimento para o conjunto dos profissionais de saúde
(educação técnica, educação superior, especialização) e
produção de conhecimentos para a mudança das práticas
de saúde, bem como a educação popular para a gestão das
políticas públicas de saúde.
94
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Resultados Esperados
• Profissional crítico, capaz de aprender a aprender, de
trabalhar em equipe, de levar em conta a realidade social para
prestar atenção humanizada e de qualidade;
• Universidade aberta às demandas, capaz de produzir
conhecimento relevante e útil para a construção do sistema de
saúde;
• Transformar o modelo de atenção, fortalecendo promoção
e prevenção, oferecendo atenção integral e fortalecendo a
autonomia dos sujeitos na produção da saúde.
Princípios
• Articulação entre educação e trabalho no SUS
• Produção de processos e práticas de desenvolvimento nos
locais de trabalho
• Mudanças nas práticas de formação e de saúde, tendo em
vista a integralidade e humanização
• Articulação entre ensino, gestão, atenção e participação
popular e controle social em saúde
• Produção de conhecimento para o desenvolvimento da
capacidade pedagógica dos serviços e do sistema de saúde
95
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Foco
Processos de trabalho e equipes: atenção, gestão, participação
e controle social, possibilitando a construção de um novo estilo
de gestão, no qual os pactos para reorganizar o trabalho sejam
construídos coletivamente e os diferentes profissionais passam a ser
sujeitos da produção de alternativas para a superação de problemas.
Método
Análise coletiva dos processos de trabalho que permitam a
identificação dos “nós críticos” enfrentados na atenção ou na
gestão e a construção de estratégias contextualizadas e dialogadas
entre as políticas e a singularidade dos lugares e das pessoas.
As atividades educativas são construídas de maneira articulada
com as medidas para reorganização do sistema, implicando um
acompanhamento e apoio técnico.
Dois conceitos de ensino-aprendizagem na saúde
Educação Continuada: alternativas educacionais mais
centradas no desenvolvimento de grupos profissionais,
seja através de cursos de caráter seriado, seja através de
publicações específicas de um determinado campo (NUNES);
Educação Permanente: estratégia de reestruturação dos
serviços, a partir da análise dos determinantes sociais e
econômicos, mas sobretudo de valores e conceitos dos
profissionais. Propõe transformar o profissional em sujeito,
colocando-o no centro do processo ensino-aprendizagem
(MOTTA);
96
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Distinções Conceituais entre Educação Permanente e
Educação Continuada
Educação Permanente
• Multiprofissional
• Prática Institucionalizada
• Problemas de saúde
• Transformação das Práticas
• Contínua
• Centrada na resolução de
problemas
Educação Continuada
• Uniprofissional
• Prática autônoma
• Temas de especialidades
• Atualização técnica
• Esporádica
• Pedagogia da transmissão
Educação Permanente
Metodologia
Aprendizagem Significativa
É um processo pelo qual uma nova informação se relaciona
com aspectos relevantes da estrutura de conhecimento do
indivíduo (AUSUBEL)
97
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
Problematização
O que é problematizar?
• Partir da realidade concreta do sujeito
• Criar o conflito cognitivo
• Criar uma situação onde o sujeito possa dar o seu
referencial
• Identificar o que precisa ser mudado
• Buscar os conhecimentos necessários para intervir na
realidade
Problematização
A primeira referência para essa Metodologia é o Método do
Arco, de Charles Maguerez, do qual conhecemos o esquema
apresentado por Bordenave e Pereira (1982).
Nesse esquema constam cinco etapas que se desenvolvem a
partir da realidade ou de um recorte da realidade:
1. Observação da Realidade
2. Pontos-Chave
3. Teorização
4. Hipóteses de Solução
5. Aplicação à Realidade (prática)
98
Modelo de Curso de Humanização para Serviços de Saúde
A Gestão da Educação Permanente em Saúde
CIES – Comissões de Integração Ensino-Escola
O QUE SÃO
Instâncias de articulação entre instituições formadoras, gestores do SUS,
serviços e as instâncias do controle social para a gestão da educação
permanente em saúde. Não executam ações.
EM QUE SE CONSTITUEM
Em espaços para o estabelecimento do diálogo e da negociação entre
as ações e serviços do SUS e as instituições formadoras;
No lócus para a reflexão de necessidades e a construção de estratégias
e políticas no campo da formação e desenvolvimento.
A QUE VISAM
Ampliar a qualidade da gestão;
Aperfeiçoar a atenção integral;
Popularizar o conceito ampliado de saúde e;
Fortalecer o controle social no Sistema.
Estratégias complementares para implementação da
Educação Permanente
• Aprender SUS
• Escolas Técnicas do SUS
• Rede de Ensino para a Gestão Estratégica do SUS (Rege SUS)
• Formação de ativadores de mudanças na graduação
• Formação de facilitadores de práticas de educação permanente
• Análise sistemática das práticas de ensino, de atenção, de
produção do conhecimento, de gestão setorial e de controle social
• Criação de espaços coletivos de discussão para intercâmbio e
construção de alternativas;
99
CAPÍTULO VI
Humanização e Ambiente de
Trabalho
O estudo de fatores psicossociais b
Humanização e Ambiente de Trabalho
Humanização e Ambiente de Trabalho
O estudo de fatores psicossociais3
Introdução
Dizia Freud1,2 que tem saúde mental quem é capaz para o amor e
o trabalho. Trabalhar é meio de prover sustento para o corpo e para a
alma. No trabalho passamos a vida, desenvolvemos nossa identidade, experimentamos situações, construímos relações, realizamos nosso espírito
criativo. E é também no trabalho que adoecemos.
A relação saúde e trabalho3,4,5,6,7,8 é objeto de estudo há vários anos,
por vários autores. Na era moderna, a organização científica do trabalho4,5,9
– por meio dos seus instrumentos de controle, disciplina e fragmentação
das tarefas – retirou do trabalhador a visão da totalidade do processo que,
ao final, revela o fruto do seu trabalho. Nesse estado de alienação, perdese o sentido sensível do trabalho que então se torna uma atividade penosa,
cujo retorno financeiro nunca lhe basta, ainda mais ao se considerar que
os salários dificilmente compensam o tempo de vida assim destinado. O
que se ganha não paga o que se perde...
Na área da Saúde, o trabalho é também quase uma missão. Não
são poucas as exigências: trata-se de trabalho reflexivo que articula dimensões técnicas, éticas e políticas, em cenários de múltiplos e diversos
atores – profissionais de formações diversas e usuários de todas as origens
e culturas. Além disso, trabalha-se no campo temático mais denso da experiência humana: a vida, o corpo, a morte.
O trabalho na área da Saúde tem um custo elevado para os seus
trabalhadores10,11. O ambiente insalubre, o regime de turnos, os plantões,
os baixos salários, o contato muito próximo com os pacientes, mobilizando emoções e conflitos inconscientes, tornam esses trabalhadores particularmente susceptíveis ao sofrimento psíquico e adoecimento devido ao
trabalho.
Entretanto, apesar da importância desses aspectos (muitos deles inerentes à profissão), é cada vez mais evidente que a organização do trabalho e o modelo de gestão9,12 concentram os principais fatores psicossociais
relativos ao ambiente de trabalho presentes no adoecimento dos traba-
102
b
Uma versão modificada foi publicada na Revista Saúde e Sociedade em 2008
Humanização e Ambiente de Trabalho
lhadores da Saúde. Não à toa, em 2004, quando implantou-se a Política
Nacional de Humanização (PNH) do Ministério da Saúde, elegeram-se os
processos de trabalho e gestão como os principais alvos das ações humanizadoras com as quais se pretende mudar a cultura institucional da atenção
à saúde para usuários e trabalhadores13,14. Dos princípios norteadores da
PNH destacam-se três que sustentam as necessárias mudanças na organização do trabalho e gestão na saúde (HumanizaSUS, 2004 pp.17):
- Fortalecimento do trabalho em equipe multiprofissional, fomentado a transversalidade e a grupalidade;
- Compromisso com a democratização das relações de trabalho;
- Valorização dos profissionais da rede, estimulando processos de
educação permanente.
No sentido contrário à realidade atual da maioria dos serviços de
Saúde13, em que os trabalhadores pouco participam da gestão dos serviços, a PNH propõe como diretrizes essenciais para a humanização das
práticas de saúde a gestão participativa, a educação permanente e o redimensionamento do trabalho para a produção de subjetividades. Não se
trata mais de pintar paredes e fazer brinquedotecas, ou recuperar a teoria
do vínculo. Ainda que tudo isso seja muito importante para a melhoria do
espaço e das relações humanas, não haverá humanização se não houver
profundas mudanças na forma do fazer institucional referentes à gestão e
à organização do trabalho, resgatando aos trabalhadores o protagonismo,
a dignidade, o respeito e a sensibilidade que se deseja ver aplicados no
cuidado aos pacientes15.
Nesse contexto, em 2004, no Centro de Referência e Treinamento
DST/Aids (CRT DST/Aids) realizamos uma Pesquisa de Fatores Psicossociais do Trabalho (FPST), sobre a qual nos debruçaremos agora.
Os FPST são dimensões referentes à gestão, organização e relações
interpessoais no trabalho16,6,7,8, que no ambiente físico e relacional podem
produzir a satisfação e o sentimento de realização, ou no seu revés, o sofrimento e o adoecimento do trabalhador. Na sua essência, estuda-se como
os trabalhadores sentem o dia-a-dia da instituição, privilegiando o modo
subjetivo da experiência do trabalho na vida das pessoas em determinado
contexto. A valorização desse campo de subjetividade15 vem justamente ao
103
Humanização e Ambiente de Trabalho
encontro da Humanização, conforme mencionamos anteriormente. Segundo
as referências tomadas neste estudo, os fatores psicossociais relacionados à
saúde e satisfação no trabalho, ou o seu contrário, versam sobre: estabilidade
no emprego, salários e benefícios, relações sociais no trabalho, supervisão e
chefia, ambiente físico de trabalho, reconhecimento e valorização, oportunidades de desenvolvimento profissional, conteúdo, variedade e desafio no trabalho, qualificação, autonomia, subutilização de habilidades e competências,
carga de trabalho (física, cognitivas ou emocionais).
Nas organizações, modelos semelhantes são usados para pesquisar
o chamado clima organizacional17, no qual se reconhecem os sentimentos
e crenças que movem os trabalhadores na realização de suas tarefas e,
indo mais longe, se obtêm importantes informações sobre o modo como as
organizações funcionam. As pesquisas de clima organizacional revelam a
cultura institucional18 e são importantes ferramentas para o diagnóstico de
situação de trabalho e acompanhamento de mudanças19.
Há vários anos e em vários países, os FPST são estudados em diversos setores produtivos no âmbito das relações saúde e trabalho. Desenvolvemos este estudo com o objetivo de compreender o modo como os
funcionários do CRT DST/Aids percebiam a instituição, a organização do
trabalho, as relações interpessoais e a gestão de pessoas. Nosso interesse
em estudar esses fatores vem da fonte da Humanização e seu poder de
fazer brotar as ideias que buscam o bem coletivo.
Metodologia
A proposta desta pesquisa foi apresentada, discutida e inserida no
Planejamento Estratégico do CRT DST/Aids em 2004. O CRT DST/Aids é
o equipamento de saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo
que coordena o Programa Estadual de DST/Aids e presta atendimento especializado no âmbito das doenças sexualmente transmissíveis e Aids. O
serviço conta com setores de assistência ambulatorial e hospitalar, vigilância epidemiológica, prevenção, pesquisa, planejamento, recursos humanos,
administração e apoio logístico. Nele trabalham médicos de diversas especialidades (principalmente infectologistas), psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, nutricionistas, educadores em saúde pública, e o quadro
104
Humanização e Ambiente de Trabalho
administrativo da SES-SP. Eram 743 funcionários públicos do Estado, dos
quais 280 em cargos administrativos e 463 em cargos técnicos da Saúde.
Destes, 144 compunham o corpo de enfermagem (55 enfermeiros com nível superior e 89 auxiliares com nível médio).
Trata-se, portanto, de um serviço público estadual de atenção à Saúde pertencente ao SUS, e como tal, deve seguir suas políticas públicas,
entre elas a PNH e seus enredos.
No começo do ano de 2005, desenhamos a pesquisa e contratamos
uma pesquisadora autônoma para realizar a coleta dos dados. Consideramos que a presença de uma pesquisadora não pertencente à instituição seria importante para que os funcionários ficassem à vontade para participar
da pesquisa, sem medo de ser descobertos ou delatados para suas chefias.
Em setembro de 2005, realizou-se a coleta de dados; durante os três meses
seguintes, a análise e, ao longo do ano de 2006, apresentamos as informações obtidas para todo o corpo diretivo da instituição, para o sindicato dos
trabalhadores, e para cada macro-setor do CRT DST/Aids.
Algumas semanas antes da coleta de dados, fomos aos setores e
orientamos os gestores locais sobre os objetivos da pesquisa, métodos e
procedimentos da coleta, solicitando-lhes que transmitissem tais informações aos seus funcionários. Talvez nosso primeiro diagnóstico já se
apresentasse nesse momento: a maioria dos gestores locais não cumpriu a
tarefa de comunicar aos seus funcionários o que seria feito.
Em compensação, o Comitê de Humanização local se encarregou de
conversar com os trabalhadores nas oficinas de humanização realizadas
naquele período e mesmo nos seus locais de trabalho, preparando-os para
a pesquisa.
Durante três dias, os funcionários foram orientados por uma equipe
de pesquisa para se dirigirem a um local reservado e responder o questionário de forma anônima e autoaplicada. O instrumento utilizado foi originalmente concebido por Kristensen6 e colaboradores, no Instituto Nacional
de Saúde Ocupacional da Dinamarca, adaptado para o português.
O questionário consta de uma primeira parte que investiga estresse e
saúde ocupacional. Nele constam questões de caracterização sócio-demográficas, de saúde (incluindo hábitos e comportamentos) e de característi-
105
Humanização e Ambiente de Trabalho
cas pessoais e situações de vida. (Esses dados foram coletados e são tema
de outro estudo relativo ao diagnóstico de saúde e estresse.) Na segunda
parte do questionário, o trabalhador não se identifica, e nela se investiga a
vivência do processo laboral e do ambiente de trabalho. As questões estão
dispostas em onze blocos que permitem o estudo das seguintes dimensões
do trabalho:
1. Consciência: sentimento de que o seu trabalho faz
parte de um conjunto maior, que é importante e útil para os
usuários, conferindo-lhe importância pessoal.
2. Motivação: sentimento de interesse pelo trabalho.
3. Relações Sociais: situações de isolamento ou de boa
comunicação com colegas, qualidade do ambiente social, participação em grupos e sentimento de fazer parte de uma comunidade no trabalho.
4. Métodos e Tecnologias: adequação de instrumentos,
métodos, tecnologia e outras ferramentas aplicadas ao trabalho.
5. Envolvimento no Trabalho: envolvimento pessoal,
iniciativa e empenho no trabalho.
6. Crescimento Profissional: possibilidade de aprender
coisas novas, uso de habilidades e conhecimentos e oportunidade de desenvolvimento profissional.
7. Apoio e Trabalho em Equipe: contar com a ajuda e
apoio de colegas, de superiores, ser ouvido sobre problemas de
trabalho e poder conversar sobre as questões do trabalho.
8. Papel dos Superiores: sentimento de que os superiores apreciam a equipe, garantem oportunidades de carreira
a todos, priorizam treinamentos e planos futuros, priorizam
satisfação no trabalho, são hábeis no planejamento, na distribuição de tarefas, na administração de conflitos e comunicação com equipe.
9. Comunicação: quão claras ou contraditórias são as
informações, as demandas e os objetivos do trabalho, assim
106
Humanização e Ambiente de Trabalho
como o papel, a responsabilidade e o que se espera de cada
funcionário.
10. Valorização ou Reconhecimento: sentimento de que
o trabalho é valorizado e reconhecido pelos usuários, colegas
e superiores.
11.Satisfação: satisfação com as pessoas, o salário, as
perspectivas de trabalho, o ambiente, o gerenciamento, o uso
das habilidades, os desafios, a qualidade do atendimento ao
usuário, o trabalho como um todo.
12.Organização do Trabalho: percepção do tempo dado
para a execução da tarefa como muito, pouco ou muito irregular, sensação de falta de tempo para terminar as tarefas ou
não.
13.Participação no Trabalho: participa das decisões sobre o próprio trabalho, sobre com quem trabalha, na definição
de métodos, do ambiente, da qualidade do trabalho, recebe informações sobre mudanças, sente que é ouvido no trabalho.
14.Diversificação: o trabalho é variado ou exige fazer
sempre as mesmas coisas.
15.Flexibilidade: pode decidir sobre o seu trabalho,
quantidade, horários, pausas, férias e ausências breves.
16.Responsabilidade: o trabalho afeta o bem-estar de
outras pessoas, os erros podem prejudicar pessoas ou causar
perdas financeiras, exige tomadas de decisões de grande importância.
17.Exigência Emocional: o trabalho exige lidar com problemas emocionalmente difíceis, ou tomar decisões difíceis.
18.Exigência Cognitiva: o trabalho exige competências
elevadas, ou demanda ideias novas e tomadas de decisões rápidas.
107
Humanização e Ambiente de Trabalho
Os dados foram inseridos em um banco construído em EPI-Info, e as
suas informações descritas em gráficos e tabelas na forma de percentuais,
para o todo institucional e por setores. A seguir, descreveremos alguns resultados extraídos da totalidade da pesquisa que, em contexto mais geral,
permitiram uma aproximação da realidade de trabalho no CRT no que se
refere às dimensões descritas, a partir da opinião dos trabalhadores.
Resultados
No organograma do CRT DST/Aids, em 2005 havia a Diretoria Técnica (instância gestora superior), à qual estavam ligados seis macro-setores chamados de Gerências: Administração, Assistência Integral à Saúde,
Apoio Técnico, Recursos Humanos, Vigilância Epidemiológica e Prevenção. A estas, ligavam-se micro-setores, os Núcleos, em número de vinte e
cinco. Responderam o questionário 609 dos 731 funcionários em atividade
nesses setores (subtraídos os que estavam em férias e licença), além das
Terceirizadas (Cozinha, Segurança e Limpeza), totalizando 83,3% do conjunto. No Quadro1, pode-se observar essa distribuição. Responderam os
questionários 97,8% dos trabalhadores da Gerência de Recursos Humanos,
83,4% da Diretoria Técnica, 82,5% da Gerência de Apoio, 80% da Gerência
de Administração, 77,4% da Gerência de Prevenção, 75,8% da Gerência de
Vigilância Epidemiológica, 70,2% da Gerência de Assistência e 45,5% dos
trabalhadores das Terceirizadas.
108
Humanização e Ambiente de Trabalho
Quadro 1 – Número total e percentual de funcionários do CRT DST/Aids
que responderam o questionário da Pesquisa de FPST, por setor, em 2005.
Setores
Diretoria Técnica
Gerência Prevenção
Gerência Vig. Epidemiológica
Gerência Assistência
Gerência Apoio Técnico
Gerência Recursos Humanos
Gerência Administração
Terceirizadas
Total
Total
24
31
29
329
137
45
148
66
809*
Participantes
20
24
22
231
113
44
105
30
609
%
83,4
77,4
75,8
70,2
82,5
97,8
80
45,5
75,2
Férias e afastamentos = 78 funcionários. Total em atividade: 809-78 = 731 (83,3%)
caracterização sócio-demográfica, no CRT DST/Aids, em 2005, predominavam profissionais do sexo feminino (69%), com idade entre 30 e
49 anos (66,4%), casados (53,7%), que se referem como de raça branca
(56,8%), e com nível superior de escolaridade (52,0%). Grande parte dos
funcionários (38%) não tinha filhos e habitava domicílios com três ou
menos moradores (54,7%). O grupo dos profissionais em atividades operacionais constituía a maioria (59,6%), seguido dos chamados “técnicos”
(27,4%), que no serviço público diz respeito aos profissionais de nível
superior.
A presença de manifestações de estresse nessa população apresentou
distribuição conforme descrição no gráfico 1.
109
Humanização e Ambiente de Trabalho
Gráfico 1 – Porcentagem de trabalhadores que referiam manifestações de
estresse (alto, leve, moderado e nenhum) no CRT DST/Aids em 2005.
4,9
13,2
NENHUM
ALTO
39,7
LEVE
42,2
MODERADO
Considerou-se manifestação de estresse leve quando o funcionário
assinalava como “raramente”, “nunca” ou “às vezes” a ocorrência dos sinais e sintomas presentes no questionário. Quando referido “o tempo todo”
ou “na maior parte do tempo”, considerou-se manifestação de estresse na
forma grave.
Somando-se os que apresentavam manifestações graves e moderadas totalizou-se 248 pessoas (52,9%). As manifestações emocionais foram
as mais freqüentes: 88,2% do total de funcionários referiram pelo menos
um dos sintomas “o tempo todo” ou “na maior parte do tempo”. Esses números se assemelham aos encontrados na literatura, no que se refere ao
estresse e sofrimento psíquico nos profissionais da área da Saúde10,12, e
reforçam a importância de conhecer melhor o ambiente de trabalho e promover as mudanças culturais preconizadas pela Humanização na Saúde
com o intuito de cuidar daqueles que têm a missão de cuidar.
No estudo dos FPST, para o total de funcionários pesquisados, encontramos a situação que se apresenta no gráfico 2.
110
Humanização e Ambiente de Trabalho
Gráfico 2 - Frequência de funcionários que consideravam como ótimo ou
bom o nível de cada uma das dimensões no CRT DST/Aids em 2005.
100
80
60
40
20
0
C onsciência
Envolvim ento
M otivação
C rescim ento
R elaçãoS oc
A poio
M étod.Tecn
C om unicação
P apelC hef
P articipação
V alorização
D iversificação
S atisfação
Flexibilidade
O rganização
As dimensões avaliadas em ótimo e bom permitem dizer que o conjunto dos funcionários apresentava elevado nível de consciência sobre o
trabalho que desenvolvia (96,7%). No seu conjunto, eram bastante motivados (85,4%) e estabeleciam boas relações (84,5%) com os demais colegas – situações detectadas com nível ótimo e bom entre mais de 80% dos
funcionários.
A maioria considerava bom o seu crescimento profissional no trabalho (70,9%), os métodos e a tecnologia utilizada (76,6%), e o envolvimento
pessoal no trabalho (75,9%). Estes últimos três aspectos tiveram respostas
positivas por mais de 70% dos funcionários.
O nível de satisfação foi considerado ótimo e bom por 57,5% dos
funcionários. Entre os que manifestaram insatisfação, os principais motivos foram: salário (44,3%), gestão local (18,8%), perspectivas profissionais
(14,9%) e a falta de uso das habilidades profissionais (10,2%).
Em relação ao apoio na equipe, 68,5% consideraram ótimo e bom.
A comunicação interna foi avaliada com ótimo e bom por 62,7%, o papel
111
Humanização e Ambiente de Trabalho
das chefias por 62,0 % e a valorização por parte de superiores, colegas e
clientela, por 60,8%. Ainda que a maioria (entre 60 e 67%) avaliasse bem
esses aspectos, é sinal de alerta o número de funcionários descontentes.
Os aspectos mais preocupantes, cujas porcentagens de ótimo e bom
apontam para impressões desfavoráveis por mais de 50% dos funcionários
foram: organização (50,3%), participação (39,3%), diversificação (34,6%),
e flexibilidade (34,4%). Dentre as questões que compõem essas quatro
dimensões, destacaram-se como maiores problemas: trabalho repetitivo
(55,1%), não poder opinar sobre a quantidade do trabalho (49,1%), sobre
como fazer (26,1%), sobre seus horários (44,8%), ter que trabalhar muito
depressa (37,2%), não poder participar das decisões sobre o seu trabalho
(37,9%) e não poder influir na qualidade do trabalho (43,1%).
Inerente à natureza e ao objeto de trabalho, a responsabilidade, as
exigências cognitivas e as exigências emocionais são consideradas altas
para aproximadamente 50%, 80% e 40% dos trabalhadores, respectivamente.
No estudo desses FPST por macro-setores (Diretoria Técnica e Gerências), observamos distribuições semelhantes ao conjunto descrito acima.
Mais uma vez, os pontos críticos que se evidenciam são aqueles relativos
à organização do trabalho, participação e flexibilidade. Destacamos essas
três dimensões segundo macro-setores nos gráficos 3, 4 e 5, por considerarmos informação de alta relevância na discussão da Humanização.
Podemos observar que em relação à media do CRT para a dimensão
da organização do trabalho (50,3%), ficam acima a Gerência de Administração (59,6%) e de Apoio (52,5%). As demais ficam abaixo: Assistência
(49,5%), Diretoria Técnica (44,4%), Recursos Humanos (42,1%) Vigilância
Epidemiológica (39,1%), e Prevenção (36,0%).
112
Humanização e Ambiente de Trabalho
Gráfico 3 - Porcentagens de funcionários que consideravam como ótimo ou bom o
nível de organização do trabalho nas Gerências do CRT DST/Aids em 2005.
ADM
52,5
APOIOT
49,5
ASSIST
44,4
DIRTEC
42,1
RH
EPIDEM
PREVEN
39,1
36
50,3
CRT
Para a dimensão da participação, os números são piores. Acima da
média de 39,3% ficaram as Gerências de Vigilância Epidemiológica (48%),
Diretoria Técnica (47,4%), Recursos Humanos (44,7%), Assistência (43,3
%) e Prevenção (42,3%), sendo que as Gerências de Administração (36%) e
de Apoio (28,5%) ficaram abaixo da média.
Gráfico 4 - Porcentagens de funcionários que consideravam como ótimo ou bom
o nível de participação no trabalho nas Gerências do CRT DST/Aids, em 2005.
48
EPIDEM
47,4
DIRTEC
RH
44,7
ASSIST
43,3
42,3
PREVEN
36
ADM
APOIOT
CRT
28,5
39,3
113
Humanização e Ambiente de Trabalho
Por fim, para a dimensão da flexibilidade ficaram acima da média
de 34,4% as Gerências de Prevenção (51,9%), Diretoria Técnica (47,4%),
Recursos Humanos (44,5%) e Vigilância Epidemiológica (42,3%). A Assistência ficou na média (35,4 %) e as Gerências de Apoio (29,3%) e Administração (24,3%) novamente ficaram abaixo da média.
Gráfico 5 - Porcentagens de funcionários que consideravam como Ótimo
ou Bom o nível de flexibilidade nas Gerências do CRT DST/aids em 2005.
51,9
PREVEN
47,4
DIRTEC
44,5
RH
42,3
EPIDEM
35,4
ASSIST
29,3
APOIOT
ADM
CRT
24,3
34,4
Discussão
Dizem que a escolha por trabalhar na área da Saúde tem a ver com
a presença de traços de desamparo, de medo da vulnerabilidade, do sofrimento, da doença ou da ausência de alguém amado, na história de vida
do profissional20,21,22. Os sentimentos e emoções que brotam dos casos
clínicos recuperam marcas inconscientes e, ao lidar com elas por meio do
trabalho, faz-se uma ação reparadora. “Tratar o outro é, antes de mais
nada, poder entrar em contato com nosso próprio sofrimento e com as expectativas que ele evoca em nosso foro mais íntimo. Cuidando das feridas
do outro, podemos também efetuar o trabalho permanente de reparação de
nossas próprias feridas narcísicas.” (Volich, 1995, p. 41)
114
Humanização e Ambiente de Trabalho
Os fatores subjetivos presentes na prática profissional muitas vezes
respondem pela angústia que aflora no cotidiano do trabalho na Saúde.
Todo profissional desta área precisa, desde a sua formação acadêmica,
refletir sobre a existência humana, sobre si mesmo e conhecer suas limitações. Reflexões fundamentais para lidar com a frustração dos inevitáveis
fracassos, a depressão e o sentimento de impotência quando a realidade se
impõe. Ser bom profissional é também ser capaz de suportar esses sofrimentos inerentes à profissão e continuar desejando cuidar, num constante
recomeçar. Frente à crueldade trágica da doença, o cuidador é aquele que
tem capacidade de amparar e sabedoria de compreender que não lhe cabe
o poder da vida, a todo o momento, dada e tirada.
O sentimento de grandiosidade dessa tarefa fez-se manifesto em
nosso estudo, posto o altíssimo percentual de funcionários com consciência sobre seu trabalho e motivação. O custo emocional também, haja
vista o altíssimo percentual de pessoas que referiram pelo menos uma das
manifestações psíquicas de estresse presente “o tempo todo” no trabalho
(88,2%). As frequências de manifestações de estresse encontradas no CRT
DST/Aids, ainda que semelhantes às observadas em outros serviços de
Saúde10,12, são altas e justificam o empenho pela melhora da vida dos profissionais no ambiente de trabalho.
Como discutido anteriormente, mesmo considerando os aspectos
subjetivos da vida das pessoas, o ambiente de trabalho agrega os principais fatores de adoecimento do profissional de Saúde no seu ofício.
Também nesta pesquisa encontramos situações descritas para a
maioria dos serviços de Saúde como realidade difícil para a implementação da PNH: pouca participação efetiva dos trabalhadores na gestão e na
construção do processo de trabalho.
Pudemos observar vários fatores psicossociais do trabalho e compreender como os profissionais sentiam o ambiente, e os pontos críticos que
precisavam de ações reparadoras, ou mesmo de profundas transformações.
Ficou claro que a gestão precisava de aprimoramento, pois mesmo
considerando as variações setoriais, o sentimento de insatisfação em relação ao papel dos superiores, ao apoio, à clareza e ao reconhecimento
embalava o lamento de 40% do conjunto.
115
Humanização e Ambiente de Trabalho
Os pontos fortes encontrados (além dos já citados) – relações sociais,
métodos/tecnologias adequados e envolvimento – confirmaram o apoio
solidário entre colegas, a importância da qualidade e o sentimento sobre
o valor do trabalho.
Os pontos fracos – organização, participação e flexibilidade – precisaram ser encarados...
Retornando à PNH, sabemos que sua consolidação no trabalho passa,
necessariamente, pela prática de dois princípios norteadores14 a destacar:
1. A construção de autonomia e protagonismo dos sujeitos e coletivos;
2. A responsabilidade conjunta desses sujeitos nas práticas de atenção e de gestão.
O trabalho será produtor de sentidos para a vida do profissional
quando este for protagonista do processo4,13, com direito a participar das
decisões sobre o que faz, como faz, quando e até mesmo onde faz. Isso se
chama autonomia e caminha junto com o princípio da responsabilidade.
Esses dois princípios podem se transformar em instrumentos de gestão
bem mais eficientes que o controle e a burocratização.
“Promover saúde nos locais de trabalho é aprimorar a capacidade
de compreender e analisar o trabalho de forma a fazer circular a palavra,
criando espaços para debates coletivos. A gestão coletiva das situações de
trabalho é critério fundamental para a promoção de saúde” (HumanizaSUS, 2004, p.8).
Fazer gestão participativa é o desafio.
No CRT DST/Aids, é a intenção. O gesto está em construção.
Muito há que se fazer, mas como o caminho se faz ao caminhar, daqui
a um tempo, com certeza esse serviço terá outras histórias para contar...
Agradecimentos
Às grandes amigas que trabalharam na coleta e análise de dados,
Mara Regina Anunciação e Maria Célia Medina.
116
Humanização e Ambiente de Trabalho
Referências Bibliográficas
1. Freud, S. Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise. (Edição Standard Brasileira, v.12, 1912). Rio de Janeiro, Imago, 1980.
2. Introdução ao narcisismo (Edição Standard Brasileira, v.14, 1914) Rio
de Janeiro, Imago, 1980.
3. Cassel, J. Psychosocial processes and “stress” theoretical formulation.
Intern J Hth Services, v 1, n 3, pp:471-482, 1974.
4. Dejours, C. “A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho” 2ed., São Paulo, Cortez/Oboré, 1987.
5. Rego, R.A. “Trabalho e saúde: contribuição para uma abordagem
abrangente” Dissertação de mestrado apresentada no Departamento de
Medicina Preventiva da FMUSP, São Paulo, 1987.
6. Kristensen, T.S. The demand-control support model: methodological
challenges for future research. Stress Med, 11:17-26pp., 1995.
7. Paraguay, A. I. B. B. Da Organização do Trabalho e Seus Impactos sobre
a Saúde dos Trabalhadores. In: René Mendes. (Org.). Patologia do Trabalho. 2 ed. São Paulo: Atheneu, 2003, v. 1, p. 811-823.
8. Martinez, M. C. e col. Relação entre satisfação com aspectos psicossociais e saúde dos trabalhadores. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v.
1, n. 38, p. 55-61, 2004.
9. Lacaz, FAC, Sato, L. Humanização e Qualidade do Processo de Trabalho em Saúde, in Deslandes, S (Org.) Humanização dos cuidados em saúde:
conceitos, dilemas e práticas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p.109-139.
10. Pitta, A. Hospital: dor e morte como ofício . São Paulo: Ed. Hucitec,
1990. 200 pp.
11. Volich, R. M. Entre uma angústia a outra..., Boletim de Novidades
Pulsional, São Paulo, n.80 pp. 37-45, 1995.
12. Araújo, T.M.; Aquino, E; Menezes, G; Santos, CO; Aguiar, L Aspectos psicossociais do trabalho e distúrbios psíquicos entre trabalhadoras de
enfermagem Rev. Saúde Pública 37 (4) pp. 424-433, 2003.
117
Humanização e Ambiente de Trabalho
13. Hennington, E.A. Gestão dos processos de trabalho e humanização em saúde: reflexões a partir da ergologia. Rev. Saúde Pública [online]. 42(3), pp. 555-561, 2008. Disponível em: <http://www.scielosp.
org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102008000300024&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0034-8910.
14. Brasil. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde, Brasília, DF, 2004.
15. Backes, D.S. Lunardi Filho WD & Lunardi VL. O processo de humanização do ambiente hospitalar centrado no trabalhador. Relato de pesquisa, 2006. Disponível em http://www.ee.usp.br/reeusp/upload/pdf/242.pdf.
Acesso em 22/10/08.
16. Karasek, R.A. Job demands, job decision latitude, and mental strain:
Implications for job redesign . Adm Sci Quart, n.24, pp: 285-308, 1979.
17. Shein, E.H. Organizational Culture and Leadership. San Francisco,
Jossey Bass, 1992.
18. Falcão, E. B. M.; Siqueira, A. H. Pensar cientificamente: representação
de uma cultura, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.91-108, 2003.
19. Bernardes, C. Teoria geral das organizações: os fundamentos da
administração integrada. São Paulo: Atlas, 1988.
20. Balint, M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Ed.
Atheneu, 1988. 291pp.
21. Benoit, P. Psicanálise e Medicina. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar,
1989.144pp.
22. Rios, I.C. A relação médico-paciente em tempos de pasteurização da subjetividade, São Paulo: Revista Ser Médico, CREMESP, v 8, pp: 16-19, 1999.
118
CAPÍTULO VII
Oficinas de Humanização
Aproximando as pessoas para o diálogo
Oficinas de Humanização
Introdução
Desde as primeiras abordagens nos serviços de Saúde, bem antes até
de se tornar uma política pública do SUS, a Humanização colocava ênfase
na importância de construir espaços de intersubjetividades, nos quais as
pessoas, pacientes ou trabalhadores da Saúde pudessem pensar a si mesmos e aos outros como sujeitos das práticas de Saúde1. Participação, compromisso, protagonismo e co-responsabilidade, resultariam desses espaços
de expressão intersubjetiva.
Em 2005, no CRT DST/Aids (Centro de Referência e Treinamento em
Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids da Secretaria de Estado da
Saúde de São Paulo), o Comitê de Humanização planejou e implementou
um projeto de oficinas de humanização, por meio das quais promoveu a
divulgação e a sensibilização dos trabalhadores para as ideias da Humanização das práticas de Saúde. Essas oficinas foram pensadas como espaços
educacionais de aproximação das pessoas para o diálogo, para a reflexão
sobre o modo como se dão os relacionamentos no ambiente de trabalho e
para a construção de valores da ética da Humanização (respeito, solidariedade e compromisso com o bem coletivo).
Objetivos
As Oficinas de Humanização tinham como objetivos:
- Compartilhar com os trabalhadores de Saúde conceitos e princípios éticos da humanização;
- Apresentar-lhes o Comitê de Humanização;
- Colher impressões, ideias, queixas, sugestões e vivências referentes ao
cotidiano ocupacional dos trabalhadores e pensá-los à luz da Humanização.
Métodos
Formou-se um grupo-tarefa interdisciplinar com cinco profissionais
da saúde (um educador, dois psicólogos, um médico e um assistente social)
do Comitê de Humanização, para planejar e conduzir o desenvolvimento
das oficinas.
As oficinas destinavam-se a funcionários, gestores e usuários. Cada
120
Oficinas de Humanização
oficina contava com até 21 participantes e se desenvolvia em um período
de quatro horas de duração. Compunha-se de dois momentos assim estruturados:
1. Momento de aproximação das pessoas à realidade da humanização no cotidiano de trabalho – por meio de dinâmicas de grupo, dramatização e atividades lúdicas;
2. Momento de apresentação de conteúdo informativo e discussão –
por meio de exposição dialogada.
A proposta foi apresentada para a Diretoria Técnica da instituição,
que aprovou seu desenho e contribuiu de forma incisiva para a liberação
dos funcionários nos horários das oficinas, garantindo a participação de
todos que assim desejassem.
Durante um mês, o Comitê de Humanização fez a divulgação das
oficinas em todos os setores da instituição. A área de Recursos Humanos
foi fundamental para a organização da logística das oficinas. Cada funcionário escolhia, entre as datas e horários oferecidos, uma que fosse adequada a ele, fazendo a inscrição com autorização da sua chefia. As oficinas
eram realizadas no horário de trabalho.
Seguiam o seguinte roteiro:
1. Apresentação das pessoas e do roteiro da oficina:
O coordenador da oficina iniciava o trabalho formando uma roda e
entregando aos participantes o programa de atividades da oficina, comentando seu conteúdo rapidamente. Passava, então, a coordenar uma atividade lúdica de apresentação dos participantes e da equipe de condução do
trabalho daquela oficina.
2. Aproximação do tema ao cotidiano de trabalho:
Formávamos, então, três grupos menores, cada um coordenado por
um monitor. Pedia-se a cada pessoa que respondesse, escrevendo em papel, três perguntas:
- Cite três ações institucionais que você reconhece como humanizadoras;
- Descreva uma situação inesquecível de humanização ou falta de
humanização no atendimento ou no trabalho;
- Cite uma palavra que você define como humanizadora.
121
Oficinas de Humanização
O monitor pedia que cada um lesse sua resposta e conduzia os comentários do grupo a respeito das situações apresentadas, assinalando as
aproximações com os conceitos e princípios da Humanização. No final da
discussão, pedia-se ao grupo que construísse uma expressão de consenso
para definir a humanização para aquele grupo e escolhesse um participante para apresentar essa síntese aos demais.
Os três grupos se desfaziam e voltava-se à roda. Cada representante dos
subgrupos apresentava a definição de Humanização por eles construída.
3. Intervalo para o lanche;
4. Apresentação de conteúdo informativo sobre Humanização:
O coordenador desenvolvia uma exposição dialogada sobre os seguintes tópicos:
- O que é Humanização;
- O que é a PNH (Política Nacional de Humanização);
- Princípios da Humanização;
- Como a Humanização se realiza em nosso cotidiano;
- O Comitê de Humanização (o que é, quem faz parte, para que serve,
e o que tem feito).
5. Avaliação da oficina:
Os monitores entregavam aos participantes um questionário para
avaliação do trabalho desenvolvido no dia, com o seguinte formato:
Avaliação da Oficina de Humanização
Data da Oficina: ______________ Período: M (
Afirmativas sobre a Oficina
Conteúdo da Oficina
Equilíbrio entre conteúdo
teórico e atividade prática
Tempo para execução da
oficina
Material fornecido
122
Excelente
Bom
Regular
) T (
Ruim
)
Péssimo
Oficinas de Humanização
Afirmativas sobre o
Coordenador
Excelente
Bom
Regular
Ruim
Péssimo
Afirmativas sobre os Monitores Excelente
Bom
Regular
Ruim
Péssimo
Organização da oficina
Conhecimento do assunto
Facilidade de comunicação e
clareza
Esclarecimento de dúvidas
Cumprimento dos horários
previstos
Organização do trabalho de
grupo
Conhecimento do assunto
Facilidade de comunicação e
clareza
Esclarecimento de dúvidas
Cumprimento dos horários
previstos
1. Quais assuntos poderiam ser discutidos com maior profundidade?
2. Você recomendaria esta Oficina? Por quê?
3. Com que palavra você definiria esta Oficina?
4. Dê sugestões para que possamos melhorar esta Oficina.
Resultados
Foram realizadas 18 oficinas para funcionários, duas para usuários
e duas para gestores. Do total de 731 funcionários, participaram 314 dos
diversos setores, ou seja, em torno de quarenta e três por cento (43,09%).
Na avaliação da maioria dos participantes, as oficinas foram consideradas excelentes e boas (gráfico 1). A atuação de coordenadores e monitores também foi avaliada de forma satisfatória (gráficos 2 e 3).
123
Oficinas de Humanização
Gráfico 1 – Avaliação das Oficinas de Humanização do CRT DST/Aids, em
2005, na opinião de 384 participantes (funcionários, gestores, usuários).
70%
60%
50%
40%
30%
20%
Conteúdo
Equilíbrio teoria e prática
10%
Tempo disponível
Material didático
0%
c
Ex
m
Bo
e
nt
ele
lar
gu
Re
im
Ru
im
ss
Pé
o
Gráfico 2 – Avaliação dos Coordenadores das Oficinas de Humanização do
CRT DST/Aids, em 2005, na opinião de 384 participantes.
Organização das
sessões
70%
60%
Conhecimento do
assunto
50%
Facilidade de
comunicação
e objetividade
40%
30%
Esclarecimento
de dúvudas
20%
10%
Cumprimento
dos horários
previstos
124
Ru
i
Pé m
ss
im
o
Re
gu
lar
Bo
m
Ex
ce
len
te
0%
Oficinas de Humanização
Gráfico 3 – Avaliação dos Monitores das Oficinas de Humanização do CRT
DST/Aids, em 2005, na opinião de 384 participantes.
Organização das
sessões
70%
60%
Conhecimento do
assunto
50%
40%
Facilidade de
comunicação
e objetividade
30%
20%
Esclarecimento
de dúvidas
10%
Ru
i
Pé m
ss
im
o
Re
gu
lar
Bo
m
Ex
ce
len
te
0%
Cumprimento
dos horários
previstos
As perguntas abertas foram analisadas pelo método de categorização por proximidade discursiva2. Conforme podemos observar nos dois
quadros abaixo, a maioria das pessoas que responderam por que recomendariam essa oficina concorda que ela é importante para conhecer o que
é Humanização (28,7%). Outras (26,0%) acreditam que as oficinas podem
promover o desenvolvimento das pessoas nos relacionamentos interpessoais no trabalho. A propósito desse aspecto, em particular, os participantes que responderam à questão sobre quais os assuntos que poderiam ser
abordados em maior profundidade, 38,4% das respostas se referiram aos
relacionamentos interpessoais e ética.
125
Oficinas de Humanização
Quadro 1 – Você recomendaria esta oficina? Por quê?
Total de respostas: 272
Motivos
N
%
Conhecimento sobre Humanização
78
28,7
Possibilidade de mudança de comportamentos, atitudes, ética,
postura e resgate de valores.
36
13,2
Melhoria dos relacionamentos
35
12,8
Crescimento pessoal e profissional
27
9,9
Troca de experiências, espaço para reflexão e integração
23
8,5
Conhecimento das ações da Instituição
16
5,9
Oportunidade de expressar livremente suas ideias
14
5,2
Participação dos funcionários no trabalho da humanização
11
4,0
Importante para humanização do CRT
10
3,7
Incentivo ao trabalho em equipe
07
2,6
Recomendação das oficinas para as chefias
05
1,9
Para sair fora da rotina
03
1,1
Quadro 2 – Quais assuntos poderiam ser abordados com maior profundidade?
Total de respostas: 314
Assuntos
N
Relacionamento entre funcionários
43
13,6
Relacionamento entre chefia e funcionário
29
9,2
Ética
28
8,9
Relacionamento entre paciente e funcionário
21
6,7
Estresse Ocupacional
10
3,2
Qualidade de vida
3
0,9
126
%
Oficinas de Humanização
Considerações sobre o trabalho realizado
Talvez o feito mais importante dessas oficinas tenha sido colocar a
Humanização em evidência na instituição. Como uma pedra lançada nas
águas paradas de um lago, provocou ondas de repercussão que inauguraram o debate das ideias da Humanização de tal maneira que, hoje, a
maioria das pessoas que participam daquele espaço tem na Humanização
uma referência tanto para dizer da sua presença quanto da sua falta no
cotidiano institucional. A principal crítica dos funcionários, hoje, é que
eles gostariam que as oficinas se constituíssem em atividade programática,
com periodicidade pelo menos anual, o que não ocorre.
Além desse fato, outro aspecto que salta aos olhos quando analisamos o resultado desse trabalho é o diagnóstico da necessidade de pensar
as relações interpessoais pelo foco da Humanização.
Sabemos que a comunicação e a busca de entendimento entre as
pessoas para a realização de tarefas coletivas torna-se particularmente
importante quando mudamos do modelo de atenção e gestão médico-centrada para o modelo participativo e interdisciplinar. Nos tempos atuais,
trata-se de criar condições para a realização de encontros intersubjetivos
autênticos3, que garantam condições reais de participação, expressão de
ideias e construção de consensos eticamente amparados.
Para se chegar a tais condições é preciso muito trabalho de aproximação entre as pessoas, construção de conduta ética institucional que
possa referenciar os acordos entre todos, e a tarefa de desenvolver em si
mesmo e no grupo alguma competência para escutar uns aos outros de
forma respeitosa e, se possível, com alguma abertura crítica para a reflexão. Não é um objetivo fácil de alcançar, ainda que imprescindível para a
Humanização.
Mas, talvez, ao longo do tempo, nas oficinas de Humanização, seja
possível criar condições necessárias para a construção desse campo relacional no qual se desenvolve a escuta uns dos outros, e, nesse exercício,
alcançar a maturidade institucional para a realização dos consensos que
propiciarão relações mais éticas e humanas em nosso dia-a-dia.
127
Oficinas de Humanização
Referências Bibliográficas
1. Brasil. Ministério da Saúde. HUMANIZASUS: Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde, Brasília, DF, 2004.
2. DENZIN, N. & LINCOLN, Y.S. Handbook of qualitative research. 2nd ed.
Thousand Oaks: Sage Pub., 2000.
3. HABERMAS, J. Consciência Moral e Agir Comunicativo, Rio de
Janeiro,Tempo Brasileiro, 1989.
128
CAPÍTULO VIII
Recepção Humanizada
O Programa Jovens Acolhedores
Recepção Humanizada
Há tempo que se diz que toda instituição de Saúde que quiser implantar a Humanização precisa começar pelas recepções. Herdeiras de um
modelo de atendimento caracterizado pela dicotomia serviço e usuário,
erguem-se como uma barreira que começa pela divisória, em geral de
vidro, separando fisicamente a ambos, e continua no atendimento por
meio de barreiras culturais, linguísticas e outras tantas quantas se fizerem
necessárias. As recepções foram alvo seleto dos primeiros programas de
humanização surgidos depois do PNHAH e da PNH.
No desenvolvimento do pensar sobre a porta de entrada e o acesso
aos serviços, vários aprofundamentos conceituais e práticos convergiram
para o que hoje chamamos acolhimento1. A qualidade da atenção, o interesse e a responsabilidade são aspectos enfatizados pela cultura da Humanização que devem estar presentes desde o momento em que as pessoas
chegam aos serviços de Saúde.
A recepção humanizada se apresenta como porta de entrada para
um serviço que tem a humanização como o eixo de todas as suas práticas.
E na perspectiva da Humanização e do Acolhimento, surgiram vários programas com foco na recepção do paciente aos serviços, dentre os quais se
destaca o Programa Jovens Acolhedores, da Secretaria de Estado da Saúde
de São Paulo, sobre o qual apresentaremos algumas ideias neste texto,
mais precisamente sobre a pedra angular de sua estrutura: a escuta.
O Programa Jovens Acolhedores2 recebe, desde 2003, alunos do
ensino superior da rede privada para atuarem durante um ano junto às
recepções dos hospitais públicos do Estado no acolhimento dos usuários
dos serviços. Recebem uma bolsa de estudos para o custeio da faculdade,
e despendem vinte horas semanais para as atividades do programa, que
inclui: recepcionar todas as pessoas que procuram a unidade de Saúde e
auxiliá-las na solução de possíveis problemas que possam ocorrer nessa
chegada ao serviço, participar da capacitação para o trabalho na Saúde e
no seu espaço de atuação, participar de reuniões de supervisão.
O curso de formação dos alunos (que podem vir de qualquer área do
conhecimento e não só das Ciências da Saúde) cobre os seguintes temas2:
- Conceito de saúde e doença;
- Aspectos psíquicos do adoecer;
130
Recepção Humanizada
- Aspectos psicossociais presentes nas relações humanas;
- Sociabilidade e comunicação, direitos sociais, cidadania e participação da comunidade;
- Processo de trabalho na instituição de Saúde;
- Políticas de saúde: SUS e seus princípios;
- Humanização da assistência à Saúde e ética.
A propósito da Humanização, desfaz-se a ideia preconceituosa de que
se trata de um “jeito bonzinho de ser” (ainda que moralmente a bondade seja
um valor muito apropriado não só à área da Saúde, mas em vários contextos
da nossa sociedade), mas aqui no sentido de desqualificar seus propósitos
mais amplos, uma vez que diz respeito ao modo como se dá a assistência, a
organização dos processos de trabalho e a gestão do ponto de vista técnico
e humanista. Sinaliza-se que a Humanização é uma política do SUS (Política
Nacional de Humanização) que coloca ênfase na importância de se construir
espaços de encontro das pessoas, pacientes ou trabalhadores da Saúde para
a construção de relações mais justas, éticas e solidárias.
Assim pensado, uma recepção humanizada agrega profissionais com
conhecimento de saúde coletiva e cidadania, sendo capazes de compreender as dimensões humanas do adoecimento da população atendida, para
exercer de fato a escuta de suas necessidades. A recepção humanizada requer, necessariamente, a integração com todas as atividades institucionais
que vão dar prosseguimento aos cuidados iniciados na recepção, compreendendo pelo menos três ações básicas:
1. Escuta aberta, com respeito e real interesse na boa comunicação
com o outro e resposta à sua demanda – papel do acolhedor;
2. Escuta qualificada, com as características da primeira, mas amparada
tecnicamente para respostas mais complexas – papel da retaguarda técnica;
3. Gestão, organização e supervisão de todo o processo de acolhimento – papel do supervisor.
O acolhedor é aquele que promove o primeiro encontro do usuário com a instituição de Saúde por meio de atitude cuidadosa, disponível
para a escuta aberta às necessidades do usuário e capacidade de orientar
sua inclusão dentro do sistema de Saúde. Para desenvolver esse papel, o
acolhedor deverá conhecer bem a clientela e seus aspectos socioculturais,
131
Recepção Humanizada
conhecer e atuar dentro dos princípios do SUS, e conhecer muito bem a instituição em que atua. Por vezes, o acolhedor deverá contar com um profissional da saúde com nível superior que, enquanto retaguarda técnica, deverá
solucionar suas dúvidas imediatas no dia-a-dia. De forma mediata, deverá
contar também com a presença de um supervisor que (por meio de conhecimentos técnicos específicos da área da Saúde) seja capaz de ser também
referência para a escuta qualificada, fazer o acompanhamento do trabalho
do acolhedor e promover o apoio didático e a escuta do próprio acolhedor.
Ou seja, uma recepção humanizada precisa de gestão, organização,
retaguarda de profissionais com conhecimentos da área da Saúde e compreensão das dimensões humanas do adoecimento e das necessidades da
população atendida, e acima de tudo, pessoas com legítimo interesse pelo
bem uns dos outros, dispostas a conversar...
Ressalte-se que o Programa Jovens acolhedores surge com a missão
de permitir o encontro humanizado entre usuários e serviços de Saúde,
mas não só. O programa também tem um forte acento educacional. Além
de contribuir para o custeio dos estudos desses jovens, permite que eles tenham outro espaço de aprendizagem dentro da área da Saúde. Ao mesmo
tempo, também na perspectiva da Humanização, traz outros olhares para
dentro dos serviços. Um olhar que pode ser estranho e perturbador, ou que
pode trazer coisas novas que oxigenem a instituição, vai depender muito
dos alunos que chegam e de como os profissionais do serviço recebem e
trabalham com esses “outros estranhos”.
Apesar de, em muitos casos, o Programa Jovens Acolhedores se dar
em um hospital – lugar de hospitalidade – os tempos atuais não são lá
muito hospitaleiros com os estranhos... A hospitalidade3, como a capacidade de acolher e abrigar o estrangeiro (ou o estranho no sentido de não
familiar) nem sempre é possível quando as diferenças são percebidas como
invasivas e vividas com hostilidade.
A presença dos jovens universitários nos serviços provoca reações
diversas entre os funcionários dos serviços. Alguns gostam do contato
com esse outro mundo, mas muitos enxergam os alunos como privilegiados, como uma casta a mais na instituição – que só serve para dar mais
trabalho para os funcionários já sobrecarregados e tão pouco valorizados
132
Recepção Humanizada
pela gestão. Com certeza, serviços nos quais a Humanização se esgota no
Programa Jovens Acolhedores, e mais uma ou outra ação humanizadora,
jamais conseguirão desenvolver a cultura da Humanização e nela a convivência enriquecedora das diferenças.
Por outro lado, pensando na situação em que os alunos são bem
aceitos pela instituição, mesmo em tais condições favoráveis, o programa
pede atenção. Voltando à questão da importância da escuta que singulariza a ação desses jovens, reforçamos que o supervisor é a pessoa-chave
para o sucesso desse processo...
O supervisor não é (e nem pode ser) um encarregado que controla o
pessoal. Não é um bedel de alunos (embora seja alguém que dê limites e
orientações). O supervisor é, acima de tudo, um modelo para o acolhimento e um tutor para o aprendizado da escuta aberta e de outras competências comunicacionais.
Mas afinal, o que é essa escuta de que tanto falamos? No nosso
ponto de vista, a escuta é essencialmente uma abertura para a conversa. A
gente não pensa muito nisso, mas a conversa está na base das relações humanas. A conversa é essencial para a vida humana. A gente precisa tanto
de conversa que, quando sozinhos, conversamos com os nossos botões...
Falamos sozinhos... Não poder conversar é uma forma de penitência. Há
quem diga que nos campos de concentração nazistas era comum separar
os prisioneiros de mesma língua como forma de castigo e para evitar a
aproximação entre as pessoas.
Habermas4 acredita que habitamos um mundo (da concepção Existencialista, o mundo da vida) que se compõe das estruturas da cultura,
da sociedade e da personalidade de cada um, no qual compartilhamos
experiências pela conversa. Nessa condição, somos todos dotados de uma
competência comunicativa universal com a qual buscamos, antes de tudo,
o entendimento. Sim, ele diz que a função principal da linguagem é o
entendimento entre os homens, e ainda que a fala se aplique a muitos
outros interesses, primariamente ela surge como produção humana para o
entendimento.
Mas veja bem, nesse sentido, conversar não é tagarelar. Quando,
numa festa, uma pessoa conta a alguém sobre um filme e esse alguém
133
Recepção Humanizada
emenda com um outro filme que ele próprio assistiu, não é exatamente
uma conversa do ponto de vista que aqui adotamos. Quando alguém começa a contar um problema e o outro responde contando um caso seu,
também. A conversa se estabelece quando a gente escuta de forma atenta,
interessada e generosa aquilo que o outro diz e simultaneamente entre
ambos se cria um campo de compreensão comum, um horizonte5 no qual
aparecem as diferenças e se constroem possíveis sentidos e possibilidades
de entendimento para o que é dito. Há conversa quando duas ou mais
pessoas falam de seus pontos de vista e pensam, juntas, em uma resposta,
uma ideia, uma reflexão a respeito.
O verdadeiro entendimento só ocorre quando criamos espaço para
a compreensão da diversidade das ideias das pessoas e assumimos uma
atitude consciente de respeito, legítimo interesse pelo outro, atenção e
crítica racional. As premissas4 para a construção de consensos falam da
necessidade de se estabelecer um campo relacional no qual os interlocutores tenham disposição e capacidade para:
- A compreensibilidade, ou o reconhecimento gramatical do que é dito;
- A verdade, ou o reconhecimento do conteúdo verdadeiro e adequadamente justificado do que está sendo dito;
- A sinceridade, ou o reconhecimento de que a intenção de quem
fala é sincera;
- A retidão, ou o reconhecimento de que o que está sendo dito é
correto dentro da Ética.
Mas o que é compreender? Essa pergunta está no cerne da hermenêutica5: elucidar o advento da compreensão, partindo da parte em relação
ao todo e do todo refletido na parte. Toda compreensão é a busca de uma
verdade que se apoia em uma compreensão prévia, que se manifesta por
meio da linguagem, e tem, portanto, uma dimensão linguística e uma dimensão histórica. Essa tradição, a qual estamos sujeitos, ao mesmo tempo
em que permite abordar a realidade, também delimita nosso horizonte de
produção de sentido. Ou seja, o processo interpretativo opera dentro de
um conjunto relacional e diz respeito à produção de um sentido, um conteúdo elaborado pelo exercício da razão sobre os fenômenos. Pressupõe
opiniões, conhecimento prévio do assunto, apreensão de elementos em
134
Recepção Humanizada
estudo, reflexão que leva ao encadeamento de um novo discurso sobre o
assunto. Desta forma, o ato de compreender corresponde ao modo de estar
no mundo próprio à condição humana. Partimos do que sabemos, criamos
um jeito particular de nos aproximar dos fatos e fenômenos da vivência e
depois pensamos, dialogamos, fazemos julgamentos, elaboramos interpretações, construímos conceitos que sedimentam conhecimento renovado,
mas temporário, até que o processo ocorra novamente. Algo absolutamente próprio à experiência humana.
É isso que se espera do acolhedor e de seu supervisor.
Se for assim, a conversa será em si mesma terapêutica, transformadora, educadora. O supervisor não pode perder de vista esse importante
papel que tem como educador, na qualidade de tutor. O que faz o tutor, e
como faz, é essencialmente essa conversa de que estamos falando.
Não é uma tarefa fácil. É preciso aprender a ouvir, despojar-se de
preconceitos e modelos pré-estabelecidos para, junto com o outro, pensar
sobre o que ele está trazendo como questão e, quando possível, encontrar
formas pessoais e institucionais de lidar com a questão. Muitas vezes os
tutores ficam em dúvida sobre o que fazer com o que escutam, ou ficam
angustiados por não saber como lidar com questões que não se esgotam
no campo técnico da sua profissão. Também os supervisores em alguns
momentos precisarão de suporte para suas próprias questões e angústias,
e é importante que tenham a quem recorrer. Bons gestores sabem que essa
é uma de suas funções... E que é assim que se ensina o acolhimento e a
Humanização.
Referências Bibliográficas
1. Ministério da Saúde, Ambiência, Brasília-DF, 2004. Ver em http://
dtr2001.saude.gov.br/editora/produtos/impressos/folheto/04_1163_FL.pdf
2. Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, Programa Jovens Acolhedores, site oficial, ver em http://www.jovensacolhedores.saude.sp.gov.br/
3. Dufourmantelle, A. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida
a falar de Hospitalidade, São Paulo, Escuta, 2003.
135
Recepção Humanizada
4. Aragão, L. Habermas: filósofo e sociólogo de nosso tempo. Rio de
Janeiro, Tempo Brasileiro, 2002.
5. Bernstein, R.J. Beyond objectivism and relativism: science, hermeneutics and práxis. Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1985.
Parabenizamos os queridos amigos Neil José Sorge Boaretti, Clara
Ronconi da Silva Fonseca e José Luiz Brant de Carvalho, pelo importante
trabalho dedicado ao Programa Jovens Acolhedores.
136
CAPÍTULO IX
Rodas de Conversa
Aprendendo Saúde Mental no PSF c
Rodas de Conversa
Introdução
Um dos aspectos mais interessantes do Programa de Saúde da Família (PSF) é a mudança no processo de trabalho, que nos chama de volta
para o lugar de profissionais da Saúde em um tempo em que já estávamos
acostumados a ser profissionais da doença.
No modelo proposto pelo PSF, as pessoas – pacientes e profissionais
– estão mergulhadas na realidade local e nela resgatam espaços de subjetividade que há muito se perderam nas práticas assistenciais ancoradas no
modelo queixa-resposta médica. Nessa condição, ficam reforçados o encontro e o vínculo, e as pessoas podem se ver como gente que tem nome,
origem, história, família, personalidade, defeitos e qualidades humanas.
A qualidade da relação é outra, em particular no que se refere ao
trabalho do agente comunitário de saúde (ACS), personagem que desponta
como elemento indispensável na lógica de atenção do PSF.
No meio rural e em cidades de pequeno e médio porte, onde o PSF
acumula experiência, o agente comunitário é um membro da comunidade,
integrado à cultura local, capacitado para desenvolver ações educativas
e preventivas, atuando na interface dos espaços público e privado. Entretanto, nos grandes centros urbanos não é bem assim. Os aglomerados
populacionais podem não se constituir em comunidades politicamente organizadas e, muitas vezes, são áreas de exclusão social, carentes da ação
do poder público, submetidas ao domínio de “autoridades marginais”.
Muitas vezes, o campo de trabalho do ACS é também um campo de
batalha, em todos os sentidos. Batalha contra a miséria, a doença, a ignorância, a violência, o desprezo pela vida humana e a morte. Nesse cenário, o
cotidiano do ACS – às vezes o único elo da população com o poder público
– se torna carregado de tensões sociais e psíquicas que fazem parte do exercício de sua tarefa e interferem no seu próprio bem-estar e vida pessoal.
O contato muito próximo e recorrente com situações graves de sofrimento e degradação – além do fato de que temas de Saúde Mental, apesar
de sua presença constante, são sempre complexos e pouco conhecidos para
a maioria dos profissionais da Saúde que não são da área psi – tornam o
trabalho ainda mais penoso.
Vários estudos com profissionais da área da Saúde têm demonstrado
138
c
Uma versão modificada foi publicada na Physis – Revista de Saúde Coletiva, v.17, n.2, 2007
Rodas de Conversa
ser esta uma população particularmente suscetível ao sofrimento psíquico
e estresse, devido ao trabalho, apontando para a necessidade de se criar
dispositivos institucionais para seu cuidado. Há muito se sabe que tais
dispositivos começam pela criação de espaços de fala e escuta, nos quais
a palavra circula, provoca descobertas, faz o conhecimento e tece sentidos
para a vida e o trabalho.
Partindo dessas premissas, desenvolvemos a atividade descrita neste
artigo, cuja intenção foi criar um espaço de acolhimento e aprendizado para
os ACS de uma região periférica do município de São Paulo. Na perspectiva
da Humanização, criamos as Rodas de Conversa sobre o Trabalho na Rua.
População acolhida
O trabalho aqui relatado se desenvolveu durante o período de setembro de 2002 a setembro de 2003, na subprefeitura de Perus, no município
de São Paulo, com o grupo de ACS do PSF, “Recanto dos Humildes”.
A subprefeitura de Perus era a menor do município em população,
algo em torno de 150 mil habitantes. Uma região de grandes áreas de ocupação recente, sem infraestrutura e planejamento urbano e com poucos
equipamentos públicos de Saúde. Os que existiam eram insuficientes para
suprir a demanda crescente e, para piorar a situação, havia muita dificuldade em se manter profissionais qualificados numa região distante, sem
qualquer atrativo de remuneração, carreira ou desenvolvimento profissional. O único atrativo era a beleza da paisagem verde, que ainda não havia
sido destruída pelas invasões e pela falta de compromisso governamental
com a preservação.
O PSF “Recanto dos Humildes” se instalou numa área complexa,
onde coabitavam pessoas de classe média baixa e nichos de população
em estado de exclusão social. A maioria era migrante. Grandes famílias
de gente jovem subempregada, sem moradia decente, sem estudo, sem
acesso a bens e serviços, sem esperanças. Os ACS, provenientes dessa comunidade, eram em geral mulheres jovens, casadas e com filhos pequenos,
migrantes de outros estados, que se destacavam dos demais por um certo
grau de instrução que lhes permitiu passar no concurso e constituir uma
“elite” trabalhadora local, alvo de admiração, respeito e, às vezes, cobiça.
139
Rodas de Conversa
Durante todo o trabalho, contamos com o apoio da coordenadora da
unidade do PSF – condição essencial para que esse tipo de trabalho dê certo.
Rodas de conversa sobre o trabalho na rua
Criamos dois grupos abertos que se reuniam quinzenalmente, com a
coordenação dessa psiquiatra e a presença variável de oito a vinte ACS por
encontro. Nos primeiros encontros estabelecemos o enquadre, o contrato
ético e a proposta de trabalho: “conversar um pouco sobre saúde mental
para atender melhor à população e cuidar da gente mesmo também”.
Caracterizamos os grupos como espaços para falar das inquietações
decorrentes do trabalho cotidiano dos ACS e para discutir situações clínicas sob o ponto de vista da Saúde Mental.
A experiência viva
Grupos abertos de tema livre (ou mais ou menos livre, como era o
nosso caso) não costumam ser espaços institucionais facilmente ocupados
pelos profissionais de Saúde. Apesar da consciência de que é por meio da
fala e da escuta que conseguimos elaborar vivências e lidar com emoções,
vários comportamentos defensivos irrompem frente a tal oferta. Nossa experiência nesse tipo de trabalho revela a dificuldade que as pessoas têm
para tratar aspectos da subjetividade sua e do outro, que se manifesta na
forma de frequência baixa aos encontros, dificuldades em estabelecer vínculos e identidade grupal, superficialização de temas problemáticos que
possam envolver a pessoa do profissional, esvaziamento da atividade ao
longo do tempo.
Nossa primeira surpresa foi observar um comportamento dos grupos
de ACS totalmente diverso do descrito. Logo de início, os grupos estabeleceram vínculo com a coordenadora e ocuparam o espaço e tempo com
a abordagem de questões espinhosas, difíceis, e nas quais o envolvimento
emocional do ACS ficava não só explícito, como era o próprio tema a que
se pedia discussão, exigindo manejo cuidadoso para que o grupo não se
tornasse um grupo de psicoterapia, mas pudesse oferecer suporte social
para as vivências ali manifestas. Os participantes mostravam-se confiantes
e à vontade para falar de suas angústias e sentimentos vários, interessados
140
Rodas de Conversa
em compreender as razões psicológicas dos protagonistas das situaçõesproblema, incluindo eles próprios.
Durante um ano, vários casos clínicos foram discutidos, chegandose a condutas mais adequadas do ponto de vista da Saúde Mental, como
também foram discutidas teorias e técnicas que instrumentalizavam os
ACS para melhor reconhecimento dos aspectos subjetivos presentes nas
diversas situações cotidianas.
Pela frequência e importância, destacamos alguns dos temas mais
trabalhados:
1. Impacto emocional do encontro com a realidade de cada família;
2. Dificuldades inerentes ao papel do ACS;
3. Dificuldades para trabalhar em equipe;
4. Preconceitos em relação à loucura e aos problemas mentais.
Para ilustrar esses campos temáticos, vamos relatar fragmentos de
discursos dos ACS, recolhidos de alguns dos nossos encontros.
Relato 1 - Os ACS são mesmo pessoas da comunidade? Impacto
emocional do encontro com a realidade de cada família.
ACS1: A primeira coisa que eu vi quando cheguei aqui foi
um rapaz novo, assassinado, em pleno meio-dia o corpo exposto
no meio da rua, largado como um cão. Só foi retirado dali pela
polícia no fim da tarde. Ninguém se importou e isso foi o que
mais me chocou. No Norte tinha muita seca, muita fome, mas
parecia mais humano.
ACS2: Se eu pensar em tudo de ruim que eu vejo, enlouqueço. Tem que saber conviver com essas coisas. Eu nasci numa
favela, cresci vendo essas coisas. Isso não me choca mais. Sigo
minha religião e me fecho para esse mundo.
ACS3: O que mais corta o coração é ver criança passando
fome. Quando pela primeira vez entrei numa casa que não tinha
nada para as crianças comerem, pensei na minha filha e comecei
a chorar. Nesse dia, não consegui comer. Fui em casa e peguei
comida para dar para aquela menina. Não é certo, mas eu fiz.
ACS2: Eu choro depois....
141
Rodas de Conversa
ACS4: O pior é que a gente não tem o que fazer. A gente se
sente totalmente incapaz, então a gente chora mesmo, ou acaba
se acostumando....
ACS1: Eu pensava que trabalhando na Saúde podia ajudar
muita gente, mas agora... Os pacientes são muito carentes. Tem
muita depressão. Falta de com quem conversar e as pessoas querem conversar. Fico escutando sem saber o que dizer.
ACS5: É, só que depois eles começam a achar que a gente é
empregada deles. Começam a exigir: tem que arranjar o remédio
custe o que custar, tem que fazer tudo na hora que eles querem e
se não fizer eles vão correndo falar mal da gente para a diretora.
Dá pena, mas dá raiva também!
ACS1: Alguns são assim, mas a maioria não. Tem muita
gente precisando de atenção e carinho porque a vida aqui é muito mais dura que a vida que a gente leva lá no Norte. A gente tem
que se acostumar, mas não dá para não ficar assustada.
Relato 2 - Não dá para resolver tudo. Dificuldades inerentes ao
papel do ACS.
ACS1: Não dá para resolver tudo, e então a gente vive
ouvindo desaforos. Outro dia apareceu um que queria que eu
arrumasse uma cesta básica. Aí vem outra querendo que eu arranje um advogado para ela conseguir uma pensão do cara que a
largou com os filhos. Teve até um que queria que eu botasse esgoto na rua! Aí quando você diz que é só um ACS, eles chamam
a gente de folgado!
ACS2: Eu não levo desaforo para casa, não! Se me desacatam eu parto para a briga ali mesmo, na frente de quem quiser
ver e é bom que vejam mesmo, que se a gente é muito mansa eles
montam em cima e aí é bem pior. Se tiver que sair no braço, não
quero nem saber se é paciente ou não, parto para cima e seja o
que Deus quiser!
ACS3: Levar na ignorância é pior. Eu converso e, se não
resolver, mando ir conversar com a equipe do posto. A gente não
142
Rodas de Conversa
é uma equipe? O pessoal fica protegido dentro do posto e nós
aguentamos o rojão na rua, precisa mandar o povo ir reclamar
com o pessoal do posto também que é para eles sentirem na pele
o que a gente passa.
ACS4: Eu gosto do trabalho na rua. Não suporto o dia que
tenho que ficar o dia inteiro no posto. Gosto de conhecer as pessoas. Tem gente briguenta, mas tem muita gente legal. Tem gente
que vê a gente na rua e vem bater papo, agradecer as coisas que
a gente faz. Dá gosto.
ACS5: Tem que ver também que tem muito ACS que não
quer nada com nada. Não está nem aí com o povo. Eu faço tudo
para resolver o problema das pessoas, aí me chamam de exibida,
que eu faço porque quero ser melhor que os outros. Não é verdade. Eu gosto de ser ACS e acho que é minha obrigação fazer o
impossível para resolver os problemas da população. Vou atrás
mesmo, cobro e não sossego enquanto não consigo o que quero.
O povo vive na minha casa. Não tem hora.
ACS6: Eu já não gosto do povo indo a qualquer hora na
minha casa. Às vezes, estou na minha folga e não consigo botar
o feijão no fogo de tanto que batem naquele portão. Também
não gosto de atender à noite e de fim-de-semana. A gente também tem direito de ter sossego para a gente e para a família da
gente.
ACS7: Nas minhas férias eu pus uma placa na frente da
minha casa: estou de férias, procure o posto. Teve gente que reclamou, mas eu não quis nem saber, estava de férias, não tinha
dinheiro para sair dali e se a gente está em casa ninguém respeita
sábado, domingo, feriado... E não é para urgência não, é porque
acha que a gente tem que atender qualquer hora, qualquer dia.
Relato 3 - Enquanto isso, dentro da “nossa casa”... Dificuldades
para trabalhar em equipe
ACS1: Para mim, o problema pior é com a gente mesmo.
Não falo só da gente ACS, mas da equipe toda. Falta união. O
143
Rodas de Conversa
pessoal da enfermagem se acha melhor do que nós, os médicos
se acham melhores que os enfermeiros.
ACS2: Eu acho que os enfermeiros são os piores. Tem médico bem legal, como aquela doutora que acabou de chegar e os
pacientes já fazem fila na frente do posto para passar com ela.
Aquela tem vocação, até o jeito de se vestir é de médica que gosta
de pobre. Ela não tem frescura não, vai com a gente nas visitas,
entra nas casas, conversa com todo mundo, não tem nojo. O
povo diz que ela é como Jesus, até os olhos são azuis...
ACS3: E Jesus tinha olhos azuis? Esse povo não tem jeito
mesmo... Mas a doutora é legal. O outro médico novinho também
é bem legal, e é bonito... Vocês viram? Está assim de mulher querendo passar com ele! Ah, como eu queria estar na equipe dele...
ACS4: Que assanhamento é esse? Sossega, mulher, que ele
é novo, mas já é casado! (risos)
ACS3: É casado, mas não está morto! Mas não é por isso
que eu queria estar na equipe dele, quer dizer, não é só por isso,
mas é que aquela equipe funciona melhor que a minha. Tem entrosamento, todo mundo ajuda todo mundo, não tem essa coisa
de um ver o outro no sufoco e não ajudar porque não é função
dele, ou por que ele se sente mais que a gente para fazer o que a
gente faz, entende?
ACS5: Isso acontece bastante na minha equipe também.
Eles dizem que cada um tem sua tarefa. É verdade, porque a
gente não vai saber fazer o que eles fazem, então por que eles
deveriam ajudar a gente?
ACS3: Porque o nosso trabalho é mais pesado. Somos nós
que vamos para a rua todo dia.
ACS5: Eu gosto de ir para a rua. Não acho que é mais
pesado, é diferente. O que falta é a gente combinar melhor as
coisas. Por exemplo, eu vou na casa de uma pessoa, explico que
a consulta só pode ser marcada depois de tal dia, do jeito que falaram que era para eu fazer, aí o paciente vai no posto e consegue
passar na frente. Com que cara eu volto na casa dele? Ele me vê
144
Rodas de Conversa
na rua e diz que fulano sim é que é bom e eu não sirvo para nada.
Isso é trabalhar em equipe?
ACS1: Também já passei por isso. Dei uma informação para
o paciente e depois falaram outra coisa para ele no posto. Parece
que é a gente que não sabe trabalhar direito.
ACS3: Eu acho que tem gente que faz isso de propósito.
Para parecer que é melhor que os outros. Tem muita competição
entre as equipes e entre os próprios ACS para ver quem é melhor.
Não acho certo, mas é isso que acontece.
ASC2: E por que ninguém fala nada na reunião com todo
mundo? Aqui, todo mundo fala pelos cotovelos, mas lá ficam
quietinhos, como se nada tivesse acontecido.
ACS6: Aqui é diferente, dá para falar. Lá eu tenho medo
de que fiquem com raiva de mim e me ferrem ainda mais depois.
E olha que a coordenadora fala que é para a gente dizer tudo o
que está sentindo, mas na hora não dá. Eu acho isso muito ruim,
porque acaba não mudando nada. Eu queria saber falar no meio
de muita gente e de gente com mais estudo que eu, mas acho
difícil.
Relato 4 - Loucura ou sem-vergonhice? Preconceitos em relação à
loucura e aos problemas mentais.
ACS1: Sabe, para mim o que mais tem é pessoa com problema de cabeça mesmo. Acho que é a miséria que faz isso. Tem
uma moça na minha área que é linda, parece uma bonequinha,
mas todo mundo diz que é louca. Foi abandonada pelo marido.
Ele arrumou outra dizendo que ela não sabe fazer nada direito,
fica o dia inteiro na cama, as crianças todas emporcalhadas na
rua pedindo esmola, comendo na casa dos outros. Fiquei com
tanta pena que tomei como minha filha e comecei a cuidar dela.
Vocês acham que ela é louca mesmo?
ACS2: Muito certa é que não é mesmo. Por que não levanta
daquela cama e vai trabalhar? É moça, é bonita, vai à luta, ora!
Mas não, fica ali jogada como um trapo, enquanto o marido dá no
145
Rodas de Conversa
pé e as crianças ficam abandonadas. Que doença o quê! Para mim
isso é sem-vergonhice mesmo.
ACS3: Eu não acho. Você sabe como foi a infância dela? Essas
coisas de cabeça são muito complicadas. Até a gente mesmo, tem
dia que parece que vai pirar... Eu já tomei antidepressivo e não acho
que sou louca. Tem muito preconceito. Se vai ao psiquiatra e toma
remédio é louco? Não é assim. Todo mundo de vez em quando precisava vir aqui conversar com a doutora.
ACS4: Eu tenho uma vizinha que ficou com câncer de tanto rancor que ela sentia do marido. A gente acha que não, mas
engolir veneno faz mal para a saúde. Eu vi um médico na televisão que falava que as coisas que a gente vai guardando, um dia
acabam virando doença mesmo.
ACS5: E esse povo que bebe até cair ou que usa droga.
Aqui está cheio de gente assim. É uma desgraça. O pior é que
você fala, fala e pensa que eles param de encher a cara? Que
nada... Nem querem tratamento. Eu tenho pena é da família. Meu
primo mesmo é um desses. Está metido com o pessoal da droga,
vive se metendo em rolo, qualquer dia aparece morto na porta
de casa e quem vai fazer o quê? Vai ficar todo mundo de boca
fechada porque ele se meteu nisso porque quis, a gente cansou de
avisar que ele estava se metendo onde não devia.
Nesses recortes podemos observar muitas das questões que
fazem parte do cotidiano de trabalho dos ACS que atuam em
área de exclusão social. Os temas de Saúde Mental, tanto no que
se refere à população quanto ao profissional da Saúde, são preocupações importantes do agente comunitário. Os espaços para
falar, pensar e aprender um pouco mais sobre si mesmo, o outro
e a subjetividade tornam-se parte essencial da própria tarefa de
promover a educação da população para a Saúde.
Reflexões sobre a experiência: asas do pensar...
Pierre Levy, (1993, p.36) diz que inteligência coletiva é “a valorização, a utilização otimizada e a colocação em sinergia das competências,
146
Rodas de Conversa
imaginações e energias intelectuais, independentemente de sua diversidade qualitativa e de sua localização”, propriedade que se faz através da
comunicação humana.
A escultura da identidade profissional parte dos elementos da experiência cotidiana e da reflexão lapidar sobre eles. Não existe um manual
que padronize o que cada um deve sentir, até quando ouvir os reclamos do
coração (ou do estômago) das famílias, o que fazer com os segredos que
lhes são confiados em espaço doméstico.
Os recortes de discurso apresentados mostram sujeitos em ação inteligente. Ao mesmo tempo em que nos falam de histórias, buscam compreendê-las pelo exercício do pensar compartilhado, que se vai transformando em possibilidade de significação dos acontecimentos.
Nos relatos, percebemos várias manifestações emocionais que emergem quando encontram a realidade concreta das pessoas em suas casas. Os
ACS vivem naquele meio, mas não se isentam do mal-estar causado pelas
condições de vida do ambiente. A ACS recém-migrante fala do choque
cultural entre a vida pobre no interior do Nordeste e a vida violenta na
periferia da cidade. Os colegas tecem soluções individuais: fechar-se em
si mesmo, voltar-se à religião, calar as emoções. A crueza do que se vê
e a impotência frente à complexidade dos problemas vão escurecendo os
olhares e endurecendo os sentimentos.
Ao mesmo tempo, quando percebidos como legítimos representantes do
escasso poder público local, aos ACS chegam pedidos que transcendem suas
funções e, diante da não-resposta desejada, passam a ser vistos como incompetentes e desnecessários. Reação irrefletida, que se reverte à medida que a
população vai entendendo melhor o campo de atuação do PSF (mas não sem
antes causar mais sentimento de impotência e mais frustração para o ACS).
Raiva e piedade se acumulam e recaem no cotidiano dos ACS nas
situações em que ora se oferece até o que é da sua vida particular (caso
da ACS que tira comida de sua mesa para dar à família necessitada), ora
se apela para a ignorância, quando o assunto é desaforo (caso da ACS que
briga na rua com quem quer que a ofenda).
Vida pessoal e atitude profissional em muitos momentos se confundem, e definir os limites do que é uma atitude acolhedora ou uma defesa à
147
Rodas de Conversa
invasão de privacidade nem sempre é tarefa simples, mas é sempre tarefa
necessária. E quando, nessa turbulência de emoções, o assunto chega aos
temas psiquiátricos, as discussões pegam fogo.
Se, em qualquer circunstância, os aspectos psíquicos do viver humano estão pulsando à flor da pele, quando o problema em questão é um
caso que envolva a doença mental propriamente dita, então as cores do
cenário se tornam bem mais intensas. A visão moral dos sintomas mentais se choca com as ideias científicas de saúde e doença que a mídia ou
o conhecimento médico veiculam, compondo o saber popular em tempos
atuais. Tristeza da vida, preguiça ou depressão? Dependência, fraqueza da
vontade ou falta de vergonha na cara?
O que foi feito: pensamos as pessoas e as situações de vida, começando pelo senso comum, depois percorrendo alguns conhecimentos sobre
a mente humana e os efeitos sociais sobre o comportamento. E assim, buscamos ampliar a capacidade de cada um para entender melhor o outro e a
si mesmo, e agir de forma mais próxima à ética da Humanização. Afinal,
se de médico e de louco todo mundo tem um pouco, no PSF, então...
No PSF, o contato diário e próximo não se dá só com a comunidade,
mas com as pessoas dentro do equipamento de Saúde, que é tão lugar de
ações para a saúde, quanto casa, lugar de histórias de amor e ódio. Disputas para ver quem vai ser o melhor e mais queridinho do grupo, olhares
sedutores que buscam seus pares, antipatias gerais, amizades à toda prova,
embates de poder, preconceitos, fofocas, muitas fofocas... Pano de fundo
sobre o qual as equipes vão experimentando o seu jeito de fazer saúde.
E como “roupa suja se lava em casa”, de tempos em tempos, na instituição, é preciso lavar o pano de fundo, para que o trabalho em equipe
possa acontecer de forma eficiente e verdadeiramente humanizada. Em
muitas situações, é imprescindível que se fale do que está nas entrelinhas
dos discursos que permeiam as relações entre as pessoas, definindo o que
é do direito pessoal e do dever profissional, na arrumação dessa casa que
precisa de muitos espaços: ambientes reservados para as especificidades,
os lugares comuns e as muitas interfaces nas quais se pactuam responsabilidade e compromisso coletivos. Afinal, trabalhar com pessoas, no território da vida, é um desafio que, nas palavras de Guimarães Rosa (1979,
148
Rodas de Conversa
p.15), encontra sua mais pura expressão:
Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente – dá susto
se saber – e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando,
querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante,
querendo chuva e negócios bons...
Agradecimentos
À Maria Madalena Ferreira Alves, uma assistente social cuja sensibilidade e coragem moldaram não só a excelente gestora, mas a criatura
humana da categoria dos imprescindíveis.
Bibliografia
BALINT, M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Atheneu,
1988.
BENOIT, P. Psicanálise e medicina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.
CASSEL, J. Psychosocial processes and “stress” theoretical formulation.
Intern J Hth Services, v. 1, n. 3, p. 471-482, 1974.
FERRAZ, F.; VOLICH, R. M. Psicossoma: psicossomática psicanalítica. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
KARASEK, R. A. Job demands, job decision latitude, and mental strain:
Implications for job redesign. Adm Sci Quart, n. 24, p. 285-308, 1979.
LEVY, P. As tecnologias da Inteligência – O futuro do pensamento na era
da informática. São Paulo: Editora 34, 1993.
PITTA, A. Hospital: dor e morte como ofício. São Paulo: Hucitec, 1990.
RIOS, I. C. A relação médico-paciente em tempos de pasteurização da subjetividade. Revista Ser Médico. São Paulo, v. 8, p. 16-19, 1999.
ROSA, J.G. Grande Sertão: Veredas. 13ed. Rio de Janeiro, José Olympio
Editora, 1979.
SÃO PAULO (ESTADO). SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE. Manual de
149
Rodas de Conversa
Treinamento Introdutório do Programa Saúde da Família. São Paulo: Pólo
de Educação Permanente em Saúde da Região Metropolitana de São Paulo,
2002.
150
CAPÍTULO X
Impressões dos Trabalhadores
de uma Unidade Básica de
Saúde sobre o seu trabalho
Impressões dos Trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde sobre o seu trabalho
1. O que fizemos
Em 2002, o Projeto Acolhimento1 foi apresentado como um dos projetos prioritários da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, tendo
como horizonte a transformação da cultura institucional da Humanização
pela consideração aos aspectos históricos e subjetivos presentes nas práticas de Saúde.
Tratava-se de criar condições institucionais para que funcionários e
pacientes fossem vistos como cidadãos vivendo dentro de contextos socioculturais vários, com existência pessoal que compreende sua religião, personalidade, características emocionais e volitivas, capacidades intelectuais
e potencial criativo que, respeitados e valorizados, promovem a saúde da
clientela e a satisfação profissional dos trabalhadores da área da Saúde.
Para desenvolver e compartilhar as ideias e ações do acolhimento,
à semelhança do que ocorria na Secretaria de Estado da Saúde, propôs-se
a criação de Comitês de Acolhimento nos equipamentos de Saúde da rede
municipal. Na UBS Perus, com o apoio do diretor da unidade, constituímos
um grupo de trabalho formado por uma médica psiquiatra, uma educadora
e uma enfermeira.
Essa UBS era, então, a única de toda a região de Perus, na periferia
da cidade de São Paulo, e mesmo com a taxa de lotação de pessoal muito
incompleta, seus 44 funcionários respondiam pelas seguintes atividades:
-Atendimento programático em clínica médica, Ginecologia e Obstetrícia, Pediatria, Oftalmologia, Psiquiatria, Odontologia pediátrica;
-Educação em Saúde para gestantes, planejamento familiar;
-Vacinação de rotina e campanha;
-Ultrassonografia gestacional;
-Exames preventivos das patologias de colo de útero e mamas;
-Atividades de grupo (educativo e terapêutico) para hipertensos,
puericultura, psicoterapia;
-Grupo de apoio psicossocial para Agentes Comunitários de Saúde
do PSF do Recanto dos Humildes;
-Controle de doenças infecciosas: tuberculose, hanseníase, dengue, sífilis;
-Coleta de material para exames laboratoriais;
-Curativos e medicação;
152
Impressões dos Trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde sobre o seu trabalho
-Visita domiciliar;
-Transporte de pacientes;
-Recepção;
-Administração;
-Almoxarifado;
-Farmácia;
-Serviços gerais e portaria;
-Comitê de Acolhimento.
Diante das inúmeras dificuldades estruturais (falta de instalações
adequadas, de equipamentos, de insumos e remédios, de segurança e de
profissionais em número suficiente para atender a demanda) nas quais
transcorriam as atividades da unidade, a sobrecarga de trabalho e a desconfiança de que, mais uma vez, o funcionário fosse injustamente tratado
como responsável pelas falhas do sistema de Saúde, optamos por iniciar
o Acolhimento criando espaços de fala e escuta dos nossos funcionários
sobre suas condições de trabalho. Resolvemos, primeiramente, acolher o
funcionário...
As impressões e respostas obtidas nesse estudo diagnóstico de situação local são a matéria deste texto.
2. Como fizemos
Planejamos um estudo exploratório que, em um primeiro momento, abordava o seu campo com duas técnicas de coleta de dados (grupos
focais2 e questionário autoaplicado) e, em segundo momento, procedia à
análise descritiva dos dados empíricos.
Formamos três grupos, um de profissionais de nível superior (cinco
médicos, dois enfermeiros, uma educadora e uma assistente social), um
de profissionais de nível médio (oito auxiliares de enfermagem e cinco
oficiais administrativos) e um grupo de funcionários operacionais (seis
auxiliares de serviços e quatro vigias). Em cada encontro, perguntávamos
sobre o que sentiam e pensavam sobre o seu trabalho, e as dificuldades
encontradas no dia-a-dia. O grupo era coordenado pela psiquiatra, e observado e relatado em caderno de campo pela educadora. Das informações
obtidas nesses encontros, elaboramos um questionário que foi distribuído
153
Impressões dos Trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde sobre o seu trabalho
para os funcionários responderem e depositarem em uma urna, não havendo necessidade de se identificar. A receptividade dos funcionários para
os grupos foi muito boa e as respostas aos questionários alcançaram 81%
do total de 44 trabalhadores da unidade.
O questionário continha doze perguntas fechadas e duas perguntas
abertas:
1. Sexo
Masculino
Feminino
2. Idade
18 anos
21-29 anos
30-39 anos
40-49 anos
Mais de 50 anos
3. Cargo/Função
Administrativo
Médico
Enfermeiro
Auxiliar de enfermagem
Educador
Assistente Social
Auxiliar de Serviços
Vigia
4. Tempo de trabalho na unidade (em anos)
Menos de 1 ano
1-3 anos
5-10 anos
Mais de 10 anos
154
Impressões dos Trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde sobre o seu trabalho
5. Tipo de contrato empregatício
CLT
Estatutário
Terceirizado
Temporário
Outro
6. Possui outro vínculo empregatício atém deste?
Sim
Não
7. Acha que suas ideias e sugestões são consideradas pelos superiores
na tomada de decisões?
Sempre
Eventualmente
Nunca
Outra opinião
8. Sente-se respeitado e valorizado como profissional:
Sempre
Eventualmente
Nunca
Outra opinião
9. Considera satisfatório o relacionamento entre as pessoas do seu setor:
Sempre
Eventualmente
Nunca
Outra opinião
11. O trabalho promove sentimento de realização pessoal:
Sempre
Eventualmente
155
Impressões dos Trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde sobre o seu trabalho
Nunca
Outra opinião
12. Sente-se motivado para o trabalho:
Sempre
Eventualmente
Nunca
Outra opinião
13. Quais as dificuldades que encontra no dia-a-dia para a realização
do seu trabalho?
14. Quais suas sugestões para melhorar nosso ambiente de trabalho?
3. O que encontramos
Na análise descritiva, primeiro trabalhamos os dados referentes à
caracterização geral dos funcionários da UBS como um todo, e depois
agrupamos por categoria profissional os dados referentes às impressões
sobre alguns aspectos de clima institucional que apareceram nos grupos
focais. Embora houvesse vários pontos de vista comuns entre os trabalhadores, consideramos importante ressaltar as diferenças que, em uma
leitura compreensiva3 da realidade, apontam para lugares distintos dos
discursos e valores atribuídos aos mesmos.
Como é comum na área da Saúde4, 72% dos trabalhadores eram
mulheres e 62% do total estavam na faixa etária dos trinta aos quarenta e
nove anos. A grande maioria, ou 80%, contavam com tempo de serviço na
unidade menor que dois anos, sendo que 59% tinham menos de um ano,
supostamente devido às mudanças ocorridas na gestão municipal naquele
ano. Em 2002, a prefeitura de São Paulo desfez o modelo de atenção à
Saúde do governo anterior (cujo formato técnico-político descaracterizou
o SUS nessa cidade), promovendo uma grande movimentação de profissionais entre as diversas unidades da rede. Do total de funcionários, 70%
eram estatutários. Todos os médicos e enfermeiros da unidade tinham outro vínculo empregatício em outro serviço de Saúde além daquela UBS.
No que se refere aos aspectos relativos à vivência subjetiva do am-
156
Impressões dos Trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde sobre o seu trabalho
biente de trabalho e da própria profissão, por categoria profissional, estudamos os seguintes fatores psicossociais5 do trabalho:
1. Perceber que suas ideias e sugestões são consideradas pelos superiores na tomada de decisões em relação ao seu trabalho;
2. Sentir-se valorizado como profissional;
3. Perceber o relacionamento entre as pessoas do seu setor como
sendo satisfatório;
4. Sentir-se motivado para o trabalho;
5. Sentir que o trabalho promove realização pessoal.
Impressões dos nove trabalhadores administrativos da UBS Perus,
em 2002, sobre alguns fatores psicossociais do trabalho:
80%
60%
40%
20%
0%
Nunca
Eventualmente
Sempre
realização
motivação
relacionamento
valorização
sugestões
Outra
Impressões dos dois enfermeiros da UBS Perus, em 2002, sobre
alguns fatores psicossociais do trabalho:
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
Nunca
Eventualmente
Sempre
realização
motivação
relacionamento
valorização
sugestões
Outra
157
Impressões dos Trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde sobre o seu trabalho
Impressões dos catorze auxiliares de enfermagem da UBS Perus,
em 2002, sobre alguns fatores psicossociais do trabalho:
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
O%
Nunca
Eventualmente
Sempre
realização
motivação
relacionamento
sugestões
valorização
Outra
Impressões dos sete médicos da UBS Perus, em 2002, sobre alguns
fatores psicossociais do trabalho:
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
158
realização
motivação
relacionamento
valorização
sugestões
Nunca
Eventualmente
Sempre
Outra
Impressões dos Trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde sobre o seu trabalho
Impressões dos dez auxiliares e vigias da UBS Perus, em 2002,
sobre alguns fatores psicossociais do trabalho:
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
Nunca
Eventualmente
Sempre
realização
motivação
relacionamento
valorização
sugestões
Outra
Impressões dos dois profissionais da Educação e Serviço Social da
UBS Perus, em 2002, sobre alguns fatores psicossociais do trabalho:
120%
100%
80%
60%
40%
20%
0%
Nunca
Eventualmente
Sempre
realização
motivação
relacionamento
valorização
sugestões
Outra
159
Impressões dos Trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde sobre o seu trabalho
As principais dificuldades para a realização satisfatória do trabalho
apontadas pelos trabalhadores, segundo categoria profissional, foram:
Administrativos
-Falta de comunicação e entrosamento entre os diversos setores;
-Espaço físico limitado, inadequado e de aparência ruim;
-Desencontro de orientações entre as chefias;
-Atitudes de desrespeito entre colegas;
-Falta de sustentação e cumprimento às regras e normas propostas;
-Falta de material básico e específico.
Enfermagem
-Falta de funcionários;
-Espaço físico limitado, inadequado e de aparência ruim;
-Falta de material básico e específico;
-Falta de treinamento adequado;
-Sobrecarga de trabalho, desgaste físico e emocional;
-Falta de comunicação e entrosamento entre os diversos setores;
-Falta de expectativas para a solução dos problemas;
-Falta de sensibilidade das chefias superiores (Coordenadoria, Secretaria Municipal de Saúde) para reconhecer a situação de trabalho
estressante a que os funcionários estão submetidos.
Médicos
-Número excessivo de pacientes e falta de funcionários;
-Sobrecarga de trabalho, desgaste físico e emocional;
-Falta de programas de saúde comunitários;
-Falta de orientação técnico-política baseada na realidade da demanda e dos recursos disponíveis;
-Falta de medicação;
-Falta de integração de fluxo de referência/contra-referência;
-Falta de material básico e específico;
-Espaço físico limitado, inadequado e de aparência ruim;
-Falta de comunicação e entrosamento entre os diversos setores.
160
Impressões dos Trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde sobre o seu trabalho
Educador e Serviço Social
-Número excessivo de pacientes e falta de funcionários.
Auxiliares de serviços e vigias
-Desencontro de orientações entre as chefias;
-Falta de comunicação e entrosamento entre os diversos setores;
-Salários ruins;
-Problemas pessoais.
As principais sugestões dadas pelos trabalhadores para a melhora
das condições de trabalho na UBS foram agrupadas por temas citados de
forma espontânea, e se referem à:
Relação com as chefias
-Promover mais reuniões para a tomada de decisões;
-Promover aliança das chefias com os funcionários na busca de soluções.
Expectativas quanto à atitude dos níveis superiores (Coordenadoria, Secretaria Municipal de Saúde)
-Acolhimento dos funcionários da base pelos funcionários de níveis
administrativos superiores;
-Recuperar os programas de saúde;
-Planejamento e articulação do fluxo de referência/contra-referência
-Ampliar e melhorar o espaço físico;
-Informatizar o serviço;
-Fornecer material suficiente e medicamentos;
-Diferenciar e valorizar os funcionários públicos;
-Contratar mais funcionários;
-Melhorar a remuneração;
-Igualdade de direitos e respeito para com todos os funcionários em
todos os níveis hierárquicos.
Acolhimento e relacionamento interno
-Avaliação periódica das condições de trabalho e respostas às solicitações feitas;
161
Impressões dos Trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde sobre o seu trabalho
-Melhorar o entrosamento entre os setores na UBS;
-Orientar melhor o usuário sobre funcionamento e atividades da UBS;
-Promover ações preventivas para a saúde dos funcionários;
-Promover mais atividades de educação em saúde e pós-consulta.
Administração e gerência
-Organizar os setores definindo melhor horários e prioridades;
-Definir melhor as atribuições dos funcionários;
-Promover treinamento para os funcionários;
-Adequação da demanda aos recursos disponíveis;
-Organizar melhor a porta de entrada dos pacientes;
-Solicitar mais funcionários para os setores deficitários.
4. O que pensamos sobre nossos achados
Os dados mostravam que os funcionários da UBS Perus eram na
maioria pessoas do sexo feminino, há pouco tempo na unidade, tendo
apenas tal vínculo empregatício. A maioria considerava bom o relacionamento entre as pessoas, mas precisava ser melhorado, principalmente por
meio de dispositivos coletivos de comunicação, como as reuniões. Todos
sugeriam direta ou indiretamente a melhoria da comunicação, do entrosamento e relacionamento entre as pessoas. Alguns falavam da necessidade de mais reuniões de equipe que permitissem maior participação dos
trabalhadores no processo de trabalho. Como mostram outros estudos3,4,6
ainda é insipiente o trabalho interdisciplinar que transformaria os agrupamentos em verdadeiras equipes de alta performance. A realidade ainda é a
fragmentação do processo de trabalho e a execução individual de tarefas
interdependentes.
Todas as categorias profissionais apontaram a dificuldade de comunicação entre os setores na UBS e instâncias superiores do sistema de
Saúde, acarretando a impressão de abandono, isolamento e de “nunca
saber o que está acontecendo dentro e fora da unidade”. Queixavam-se de
pouca participação na organização do seu trabalho e na gestão, sendo que
na maioria das vezes suas ideias e sugestões não influíam na tomada de
decisões.
162
Impressões dos Trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde sobre o seu trabalho
Apesar das circunstâncias desfavoráveis, sentiam-se motivados para
o trabalho, possivelmente pelo caráter próprio da atividade na área da
Saúde, que entendiam como fonte de realização pessoal.
Foi unânime a avaliação de que o espaço físico da unidade era muito ruim, assim como a falta de funcionários para uma demanda cada vez
maior da clientela, e a falta de materiais e medicamentos. Era uma expectativa comum a todos a melhoria daquele espaço físico insuficiente,
inadequado e muito feio.
Particularmente, quanto aos trabalhadores nas funções administrativas, na época do estudo, o grupo compunha-se das pessoas da recepção e
do trabalho interno. O pessoal do trabalho interno aparecia como integrado
e seguro quanto às suas funções na unidade. Apresentava-se como aquele
que, apesar das dificuldades estruturais da unidade, tinha boas condições
de trabalho e de relacionamento entre si, destacando-se dos demais como
o grupo dos “privilegiados”, por não passarem pelo desgaste físico e emocional dos que estavam sobrecarregados pelo contato com a população.
Já o pessoal da recepção formava um agrupamento muito problemático, trabalhando em um ambiente de muito estresse e difícil organização frente a grande defasagem entre vagas disponíveis e procura de
atendimento pela população. Observava-se grande dificuldade de, diante
da pressão da população, respeitarem e cumprirem as regras determinadas.
Com frequência arrumavam saídas e transgrediam normas, competiam entre si e tinham muita dificuldade em estabelecer uma comunicação eficiente entre as pessoas do próprio grupo. Na época desse estudo, estavam
muito fragilizadas pelo fato de estarem em fim de contrato. Ainda assim,
havia pessoas interessadas no trabalho e em encontrar soluções para os
problemas apontados. Esse é também um dado que deve ser considerado,
o contrato de trabalho entre os grupos interfere, tanto para o bom desempenho, quanto para a perda de interesse pelo trabalho.
As duas enfermeiras, assim como as outras duas profissionais de
nível superior analisadas conjuntamente, não constituíram grupos em si,
sendo que seus dados precisam ser vistos como expressões subjetivas. Entretanto, juntando as enfermeiras com os auxiliares de enfermagem, temos o grupo da enfermagem, que se destaca dos demais por ser o menos
163
Impressões dos Trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde sobre o seu trabalho
motivado, o grupo por assim dizer, mais desiludido com as condições de
trabalho e profissionais.
Os médicos formavam um agrupamento que mantinha uma postura
ativa frente aos problemas, mas cada qual trabalhando de forma individualizada, resolvendo situações particulares do seu cotidiano. A maioria
sentia-se comprometida com o seu trabalho, mas muito descontente com
os problemas estruturais que dificultavam a realização plena de suas atividades, deixando sentimento de frustração frente ao que gostariam de fazer
e o que de fato era possível ser feito. Foi o grupo que mais expressou o
sentimento de não realização pessoal com o seu trabalho. Estavam dispostos a participar, opinar, propor ideias para solucionar os problemas (que
localizavam na organização e gestão do sistema de Saúde da prefeitura),
desde que realmente fossem ouvidos e soluções encaminhadas. Cobravam
mais ações locais, mais definições técnico-políticas, como programas de
saúde e organização do fluxo de referência-contra referência.
Ao contrário dos médicos, os auxiliares de serviços constituíam um
agrupamento bastante fragilizado principalmente pela indefinição de papéis e funções dentro da unidade. Apresentavam-se desanimados frente às
perspectivas de melhoria salarial e profissional. Compunha-se de algumas
pessoas com boa vontade e outras acomodadas, preguiçosas e até mesmo resistentes às mudanças, uma vez que satisfeitas com sua ociosidade. Alguns se sentiam discriminados pela função considerada menor, ou
pela falta de função que era observada como menos valia entre os demais
profissionais da unidade. Ressentiam-se da falta de chefia direta, de enquadramento funcional, de avaliações periódicas e outros dispositivos que
lhes garantissem identidade e respeito junto aos demais.
Quanto aos vigias, funcionários que então eram terceirizados, havia os que se sentiam integrados à unidade e os que se percebiam como
excluídos, a depender de sua personalidade e consequente atitude, uma
vez que não havia qualquer preocupação ou plano de integração de tais
funcionários com os demais.
A perspectiva de melhora das condições de trabalho e atendimento fazia com que a maioria dos funcionários se interessasse pelo Projeto
Acolhimento. Entretanto, a imagem de que o acolhimento tem como foco
164
Impressões dos Trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde sobre o seu trabalho
principal os usuários – embutindo uma crítica à conduta moral do funcionário – suscitava defesas que diminuíram quando mudamos o enfoque
para o cuidado e valorização do profissional, com o objetivo de, por meio
deste, melhorar a qualidade da atenção ao usuário. Nas reuniões de grupo
focal a participação de todos foi intensa, muito empenhados em fazer análises críticas, dar sugestões, deixar depoimentos. A pesquisa por questionário anônimo contou com 81% de respostas, número bastante satisfatório
para esse tipo de investigação.
Este estudo mostrou resultados condizentes com a literatura3,4,6 acumulada na área da Saúde Pública, que diz que a realidade dos problemas
de atendimento na rede pública compreende fragilidades técnico-políticas,
vícios estruturais e deficiências de diversas naturezas, que não podem ser
tratadas de forma reducionista. Acreditamos que esses problemas, cronificados ao longo de muitos anos de história, não devem ser dissimulados
pela leitura superficial e irresponsável, que lhes atribui um caráter preponderantemente moral e supõe que sejam oriundos da falta de conscientização do servidor público quanto à sua missão. O que constatamos
por experiência própria e pelos métodos investigativos são problemáticas
bem mais complexas que necessitam de uma compreensão maior e interdisciplinar para, em um contexto de justiça e observância dos princípios
da Humanização que incluem usuários e funcionários, sem preconceitos,
promover as transformações que todos queremos, particularmente as que
se referem à Educação Permanente e seus desdobramentos (valorização do
profissional da Saúde, construção de equipes eficientes e efetivas, gestão
participativa, e Humanização da atenção à Saúde).
Conhecer o funcionário, avaliá-lo com propriedade, valorizar e propiciar o desenvolvimento de seu potencial criativo devem constar como
princípios de uma gestão participativa, competente e exemplar na adoção
das ideias da humanização, imprescindíveis para o resgate do respeito aos
nossos trabalhadores, para a melhoria das condições de trabalho e, em
decorrência, a revitalização da atitude solidária e compreensiva que se
espera de quem trabalha na área da Saúde. Atitude que se almeja, mas não
se impõe, senão sob o risco de, em nome da Humanização, mais uma vez
praticar-se a violência.
165
Impressões dos Trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde sobre o seu trabalho
Agradecimentos
À Maria Teresa de Almeida Marciano (Educadora) e Maria Cristina
Fernandes (Enfermeira) que participaram da coleta de dados.
Referências Bibliográficas
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Saúde de São Paulo, 2002.
2. Denzin, N. & Lincoln, Y.S. Handbook of qualitative research. 2nd ed.
Thousand Oaks: Sage Pub., 2000.
3. Machado, M.H. Profissões em Saúde, Rio de Janeiro, ED. FIOCRUZ,
1996.
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1990.
5. Araújo, T.M.; Aquino, E; Menezes, G; Santos, CO; Aguiar, L Aspectos psicossociais do trabalho e distúrbios psíquicos entre trabalhadoras
de enfermagem Rev. Saúde Pública 37 (4) pp. 424-433, 2003.
6. SÁ, M. C. Em busca de uma porta de saída: os destinos da solidariedade,
da cooperação e do cuidado com a vida na porta de entrada de um hospital
de emergência (Tese), São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2005.
166
CAPÍTULO XI
Em busca da Humanização das
práticas de Saúde:
a questão do método
Em busca da Humanização das práticas de Saúde: a questão do método
A Humanização na área da Saúde1 surgiu do legítimo anseio das
pessoas, trabalhadores e usuários dos serviços, pela melhoria das práticas de Saúde. Inicialmente voltada às ações de ambiência, acolhimento,
cidadania, e reconhecimento do campo da subjetividade no atendimento,
foi ganhando consistência prática e conceitual, passando da situação de
ações humanizadoras, para a de programa, chegando à condição de política pública do SUS. Nesse percurso, à medida que se aprofundava a
compreensão dos fatores envolvidos na paradoxal realidade na qual os
serviços de Saúde, cuja missão é curar e aliviar, se transformaram (eles
próprios) em lugares de sofrimento, constatava-se claramente que eram
principalmente os aspectos organizacionais que sustentavam esse estado
de coisas. Cultura institucional, organização dos processos de trabalho e
gestão despontaram como os principais entraves ao desenvolvimento da
humanização das práticas de Saúde.
Portanto, sem considerar a importância dos trabalhadores da Saúde
no aprendizado de um modo de fazer suas tarefas em que seja ele mesmo
o exercício da Humanização, e sem trabalhar a vida institucional em todos seus matizes, particularmente no que se refere à gestão das pessoas e
processos de trabalho, é praticamente impossível tornar tais práticas mais
éticas, justas e solidárias, como reza a cartilha da Humanização.
Como característico nos movimentos que começam do esforço coletivo para a mudança da realidade, a Humanização trouxe dos seus primeiros ensaios metodológicos no PNHAH (Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar) o formato organizacional do Comitê de
Humanização, que propunha a aglutinação de pessoas de diversas áreas
da instituição, inclusive usuários e voluntários, buscando mais a representatividade que a competência técnica para o tema. Depois chamado pela
SES-SP de Núcleo de Humanização e na PNH (Política Nacional de Humanização), Grupo de Trabalho de Humanização (GTH), manteve-se esse
formato. Ou seja, embora a PNH tenha mudado o patamar da Humanização quando esta deixou de ser um programa hospitalar e passou a ser uma
política pública do SUS, do ponto de vista metodológico, a PNH, ainda
que propusesse outras perspectivas e ferramentas de trabalho, como por
exemplo, a matriz de indicadores de monitoramento da Humanização, da
168
Em busca da Humanização das práticas de Saúde: a questão do método
qual falaremos adiante, não propunha mudanças significativas no modelo
do Comitê de Humanização (apenas re-batizado de GTH).
Decorrem desse fato vários exemplos que revelaram a insuficiência
metodológica do formato de Comitê para o desempenho das funções necessárias às novas perspectivas para a Humanização e a busca de outros
formatos mais adequados às exigências técnicas que hoje são imprescindíveis para a Humanização. Para ilustrar esse fato, apresentamos um caso
que acompanhamos durante aproximadamente quatro anos, no qual fica
evidente que discursos e ações focais são necessários, mas não suficientes
para desenvolver a humanização dos serviços e que o método do Comitê
precisa ser revisto.
O Método: Comitê de Humanização
História de Caso Institucional
O serviço estudado constitui-se como caso por ser uma instituição
pública de saúde ligada à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, que
presta atendimento ambulatorial, hospitalar e de pronto atendimento para
a população, organizada nos moldes tradicionais dos serviços de saúde públicos do SUS. Compunha-se de aproximadamente 800 funcionários, dos
quais 60% em atividades operacionais e 30% nos chamados cargos “técnicos” – que no serviço público são os cargos ocupados por profissionais
de nível superior. A maioria dos funcionários era do sexo feminino (70%),
com idade entre 30 e 49 anos (67%), casados (54%), raça branca (57%), e
com nível superior de escolaridade (52%). Outro aspecto importante, que
também coloca este serviço na condição de caso modelar (por semelhança
a outros serviços públicos de saúde), era a presença de grande número de
gestores sem formação na área de gestão. Em 2006, uma pesquisa operacional apontou que, do total de 73 gestores desse serviço, ocupando cargos
em diversos níveis hierárquicos (diretor técnico de serviço, diretor técnico
de divisão de saúde, diretor técnico de departamento de saúde, assistentes
de saúde I, II e III, supervisores de enfermagem) a metade não tinha qualquer curso de gestão. A grande maioria tinha nível superior (86 %), mas
pouquíssimos tinham pós-graduação (0,2 %). Muitos tinham experiência
de gestão por período maior que dois anos (74%). Os principais problemas
169
Em busca da Humanização das práticas de Saúde: a questão do método
(por eles apontados) para os quais gostariam de aprimoramento se referiam à gestão de pessoas (78 %).
Como na maioria dos hospitais públicos, várias ações humanizadoras faziam parte da rotina da instituição, tanto na atenção aos usuários,
quanto aos funcionários, especialmente à saúde do trabalhador. Na época
que a SES-SP convidou seus hospitais para o curso de Humanização na
área da Saúde, esse serviço criou um Comitê de Humanização que, nos
anos seguintes, trabalhou ativamente, cumprindo um árduo plano de trabalho que resultou na disseminação das ideias da Humanização em todos
os setores, entre trabalhadores e usuários, de maneira tal que a palavra
humanização (e seus muitos sentidos) foi incorporada no vocabulário comum a todos. Incorporada nos discursos, mas não necessariamente nas
práticas, especialmente as de gestão, nas quais os avanços reais foram bem
modestos...
Durante quatro anos, um empolgado Comitê de Humanização realizou palestras com funcionários, usuários e gestores, articulou-se com a
ouvidoria, fez a divulgação das ações humanizadoras do serviço, promoveu seminários, realizou pesquisa de satisfação do usuário com o atendimento, fez levantamento de clima institucional e planejamento de um curso de capacitação de gestores, somando muitos feitos em diversas áreas,
iluminando muitas pessoas com os seus ideais.
Embora bem intencionado e contabilizando realizações, o Comitê
não conseguiu sustentar-se conforme o desejado quando da sua criação.
Ao final desse tempo, apesar das realizações, observamos que o formato de
Comitê, ainda que legitimado pelos movimentos sociais dos quais surgiu,
não se apresentou como método eficaz de trabalho para avançar no sentido da PNH, conforme discutiremos a seguir.
Criado nos moldes dos grupos preconizados pelo PNHAH (Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar), o Comitê tinha
representatividade e condições técnicas e operacionais para as atividades
de disseminação das ideias da Humanização, mas não para orientar mudanças de maior calibre, conduzir intervenções e monitorar a gestão e os
processos de trabalho, como passou a se propor quando da mudança do
PNHAH para a PNH. A prática revelou que a mudança de perspectiva da
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Em busca da Humanização das práticas de Saúde: a questão do método
humanização do PNHAH para a PNH exige mudanças de método para sua
implantação.
O Comitê, na maioria das vezes, é formado por pessoas que se ocupam
em diversas atividades, não contando com tempo necessário para o volume
de trabalho necessário para as atividades propostas na PNH, que ultrapassam aquelas pertinentes às funções do Comitê no PNHAH, e que em uma
leitura mais técnica dizem respeito à área de Desenvolvimento Profissional e
Institucional. Tais pessoas não têm, necessariamente, formação para as especificidades dessa área. Ou seja, se a instituição tem uma área de Desenvolvimento, o Comitê pode e deve trabalhar com ela, monitorando os indicadores
de Humanização da PNH, mas se é o próprio Comitê que vai estimular tais
ações, a experiência revela sua incapacidade para tanto.
A cada ano, a maioria dos participantes abandonava o trabalho
(porque tinham outras atividades mais de acordo com suas características
técnicas). Pudemos constatar tal fato na prática, observando que os únicos
membros do Comitê que permaneceram durante os quatro anos de estudo
foram os profissionais de Recursos Humanos, cuja afinidade de campo de
trabalho fazia sentido à sua permanência no Comitê. Essa rotatividade
comprometia seriamente a realização de projetos a médio e longo prazo
uma vez que, frequentemente, as pessoas que saíam eram substituídas por
outras que pouco ou nada sabiam sobre Humanização, e tinham dificuldade em aceitar dar andamento a projetos cuja autoria não compartilhavam
(vaidade, competitividade e individualismo fazem parte do humano, inclusive em um comitê dessa natureza...).
Percebemos que, com a passagem do PNHAH à PNH, o Comitê perdeu a clareza sobre suas funções. As pessoas no Comitê tinham dificuldade
em aceitar suas limitações para trabalhar dentro da proposta da PNH e,
uma vez que esta se investia de grande valor, consideravam de menos
valia as funções que caberiam ao Comitê no modelo do PNHAH. O resultado foi uma crise de identidade. Afinal, para que serve um Comitê de
Humanização, se não lhe interessa fazer o que teria condições técnicas e
operacionais, e o que deseja fazer é algo que transcende sua competência
técnico-política? Na prática, o Comitê se desvitalizava, e pouco ou quase
nada conseguia realizar de fato.
171
Em busca da Humanização das práticas de Saúde: a questão do método
Por outro lado, mesmo quando conseguia realizar a contento suas
tarefas, estas se esgotavam em si mesmas, porque as respostas que deveriam desencadear dependiam dos gestores, estes pouco interessados nas
mudanças propostas. O Comitê na instituição é, no máximo, uma instância
consultiva, e não sendo um grupo técnico capaz de trabalhar junto à gestão na organização do trabalho, pode fazer alguns diagnósticos e propor
algumas ações, não mais que isso. Como exemplo, podemos citar o fato de
que, embora o Comitê (do caso em estudo) tenha realizado um bom levantamento de clima institucional, cujos resultados foram apresentados para
todos os gestores, dele não resultou nenhuma ação, simplesmente porque
nenhum gestor se interessou em trabalhar sobre os problemas apontados. E
o curso de capacitação de gestores, ainda que necessário e plenamente justificado pela falta de capacitação (assumida por metade dos gestores), acabou
esquecido no fundo de uma gaveta... Ao longo do tempo, observamos que
a esperança de transformação da realidade pela Humanização foi perdendo
fôlego. O Comitê reduziu-se a um grupo que apontava problemas institucionais, mas, sem participação efetiva nas instâncias de poder, tornou-se
apenas mais uma voz abafada no coro dos queixosos e insatisfeitos.
Mais do que contar com o empenho de pessoas afinadas com as ideias
da Humanização, se não houver uma mudança no molde do próprio grupo
de pessoas que trabalham para a humanização dos serviços e sua inserção
no âmbito da gestão, não há política de Humanização que se sustente.
A Educação Permanente como metodologia para a Humanização
Talvez consciente dos fatos apontados até aqui, mas partindo de
outro ponto de observação crítica da realidade na área da Saúde – na
vertente da formação profissional para as necessidades do SUS e os modelos de atenção coerentes com seus princípios –, em 2006, o Ministério
da Saúde apresentou à discussão a Política de Educação Permanente3 (EP).
Tratava-se de outra política pública do SUS que veio ao encontro da PNH,
trazendo princípios e diretrizes de gestão que incluem, necessariamente, a
participação dos trabalhadores e comunidade, e propõe uma metodologia
capaz de promover as mudanças no modo de fazer gestão nos serviços de
Saúde, permitindo a implementação da Humanização como política.
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Em busca da Humanização das práticas de Saúde: a questão do método
A remodelagem dos Comitês para um novo formato, condizente com
um GTH (Grupo de Trabalho de Humanização), ou seja, um grupo de trabalho técnico-político com competência para a PNH e a EP, pode ser a
estratégia para sair da crise de identidade e paralisia que discutimos no
item anterior. Vejamos por quê.
Depois do PNHAH, vários hospitais decidiram adotar outro modelo
de grupo para a Humanização. Esses novos GTHs são grupos pequenos,
de pessoas com tempo de trabalho destinado a essa atividade, vindas das
áreas de gestão, planejamento, qualidade, ouvidoria, recursos humanos e
desenvolvimento, coordenados por alguém influente e expressivo junto à
diretoria do Hospital. São profissionais de nível superior da Saúde, tecnicamente competentes para as áreas citadas e para a articulação da PNH
com a macro-política institucional. Tais grupos são menos rotativos e têm
mais credibilidade e influência nas decisões dos gestores. Alguns deles
começam a trabalhar com a EP enquanto metodologia para o Desenvolvimento Institucional, outros ainda não se apropriaram dela, mas também
trabalham na perspectiva do Desenvolvimento.
Um dos eixos de sustentação da cultura da Humanização e da qualidade nos serviços de Saúde presente na PNH2 se refere ao Desenvolvimento Profissional dos trabalhadores, na vertente da valorização dos
trabalhadores e da Educação Permanente. Por referência a essas políticas
públicas do SUS (PNH e EP) e suas consequentes transformações culturais,
entende-se como pertinente ao Desenvolvimento Profissional o conjunto
de princípios, diretrizes gerais, métodos e processos que, no plano da vida
de cada um, promove conhecimentos, habilidades, atitudes e potenciais
criativos, e no plano da vida institucional, a participação de todos nos
processos de gestão do trabalho.
Inscrita na PNH, mas ainda distante da maioria dos serviços e dos
próprios Comitês, a Política de Educação Permanente veio a público pelo
Ministério da Saúde quando a PNH já fazia sua história. Se hoje, praticamente todos os serviços públicos de Saúde conhecem a PNH, pode-se dizer
o contrário sobre a EP. Pior. Além de não ser conhecida como uma política
pública do SUS é confundida com Educação Continuada...
Constante reivindicação dos profissionais da Saúde, a demanda por
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Em busca da Humanização das práticas de Saúde: a questão do método
capacitação é sempre crescente e as respostas, insuficientes. Da análise
crítica4 dos muitos cursos, treinamentos e capacitações realizados na rede
SUS, constatou-se, primeiro, a inadequação da formação profissional às
necessidades do SUS (que requer a reestruturação dos cursos de nível médio e superior), a má distribuição das unidades formadoras, a profusão de
atividades de capacitação pontuais, desarticuladas e fragmentadas, a falta
de professores capacitados em metodologias ativas de ensino-aprendizagem e sistema de avaliação do ensino que não inclui compromissos institucionais com o SUS, sustentando-se na titulação de professores.
Em resposta3, o Conselho Nacional de Saúde, por meio da Resolução
nº 335, de 27 de novembro de 2003, e o Ministério da Saúde pela Portaria
MS nº 198/GM/MS de 13 de fevereiro de 2004, criaram a Política de Educação Permanente, com o objetivo de construir uma política nacional de
formação e desenvolvimento para o conjunto dos profissionais de Saúde
(educação técnica, educação superior, especialização) e produção de conhecimentos para a mudança das práticas de Saúde, bem como a educação
popular para a gestão das políticas públicas de Saúde.
Embora a princípio, pareça tratar-se de algo localizado no campo
da educação em Saúde, a EP articula a formação profissional com a organização do processo de trabalho, a gestão e a participação popular. Desta
forma, propõe mudanças estruturais nos serviços de Saúde, a exemplo
da PNH, com a qual compartilha muitas semelhanças. Ambas políticas
querem o protagonismo dos sujeitos envolvidos nas práticas de Saúde, a
participação nas decisões e na organização do trabalho, a transparência,
o diálogo, a autonomia e a co-responsabilidade. A EP também espera envolver as unidades formadoras com os princípios do SUS e a construção
de conhecimento útil e relevante à realidade de saúde da população e necessidades dos serviços.
São seus princípios4 (Tópico Política de Educação Permanente):
–“A articulação entre educação e trabalho no SUS;
–A produção de processos e práticas de desenvolvimento nos locais
de serviço;
–A mudança nas práticas de formação e de saúde, tendo em vista a
integralidade e humanização;
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Em busca da Humanização das práticas de Saúde: a questão do método
–A articulação entre ensino, gestão, atenção e participação popular
e controle social em Saúde;
–A produção de conhecimento para o desenvolvimento da capacidade pedagógica dos serviços e do sistema de Saúde.”
Além de propor o ensino que responde a necessidades sociais concretas, a EP estimula a realização de todo processo, desde o diagnóstico de
situação, necessidades de todas as ordens, inclusive as educacionais, e a
realização das capacitações nos locais de serviço. Parte do pressuposto de
que o trabalho5 na área da Saúde não pode ser um simples “executar tarefas”, mas sim um constante pensar (sobre seu processo) e criar (estratégias
que recuperem significados de vida tanto para os usuários quanto para os
profissionais).
Elege como metodologia a Problematização6, definida como um
método ativo que compreende cinco etapas, que se desenvolvem a partir
da realidade ou de um recorte da realidade:
1. Observação da Realidade;
2. Pontos-Chave;
3. Teorização;
4. Hipóteses de Solução;
5. Aplicação à Realidade.
A prática da roda de conversa cria o espaço no qual os problemas de
trabalho são discutidos pela equipe, coletando diferentes relatos e informações que permitirão a compreensão mais profunda das situações em questão.
No pensar coletivo, definem-se os nós críticos ou pontos-chave, busca-se
conhecimento e compreensão relativos aos mesmos, levantam-se hipóteses
de solução e desenham-se planos de ação que, aplicados à realidade produzirão resultados. Estes últimos serão avaliados posteriormente, retornando
ao ponto inicial do processo, ou seja, a observação da realidade.
A solução do problema pode envolver mudanças no processo de
trabalho, ou a capacitação para algo. Na roda se definem as necessidades e
suas respostas. Na roda se faz gestão participativa e Humanização.
No caso estudado e aqui apresentado, observamos que algumas equipes trabalhavam com a metodologia da EP, enquanto que a maioria nem
sequer realizava reuniões regulares. Mesmo quando havia tais reuniões, se
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Em busca da Humanização das práticas de Saúde: a questão do método
constituíam em espaços de cobrança e distribuição de tarefas, nas quais o
gestor detinha da primeira à última palavra (ainda que de maneira cordial
e até mesmo simpática). Percebemos que a EP se encontrava na condição
observada para a Humanização em seus esboços primevos: manifestações
isoladas, fragmentadas e circunscritas a espaços limitados nos quais os
gestores locais são afinados às suas propostas e métodos.
De mãos dadas...
Ainda estamos longe do que esperamos da humanização das práticas de Saúde, mas seria falacioso negar as muitas conquistas obtidas ao
longo desse caminho.
Temos de reconhecer que, apesar do grande avanço que o SUS representa para a Saúde no Brasil, observa-se que a cronificação do modo de
operar o sistema público, a burocratização e os fenômenos que caracterizam situações de violência institucional estão presentes e requerem ações
urgentes para modificar essa condição. Nesse cenário, as consequências
sobre as pessoas envolvidas no trabalho são graves e acarretam a diminuição do compromisso e responsabilização na produção da saúde, e o
desrespeito aos profissionais da Saúde e usuários dos nossos serviços.
Quando, no ano 2000, o Ministério da Saúde lançou o PNHAH (Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar), sob responsabilidade da SES-SP, coordenamos a implantação de Núcleos de Humanização em 36 hospitais próprios com o objetivo de plantar as ideia da
humanização, fazer diagnósticos situacionais e promover ações humanizadoras, de acordo com realidades locais. Em 2003, o Ministério passou o
PNHAH por uma revisão e lançou a PNH, Política Nacional de Humanização). Mais abrangente e madura em relação aos problemas que impedem
o despertar da humanização nos serviços de saúde, a PNH representa um
verdadeiro marco histórico6. No mesmo sentido, a Política de Educação
Permanente une forças com a PNH (suprindo certa carência metodológica desta no que se refere ao modelo de grupo para sua implantação) ao
mesmo tempo em que, aliada aos princípios da Humanização, ganha força
ética, de forma que juntas, EP e PNH talvez tenham maior poder transformador das práticas.
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Em busca da Humanização das práticas de Saúde: a questão do método
Sob diversas leituras é possível perceber que, nos tempos atuais, é
imprescindível para o aprimoramento organizacional estimular nas pessoas um comportamento de constante aprendizado, capaz de acompanhar as
mudanças sócio-culturais que caracterizam a sociedade contemporânea.
Na concepção filosófica7 de Pierre Levy, trata-se da construção de redes
de informação que permitem o aproveitamento da inteligência coletiva
na construção de saberes, que se atualizam constantemente em resposta a
essas demandas. Na perspectiva de autores ligados à gestão empresarial8,
particularmente das empresas privadas, a importância do desenvolvimento
profissional surge no momento em que o cenário organizacional passa a
demandar rápidas transformações e mudanças para se adequar ao ritmo do
mundo, reformulando missão, estrutura e identidade. Para estes, a organização atual deve ter como princípio incentivar em todos seus membros,
e nela própria, o aprender a aprender constante. No contexto público da
área da Saúde, essa necessidade também se evidencia e pede resposta, com
a particularidade de que, nesse campo, é essencial a inclusão de um outro
“vetor” 5 (ausente, ou pelo menos, não diretamente presente na organização privada), que diz respeito ao diálogo entre gestão, processos de trabalho e políticas públicas. Desse diálogo, no plano macroinstitucional, nasce
a proposta do Departamento de Gestão da Educação na Saúde/SGTES/MS4,
que é construir uma política nacional de formação e desenvolvimento
para o conjunto dos profissionais de Saúde para a mudança das práticas
de Saúde.
No universo de cada unidade ligada ao SUS, há que se fazer uma
tradução dessa política para a realidade local, tendo em vista as particularidades de cada idioma nativo, desafio que, para Merhy, seria algo
como uma implicação pedagógica9: “Não é possível sustentarmos mais
as quase exclusivas visões gerenciais que se posicionam sistematicamente
pela noção de que a baixa eficácia das ações de saúde é devida à falta
de competência dos trabalhadores e que pode ser corrigida à medida que
suprimos, por cursos compensatórios, aquilo que lhes falta. Diante desta
visão do problema, estes gestores passam a propor cursinhos à exaustão,
que consomem recursos imensos e que não vêm gerando efeitos positivos e
mudancistas nas práticas destes profissionais. Óbvio que, aqui, não estou
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Em busca da Humanização das práticas de Saúde: a questão do método
jogando a criança com a água do banho; há treinamentos que são necessários para a aquisição de certas técnicas de trabalho, mas isso é pontual
e pode ser suprido sem muita dificuldade. O que aponto é a necessidade de
olharmos de outros modos explicativos para esta relação em dobra: educação em saúde e trabalho em saúde, na qual é impossível haver separação
de termos. Um produz o outro.” (p.172)
Em seus estudos5, Benevides aponta que a principal causa do malestar, angústia e desmotivação corriqueiros no sentir o trabalho pelos profissionais de Saúde se deve à falta de participação nos processos de gestão
de suas próprias tarefas. Na pesquisa de satisfação com o trabalho realizada em nosso caso modelo, um dos aspectos mais preocupantes apontados
como desfavoráveis por mais de 50% dos funcionários foi justamente a
baixa participação nas decisões sobre seu trabalho...
Quer queira, quer não, hoje, a Humanização é uma das prioridades na área da Saúde e se apresenta como uma diretriz que deve nortear
qualquer atividade que envolva usuários ou profissionais da Saúde, em
qualquer instância. Partimos dos Comitês, Núcleos ou Grupos de Trabalho
de Humanização nos serviços, mas acreditamos que a possibilidade de
promover atendimentos verdadeiramente humanizados e de valorizar o
trabalho profissional na área, requer, necessariamente, a implantação da
Educação Permanente, garantindo o protagonismo dos profissionais da
Saúde dentro dos princípios da Humanização.
Sabemos que são muito diversas as realidades dos serviços em relação a esse tema, mas de alguma forma (surpreendente), mesmo em condições bastante adversas, as sementes desses ideais (transformados em
políticas) germinam, crescem e frutificam. Mais uma vez, a experiência
prática certifica que a Humanização, tão bem escrita nos textos, na verdade continua nas mãos das pessoas.
E como diria o poeta Carlos Drummond de Andrade, vamos de mãos
dadas10...
“Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
178
Em busca da Humanização das práticas de Saúde: a questão do método
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.” (p.56)
Referências Bibliográficas
1. Deslandes, S. F. Humanização, revisitando o conceito a partir das
contribuições da sociologia médica, em Humanização dos Cuidados em
Saúde, Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz, 2006.
2. Brasil. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde, Brasília, DF, 2004.
3. Brasil. Ministério da Saúde. A educação permanente entra na roda: pólos de educação permanente em saúde, Brasília, DF, 2005. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/educacao_permanente_entra_na_roda.pdf>. Acesso em: 24/06/2008.
4. Brasil, Ministério da Saúde. SUS de A a Z, Brasília, DF, 2004. Disponível
em: http://dtr2004.saude.gov.br/susdeaz . Acesso em 25/11/2008.
5. Benevides, R., Barros, M.E.B. Da dor ao prazer no trabalho. Disponível
em http://www.unifesp.br/reitoria/pqv/textobethbarrosdadoraoPrazer.PDF
acesso 03/11/2008.
6. Berbel, N. “Problematization” and Problem-Based Learning: different
words or different ways? Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v.2,
n.2, 1998.
7. Levy, P .Cybercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. 264 pp.
8. Goldsmith, M. & cols, Coaching - O Exercício da Liderança – Ed
Campus, Rio de Janeiro, 2003.
9. Merhy, E. E. O desafio que a educação permanente tem em si: a pedagogia da implicação – Interface, Rev. Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.16,
p.161-77, set.2004/fev.2005.
10. Andrade, C. D. Sentimento do Mundo. São Paulo, Editora Record,
2001, 117p.
179
CAMINHOS DA
HUMANIZAÇÃO
NA SAÚDE
PRÁTICA E REFLEXÃO
IZABEL CRISTINA RIOS
Objetivos:
• Ferramenta de gestão para melhorar a qualidade e a eficácia da atenção dispensada aos usuários do HC
FMUSP;
• Conceber e implantar novas iniciativas de humanização que venham beneficiar os usuários e os profissionais
de saúde;
• Desenvolver um conjunto de indicadores de resultados e sistema de incentivo ao tratamento humanizado;
• Modernizar as relações de trabalho, tornando as Unidades mais harmônicas, com profissionais preparados para
a humanização no cuidado.
Izabel Cristina Rios é médica, formada pela
FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), Psiquiatra e Psicanalista,
com experiência nas áreas Clínica, Educação
em Saúde e Desenvolvimento Humano e Institucional. Atua principalmente nos seguintes
temas: Humanização, Humanidades Médicas, Saúde Mental, e Educação Médica. No
CEDEM-FMUSP (Centro de Desenvolvimento
da Educação Médica FMUSP) é pesquisadora,
coordena o Grupo das Disciplinas de Humanidades Médicas e integra o Comitê HUMANIZA
HC-FMUSP. No CRT DST aids (Centro de Referência e Treinamento em Doenças Sexualmente Transmissíveis e aids) foi coordenadora do
Comitê de Humanização e diretora do Núcleo
de Desenvolvimento Institucional e Educação.
Foi coordenadora da Área de Humanização da
Coordenação dos Institutos de Pesquisa da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Na
Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo,
coordenou grupos de Educação Permanente e
Saúde Mental no Programa Saúde da Família.
Planejou e implementou o Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS) Casa Viva.
Equipe Coordenadora do Humaniza HC:
Profa. Dra. Linamara Rizzo Battistella, Dra. Valéria Pereira de Souza, Dr. Fábio Pacheco Muniz de Souza e Castro,
Dra. Polyanna Costa Lucinda e Dra Izabel Cristina Rios constituem o GRUPO DE TRABALHO COMITÊ DE HUMANIZAÇÃO da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo – Comitê HUMANIZA HC.
Informações: http://www.hcnet.usp.br/humaniza/
A Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) também mantém um
outro projeto, em parceria com as Secretarias de Estado da Saúde e dos Direitos da Pessoa com
Deficiência, voltado à humanização da saúde: a Rede de Reabilitação Lucy Montoro.
• Conta com uma Unidade Móvel de Reabilitação e unidades fixas de hospitais e centros de reabilitação, na
capital e em diversas cidades do Estado de São Paulo.
• Viagens da Unidade Móvel pelo estado para fornecimento de órteses, próteses e meios de locomoção a
pessoas com deficiência, onde não haja unidade fixa.
• Investimento de R$ 52 milhões na construção e ampliação das primeiras unidades fixas e funcionamento até 2010.
• Capacidade de 100 mil atendimentos mensais.
CAMINHOS DA HUMANIZAÇÃO NA SAÚDE
Comitê Humaniza HC FMUSP:
valorização da vida e da cidadania
Caminhos da Humanização na Saúde é um
livro composto por artigos e relatos que apresentam ao leitor a experiência da autora com
o trabalho da Humanização em vários contextos do campo público da Saúde no Estado de
São Paulo.
CAMINHOS DA
HUMANIZAÇÃO
NA SAÚDE
PRÁTICA E REFLEXÃO
Alguns textos revelam seu mergulho teórico
em territórios do conhecimento que permitem compreender e interpretar cenários, fatos
e práticas, que re-significados ganham vigor
para outros desdobramentos.
Outros textos relatam experiências, às vezes
no modo do “como fazer”, sem a pretensão
de dar receitas prontas (que não existem),
mas com a vontade de contar uma história de
trabalho que pode servir de base para outros
projetos.
A heterogeneidade dos textos testemunha algumas entre as muitas possibilidades para o
pensar e o agir nessa temática. Mas em todos
os casos, apresentam-se concepções e metodologias que se contrapõem a certa banalização do tema (que desqualifica o potencial
transformador da Humanização sobre as práticas e mentalidades na área da Saúde).
Os caminhos são muitos...
E este livro tem a intenção de estimular em
todos que encontraram na área da Saúde o
lugar para a expressão do seu encantamento pela vida humana, o desejo de criar outras
formas mais eficientes e significativas de cuidar das pessoas, mais gratificantes e fortalecedoras para os seus profissionais.