Gênio Mozart, segundo Norbert Elias* Por Francisco

Transcrição

Gênio Mozart, segundo Norbert Elias* Por Francisco
Gênio Mozart, segundo Norbert Elias*
Por Francisco José dos Santos Braga
No presente ensaio, o ensaísta, compositor e pianista Francisco
José dos Santos Braga, no seu Blog do Braga, em dezembro de
2009, trouxe ao leitor lusófono sua releitura do célebre livro do
sociólogo e pensador alemão Norbert Elias, intitulado "Mozart:
Sociologia de um Gênio", onde analisa as circunstâncias históricas
em que se verificaram as contradições marcantes na vida do
compositor, pianista e violinista Wolfgang Amadeus Mozart, o
"divino".
I - INTRODUÇÃO
O livro "Mozart, Sociologia de um Gênio" é um brilhante estudo sobre a vida e o
gênio criativo de Wolfgang Amadeus Mozart, escrito por um dos mais importantes
pensadores sociais de nosso tempo: Norbert Elias. Autor de uma vasta obra sociológica
até recentemente pouco divulgada, esse pensador foi também um melômano e
considerava a música como indissoluvelmente ligada ao tipo de sociedade e à época em
que foi produzida. Ao descrever como o compositor Mozart tentou levar em Viena uma
vida de músico autônomo, Norbert Elias, em seu livro, esclarece que só na geração
seguinte - a de Beethoven - é que foram criadas as condições necessárias para esse
gênero de atividade. Mozart fracassou, de acordo com ele, porque deu um passo no
sentido da independência numa sociedade que ainda não estava preparada para tal. A
rejeição da aristocracia de Viena, as dívidas cada vez maiores e nenhuma perspectiva
de satisfazer seus desejos mais íntimos foram os principais fatores que contribuíram
para sua morte precoce com a horrível sensação de que sua existência social fôra um
fracasso e de que sua vida se tornara vazia de significado.
II - O AUTOR
Norbert Elias nasceu em Breslau em 1897 e morreu em Amsterdam em 1990. De família
judaica, teve de fugir da Alemanha nazista exilando-se em 1933 na França, antes de se
estabelecer na Inglaterra, onde passaria grande parte de sua carreira. Em 1954,
começou como professor na Universidade de Leicester (1945-1962).
Suas obras focam a relação entre poder, comportamento, emoção e conhecimento na
História. A obra mais importante de Elias foram os dois volumes de "O Processo
Civilizador" (Über dem Prozeß der Zivilisation). Devido a circunstâncias históricas, Elias
permaneceu durante um longo período como um autor marginal, tendo sido
redescoberto por uma nova geração de teóricos nos anos 70, quando se tornou um dos
mais influentes sociólogos de todos os tempos. O reconhecimento tardio veio apenas aos
70 anos, com a publicação do livro "A
Sociedade de Côrte" (Die höfische
Gesellschaft), no qual ele analisa a etiqueta como uma forma de dominação utilizada
pelo rei para reduzir as tensões, oriundas de uma relação de interdependência no
âmbito cortesão. De acordo com Elias, o rei favorece ora um, ora outro cortesão,
usando os mecanismos da etiqueta, com a finalidade de incitar as tensões e os ciúmes e
de usá-los a seu favor.
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III - O LIVRO
1 - A GENIALIDADE DE MOZART
Em tese, a genialidade precisa ser entendida como uma conjunção de fatores que se
complementam. Por um lado, há alguém com uma predisposição inata, uma maturidade
precoce para determinado modo de pensar, ver e perceber o mundo e de combinar as
informações recebidas. Por outro lado, deve haver um meio (familiar, escolar ou social
mais amplo) que perceba e reconheça como importantes aquelas qualidades e que se
proponha a fazê-las crescer e expandir. Para esse "talento" observado se desenvolver, é
preciso que seja valorizado e estimulado.
Esses dois fatores se encontram presentes numa análise do fenômeno "Mozart". O
período de aprendizado de Mozart vai de 1756 até 1777. Norbert Elias menciona que
"Mozart teve uma infância muito especial. Ainda hoje é visto como o prodígio "par
excellence". Aos quatro anos ele era capaz, em muito pouco tempo, de aprender a tocar
peças musicais bastante complexas, sob a instrução do pai. Antes de completar seis
anos, o pai levou-o e a irmã, em sua primeira "tournée" de concerto a Munique, onde
ambas as crianças tocaram para o Eleitor da Baviera, Maximilian III. Mais tarde, em
1762, os três foram para Viena, onde tocaram para a corte imperial e outros públicos...
O enorme sucesso que Leopold Mozart obteve exibindo os filhos, especialmente o filho,
em Viena, levou-o a organizar uma "tournée" mundial pelos palácios e cortes da
Europa". (Elias, [1991] 1995, p. 67)
Por outro lado, Leopold Mozart, pai de Wolfgang, não foi somente um músico
competente e atuante, mas um verdadeiro pedagogo, autor de um renomado método de
violino, que encontrou em seu filho um talento ávido por algo melhor do que ele podia
oferecer. Analisar a genialidade de Mozart, sem relacioná-la aos esforços musicais e
afetivos de seu pai, não é possível.
Outra reflexão a respeito do "gênio", enfatizada por Elias, é como sociedades,
mentalidades e períodos históricos diferentes lidam com o "gênio" de forma distinta: se
Mozart tivesse vivido no século XIX, por exemplo, teria sido totalmente acolhido e
louvado como o modelo do artista romântico.
Nascido numa sociedade que ainda não conhecia o conceito romântico de "gênio" e que
não permitia que em seu meio houvesse qualquer lugar legítimo para um artista de
gênio altamente individualizado, é natural que tivesse suas investidas rechaçadas e suas
criações típicas de um "gênio" do Romantismo desprezadas ou não valorizadas. Mozart,
de fato, antecipou as atitudes e os sentimentos de um tipo posterior de artista,
encarnado por exemplo por Beethoven uns 15 anos depois, o qual teve muito mais
oportunidades de impor seu gosto ao público musical.
2 - AS CONTRADIÇÕES DE MOZART
Um dos aspectos mais importantes que ressalta da análise de Elias no livro são as
contradições que marcaram a vida de Mozart. Músico de excepcional talento e valor,
entretanto não passava de uma curiosidade exótica, de um entretenimento divertido
para a aristocracia. Ao mesmo tempo que Mozart, como representante da "pequena
burguesia" da época, por um lado desprezava essa aristocracia, por se considerar igual
ou superior a ela, por outro lado solicitava-lhe atenção e condescendência. Desejava que
ela reconhecesse o valor e a qualidade de seu trabalho, embora fosse consciente de que
jamais conseguiria obtê-lo.
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Movendo-se em círculos da aristocracia da corte, cujo gosto musical adotou e cujo
padrão de comportamento deveria seguir, Mozart fugiu desse estereótipo: sendo
extremamente rude em sua conduta pessoal, com um comportamento totalmente franco
e direto, nunca se tornou um "homme du monde", isto é, um cavalheiro, como pretendia
seu pai. Profundamente identificado com a nobreza da corte e seu gosto, Mozart sentia
profundo ressentimento pela humilhação que ela lhe impunha.
As cartas de seu período parisiense são um reflexo do desagrado que sentia com o
tratamento altaneiro dos nobres da corte de que era vítima. Esse ressentimento, cada
vez mais crescente, evoluiu para um franco enfrentamento, o que se deu com a escolha
feita do libreto de Da Ponte para "As Bodas de Fígaro", ópera cujo tema o próprio
Mozart escolheu e que foi considerado politicamente suspeito, segundo o ponto de vista
absolutista.
3 - VISÃO DO ARTISTA LIVRE
Diz Elias que "a estrutura de sua personalidade era a de alguém que desejava, acima de
tudo, seguir sua própria imaginação. Em outras palavras, Mozart representava o artista
livre que confia acima de tudo em sua inspiração individual, numa época em que a
execução e a composição da música mais valorizada pela sociedade repousavam, a bem
dizer, exclusivamente nas mãos de músicos artesãos com postos permanentes, seja nas
cortes ou nas igrejas das cidades. A distribuição social de poder que se expressava nesse
tipo de produção musical estava, de modo geral, intacta." (Elias, [1991], 1994, p. 34)
As encomendas que Mozart, por uma questão de sobrevivência, era obrigado a atender,
raramente ou nunca correspondiam ao seu ideal de obra musical acabada e perfeita.
Não existia ainda o padrão que gradualmente se formou no século XIX de a produção
musical ser feita por artistas relativamente livres e que competiam por um público
essencialmente anônimo. Quando sua composição não era encomendada, aproximandose desse padrão que vai vigorar de Beethoven em diante, aí é possível observar-se a
exuberância musical de sua escrita. Podemos citar dois exemplos: a Missa em Dó
Menor (K. 427) e o Concerto para Piano em Ré Menor (K. 466).
A
Missa - a mais impactante de Mozart por sua força expressiva, sua beleza
concentrada e seu tratamento todo especial dado ao texto, não foi encomendada. Tratase de uma composição para cumprir uma promessa: o casamento com Constance. A
sua exuberância musical pode ser interpretada como uma experiência de libertação das
regras impostas pelo príncipe-arcebispo de Salzburgo (1771-1803), Conde Hieronymus
Colloredo, patrão de seu pai e do próprio Mozart em duas oportunidades de sua
juventude. Sabe-se que Colloredo era um autocrata, não tolerava insubordinação, era
contrário à liberdade de expressão dos seus subordinados e para ele a fé só poderia ser
expressa de maneira contida e recatada.
Mozart, acusado de introduzir no âmbito da composição sacra elementos da música
profana, mostra nessa composição que a beleza e a fé não conhecem fronteiras e que as
categorias de sacro e profano podem ser fundidas e transcendidas em algo muito maior
que maravilha no silêncio da reflexão e da oração. Nela encontramos as mais diversas
poéticas musicais: o rococó pré-clássico no início do Gloria, o fugatto tradicional das
missas austríacas (Cum Sancto Spiritu), o sofisticado estilo contrapontístico do norte da
Alemanha (Quoniam), o coro trágico (Kyrie), a harmonia dissonante e a rítmica enérgica
(Qui tollis), a arte suprema do quarteto vocal (Quoniam e Benedictus) e o airoso do "bel
canto" napolitano (Christe e Et incarnatus). Foi essa a maneira que Mozart encontrou
para nos comunicar sua torturada e verdadeira fé.
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O Concerto para Piano em Ré Menor é outro exemplo do emprego de sua força
criativa com espontaneidade. Elias relata que, ao compô-lo, Mozart se achava
"enfastiado pela subordinação de seus poderes criativos a uma força maior, como se
estivesse se rebelando... Percebe-se que ele está inteiramente indiferente ao que as
pessoas possam pensar. Está escrevendo música como a sente, talvez até mesmo com a
intenção consciente ou inconsciente de chocar - ‛pour épater la noblesse’." Não ficou
mais popular com esta obra, e precisava de dinheiro". (Elias, [1991], 1995, p. 42)
4 - CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS
É preciso lembrar, que na metade do século XVIII, a posição social do músico estava
sofrendo transformações, mas o perfil de artista autônomo, tal como o conhecemos hoje
- alguém que cria de acordo com sua imaginação - ainda não tinha se firmado como
opção para a sobrevivência. Vejamos o que ocorreu com os três compositores da
Primeira Escola de Viena: Haydn (1732-1809), Mozart (1756- 1791) e Beethoven
(1770-1827). Embora poucas décadas os separem, cada um deles teve uma existência
social diferente.
Haydn foi músico empregado da família Esterházy durante toda a sua vida e, embora a
imposição do gosto de seus patrões o incomodasse, manteve-se em sua posição de
subordinado até o fim da vida.
Mozart, por sua vez, não se sujeitou à mediocridade de sua pequena cidade natal e à de
seu patrão, e procurou viver às custas de suas obras: concertos por assinatura,
encomendas de obras e produção das próprias óperas. Foi para Viena em busca de
novos ouvintes, mais esclarecidos, esperando encontrar retornos financeiro e artístico
suficientes para sua sobrevivência física e criativa. Infelizmente, não foi o que
aconteceu.
Beethoven foi, talvez, o primeiro músico bem sucedido no caminho da autonomia
artística. No curto período que separa Beethoven de Mozart, o fazer musical se libertou
da exclusividade dos palácios e das igrejas e cresceu em seu negócio: toda uma
estrutura de empresários, teatros, editores e público pagante se organizou,
possibilitando a compositores como Beethoven negociarem suas obras conforme lhes
conviesse. O risco de ousar, de inventar e de propor novidades ao público passou a ser
uma questão musical, cujo grau de ousadia passou a ser decidido unicamente pelo
compositor. Lamentavelmente, Mozart não teve essa possibilidade em seu horizonte
artístico. Seu insucesso financeiro e sua tragédia pessoal foram resultado daquele
momento histórico de transição e sua imensa força criativa não encontrou ressonância
na sociedade vienense de então.
5 - MOZART SIMPLESMENTE DESISTIU
É dessa forma que Elias abre o seu livro, constatando o fato de que, "antes de morrer,
Mozart várias vezes esteve próximo do desespero. Aos poucos, foi se sentindo derrotado
pela vida... O sucesso em Viena, que para ele talvez significasse mais do que qualquer
outro, jamais se concretizou. A alta sociedade vienense deu-lhe as costas... Sem dúvida
alguma, morreu com a sensação de que sua existência social fora um fracasso... Assim
os dois fatores que privaram de sentido a vida de Mozart - a perda do reconhecimento
do público e o arrefecimento do afeto da esposa - ligavam-se entre si. Eram duas
camadas inseparáveis, interdependentes, no sentimento de vazio que o dominou em
seus últimos anos... Sabia que morreria em breve; em seu caso isto provavelmente
significava que desejou morrer, e que, de certa maneira, escreveu o Réquiem para si
mesmo." (Elias, [1991], 1995, pp. 9 a 11)
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6 - PERSONALIDADE DE MOZART
Outro ponto muito interessante trazido pelo livro é a interpretação que hoje a sociedade
tem da "pessoa" de Mozart. Consideramos difícil entender como o criador de uma música
considerada sublime, angelical, alegre e relaxante poderia ter sido criada por um ser
debochado, infantil, que adorava escrever cartas com vocabulário chulo, que se divertia
com referências claras à escatologia.
Elias não dissocia a "pessoa" do "criador", como fazemos, e também o fazem
confortavelmente alguns biógrafos temerosos de que a vida pessoal de Mozart macule a
sua obra. Ao contrário, Elias nos mostra como a intensa luta entre conteúdos tão
conflitantes, necessidades e aspirações tão incoerentemente fundidas em uma mesma
alma é, antes de tudo, a condição humana, a possibilidade de existir como homem em
sua plenitude e complexidade. Talvez exatamente por essa razão é que a obra de Mozart
seja dotada de tanto vigor, beleza e verdade.
* Artigo publicado no Livro Comemorativo dos 60 Anos da Criação da AVL-Academia
Valenciana de Letras, Valença-RJ, 2009, p. 263-270.
IV - BIBLIOGRAFIA
a) ELIAS, Norbert: Mozart: Sociologia de um Gênio, Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro,
1995.
b) GROUT, Donald J. e PALISCA, Claude V.: História da Música Ocidental, cap. 13 e 14,
pp. 475 a 544, Gradiva Publ. Ltda, Lisboa, Portugal, 1994.
c) "Mozart, um compositor e suas contradições" (Entrevista da Prof. Yara Caznok
29/4/2006 a IHU On-Line, no http://amaivos.uol.com.br)
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em
Francisco José dos Santos Braga é compositor e pianista, nascido em São João del-Rei,
MG. Aí fez seus primeiros cursos de Solfejo, Ditado, Teoria Musical e Piano no
Conservatório Estadual de Música Padre José Maria Xavier. Na mesma cidade graduou-se
em Letras em 1971 pela Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras (atual
UFSJ- Universidade Federal de São João del-Rei).
Em São Paulo, deu continuidade a seus estudos acadêmicos e musicais. Em 1983
obteve seu grau de Mestre em Administração pela EAESP-FGV. Simultaneamente,
prosseguiu seus estudos musicais com o Maestro Souza Lima (piano) e Sérgio O. de
Vasconcellos Corrêa (composição).
Em Brasília, de 2002 a 2008, cursou bacharelado em Música, com concentração na área
da Composição, na UnB, onde foram seus mestres os compositores Conrado Silva e
Jorge Antunes. Na mesma ocasião, participou dos Cursos Internacionais de Verão
promovidos pela EMB-Escola de Música de Brasília, tendo como professores os
compositores Oscar Edelstein (Argentina), Christopher Bochmann (Inglaterra/Portugal),
Jorge Antunes e Gilberto Mendes (Brasil), além do professor de piano Sergei Dukachev
(Rússia).
Mantém atualizado o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de
comunicação com lusófonos interessados nos temas cultural, musical, literário,
literomusical, histórico e genealógico, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da
memória e à defesa do patrimônio histórico nacional. Além disso, colabora com artigos
para o Blog São João del-Rei (www.saojoaodel-rei.blogspot.com).
Seus ensaios e artigos são hospedados por vários portais institucionais. Também é
colaborador ativo de importantes sites dedicados a temas culturais, cabendo mencionar
os seguintes:
- www.saojoaodelreitransparente.com.br
- www.concertino.com.br
- www.csdp.salesianos.br
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