das SS rudolf Hoess realizou uma grande a
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das SS rudolf Hoess realizou uma grande a
1 COMEÇOS SURPREENDENTES No dia 30 de Abril de 1940, o Hauptsturmführer (capitão) das SS Rudolf Hoess realizou uma grande ambição. Aos 39 anos, e após seis anos ao serviço das SS, fora nomeado comandante de um dos primeiros campos de concentração nazi no Novo Reich. Nesse dia de Primavera, ele chegou para assumir os seus deveres numa pequena cidade que, até oito meses antes, pertencera ao Sudoeste da Polónia e agora fazia parte da Alta Silésia alemã. O nome da cidade, em polaco, era Oświęcim – em alemão, Auschwitz. Embora Hoess tivesse sido promovido a comandante, o campo que viria a comandar ainda não existia. Tinha de supervisionar a sua construção a partir de um conjunto de barracas do Exército polaco, delapidadas e infestadas de bicharada, que se agrupavam à volta de um campo para o treino de cavalos, na periferia da cidade. E a área circundante dificilmente podia ser mais deprimente. Esta terra, entre os rios Sola e Vístula, era plana e parda; o clima, húmido e doentio. Ninguém, naquele primeiro dia, de certo incluindo o próprio Rudolf Hoess, poderia prever que o campo viria a ser, dentro de cinco anos, o lugar da maior mortandade em massa que o mundo jamais vira. O processo de decisão que levou à sua transformação é um dos mais chocantes no conjunto da história e um dos que oferece visões mais profundas sobre o funcionamento do estado nazi. 27 Adolf Hitler, Heinrich Himmler, Reinhard Heydrich, Hermann Goering, todos estes chefes nazis, e alguns mais tomaram decisões que levaram ao extermínio de mais de um milhão de pessoas em Auschwitz. Mas foi também predisposição essencial para o crime a mentalidade de outros funcionários menores como Hoess. Sem a sua liderança sobre aquele território, até então não regulamentado como local de assassínio em massa e a tal escala, Auschwitz nunca teria funcionado como funcionou. Na verdade, Rudolf Hoess não possuía nada de excepcional; tinha uma altura média, feições regulares e cabelo preto. Não era nem feio nem bonito; assemelhava-se pura e simplesmente – nas palavras do advogado americano Whitney Harris1, que interrogou Hoess em Nuremberga – «a uma pessoa normal, como um empregado de mercearia». Vários internados polacos de Auschwitz confirmam esta impressão, recordando Hoess como sendo calmo e controlado, o tipo de pessoa por quem se passa todos os dias na rua e em quem não se repara. Na aparência, Hoess estava tão longe quanto possível de se assemelhar à imagem convencional do monstro das SS, de face rosada e a cuspir saliva, o que, claro, fez dele uma figura aterradora. Quando Hoess transportou a sua mala para o hotel do lado oposto à estação de comboio de Auschwitz, que seria a base dos oficiais das SS até que melhores instalações se arranjassem no campo, trazia também consigo a bagagem mental de um adulto que devotara a sua vida à causa nacionalista. Tal como a maioria dos nazis convictos, o seu carácter e as suas crenças tinham sido moldados em função dos últimos vinte e cinco anos de história da Alemanha – os mais turbulentos que o país já experimentara. Nascido na Floresta Negra, em 1900, de pais católicos, Hoess fora afectado, nos seus primeiros tempos, por uma série de influências importantes: um pai dominador que insistia na obediência; a sua participação na Primeira Guerra Mundial, onde foi um dos mais jovens sargentos do 28 Exército alemão; o seu desesperado sentimento de traição, a seguir à perda da guerra; os serviços prestados nas forças paramilitares denominadas Freikorps, no início dos anos 20, numa tentativa de se opor à prevista ameaça comunista nas fronteiras da Alemanha; e um envolvimento em políticas violentas de direita que o levaram à prisão em 1923. Muitos e muitos outros nazis foram moldados numa severidade similar. E Adolf Hitler foi, sem dúvida, um deles. Filho de um pai dominador2, alimentava um ódio violento por aqueles a quem sentia poder atribuir o colapso da Alemanha numa guerra em que acabara de participar (e durante a qual, tal como Hoess, lhe tinha sido atribuída uma Cruz de Ferro). Hitler tentara tomar o poder num violento putsch, exactamente no mesmo ano em que Hoess se envolvia, algures, num assassínio de inspiração política. Para Hitler, Hoess e outros da direita nacionalista, a necessidade mais urgente era compreender como é que a Alemanha tinha perdido a guerra e aceite uma paz tão humilhante. Nos anos logo a seguir, acreditavam ter encontrado a resposta. Não era óbvio, tal como sentiam, que os judeus haviam sido os responsáveis? Chamavam a atenção para o facto de Walther Rathenau, um judeu, ter sido ministro dos Negócios Estrangeiros no novo governo pós-guerra de Weimar. E, em 1919, consideravam que a ligação entre o judaísmo e o temido credo do comunismo tinha sido provada, para além de quaisquer dúvidas, quando na Primavera, em Munique, foi transitoriamente estabelecido um Räterepublik (Conselho da República) de tipo soviético. Os chefes deste governo dirigido por comunistas eram, na sua maioria, judeus. Não importava que um grande número de judeus alemães leais tenha lutado com bravura (e muitos tenham morrido) durante a guerra. Nem que milhares deles não fossem nem de esquerda nem comunistas. Era muito mais fácil, para Hitler e para os seus seguidores, encontrarem um bode expiatório para a situação da Alemanha nos judeus alemães. Durante o 29 processo, o partido nazi, recentemente formado, fundara-se em longos anos de anti-semitismo alemão. E, desde o início, os seus aderentes proclamavam o ódio aos judeus que não era motivado por um qualquer preconceito baseado na ignorância, mas por um facto científico: «Lutamos contra as suas acções [as dos judeus] porque elas são a causa de uma Tuberculose Racial das Nações!», declara um dos primeiros cartazes nazis, publicado em 1920. «E nós estamos convencidos de que a convalescença só pode começar quando esta bactéria for eliminada.»3 Este tipo de ataque pseudo-intelectual aos judeus produziu um enorme efeito em homens como Hoess, que declarava desprezar o anti-semitismo primitivo, violento e quase pornográfico propagado por outro nazi, Julius Streicher, na sua revista Der Stürmer. «A causa do anti-semitismo é doentiamente servida pela perseguição desenfreada divulgada por Der Stürmer»4, escreveu Hoess na prisão, após a derrota do nazismo. A sua visão era sempre mais fria, mais «racional». Proclamava ter poucos motivos de conflito pessoal com os judeus; o problema, para ele, era «a conspiração judaica no plano internacional», através da qual, imaginava ele, os judeus secretamente detinham as alavancas do poder e procuravam ajudar-se uns aos outros através das fronteiras nacionais. Era isto que ele considerava ter levado à derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial; era isto que ele pensava ter de ser destruído: «Como nacional-socialista fanático, estava completamente convencido de que o nosso ideal podia ser pouco a pouco aceite e iria prevalecer em todo o mundo… A supremacia judaica seria, portanto, destruída.»5 Após ter sido libertado da prisão, em 1928, Hoess acalentou outra das convicções caras ao nacionalismo de direita e que, como o anti-semitismo, ajudaram a definir o movimento nazi: o amor à terra. Enquanto os judeus eram odiados por, na sua maioria, viverem em cidades (desprezados, segundo Goebbels, pela sua «cultura do asfalto»), os «verdadeiros» alemães nunca perderam o amor à natureza. Não é por acaso que 30 o próprio Himmler estudara agricultura nem que Auschwitz se apresentava como um eventual protótipo de uma estação de investigação agrícola. Hoess aderiu aos Artamans, umas das comunidades agrícolas que na época floresceu na Alemanha, conheceu a mulher com quem viria a casar e estabeleceu-se com a ideia de se tornar um agricultor. Depois, acontece o momento que vai mudar a sua vida. Em Junho de 1934, Himmler, o chefe da polícia de Hitler, convida-o a desistir da agricultura e a ser um membro das SS, a tempo inteiro, na Schutzstaffel, a elite que originalmente fora criada como guarda-costas pessoal do Führer e que, entre outros deveres, tinha agora o de dirigir os campos de concentração6. Himmler conhecera Hoess durante algum tempo e gostou do que viu: Hoess fora, desde o início, um membro do partido nazi, a que aderiu em Novembro de 1922, com o número 3 240. Hoess fez uma opção. Não foi forçado a ser voluntário – ninguém era obrigado a pertencer às SS. Mas ele aderiu. Na sua autobiografia dá-nos a razão dessa decisão: «Pela perspectiva de uma promoção rápida e de um salário condizente, convenci-me de que tinha de dar este passo.»7 É apenas meia verdade. Escrevendo após a derrota do nazismo, o que não surpreende, Hoess omite o que deve ter sido, para ele, o factor mais decisivo: o seu estado emocional na altura. Em 1934, Hoess sentiu que estava a ser testemunha do começo de um mundo novo e maravilhoso. Hitler estava no poder há um ano e os inimigos internos dos nazis – os políticos de esquerda, os «ociosos», os anti-sociais, os judeus – já estavam a ser confrontados. Por todo o país, os alemães que não pertenciam a estes grupos de risco aplaudiam o que se passava. A reacção de Manfred von Schroeder, o filho de um banqueiro de Hamburgo que se filiou no partido nazi em 1933, é típica: «Tudo estava de novo limpo e em ordem. Havia um sentimento de libertação nacional, um novo começo… As pessoas diziam: “Bem, isto é uma revolução, uma revolução surpreendente e 31 pacífica, mas uma revolução.”»8 Hoess tinha a opção de ser parte activa nesta revolução, uma revolução por que ele ansiara desde o final da Primeira Guerra Mundial. Pertencer às SS significava estatuto, privilégios, empolgamento e uma oportunidade de influenciar o curso da nova Alemanha. Continuar agricultor não era mais do que continuar agricultor. Será surpreendente que Hoess tenha feito esta opção? Aceita, pois, o convite de Himmler e, em Novembro de 1934, chega a Dachau, na Baviera, para começar o seu serviço como guarda de um campo de concentração. Na consciência popular de hoje em dia, e decerto tanto na Grã-Bretanha como na América, há uma confusão sobre a função dos diversos campos no estado nazi. Os campos de concentração como o de Dachau (que se estabeleceu em Março de 1933, menos de dois meses depois de Adolf Hitler se tornar chanceler alemão) eram, na sua concepção, diferentes dos campos de extermínio como Treblinka, que existiram a partir do meio da guerra. Para acrescentar à confusão de muitas pessoas, temos a história complexa de Auschwitz, o mais ignóbil de todos os campos, que viria a evoluir nos dois sentidos: um campo de concentração e um campo de extermínio. Compreender a importância da distinção entre os dois é essencial para o entendimento de como o povo alemão, nesse tempo, racionalizou a existência de lugares como Dachau, durante os anos 30. Nenhum dos alemães que filmei – mesmo os que antes foram nazis fanáticos – confessou ser um «entusiasta» da existência dos campos de extermínio, mas muitos mostraram-se satisfeitos, durante os anos 30, com a realidade dos campos de concentração. Tinham acabado de passar pelo pesadelo da depressão económica e haviam testemunhado a ineficácia da democracia na prevenção de uma espiral de declínio no país. O espectro do comunismo continuava a existir. Nas eleições do princípio dos anos 30, a Alemanha parecia estar a dividir-se em dois extremos, com muitos votantes no partido comunista. E para um 32 homem como Manfred von Schroeder que, em 1933, aclamava a «revolução pacífica» dos nazis, havia paralelos históricos que explicavam a necessidade da existência de campos de concentração: «Ser um nobre francês na Bastilha não era de todo agradável, ou seria?… Havia os campos de concentração, mas, à época, toda a gente dizia: “Oh! Os Ingleses inventaram-nos na África do Sul, com os Bóeres.”» Os primeiros prisioneiros que entraram em Dachau, em Março de 1933, eram sobretudo opositores políticos dos nazis. Os judeus eram escarnecidos, humilhados e atacados durante esses anos iniciais, mas os políticos de esquerda9 do antigo regime é que eram vistos como a ameaça imediata. Hoess, na chegada a Dachau, acreditava absolutamente que estes «verdadeiros opositores do Estado tinham de estar presos com segurança»10. Os três anos e meio passados em Dachau iriam desempenhar um papel decisivo na construção do seu carácter. De facto, o regime cuidadosamente concebido em Dachau, inspirado por Theodor Eicke, o primeiro comandante do campo, não era apenas brutal; estava concebido para quebrar a vontade dos prisioneiros. Eicke canalizava a violência e o ódio dos nazis para com os inimigos por meio da organização e da ordem. Dachau é ignóbil pelo sadismo físico lá praticado: eram comuns os chicoteamentos e espancamentos. Os prisioneiros podiam ser assassinados e as suas mortes justificadas como «morto por tentativa de fuga». Uma significativa minoria dos enviados para Dachau morreu, de facto, lá. Mas o poder real do regime de Dachau não se baseava tanto nos maus tratos físicos – terríveis como, sem dúvida, foram –, mas antes na tortura mental. A primeira inovação em Dachau consistia em que, contrariamente a uma prisão normal, os prisioneiros não faziam a menor ideia de quanto tempo seriam as suas sentenças. Enquanto, durante os anos 30, a maioria dos prisioneiros era libertada depois de uma permanência de cerca de um ano, todas as sentenças individuais podiam ser mais breves ou lon33 gas dependendo do capricho das autoridades; não havia uma data limite que o prisioneiro conhecesse, apenas a incerteza permanente de nunca saber se a liberdade seria amanhã, no mês seguinte ou no ano seguinte. Hoess, que já suportara vários anos de prisão, conhecia bem o poder terrível desta política: «A incerteza da duração da pena era algo com que nunca conseguiam lidar», escreveu ele. «Era isso que os fazia quebrar e destruía mesmo a vontade mais firme… Só isso tornava a vida no campo um tormento.»11 Aliada a esta incerteza existia ainda o modo como os guardas manipulavam a mente dos prisioneiros. Josef Felder, membro do SPD (partido socialista) do Reichstag, um dos primeiros ocupantes de Dachau, recorda – quando ele estava mais em baixo emocionalmente – como o seu guarda prisional pegou numa corda e lhe demonstrou a melhor maneira de fazer um laço para se enforcar12. Apenas com um enorme exercício de autocontrolo e o recordar da frase «Eu tenho uma família» conseguiu resistir à sugestão. Aos ocupantes exigia-se que mantivessem os barracões e as roupas meticulosamente em ordem. Inspecções regulares permitiam aos guardas das SS descobrir faltas e, se desejassem, punir todo o bloco por infracções imaginárias. Qualquer um, num bloco, podia ser «fechado à chave» e obrigado a permanecer em silêncio e imóvel, durante dias, nos beliches. Foi também introduzido em Dachau um sistema de Kapos – algo que seria adoptado por toda a rede dos campos de concentração e que, subsequentemente, veio a ter um papel importante na direcção de Auschwitz. (O termo Kapo parece ter derivado do italiano capo, que significa «chefe».) As autoridades do campo nomeavam um prisioneiro para ser o Kapo em cada bloco ou comando de trabalho, e este ocupante viria a ter um enorme poder sobre os companheiros de prisão. Não será surpreendente saber como esse poder foi usado abusivamente. Quase mais do que os guardas das SS, os Kapos, em contacto minuto a minuto com os outros prisioneiros, usa34 vam de um comportamento arbitrário de modo a tornar intolerável a vida no campo. Mas os Kapos, eles próprios, estavam em risco se não agradassem aos seus superiores das SS. Eis como Himmler pôs a questão: «A sua tarefa [do Kapo] é verificar se o trabalho é feito… por isso tem de puxar pelos seus homens. Assim que não estivermos satisfeitos com ele, deixa de ser um Kapo e volta para junto dos outros ocupantes. Ele sabe que o vão espancar até à morte na primeira noite em que regressar!»13 Do ponto de vista dos nazis, a vida no campo era um microcosmo do mundo exterior. «A ideia da luta é tão velha como a própria vida», disse Hitler num discurso, em 1928. «Nesta luta, o mais forte, o mais capaz ganha, enquanto o menos capaz, o fraco, perde. A luta é o pai de todas as coisas… Não é pelos princípios de humanidade que o homem vive ou é capaz de se preservar para além do mundo animal, mas, somente, por meio da mais brutal das lutas.»14 Esta atitude quase darwinista, no âmago do nazismo, tornou-se evidente na administração dos campos de concentração. Os Kapos, por exemplo, podiam legitimamente maltratar os que estavam a seu cargo desde que tivessem provado a si próprios serem superiores na «luta» pela vida. Entre outras coisas, Hoess aprendeu bem o essencial da filosofia das SS enquanto estava em Dachau. Theodor Eicke pregava uma doutrina desde o princípio – dureza: «Qualquer um que mostre o menor vestígio de simpatia por eles [prisioneiros] deve ser banido de imediato das nossas fileiras. Só preciso de homens das SS que sejam duros e totalmente empenhados. Entre nós não há lugar para pessoas brandas.»15 Assim, qualquer forma de simpatia ou de compaixão era uma demonstração de fraqueza. Se um homem das SS sentisse qualquer tipo de emoção em relação aos prisioneiros era sinal de que o inimigo tinha conseguido ludibriá-lo. A propaganda nazi pregava que era sobretudo nos lugares mais inesperados que um inimigo podia espreitar; uma das obras mais difun35 didas da propaganda anti-semita, dirigida às crianças, era um livro intitulado O Cogumelo Envenenado, que alertava para o perigo insidioso dos judeus, usando a metáfora de um cogumelo que, à vista, parece atraente mas que, na realidade, é venenoso. Da mesma forma, os SS eram condicionados a desprezar os seus sentimentos de pena quando, por exemplo, assistiam ao espancamento de um prisioneiro. Ensinavam-lhes que qualquer sentimento hesitante de compaixão era provocado por um ardil da vítima. Esses «inimigos do Estado», criaturas astuciosas, tinham sido instruídos para usar qualquer método – e o não menos eficaz era o apelo à piedade em relação aos que os mantinham cativos – numa tentativa de prosseguir os seus objectivos maldosos. A memória do «golpe traiçoeiro», o mito de que judeus e comunistas tinham conspirado para que a Alemanha perdesse a Primeira Guerra Mundial, nunca ficou arredada e ajustava-se perfeitamente a essa visão de um inimigo perigoso mas escondido. A única certeza para os membros das SS residia na justiça essencial das ordens que lhes eram dadas. Se um superior ordenava que se prendesse uma pessoa ou que outra fosse executada – mesmo que para o indivíduo encarregado de a levar a cabo parecesse incompreensível –, a ordem devia ser cumprida. A única protecção contra o cancro da autodúvida, face às ordens que não eram imediatamente explicáveis, era a dureza, que, portanto, se tornou um culto em todas as SS. «Temos de ser duros como granito, de outro modo o trabalho do nosso Führer perecerá»16, disse Reinhard Heydrich, a figura mais poderosa das SS depois de Himmler. No processo de aprendizagem do eliminar de emoções, como a compaixão e a piedade, Hoess interiorizou o sentido de irmandade, também forte nas SS. Precisamente porque um homem das SS sabia que poderia vir a ser chamado a fazer coisas que os homens «mais fracos» não seriam capazes, desenvolveu-se um poderoso esprit de corps, em que a lealdade dos camaradas se tornou um pilar vital de apoio. Valores tão pri36 mários como lealdade inquestionável, dureza, protecção do Reich contra o inimigo tornaram-se quase um substituto de um credo religioso, uma visão do mundo distinta e facilmente adoptada. «Foi total a minha gratidão às SS pela orientação intelectual que me deu», disse Johannes Hassebroeck, comandante de um outro campo de concentração das SS. «Ficámos todos muito gratos, pois muitos de nós estávamos terrivelmente desnorteados antes de aderir à organização. Não percebíamos o que se estava a passar à nossa volta – era tudo muito confuso. As SS indicaram-nos uma série de ideias simples que compreendíamos e em que acreditámos.»17 Hoess também aprendeu, em Dachau, uma lição significativa que viria a ter consequências para Auschwitz. Ele observara como os prisioneiros suportavam melhor a prisão porque lhes era permitido trabalhar. Relembrou a sua própria prisão em Leipzig e como, apenas por lhe ter sido permitido trabalhar (colava sacos de papel), conseguira enfrentar cada dia com uma estrutura mental mais ou menos positiva. Via agora como o trabalho representava um papel similar em Dachau, permitindo aos prisioneiros «disciplinarem-se, tornando-se assim capazes de melhor suportarem o efeito desmoralizante da prisão»18. Hoess estava tão convicto do efeito paliativo do trabalho no campo de concentração que chegou mesmo a importar o slogan que fora muito usado em Dachau – Arbeit macht frei (o trabalho liberta) – e adornou com ele o portão de ferro à entrada de Auschwitz. Hoess era um membro modelo das SS e foi emergindo nas fileiras em Dachau até que, em Abril de 1936, se tornou Rapport-führer, assistente-chefe do comandante do campo. Depois, em Setembro de 1936, foi promovido a tenente e transferido para o campo de concentração de Sachsenhausen, onde permaneceu até ser elevado a comandante do novo campo de concentração em Auschwitz. Era este, portanto, o homem que chegou ao Sudoeste da Polónia, na Primavera de 1940 – um produto da sua herança genética, como é óbvio, 37 mas também alguém fortemente moldado pela história dos tempos, com seis anos de serviço atrás dele como guarda de campo. Sentia-se pronto para avançar com o maior dos desafios: criar um campo de concentração modelo, no novo império nazi. No seu espírito, sabia bem o que esperavam dele, conhecia o objectivo do lugar que estava prestes a construir. A sua experiência em Dachau e Sachsenhausen oferecia-lhe um claro exemplo a seguir. Mas os seus superiores tinham outros planos e, nos meses e anos seguintes, o campo que Hoess construiu em Auschwitz viria, de facto, a trilhar um caminho muito diferente. Na mesma época em que Hoess começara o trabalho em Auschwitz, a quatrocentos quilómetros a noroeste, o seu chefe fazia qualquer coisa de extremamente invulgar – compunha um memorando para o Führer. Heinrich Himmler estava em Berlim e escrevia sob o cauteloso título «Alguns Pensamentos sobre o Tratamento da População Estrangeira do Leste». Himmler, um dos mais astutos agentes do poder do estado nazi, sabia ser pouco sensato passar os pensamentos para o papel. Ao mais alto nível, a política nazi era, muitas vezes, formulada verbalmente. Uma vez escritas, Himmler compreendeu que as suas opiniões podiam ser dissecadas pelos seus rivais e, como qualquer chefe nazi, tinha muitos inimigos prontos a apoderarem-se de algum do seu poder em benefício próprio. Mas a situação na Polónia, que os alemães ocuparam desde o Outono de 1939, era tal que ele sentiu ter de fazer uma excepção e preparar um documento para Hitler. O documento por ele escrito é um dos mais significativos na história da política racial nazi, principalmente porque eram palavras que acabariam por clarificar o contexto em que o novo campo, em Auschwitz, viria a funcionar. Nesse momento, na sua qualidade de comissário do Reich para o Fortalecimento do Sentimento de Nação alemã, Himmler foi envolvido na maior e mais rápida reorganização étnica de um país alguma vez realizada, e todo o processo 38 prosseguia de modo muito pouco satisfatório. Longe de trazer ordem à Polónia, um país cuja suposta ineficiência os nazis desprezavam, Himmler e os seu colegas trouxeram apenas violência e caos. Não houve qualquer divergência sobre a atitude básica a ter para com os polacos: repugnância. A questão era o que fazer. Um dos «problemas» mais importantes que os nazis sentiam que tinham de resolver referia-se aos judeus polacos. Ao contrário da Alemanha, onde os judeus representavam muito menos do que um por cento da população (cerca de 300 000, em 1940) e onde a maioria estava assimilada pela sociedade, na Polónia havia 3 milhões de judeus – a maioria dos quais vivia nas suas próprias comunidades – que eram, rápida e frequentemente, identificados pelas barbas e outras marcas da sua fé. Após a Polónia ter sido dividida entre a Alemanha e a União Soviética, na sequência imediata da eclosão da guerra (nas condições da parte secreta do pacto de não agressão germano-soviético de Agosto de 1939), mais de 2 milhões de judeus polacos ficaram na zona do país ocupada pelos nazis. Qual deveria ser o seu destino? Um outro problema, criado pelos próprios nazis, era o de arranjar alojamento para as centenas de milhares de alemães de outras etnias que estavam a ser, naquele momento, enviados para a Polónia. Segundo um acordo entre a Alemanha e a União Soviética, os alemães dos estados bálticos, Bessarábia (Roménia do Norte) e outras regiões, agora ocupadas por Estaline, podiam emigrar para a Alemanha – para voltarem para o seu Reich – como dizia o slogan. Obcecados como estavam por noções da pureza racial do sangue alemão, era um acto de fé para homens como Himmler ser capaz de alojar todos os alemães que quisessem voltar ao seu país, à sua terra natal. A dificuldade era: para onde é que eles poderiam, de facto, ir? A acrescentar a isto, havia uma terceira e última questão que os nazis tinham de resolver: como deveriam ser tratados os 18 milhões de polacos, agora sob o domínio ale39 mão, que não eram judeus? Como deveriam organizar o país de modo a nunca se tornarem uma ameaça? Hitler fizera um discurso, em Outubro de 1939, que oferecia algumas directrizes para lutar contra estas questões políticas. Tornou claro que a «tarefa principal era criar uma nova ordem étnica, isto é, restabelecer as nacionalidades para que no final existissem, mais do que hoje, melhores linhas de demarcação»19. Na prática, isto significava que a Polónia, ocupada pela Alemanha, viria a ser dividida: numa parte iria viver a maioria dos polacos, a outra parte iria ser incorporada na Alemanha. Os recém-chegados alemães seriam então estabelecidos não no «velho Reich», mas nesse «novo Reich»; na verdade, eles voltaram para o seu Reich – só que não era aquele que esperavam. Ficara de fora a questão dos judeus polacos. Até ao começo da guerra, a política nazi para com os judeus a viver debaixo do seu controlo tinha sido baseada numa crescente perseguição oficial, através de inúmeros regulamentos restritivos, com momentos de abusos de violência não oficial, embora sancionada. A opinião de Hitler sobre os judeus pouco tinha mudado desde meados dos anos 20, quando, no seu livro Mein Kampf (A Minha Luta), expressa a convicção de que teria sido vantajoso para a Alemanha, durante a Primeira Guerra Mundial, ter usado «gás venenoso» sobre «10 a 12 mil destes hebreus destruidores da nação!». Porém, enquanto Hitler odiava claramente os judeus, tendo-o demonstrado desde o fim da Primeira Guerra Mundial e talvez até, em privado, tenha expresso o desejo de os ver todos mortos, não existia ainda qualquer plano escrito para o seu extermínio. Lucille Eichengreen20, nascida numa família judia em Hamburgo, durante os anos 30, lembra-se demasiado bem das circunstâncias em que os judeus eram forçados a viver. «Até 1933 tive uma vida boa e confortável», diz ela, «mas, assim que Hitler chegou ao poder, as crianças que viviam no nosso prédio nunca mais nos falaram; atiravam-nos pedras e chamavam-nos nomes. E nós não sabíamos o que tínhamos 40 feito para merecer isso. A pergunta era sempre: “Porquê?” E quando perguntávamos algo em casa, a resposta era sempre: “É uma fase passageira. Vai voltar tudo ao normal.”» Em meados dos anos 30, os Eichengreen foram informados de que não poderiam permanecer naquele edifício. Eram obrigados a ir viver para «casas de judeus», cujos proprietários eram, na maioria, judeus. O primeiro apartamento era quase tão grande como o anterior, mas, ao longo dos anos, foram forçados a mudar para alojamentos cada vez mais pequenos, até acabarem num único quarto mobilado para toda a família. «Penso que fomos aceitando isso», diz Lucille. «Era a lei, eram essas as regras, não se podia fazer nada contra.» A ilusão de que a política nazi anti-semita viria um dia a «normalizar» foi destruída pela chamada Kristallnacht (Noite de Cristal), que ocorreu a 9 de Novembro de 1938. As violentas tropas a cavalo nazis destruíram bens e cercaram milhares de judeus alemães num acto de vingança motivado pelas notícias de que um estudante judeu, Herschel Grynszpan, tinha morto Ernst von Rath, um diplomata alemão, em Paris. «Ao irmos para a escola, víamos as sinagogas a arder», conta Lucille Eichengreen, «os vidros das lojas dos judeus partidos, mercadorias na rua e os alemães a rirem… Tivemos tanto medo. Pensei que nos iam agarrar e fazer sei lá o quê.» Com a eclosão da guerra, em 1939, já não era permitido aos judeus terem cidadania alemã, casar com não judeus, serem negociantes ou trabalharem em certas profissões; nem sequer podiam obter cartas de condução. A discriminação regulamentada, ligada à explosão violenta da Kristallnacht em que mais de 1000 sinagogas foram destruídas, 400 judeus mortos e cerca de 30 000 homens aprisionados durante meses nos campos de concentração, levou à emigração de muitos judeus. Em 1939, cerca de 450 000 tinham saído da área do novo «Grande Reich alemão» (Alemanha, Áustria e a região dos Sudetas), mais de metade dos judeus que lá viviam. Os nazis estavam contentes, especialmente desde que, em 1938, 41 seguindo o trabalho pioneiro do «perito» em judeus das SS, Adolf Eichmann, e após a anexação (Anschluss) da Áustria, foi delineado um sistema que permitia confiscar a maior parte do dinheiro dos judeus, antes de lhes ser dada permissão para deixarem o país. No entanto, de início, foi difícil para os nazis descortinarem como é que a solução que tinham desenvolvido para o seu autocriado «problema» dos judeus alemães poderia ser transferida para a Polónia. Não só porque tinham agora, sob o seu controlo, milhões de judeus e já não as poucas centenas de milhares, mas porque, para além disso, sendo a maioria pobre e estando a meio de uma guerra, para onde podiam ser forçados a emigrar? Como consequência, no Outono de 1939, Adolf Eichmann pensou ter a resposta: os judeus não deveriam ser obrigados a emigrar para outro país, mas para a zona menos hospitaleira do império nazi. Mais ainda, pensou que tinha encontrado esse lugar ideal – o distrito de Lublin, nos subúrbios da cidade de Nisko, na Polónia. Esta zona remota, no longínquo extremo oriental do território nazi, parecia-lhe a localização perfeita para uma «reserva judia». A Polónia alemã ocupada seria, assim, dividida em três: uma parte alemã, uma parte polaca e uma parte judaica, todas elas assentes num nítido eixo geográfico que se movia de oeste para leste. O ambicioso plano de Eichmann foi aprovado e milhares de judeus da Áustria começaram a ser embarcados para a zona. As condições eram pavorosas. A preparação da sua chegada foi pouca ou mesmo nula e muitos morreram. Esta questão não preocupava os nazis. De facto, era até encorajada. Tal como Hans Frank, um dos nazis mais velhos a trabalhar na Polónia, tratou da questão com o seu pessoal em Novembro de 1939: «Não percam tempo com os judeus. Finalmente, é um prazer tratar desta raça. Quantos mais morrerem, melhor.»21 Contudo, quando Himmler redigiu o seu memorando, em Maio de 1940, sabia bem de mais que a emigração interna 42 dos judeus para o extremo leste da Polónia tinha sido um sinistro fracasso. Em grande medida, isso devia-se ao facto de os nazis estarem a empreender, simultaneamente, três emigrações em separado. Os alemães acabados de chegar tinham de ser transportados para a Polónia e era necessário arranjar-lhes um lugar para viver. Isto significava que os polacos tinham de ser mandados embora das suas casas e transportados para outro lado. Ao mesmo tempo, os judeus estavam a ser transportados para leste, para propriedades donde os polacos também tinham de ser expulsos. Seria francamente de espantar que tudo isto não levasse ao caos e à confusão, numa escala épica. Na Primavera de 1940, o Plano Nisko, de Eichmann, fora abandonado e a Polónia foi, por fim, dividida em apenas duas categorias de território separadas. Existiam os distritos que se tinham oficialmente tornado «alemães» e faziam parte do Novo Reich: a Prússia Ocidental, em torno de Danzig (Gdańsk); oWarthegau, na Polónia Ocidental, em torno de Posen (Poznań) e Lódź; a Alta Silésia, em torno de Katowice (a área que incluía Auschwitz). E, depois, havia a maior área de todas, a chamada de Governo Geral, que correspondia às cidades de Varsóvia, Cracóvia e Lublin, que foram designadas como espaços habitacionais para a maioria dos polacos. O problema mais premente que Himmler tinha de enfrentar era o de providenciar habitações necessárias para as centenas de milhares de alemães acabados de chegar – uma dificuldade que iria, por sua vez, ter impacte no modo como ele pensara que deviam ser tratados quer os polacos quer os judeus. O caso de Irma Eigi22 e da sua família ilustra como era implacável o modo como os nazis tentavam, aparentemente, resolver esta situação intrincada em que eles próprios se tinham envolvido e também como os problemas da população se tinham voltado contra eles, numa espiral em direcção à crise. Em Dezembro de 1939, Irma Eigi, uma alemã da Estónia, de dezassete anos, viu-se, juntamente com a família, 43 num alojamento temporário em Posen, anteriormente Polónia e que era, agora, a parte da Alemanha conhecida como Warthegau. Quando aceitaram a oferta de uma passagem segura para o Reich, pensaram que iam ser mandados para a Alemanha: «Quando nos disseram que íamos para Warthegau, bem, foi um grande choque, pode ter a certeza.» Pouco antes do Natal de 1939, um nazi encarregado do alojamento deu ao seu pai as chaves de um apartamento que tinha, até poucas horas antes, pertencido a uma família polaca. Dias mais tarde, um restaurante foi, à força, tirado ao dono polaco para que os recém-chegados também pudessem gerir um negócio. Os Eigi estavam horrorizados: «Não tínhamos qualquer suspeita antes de isto ter acontecido… Não se pode viver com esta culpa. Mas, por outro lado, todas as pessoas têm instinto de defesa. Que mais poderíamos fazer? Para onde havíamos de ir?» Este caso individual de expropriação deve ser multiplicado por mais de 100 000, para dar uma ideia do que se estava a passar na Polónia durante este período. A escala da operação de realojamento foi enorme – num ano e meio chegou cerca de meio milhão de alemães para serem realojados na parte nova do Reich e centenas de milhares de polacos foram desalojados para lhes darem lugar. Muitos foram simplesmente atirados para camiões de gado e levados para o Sul, para o Governo Geral, onde eram descarregados sem comida nem abrigo. Não é de surpreender que Goebbels tenha registado no seu diário, em Janeiro de 1940: «Himmler está agora a deslocar populações. Nem sempre com sucesso.»23 Mas tudo isto não resolvia a questão dos judeus polacos. Ao descobrir que tentar recolocar simultaneamente os judeus, os polacos e os alemães oriundos de países estrangeiros era absolutamente impraticável, Himmler encarou outra solução; se era necessário espaço para estes alemães – e disso não havia dúvida –, então os judeus deveriam ser forçados a viver com muito menos espaço. Os guetos foram a resposta. 44 Os guetos, que viriam a ser uma das características mais marcantes da perseguição dos judeus na Polónia, nunca foram planeados para serem como vieram a ser. Como muito do que se passou na história de Auschwitz e da Solução Final, desenvolveram-se de maneira inicialmente não prevista. Já em Novembro de 1938, quando se começaram a discutir as questões relacionadas com o alojamento, surgidas pelo despejo dos judeus alemães das suas casas, Reinhard Heydrich, das SS, dizia: «Quanto à questão dos guetos, gostaria de esclarecer a minha posição. Do ponto de vista da polícia, não penso que um gueto, na forma de um distrito completamente segregado onde só os judeus vivam, seja viável. Não podemos controlar um gueto onde os judeus se juntem ao povo judeu. Iria ser um esconderijo para criminosos, além das epidemias e tudo o resto.»24 Apesar disso, como outras saídas pareciam estar-lhe vedadas, mesmo que temporariamente, os nazis procuraram arranjar guetos para os judeus polacos. Não se tratava apenas de uma medida prática com vista a libertar mais casas (muito embora Hitler, em Março de 1940, tenha feito notar que a «solução da questão judaica é uma questão de espaço»25). Foi também motivada pelo ódio visceral e pelo medo dos judeus que estava no âmago do nazismo, desde o início. No plano ideal, era convicção dos nazis que os judeus deviam ser obrigados a «ir-se embora» mas, se tal não fosse imediatamente praticável, então, uma vez que – especialmente os judeus do Leste – se julgava serem portadores de doenças, deviam ficar separados de toda a gente. A intensa repugnância física dos nazis pelos judeus polacos foi algo que Estera Frenkiel26, uma jovem judia a viver em Lódź, sentiu desde logo: «Estávamos habituados ao anti-semitismo… o anti-semitismo polaco era também mais de ordem financeira. Mas o anti-semitismo nazi dizia: “Por que é que existem? Não deviam! Têm mesmo é de desaparecer!”» Em Fevereiro de 1940, à medida que as deportações de polacos para o Governo Geral sucediam regularmente, foi 45 anunciado que os judeus de Lódź teriam de ser «recolocados» num gueto dentro da cidade. No princípio, a intenção era de que estes guetos fossem uma medida temporária, um lugar onde os judeus fossem encarcerados antes de serem deportados para outro local. Em Abril de 1940, o gueto de Lódź foi fechado e os judeus deixaram de poder sair dessa área sem permissão das autoridades alemãs. Nesse mesmo mês, o Gabinete Central para a Segurança do Reich anunciou que as deportações dos judeus para o Governo Geral deviam ser reduzidas. Hans Frank, antigo advogado que geriu o Governo Geral, fizera campanha durante meses para parar todas as emigrações obrigatórias «não autorizadas», porque a situação se tornara insustentável. Tal como o Dr. Fritz Arlt27, chefe do Departamento para os Assuntos da População no Governo Geral, mais tarde afirmou: «As pessoas eram atiradas dos comboios, para as praças ou estações de comboios ou para onde quer que fosse, e ninguém se importava… Recebemos um telefonema do oficial do distrito que dizia: “Já não sei o que fazer. Desta vez, chegaram centenas e centenas. Não tenho abrigos nem comida nem nada.”» Frank, que não simpatizava com Himmler, queixou-se a Hermann Goering, que, na Polónia, na qualidade de chefe do Plano Económico Quadrienal, se interessou pelo caso da política de deportação e pelo uso do Governo Geral como «caixote do lixo racial». Foi num período de difíceis tréguas que Himmler e Frank «acordaram os procedimentos para uma futura evacuação». Foi esta confusão que Himmler tentou abordar no seu memorando de Maio de 1940. Em resposta, procurou reforçar a divisão da Polónia nas áreas alemã e não alemã e definir como haviam de ser tratados os polacos e os judeus. Himmler, numa afirmação de fé racial, escreveu que queria que os polacos se tornassem uma nação de escravos pouco educados e que o Governo Geral devia ser a casa de uma «classe trabalhadora sem liderança»28. «A população não alemã dos territórios orientais não deve receber uma educação superior à da escola 46 primária», escreveu Himmler. «O objectivo da escola primária deve ser ensinar aritmética simples, como contar até quinhentos no máximo, escrever o nome e aprender que é vontade de Deus obedecer aos alemães, ser honesto, trabalhador e bem-comportado. Considero que é desnecessário aprender a ler.» A par desta política de tornar a Polónia uma nação de gente pouco instruída, havia uma tentativa proactiva de «separar os que têm sangue valioso dos que têm sangue que não presta». As crianças polacas, entre os seis e os dez anos, deviam ser avaliadas. Aquelas que fossem racialmente aceitáveis seriam retiradas às famílias e educadas na Alemanha, não podendo voltar a ver os pais biológicos. A política nazi de roubo de crianças, na Polónia, é bastante menos conhecida do que a do extermínio dos judeus. Mas segue o mesmo padrão. Demonstra que um homem como Himmler acreditava, seriamente, na identificação do valor do ser humano através da composição racial. Retirar estas crianças não era, para ele, como pode parecer hoje, uma excentricidade demoníaca, mas uma parte essencial da sua deformada visão do mundo. Já que, do seu ponto de vista, se permitisse que essas crianças lá ficassem, os polacos «poderiam formar uma classe dirigente a partir dessas pessoas com bom sangue». Significativamente, Himmler escreveu sobre essas crianças: «Por muito cruel e trágico que seja cada caso individual, se se rejeitar o método bolchevique do extermínio físico de um povo, como fundamentalmente não alemão, então este método é o mais razoável e melhor.» Embora Himmler escreva isto no contexto imediato do caso das crianças polacas, uma vez que se refere ao extermínio físico de um povo como sendo fundamentalmente não alemão, torna-se claro que ele deve alargar esta reprovação a outros «povos» – incluindo os judeus. (Outra confirmação desta interpretação é fornecida pela declaração de Heydrich, no Verão de 1940, directamente quanto ao contexto dos judeus: «O extermínio biológico é indigno para o povo alemão como nação civilizada.»29) 47 No seu vastíssimo memorando, Himmler também anunciou o que queria para o destino dos judeus: «Espero que o termo “judeus” seja completamente eliminado através da possibilidade de uma emigração, em grande escala, dos judeus para África ou para uma colónia qualquer.» O retorno à anterior política de emigração era, agora, viável por causa do contexto de guerra alargada. Himmler contava quer com a derrota iminente da França quer com a consequente e imediata capitulação dos britânicos, que iriam pedir paz separadamente. Com o final da guerra, os judeus polacos podiam ser despachados de barco, possivelmente para uma das antigas colónias africanas de França. Por muito inconcebível que pareça a ideia de embarcar milhões de pessoas para África, não há dúvida de que, naquela altura, era encarada muito seriamente pelos nazis. Há anos que os anti-semitas radicais sugeriam a deslocação dos judeus para África e, agora, o curso da guerra parecia estar prestes a solucionar o «problema» dos judeus. Seis semanas após o memorando de Himmler, Franz Rademacher, ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, escreveu um documento que anunciava a proposta do destino africano dos judeus – a ilha de Madagáscar30. Contudo, é importante lembrar que este plano, tal como outras soluções em tempo de guerra para o problema judaico, implicava para os judeus inúmeras mortes e sofrimento. Um governador nazi de Madagáscar iria, muito provavelmente, presidir à gradual eliminação dos judeus, passada uma geração ou duas. A Solução Final dos nazis, tal como a conhecemos, não teria ocorrido, mas teria havido, com certeza, outro tipo de genocídio. Himmler fez chegar o seu memorando a Hitler, que o leu e lhe disse que, na sua opinião, era «gut und richtig» («bom e correcto»). Faz todo o sentido que Hitler não tenha dado a sua opinião por escrito. Para Himmler, bastava estar armado com a aprovação verbal do Führer sobre o seu conteúdo. Assim era decidida a alta política no estado nazi. 48 Rudolf Hoess e o seu embrionário campo de concentração, em Auschwitz, não passaram de uma pequena parte deste quadro mais geral. Auschwitz situava-se numa das zonas da Polónia a ser «germanizada» e, assim, o futuro imediato do campo seria decidido, em grande medida, pela sua localização. A região da Alta Silésia já antes pertencera, várias vezes, quer aos polacos, quer aos alemães e, imediatamente antes da Primeira Guerra Mundial, fizera parte da Alemanha para, logo a seguir, ser perdida no Tratado de Versalhes. Os nazis queriam, agora, reclamá-la para o Reich. Porém, ao contrário de outras áreas a serem «germanizadas», a Alta Silésia era fortemente industrializada e uma grande parte pouco apropriada para o estabelecimento dos alemães acabados de chegar. Isto queria dizer que muitos polacos teriam de continuar como força de trabalho escravo, o que, por outro lado, queria dizer que um campo de concentração se via como particularmente necessário na área, a fim de subjugar a população local. Originalmente, Auschwitz tinha sido concebido como um campo de concentração de passagem – um campo de «quarentena», no calão nazi –, onde os prisioneiros ficavam antes de serem enviados para outros campos no Reich. Em poucos dias, tornou-se claro que o campo iria funcionar, por direito próprio, como lugar de prisão permanente. Hoess sabia como a guerra tinha radicalizado tudo, incluindo os campos de concentração. Embora concebido como Dachau, este novo campo teria de lidar com um problema mais intrincado do que as instituições do Velho Reich. O campo de Auschwitz precisava de aprisionar e aterrorizar os polacos, num tempo em que todo o país estava a ser reordenado do ponto de vista étnico, e a Polónia a ser destruída intelectual e politicamente. Assim, mesmo na primeira concepção como campo de concentração, Auschwitz tinha proporcionalmente uma taxa mais alta de mortes do que qualquer campo «normal» no Reich. Dos 20 000 polacos logo no início mandados para o campo, mais de metade tinha morrido no começo de 1942. 49 Os primeiros prisioneiros a chegarem a Auschwitz, em Junho de 1940, não eram polacos, mas alemães – 30 criminosos transferidos do campo de concentração de Sachsenhausen. Viriam a ser os primeiros Kapos, os ocupantes que iriam actuar como agentes de controlo entre as SS e os prisioneiros polacos. A visão destes Kapos era a primeira impressão, fortíssima, sentida por muitos polacos que chegaram nos transportes iniciais ao campo. «Pensámos que eram todos marinheiros», diz Roman Trojanowski31, que chegou a Auschwitz com dezanove anos, no Verão de 1940. «Tinham barretes como os marinheiros e, afinal, tratava-se de criminosos. Eram todos criminosos. Chegámos, e lá estavam os Kapos alemães. Saudavam-nos e batiam-nos com uns bastões curtos.» Wilhelm Brasse32, que chegara pela mesma altura, diz: «Quando alguém se demorava a descer do camião de gado, era espancado ou, noutras situações, morto ali mesmo. Fiquei aterrorizado. Toda a gente estava aterrorizada.» Estes primeiros prisioneiros polacos, em Auschwitz, foram mandados para o campo por diversas razões: podiam ser suspeitos de trabalhar no movimento de resistência polaco; ser membros de um grupo alvo dos nazis, como padres ou pertencentes à intelligentsia ou, simplesmente, alguém que tivesse chamado a atenção de um alemão. De facto, os elementos do primeiro grupo de prisioneiros polacos que chegaram ao campo em 14 de Junho de 1940, transferidos da prisão de Tarnów, eram estudantes universitários. A tarefa imediata para os recém-chegados era simples: tinham de ser eles a construir o campo. «Usávamos instrumentos muito primitivos», relembra Wilhelm Brasse. «Os prisioneiros tinham de carregar pedras. Era muito difícil, um trabalho pesado, e batiam-nos!» Mas, como não tinham sido providenciados os materiais de construção suficientes para completar a tarefa, encontrou-se uma solução típica dos nazis: o roubo. «Trabalhei na demolição de casas que antes pertenciam a famílias polacas!», continua Brasse. «Uma das outras 50 ordens era a de levar materiais de construção como tijolos, tábuas e todo o género de madeira. Ficávamos surpreendidos porque os alemães queriam construir depressa, mas não tinham materiais.» O campo desenvolveu rapidamente uma cultura do roubo, não só a partir da população local, mas mesmo dentro da instituição. Os Kapos alemães mandavam os ocupantes saírem e diziam: «Vão e roubem cimento a outro comando de trabalho. Estamo-nos nas tintas para os outros tipos», diz Brasse. «Era o que fazíamos. A madeira ou o cimento eram roubados de outro comando. No dialecto do campo chamava-se a isso “organizar”. Mas tínhamos de ter muito cuidado para não sermos apanhados.» Esta cultura de «organizar» não se confinava aos ocupantes. Nos primeiros tempos, Hoess também roubava o que fosse necessário: «Uma vez que não podia esperar nenhuma ajuda do inspector dos campos de concentração, tinha de fazer o melhor para o conseguir. Era obrigado a surripiar carros e camiões, e a gasolina necessária. Tinha de conduzir mais de cem quilómetros até Zakopane e Rabka para arranjar umas simples panelas para a cozinha dos prisioneiros e fazer todo o percurso até à região dos Sudetas para conseguir armação para as camas e sacos de palha… Em qualquer sítio que encontrasse depósitos de materiais que fossem precisos com urgência, transportava-os sem me preocupar com as formalidades… Nem sequer sabia onde arranjar cem metros de arame farpado. Nada a fazer, tinha mesmo de furtar o tão necessário arame farpado.»33 Enquanto Hoess andava a «organizar» o que ele considerava ser necessário para fazer de Auschwitz um campo «útil», para além do arame farpado acabado de roubar, logo se tornou claro para os polacos que as suas hipóteses de sobrevivência dependiam, principalmente, de um factor: o tipo de Kapo para quem trabalhavam. «Apercebi-me muito rapidamente de que nos “bons” comandos de trabalho os prisioneiros tinham em geral caras cheias e redondas», diz Wilhelm Brasse. 51 «Comportavam-se de maneira bem diferente dos que eram obrigados a trabalhos pesados e pareciam escanzelados, como esqueletos a usar um uniforme. E logo se notava que um determinado Kapo era melhor, porque os prisioneiros tinham melhor aspecto!» Roman Trojanowski sofreu muito sob o comando de um dos Kapos mais cruéis. Este, um dia, puniu-o por uma transgressão menor, dando-lhe socos na cara e fazendo-o estar agachado, durante duas horas, a segurar um banco. A dureza de vida desse comando de trabalho estava a destruí-lo. «Não tinha força para andar, todo o dia, de um lado para o outro com o carrinho de mão», diz ele. «Uma hora com o carrinho e ele caía-me das mãos. Tombava-se sobre o carro e magoavam-se as pernas. Tinha de salvar a pele.» Tal como muitos ocupantes de Auschwitz, antes e depois dele, Roman Trojanowski sabia que, ou arranjava maneira de sair daquele comando de trabalho, ou morreria. Uma manhã fizeram um anúncio durante a chamada para reunir: precisavam de carpinteiros experientes. Trojanowski apresentou-se como voluntário e, mesmo nunca tendo sido carpinteiro na vida, disse que possuía sete anos de prática. Mas o plano falhou: como é óbvio, quando começou o trabalho na carpintaria, não conseguia dar conta da tarefa. «O Kapo chamou-me, levou-me para o seu gabinete e ficou de pé segurando um grande bastão. Quando vi o bastão, senti-me enfraquecer. Então disse-me que, por ter estragado o material, ia levar vinte e cinco bastonadas. Ordenou-me que me inclinasse e bateu-me. Fê-lo especialmente devagar para que eu pudesse sentir bem cada pancada. Era um tipo grande, tinha uma mão forte e um bastão pesado. Tive vontade de gritar, mas mordi os lábios e não produzi qualquer som uma única vez. E fui bem recompensado porque, à décima quinta bastonada, ele parou. “Estás-te a portar bem”, disse, “vou-te perdoar as últimas dez.” Das vinte e cinco bastonadas, só apanhei quinze. Mas quinze foram suficientes. O meu rabo ficou às 52 cores durante duas semanas, passou de preto a violeta e depois a amarelo, e não me pude sentar durante muito tempo.» Despedido da carpintaria, Trojanowski continuou, mesmo assim, a procurar um trabalho num recinto coberto. «Era decisivo», diz ele. «Para sobreviver, era preciso estar debaixo de um telhado.» Falou com um amigo que conhecia um Kapo relativamente simpático, chamado Otto Küsel. Ele e o amigo encontraram-se com Küsel. Exagerou sobre o muito que sabia de alemão e conseguiu um trabalho na cozinha, a preparar comida para os alemães. «Foi assim que salvei a vida», comenta. Nesta luta pela sobrevivência dentro do campo, havia dois grupos de pessoas, assinalados desde o momento da chegada, que haviam de ter um tratamento particularmente sádico: os padres e os judeus. Embora, nesta fase da sua evolução, Auschwitz não fosse um lugar para onde enviavam grande número de judeus – a política dos guetos estava ainda em marcha –, alguns membros da intelligentsia, da resistência e prisioneiros políticos que eram mandados para o campo eram judeus. Juntamente com os padres polacos, tinham muito mais probabilidades do que os outros de caírem nas mãos da unidade de comando penal dirigida por Ernst Krankemann, um dos Kapos mais temíveis. Krankemann chegou ao campo na segunda fornada de criminosos alemães, transferido de Sachsenhausen a 29 de Agosto de 1940. Muitos dos SS não gostavam dele, mas tinha dois apoiantes poderosos: Karl Fritzsch, o Lagerführer (chefe do campo e delegado de Hoess), e Gerhard Palitzsch, o Rapportführer (assistente-chefe do comandante). Krankemann, que era muito gordo, sentava-se no cimo de um cilindro gigante, usado para aplanar a praça no centro do campo. «A primeira vez que o vi», diz Jerzy Bielecki34, um dos primeiros prisioneiros a chegar a Auschwitz, «estavam a aplanar a praça entre dois blocos. Como era um cilindro muito pesado, as vinte ou vinte e cinco pessoas da unidade não eram capazes de o fazer rolar. Krankemann tinha um chicote e batia-lhes. “Mais depressa, cães!”, dizia ele.» 53 Bielecki viu como estes prisioneiros eram forçados a trabalhar durante todo o dia, sem intervalo, para aplanar a praça. Ao cair da noite, um deles teve um colapso, caiu de joelhos e não conseguia levantar-se. Krankemann ordenou ao resto do comando penal para fazerem rolar o cilindro gigante por cima do camarada prostrado. «Estava habituado a ver mortes e espancamentos», diz Bielecki. «Mas aquilo que presenciei fez-me estremecer. Senti-me gelado.» Longe de serem espectadores indiferentes a este tipo de brutalidade, os SS encorajavam-no activamente. Como Wilhelm Brasse, e de facto, todos os sobreviventes de Auschwitz o certificaram, foram os SS que criaram no campo a cultura da brutalidade assassina (eram eles próprios a cometer, muitas vezes, assassínios). «Àqueles Kapos que eram especialmente cruéis», diz Brasse, «os SS davam-lhes prémios – uma porção adicional de sopa, pão ou cigarros. Vi com os meus olhos. Os SS incitavam-nos; ouvi muitas vezes dizer: “Espanquem-no bem.”» Não obstante a pavorosa brutalidade prevalecente no campo, Auschwitz era, na perspectiva nazi, uma espécie de contracorrente na barafunda da brutal reorganização da Polónia. O primeiro sinal de que tudo iria mudar surgiu no Outono de 1940. Em Setembro, Oswald Pohl, presidente da Administração Central e do Departamento de Economia das SS, inspeccionou o campo e disse a Hoess para incrementar a sua capacidade. Pohl achava que a areia e as jazidas de pedra das redondezas permitiam ao campo vir a ser integrado nos empreendimentos das SS, como empresa de trabalhos em pedra (DESt). Porque, para Himmler e para as SS, as questões económicas se tornaram cada vez mais importantes desde 1937, altura em que a população dos campos de concentração na Alemanha desceu para 10 000 dos mais de 20 000 em 1933, ele encontrou uma solução inovadora para proteger o futuro dos campos: as SS iam dedicar-se ao negócio. Foi, desde o início, um negócio estranho. Himmler não queria uma empresa capitalista, mas antes uma série de com54 panhias que operarassem de acordo com as ideias filosóficas nazis ao serviço do Estado. Os campos de concentração providenciavam as matérias-primas para a nova Alemanha, tais como vastas quantidades de granito necessárias para a nova e gigantesca chancelaria do Reich, em Berlim. No prosseguimento deste objectivo, após a anexação da Áustria, em 1938, as SS abriram um novo campo de concentração em Mauthausen, especificamente para ficar perto de uma pedreira de granito. Supunha-se ser particularmente eficaz que os opositores ao regime contribuíssem para o seu crescimento. Como Albert Speer, o arquitecto preferido de Hitler, explicou: «Afinal de contas, os judeus já faziam tijolos às ordens dos faraós.»35 O entusiasmo de Himmler pela produção industrial não se limitava ao provimento de materiais de construção para o Reich. Deu também o seu aval a um conjunto de outros projectos. Foi fundada uma unidade experimental para a investigação de medicamentos naturais e novas formas de produção agrícola (dois assuntos queridos a Himmler) e, em breve, as SS estavam também envolvidas na produção de vestuário, bebidas vitaminadas e mesmo porcelana (faziam figuras de pastores e de outros temas racialmente adequados). Como as recentes investigações vieram a demonstrar36, os SS gerentes de muitas dessas empresas eram incompetentes, a um ponto quase cómico. Mal Pohl ordenou que Auschwitz se dedicasse à produção de areia e cascalho para o estado nazi, logo o campo adquiriu outra função. Em Novembro de 1940, Rudolf Hoess teve uma reunião com Himmler, durante a qual conseguiu que os planos que engrendrara para Auschwitz entusiasmassem a imaginação do seu chefe. Num ápice, o interesse comum pela agricultura criou uma ligação entre eles. Hoess evocou a nova visão de Himmler para o campo: «Todas as experiências agrícolas necessárias iriam ser ali tentadas. Era preciso construir, em massa, laboratórios e departamentos para o cultivo de plantas… Era da maior importância a criação de gado de todos os tipos… 55 As terras pantanosas tinham de ser drenadas e tratadas… E prosseguia com a conversa sobre planos de agricultura até ao mais pequeno detalhe, só parando quando o seu adjunto lhe chamou a atenção para o facto de uma pessoa muito importante estar à espera há muito tempo para o ver.»37 Este encontro entre Hoess e Himmler, há muito eclipsado pelo horror que iria gerar-se em Auschwitz, dá uma visão profunda da mentalidade das duas figuras-chave da história do campo. É demasiado fácil e errado catalogá-los como dois «doidos» movidos por sentimentos irracionais que nunca conseguiremos compreender. Neste encontro, vemo-los como dois entusiastas, quase excêntricos, que num contexto de guerra foram capazes de ter visões que, em tempo de paz, não passariam de ideias impraticáveis. Todavia, em consequência de agressão nazi, Himmler, ali sentado a matutar com Hoess sobre os planos para Auschwitz, era um homem já com experiência directa na transformação dos seus sonhos em realidade. Tinha passado a mão pelo mapa e reordenado a vida de centenas de milhares de alemães e polacos. Durante esse processo, proferira juízos nos termos mais radicais que se possa imaginar. É vital recordar que sempre que Himmler falava tão eloquentemente sobre o seu desejo de que Auschwitz se tornasse um centro de investigação agrícola o fazia no prosseguimento de uma visão coerente – visão repulsiva, claro, mas contudo coerente. Nesse encontro de Novembro de 1940, entusiasmou-se com a visão da Silésia como uma utopia agrícola alemã, quase um paraíso. Para trás, ficava o falso brilho das propriedades rurais polacas do Sul; no seu lugar iriam emergir quintas alemãs, sólidas e bem geridas. Hoess e Himmler tinham sido agricultores, ambos possuíam uma ligação emocional, quase mística, à terra. Portanto, a ideia de que Auschwitz pudesse tornar-se um centro de desenvolvimento agrícola deve ter sido profundamente apelativa para ambos. 56 Ofuscado por este súbito entusiasmo, era para Himmler de menor importância que Auschwitz estivesse localizado no sítio errado para tal tarefa. Situado na confluência dos rios Sola e Vístula, o campo ficava numa área caracterizada por inundações. Apesar de tudo, a partir de agora e até ao dia em que o campo fechou, os prisioneiros de Auschwitz iriam trabalhar para cumprir a visão de Himmler, cavando minas, drenando pântanos, escorando as margens dos rios – tudo isto porque para o Reichsführer era muito mais excitante cumprir um sonho do que discutir coisas práticas. A ideia de que milhares de pessoas iriam morrer ocorreu, vagamente, ao espírito de Himmler quando, de forma entusiástica, sublinhou a sua fantasia perante o fiel subordinado que era Rudolf Hoess. No final de 1940, Hoess estabelecera muitas das estruturas e princípios básicos com que o campo iria funcionar nos quatro anos seguintes: os Kapos, efectivamente, controlariam os prisioneiros a cada momento; a total brutalidade do regime seria capaz de infligir castigos arbitrários; no interior do campo, e sob um comando perigoso, um ocupante arriscava-se a uma morte rápida e iminente, se não aprendesse a autocontrolar-se. Mas criou-se uma fantasia final, nos primeiros meses, que simbolizou a cultura do campo de modo ainda mais concreto: o Bloco 11. Visto do exterior, o Bloco 11 (primeiro, denominado Bloco 13 e, depois, renumerado 11) parecia-se com qualquer outro dos edifícios feitos de tijolo vermelho e com ar de barracão que se enfileirava no campo. Mas tinha um objectivo singular – e todos no campo o sabiam. «Eu próprio fiquei aterrorizado quando passei em frente do Bloco 11», diz Józef Paczyński38. «Tive mesmo medo.» Os prisioneiros sentiam isso porque o Bloco 11 era uma prisão dentro de uma prisão – um lugar de tortura e de assassínio. Jerzy Bielecki foi um dos poucos que experimentou o que aconteceu no Bloco 11 e viveu para contar a história. Foi mandado para lá porque uma manhã acordou a sentir-se tão 57 doente e exausto que não conseguia trabalhar. Em Auschwitz não era possível pedir um dia de descanso para recuperar e daí que tivesse tentado esconder-se no campo, esperando que ninguém desse pela sua falta. No começo, escondeu-se nas latrinas, mas sabia que havia um forte risco de ser apanhado se ficasse ali o dia inteiro e, assim, saiu e tentou fingir que estava a fazer limpezas pelo campo. Infelizmente, foi apanhado pelo guarda e mandado de castigo para o Bloco 11. Foi conduzido pelas escadas até ao sótão. «Fui andando e percebi que as telhas estavam quentes», diz ele. «Era um lindo dia de Agosto. Cheirava mal e ouvi alguém murmurar: “Jesus! Ai Jesus!” Estava escuro, a única luz que havia vinha através das telhas.» Olhou para cima e viu um homem, suspenso pelas mãos atadas atrás das costas da trave do telhado. «Um SS trouxe um banco e disse: “Sobe!” Pus as mãos atrás das costas, ele pegou numa corrente e prendeu-mas.» Depois de o ter prendido à trave com a corrente, o SS deu, subitamente, um pontapé no banco. «Só senti… Jesus, Maria… que era uma dor terrível! Eu estava a gemer e ele disse-me: “Cala-te, cão! Mereces sofrer!”» Depois, o SS foi-se embora. A dor enquanto estava suspenso, com as mãos e os braços puxados para trás, era insuportável. «E, claro, o suor caía-me pelo nariz, fazia muito calor e eu dizia: “Mãezinha!” E, depois de uma hora, os meus ombros começaram a desencaixar-se das articulações. O outro tipo não dizia nada. A seguir, entrou outro guarda das SS, dirigiu-se ao outro preso e libertou-o. Fechei os olhos. Eu tinha estado suspenso sem espírito… sem alma. Mas o que me atingiu foram as palavras do SS. Dizia: “Só mais quinze minutos.”» Jerzy Bielecki lembra-se de pouco mais até este último SS voltar. «“Levanta as pernas!” Mas não era capaz. Pegou-me nas pernas, pôs uma no banco, depois a outra, desapertou a corrente e eu caí do banco, de joelhos, e ele ajudou-me. Levantou-me a mão direita e disse: “Aguenta!” Mas eu não sentia os braços. Ele continuou: “Isso passa ao fim de uma hora!” E eu 58 comecei a andar só com a ajuda dele. Era um guarda muito compassivo.» A história de Jerzy Bielecki é notável por várias razões. A primeira, e não menos importante, é a sua coragem pessoal sob tortura, mas talvez o mais surpreendente seja o contraste entre os dois guardas das SS – aquele que, sem avisar, deu sadicamente um pontapé no banco em que ele se apoiava e o guarda «compassivo», que o ajudou a descer quando a tortura terminou. É importante relembrar que, tal como em relação aos Kapos, havia uma grande diferença de temperamentos, o mesmo acontecendo com os SS. Um tema comum nas reminiscências dos sobreviventes dos campos é que não havia um modelo idêntico nos captores. Crucial à sobrevivência no campo era ter habilidade para ler as diferenças de personalidade tanto dos Kapos como dos SS. Neste talento poderia basear-se a vida. Embora Jerzy Bielecki tenha saído estropiado do Bloco 11, ainda assim teve sorte, pois era muito provável, após passar por todos estes episódios concretos para lá da porta de entrada, que não saísse de lá vivo. Durante os interrogatórios, os nazis torturavam ocupantes do Bloco 11 de diversos modos horríveis, não só usando o método quebra-costas de suspensão, sofrido por Bielecki, mas também chicoteando os prisioneiros, praticando a tortura da água, pondo agulhas debaixo das unhas, marcando-os com ferros a arder e derramando petróleo sobre os ocupantes e depois atiçando fogo. As SS, em Auschwitz, também dispunham de iniciativa própria para descobrir novas torturas, tal como o antigo prisioneiro Boleslaw Zbozień observou quando um ocupante foi trazido do Bloco 11 para o hospital do campo: «Um dos métodos favoritos, sobretudo no Inverno, era manter a cabeça do prisioneiro dentro do fogão de aquecimento para o fazer falar. A cara ficava completamente queimada… Esse homem (trazido do Bloco 11 para o hospital) estava todo queimado, os olhos queimados, mas, mesmo assim, conseguiu aguentar-se… 59 Os funcionários do Politische Abteilung (Departamento Político) ainda precisavam dele… Esse prisioneiro morreu, após alguns dias, sem nunca ter perdido a consciência.»39 Naquela altura, o Bloco 11 era o império do Untersturmführer (segundo-tenente) das SS Max Grabner, um dos oficiais mais proeminentes do campo. Antes de se juntar aos SS, fora tratador de vacas mas, agora, tinha o poder sobre a vida e a morte dos prisioneiros do seu bloco. Todas as semanas ele devia «limpar a casa», processo que consistia em Grabner e os seus colegas decidirem o destino de cada um dos prisioneiros do Bloco 11. Alguns iam ser deixados nas suas celas; outros sentenciados ao Relatório Penal 1 ou ao Relatório Penal 2. O Relatório Penal 1 significava chicoteamento ou qualquer outra tortura. O Relatório Penal 2 significava execução imediata. Os sentenciados à morte eram primeiro levados para salas de lavagem no rés-do-chão do Bloco 11 e mandados despir-se. Uma vez nus, eram levados, por uma porta lateral, para um pátio isolado, o pátio entre o Bloco 11 e o Bloco 10, que tinha paredes de tijolo e estava separado do resto do campo. Era o único espaço, entre blocos, com estas características. Neste pátio, os prisioneiros eram executados. Eram levados, por um Kapo, até à parede de tijolo – conhecida, na gíria do campo, com «o ecrã» –, longe da entrada do bloco, com os braços atados. Uma vez chegados a esta parede distante, um dos executores das SS encostava-lhes uma arma de pequeno calibre (para minimizar o barulho) à cabeça e disparava o tiro. Mas não eram apenas os ocupantes de Auschwitz que sofriam no Bloco 11; era também ali que se situava o Tribunal Sumário de Polícia da Kattowitz alemã (a antiga área da Katowice polaca). Assim era possível que polacos presos pela Gestapo fossem directamente para o Bloco 11 sem passar pelo resto do campo. Um dos juízes em tais casos era o Dr. Mildner, um Obersturmbannführer das SS (tenente-coronel) e conselheiro de Estado. Perry Broad, um membro das SS que 60 trabalhou em Auschwitz, descreveu como o sádico Mildner gostava de actuar: «Um jovem de dezasseis anos foi conduzido à sua presença. Uma fome insuportável levara-o a roubar comida numa loja; claro que caiu logo na categoria dos casos criminosos. Depois de ler a sentença de morte, Mildner pôs o papel sobre a mesa e dirigiu o seu olhar penetrante ao rapaz, miseravelmente vestido e de pé, junto à porta. “Tens mãe?” O rapaz baixou o olhar e respondeu em voz baixa: “Sim.” “Tens medo de morrer?”, perguntou o carniceiro de pescoço de touro, que parecia retirar um prazer sádico do sofrimento da vítima. O jovem mantinha-se em silêncio, mas o seu corpo tremia ligeiramente. “Vais ser fuzilado hoje”, afirmou Mildner, tentando dar à voz um significado cheio de fatalidade. “Irias ser enforcado, de qualquer modo, um dia destes. Daqui a uma hora estás morto.”»40 Segundo Broad, Mildner divertia-se, de modo particular, quando falava com mulheres, imediatamente antes de as sentenciar à morte. «Contava-lhes, do modo mais dramático, o momento iminente do disparo.» Contudo, apesar dos horrores do Bloco 11, Auschwitz, nesta altura do seu desenvolvimento, continuava a ter alguns dos atributos dos campos tradicionais, como Dachau. Ao contrário da crença popular, nada ilustra melhor esta falta de diferença conceptual que o facto de ser possível, nestes primeiros meses, ser encarcerado em Auschwitz, estar lá e depois ser libertado. Pouco antes da Páscoa de 1941, Wladyslaw Bartoszewski41, um prisioneiro político polaco, estava no hospital do Bloco 20 quando dois homens das SS se aproximaram dele. «Disseram-me: “Sai!” Não me deram qualquer explicação, não percebi o que se estava a passar. Foi um choque, pois havia uma mudança na minha situação e os colegas mais perto de mim não sabiam o que iria acontecer. Estava aterrado.» Em breve se apercebeu de que iria ser levado a uma junta de médicos alemães. Quando ia a caminho, um ocupante, médico polaco, 61 sussurrou-lhe: «Se te perguntarem, diz que estás saudável, que te sentes bem, porque se disseres que estás doente não te libertam.» Bartoszewski ficou chocado com a repentina notícia de que poderia vir a sair do campo. «Eles vão libertar-me?», perguntou aos médicos polacos, excitado e cheio de admiração. Mas eles responderam: «Cala-te!» Um obstáculo da maior importância surgia agora no caminho da libertação de Wladyslaw Bartoszewski – o seu estado físico. «Tinha umas bolhas enormes nas costas, nas coxas, atrás da cabeça e no pescoço. Os médicos polacos tinham-me posto imenso bálsamo e pó para aquilo ficar com melhor aspecto. Disseram-me: “Não tenhas medo que não te vão observar assim de tão perto, mas não digas nada que vá contra as regras porque aqui não há ninguém doente, percebes?” Depois levaram-me ao médico alemão e eu nem olhei para ele. Os médicos polacos estavam impacientes e disseram: “Está tudo bem!” E o alemão limitou-se a abanar a cabeça.» Depois de ter passado por esse temível exame médico, Bartoszewski foi levado até à chancelaria do campo, onde lhe restituíram as roupas com que entrara no campo. «Não me devolveram a minha cruz de ouro», disse. «Guardaram-na como recordação!» A seguir, quase como numa paródia à libertação de uma prisão normal, o SS perguntou se tinha alguma queixa a fazer sobre a sua estada ali. «Armei-me em esperto», diz ele, «e respondi: “Não!” Perguntaram: “Está satisfeito com a sua estada no campo?” Eu retorqui: “Sim!” Tive então de assinar um formulário em como não tinha queixas e não agiria contra a lei. Não percebi de que lei estavam a falar porque, como polaco, não estava nada interessado na lei alemã. A nossa lei era representada pelo nosso governo no exílio, em Londres. Mas, claro, esse não era o género de conversa que ia ter com aqueles tipos.» Juntamente com outros três polacos libertados nesse dia, Bartoszewski foi escoltado por um guarda alemão até à estação de Auschwitz e metido num comboio. Assim que o comboio 62 começou a andar, sentiu vivamente «aqueles primeiros minutos de liberdade». À sua frente, havia uma longa viagem até casa da mãe, em Varsóvia. «No comboio, as pessoas abanavam a cabeça. Algumas mulheres sustinham as lágrimas. Era visível a sua emoção. Perguntaram: “De onde vêm?” E nós dissemos: “De Auschwitz.” Não houve comentários – apenas um olhar, apenas medo.» Finalmente, já tarde nessa noite, Bartoszewski chegou ao apartamento da mãe, em Varsóvia. «Ela ficou espantada de me ver. Correu para mim e abraçou-me. Olhando de cima, vi-lhe uma mancha de cabelo branco na cabeça e essa foi a primeira mudança de que me apercebi. Não estava com bom aspecto. Ninguém tinha bom aspecto naquela época.» Na totalidade, várias centenas de prisioneiros foram libertadas do mesmo modo de Auschwitz. Ninguém sabe ao certo por que é que estas pessoas foram escolhidas. Mas, no caso de Bartoszewski, tudo indica que a pressão pública possa ter tido o seu papel, uma vez que a Cruz Vermelha e outras instituições fizeram campanha pela sua libertação. É certo que os nazis, nessa altura, estavam susceptíveis à pressão internacional relativa aos prisioneiros, o que é confirmado pela sorte de um grupo de académicos polacos presos em Novembro de 1939. Os professores da Universidade Jagelão, na Cracóvia, foram, no âmbito de uma purga aos intelectuais, arrebanhados das suas salas de aula e feitos prisioneiros em diversos campos de concentração, incluindo Dachau. Catorze meses mais tarde, os académicos que conseguiram sobreviver foram libertados, muito provavelmente devido à pressão do mundo exterior, incluindo representantes do papa. Entretanto, Auschwitz entrou numa fase nova e crucial da sua evolução, na mesma altura em que um outro alemão teve uma «visão» que acabaria por influenciar o desenvolvimento do campo. O Dr. Otto Ambros, da I. G. Farben, um gigante empreendimento industrial, andava à procura, no Leste, de um local adequado para uma fábrica de borracha sintética. A única razão por que ele procurava tal localização, em vez da 63 prevista antes da liderança nazi, devia-se à mudança de rumo que a guerra tomara. Tal como Himmler imaginara, em Maio de 1940, que seria possível transportar os judeus para África porque a guerra iria acabar em breve, também a I. G. Farben concluiu, nessa altura, que seria desnecessário prosseguir o difícil e dispendioso processo de produção de borracha sintética e combustível. Uma vez a guerra acabada – digamos, nos finais do Outono de 1940 –, estariam disponíveis enormes quantidades de matéria-prima vindas do exterior do Reich e, de não menos importância, das novas colónias alemãs conquistadas ao inimigo. Porém, em Novembro de 1940, era claro que a guerra não tinha terminado. Churchill recusara-se a fazer a paz e a RAF tinha repelido os ataques aéreos alemães durante a batalha de Inglaterra. Mais uma vez, os planos alemães tinham de se ajustar ao inesperado. De facto, é tema recorrente desta época histórica que a liderança nazi tenha tido sempre de lidar com acontecimentos não rigorosamente previstos. Os alemães nazis são sempre conduzidos por um enorme sentimento de ambição e optimismo – tudo se pode conseguir apenas pela «vontade» – e são levados a retrair-se quer pela falta de planeamento e previsão quer porque o seu inimigo é mais forte do que alguma vez admitiu o seu empolgado sentido de si próprios. Quanto à I. G. Farben, os planos de expansão, que tinham sido adiados por causa do previsto fim iminente da guerra, não foram implementados com a rapidez necessária. Embora não sendo uma companhia nacionalizada, a I. G. Farben tornou-se muito favorável às necessidades e desejos da liderança nazi. O plano quadrienal nazi contratou a construção, no Leste, de uma fábrica de borracha sintética (Buna), e era agora a altura, depois de várias conversações, de a I. G. Farben concordar em estabelecer-se na Silésia42. A borracha sintética produzia-se a partir da extracção do carvão que era submetido a um processo designado por hidrogenação, que implicava 64 passar-se gás de hidrogénio pelo carvão a altas temperaturas. Sem calcário, água e, basicamente, carvão, nenhuma Buna poderia funcionar. Seria pré-condição de qualquer local, portanto, ter acesso directo a essas matérias-primas. Mais ainda, a I. G. Farben fazia questão em que houvesse transporte apropriado e infra-estruturas de alojamento na zona próxima ou circundante a qualquer destas fábricas propostas. Depois de ter estudado mapas e planos, Otto Ambros julgou ter chegado ao local certo para a nova instalação da I. G. Farben, a cerca de cinco quilómetros a leste do campo de Auschwitz. Mas a proximidade do campo de concentração não foi um factor essencial na decisão de localização da Fábrica Buna, na área de Auschwitz. A I. G. Farben estava mais interessada nos recém-chegados alemães como trabalhadores do que ter por base apenas o trabalho escravo. A atitude de Himmler quanto ao facto de a I. G. Farben estar interessada em se aproximar de Auschwitz não pode senão ser descrita como esquizofrénica. Como Reichsführer das SS, Himmler tinha dúvidas sobre este processo, até porque ele já tinha assegurado que os prisioneiros do campo de concentração trabalhariam exclusivamente para empresas das SS. O precedente de os prisioneiros trabalharem para a indústria privada – cujo salário era, de facto, canalizado para o estado nazi em vez de ficar, na totalidade, de posse das SS – não era coisa que Himmler quisesse encorajar. Embora as SS tivessem lucros com a venda de pedra à I. G. Farben, Himmler tinha, claramente, objectivos mais ambiciosos para a sua organização do que esse negócio prometia. Contudo, na sua qualidade de comissário do Reich para o Fortalecimento do Sentimento de Nação alemã, Himmler era um bom negociador, menos pessimista. Conhecia bem a necessidade da I. G. Farben quanto aos recém-chegados alemães e punha todo o seu empenho em satisfazê-la. Arranjar acomodações para as novas forças de trabalho, recém-chegadas, não seria um problema. As autoridades de Auschwitz 65 sentiam-se satisfeitas por «resolver»43 a questão dos judeus e polacos que viviam na cidade, de modo que eles pudessem ter o seu próprio espaço. Por fim, a última decisão foi tomada por Goering, como chefe do Plano Económico Quadrienal: a I. G. Farben iria construir a sua fábrica perto do campo de concentração de Auschwitz e tanto Himmler como as SS deviam colaborar44. Este interesse da I. G. Farben transformou Auschwitz, de um campo menor dentro do sistema das SS, num dos potencialmente mais importantes de todas as suas estruturas. Sintomática desta alteração do estatuto do campo foi a decisão de Himmler de fazer a sua primeira visita ao campo no dia 1 de Março de 1941. Nas suas memórias, e durante o seu interrogatório, depois da guerra, Hoess relatou com todos os pormenores esta visita, durante a qual Himmler deu livre expressão às suas tendências megalómanas. Se a visão de Himmler sobre Auschwitz como uma estação de pesquisa agrícola já fora ambiciosa em Novembro, o seu sonho, em Março, era positivamente desmedido. Com as suas dúvidas iniciais sobre a vantagem da presença da I. G. Farben agora postas de lado, Himmler anunciou, com toda a ligeireza, que o campo deixava de ter 10 000 ocupantes para passar a expandir-se até aos 30 000. O Gauleiter da Alta Silésia, Fritz Bracht, que o acompanhava, levantou objecções a uma expansão tão rápida. Um outro oficial local fez notar que os problemas de drenagem da zona estavam por resolver. Ele disse-lhes, pura e simplesmente, que consultassem peritos e resolvessem o problema. Resumiu a conversa com estas palavras: «Meus senhores, o campo vai expandir-se. As minhas razões são muito mais importantes do que as vossas objecções.»45 Subserviente em relação a Himmler como era, Hoess sentiu tão fortemente a dificuldade de implementar esta nova visão do seu mestre que esperou até que ele, Himmler e o chefe supremo das SS e da Polícia para o Sudeste, Erich von dem Bach-Zelewski, se encontrassem sozinhos no carro para, 66 então, avançar com uma ladainha de queixas. Tinha falta de materiais de construcção, objectava, falta de pessoal, falta de tempo – de facto, tinha falta de tudo. Himmler reagiu de modo previsível. «Não quero ouvir falar mais de dificuldades! Para um oficial das SS não há dificuldades! Quando surgem, só têm de se livrar delas. Como o vão fazer é da vossa conta, não da minha.» O que é significativo, nesta troca de palavras, não é tanto a resposta de Himmler aos queixumes de Hoess, mas o facto de Hoess se ter sentido capaz de falar com o chefe das SS nesses termos. No sistema soviético, qualquer um que falasse assim com Estaline ou com Beria (chefe da polícia secreta NKVD e equivalente mais próximo de Himmler, em Moscovo) arriscava a vida. Por muito estranho que possa parecer à primeira vista, as chefias nazis toleravam muito mais as críticas internas dos seus subalternos do que o sistema estalinista. E esta é uma das razões por que o Terceiro Reich era o mais dinâmico dos dois regimes políticos em que os funcionários mais baixos da cadeia de comando eram livres de usar a sua iniciativa e de dar voz às suas opiniões. Diferentemente da maioria dos que cometiam crimes às ordens de Estaline, Hoess nunca actuava sob o medo de uma terrível retaliação se questionava alguma ordem. Alistara-se nas SS porque acreditava, de todo o coração, na globalidade da visão nazi e isso queria dizer que se sentia livre para criticar os pormenores da sua implementação. Ele era o mais poderoso dos subordinados, alguém que faz o seu trabalho não porque obedece a ordens, mas porque acredita que o que está a fazer está certo. É claro que sentir-se livre para criticar os superiores sobre detalhes e, na realidade, conseguir alguma coisa através de tal crítica são duas coisas diferentes. E Hoess não conseguiu nada pelo facto de se ter queixado a Himmler. A visão do Reichsführer quanto à expansão do campo de concentração de Auschwitz era para ser concretizada, independentemente de tudo. Tal como Hoess concluiu, lamentando-se: «O Reichsführer 67 estava sempre mais interessado em ouvir os relatórios positivos do que os negativos.» No início da decisão de a I. G. Farben construir uma Fábrica Buna em Auschwitz, Himmler não confinou as suas grandiosas ideias ao campo, antes alargou o seu projecto à cidade e à área circundante. Numa reunião de planeamento em Kattowitz, a 7 de Abril, o seu representante anunciou: «É intenção do Reichsführer estabelecer aqui, no Leste, uma instalação exemplar e a que se preste especial atenção à fixação de homens e mulheres alemães particularmente qualificados.»46 Foram delineados planos para a criação de uma nova cidade alemã de Auschwitz, com cerca de 40 000 pessoas, e estes planos iam a par do desenvolvimento do campo de concentração ali perto. Por esta altura, Hoess vem a reconhecer a utilidade, em potência, da ligação à I. G. Farben. As minutas de uma reunião havida a 27 de Março de 194147, entre oficiais de Auschwitz e representantes da empresa, revelaram como ele procurava tirar partido disso para o campo. Depois, um dos engenheiros da empresa perguntou quantos prisioneiros podiam ser dispensados nos anos seguintes. «O Sturmbannführer (major) Hoess apontou as dificuldades de alojamento de um número significativo de ocupantes no campo de concentração, em Auschwitz, sendo que o principal problema consistia na impossibilidade de continuar a construir alojamentos com rapidez.» O obstáculo era, segundo Hoess, a falta de matérias-primas. A mesma dificuldade, claro, de que se queixara a Himmler e que já previamente tentara, ele próprio, resolver, quando, nas suas voltas pelo campo, surripiara o arame farpado que podia. Hoess contrapôs que se a I. G. Farben ajudasse a «acelerar a expansão do campo, isso seria, afinal, no seu próprio interesse, pois só assim haveria disponibilidade para conseguir um número suficiente de prisioneiros». Finalmente, parecia que ele tinha interlocutores que atendiam às suas dificuldades, já que os empresários da I. G. 68 Farben concordaram em «procurar saber se seria ou não possível ajudarem o campo». No decorrer da mesma reunião, a I. G. Farben concordou em pagar uma soma diária, incluindo tudo, de 3 marcos alemães por cada trabalhador não qualificado e 4 por cada trabalhador com qualificação. Pela «execução do trabalho foi estimado o valor de 75 por cento do preço de um trabalhador alemão normal». Também chegaram a acordo quanto ao valor que a empresa pagaria por metro cúbico de pedra extraída pelos ocupantes do campo do rio Sola, ali ao lado. No plano global, «as negociações decorreram em cordial harmonia. Ambos os lados salientaram o desejo de se ajudarem mutuamente em tudo o que fosse possível». Sendo, como eram, vastos os planos de Himmler e da I. G. Farben para Auschwitz, pareciam menores face às longínquas decisões tomadas pelos estrategos nazis em Berlim. Durante alguns meses, os oficiais do Alto-Comando das Forças Armadas alemãs concentraram-se nos planos para a invasão da União Soviética – nome de código Operação Barbarossa. Numa reunião no seu retiro da Baviera, o Berghof, já em Julho de 1940, Hitler anunciou aos seus comandantes militares que a melhor maneira de pôr um fim rápido à guerra era destruir a União Soviética. Estava convencido de que a Grã-Bretanha só continuava a lutar na esperança de que Estaline pudesse, de facto, quebrar o pacto de não agressão assinado com os nazis em Agosto de 1939. Se os alemães destruíssem a União Soviética, então acreditava que a Grã-Bretanha faria a paz e os nazis seriam donos incontestáveis da Europa. Esta simples decisão havia de moldar o decurso da guerra e, na verdade, o de toda a história da Europa até ao final do século. Em consequência da invasão, 27 milhões de cidadãos soviéticos viriam a morrer, perdas de tal modo grandes que jamais alguma nação tinha sofrido ao longo da história e em consequência de um único conflito. E a guerra iria, ainda, produzir o contexto para a implementação da Solução Final nazi: o extermínio dos 69 judeus. É, assim, impossível compreender o modo como Auschwitz iria desenvolver-se sem situar as alterações do campo no contexto quer do plano da Operação Barbarossa quer na evolução da guerra, no Verão e Outono de 1941. De facto, desde esse momento até ao suicídio de Hitler, a 30 de Abril de 1945, os avanços e recuos da guerra, no Leste, iriam dominar o pensamento nazi. Os nazis acreditavam que não se tratava de uma guerra contra as nações «civilizadas» do Ocidente, mas de uma luta de morte contra os «sub-humanos» judeo-bolcheviques. Por isso, Franz Halder, chefe do Estado-Maior do Exército, registou no seu diário, a 17 de Março de 1941, que na Rússia «deve ser usada a força, na sua forma mais brutal» e «a intelligentsia activada por Estaline tem de ser destruída». Esta atitude significava que era exequível, para os estrategos económicos, avançarem com uma solução devastadora para o problema de alimentação do exército, durante a sua incursão na União Soviética. Um documento de 2 de Maio de 1941 oriundo do Departamento Económico central da Wehrmacht diz que «todo o Exército alemão» teria de «ser alimentado às custas da Rússia». A consequência disto era óbvia: «Dezenas de milhões de homens irão, sem dúvida, morrer à fome se retirarmos do país tudo o que necessitamos.»48 Três semanas mais tarde, a 23 de Maio, outro documento, ainda mais radical, foi produzido pelo mesmo departamento. Intitulado «Guia Político-Económico para a Organização Económica do Leste», esclarecia que o objectivo actual era utilizar os recursos russos não apenas para alimentar o Exército alemão mas, também, para sustentar a Europa controlada pelos nazis. Assim sendo, 30 milhões de pessoas, no Norte da União Soviética, podiam vir a morrer à fome49. Investigações recentes demonstraram que estes documentos, tão chocantes, não representam um processo elaborado como mero expediente; existia uma corrente de pensamento intelectual dentro do movimento nazi que via esta redução da 70 população economicamente justificável. Sustentada numa teoria da «dimensão optimizada da população», os estrategos económicos examinavam qualquer zona e baseavam-se, apenas, no número de pessoas que ali vivia, quer a comunidade fosse lucrativa quer desse prejuízo. Por exemplo, o economista alemão Helmut Meinhold, do Instituto para o Desenvolvimento no Leste, calculou em 1941 que 5,83 milhões de polacos (incluindo idosos e crianças) eram «excedentários» para as necessidades50. A existência desta população excedentária representava uma «verdadeira erosão de capital». As pessoas que constituíam este excesso de população eram Ballastexistenzen – um «desperdício de espaço». Nesta fase, estes economistas não tinham seguido a sua própria lógica – não reclamavam o extermínio físico destes Ballastexistenzen na Polónia. Contudo, faziam notar o modo como Estaline tinha lidado com uma sobrepopulação semelhante na União Soviética. Na Ucrânia, durante os anos 30, uma política de deportação da classe dos cúlaques (camponeses ricos) e a colectivização dos que ficaram levara à morte cerca de 9 milhões de pessoas. Esta teoria também dava suporte intelectual às mortes de civis que se esperava, resultariam da invasão alemã da União Soviética. Para os estrategos nazis, o facto de 30 milhões de pessoas virem a morrer de fome não seria apenas uma vantagem imediata para o avanço do Exército alemão, representaria também um benefício a longo prazo para o povo alemão. Menos pessoas a serem alimentadas na União Soviética não significava só que mais comida podia ser transportada para o Ocidente, para os cidadãos de Munique ou Hamburgo, mas facilitava ainda a rápida germanização dos territórios ocupados. Himmler já chamara a atenção para o facto de a maioria das quintas ou propriedades polacas ser demasiado pequena para sustentar uma família alemã e, agora, acreditava sem dúvida que a morte, em massa, pela fome iria facilitar a criação de grandes estados alemães na União Soviética. Pouco antes de ser iniciada a invasão, Himmler falou com toda a 71 franqueza aos seus colegas, durante uma reunião de fim-de-semana: «O objectivo da campanha russa [é] dizimar 30 milhões de eslavos.»51 A perspectiva da guerra contra a União Soviética continha todas as ideias mais radicais possíveis de imaginar pelas mentes dos líderes nazis. Quando Hitler escreveu a Mussolini para lhe comunicar a decisão de invadir a União Soviética, confessou-lhe que se sentia «espiritualmente livre» e que a «liberdade espiritual» consistia na capacidade de agir, durante o conflito, como lhe apetecesse. Tal como Goebbels, o chefe da propaganda de Hitler, escreveu no seu diário, a 16 de Junho de 1941: «O Führer diz que temos de chegar à vitória quer o façamos a bem ou a mal. De qualquer maneira, temos tanto sobre que responder…» Era também claro, nesta fase do planeamento da guerra, que os judeus da União Soviética iriam sofrer horrivelmente. Num discurso no Reichstag em 30 de Janeiro de 1939, Hitler tinha feito uma ligação explícita entre uma futura guerra mundial e a eliminação dos judeus: «Quero ser hoje, de novo, um profeta: se as finanças internacionais e o judaísmo dentro e fora da Europa conseguirem lançar as nações, mais uma vez, numa guerra mundial, o resultado será não a bolchevização da terra e a vitória dos judeus, mas a aniquilação da sua raça na Europa.»52 Hitler usou o termo «bolchevização» para, de acordo com a teoria racial nazi, salientar a ligação entre comunismo e judaísmo. Para ele, a União Soviética era a sede da conspiração judeo-bolchevique. Não interessava que o próprio Estaline tivesse claras tendências anti-semitas. A fantasia nazi concebia que os judeus puxavam secretamente os cordelinhos por todo o império de Estaline. Para lidar com a perceptível ameaça dos judeus da União Soviética, foram formados quatro Einsatzgruppen. Pelotões operacionais, do mesmo tipo do Serviço de Segurança (parte das SS) e da Polícia de Segurança, tinham anteriormente actuado no início quer da anexação da Áustria, quer na inva72 são da Polónia. Operando imediatamente antes da linha da frente, a sua missão consistia em exterminar «inimigos do Estado». Na Polónia, os Einsatzgruppen conduziram operações de terror em que cerca de 15 000 polacos – a maioria judeus ou elementos da intelligentsia – foram mortos. Esse número iria ser, em muito, ultrapassado pelas acções dos Einsatzgruppen na União Soviética. O efeito mortífero destas unidades não era, de início, proporcional à sua dimensão. O Einsatzgruppe A, ligado ao Exército do Grupo Norte, era o maior, com um contingente de 1000 homens. Os restantes três (B, C e D), ligados aos outros grupos do exército, tinham, cada um, entre 600 e 700 soldados. Pouco antes da invasão, os chefes destes Einsatzgruppen receberam instruções de Heydrich sobre as suas tarefas. As ordens por ele emitidas foram, mais tarde, compiladas numa directiva de 2 de Julho de 1941, que determinava que os Einsatzgruppen ficavam encarregues de assassinar políticos comunistas, comissários políticos e «judeus ao serviço do partido ou do Estado». A obsessão nazi sobre a ligação entre o judaísmo e o comunismo ficava, assim, explicitada na directiva de Heydrich. Durante os primeiros dias da invasão, os Einsatzgruppen movimentaram-se para a União Soviética misturados com o Exército alemão. A progressão era rápida e, a 23 de Junho, a apenas um dia antes do ataque, o Einsatzgruppe A, sob o comando do general da Polícia e Brigadeführer (brigadeiro) das SS Dr. Walter Stahlecker, chegou a Kaunas, na Lituânia. Imediatamente após a chegada, deram início a perseguições e a assassínios de judeus da cidade. Não deixa de ser significativo que a directiva de Heydrich contivesse estas palavras: «Não serão tomadas medidas que interfiram com as purgas que venham a ser feitas por anticomunistas ou antijudeus nos territórios recém-ocupados. Pelo contrário, serão secretamente encorajadas.» O que esta instrução demonstra é que matar «judeus ao serviço do partido ou do Estado» era o mínimo que 73 se esperava da acção dos Einsatzgruppen. Tal como Stahlecker escreveu num relatório subsequente: «A tarefa da polícia de segurança era pôr em marcha estas purgas e com toda a eficácia, de modo que se assegurasse que os objectivos preestabelecidos se pudessem atingir no mais curto espaço de tempo.»53 Em Kaunas, os lituanos que tinham acabado de ser libertados da prisão espancaram os judeus até à morte, nas ruas, sob o olhar benevolente dos alemães. Uma boa parte da multidão que presenciou estas mortes gritava: «Espanquem os judeus», a fim de encorajar os assassinos. Depois do morticínio, um dos assassinos subiu para cima dos cadáveres, pegou num acordeão e tocou o hino nacional lituano. Este era, sem dúvida, precisamente o tipo de acção que Heydrich desejava que os seus homens «encorajassem secretamente». Predominantemente longe das principais cidades, os Einsatzgruppen levavam a cabo o seu trabalho de seleccionar «judeus ao serviço do partido ou do Estado» e de os matar. Na prática, isto queria dizer muitas vezes que todos os judeus do sexo masculino de uma localidade seriam mortos a tiro. Afinal, de acordo com a teoria nazi, qual era o judeu que, na União Soviética, não estava implicitamente «ao serviço do partido ou do Estado»? À medida que os Einsatzgruppen e as unidades SS associadas continuavam a mortandade de judeus soviéticos, o Exército regular alemão também participava nos crimes de guerra. Com base no ignóbil decreto da Operação Barbarossa e na ordem do comissário, os resistentes eram indiscriminadamente abatidos a tiro e eram ordenadas represálias colectivas contra comunidades inteiras. Além disso, os oficiais políticos soviéticos – os comissários – eram mortos, mesmo depois de serem capturados como prisioneiros de guerra. E foi por causa da atitude nazi em relação a estes comissários que Auschwitz viria a estar envolvido no conflito. Ao abrigo de um acordo com as SS, o Exército alemão permitiu a entrada dos homens de Heydrich nos campos de prisioneiros de guerra a fim de 74 extirpar os comissários que tivessem escapado à selecção inicial de prisioneiros na linha da frente. A questão que então se punha era: para onde se vão levar estes comissários? Do ponto de vista nazi, não seria certamente ideal assassiná-los à frente dos seus camaradas, e é essa a razão por que, em Julho de 1944, várias centenas de comissários encontrados nos campos de prisioneiros de guerra foram enviados para Auschwitz. Desde o momento da sua chegada, estes prisioneiros foram tratados de forma diferente da dos outros ocupantes. Por incrível que pareça, face ao sofrimento já existente no campo, este grupo recebia um tratamento ainda pior. Jerzy Bielecki ouviu o som dos maus tratos ainda antes de poder ver: «Ouviam-se imensos gritos, gemidos e choros.» Ele e um amigo dirigiram-se às pedreiras na extremidade do campo onde viram os prisioneiros soviéticos. «Estavam a empurrar os contentores cheios de areia e pedra em passo de corrida», diz. «Era muito difícil. Os suportes com que puxavam os contentores dançavam de um lado para o outro. Não era um trabalho normal, era um inferno criado pelas SS para aqueles prisioneiros de guerra.» Os Kapos, encorajados pelos SS que estavam a assistir, batiam com bastões nos comissários, enquanto estes trabalhavam: «Cheguem-lhes, rapazes!» Mas foi o que viu a seguir que, muito particularmente, chocou Jerzy Bielecki: «Havia quatro ou cinco homens das SS com armas. De entre estes, um ou outro, de vez em quando, carregava-a, olhava para baixo, fazia pontaria e disparava para a mina de pedra. Nessa altura, o meu amigo disse: “O que é que aquele filho-da-puta está a fazer?” Foi quando vimos um dos Kapos à bastonada a um moribundo. O meu amigo, que tinha treino no exército, observou: “Aqueles homens são prisioneiros de guerra. Têm direitos!” O que é certo é que estavam a ser abatidos enquanto trabalhavam.» Foi desta maneira, durante o Verão de 1941, que a guerra na frente leste – a guerra sem regras – chegou a Auschwitz. O assassínio dos comissários soviéticos era, claro, apenas uma pequena parte das tarefas de Auschwitz durante este 75 período. Acima de tudo, o campo permanecia um lugar para oprimir e instilar terror nos prisioneiros polacos. E no esforço tenaz de fazer com que a instituição realizasse esse serviço para o estado nazi, Hoess tentava constantemente limitar o número de fugas. Apenas 2 pessoas tentaram fugir em 1940. Mas esse número aumentou para 17 em 1941 (e viria a subir para 173 em 1942, 295 em 1943 e 312 em 1944)54. Dado que nos anos iniciais a grande maioria de ocupantes era polaca, e os locais simpatizavam com a sua causa, quando um prisioneiro escapava à segurança do campo, tentavam sempre impedir-se a sua recaptura – fazendo-o desaparecer no meio das movimentações da população que eram suscitadas pelas reorganizações étnicas. Uma vez que muitos dos prisioneiros trabalhavam longe do campo, durante o dia, nem sequer era necessário ultrapassar o arame electrificado que o circundava. Precisavam, apenas, de passar um único obstáculo, o perímetro da vedação exterior, a chamada Grosse Postenkette. A política de Hoess para evitar estas fugas era simples: retaliação brutal. Se os nazis não conseguissem capturar a pessoa que se tinha evadido, prendiam os seus familiares. Seleccionavam ainda dez prisioneiros do bloco a que ele pertencera e levavam-nos para a morte de um modo deliberadamente sádico. Roman Trojanowski participou em três selecções distintas em 1941, após terem sido detectadas fugas do seu bloco. «O Lagerführer e outros olhavam os prisioneiros nos olhos e escolhiam», conta ele. «Claro que os que apresentavam pior aspecto, os mais fracos, eram os que tinham maior probabilidade de ser escolhidos. Não faço ideia em que é que pensei, durante a selecção. A única coisa que queria era não os olhar nos olhos – podia ser perigoso. O melhor era ficar direito para não dar nas vistas. E quando Fritzsch parava em frente de alguém e apontava o dedo, não havia a certeza para onde estava a apontar, e era como se o coração deixasse de bater.» Trojanowski lembra-se de uma selecção que sintetizava a mentalidade de Karl Fritzsch, o Lagerführer: «Durante essa selecção, 76 Fritzsch reparou num homem que estava de pé, a tremer, perto de mim. Perguntou-lhe: “Por que é que estás a tremer?” E, através do tradutor, o homem disse: “Estou a tremer porque estou com medo. Tenho vários filhos e quero criá-los, não quero morrer.” E Fritzsch respondeu: “Presta bem atenção, e que isto não volte a acontecer porque, se não, mando-te para ali.” E apontou para a chaminé do crematório. O homem não compreendeu e, por causa daquele gesto, deu um passo em frente. Então, o tradutor disse: “O Lagerführer não te está a seleccionar, dá um passo atrás.” Mas Fritzsch emendou: “Deixa, se deu este passo é porque é o destino dele.”» Os ocupantes seleccionados eram levados para uma cela, onde ficavam até morrerrem à fome, num processo lento e agonizante. Roman Trojanowski soube que uma pessoa que ele conhecia, à falta de alimentos, acabou por comer os próprios sapatos. Mas, no decorrer do Verão de 1941, as celas da fome eram ainda o lugar de um dos poucos acontecimentos nesta história que ofereciam algum consolo para os que acreditavam na possibilidade redentora do sofrimento. Maksymilian Kolbe, um padre de Varsóvia, da Igreja Católica Romana, foi forçado a participar numa selecção para a cela da fome, depois de um ocupante do seu bloco se ter, aparentemente, evadido. Um homem que estava junto dele, Franciszek Gajowniczek, fora seleccionado por Fritzsch, mas alegou que tinha mulher e filhos e queria viver. Kolbe ouviu-o e ofereceu-se para o substituir. Fritzsch concordou e Kolbe foi atirado para a cela da fome entre os outros dez seleccionados. Duas semanas depois, os quatro que sobreviveram, incluindo Kolbe, acabaram por ser assassinados com uma injecção letal. Kolbe foi canonizado pelo papa polaco João Paulo II, em 1982. A sua história causou uma grande controvérsia, e não é de somenos importância o facto de uma revista que ele editava, antes de ser preso, conter matéria anti-semita. O que permanece inalterável, contudo, é a bravura de Kolbe ao sacrificar a sua própria vida por outrem. 77 Nesse mesmo mês, Julho de 1941, uma série de decisões tomadas a milhares de quilómetros levou a que Auschwitz se tornasse um lugar ainda mais sinistro. Os prisioneiros estavam, pela primeira vez, sujeitos a ser mortos por meio de gás – mas não do modo pelo qual o campo se tornou ignobilmente conhecido. Esses ocupantes viriam a ser mortos porque se tornaram vítimas do programa nazi da «eutanásia de adultos». Esta operação assassina teve a sua raiz num decreto do Führer de Outubro de 1939, que permitia que os médicos seleccionassem pacientes mentais crónicos, ou fisicamente deficientes, e os matassem. No começo, foram usadas injecções químicas que matavam os deficientes, mas, mais tarde, preferiram o método das garrafas de monóxido de carbono. Câmaras de gás, feitas de modo a parecerem cabinas de duche, foram instaladas como centros especiais de morte, na maioria em antigos hospitais psiquiátricos. Poucos meses antes da publicação do decreto de Outubro de 1939, Hitler autorizara a selecção e a morte de crianças deficientes. Ao fazê-lo, estava a seguir a lamentável lógica da sua própria visão ultradarwinista do mundo. Essas crianças perdiam a vida porque eram fracas e constituíam como que um dreno para a sociedade alemã. Como crente profundo da teoria racial, preocupava-o que essas crianças viessem a reproduzir-se na vida adulta. O decreto que alargou o programa da eutanásia aos adultos já vinha datado de 1 de Setembro e do início da guerra – outro sinal de que o conflito funcionava como catalisador, a fim de radicalizar as teorias nazis. Os deficientes eram, para os nacionais-socialistas fanáticos, outro exemplo de Ballastexistenzen, agora um verdadeiro peso para um país em guerra. O Dr. Pfannmüller, uma das figuras mais destacadas dentro do programa para a eutanásia de adultos, expressava os seus sentimentos desta maneira: «É-me insuportável a ideia de que o melhor, a flor da nossa juventude, perca a vida na linha da frente para que os mentecaptos e os elementos associais e irresponsáveis possam ter uma existência segura num asilo.»55 Não é de 78 todo surpreendente, dado este tipo de mentalidade, que os critérios de selecção não incluíssem apenas a gravidade da doença mental ou física, mas, também, o passado religioso ou étnico dos pacientes. Assim, os judeus dos hospitais psiquiátricos eram gaseados sem qualquer selecção e, no Leste, métodos draconianos semelhantes eram usados para exterminar os pacientes polacos dos asilos. Entre Outubro de 1939 e Maio de 1940, cerca de 10 000 doentes mentais foram mortos na Prússia Ocidental e no Warthegau, muitos por meio de uma nova técnica – uma câmara de gás volante. As vítimas eram despejadas para um compartimento, hermeticamente fechado, na parte de trás de um camião reconvertido e, depois, asfixiadas com monóxido de carbono engarrafado. Muito importante ainda é que o espaço, assim libertado, servia para alojar os alemães recém-chegados. No princípio de 1941, a campanha para a eutanásia de adultos estendeu-se aos campos de concentração numa acção denominada 14f13 e o programa chegou a Auschwitz em 28 de Julho. «À noite, enquanto se ouvia o toque para reunir, diziam que os doentes podiam sair para se tratarem», relata Kazimierz Smoleń56, na altura um prisioneiro político do campo. «Alguns acreditavam. Todos tinham esperança. Mas eu não estava assim tão convencido das boas intenções dos SS.» Nem Wilhem Brasse estava, que ouviu o seu Kapo, um comunista alemão, descrever o que pensava ser o destino dos doentes: «Ele disse-nos que no campo de Sachsenhausen as pessoas eram levadas dos hospitais e, depois, pura e simplesmente desapareciam.» Cerca de 500 doentes – num grupo de voluntários e seleccionados – foram encaminhados para fora do campo, para um comboio que os esperava. «Estavam todos exaustos», diz Kazimierz Smoleń. «Não havia ninguém saudável. Era uma caminhada de espectros. No fim da fila viam-se enfermeiras a levarem pessoas em padiolas. Era macabro. Ninguém os saudava ou lhes sorria. Os doentes estavam contentes e diziam: “Informem a minha mulher e os meus filhos sobre 79 mim.”» Para grande alegria dos prisioneiros que permaneceram, dois dos Kapos mais importantes do campo também foram transportados, um deles, o odiado Krankemann. Ouvia-se no campo o rumor de que tinha caído em desgraça junto do seu protector, o Lagerführer Fritzsch. Ambos os Kapos, tal como Himmler tinha previsto, de volta à vida prisional, seriam quase de certeza assassinados no comboio antes de chegarem ao seu destino. Todos os outros ocupantes que deixaram o campo, nesse dia, morreram numa câmara de gás de um hospital psiquiátrico reconvertido, em Sonnenstein, perto de Danzig. Os primeiros prisioneiros de Auschwitz a serem gaseados não foram, portanto, mortos no campo, mas transportados para a Alemanha, e não foram assassinados por serem judeus, mas porque já não podiam trabalhar. O Verão de 1941 não foi apenas um tempo crucial no desenvolvimento de Auschwitz, foi também um momento decisivo, quer no decurso da guerra contra a União Soviética, quer na política nazi em relação aos judeus soviéticos. À primeira vista, durante Julho, a guerra parecia estar a correr muito bem, com a Wehrmacht a fazer grandes progressos contra o Exército Vermelho. Logo a 3 de Julho, Franz Halder, do Alto-Comando alemão, escrevia no seu diário: «Não é provavelmente nenhum exagero dizer que a campanha russa foi ganha em duas semanas.» Goebbels fez ecoar estas declarações no seu próprio diário, a 8 de Julho, quando escreve: «Já ninguém tem dúvidas de que sairemos vitoriosos na Rússia.» Em meados de Julho, as Unidades Panzer tinham avançado mais de quinhentos quilómetros para o interior da União Soviética e, perto do final do mês, um oficial dos serviços secretos soviéticos – às ordens de Beria, o homólogo soviético de Himmler – contactava o embaixador búlgaro em Moscovo, para lhe propor actuar como intermediário com os alemães, a fim de pedir a paz57. Contudo, no terreno, a situação era mais complexa. A política de fome que fora o aspecto central da estratégia da 80 invasão levara a que, por exemplo, Vilnius, capital da Lituânia, tivesse abastecimento de alimentos apenas para duas semanas. Goering foi muito claro ao proclamar a política nazi, quando disse que as únicas pessoas que tinham direito a alimentos, dados pelas forças invasoras, eram aquelas que «desempenhavam funções importantes para a Alemanha»58. Havia ainda por resolver a questão dos familiares dos judeus do sexo masculino que tinham sido assassinados pelos Einsatzgruppen. Estas mulheres e crianças, que, na maioria, tinham perdido quem as sustentava, encontravam-se sujeitas a morrer muito rapidamente. Não estavam, decerto, «a desempenhar funções importantes para a Alemanha». Entretanto, previa-se uma crise de fornecimento de alimentos, não apenas na frente leste, mas também na Polónia, no gueto de Lódź. Em Julho, Rolf-Heinz Hoeppner, das SS, escreveu a Adolf Eichmann, encarregado da secção que geria as questões judaicas do Departamento Central de Segurança do Reich: «Este Inverno há o perigo de os judeus não poderem continuar a ser alimentados. Talvez devêssemos ponderar, honestamente, se a solução mais humana não seria acabar com os que não servem para trabalhar, por meio de um qualquer estratagema rápido. De qualquer forma, seria mais apropriado do que deixá-los morrer à fome.» (É importante notar que Hoeppner escreve sobre a eventual necessidade de matar os judeus «que não servem para trabalhar» – e não todos os judeus. De modo cada vez mais notório, desde a Primavera de 1941 que os nazis vinham a fazer uma distinção entre os judeus que eram úteis aos alemães e os que não eram, distinção que viria a ser, mais tarde, cristalizada nas ignóbeis «selecções» de Auschwitz.) No final de Julho, Himmler deu ordens que vinham resolver a questão daqueles judeus que, para os nazis, fossem considerados «comedores sem utilidade», pelo menos em relação à frente leste. Reforçou os Einsatzgruppen com unidades de cavalaria das SS e batalhões de polícia. Por fim, cerca de 81 40 000 homens estariam envolvidos na matança, um aumento dez vezes superior ao das estruturas iniciais dos Einsatzgruppen. Este reforço maciço de homens obedecia a uma razão: a política de morte, no Leste, devia alargar-se de modo a incluir mulheres e crianças judias. A ordem para esta acção foi chegando, nas semanas seguintes, a vários comandantes dos Einsatzgruppen e era, muitas vezes, dada pelo próprio Himmler, quando fazia rondas pelos campos. Porém, a meio de Agosto, todos os comandantes dos esquadrões da morte já estavam cientes do alargamento das suas funções. Este momento marca um ponto de viragem no processo. Uma vez que as mulheres e as crianças também deviam ser abatidas, a perseguição aos judeus entrou numa fase conceptual completamente diferente. Quase todas as políticas nazis antijudaicas, durante a guerra e até este momento, haviam sido potencialmente genocidas, e tanto as mulheres como as crianças tinham vindo a ser vitimizadas, quer nos guetos quer na falhada emigração de Nisko. Mas isto era diferente. Os nazis decidiram juntar as mulheres e as crianças, fazê-las despirem-se, alinhá-las junto a um poço aberto e abatê-las a tiro. Não era possível pretender que um bebé representasse um perigo iminente para o esforço de guerra, mas o soldado alemão, agora, olharia para a criança pequena e não hesitaria em puxar o gatilho. Nesta época crucial, a alteração política ficou a dever-se à conjugação de inúmeros factores. Uma pré-condição importante foi decerto o facto de as mulheres e as crianças judias, na União Soviética, constituírem um «problema» para os nazis – problema que os próprios criaram com o assassínio dos homens e o fomento da política da fome, no Leste. Mas não era esta a única razão por que se alargou o domínio da morte. Em Julho, Hitler anunciou que queria um «Jardim do Éden» alemão, no Leste, e isso implicava não haver lugar para judeus nesse paraíso. (E não é certamente acidental que Himmler tenha ordenado que se incluíssem as mulheres e as 82 crianças logo a seguir a diversas reuniões que teve com Hitler, em Julho; esta iniciativa não ocorreria se não fosse essa a sua vontade.) Já no decurso destas acções praticadas pelos esquadrões da morte sobre os homens judeus, tudo indica ser um passo lógico, na perspectiva ideológica nazi, reforçar estes esquadrões com mais homens com o intuito de «limparem», completamente, o novo «Jardim do Éden». Hans Friedrich59 foi membro de uma das unidades de infantaria das SS enviada para leste no Verão de 1941, para reforçar os Einsatzgruppen. A sua brigada operou primeiro na Ucrânia e ele diz que não encontraram qualquer espécie de resistência por parte dos judeus que iam matar… «Eles [os judeus] estavam em completo estado de choque, profundamente assustados e petrificados. Podia-se fazer deles o que se quisesse. Tinham-se resignado ao seu destino.» Os SS e os seus colaboradores ucranianos forçavam os judeus a sair das suas aldeias e obrigavam-nos a alinharem junto a uma vala «funda e larga. Tinham de se colocar de modo que, quando fossem abatidos, caíssem directamente para dentro da vala. Isto acontecia vezes sem conta. Era preciso também que alguém descesse à vala e verificasse, rigorosamente, se havia algum vivo, pois nunca acontecia que fossem todos mortos ao primeiro tiro. E se alguém estivesse apenas ferido, davam-lhe um tiro de pistola». Friedrich admite que ele próprio matou judeus nessas valas60. Disse que não tinha pensado em «nada» quando viu as suas vítimas a uns metros à frente: «Pensei, apenas “Concentra-te para acertares.” E só isso! Quando se chega ao ponto de estar ali com uma arma, pronta para atirar… só há uma coisa, uma mão calma para o tiro ser certeiro. Mais nada.» A consciência nunca o perturbou quanto às mortes cometidas, nunca teve um pesadelo sobre isso ou acordou de noite, questionando-se sobre o que tinha feito. Documentos confirmam que Friedrich era um membro da Primeira Brigada de Infantaria das SS que entrou na Ucrâ83 nia a 23 de Julho. Pela distância no tempo ou pela falta de vontade de se incriminar ainda mais, não especifica os locais exactos onde levou a cabo essas matanças. Os registos revelam que a sua brigada participou num sem-número de assassínios de judeus em vários lugares conhecidos. Uma dessas acções ocorreu no Oeste da Ucrânia, a 4 de Agosto de 1941. Mais de 10 000 judeus, das aldeias vizinhas, foram forçados a sair de casa e reunidos na cidade de Ostrog. «Cedo, pela manhã [de 4 de Agosto], chegaram os carros e os camiões», diz Vasyl Valdeman61, nessa altura com doze anos e membro de uma família judia. «Estavam armados e traziam cães.» Tendo cercado a cidade, os SS forçaram milhares de judeus a saírem em direcção a uma aldeia onde havia uma área de solo arenoso. «Todos percebemos que íamos ser fuzilados», diz Vasyl Valdeman, «mas era impossível os SS conseguirem atirar sobre tanta gente. Chegámos lá às dez [da manhã] e mandaram-nos sentar. Estava muito calor. Não havia comida nem água e as pessoas, pura e simplesmente, urinavam no chão. Foram momentos muito duros. Alguém disse que era preferível levar um tiro do que ficar sob aquele calor. Uma pessoa desmaiou e algumas outras morreram, simplesmente, de medo.» Oleksiy Mulevych62, um aldeão não judeu, presenciou o que aconteceu a seguir. Subiu ao telhado de um celeiro e viu pequenos grupos, de 50 ou 100 judeus, a serem levados do campo e obrigados a despir-se. «Alinharam-nos em redor de uma vala e os oficiais ordenaram aos seus soldados que fizessem mira, cada um ao seu judeu… Os judeus choravam e gritavam. Sentiram que estavam a ver a própria morte… Depois, todos os soldados disparam e os judeus caíram de imediato. O oficial escolheu, então, judeus possantes para atirar os outros para dentro da vala.» Os tiros continuaram pelo dia fora. Vários milhares de judeus – homens, mulheres e crianças – foram assassinados, mas, na prática, havia judeus de mais para que os SS conseguissem matar toda a gente numa única acção. Assim, ao cair da 84 noite, os que restavam, incluindo Vasyl Valdeman e a sua família, foram obrigados a regressar a Ostrog. Nesta e noutras acções subsequentes, Vasyl perdeu o pai, a avó, o avô, dois irmãos e dois tios, mas ele e a mãe conseguiram fugir do gueto e foram escondidos por aldeões locais, durante três anos, até que o Exército Vermelho libertou a Ucrânia. «Não sei nada sobre as outras aldeias, mas as pessoas da nossa ajudaram muito os judeus.» Uns dias depois, Oleksiy Mulevych saiu em direcção aos campos de morte e teve uma visão terrível: «A areia estava a mover-se. Julgo que havia pessoas feridas que se mexiam debaixo da areia. Fiquei com muita pena. Quis ajudar, mas era claro que, mesmo que tirasse alguém da vala, não a poderia tratar.» «Tínhamos cães em casa», diz Vasyl Valdeman, «mas nunca fomos tão cruéis com eles como os nazis foram connosco… Pensava nisto o tempo todo: “O que torna estas pessoas tão cruéis?”» Hans Friedrich tinha resposta para esta questão – o ódio: «Para ser honesto, não tenho simpatia [pelos judeus] porque eles prejudicaram-me tanto, a mim e aos meus pais, que não posso esquecer.» Como resultado, Friedrich «não lamenta» os judeus que matou. «O meu ódio aos judeus é demasiado forte.» Quando pressionado, admite que sentiu, e ainda sente, uma justificação para a morte deles: «vingança». Um olhar sobre o passado de Friedrich é crucial para compreender como se sentiu capaz de tomar parte nestas matanças, quer como se sente, ainda hoje, com coragem para justificar as suas acções. Nascera em 1921, numa parte da Roménia dominada por alemães. Durante o seu crescimento, ele e a família habituaram-se a odiar os judeus. O pai era camponês e os judeus da localidade funcionavam como intermediários. Compravam-lhes os produtos e vendiam-nos no mercado. Friedrich aprendeu com os pais que os judeus tinham demasiados lucros com os seus negócios e que ele e a família eram, muitas vezes, enganados. «Gostava de o ter visto», acrescenta, «se tivesse tido as experiências que nós tivemos… se fosse camponês e quisesse vender, por exemplo, um 85 porco e não pudesse. Só era possível através do mercado judeu. Tente pôr-se na nossa posição. Já não éramos donos da nossa própria vida.» Como adolescente, nos anos 30, ele e os amigos pintaram cartazes que diziam: «Não comprem aos judeus. Os judeus são a nossa desgraça.» E penduraram-nos à entrada de uma loja judia. Sentiu-se «orgulhoso» ao fazê-lo, porque tinha «alertado contra os judeus». Leu a propaganda do estado nazi, em particular o violentamente anti-semita Der Stürmer, e achou que se ajustava perfeitamente à sua visão do mundo. Em 1940, alistou-se nas SS «porque o Reich alemão estava em guerra» e ele queria «participar». Acredita que «havia ligações entre os judeus e o bolchevismo – havia evidências suficientes que o provavam». Já como membro das SS, avançou pela Ucrânia, no Verão de 1941, achando que não estava a entrar num país «civilizado como a França», mas algures, no melhor dos casos, «meio civilizado» e «muito para lá da Europa». Depois, quando lhe ordenaram que matasse judeus, fê-lo com toda a vontade, não esquecendo nunca que estava a vingar-se dos comerciantes que, alegadamente, tinham enganado a família. Que aqueles fossem judeus diferentes – judeus, na verdade, de outro país – não tinha importância. Tal como ele explica: «São todos judeus.» Longe de lamentar ter participado no extermínio dos judeus, Hans Friedrich não mostra o menor constrangimento. Embora nunca tenha posto isto nestes termos, revela todos os sinais de estar orgulhoso do que ele e os seus correligionários fizeram. A justificação para as suas acções é muito clara e consciente: os judeus prejudicaram-no, bem como à sua família, e o mundo é um lugar melhor sem eles. Num momento de franqueza, Adolf Eichmann fez notar que só o facto de saber que tinha participado no assassínio de milhões de judeus lhe deu uma tal satisfação que havia de «morrer feliz». É fácil prever como Hans Friedrich deve ter sentido exactamente a mesma emoção. 86 Contudo, enquanto no Verão de 1941 este morticínio aumentava na frente leste, não é tão claro que haja sido este o momento em que a Solução Final – abarcando mais milhões de judeus em que também se encontravam os alemães, os polacos e os da Europa Ocidental – tenha sido decidida. Há um documento que talvez sugira a ligação entre ambos. A 31 de Julho, Heydrich obteve a assinatura de Goering num documento que determinava: «Em complemento da missão referente à solução do problema judaico, por meio da emigração e evacuação, por si ordenada em 24 de Janeiro de 1939, encarrego-o de apresentar um projecto global sobre as medidas para a organização e execução da Solução Final que se pretende para a questão judaica, bem como de todo o material preparatório necessário.» A oportunidade deste documento é crucial: Goering assina a autorização para a Solução Final dos judeus sob o controlo alemão exactamente no momento que os esquadrões da morte fuzilam mulheres e crianças judias no Leste. Porém, uma descoberta recente, no Arquivo Especial de Moscovo, lança dúvidas sobre o significado particular desta autorização de 31 de Julho. Este documento contém uma nota de Heydrich, datada de 26 de Março de 1941, que afirma: «No que diz respeito à questão judaica, dei conhecimento sumário ao marechal do Reich [Goering] e submeti à sua apreciação o meu novo projecto que ele autorizou, com uma modificação respeitante à jurisdição de Rosenberg, e para que pediu reapreciação.»63 O «novo projecto» de Heydrich estava muito próximo de ser uma resposta nazi à nova política antijudaica, suscitada pela iminente invasão da União Soviética. A ideia de transportar os judeus para África fora abandonada e, no começo de 1941, Hitler deu ordens a Heydrich para que preparasse um esquema de deportação dos judeus para qualquer lugar sob controlo germânico. Uma vez que se esperava que a guerra contra a União Soviética não durasse mais do que umas poucas semanas e terminasse antes do Inverno russo, seria razoável, tal como pensaram Heydrich 87 e Hitler, que os judeus fossem arrastados para leste, nesse Outono, o que os levaria à solução interna do autocriado problema judaico. Na terra de ninguém da Rússia do Leste, os judeus haveriam de sofrer atrozmente. Tal como a autorização de 31 de Julho torna claro, Heydrich foi o primeiro responsável pela tarefa de planificar a «solução do problema judaico pela emigração e evacuação» no início de 1939, e isso eventualmente justifica, a partir desse momento, a ocorrência de discussões sobre a sua jurisdição e espaço de manobra dentro do estado nazi. Alfred Rosenberg (mencionado no documento de 26 de Março), que fora formalmente designado por Hitler para ministro dos Territórios Ocupados do Leste, em 17 de Julho de 1941, era uma ameaça potencial ao poder de Heydrich na região, e a autorização de 31 de Julho pode ter sido emitida para permitir a Heydrich clarificar a sua própria posição. Fazendo o balanço, os novos factos não sustentam a prevalência da ideia inicial de que houvesse, da parte de Hitler, na Primavera e Verão de 1941, qualquer decisão conclusiva quanto à eliminação de todos os judeus da Europa, sendo a autorização de 31 de Julho uma peça fundamental. A hipótese mais provável é que todas as chefias nazis focassem a sua atenção na guerra contra a União Soviética, sendo a decisão de matar mulheres e crianças, no Leste, vista como uma medida prática de resolver um problema imediato e específico. Apesar de tudo, esta solução particular iria criar novos problemas e, em consequência, novos métodos de extermínio teriam de ser delineados, a fim de permitir que judeus e outros fossem abatidos ainda em muito maior escala. Um dos momentos vitais neste processo de transformação ocorreu a 15 de Agosto, quando Heinrich Himmler visitou Minsk e viu, em primeira mão, o trabalho dos seus esquadrões da morte. Com ele a assistir a uma execução estava Walter Frentz64, um oficial da Luftwaffe que trabalhava como operador de câmara nos quartéis-generais de Hitler. Não foi Frentz 88 o único a ficar abalado pelas mortes, ele teve bem a noção de que o mesmo aconteceu a outros membros do esquadrão. «Andei pelo local da execução», diz ele, «e, pouco depois, o comandante da polícia auxiliar aproximou-se de mim por eu ser da força aérea. “Meu tenente”, disse, “não aguento mais. Pode-me tirar daqui?” Respondi: “Bom! Eu não tenho qualquer influência na polícia. Sou da força aérea, o que é que acha que posso fazer?” “Certo!”, replicou. “Eu não aguento mais isto. É horrível!”» Este não foi o único oficial a ficar particularmente traumatizado depois dos fuzilamentos de Minsk. O Obergruppenführer (tenente-general) das SS von dem Bach-Zelewski, que também testemunhou estes acontecimentos, comentou com Himmler: «Reichsführer, estes foram apenas umas centenas… Veja o olhar dos homens deste Kommando, veja como estão profundamente perturbados! Estes homens estão condenados para o resto das suas vidas. Que tipo de seguidores estamos a treinar aqui? Só neuróticos ou selvagens!»65 A consequência para o próprio Bach-Zelewski foi ter ficado psicologicamente afectado por estas mortes, sofrendo de «visões» relacionadas com os assassínios em que ele próprio participara. Como resultado destes protestos e do que ele, pessoalmente, testemunhara, Himmler ordenou que se encontrasse um método que provocasse menos danos psicológicos aos seus homens. Com esse intuito, o Dr. Albert Widmann, um Untersturmführer (segundo-tenente) das SS, do Instituto Técnico da Polícia Criminal, viajou poucas semanas mais tarde para leste a fim de se encontrar com Artur Nebe, o comandante do Einsatzgruppe B, no seu quartel-general, em Minsk. Widmann já anteriormente tinha colaborado nos projectos da técnica de gasear utilizada para matar doentes mentais. Era agora a vez de trazer os seus conhecimentos para leste. Por incrível que pareça, um dos primeiros métodos que Widmann tentou, na perspectiva de «melhorar» o processo na União Soviética, foi o de fazer explodir as vítimas. Vários 89 doentes mentais eram colocados num buraco cheio de explosivos. Wilhelm Jaschke, capitão no Einsatzkommando 8, testemunhou o que aconteceu a seguir: «A visão era aterradora. A explosão não tinha sido suficientemente eficaz e alguns feridos, aos gritos, iam-se arrastando para fora do búnquer…66 O búnquer ruíra… Havia pedaços de corpos espalhados pelo chão, outros pendurados nas árvores. No dia seguinte, recolhemos todos os pedaços e atirámo-los para dentro do buraco. Os que estavam nos ramos mais altos das árvores ficaram lá.»67 Com isto, Widmann percebeu que esta experiência com explosivos não era, claramente, o que Himmler pretendia e, assim, tentou outro método. O programa da eutanásia para adultos, utilizando garrafas de monóxido de carbono, fora usado com sucesso, mas tornava-se impraticável transportar grandes quantidades de contentores ao longo de milhares de quilómetros para leste. Talvez ele e o seu pessoal tenham pensado num modo diferente de usar o monóxido de carbono. Umas semanas antes, Widmann e o seu chefe, o Dr. Walter Hess, numa carruagem do metropolitano de Berlim, conversaram algum tempo sobre a desgraça que quase acontecera a Artur Nebe. Ele voltava de uma festa onde tinha bebido de mais. Estacionou na garagem sem desligar o motor e adormeceu. O resultado foi que quase morreu lá dentro, devido ao monóxido de carbono exalado. Foi, tudo indica, a lembrança da bebedeira de Nebe que levou Widmann a tentar uma experiência com gás usando um escape de automóvel ligado, por um tubo, à cave de tijolo de um hospital psiquiátrico em Mogilev, a leste de Minsk. Um grupo de doentes mentais foi fechado no compartimento ao mesmo tempo que se pôs o motor a trabalhar. Do ponto de vista nazi, no início, não pareceu um sucesso: o monóxido de carbono que saía do carro não era suficiente para matar os pacientes. Tudo foi rectificado quando substituíram o automóvel por um camião. Esta experiência, de novo na perspectiva nazi, foi um sucesso. 90 Widmann descobrira uma maneira barata e eficiente para matar pessoas, que minimizava o impacte psicológico do crime nos assassinos. Assim, no Outono de 1941, no Leste, Widmann promoveu uma mudança significativa nos métodos nazis – isto, com toda a certeza. Mas como e quando foi tomada a decisão de Auschwitz vir a tornar-se uma componente essencial do extermínio em massa dos judeus continua a ser um tema controverso. Uma parte desta dificuldade reside no testemunho de Hoess. Não só porque, por um lado, ele pretendeu apresentar-se como vítima das exigências de Himmler e do seu pessoal incompetente, como, também, as datas por ele apontadas são, por vezes, pouco fiáveis. Hoess afirma: «No Verão de 1941, Himmler chamou-me e explicou: “O Führer ordenou a Solução Final para a questão dos judeus – e temos de levar a cabo esta tarefa. Por questões de transporte e de isolamento, escolhi Auschwitz.”»68 Na realidade, Hoess encontrou-se com Himmler em Junho de 1941 para explicar ao Reichsführer das SS como é que os planos para Auschwitz estavam a desenvolver-se, de acordo com a expansão já começada pela I. G. Farben, mas não é crível que, nessa altura, lhe tivesse sido comunicado que Auschwitz faria parte da Solução Final. Em primeiro lugar, não há qualquer outra evidência de que a Solução Final, no sentido do extermínio mecanizado dos judeus, em campos de morte, já estivesse nesta fase planeada. A reunião prevê tanto o assassínio inicial dos judeus do sexo masculino pelos Einsatzgruppen, no Leste, como o subsequente aumento dos mesmos e que começaram no fim de Julho. Em segundo, Hoess contradiz-se nas datas, acrescentando que «nessa altura, já havia no Governo Geral outros três campos de extermínio: Belżec, Treblinka e Sobibór». Mas nenhum deles existia ainda no Verão de 1941, e nenhum viria a funcionar antes do início de 1942. Alguns estudiosos argumentam que, apesar da contradição interna desta afirmação, talvez Hoess já tivesse recebido 91 ordens, em Junho de 1941, no sentido de providenciar algumas estruturas para o extermínio em Auschwitz. Mas os factos que levaram ao desenvolvimento da capacidade de matar, no campo, durante o Verão e o início do Outono de 1941, só de modo muito vago confirmam que tudo isto tenha sido decidido na reunião de Junho com Himmler. A explicação mais plausível para a afirmação de Hoess é que ele tenha, pura e simplesmente, esquecido a data. As conversações com Himmler, tal como ele as descreve, podiam ter acontecido, mas apenas no ano seguinte, nunca em 1941. Isto não significa, evidentemente, que o campo de Auschwitz não estivesse implicado nos processos de morte desse Verão. Na realidade, com a expulsão dos doentes como parte do programa 14f13 e o fuzilamento dos comissários soviéticos nas pedreiras, as autoridades de Auschwitz enfrentaram um problema não muito diferente daquele que os Einsatzgruppen já tinham enfrentado no Leste: a necessidade de encontrar métodos de extermínio mais eficazes. O momento decisivo para a escolha de Auschwitz parece ter ocorrido quando Hoess não estava no campo, numa ocasião indeterminada entre final de Agosto e princípio de Setembro. Fritzsch, o seu delegado, concebeu um novo fim para uma substância química geralmente utilizada para desinfestar o campo de insectos – ácido prússico cristalizado (cianeto), vendido em latas e comercializado sob o nome de «Zyklon» (de ciclone) «Blausäure» (de ácido prússico), popularmente conhecido por Zyklon B. Fritzsch transpôs, para Auschwitz, a mesma lógica que Widmann estava a utilizar no Leste. Se o Zyklon B podia ser usado para matar piolhos, por que não usá-lo para acabar com pragas humanas? E já que o Bloco 11 era o local de execução do campo em que as caves podiam ser seladas, por que não usá-lo como lugar natural para fazer uma experiência? Nessa altura, Auschwitz não era um campo em que esta acção pudesse ocorrer secretamente. A distância entre os 92 blocos era de escassos metros e a curiosidade era imensa. Daí que as experiências de Fritzsch se tornassem logo do conhecimento comum. «Eu vi-os carregar terra em carrinhos de mão para isolarem as janelas», diz Wilhelm Brasse. «E um dia vi-os trazer do hospital, em macas, os que estavam gravemente doentes e levá-los para o Bloco 11.» Mas não eram apenas os doentes que eram levados para o Bloco 11. Eram também elementos do outro grupo alvo que as autoridades de Auschwitz tinham previamente definido e que queriam matar: os comissários soviéticos. «Juntaram os prisioneiros de guerra soviéticos na cave», diz August Kowalczyk. «Mas acontecia que o gás não funcionava sempre bem e muitos deles ainda estavam vivos no dia seguinte. Assim, reforçavam a dose e lançavam mais cristais.» Quando Hoess voltou, Fritzsch relatou-lhe as novidades das experiências. Hoess assistiu às novas emanações de gás no Bloco 11. «Protegido por uma máscara contra o gás, eu próprio assisti ao morticínio. No exacto momento em que o Zyklon B foi disseminado, a morte chegou às celas apinhadas de gente. Um grito breve, quase suave, e era o fim.» Mas era um facto que a morte, no Bloco 11, estava longe de ser instantânea. Era, no entanto, certo para os nazis em Auschwitz que o uso do Zyklon B tornava o processo mais «suave». A partir de então, os assassinos já não tinham de olhar as vítimas nos olhos, enquanto as matavam. Hoess relatou como estava «aliviado» por se ter encontrado aquele novo método e como isso o «poupava» a um «banho de sangue». Estava enganado. O verdadeiro banho de sangue mal tinha começado. 93