Décima Sexta edição - Composição - Revista de Ciências Sociais

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Décima Sexta edição - Composição - Revista de Ciências Sociais
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)
Composição : revista de ciências sociais / Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul. – a. 9, n. 16 (Janeiro – Junho de 2015) - Campo Grande, MS : A
Universidade, 2015. .
Semestral
Revista eletrônica: http://www.revistacomposicao.ufms.br/index.php
ISSN 1983-3784
1. Ciências Sociais - Periódicos. 2. Ciências Humanas – Periódicos. I.
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
CDD (22) 300.5
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Normas e Critérios para publicação
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
Reitora: Célia Maria da Silva Oliveira
Composição, Revista de Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul
ISSN 1983-3784
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Ana Maria Gomes
Iracema Cunha Costa
Manoel Rebelo Junior
Coordenação Geral: Aparecido Francisco dos Reis
Editoração eletrônica:
Aparecido Francisco dos Reis
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Revisão: Os próprios autores
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Revista indexada em:
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Art. 1 – Composição, Revista de Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, destina-se à publicação de matérias que, pelo seu conteúdo, possam
contribuir para a formação de pesquisadores e para o desenvolvimento científico, além de
permitir a constante atualização desconhecimentos nas áreas de Antropologia, Ciência
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Art. 2 - A periodicidade da Revista será, inicialmente, semestral, podendo alterar-se de
acordo com as necessidades e exigências do Curso de Ciências Sociais; o calendário de
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definidos por essas necessidades.
Art. 3 - A publicação dos trabalhos deverá passar pela supervisão de um Conselho de
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externos, para apreciação e parecer, em decorrência de especificidades do assunto tratado.
Art. 4 - Composição publicará trabalhos da seguinte natureza:
I - Artigos originais, de revisão ou de atualização, que envolvam, sob forma de estudos
conclusivos, abordagens teóricas ou práticas referentes à pesquisa em Antropologia,
Ciência Política, Sociologia e afins e que apresentem contribuição relevante à temática
em questão.
II - Traduções de textos fundamentais, isto, é daqueles textos clássicos não disponíveis
em língua portuguesa que constituam fundamentos da área específica da revista e que,
por essa razão, contribuam para dar sustentação e densidade à reflexão acadêmica, com a
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III - Entrevistas com autoridades reconhecidas na área temática da revista, que vêm
apresentando trabalhos inéditos, de relevância nacional e internacional, com o propósito
de manter o caráter de atualidade do periódico.
IV - Resenhas de obras inéditas e relevantes que possam manter a comunidade acadêmica
informada sobre o avanço das reflexões na área temática da revista.
Art. 6 - A entrega dos originais para Composição deverá obedecer aos seguintes critérios:
I - Os artigos deverão conter obrigatoriamente:
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endereço institucional, telefone institucional e endereços eletrônicos;
c) resumo em português (máximo de 6 linhas, ou 400 caracteres) e abstract fiel ao resumo,
acompanhados, respectivamente, de palavras-chave e key words, ambos em número de 3,
para efeito de indexação do periódico;
d) texto com as devidas remissões bibliográficas no corpo do próprio texto;
e) notas finais, eliminando-se os recursos das notas de rodapé;
f) referências bibliográficas.
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Art. 8 - Uma vez publicados os trabalhos, Composição reserva-se todos os direitos
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Inclusive os de tradução, permitindo, entretanto, a sua posterior reprodução como transcrição, e
com a devida citação da fonte.
Editorial
Mais uma vez é com muita satisfação e trabalho que apresentamos à
comunidade acadêmica o número 16 de Composição, Revista de Ciências Sociais da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Neste número, estão publicadas as
seguintes colaborações: A identidade nas obras de arte públicas em Mossoró – RN; O
processo de privatização da água no Brasil; A docência em serviço social: percursos e
perspectivas; Sociologia das organizações como mecanismo de aprendizagem: Um olhar a luz
da organização escolar moçambicana; Consumo e estima social: análise sobre as
motivações do consumo ostentação por parte dos jovens das camadas populares; O fio
do tempo na tessitura do poder simbólico: passado, presente e futuro na efeméride dos
190 anos do parlamento brasileiro e por fim, mas não menos importante, a resenha do
livro “O que resta de Auschwitz” Giorgio AGABEN, com o título Testemunhar o
intestemunhável e o hiato sobre Auschwitz.
As contribuições são de autores de diversos locais do Brasil como São Paulo, Mato
Grosso do Sul, Rio Grande do Norte, Distrito Federal e Minas Gerais demonstrando mais
uma vez a relevante contribuição do periódico para a ampliação do conhecimento. Boa
leitura.
Prof. Dr. Aparecido Francisco dos Reis - Editor
Sumário
A identidade nas obras de arte públicas em Mossoró – RN
Thalles Chaves Costa
Rosalvo Nobre Carneiro ............................................................................................................................... 8
O processo de privatização da água no Brasil
Flávio José Rocha da Silva ......................................................................................................................... 23
A docência em serviço social: percursos e perspectivas
Leandro Henrique de Araújo Leite
Heitor Romero Marques ............................................................................................................................. 33
Sociologia das organizações como mecanismo de aprendizagem: Um olhar a luz da
organização escolar moçambicana
Pedro João Uetela ....................................................................................................................................... 44
Consumo e estima social: análise sobre as motivações do consumo ostentação por
parte dos jovens das camadas populares
Eliana Vicente ............................................................................................................................................ 60
O fio do tempo na tessitura do poder simbólico: passado, presente e futuro na
efeméride dos 190 anos do parlamento brasileiro
Antonio Teixeira de Barros ........................................................................................................................ 82
Testemunhar o intestemunhável e o hiato sobre Auschwitz
Aline Ramos Barbosa ............................................................................................................................... 106
A identidade nas obras de arte públicas em Mossoró – RN
Identity in the art of public works in Mossoró - RN
Thalles Chaves Costa1
Rosalvo Nobre Carneiro2
Recebido em 11/02/2015; aceito em 10/06/2015
Resumo: Este trabalho analisa como as obras de arte inseridas nos espaços públicos, na cidade de
Mossoró/RN, contribuem na construção de identidades das pessoas e do lugar, além de discutir conceitos
que envolvem espaço, arte e cultura. Foi realizada pesquisa de campo em Mossoró com o intuito de
catalogar as obras de arte dos seus espaços públicos e identificar as que ajudam na construção dos processos
identitários das pessoas e do lugar. Essas obras foram fotografadas para ilustrar e/ou comprovar esses fatos.
Palavras-chave: Obras de arte públicas; identidade;. Mossoró.
Abstract: This paper analyzes how the works of art placed in public spaces in the city of Mossoró/RN,
contribute to the construction of identities of people and place, and to discuss concepts involving space, art
and culture. Field research was conducted in Mossoró in order to catalog the works of art of its public
spaces and identify those that help in the construction of identity processes of people and the place. These
works were photographed to illustrate and/or prove these facts.
Key Words: Public art; identity; Mossoró.
Introdução
Espaço, arte, cultura e identidade são conceitos polissêmicos, difíceis de se
definir, tomemos o termo espaço, por exemplo, na história da ciência vamos encontrar
inúmeras definições do conceito, da popular visão de lugar, passando pelos espaços
simbólicos e habitados. Estetas vão refletir questões sobre a obra de arte tanto de um
ponto de vista objetivo como de um ponto de vista subjetivo. Até a década de 1970
existiam centenas de conceitos de cultura, agora, nos tempos em que o sociólogo
1
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas – PPGCISH da Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. Professor de Ciências Humanas da Universidade Potiguar UnP Laureate International Universities, Campus Mossoró/RN. Av. João da Escóssia, 1561, N. Betânia,
CEP: 59607-330, Mossoró/RN. +55 (84) 3323.8200. [email protected] / [email protected]
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Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas – PPGCISH da Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. [email protected]
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“Europeu” Zygmunt Bauman chama de modernidade líquida e no momento em que você
esta lendo esse texto, o número de definições já deve ultrapassar os três dígitos. A
identidade pode ser entendida como uma sensação de pertencimento ou identificação.
O objetivo deste trabalho é mostrar como as obras de artes plásticas – talhas,
esculturas, bustos, mosaicos, pinturas, painéis, instalações e grafites – que se encontram
inseridas nos espaços públicos, ajudam na construção da identidade das pessoas e dos
lugares, a partir de uma análise feita na cidade de Mossoró/RN.
Nos apoiamos na revisão bibliográfica para a discussão dos temas, iremos discutir
os vários conceitos propostos sob a ótica de pensadores distintos, a fim de que nos seja
dado um suporte para um entendimento dos conceitos. Foi realizada pesquisa de campo
também a fim de identificar as obras de arte, sejam esculturas, mosaicos, pinturas, painéis,
talhas ou grafites que retratem acontecimentos que fazem parte da identidade da cidade.
Essas obras foram fotografadas e serão aqui analisadas.
Falar de espaço requer distinguir espaço público, onde o objeto dessa pesquisa
está inserido, só existe o público porque existe o privado. A seguir nos voltamos para a
discussão de arte e cultura. Também é necessário apresentarmos os vários mecanismos
de fomento à produção dessas obras de arte, analisando as obras através das fotografias
realizadas em campo e observar como elas atuam na construção da identidade.
Espaço e Arte como Fatos Sociais
Margaret Wertheim (2001) aborda os diferentes tipos de espaços, do período
medieval de Dante ao pós-modernismo da internet. Na “era da ciência”, muitos de nós
nos acostumamos tanto a pensar o espaço como algo puramente físico que pode nos ser
difícil aceitar outras definições de espaço como um “espaço” genuíno, o fato de algo não
ser material não significa que é irreal, embora destituído de fisicalidade, os espaços
simbólicos, vividos e habitados onde as obras de arte estão inseridas constituem um lugar
real.
Milton Santos (2002) lembra que o espaço é um fato social, um reflexo da
sociedade, David Harvey (1989) não concebe o espaço independente das relações sociais.
Tendemos a imaginar o espaço como território, uma porção de terra identificada por um
nome, a definição de espaço geográfico não é uma tarefa das mais simples, sua definição
é árdua, porque a sua tendência é mudar com o processo histórico, uma vez que o espaço
geográfico é também o espaço social.
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As obras de arte se relacionam tanto com os espaços onde estão inseridas como
com a sociedade que habita e dá significados à esses espaços e às obras de arte, mas não
é só a sociedade que habita e dá significados aos espaços, as obras de arte também habitam
e dão significados aos espaços. As obras de arte se constituem então, assim como os
espaços, em fatos sociais.
Toda descrição de um espaço deveria compreender a percepção por parte dos
outros, daqueles que o habitam. Sobre os vários conceitos de espaço que Bettanini (1982)
expõe, destacamos os espaços simbólicos, o espaço tem o significado que o homem dá à
ele, representa e é à maneira que é utilizado, articulado, percebido, a percepção do espaço
é verbalizada, o espaço é falado; os objetos que constituem os tecidos de relações
espaciais foram dotados, pelo homem, de significado: o espaço, portanto, fala.
Outra definição múltipla é o entendimento de espaço público, a primeira ideia que
vem em mente é que deveria ser um lugar disponível à todos, diferentemente do privado
que só é acessível às pessoas autorizadas. Mas afinal, o que é o espaço público?
Nem sempre um espaço dito público o é totalmente, para Ângelo Serpa (2007), o
espaço público deve ter algo mais do que o simples acesso físico a espaços “abertos” de
uso coletivo, o espaço público em tese seria ou deveria ser acessível à todos, em qualquer
horário. A soma de processos de apropriação de um coletivo de indivíduos não é
suficiente para legitimar a noção do espaço público. Os parques e praças públicas são um
espaço aberto à população, acessível à todos, postos à disposição dos usuários, mas todas
essas características não são suficientes para definí-los como espaço público.
Arte e Cultura
Para Suassuna (2009) os estetas metafísicos veem a arte como a revelação de uma
realidade superior que se afirma em virtude de um pensamento que busca o absoluto e a
unidade última, os realistas consideram a arte como uma faculdade criadora puramente
racional.
Sem dar conta do que é ou não arte e com uma visão subjetiva, Bargalló (2008) a
define como “manifestação da atividade humana por meio da qual se expressa uma visão
pessoal e desinteressada que interpreta o real ou o imaginário com recursos plásticos,
linguísticos ou sonoros” (BARGALLÓ, 2008, p. 06).
Kant (1995) vê os problemas estéticos como insolúveis devido à radical diferença
entre os juízos estéticos (juízos de gosto) e os juízos de conhecimento. A estética é uma
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questão de gosto já que os juízos estéticos não emitem conceitos, eles decorrem de uma
reação pessoal do contemplador diante do objeto.
Quando falo que uma rosa é branca ou que o céu está lilás, estou emitindo um
juízo de conhecimento, se falo que a mesma rosa é bela ou que o pôr do sol é lindo, estou
emitindo um juízo de valor, de gosto ou estético e aí entra a subjetividade de cada um. A
arte é difícil de se definir e a subjetividade de cada indivíduo vai articular conceitos
estéticos distintos.
O termo “cultura” originalmente na Alemanha, e ainda hoje em vários lugares, era
usado para falar do cultivo da terra, quando nos referimos à agricultura, sabemos que as
monoculturas prejudicam o solo, é preciso diversificar. Um estado ou uma cidade pode
ser famosa pela cultura da laranja ou do caju. Depois, cunhou-se o termo intelectualmente
com o sentido de cultivo da mente, a cultura então virou sinônimo de erudição. A cultura
é também confundida com arte, quando se diz que uma determinada pessoa gosta e apoia
a arte, pode-se falar que essa pessoa é um fomentador da cultura, um mecenas, um
agitador cultural. Com o surgimento da antropologia, o termo ganha um sentido
antropológico.
As obras de arte as quais nos referimos nesse trabalho e que consideramos como
públicas, são as que estão em lugar de destaque e de circulação comum de um grande
número de pessoas diariamente mas a definição de Arte pública é tão diversa que Cesar
Floriano (2010) a divide em três categorias distintas: em primeiro lugar as de caráter
permanente, a arquitetura, o mobiliário urbano, praças e jardins; o segundo confere aos
lugares novos significados, são os marcos urbanos, esculturas, pinturas e grafites; em
terceiro as obras de caráter efêmero que buscam na estética relacional uma interação
maior com as pessoas, podemos também identificar as instalações e as intervenções
urbanas como fazendo parte deste terceiro grupo.
Para Marcelo Abreu (2001) a história da escultura pública é um campo de disputa
em torno de imagens urbanas que identificam a coletividade e o seu lugar de localização.
Uma das características da Arte contemporânea é a saída das obras das galerias e
dos museus e a sua habitação nos espaços públicos, seja por meio de instalações, seja
através de intervenções urbanas. O artista plástico Hélio Oiticica via o mundo como um
museu, um museu aberto onde a arte podendo tornar a vida bem mais agradável.
A interação dos artistas e o seu reencontro entre a cidade e a Arte vem se dando
ao longo dos últimos anos, a ocupação da cidade pelos artistas faz dos seus espaços
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públicos suporte de exposições de arte. Da antiguidade à era moderna, das inscrições
rupestres ao renascimento e aos dias atuais, encontraremos intervenções artísticas urbanas
aproximando a arte das pessoas.
Isso implica em compreender que a Arte Pública, ao re-organizar visualmente o
espaço público da cidade, permite a construção de relações simbólicas diversas entre os
artistas, moradores e a circulação de significados sociais que constroem sociabilidades e
identidades particulares da cidade.
Sobre os mecanismos de fomento de produção da arte pública
A primeira obra de arte pública identificada em Mossoró, fica na praça da
Redenção, em frente à Biblioteca Pública Municipal Ney Pontes, no centro da cidade.
Trata-se de uma releitura em concreto da estátua da liberdade (figura 1), encomendada
em 1904, por Sebastião Fernandes de Oliveira 3 , então presidente da Comissão de
Socorros Públicos, ao mestre feitor açuense José Paulino4, em homenagem à abolição da
escravatura em Mossoró aos 30 de setembro de 1883.
A IDENTIDADE NAS OBRAS DE ARTE PÚBLICAS EM MOSSORÓ – RN.
(IMAGENS)
Figura 1. Réplica da estátua da Liberdade localizada na praça da Redenção. José Paulino. 1904.
Foto. Thalles Chaves.
“Primoroso poeta, orador empolgante, jurista completo, criminalista insuperado”, disse dele Câmara
Cascudo.
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José Paulino realizou uma série de obras em Mossoró como altares de igrejas e um obelisco que se localiza
numa praça em frente ao mercado público municipal.
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“Os objetos escultóricos que compõem a paisagem urbana são um dos elementos
que articulam o espaço e o tempo das cidades, para além das funções utilitárias ou
decorativas, eles representam a história da sociedade que os produziu” (Abreu, 2001: 1).
Santos (2006) chama rugosidade, o que fica do passado como forma, espaço
construído, paisagem, o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição,
com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares. Esse monumento
atravessou o tempo no espaço, é do início do século XX, tem mais de cem anos e continua
presente, como suporte à memória, lembrando-nos do fato ocorrido no passado, em cada
lugar, pois, o tempo atual se defronta com o tempo passado, cristalizado em formas.
Podemos identificar cinco fomentadores da Arte pública em Mossoró:
Um primeiro, chamamos de arte independente, são os artistas independentes,
literalmente, de lei, de mecenas, de poder público. Fazem por conta própria como
necessidade de se expressarem, de mostrarem seu trabalho, interagir e dialogar com a
cidade, o meio urbano e a sociedade, usam a cidade como uma vitrine como é o caso das
obras de arte, grafites e intervenções urbanas de vários artistas plásticos espalhadas pela
cidade. O grafite 5 , expressão típica urbana, é ínfimo em Mossoró, o artista plástico
Marcelo Amarelo chegou a realizar, por conta própria, algumas intervenções na cidade,
mas os grafites tem prazo de validade curto, em pouco tempo, se comparado à outras
obras, ele vai se apagando da parede ou simplesmente essa parede pode ser pintada.
Podemos observar um mural (Figura 2), feito por um grupo de grafiteiros de Natal,
vizinho à igreja de São Vicente, na rua Alfredo Fernandes, onde, na manhã de 13 de junho
de 1927, ocorreu uma verdadeira “chuva de balas” com a expulsão de cangaceiros que
pretendiam invadir a cidade, esse grafite é uma alusão ao tema.
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Jean-Michel Basquiat com suas intervenções urbanas em Nova Yorque, é um dos precursores e maiores
nomes do grafite mundial, no Brasil, Vitché, os Gêmeos e o submundo de Zezão se destacam na paisagem
do Rio de Janeiro e São Paulo.
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Figura 2. Grafite localizado vizinho à igreja de São Vicente, centro de Mossoró, em alusão à passagem
de cangaceiros na cidade.
Foto. Thalles Chaves.
A segunda ocorrência se dá por iniciativa de “mecenas” que as financiam, como
as instalações que se encontram às margens da BR 304, próximo à uma base da Petrobrás
e ao anel viário Natal x Mossoró x Fortaleza. Esculturas gigantes estão inseridas num
contexto de um ferro velho, é o caso da escultura do artista plástico Marcelo Amarelo, As
Três Graças do Candango (Figura 3) de 2010, uma alusão aos poderes executivo,
legislativo e judiciário, uma discussão, crítica e referência à política do Brasil, os artistas
sempre dialogando com a pouca atenção dada à cultura pelos governos que tratam o setor
de maneira ínfima, e veem os recursos aportados não como um investimento mas como
um gasto. Trata-se de uma escultura gigante que está lá, uma instalação, dialogando com
o traçado urbano, com quem passa próximo e que foi financiada por vontade própria do
empresário dono do ferro velho, um incentivador, amante das artes. Fernando Pedro da
Silva (2005), atenta para a influência das obras de arte pública nos espaços urbanos e
aponta a relação das obras com a sociedade. A arte recria a paisagem dos grandes centros
urbanos, seja pela interferência física, seja despertando um novo olhar naqueles que a
encontram em seu caminho diário. Mas não é só com a sociedade que essas obras se
relacionam, elas também dialogam com os espaços, dando-lhes novos significados, o
ferro velho antes dessas instalações era outro, as esculturas agora valorizam e dão novo
sentido ao lugar, antes um lugar do velho, do feio, agora um lugar de novas possibilidades,
de sustentabilidade e aproveitamento, de reciclagem, tanto material quanto do mundo das
ideias.
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Figura 3. Instalação do artista plástico Marcelo Amarelo, “As três Graças do Candango”. 2010.
Foto. Thalles Chaves.
Uma terceira incidência, chamamos de “Filo Mnésica” – amigos da memória. São
amigos e familiares, geralmente com um alto poder econômico, de pessoas que já
faleceram, não necessariamente relevantes para a sociedade, que mandam erguer bustos
em sua homenagem, como é o caso de um busto do enfermeiro Elinas Neto Fernandes
Dias (Figura 4), uma homenagem de seus pais, irmãos e amigos, falecido em 1978,
localizado vizinho à igreja São Vicente, no centro da cidade, e do político, advogado e
empresário Mota Neto, morto em 1981, em frente à sede do jornal Gazeta do Oeste. Em
contrapartida, os “Filo Mnésicos” mantem uma pracinha onde o busto está inserido.
Segundo Jacques Le Goff (1996) datas comemorativas são criadas e monumentos
em memória à grandes feitos do passado são erguidos. Para Gombrich (1995) desde a
antiguidade, na Mesopotâmia, os reis já encomendavam monumentos para celebrar suas
vitórias nas guerras. Podemos observar em Roma, ainda no séc. I d.C. a coluna de Trajano
que como um documento para a posteridade, mostra a queda de uma cidade, uma batalha
contra os bócios e soldados colhendo trigo. Entre as manifestações importantes ou
significativas da memória coletiva, encontra-se o aparecimento, no século XIX e no início
do XX, em seguida à primeira guerra mundial, a construção de monumentos aos mortos.
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Figura 4. Busto em homenagem à Elinas Fernandes. Uma homenagem de seus pais, irmãos e amigos.
Foto: Thalles Chaves
Um quarto mecanismo é de iniciativa do poder público, é o gestor público
pensando na decoração, no aformoseamento da cidade, como é o caso de uma talha do
artista plástico Varela (Figura 5), da década de 1970 que se encontra na lateral frontal do
prédio da Secretaria de Estado da Tributação, vizinho à igreja matriz de Mossoró. As
obras de arte causam impacto na sociedade, produzem sentido e significado, guardam a
história, relembram o passado, contribuem para que a história fique sempre viva na
memória de quem passa, afirmando a identidade de um povo.
A talha de Varela retrata três momentos importantes da história de Mossoró. A
parte de cima retrata o fato de, em 1927, o estado do Rio Grande do Norte, se tornar o
primeiro do país a permitir que as mulheres votassem nas eleições. Naquele mesmo ano,
a professora Celina Guimarães, de Mossoró, se tornou a primeira brasileira a fazer o
alistamento eleitoral. O quadro central da talha relembra que cinco anos antes da Lei
Áurea ser assinada, Mossoró libertava seus escravos. Por fim, o último quadro representa
a expulsão do bando de Lampião pelo então prefeito Rodolfo Fernandes.
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Figura 5. Talha do artista Varela, localizada no centro de Mossoró. Década de 1970.
Foto. Thalles Chaves.
Finalmente, como quinto mecanismo, temos a lei municipal Nº 427/89 de 06 de
junho de 1989, que obriga construções acima de mil metros quadrados 6 terem uma obra
de arte, como é o caso da artista plástica Nôra Aires (Figura 6), que realizou um mosaico
representativo da flora da região em 2002 situado numa praça da avenida João Marcelino,
em frente à sede do Serviço Social do Comércio – SESC Mossoró.
Figura 6 – Mosaico da Artista Plástica Nôra Aires, avenida João Marcelino, 2002.
Foto: Thalles Chaves
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Construções destinadas ao uso coletivo, inclusos condomínios residenciais, supermercados, praças,
prédios públicos, hospitais, hotéis, motéis, bares, etc.
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A identidade e as obras de arte
À primeira vista, a identidade é simples de se definir, quando falamos de
identidade nos remetemos à sensação de pertencimento, de identificação com algo, ela é
aquilo que se é, nós somos de um lugar, de uma região, pertencemos a um grupo social,
trabalhamos com “isso” ou “aquilo”, através das identidades as pessoas se ligam, se
reconhecem, têm coisas em comum. “Precisamos de relacionamentos, e de
relacionamentos em que possamos servir para alguma coisa, relacionamentos aos quais
possamos referir-nos no intuito de definirmos a nós mesmos” (Bauman, 2005: 75).
Quando Euclides da Cunha (1902 - 2003) diz que o sertanejo é “antes de tudo um
forte”, ele contribui com a construção da identidade de um povo que resiste e luta contra
as adversidades da vida, ele cria a imagem de um povo guerreiro que não se deixa abater
com as dificuldades, consequentemente os nordestinos com todo o seu histórico de lutas
contra a seca e a opressão política se identifica, se achando um próprio personagem de
“Os Sertões”, com a frase do Jornalista/Cientista que presenciou parte da guerra de
Canudos à serviço do jornal O Estado de São Paulo.
A identidade não existe a priori, ela é criada, construída, necessária, segundo
Bauman (2005) a identidade é uma invenção e não algo a ser descoberto, para Gregolin
(2007) as identidades são construções discursivas, “os sujeitos são sociais e os sentidos
são históricos, os discursos se confrontam, se digladiam, envolvem-se em batalhas,
expressando as lutas em torno de dispositivos identitários” (Gregolin, 2007: 17), e elas,
as identidades precisam ser afirmadas, repetidas e lembradas o tempo inteiro, elas são
produzidas por um trabalho discursivo contínuo, a fim de se cristalizarem no inconsciente
coletivo da sociedade, essa repetição, que faz parte do processo de produção da identidade
está ligada ao que Judith Butler (1999) chama de performatividade, quando um
enunciado, um acontecimento tem efeitos de desdobramentos consequenciais, levam a
uma implicação, ajudam na construção da identidade, de tanto se falar, acaba se tornando
natural. As obras de arte públicas de Mossoró funcionam como esse lembrete, como a
afirmação da cultura, de aspectos relevantes do lugar, ajudam na construção da
identidade, produzem identidade. Mas Os símbolos que compõem uma identidade social
não são construções arbitrárias ou aleatórias, mantêm determinados vínculos com a
realidade concreta, determina aspectos da vida em sociedade (SERPA, 2007: 20)
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Existem fatos marcantes da cultura de Mossoró que fazem parte da identidade do
povo, as sociedades buscam elementos significativos de sua história, fatos que reforçam
afirmações de identidades, podemos encontrar várias obras que se repetem, reforçando as
identidades culturais, retratando esses fatos, ser um dos primeiros lugares do país a abolir
a escravidão, o voto feminino, o conflito com os cangaceiros, a produção de sal, melão,
petróleo, assim como a fauna e a flora da região, são retratadas nas obras de arte que se
encontram inseridas nos espaços públicos da cidade, esses temas vão se repetindo, em
vários locais encontraremos obras sempre falando dos mesmos temas que fazem parte da
identidade do povo da região, as obras estão lá se relacionando com o espaço, com o meio
urbano, e quando são percebidas, com as pessoas que habitam esse meio urbano e
dialogam com essas obras que lhes fazem lembrar quem são, para que não esqueçam,
portanto não existem falsas identidades, tampouco identidades verdadeiras, o que existe
são identidades.
Podemos considerar esses fatos históricos de Mossoró, mitos fundadores que
constroem identidades.
Fundamentalmente, um mito fundador remete a um momento crucial
do passado em que algum gesto, algum acontecimento, em geral
heroico, épico, monumental, em geral iniciado ou executado por
alguma figura “providencial”, inaugurou as bases de uma suposta
identidade nacional. Pouco importa se os fatos assim narrados são
“verdadeiros” ou não; o que importa é que a narrativa fundadora
funciona para dar à identidade nacional a liga sentimental e
afetiva que lhe garante uma certa estabilidade e fixação, sem as
quais ela não teria a mesma e necessária eficácia (Silva, 2012: 85).
Mas no mundo pós-moderno, as identidades não são vistas tão bem definidas
como eram na modernidade, elas estão se deslocando, para Bauman (2005) a construção
da identidade assumiu a forma de uma experimentação infindável. Os experimentos
jamais terminam. Assumimos uma identidade num determinado momento, mas muitas
outras, ainda não testadas, estão na esquina esperando que nós as escolhamos. Muitas
outras identidades não sonhadas ainda estão por ser inventadas e cobiçadas durante as
nossas vidas. Nós nunca saberemos ao certo se a identidade que agora exibimos é a
melhor que podemos obter e a que provavelmente nos trará maior satisfação.
As identidades do mundo contemporâneo estão fragmentadas, Hall (2011) aponta
que o sujeito pós-moderno está se compondo de várias identidades, ele assume diferentes
19
identidades em diferentes momentos. O mundo está mais interconectado, a globalização
está deslocando as identidades culturais.
Quanto tempo dura uma identidade típica da modernidade líquida em que ela se
descentra e é substituída por outras? As obras de arte públicas que atravessam o tempo
no espaço, sólidas e duradouras como são, ajudam a preservar identidades, pois elas estão
lá presentes no cotidiano da cidade às vezes por um século até, nos lembrando dos
acontecimentos do passado, que nos identificamos, nossa história, afirmando quem
somos.
Considerações finais
A cidade é um museu vivo, uma galeria de arte a céu aberto, onde as mais variadas
manifestações e estilos artísticos se encontram, como um livro caído nas mãos de uma
criança que passa as páginas ao sabor do vento. Foram identificados cinco mecanismos
de fomento da produção de obras de arte pública na cidade de Mossoró que contribuem
para a construção da identidade das pessoas e do lugar. Um primeiro, são os artistas
independentes. A segunda ocorrência se dá por iniciativa de “mecenas”. A terceira
incidência, chamamos de “Filo mnésica”. Um quarto mecanismo é o gestor público,
anterior à lei municipal Nº 427/89 de 06 de junho de 1989, figurando como o quinto
elemento, que obriga construções acima de mil metros quadrados terem, em lugar de
destaque, uma obra de arte.
Assim como os espaços, as obras de arte públicas são fatos sociais, elas habitam
os espaços dando significados a eles e fazem parte do imaginário coletivo, são ícones,
necessárias, contam histórias. Elas também são expressões e representações subjetivas de
artistas, funcionando como um canal de comunicação. As obras de arte analisadas,
inseridas nos espaços públicos de Mossoró, produzidas através dos vários mecanismos
identificados, são representativas dos processos identitários, ajudam na construção das
identidades das pessoas e do lugar ao passo que preservam essas identidades, elas contam
e preservam a história do lugar, atuando como espelho da sociedade, mostrando como
somos, como vivemos, nosso clima, nossa fauna, nossa flora, nossa história, nossa
cultura.
A identidade é uma criação social e cultural, as identidades por serem construções
discursivas, precisam ser afirmadas e reafirmadas, não existindo assim uma identidade
verdadeira nem uma falsa, já que são construções, existem apenas identidades.
20
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22
O processo de privatização da água no Brasil1
The water privatization process in Brazil
Flávio José Rocha da Silva2
Enviado em 17/12/2014; aceito em 10/06/2015
Resumo: Este artigo é uma reflexão sobre o processo de privatização da água nas últimas décadas no Brasil.
Mesmo sendo um bem comum essencial para manter a vida de todos os seres vivos, a água vem tornando-se
uma mercadoria negociada por empresas privadas em várias regiões do planeta. A defesa da privatização da
água vem somando vitórias em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, e ganha defensores dentro e fora
do governo brasileiro, abrindo caminhos para esta que é uma das ultimas fronteiras do capitalismo: o
hidronegócio.
Palavras-chave: Água; Privatização da Água no Brasil; Hidronegócio.
Abstract: This article discusses the water privatization process during the last decades in Brazil. Water is
becoming a commodity appropriated by private sectors in many regions of our planet. The idea of its
privatization is gaining supporters and has been a reality in many countries, including Brazil, where there are
defenders inside and outside of the Brazilian government who are opening avenues for one of the last frontiers
of capitalism: the hydro-business.
Key Words: Water; Water Privatization in Brazil; Hydro-business.
Introdução
1
Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no II Seminário Internacional Ruralidades, Trabalho e Meio Ambiente
em junho de 2013, na UFSCAR, com o título de Ambientalizando o recurso para privatizar o recurso.
2
Flávio José Rocha da Silva é aluno do Programa em Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais na PUC-SP e bolsista
CNPq. Endereço: Rua Monte alegre, 984 – São Paulo – SP, CEP: 05014-901. Telefone- (11) 3670-8000 [email protected].
23
Deve um bem comum e essencial para manter a vida de todos os seres vivos do
planeta ser privatizado, valorado economicamente e gerenciado em sua distribuição por
alguns poucos grupos econômicos? Há algumas décadas, tivesse esta pergunta a água como
tema central certamente a resposta seria respondida de forma negativa. Porém, não é isto
que observamos em muitas partes do mundo atualmente. Basta comprovar como vários
documentos nos fóruns, congressos e encontros mundiais sobre a água respondem a um dos
mais importantes dilemas do nosso tempo: como promover o acesso a todos os habitantes
do nosso planeta a água potável? Nestes documentos, que possuem um número expressivo
de países signatários, estão sempre impressos (de forma nítida e sem subterfúgios
linguísticos) que a água tem um valor econômico e que sendo privatizada será mais
acessível a todos. Petrella (2002, p. 51) ressalta que uma das primeiras afirmações do
documento resultante da Segunda Conferência do Fórum Mundial da Água, realizada entre
17 e 22 de março de 1999, em Haia, foi que “A água é um recurso econômico escasso, um
bem vital econômico e social. Como petróleo ou qualquer outro recurso natural, deve ser
submetido às leis do mercado e aberto à livre competição.”
A base para o discurso da privatização da água é que, sendo acessível de forma
gratuita, este recurso natural não tem recebido o respeito que merece por parte da população
mundial e está tornando-se escassa. Seria verdade esta afirmação? Acreditamos ser possível
que muitos não a valorizem, outros tantos a desperdicem ou poluam os corpos de água
doce, os oceanos e os mares do planeta, mas como veremos mais adiante o maior
desperdício não é feito pelo cidadão comum (embora este seja o protagonista de várias
campanhas midiáticas como sendo o grande culpado pela propagada escassez da água) e
sim pelas empresas do agronegócio em seus campos de plantações irrigados.
O discurso protagonizado pelo Banco Mundial e suas estratégias junto aos governos
em relação a esta questão, tem levado a privatização do sistema de distribuição de água em
várias cidades do mundo. No caso dos rios, alguns deles tem parte de seu manancial
apropriado por grupos econômicos para a irrigação das suas plantações ou para a
mineração. Este fato tem gerado conflitos em vários países com as comunidades atingidas,
pois são estas, em última instância, as grandes perdedoras com a chegada destes
empreendimentos que vetam o acesso aos mananciais por parte dos moradores locais, além
de poluírem e tornarem estes mananciais impróprios para o consumo humano.
24
Uma breve história da privatização da água: de bem grupal a bem comum e de bem
comum a bem privado
Nem sempre a água foi pensada como um bem comum a que todos tem direito. Esta
concepção é algo muito recente na história da humanidade. A posse da água sempre foi
muito importante para manter a hegemonia politica e militar, principalmente onde ela não
é tão abundante, tornando-a um bem pertencente a alguns poucos grupos.
Segundo Neiman (2005, p. 261), “O ser humano, historicamente, construiu suas
civilizações ao redor dos corpos d'água.” Desde os primórdios, muitos grupos humanos
perceberam que a posse dos mananciais era também a posse do espaço territorial e uma
arma poderosa para dobrar os inimigos, vencendo-os pela sede. A propriedade da água
sempre representou um mecanismo para assegurar o poder.
As relações que vários povos desenvolveram com a água também foi de extrema
importância para sua evolução nos campos histórico e geopolítico. “O controle dos rios,
como forma de dominação dos povos que habitavam os setores hidrográficos de jusante foi
praticado desde, pelo menos, 4 mil a.C. na Mesopotâmia...” afirma Rebouças (2002, p. 17).
Entender a dinâmica das águas dos rios transformou a história de muitos povos, a exemplo
do povo egípcio, como revela o mesmo autor (2002, p. 17),
O controle das inundações do rio Nilo foi a base do poder da civilização
Egípcia, desde cerca de 3,4 mil anos a.C.. Nos vales dos rios Amarelo e Indu,
a utilização da água como forma de poder foi iniciada em 3 mil a.C., sendo
exercida por meio de obras de controle de enchentes e da oferta de água para
a irrigação e abastecimento das populações. O controle do rio Eufrates foi a
base do poder da Primeira Dinastia da Babilônia, possibilitando ao Rei
Hamurábi – 1792 a 1750 a.C. – unificar a Mesopotâmia e elevar sua região
norte a uma posição hegemônica. Dessa forma, o poder que reinava no sul
da Mesopotâmia, desde o terceiro milênio a.C., foi deslocado para a região
norte, onde permaneceu por mais de mil anos. Para alguns, a politização e
centralização atuais do poder sobre a água teriam tido suas origens nessa
época.
A expulsão dos Povos Originários de seus territórios, especialmente na América
Latina, também está relacionada com o minério presente nos rios próximos de onde estes
habitavam. Havia, também, a necessidade de tomar as reservas de água para a
25
dessedentação animal, como aconteceu, por exemplo, no Semiárido brasileiro onde
vaqueiros do latifúndio agropastoril nordestino apossaram-se de várias fontes de água
utilizada pelos povos indígenas que habitam o sertão por séculos, para dessedentizar as
boiadas que transportavam (GARCIA, 1984).
No plano do desenvolvimento econômica industrial moderno, a água também teve
papel importante. Segundo Weber (1974, p. 141), “A fábrica mais antiga, acionada por
energia hidráulica, que se pode documentar, sem dúvida alguma é uma fabrica de sedas,
em 1719, em Derwent, próximo a Derby...” Pode-se afirmar que a água foi uma peça
fundamental para a expansão do capitalismo moderno até a chegada de novas tecnologias,
relação que voltaria a protagonizar mais tarde com a invenção da hidroeletricidade. Como
pode-se atestar a posse da água e o poder geopolítico e econômico caminham juntos.
Sendo de extrema importância para o avanço do domínio de algumas nações sobre
outras, a apropriação da água foi, também, âncora para o processo de soberania territorial.
Petrella (2002, p. 34) afirma que, “A estatização da água, que acompanhou e seguiu os
períodos de formação e consolidação dos estados nacionais a partir do século XVI,
desempenhou um papel histórico de suma importância.” Não por acaso, rios e lagos
marcam as fronteiras de vários países e estados. Esta posição política sobre a água, isto é,
sua apropriação pelo estado por ser um bem estratégico para o país, somente começou a ser
modificada depois da segunda metade do século XX.
Foi somente em meados dos anos sessenta que a França instituiu um novo modelo de
gerenciamento para o seu sistema de distribuição da água e que seria um marco na mudança
das relações entre o Estado e os recursos hídricos daquela nação (MARTINS, 2012). É este
o modelo que serve de base para outros países. De acordo com Petrella (2002, p. 107), “O
sistema francês baseia-se no princípio de gerenciamento delegado de um sistema público a
companhias privadas.” Assim, o governo daquele país repassou a distribuição da água para
alguns grupos econômicos, argumentando que não se tratava de privatização e sim de uma
concessão (eufemismo que tão conhecemos no Brasil) embora o valor pago pelos usuários
seja estipulado pelas empresas, o que na prática lhes dá poder sobre o sistema.
Coube ao Banco Mundial, a partir dos anos noventa, o papel de pressionar vários
governos em diferentes países para que mudassem suas leis e assim possibilitassem que
algumas empresas multinacionais tivessem permissão para atuar na área do gerenciamento
26
da distribuição dos recursos hídricos baseados na experiência francesa. Para Martins (2012,
p. 471),
Um marco importante para que o Banco Mundial delineasse efetivamente
um posicionamento acerca dos rumos da gestão da água foi a Conferência de
Dublin sobre Água e Desenvolvimento Sustentável, realizada em 1992. Ao
final da conferência, um posicionamento já defendido pelo banco tornou-se
um dos princípios fundamentais constantes na Declaração de Dublin para o
reconhecimento internacional da água como um bem econômico.
Em 1993, essa mesma instituição publicou e divulgou um documento intitulado Water
Resource Manegement, defendendo a visão mercadológica na questão do gerenciamento
do patrimônio hídricos (MARTINS, 2012). A partir de então, o Bando Mundial passou a
trabalhar em várias frentes para a flexibilização das leis que dificultavam a entrada das
empresas no mercado da água em vários lugares do planeta para tornar possível que as
mesmas atuassem nessa área.
Para se ter uma ideia da pressão exercida sobre alguns governos, entre os anos de
1997 e 2000 foram realizadas treze conferências mundiais e em 2003 foram cinco fóruns
simultâneos sobre a água (PETRELLA, 2002). Isso demonstra o interesse pelo tema da
mercantilização da água e a intenção de influenciar os governos e a opinião pública com
relação a uma mudança na ideia de que este recurso deva pertencer ao Estado. A questão
hídrica também passou a ser assunto corrente na Organização das Nações Unidas – ONU com parte de seus burocratas defendendo a mesma visão do Banco Mundial neste mesmo
período.
Ambientalizando o discurso para privatizar o recurso
Foi a partir da década de noventa que a privatização do patrimônio hídrico ganhou
espaço com a chegada de governos neoliberais em várias partes do planeta. A palavra
privatização tornou-se um mantra para solucionar todos os problemas econômicos e sociais
e a palavra estatal passou a ser sinônimo de ineficiência e incapacidade para o
gerenciamento dos bens públicos. Estava montado o cenário para que a água começasse a
27
ser vista como mais uma mercadoria, a exemplo de outros bens naturais. Ainda faltava
convencer as populações destes países de que esta seria a melhor solução, já que muitos
movimentos sociais denunciavam e eram contra este processo. Para isso, surgiu o discurso
da escassez da água. Embora seja uma realidade, a ampliação deste discurso serviu e serve
para fins políticos com o objetivo de oferecer uma suposta solução para este problema: a
privatização Amedrontar as populações com a possível falta de água em suas torneiras
surtiu efeito, se não para o apoio explícito das mesmas, pelo menos para a omissão na
discussão sobre o domínio das empresas sobre o patrimônio hídrico. Embora alguns
movimentos sociais tenham protestado contra esta política, eles não estavam fortes
politicamente o suficiente para deter a sanha neoliberal sobre os recursos hídricos.
O apelo emocional a uma possível falta de um bem essencial à vida ganhou pulso,
pois todos sabem da importância da água como elemento fundamental para a sobrevivência
da vida no planeta. A utilização deste argumento saiu vitoriosa e prevaleceu a ideia da
valoração econômica da água, sem uma análise mais profunda com a população das causas
desta possível escassez. Porém, como afirma Siqueira (2005, p. 41), “É muito raro alguém
se lembrar de que o modelo das concessões privadas já foi experimentado em diversos
momentos e situações do passado e que, frequentemente, fracassou, deixando as
populações sem água.” E continua o mesmo autor,
No contexto do discurso ideológico, a escassez, posta de maneira genérica e
abstrata como risco global e iminente, induz à aceitação de um elenco de
propostas gerais visando tornar eficiente a gestão da água, bem como
racionalizar seu uso. De maneira mais ou menos sutil, introduz-se, como
consequência lógica, a justificação da mercantilizarão da água, na medida
em que a escassez lhe agrega, necessariamente, valor econômico. (2005, p.
40)
O discurso da escassez propagado aos quatro ventos pela mídia e corroborado,
inclusive, por algumas Organizações Não Governamentais ambientalistas, quer remeter à
preservação do patrimônio hídrico para as futuras gerações. A ideia difundida é que, uma
vez valorada economicamente e gerenciada pela iniciativa privada, a água será preservada,
pois o seu desperdício irá diminuir, segundo os defensores da sua privatização. No entanto,
28
esconde-se o fato de que um dos grandes problemas relacionados a diminuição da
quantidade de água potável no planeta está na sua poluição. Também esconde-se da opinião
pública quem são os maiores usuários de água do planeta, buscando culpar o usuário
doméstico por este problema. Não que não haja desperdício por parte deste, mas ele está
longe de ser o grande vilão da história. Segundo Petrella (2002, p. 54),
A agricultura (principalmente a irrigação) absorve uma média mundial de 70
por cento das provisões de água, uma porcentagem que aumenta para 80 a
90 por cento nos países subdesenvolvidos; isso equivale a uma média de 20
por cento para a indústria e 10 por cento para o uso doméstico e outros.
Será a verdadeira intenção destas campanhas esconder quem realmente está
consumindo a água do planeta em demasia? É sempre mais fácil orientar as pessoas a
desligarem as suas torneiras e chuveiros que fiscalizar os aspersores de irrigação nas
grandes propriedades.
Uma breve história da privatização da água no Brasil
Com a posse de 12% da água doce do planeta, o Brasil é detentor de um grande e
valioso patrimônio hídrico. Sua distribuição acontece de forma desigual, pois 70% deste
montante está na região amazônica, detentora de pouco mais de 10% da população nacional
(CASTRO; SCARIOT, 2005). No entanto, mesmo no Nordeste, região com o menor
montante de água armazenada do país, são mais de setenta mil açudes acumulando 37
bilhões de m³ de água (SUASSUNA, 2007). Com todo este riqueza hídrica, o país está na
circunferência de interesse das empresas que lucram cada vez mais com o mercado da água.
Foi somente em 1934 que o Brasil teve a sua primeira lei para o ordenamento do seu
patrimônio hídrico. O presidente Getúlio Vargas sancionou o Código das Águas pelo
Decreto 24.643 daquele ano (BRASIL, 2010). O governo só voltou ao tema da água em
1977, com o Decreto 19.367, para instituir o Padrão de Potabilidade da Água. A
constituição de 1988 voltou a tratar do patrimônio hídrico brasileiro. Entretanto, muitas leis
somente seriam regulamentadas anos mais tarde. Em 1989 o país teria uma Lei de Proteção
das Nascentes e Rios, através do Decreto 7.754. Vê-se pela carência de uma legislação,
29
durante todas estas décadas, que o nosso patrimônio hídrico não era prioridade para os
nossos legisladores e governantes.
A ideia, originada na França, de organizar a formação do território através das bacias
hidrográficas somente tornou-se lei em 1991, com o Decreto Lei 8.171, que tratou da
politica agrícola e da desertificação. Era o início da Era Neoliberal no Brasil e “O governo
Collor foi o primeiro a pregar, no bojo do discurso da eficiência, a privatização da prestação
dos serviços de saneamento.” (SIQUEIRA, 2005, p. 42) As portas abriam-se para a
mercantilização da água no país.
Petrella (2002, p. 109) chama a atenção para o fato de que “Realmente a experiência
francesa deve nos fazer refletir sobre as aberrações éticas de uma política e de uma
economia que permitem que os sujeitos privados lucrem com um patrimônio comum, vital
e não-substituível da sociedade como um todo.” No Brasil, impôs-se uma repetição do
modelo francês que se encontra atualmente em processo de revisão depois de grandes
protestos por parte da população daquele país.
O trato como a água com uma mercadoria qualquer intensificou-se no governo do
Presidente Fernando Henrique Cardoso. Foi o Decreto 9.433, de 1997, que instituiu a
Política Nacional de Recursos Hídricos e trouxe a ideia de sua valoração econômica pela
primeira vez em uma lei brasileira. Começava, de fato, o caminho para a privatização do
patrimônio hídrico brasileiro.
A situação agravou-se com a criação da Agência Nacional de Águas - ANA, através
do Decreto 9.984, no ano 2000. A lei possibilitou administrar o patrimônio hídrico do país
como um recurso econômico e instituiu a sua cobrança por parte da ANA. Também passou
a exigir que cada estado da federação criasse uma Agência Estadual de Água para
reproduzir o modelo federal. Esta lei citou as palavras cobrança, ou termos a ela
relacionados como compensação financeira, arrecadação, receitas provenientes e
pagamento, treze vezes em seus artigos. Todos estes termos estão relacionadas com a
valoração econômica da água. Por outro lado, apenas uma vez a lei citou o termo
conservação qualitativa de recursos hídricos. Tal constatação demonstra qual era o real
interesse na criação da Agência Nacional de Águas por aquele governo.
Nos últimos anos, o processo de privatização da água no Brasil ganha folego com o
Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco – PTARSF – iniciado no governo
30
do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A água transposta será em grande parte utilizada
para o agronegócio na região semiárida do Nordeste e terá um custo inalcançável para os
pequenos proprietários da região, concentrando os recursos hídricos, em uma região já
marcada por esta dinâmica, nas mãos dos grandes proprietários e de empresas produtoras
da fruticultura irrigada (SILVA, 2013).
Conclusão
O hidronegócio como última fronteira a ser desbravada por empresas atreladas a este
novo mercado é uma realidade vivenciada por várias populações em todo o mundo. Longe
de resolver a questão, a mercantilização da água através da sua privatização terá apenas um
lado ganhador: os grupos econômicos que por ela são favorecidos.
O lucro gerado para estas empresas será imenso e há de aumentar em seus balanços
anuais, pois diferentemente de outros produtos, a água está pronta para a venda,
necessitando apenas ser distribuída.
Se devemos privatizar a água porque ela está cada vez mais escassa, esta atitude em
dois países que não sofrem com sua escassez como a França e a Inglaterra e outros países
europeus põe abaixo este discurso. Sua privatização nunca teve como foco a preocupação
com a preservação de rios, lagos, etc., ou a sua preservação para as futuras gerações. Posto
que a lei do mercado é o lucro máximo para sobrevivência da empresa, a apropriação e
exploração da água deverá aumentar de forma sempre crescente até exaurir-se o manancial.
A distribuição da água privatizada não alcançará os que dela necessitam e priorizará
apenas aqueles que podem por ela pagar. Os menos favorecidos da sociedade serão, mais
uma vez, privados de um direito essencial à sua sobrevivência.
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32
A docência em serviço social: percursos e perspectivas
Teaching in social service: paths and perspectives
Leandro Henrique de Araújo Leite1
Heitor Romero Marques2
Recebido em 23/02/2015; aceito em 10/06/2015
Resumo: No atual contexto os espaços sócio-ocupacionais do profissional de serviço social têm se
expandido e conquistado frentes de atuações em diversas áreas, dentre estas, a docência no ensino superior
tem apresentado uma significativa demanda para estes trabalhadores. Há de se considerar neste contexto o
expressivo aumento de universidades que ofertam o curso de Serviço Social e consequentemente a
especialização destes profissionais ao nível stricto sensu. Porém, ainda sim, o Assistente Social gradua-se
como bacharel, não sendo contemplada em sua grade curricular disciplinas específicas para a docência,
demanda esta que também é enorme. Ante ao exposto, o trabalho em tela, buscou por meio da metodologia
de revisão bibliográfica investigar como a prática docente do assistente social tem se alicerçado nesta área
de atuação. À guisa de considerações finais, pode-se inferir que, embora a graduação em Serviço Social
não seja em licenciatura, estes profissionais possuem respaldo no Projeto Ético-Político da profissão
sinalizando a docência em serviço social. Desse modo, docência em serviço social no ensino superior não
deixa de associar-se às bases de atuação do assistente social, que perpassa pelo fomento do protagonismo
e transmissão do conhecimento de forma dialógica.
Palavras-chave: Docência; Serviço Social; formação.
Abstract: In the present context the socio-occupational areas of social service professionals have expanded
and conquered performances fronts in several areas, among them, teaching in higher education has shown
significant demand for these workers. It should be considered in this context of the significant increase of
universities that offer the Social Service course and consequently the specialization of these professionals
to the strict sense level. However, even so, the social worker graduates himself as bachelor, not being
contemplated in their curriculum specific courses for teaching, demand that is also huge. Based on the
foregoing, this work, sought through the literature review methodology to investigate how the teaching
practice of the social worker has based this acting area. By way of final considerations, it can be inferred
that although the graduation in social service is not in licentiate degree, these professionals have support
from the Ethical-Political Project of the profession signaling teaching in social work. Thereby, teaching in
social service in higher education does not fail to associate the bases of social worker action, which
permeates through the fostering of protagonism and transmission of knowledge in dialogic way.
Key words: Teaching; Social Service; education.
1Mestre
em Desenvolvimento Local (UCDB), Bacharel em Serviço Social (ANHANGUERA UNIDERP), Professor e
coordenador do curso de Serviço Social das Faculdades de Campo Grande, e-mail: [email protected].
2 Doutor em Desarrollo local y planteamiento territorial (UCM – Madrid), Mestre em Educação – formação de
professores (UCDB), Licenciado em Ciências e Pedagogia (FUCMT), Especialista em História e Filosofia da Educação
(FUCMT), Coordenador do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local – UCDB, e-mail: [email protected].
33
Introdução
Nas últimas décadas o número de profissionais que atuam diretamente no
enfrentamento das questões sociais e diversas formas de violações de direitos tem
aumentado significadamente. Tal fato pode associar-se em dois grandes aspectos o
incremento de políticas públicas sociais que demandam destes profissionais e os diversos
programas de incentivo à formação universitária que acabaram por contribuir no aumento
do ingresso de estudantes no ensino superior.
Dentre os profissionais liberais que atuam nas diversas expressões das questões
sociais, o presente trabalho terá como enfoque principal o profissional de Serviço Social
com atuação no ensino superior enquanto docente, considerando que atualmente percebese uma intensificação na busca pela docência, enquanto espaço ocupacional pleiteado por
muitos assistentes sociais.
O Serviço Social em sua trajetória histórica tem se configurado como um curso
que forma profissionais para atuarem em diversas áreas, oportunizando a estes em sua
graduação uma formação inserida na divisão sócio-técnica do trabalho. Embora a
formação em Serviço Social apresente as bases para atuação profissional enquanto
assistente social, o currículo do curso não abarca as práticas de ensino direcionadas a
docência - com exceção das disciplinas voltadas para a pesquisa - considerando que o
curso forma bacharéis.
É imprescindível considerar que na prática da docência o assistente social também
atua na coletividade e com a diversidade, levando para a sala de aula um olhar bem
qualificado e crítico, fruto de sua formação em bacharelado, porém, sendo necessária uma
metodologia que privilegie o enfoque no ensino superior. Ante a esta realidade, o trabalho
em tela, buscou por meio de revisão bibliográfica, investigar as pesquisas que têm como
objeto de estudo a docência em serviço social, buscando refletir sobre a atuação do
assistente social no campo educacional no nível superior.
A formação em Serviço Social
34
Pensar na formação em serviço social exige olhar para esta, como uma graduação
que não está desassociada das heranças culturais, históricas e políticas (MENDES, ANO).
O Serviço Social que teve em sua raiz a formação atrelada à caridade, filantropia e
atividades direcionadas para a moralização pelo viés da igreja católica, construiu ao longo
do século XX uma história da formação de um tipo de profissional que atua com
embasamento teórico-metodológico e técnico-operativo.
No Brasil a graduação em Serviço Social surgiu, seguindo o movimento latinoamericano da especialização do trabalho social, ainda que com uma visão que não tinha
a criticidade da realidade social distanciada da religiosidade e caridade. Em 1932 em São
Paulo foi iniciado no Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) o curso de Formação
Social (YASBEK, 1977). Em 1935 no CEAS foi implantado o curso de Serviço Social
com a criação da Escola de Serviço Social de São Paulo (YASBEK, 1977).
A gênese da formação em Serviço Social, por estar vinculada a instituições de
ensino católicas e ser destinado, primeiramente às moças que desejassem “ajudar o
próximo” agrega no seu currículo práticas moralizantes para atuar com os sujeitos
“desajustados socialmente”, especialmente quando se busca relacionar tais práticas na
década de 1940, quando o país estava passando por diversas metamorfoses culturais e os
assistentes sociais atuavam ainda a favor da classe burguesa. SegundoYasbeck e Silva
(2005,p. 27):
Essa busca da matriz positivista e de sua apreensão manipuladora,
instrumental e imediata do ser social vai abordar as relações sociais dos
indivíduos no plano de suas vivências imediatas, como fatos(dados) que
se apresentam em sua objetividade e imediaticidade. É a perspectiva
positivista que restringe a visão de teoria ao âmbito do verificável, da
experimentação e da fragmentação. Não aponta para mudanças, senão
dentro da ordem estabelecida, voltando-se antes para ajustes e
conservação. Especialmente em sua orientação funcionalista, esta
abordagem é absorvida pelo Serviço Social,configurando para a
profissão propostas de trabalho ajustodoras e um perfil manipulatório,
voltado para o aperfeiçoamento dos instrumentos e técnicas para a
intervenção, com metodologias de ação [...].
A expansão de instituições de ensino superior que passaram a ofertar o curso de
Serviço Social após a criação deste no CEAS, mobilizaram os profissionais a instituírem
a Associação Brasileira de Ensino de Serviço Social (ABEPSS), objetivando estabelecer
um padrão de ensino entre as instituições (SÁ, 1995).
35
Em 1953 a Lei nº 1889, de julho de 1953 regulamenta o curso de Serviço Social,
instituindo este como uma formação em nível superior que deverá ser desenvolvida em
pelo menos três anos, ressalta-se que na lei em questão já é proposta uma grade curricular
basilar que engloba as disciplinas teóricas e as aulas práticas no último ano.
As transformações na formação do assistente social devido à organização de uma
estrutura curricular e pela busca de uma cientificidade para a profissão, contribui ainda
que neste contexto de modo muito sucinto, para o distanciamento da visão de benesse e
caritativa empregada a um Serviço Social sem bases teóricas, que poderia ser
desenvolvido por qualquer pessoa que tenha “boas intenções de ajuda”. Para Werner
(2010, p.55):
Nos anos de 1960, o Serviço Social já não foi mais visto como
apostoloado ou vocação, mas como uma profissão, com base conceitual
técnica. O artigo primeiro do Decreto de Regulamentação da Profissão
deixa claro que o Serviço Social constitui o objeto da profissão liberal
de Assistente Social, de natureza técnica e científica.
Entre os anos de 1960 a 1970 estudiosos e trabalhadores do Serviço Social
buscavam romper com a formação e prática tradicionalista, este cenário está presente no
Movimento de Reconceituação do Serviço Social (NETTO, 1991). Segundo Netto (1991)
o Movimento de Reconceituação iniciou no I Seminário Regional Latino-Americano de
Serviço Social.
Em 1970 na cidade de Teresópolis aconteceu o II Seminário de Teorização do
Serviço Social. Este evento foi de fundamental importância para a formação em Serviço
Social no que se refere à metodologia e disciplinas que exigiam do profissional neste
contexto histórico uma análise mais crítica da realidade, a exemplo das disciplinas
Política Social e Economia (NETTO, 1991).
A formação em Serviço Social acaba por não desassociar-se das transformações
que a sociedade apresenta, considerando que o profissional de serviço social tem sua
prática no campo social em diferentes espaços sócio-ocupacionais. No final dos anos 1990
o foco de atuação do profissional de Serviço Social tornou-se mais claro devido ao
comprometimento com um projeto societário com a justiça social, quando a classe
vislumbra a questão social como objeto do Serviço Social.
36
Segundo Martins (2009, p.86) conforme as Diretrizes Curriculares de 2001 os
profissionais do Serviço Social então “[...] têm como base a questão social alicerçada na
dinâmica da vida social e no mundo do trabalho. Neste contexto, busca-se compreender
e apreender o significado social da profissão enquanto especializaçãodo trabalho
coletivo”. Deste modo, a formação em Serviço Social, parte da perspectiva da
emancipação humana e da mediação das expressões das questões sociais.
Em vista do exposto, infere-se sob o aporte de Iamamoto (2009, p. 14) que o [...]
assistente social é proprietário de sua força de trabalho especializada. Ela é produto da
formação universitária que o capacita a realizar um “trabalho complexo” [...],
desmitificando uma visão muito errônea e equivocada de que o serviço social pode ser
realizado por qualquer sujeito que desenvolva “práticas sociais” (MONTAÑO, 2009).
De igual modo também se pode inferir que o profissional de Serviço Social deva
necessariamente, fazer parte da formação das novas gerações de Assistentes Sociais e que
para isso é necessário atuar enquanto professor/educador em cursos específicos da área,
bem como em outros cursos que por ventura abordem a problemática da Assistência
Social.
A docência em Serviço Social
O percurso histórico da formação em Serviço Social apresentou como este curso
foi construído e delineado por diversas transformações no campo social, que repercutiram
e influenciaram a prática no ensino. O Serviço Social por formar profissionais que irão
atuar diretamente com as variadas expressões da questão social, busca fomentar no
discente uma visão crítica e a leitura da sociedade a partir dos pressupostos teóricos e
metodológicos do curso.
Paulo Freire (1996, p. 47) corrobora, no que concerne a
prática docente afirmando que:
É preciso insistir: este saber necessário ao professor – que ensinar não
é transferir conhecimento – não apenas precisa de ser apreendido por
ele e pelos educandos nas suas razões de ser – ontológica, política, ética,
epistemológica, pedagógica, mas também precisar de ser
constantemente testemunhado, vivido.
No caminhar da história do Serviço Social é possível perceber que em muitos
momentos o profissional Assistente Social teve sua prática caracterizada como
37
imediatista e sem instrumentalização e que a academia em determinado contexto era
considerada um luxo do Serviço Social, pois se destinava a poucos (PEREIRA, 2005).
Hoje, muitos profissionais do Serviço Social ainda possuem incertezas e desafios sobre a
atuação no ensino superior (PINTO, 2013), apesar deste trabalhador também desenvolver,
no desempenho da função de Assistente Social práticas educativas não-formais
(FAUSTINI, 2004).
Hodiernamente compreende-se que o professor universitário não é visto mais, tão
somente, como um profissional da área que alcançou grande notoriedade em sua atuação
técnica e foi convidado enquanto docente para transmitir aos alunos suas práticas exitosas
(MASETTO, 2003). Somente tais competências, não subsidiam a prática docente, mas
sim a necessidade do domínio pedagógico no ensino, sendo este capacitado para tal
(MASETTO, 2003). Somente a transmissão do conhecimento não é necessária, a prática
do educador vai além de “repassar” seu conhecimento, mas [...] atualizar e melhorar as
habilidades pedagógicas, por meio de programas apropriados ao desenvolvimento de
pessoal.” (UNESCO, 1998 apud MASETTO, 2003, p. 16).
A educação é intrínseca da natureza do ser humano, assim, “[...] o trabalho
educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a
humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens
(SAVIANI, 2003, p. 17).”
Embora a docência em Serviço Social não seja a atuação mais exercida pelo
profissional Assistente Social, esta prática é respaldada e inserida no espaço sócioocupacional do Assistente Social vinculado ao Projeto Ético-Político do Serviço Social.
Este exercício, corrobora na produção do conhecimento e contribuição para a formação
de uma sociedade mais justa e igualitária. No mesmo sentido, a Lei nº 8662, de
Regulamentação da Profissão de 07 de junho de 1993, dispõe em seu artigo 5º:
Art. 5º Constituem atribuições privativas do Assistente Social:
V – assumir, no magistério de Serviço Social tanto no nível
degraduação com pós-graduação, disciplinas e funções que
exijamconhecimentos próprios e adquiridos em curso de formação
regular;
VI – treinamento, avaliação e supervisão direta de estagiários deServiço
Social;
VII – dirigir e coordenar Unidades de Ensino e Cursos de
ServiçoSocial, de graduação e pós-graduação.
38
A atuação profissional do assistente social no ensino superior carrega incertezas e
desafios desde o início, considerando que o curso não é de licenciatura, contudo o Projeto
Ético-Político do Serviço Social dispõe quea prática docente é uma das áreas de atuação
do assistente social, conforme a citação acima. Importante relacionar o Projeto ÉticoPolítico com o pensamento de Tardif (2007), quando a autora relaciona a docência como
exercício profissional.
Há de se considerar que se relacionado a prática do assistente social no
atendimento socioassistencial direto com a docência (FAUSTINI, 2004), este sobressaise com relação ao segundo, devido às demandas e mercado de trabalho. Porém, o
profissional de serviço social necessita [...] avançar e assumir a docência como espaço
ocupacional importante no mercado de trabalho atual inseri-la nas discussões sobre
exercício profissional da mesma forma [...] a atuação na docência exige atitude
propositiva, investigativa e criativa ao processo ensino-aprendizagem, em um campo de
atuação com expressiva demanda aos assistentes sociais” (MARTINS, 2006, p. 220-1).
Em outro viés pode-se dizer que o Assistente Social, na condição de professor
universitário deverá ter as virtudes inerentes a todo educador e procurar ser, na prática, o
protótipo humano que deseja formar para a sociedade, isso porque a educação se realiza
notadamente pelo exemplo. Como em sua formação acadêmica, conforme salientado
acima, não constam matérias pedagógicas, o Assistente Social, no exercício do
magistério, termina, a exemplo de outros profissionais bacharéis, desenvolvendo uma
didática especial, no trato das questões relacionadas ao processo ensino-aprendizagem.
Além das questões relacionadas às condições profissionais, expressas pela
erudição crítica e atitude inquisitiva, probidade magisterial, alegria e bom humor e pela
vocação pedagógica, consubstanciada no amor pedagógico, no sentido de valores, na
consciência de responsabilidade e no tato pedagógico (LARROYO, 1974) o Assistente
Social, no exercício da função docente deve como qualquer outro professor/educador
exercer funções específicas referentes à rotina do magistério. Segundo Marques (2012,
p.70) as funções do professor universitário são múltiplas e podem ser, ainda que
resumidamente, assim explicitadas:
1. Planejar estudos e trabalhos adequados aos estudantes e às exigências
técnicas dfe formação profissional específica;
2. Orientar seus discípulos para verem e sentirem a realidade exterior;
3. Controlar os resultados dos estudos, a fim de poder retificá-los,
suplementá-los ou ampliá-los quando possível ou necessário;
39
4. Poupar esforços desnecessários aos estudantes, para que os mesmos
sejam aplicados em tarefas mais produtivas e úteis;
5. Graduar dificuldades para propiciar sucessos e estimúlar o estudante,
ao mesmo tempo que vai exigindo, progressivamente, mais esforços e
dedicação aos estudos;
6. Escolher situações representativas e significativas para as experiências
dos estudantes, de maneira a levar a apreender o fundamental da sau
disciplina;
7. Predispor os estudantes para atuarem no meio social como profissionais
e cidadãos;
8. Favorecer a formação de uma consciência sociomoral nos estudantes,
com relação ao exercício da profissão, ressaltando que a mesma deverá
estar mais voltada para os interesses sociais do que propriamente para
os pessoais;
9. Orientar a sua ação docente para que instrua e forme simultaneamente;
10. Orientar a sua ação de professor, não como inquiridor, mas como
estimulador e cooperador na formação universitária de seus discípulos;
11. Conhecer seus discípulos sob diversos aspectos, principalmente, para
estimulá-los a superar deficiências e orientá-los mais para a pesquisa ou
exercício da profissão, segundo suas aptidões e aspirações e
12. Instalar, continuamente, ideais e atitudes positivas diante da vida e da
sociedade.
Ainda nessa diapasão do trabalho do professor e criatividade na sala de aula
universitária, Castanho (2000) salienta que o momento socioeconômico e político vivido
atualmente no Brasil exige profundas mudanças e rupturas em todos os níveis da atividade
humana. Toda a vida institucional encontra-se em crise. Há indagações no ar.
Desesperanças e no entanto, é preciso ir em frente e agir de modo consequente. A
educação, em todos os níveis, precisa de uma nova postura. O ensino tradicional
paulatinamente vem dando lugar a práticas alternativas que devem levar ao
desenvolvimento global dos educandos e acender o entusiasmo para lutar por uma
sociedade diferente, reestruturada.
Considerações finais
Pode-se inferir, ainda que à guisa de considerações finais, que a atuação
profissional do assistente social no ensino superior carrega incertezas e desafios desde o
início, considerando que o curso não é de licenciatura, contudo o Projeto Ético-Político
do Serviço Social dispõe a prática docente como uma das áreas de atuação do assistente
social.
40
No entanto, percebe-se com a pesquisa realizada a insegurança dos assistentes
sociais ao ingressarem na docência no ensino superior. Ainda sim, estes entraves têm sido
superados com o estudo permanente e qualificação profissional, a prática do assistente
social enquanto educador visa contribuir para a formação do aluno na apreensão da
realidade social que o cerca e nos processos de transformações sociais, processos estes,
que também no ato de ensinar gradativamente também contribui na sua prática docente.
Cabe registrar, que embora a prática docente seja uma das frentes de trabalho do
assistente social, ao que se refere a produções científicas e pesquisas que tenham como
objeto de estudo a docência em Serviço Social, ainda apresenta-se um campo de estudo a
ser mais explorado.
Desse modo, docência em serviço social no ensino superior não deixa de associarse as bases de atuação do assistente social, que perpassam pelo fomento ao protagonismo
e transmissão do conhecimento de forma dialógica.
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43
Sociologia das organizações como mecanismo de aprendizagem: Um
olhar a luz da organização escolar moçambicana
Sociology of organizations as a mechanism of learning: An address from the light of the
mozambican school organization.
Pedro João Uetela1
Recebido em 04/02/2015; aceito em 10/06/2015
Resumo: O presente artigo tem como objetivo ilustrar a institucionalização da aprendizagem tanto
individual quanto institucional na arena da sociologia das organizações, contribuindo para a idealização de
um modelo de organização aprendente. O trabalho analisa as principais teorias de aprendizagem
organizacional e como estas constituem desafio no panorama organizacional escolar Moçambicano.
Palavras-chave: Organizações-aprendizagem-Moçambique
Abstract: This article is aimed at illustrating the comprehension and institutionalisation of learning either
individual or organizational in the arena of sociology of organizations, contributing to the idealisation
patterns of a learning organisation. The article analyses the main theories of organisational learning and
how these constitute a challenge for the Mozambican school organizational framework.
Key words: Organizations-learning-Mozambique
1
Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho-UNESP,
na cidade de Araraquara/ SP, é mestre em Gestão e Direção da Educação pela Universidade de Sydney
Austrália, possui diploma em Estudos do Ensino Superior e Desenvolvimento pelo intercâmbio entre as
Universidade Eduardo Mondlane, de Moçambique e a Universidade de Oslo/ Noruega e graduação em
ensino de filosofia. Autor de artigos científicos em periódicos brasileiros e estrangeiros. Contato:
[email protected]
44
Introdução
As organizações em várias partes do mundo, são confrontadas por um período de
mudanças rápidas e constantes. Daí que, a pressão interna e externa imposta sobre elas
para mudar e melhorar, é maior. Hall (2003) e Bauman (2001) por exemplo foram
unânimes ao afirmarem que o leque de implicações que propiciam mudanças
institucionais no geral, se agravou com os discursos filosóficos sobre a modernidade e
pós-modernidade. Por sua vez Bauman (2001) foi além e referiu-se a dois fenômenos que
se destacaram para popularizar as mudanças no seio das instituições nomeadamente a
passagem do que ele chamou de modernidade sólida para líquida. (p. 7). A sua análise
parece considerar que as teorias da modernidade anterior (sólida), se radicalizaram
naquelas da modernidade posterior (a líquida), podendo se pensar daí que a fluidez ou
dinâmica substituem o estaticismo resultando em modernidade reflexiva ou pósmodernidade. (BAUMAN, 2001. Pp. 7-63). A passagem de uma época para outra,
significou a imposição de novas características para as organizações e a conseqüente
ocorrência de mudanças constantes. Como resultado, os elementos chaves de liderança,
missão e visão tem vindo a ser fundamentais para o desenvolvimento de uma cultura
organizacional que promove eficiência, excelência e melhoria contínua dentro das
instituições independentemente da dimensão de análise. No presente trabalho pretendese aclarar até que ponto a escola é uma organização aprendente, desta feita a escola num
contexto específico de Moçambique. O mesmo se assenta inicialmente sobre a
popularização das teorias de sociologia organizacional com destaque para organizações
aprendentes, aprendizagem organizacional, metodologias de organizações aprendentes
culminando com a análise de como a escola se transforma e aprende. A origem do estudo
encontra-se entremeado aos discursos contemporâneos apresentados por vários autores
da teoria e sociologia organizacional. Entre estes a narrativa dominante cunhada por
Wheatley (2009) e segundo a qual o século XXI marcou o declínio de modelos
determinísticos, agendas e tipologias tradicionais de gestão porque estes pareciam ser
insuficientes para ditar a continuidade de existência institucional numa era dominada por
tecnologias de informação e comunicação, da economia baseada no conhecimento, de
incertezas e rápida transformação da sociedade. Giddens (2001) explica o mesmo caso
nos seguintes termos:
[...] Essa extraordinária e acelerada relação entre as relações do dia-a-dia e os
resultados globais sobre a vida individual compõem o principal tema de nova
45
agenda. As conexões envolvidas são frequentemente muito próximas.
Coletividades e agrupamentos intermediários de todos os tipos, incluindo o
Estado, não desaparecem em consequência disso, mas realmente tendem a ser
reorganizados ou reformulados. (GIDDENS, 2001, p. 24).
Neste contexto parece que muitas organizações incluindo instituições escolares
compreendem paulatinamente que o seu sucesso depende delas transformarem-se em
organizações que constantemente se guiam pela aprendizagem. Mas o que é uma
organização aprendente, qual o processo de criação da mesma e o que é que isso significa
para uma instituição de ensino?, Quais são os indicadores ou equação aplicada para medir
a aprendizagem no aparato organizacional escolar?, Qual a diferença entre aprendizagem
organizacional e organização aprendente?
Apesar de vários autores Argyris & Schon (1986) e Fiol & Lyles (1995) terem
seguido a tese de C. Wright Mills sobre imaginação sociológica (Giddens, 2001, p. 19)
no campo organizacional, a teorização dos autores parece não caber em alguns aspetos
para explicar a escola Moçambicana no caminho que trilha para se transformar em
organização aprendente. Sendo assim, de entre as diversas teses formuladas ao longo do
artigo, sublinha-se que o sucesso de qualquer organização incluindo da escola
moçambicana deve passar necessariamente de transformação em organização que
aprende. Para efeito, há uma série de atores apontados no artigo como fundamentais para
a materialização desta transformação incluindo o modelo de liderança que a instituição
aplica, as ações dos atores e a habilidade de adaptação a novos métodos de organização.
Revisão da Literatura
Na perspectiva apresentada por Hatch & Cuncliffe (2006) sobre a sociologia das
organizações, a década de 60 foi marcante no atinente a estudos sistemáticos sobre
instituições. (Hatch & Cuncliffe, 2006, p. 25). Na sociologia política, Ferejohn &
Pasquino (2001), Hall & Taylor (2003), March & Olsen (2008) e Peres (2008)
posteriormente popularizaram as teorias organizacionais aparentemente desenvolvidas
pelos autores acima através das teorias do institucionalismo e neo-institucionalismo.
Todavia, isso não significou a ausência de pesquisas sobre organizações anteriores aos 2
períodos. Alguns estudos tinham sido conduzidos tanto na europa quanto nos estados
46
unidos depois da revolução industrial para compreender as relações industriais, psicologia
industrial e organizacional, sociologia organizacional, teoria administrativa e
comportamento organizacional. (Hatch & Cuncliffe, 2006. p. 1-25).
Desta feita a sistematização das organizações como campo social de estudo é
resultado de esforços empreendidos por vários pensadores cuja categorização está
ancorada de uma forma resumida a duas correntes, a dos sociólogos interessados em
compreender a influência da industrialização na natureza do trabalho e a dos proponentes
da teoria clássica com o interesse de entender a gestão das indústrias. (Hatch & Cuncliffe,
2006, p. 18).
A partir dos anos 1960 em diante, muitas organizações tem vindo a compreender
que não podem sobreviver se não mudarem constantemente de estratégias passando por
criação de mecanismos de aprendizagem a vários níveis. É neste milieu que Nevis et al
(1995) e Wheatley (2009) criticaram o primeiro período (antes de década de 60) fundado
no funcionamento das organizações tanto empresariais quanto escolares em moldes
baseados na linearidade e automatismo justificado pelo pressuposto de que existe uma
sequência lógica dos acontecimentos.
Se calhar a teoria marxiana sobre a teleologia da história havia impregnado até o
mundo empresarial uma vez que, embora antipático a Comte, Marx por exemplo partilhou
a estilo do sociólogo francês a tese da teleologia e que no entender deste, havia processos
históricos longos que direcionariam a humanidade para um determinado fim preestabelecido. (GIDDENS, 1998, p. 73s). Consequentemente, parece que muitas
organizações se simpatizam posteriormente com a teoria do direcionamento para tal fim
através de modelos lineares e autómatos de gestão.
Todavia, antes da concretização da teleologia profética de Comte e Marx parece
que o cenário reverteu-se devido ao incremento das incertezas notando-se um cepticismo
sobre tal linearidade e consequentemente a necessidade da constante aprendizagem
dentro das organizações através de mudanças de regras de jogo.
Preocupados com a génesis do cepticismo na sociologia das organizações Watkins
& Marsik (1993) postularam que esta incredulidade da linearidade institucional na
contemporaneidade era resultado de transformações influenciadas pela mudança dentro
das próprias organizações e consequentemente a mudança da natureza do trabalho dentro
47
destas, da força de trabalho e na forma como esta força de trabalho aprende. (Watkins &
Marsick, 1993, p. 18).
Para testar a tese de Watkins & Marsick (1993), Nevis et al (1995) fezeram
estudos de caso com mesmo intuito de perceber a origem das mudanças organizacionais
bem como a consolidação da aprendizagem em 4 diferentes empresas nomeadamente
Motorola, Mutual Investment Corporation, Electricite de France e na Fiat, tendo
chegado a várias teses. Inicialmente os resultados do estudo mostram que em cada uma
destas organizações a mudança da natureza de trabalho, é evidente e cada uma das
instituições adopta como solução a criação de sistemas que facilitam a aprendizagem
internamente. (Nevis et al 1995, p. 19). Segundo, em todas estas organizações os
membros aprendem em colectivo como parte do seu desenvolvimento. Por último os
resultados da Motorola por exemplo, revelaram a existência de esforços de aprendizagem
durante longos anos da tentativa da organização para melhorar a sua produtividade.
(Nevis et al 1995, 13).
Os indicadores analisados por Nevis para medir se a organização era ou não
aprendente foram grupos de indivíduos que executam um determinado trabalho e devem
obediência ao gestor e com a análise das entrevistas com os trabalhadores chegaram desta
forma à inferência de existência da aprendizagem nestas organizações. (Nevis et al, 1995,
p. 20). Outro indicador aplicado foram os canais de comunicação que facilitam
aprendizagem das organizações. Todas as 4 empresas apresentaram processos, estruturas
tanto formais quanto informais de partilha, aquisição e utilização do conhecimento e
competências que só podem existir numa organização que constantemente muda e
aprende. Por fim, a existência de aprendizagem nestas organizações era determinada pela
cultura já estabelecida pela empresa. (Nevis et al, 1995, p. 19). Mas como é que a
organização aprende a ser aprendente, como se alcança o nível visto por Nevis nas 4
organizações e como isso pode se repercute para nas organizações escolares?
Dois autores da sociologia das organizações tentaram com sucesso mostrar os
mecanismos de aprendizagem organizacional a partir da diferenciação entre organização
aprendente e aprendizagem organizacional. Argyris & Schon (1996) distinguem
organizações aprendentes e aprendizagem organizacional da seguinte forma. Enquanto
organizações aprendentes seriam todas aquelas que mudam, ajustam-se e adaptam-se ao
ambiente, a aprendizagem organizacional refere-se a capacidade ou processo dentro da
48
organização de manter ou inovar a sua performance com base na experiência. (Argyris &
Schon, 1996, pp. 1-25). A aprendizagem neste sentido ocorre ao nível do sistema
organizacional porque fica dentro da instituição mesmo que os indivíduos mudem, dai a
ideia de que as pessoas aprecem e desaparecem mas a organização permanece. (Argyris
& Schon, 1996, p. 23). Tal imaginação sociológica de Argyris & Schon (1996) conforme
anteriormente se referiu parece ser herdada de Brown (1952) sobre a importância da
estrutura e função da instituição na determinação da dinâmica e estaticismo tanto dos
agentes quanto da estrutura institucional. (p. 119).
A aprendizagem organizacional doutro lado ocorre quando os agentes dentro da
estrutura da organização enfrentam uma situação problemática e questionam sobre o
problema em nome da instituição, quando os indivíduos vivem um antagonismo entre
resultados esperados com a situação atual e tentam responder a tal antagonismo através
da alteração das imagens organizacionais, reestruturação das suas atividades de modo a
trazer espectativas e alterar a teoria em aplicação theory-in-use. (Gareth, 1997, p. 13).
Parece que o que se nota aqui é esta materialização da tese funcionalista de Brown (1952)
sobre dinâmica de funções e permanência da estrutura.
Não obstante, todas estas abordagem embora pareçam divergir, são unânimes na
afirmação de que as organizações até um certo ponto aprendem. Mas como é que elas
aprendem e o que distingue uma organização aprendente da não aprendente não é
unânime entre teóricos da sociologia organizacional.
Argyris & Schon (1996) por exemplo conceptualizaram um modelo lógico sobre
organização aprendente com 3 características. Primeiro, é que uma organização
aprendente pode ser determinada pela forma como o processo de aprendizagem pelos
membros da organização é concebido. Segundo, é que a aprendizagem pode se dar em 2
níveis single Loop2 e double loop3. (Argyris & Schon, 1996, p. 8). E por fim estes níveis
de aprendizagem correspondem ao low-level learning 4 e higher level learning 5 na
2
Aprendizagem indesejável ou a um nível muito baixo
3
Aprendizagem desejada e que altera as estruturas funcionais
4
Aprendizagem não no nível desejado
5
Aprendizagem bem sucedida
49
perspectiva de Fiol & Lyles (1995). A diferença entre as duas combinações de modelos
de aprendizagem é que enquanto a anterior (single-loop ou Lower level learning) é
composto por uma estrutura que caracteriza apenas parte do que a organização faz, a
posterior (double loop ou higher level learning) tem como objetivo alterar as regras e
normas do comportamento dos agentes da organização ou instituição no seu todo. A
explicação desta conceptualização de aprendizagem organizacional, segundo o modelo
de Fiol e Lyle (1995) pode ser resumido na figura abaixo.
FIG.1 Conceptualização de níveis de aprendizagem organizacional
Alto6
5
4C
Nivel de
3
aprendizagem
2
1
A
0
o Baixo
Nível de
Mudança
organizacional
D
B
0
0,2
0,4
0,6
0,8
1
Alto
1,2
Fonte: Fiol & Lyles, 1995
Conforme pode se notar na figura, a aprendizagem organizacional ocorre nos
diferentes níveis correspondendo a representação organizacional indicada pelas letras A,
B, C e D. Fiol & Lyles (1995) tentaram perceber a ligação que existe entre aprendizagem
organizacional e mudança organizacional que por sua vez conduz à organização
aprendente. (Fiol & Lyles, 1995, pp. 1-20). Há neste perspetiva 4 níveis de aprendizagem
que corresponderiam a categorização de organizações aprendentes em 4 tipologias de
acordo com o nível. O tipo A de organizações apresenta baixos níveis tanto de
aprendizagem quanto de mudança. Este tipo de organizações acreditam que o mundo e
os acontecimentos são estáveis e fácil de controlar daí que não há necessidade de alterar
o status quo e modo operandi. Organizações do tipo B apresentam altos níveis de
mudança da teoria a ser aplicada theory-in-use mas dificilmente aprendem. O exemplo
deste tipo de organizações são aquelas que no momento de crise experimentam várias
50
estratégias e por calha uma dessas estratégias acaba resolvendo o problema. Dificilmente
a organização deste tipo pode aprender uma vez que tendo alcançado o sucesso por
probabilidades fica difícil instalar na memória organizacional a teoria que ditou tal
resolução de crise. Memória organizacional corresponderia ao que Brown (1952)
considera de estrutura da instituição. Parece ser este o significado de single loop learning
ou low level learning anteriormente mencionada porque o que pode acontecer é que os
indivíduos ou parte dos participantes da organização mudam o comportamento mas sem
alter as regras da organização. Por seu turno as organizações do tipo C e D são modelos
ideais de uma organização aprendente porque apresentam altos níveis de mudança e de
aprendizagem. (Fiol & Lyles, 1995, p. 11). É nesta perspectiva que Handy (1986)
caracterizou a organização aprendente como aquela que constantemente muda de
estratégia e muitas vezes não sente-se realizada pelo sucesso alcançado daí ter recorrido
as curvas de organização aprendente vulgarmente conhecidas por (Sigmoid Curves) de
aprendizagem a seguir representadas.
FIG.2
8
7
Topo
6
Topo
5
4
Topo
3
A
B
A
C
2
1
0
0
1
Linhas estratégicas para sucesso de uma
organização
aprendente
2
3
4
5
Fonte: (Handy, 1986).
Para Handy (1986) uma organização aprendente é aquela que está constantemente
a adoptar novas estratégias e mudanças dentro da instituição mesmo perante um sucesso
(Handy, 1986, p. 1). Segundo este teorista organizacional uma organização aprendente
está em constante reajustamento do seu sistema numa tentativa de melhorar cada vez
mais. (Handy, 1986, p. 1). Como se pode notar a primeira estratégia adoptada pela
organização representada no gráfico 2 foi (A). Esta estratégia mostra o sucesso crescente
51
da instituição, mas não obstante, antes de atingir o topo do sucesso uma nova estratégia
já tinha começado dentro da empresa e designada por (B). Por sua vez estratégia B antes
de atingir o topo do sucesso uma outra estratégia já havia iniciado que é (C) e assim em
diante. Comparando o topo dos sucessos, (B) é maior que (A) e (B) é menor que (C). Para
Handy (1986) este é modelo ideal de uma organização aprendente e porque as
organizações estão num período de incertezas, a sua continuidade de existência e sucesso
depende necessariamente de renovação e invenção constante das estratégias. (Handy,
1986, p. 2).Contudo, estas teorias não só servem para o contexto aqui apresentado e das
organizações estudadas pelos autores. Quando devidamente contextualizadas podem
fazer das instituições Moçambicanas também como organizações aprendentes sobretudo
as escolas.
Quadro analítico e resultados
As abordagens discutidas na sessão anterior, parece terem-nos conduzido a
maiores probabilidades de existência de organizações aprendentes. Aliás as incertezas e
as constantes mudanças do presente fazem com que muitas organizações cheguem a
conclusão de que o seu sucesso e continuidade existencial depende delas transformaremse em organizações aprendentes. Mais ainda, novos modelos organizacionais que
facilitam a aprendizagem são adoptados por várias instituições como reconhecimento de
que tais novas incertezas não podem ser analisados através de aplicação de métodos
antigos.
Os novos modelos parece sugerirem abandono das teorias tradicionais da
organização das instituições por exemplo sugeridas por Bush (2003) que apontou para
existência de modelos formais que fazem duma organização ideal nomeadamente
estruturas, sistemas, hierarquias, burocracia e racionalidade. (BUSH, 2003, p. 12).
Embora estes elementos façam parte da organização, a sua aplicação no domínio
institucional contemporâneo, parece não ser inquestionável para caracterizar uma
organização ideal visto que são considerados como promotores de atuação mecânica e
autómata dos indivíduos e das organizações equivocando o aspecto ético no trabalho.
Mais ainda, as incertezas institucionais provam que nada é autómata e conforme
ilustraram os modelos das organizações aprendentes analisados anteriormente, são
52
antagónicos ao mecanicismo promovendo desta feita uma constante inovação das
estratégias, o envolvimento dos agentes, trabalho coordenado, participação e partilha de
poder entre os seus membros a todos os níveis de tomada de decisões e encorajam uma
visão que parece ser contraria às hierarquias estruturais.
Todavia, estes que constituem desafios para viragem da escola Moçambicana em
aprendente, sua minimização parece assentar-se na coesão da contradição entre a
sociologia de Durkheim e Weber como parte de solução. Enquanto Durkheim justificava
a existência da ordem na sociedade como resultado da aglutinação e ausência de anomie
na estrutura, para Weber a ordem na sociedade seria resultado da interpretação das ações
dos indivíduos uma vez que para o autor posterior, a estrutura é fixa e as ações dos
indivíduos dinâmicas e estas é que podem estar na origem das patologias sociais.
(Giddens, 1998, p. 41). Desta feita a existência ou não de aprendizagem no campo
organizacional no cotexto de Moçambique, parece que se assenta tanto na estrutura
quanto nas ações dos agentes.
Bazo (2010) por exemplo viu a centralização do poder no sistema escolar
Moçambicano e consequentemente sugere uma liderança de transformação que culmina
com a transformação da escola. (Bazo, 2010, p. 68). Esta abordagem parece sustentar
cada vez mais que o problema organizacional escolar em Moçambique está assente nas
ações e estrutura das ações resultantes do modelo de liderança em vigor que parece pautar
por aquilo que na França de Bourdeau & Passeron (2009) foi visto como modelo de
perpetuação de dominação e violação simbólica por parte dos dominadores do sistema e
do campo sobre os dominados.
Se o modelo de partilha de poder nas escolas Moçambicanas é centralizado,
parece que as teorias até aqui discutidas e que propiciam organizações aprendentes não
são válidas para o país. Em organizações com regimes centralizados, há altos níveis de
burocracia, fraco envolvimento dos participantes e uma tentativa para um tipo de
liderança chamado top down ou vertical. Organizações lideradas por esta ideologia,
correspondem ao modelo A da (figura 1) na perspectiva de Fiol & Lyles, (1995) que
consideram o ambiente estável, controlável e a consequente não existência da necessidade
de aprendizagem. Todavia, isso não fundamenta a inexistência total de aprendizagem em
organizações destes moldes mas sim que o nível de aprendizagem é baixo com
características de modelo B na figura 1.
53
Odhiambo que se preocupa com a diferença do poder entre países do norte e sul e
como isso se repercute na sociologia das organizações, afirma que enquanto no norte a
distância do poder entre subordinados e subordinantes é menor, no sul esta distância é
por sua vez maior-low power vs. high power distance. (Odhiambo, 2007, p. 8). Se esta
tese do autor constitui verdade, o fraco envolvimento dos participantes nas decisões e o
domínio da centralização pode ser algo que é definido pela natureza do poder no contexto
moçambicano uma vez este país fazer parte da zona sul.
Consequentemente, se a aprendizagem organizacional é resultado de
envolvimento e partilha de poder entre os agentes, então ainda há necessidade de
potenciar a participação e reverter o tipo de liderança para posterior ocorrência de altos
níveis de aprendizagem. Como já apontado anteriormente, isso não implica que as escolas
ou organizações no contexto moçambicano não são aprendentes. Talvez a forma como
elas aprendem seja diferente dos modelos aqui propostos pelos autores e o nível de
aprendizagem ainda baixo. Daí que a descentralização das decisões no contexto
Moçambicano para fazer das escolas organizações aprendentes é um desafio para a
liderança. Qual esse tipo de liderança organizacional e como o mesmo pode influenciar
na aprendizagem?
Duas teses foram formuladas em torno disso. A Primeira de Bazo (2010) aponta
que no contexto de Moçambique, a compreensão das instituições como organizações
aprendentes passa necessariamente da análise dos desafios da liderança de transformação
porque nela está assente a visão da instituição como organização aprendente. A segunda
e que complementa a anterior é de Odhiambo (2007) que aponta o papel de liderança na
definição do sucesso ou insucesso organizacional o que parece colocar um desafio para
os diretores das escolas na implementação de uma visão escolar partilhada e que
influencie o resto dos membros envolvidos.
A ausência de ideologia de aprendizagem e da escola como organização
aprendente nota-se mais em Moçambique no âmbito das dificuldades no processo de
implementação de reformas escolares. Daí que as escolas que agem como organizações
aprendentes nas perspetivas teóricas apresentadas na revisão da literatura deste artigo
seriam aquelas que criam mecanismos estruturais dentro do sistema escolar que facilitam
a aprendizagem colaborativa de todos os membros a todos os níveis. As reformas
escolares feitas recentemente em Moçambique, mostram um antagonismo entre dados
54
empíricos e objetivos pretendidos. O exemplo concreto é a implementação da política da
educação gratuita-free primary education policy. (AVENSTRUP, 2009, p. 215). A falha
em atingir os objetivos pré-estabelecidos pela política é tida como resultado do insucesso
em transformar a escola em organização aprendente e aplicação inadequada da liderança
de transformação.
A concepção de mudança escolar poderá ter sucesso caso haja uma transformação
de liderança contraria ao verticalismo e que considera o empoderamento e participação
como fundamentais na política de reforma educacional do país. Uma vez que as políticas
que visam mudança escolar são maioritariamente desenhados pelas elites dominantes na
linguagem de Bourdeau (1970) e aplicadas nas escolas (top-down), a estratégia impõe em
si um desafio para os líderes escolares na transformação da escola num museu de
organização aprendente. Maioritariamente, mudanças institucionais que começam do
topo da hierarquia do sistema, trazem em si novas responsabilidades para os
administradores das escolas e a preocupação é se estes estão preparados para responder à
demanda da política inclusive os outros atores dentro da estrutura escolar devido ao
modelo que é vertical.
Uma das provas deste desafio é referido pelo plano estratégico 1999-2004 que
mostra a existência das disparidades das habilidades e especialização entre as regiões do
país e entre sistemas. (Bazo, 2010, pp. 68-98). Este facto na perspectiva do autor tem
implicações na ineficiência da escola porque políticas de reformas teriam mais efeito
quando iniciadas da base e tendo em conta estas disparidades. Em Moçambique a falta de
competência de liderança nas áreas de gestão, gestão de recursos e planificação parece
constituírem outro problema para muitas organizações saírem tanto do estado de
organização não aprendente para aprendente, quanto do nível baixo ao mais alto. Desta
feita a necessidade da ideia de liderança de transformação, não só se deve verificar no
nível micro da escola como Bazo (2010) explica mas deve-se estender para o macro como
já se nota em Moçambique. Amaral et al (2003) descreveu o surgimento de
managerialismo e a implementação dos sistemas nacionais de avaliação de qualidade nas
universidades, ideologias também existentes duma certa forma para o contexto
Moçambicano. Com o managerialismo e sistemas nacionais de avaliação da qualidade,
há cada vez mais descentralização na tomada de decisões e coordenação de atividades
entre os membros. Uma vez descentralizada a tomada de decisões consequentemente o
55
envolvimento de todos os participantes e atores na definição dos destinos da escola
tomará lugar, o que parece ter começado no país embora a um nível aparentemente de
organizações do tipo A.
Na área de planificação estratégica das universidades, já há uma aparente
descentralização no que diz respeito a tomada de decisões e quase todos os membros
participam ativamente na discussão dos destinos tanto das escolas quanto das
universidades (Cfr. planificação estratégica 1999-2004). Todas estas ideias podem
resumir-se nas visões propostas na figuras 2 nomeadamente a ideia de planificar
constantemente e adoptar novas estratégias antes de atingir o topo do sucesso
institucional. Resumem-se também na enfâse na necessidade de colaboração dos
participantes da organização, na promoção das oportunidades contínuas de aprendizagem,
encorajamento de colaboração e na ideia de potenciar os indivíduos para uma visão
colectiva. Se estes e outros indicadores provam a existência de organização aprendente,
então as escolas no contexto moçambicano são também organizações aprendentes embora
sejam colocadas o desafio de se transformar cada vez mais, orientar-se pela liderança de
transformação e elevar desta feita o nível de aprendizagem.
Conclusões e implicações políticas
O presente artigo tinha como objetivo ilustrar a forma como as organizações
aprendem no geral e especificamente o desafio da escola moçambicana para se
transformar em organização aprendente. Das abordagens feitas destacou-se a diferença
entre organizações aprendentes e aprendizagem organizacional (learning organizations e
organizational learning). A ideia sobre organizações aprendentes tem a sua génesis nas
constantes mudanças globais e das incertezas que as organizações encaram
aparentemente como consequências da falha dos modelos mecânicos e autómatos de
gestão. Como resultado muitas instituições tem reconhecido cada vez mais que o seu
sucesso e continuidade de existência depende de transformarem-se em organizações
aprendentes. Duas figuras foram usadas neste trabalho como tentativa da explicação das
ações e do que significa ser uma organização aprendente. A primeira retrata quatro
diferentes organizações representadas por organização A, B, C e D e explica os níveis de
transformação das mesmas em organização aprendente. A segunda figura caracterizou a
56
organização aprendente em termos de estratégias constantemente adoptadas na visão de
Handy. Nesta perspectiva a organização aprendente não espera ir a falência para aprender
mas constantemente muda de estratégia e de teoria a ser aplicada theory –in use antes de
atingir o ponto mais alto do sucesso. A última parte contextualizou as teorias das
organizações aprendentes para o sistema escolar moçambicano e universitário. Dos
resultados obtidos a partir da análise atual da organização escolar em Moçambique
especificamente para as escolas e universidades, fica claro que a institucionalização de
organizações aprendentes ainda constitui um desafio mas que com um tipo de liderança
pode ser possível resgatar a instituição escolar. Esta tipologia de liderança deve encorajar
a descentralização de decisões, empoderamento e reverter o modelo top-down de desenho
e implementação de politicas de reforma em modelos horizontais. Como resultado ainda
há desafios de reajustamento das disparidades regionais da força de trabalho qualificado,
da capacidade dos administradores escolares em fim de pessoas habilitadas para
assumirem a liderança duma organização escolar já descentralizada e que culminará com
a consolidação de organização aprendente. Como resultado, a escola moçambicana ainda
não atingiu o grau desejado para classificar-se em organização aprendente. Para o caso
das universidades também fica a ideia que em Moçambique as novas políticas de gestão
tais como managerialismo, descentralização e implementação do sistema nacional da
avaliação de qualidade, promovem os indicadores discutidos e apresentados nas figuras
1 e 2 deste artigo, mas que ainda não produziram resultados suficientes para classificação
da universidade como uma organização aprendente de nível C e D tidos como ideais.
Consequentemente, se das várias características que fazem de uma organização
aprendente a escola moçambicana apresenta algumas então tem fundamento a nossa tese
de que a escola no contexto de Moçambique é uma organização aprendente mas ainda a
um nível baixo e não desejado.
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59
Consumo e estima social: análise sobre as motivações do consumo
ostentação por parte dos jovens das camadas populares
Consumption and social esteem: analysis about the conspicuous consumption
motivations by part of grassroots class’s youth
Eliana Vicente1
Recebido em 13/03/2015; aceito em 10/06/2015
Resumo: Neste artigo desenvolvo a ideia de que o atual consumo das camadas populares tem uma dimensão
simbólica ligada à aspiração de pertencimento social. Algumas práticas de consumo, notadamente aquelas
ligadas à aparência pessoal como roupas e acessórios, que são de demonstração pública, contribuem para
um sentimento de empoderamento e reversão de estigmas derivados da desigualdade social. Para tanto
analiso o consumo “ostentação” de parte dos jovens das periferias. Através de letras de música,
depoimentos retirados de reportagens e documentários procuro demonstrar que o consumo de produtos de
grifes desses jovens, tem a ver com questões referentes ao reconhecimento social. Me pauto sobre a ideia
de que na sociedade contemporânea, o poder de consumir coisas está conectado em grande medida ao
sucesso no mercado de trabalho, ou seja, à capacidade de ser uma pessoa produtiva; e que esta capacidade,
por sua vez, é uma das principais fontes de respeito e estima social. O contrário: a falta do desenvolvimento
de capacidades e de habilidades e a incapacidade de autossuficiência e consequente necessidade de
dependência levam à falta de respeito e à humilhação. Concluo que no caso aqui analisado, a apresentação
pessoal pela via do consumo ostentatório teria como principal motivação subjetiva a inclusão e não a
diferenciação social.
Palavras-chave: Desigualdade social; consumo ostentatório; inclusão social.
Abstract: In this article I develop the idea that the current consumption of the lower classes have a symbolic
dimension linked to the aspiration of social belonging. Some consumption practices, especially those
connected to personal appearance as clothing and accessories, which are public demonstration, contribute
to a sense of empowerment and reversal of stigmas from social inequality. Therefore, I analyze the
conspicuous consumption of a part of the youth from peripheral areas in Brazil. Through lyrics, testimonials
taken from reports and documentaries I try to demonstrate that the consumption of expensive brands by
these young people, has to do with issues related to social recognition. I’m guided by the idea that in
contemporary society, the power to consume things is broadly connected to success in the labor market, in
other words, the ability to be a productive person, and that this capacity, in turn, is a major source of respect
and social esteem. The contrary, the lack of capacity and skills development and self-sufficiency disability
and the resulting need for dependence lead to disrespect and humiliation. I conclude that in the case
analyzed here, the personal presentation via the conspicuous consumption would have inclusion and not
the social differentiation as the main subjective motivation.
Key words: Social inequality; conspicuous consumption; social inclusion.
1
Mestre em Antropologia na linha da Antropologia do Consumo pela Universidade Federal Fluminense
(UFF), Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista CAPES. Rua
José Lourenço Kelmer, S/n – Martelos. CEP: 36036-330. Tel. (32) 2102-3911 . Juíz de Fora - MG.
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Introdução
Há alguns anos, o Brasil vem assistindo a emergência de uma expressiva camada
da população tanto ultrapassando a linha da pobreza quanto engrossando a chamada
“nova classe média” 2 ou classe C. Ter uma casa com todos os itens de conforto
“fundamentais” deixou de ser um sonho inalcançável para se tornar uma realidade, ainda
que em “suaves” e inúmeras prestações.
O aquecimento da economia brasileira até alguns anos atrás (2004-2012), a alta
oferta de trabalho no setor de serviços e na construção civil (POCHMANN, 2012), as
baixas taxas de desemprego, entre outros fatores, aumentou significativamente o consumo
das camadas populares. Consumir o que é fundamental, como roupas e alimentos básicos
para a sobrevivência deixou de ser uma preocupação para a maior parte desse segmento.
Assim, a possibilidade de acesso a uma gama maior de produtos e serviços foi se
concretizando. O jogo do consumo passou a ser mais acessível e milhões entraram em
campo, incentivados pela razão de ser do sistema capitalista, a livre oferta e a liberdade
de escolha.
Entre os jovens das camadas populares, os tênis de grife, o celular mais
“poderoso” e a viagem à Disney são alguns dos exemplos de acessibilidade a produtos e
serviços, antes restritos as camadas médias e altas. Na esteira dessa mudança, um
fenômeno recente que chamou a atenção da sociedade e provocou muita polemica foram
os denominados “rolezinhos”3 , principalmente, nos shoppings centers da capital paulista,
no final de 2013 e início de 2014. Os templos contemporâneos de consumo foram
literalmente invadidos por jovens das camadas populares não apenas ávidos por espaços
de lazer e convivência, mas, também, por espaços considerados por eles de acesso
legítimo.
A gênese da ideia de uma “nova classe média” no Brasil, em anos recentes, e o debate
acadêmico que esse tema suscitou podem ser encontrados em Neri (2010), Souza
(2010), Souza e Lamonieur (2010), Pochman (2012).
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“Rolezinho” é a denominação que os jovens paulistanos dão em referencia a dar um
passeio. O termo ficou bastante conhecido, quando em 2013, jovens moradores da
periferia da cidade de São Paulo marcaram encontros em shopping centers, através de
redes sociais.
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O chamado funk ostentação4 ou funk do bem5 é o exemplo mais proeminente entre
as manifestações culturais que revela a importância que esses jovens atribuem à posse de
produtos de luxo e a adesão a grifes famosas. Ainda que eles não sejam os únicos a
valorizarem esse tipo de produto – pois as camadas média e alta são os maiores
consumidores dessas categorias – o que chama a atenção especial nesse caso é a distância
em relação à realidade das periferias das grandes cidades brasileiras e o universo para o
qual essas marcas foram projetadas.
Neste artigo pretendo desenvolver uma reflexão a respeito do atual
comportamento de consumo dos jovens das camadas populares, argumentando que esse
comportamento se deve, em grande parte, a um desejo de inclusão social, ainda que de
fato apenas simbólica. Articulo questões relativas ao preconceito, às representações e ao
consumo. Para tanto, desenvolvo uma análise baseada em algumas letras do funk
ostentação, reportagens, entrevistas e documentários sobre esse gênero musical e os
"rolezinhos".
Enfim, objetivo aqui apresentar algumas possíveis interpretações para
determinadas práticas de consumo dos jovens das camadas populares, a fim de demonstrar
as conexões simbólicas entre o consumo de coisas caras por parte desses jovens e a busca
por respeito, aceitação e pertencimento social.
Funk Ostentação ou funk do bem como representação do imaginário
O funk que explodiu no Rio de Janeiro a partir dos anos de 1990 nas comunidades
cariocas, passou a ser rechaçado, por boa parte da sociedade, por conta de suas letras que
faziam apologia ao crime e às drogas. Sucesso em todo o país, esse gênero levou algum
tempo para ganhar o público de São Paulo. Irradiou-se para a maior cidade do país, a
partir da cidade de Santos e demais localidades da região litorânea do Estado conhecida
A expressão “funk ostentação” se refere a uma derivação do funk no Brasil vinculado à
cidade de São Paulo e à Baixada Santista, o qual se caracteriza por apresentar, em suas
letras, um apelo muito forte ao consumo de produtos e marcas caras. Os videoclipes das
músicas apresentam uma estética pautada na abundância: notas de dólares, joias, carros,
motos, jet-skis, bebidas e mulheres sensuais.
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A expressão “funk do bem” está em oposição à expressão “proibidão”, um tipo de
música do gênero funk com raízes nas comunidades cariocas que faz apologia ao crime e
às drogas.
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como Baixada Santista. Conquistando o público paulistano6, apenas, em anos recentes,
primeiramente nas danceterias badaladas da cidade, fincando definitivamente raízes na
zona leste e em outras regiões que concentram em sua periferia moradores das camadas
populares.
A partir daí uma nova vertente do gênero nasceu em São Paulo e na Baixada
Santista. Diferentemente do gênero hip hop que tomou conta de São Paulo nos anos de
1980 e 1990, cujo maior expoente foi o grupo musical Racionas MC, um tipo de
manifestação musical que negava o sistema e opunha-se ao consumismo, o funk
ostentação situa os jovens da periferia em cenários reservados até então aos jovens das
camadas médias e altas, e talvez esta seja a sua capacidade de transgressão, segundo
Pereira (2014). Esta transgressão está tanto nas letras como nos videoclipes que mostram
seus intérpretes ostentando dinheiro, joias, carros e motos possantes e mulheres em roupas
e gestos sensuais.
Desse modo, afastando-se não apenas da postura agressiva do funk estilo
“proibidão”, o funk ostentação surpreendeu no discurso, passando a valorizar itens de
consumo, principalmente artigos de luxo, como carros importados e roupas de grife,
características que lhe renderam o complemento, ostentação. Ainda, como mostrarei mais
à frente, outros aspectos incorporados a esse estilo de funk, como a fé em Deus e a adesão
à moral do trabalho, fizeram surgir uma outra denominação ligada a esse gênero, que
também pode ser referido como Funk do Bem.
Conforme depoimento do Mc7 Bio-g3, originário da Cidade Tiradentes, bairro da
zona leste da cidade de São Paulo, a ideia deste estilo nasceu através da autopercepção
do próprio universo de consumo de roupas, acessórios e bebidas. Quando uma festa de
aniversário no bairro foi interrompida por uma intervenção policial, o jovem Mc ainda
aspirante ao sucesso percebeu que a maioria dos presentes usava uma marca de óculos de
sol que virou “febre” entre os jovens da periferia de São Paulo, o Juliete vendido
exclusivamente pela loja sportwear Okley8. Segundo o Mc, o valor de cada óculos, na
Conforme relatos extraídos do documentário, “Funk Ostentação – o Sonho”, a partir das
falas do DJ Malboro (famoso disc jockey, espécie de “pai” do funk carioca) e do MC Biog3, (um dos atuais expoentes do funk ostentação). Disponível em
<http://www.youtube.com/watch?v=QjrGVmKEF3Y> acessado em: junho/2014.
7
MC – A sigla vem do termo em inglês master of ceremonies, utilizado para designar os
animadores de festas e bailes dos guetos jamaicanos nos anos de 1960. O termo foi
incorporado pelos cantores do gênero musical hip hop e seguido pelos cantores de funk.
8
Loja dirigida a um público das camadas médias e alta.
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maioria das vezes comprados a prestação por esses jovens, chegava a um mil e quinhentos
reais, se todos juntassem os óculos teriam poder de negociá-los como suborno junto aos
policias:
E aí chegou o poder público para atrapalhar a festa, para acabar com a festa,
estava fazendo barulho [...] aí eu peguei no microfone e falei: “Tá tranquilo, tá
tranquilo, se os caras quiserem dinheiro a gente tira os óculos, só os óculos dá
mais de 200 mil reais”. E na hora que eu falei isso todo mundo deu risada na
festa, e aí eu falei: “Sabe por quê? Porque nóis é o bonde da Juju, é o bonde da
Juju”. E eu com o copo na mão, olhei para o copo e falei: “Porque água dos
amigos é whisky e Red Bull”. E aí de repente surge uns caras Bonde da Juju,
Backdi, Bio-g3 de São Paulo fazendo sucesso e ganhando dinheiro, e com o
quê? Com a música falando de consumo, com a música falando de marcas
(Trecho extraído do documentário: Funk Ostentação – o Sonho, 2014).
Desse evento nasceria o funk, “Bonde da Juju”9 que viraria um hit e traria fama ao
seu autor. Fruto da percepção daquilo que consomem e da repressão ao funk através da
ordem pública, tanto a música como a maneira como ela foi gestada chama a atenção para
o fato de que, no imaginário desses atores, o consumo de coisas caras, no caso, os óculos
de grife e o whisky, posicioná-lo-iam em um lugar que permite alguma negociação, nesse
exemplo, com os agentes da ordem pública. Ou seja, o consumo de coisas diferenciais
daria aos jovens um sentimento de empoderamento.
Outras músicas do mesmo estilo surgiriam evocando o consumo de marcas de
roupas, acessórios, bebidas, carros e motos, uma representação do imaginário daquilo que
é o sonho desses jovens, o mundo da bem-aventurança, da boa vida (TAYLOR, 2011) via
marcadores de status social (BOURDIEU, 2008; DOUGLAS, 2009).
A atribuição de significado em nossa sociedade ou a incorporação de ideias e
instituições em nosso dia a dia se dá através da “cultura interpretativa” que é veiculada a
nós por meio de várias modalidades, tais como o jornalismo, a propaganda, o mundo do
entretenimento, etc. Wagner (2010) aponta que a propaganda, para nós, atua redefinindo
os tipos de resultados que as pessoas desejam, falando dos produtos em termos desses
desejos. Ela é bem sucedida, ou seja, vende o produto, quando consegue objetificar, neste,
as soluções ou caminhos para alcançar o que se deseja. Quando nos faz acreditar que o
produto encarna as qualidades que levam a este resultado. Da mesma forma, todos nós
A letra da música “Bonde da Juju” está disponível em: < http: //letras.mus.br/backdibio-g3/1548816/ > Acessado em: junho/2014.
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em maior ou menor grau consumimos acreditando no “poder” dos produtos em
transformar a nossa vida. O que muda em cada caso são os desejos de transformação, no
caso dos jovens das periferias, entre outros, um forte desejo de transformar a sua situação
de invisibilidade social. Ainda que esses produtos não sejam acessíveis a todos, essa ideia
pode ser percebida através da representação via letras do funk ostentação.
A letra a seguir do MC Boy do Charmes 10 – jovem que cresceu em uma
comunidade na cidade São Vicente, na Baixada Santista – diz muito sobre um imaginário
de bem-aventurança ou boa vida. A referência a marcas caras dão uma ideia do desejo a
que aspiram esses jovens:
Onde eu chego eu paro tudo
Pick-up cabine dupla
Não é imaginação
A mulherada entra em pane
Jet na carroceria
É a realidade
Meu cordão é um absurdo
Correria traz fartura
Já virou passado
Meu perfume é da Armani
Fartura traz alegria
Miséria, necessidade
Não traz felicidade
De Christian ou de Oakley
Festinha na cobertura
Mas afasta a tristeza
De Tommy ou de Lacoste
No apê no Guarujá
E talvez minha humildade
De CB1000 da Honda
E o comboio nervosão
Seja minha maior riqueza
Ou de Hyundai Veloster
Convidei geral pra lá
Querido na balada
Bmw, Audi Q7
Bem vindo no puteiro
Um Infinity Camaro
Até que eu cheguei longe
Nóis dá banho nas piranha
Eu sou simples sou guerreiro
Com champanhe e do mais caro
Não é imaginação
E no meu vocabulário
É a realidade
Não existe economia
Já virou passado
Nóis investe no poder
Miséria, necessidade
E usuflui da putaria
Não traz felicidade
Mas afasta a tristeza
E talvez minha humildade
Seja minha maior riqueza
10
Letra disponível em: < http://letras.mus.br/mc-boy-do-charmes/1995911/ > acessado
em junho/2014.
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É claro que, à parte alguns muito bem-sucedidos MCs, a grande maioria desses
jovens não tem acesso a todos os produtos e marcas caras presentes nas letras e
videoclipes, tais como motos, jet-skis e carros luxuosos ou apartamentos de coberturas ou
mansões em bairros e praias elitizados. Mas o imaginário manifesto nas letras das músicas
e nos videoclipes reflete muito bem seus sonhos que possivelmente se constroem a partir
das narrativas midiáticas via internet, novelas de TV, comerciais, filmes e também pelo
hip hop americano do gênero gangsta11, um imaginário que os aparta da pobreza material
na qual estão inseridos.
As propagandas, assim como os meios culturais de interpretação, objetificam
principalmente uma vida de conforto, realização pessoal e felicidade. É como se a posse
de um carro ou de outros objetos de luxo encontrados nas letras do funk ostentação
significasse, em cada caso, o alcance de atributos idealizados: juventude, força e
principalmente inclusão, bem como respeito12 (HONNETH, 2003) e distância em relação
à situação de pobreza e tudo o que essa situação implica: invisibilidade, desrespeito,
"esculacho", vida material precária, falta de perspectiva quanto ao futuro e exclusão
social.
É provável que a vida “mágica” imaginada, especialmente, através das letras e
videoclipes desse gênero, através dos produtos caros, na imaginação desses jovens,
deseja-se que se transformem em realidade, pois todas as qualidades e propriedades que
os produtos assumem enquanto representação de poder podem ser transferidas para o
contexto de suas vidas pessoais. O desejo de possuir objetos de marcas luxuosas
transformar-se-ia na imagem quase mítica da bem-aventurança. Assim, o significado que
migrou da cultura para o objeto passa deste para o indivíduo. Provavelmente através das
representações aqui analisadas, para uma boa parte dos jovens das periferias, com os
sentidos aflorados pelos produtos e marcas midiatizados de mil maneiras, é poder ser tal
e qual uma das personagens ricas e bem-sucedidas das novelas de TV, morar numa
cobertura, vestir-se com as grifes famosas encontradas nos shoppings centers, comprar
um carro de luxo de marca importada como os que circulam pelas ruas dos bairros
11
Gangsta rap é um termo que designa certo gênero do rap norte-americano. A palavra
gangsta é um derivativo de ganster. Suas letras e videoclipes fazem apologia às gangs,
ao crime, ao sexismo e à ostentação do consumo.
12
Axel Honneth colabora na construção da Teoria Crítica com base na intersubjetividade de caráter
universal, pautando-se na ideia de que a base da interação é o conflito gerado pela luta por
reconhecimento social.
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elitizados, onde geralmente prestam serviço, como boys, motoboys, garçons, faxineiros,
pedreiros, domésticas, atendentes, etc.
A preocupação com a apresentação pessoal foi observada por Vianna (1987), que
percebeu que o jovem suburbano carioca dos bailes funk tenta se vestir como um jovem
das camadas mais abastadas, e essa apropriação acabaria criando um novo código
indumentário, cujos excessos são vistos, pelas elites, como “mau gosto”. Para Bourdieu
(2008), o gosto estético é a expressão distintiva das posições ocupadas no espaço social
e é o produto de condicionamento das condições de existência, revelado através do
habitus de classe. Dessa forma, a apropriação de um tipo de indumentária pelos jovens
das periferias nunca seria percebida, pelas camadas média e alta, como algo “original”,
mas como imitação ou mimeses (BHABHA, 1998), roupas caras de grifes no corpo do
outro (jovem da periferia), causando estranhamento porque originalmente não foram
concebidas para aqueles corpos “indisciplinados”; e daí a sua desclassificação social.
Já Facina (2013) descreve que, durante pesquisa de campo em uma favela na
cidade do Rio de Janeiro, conheceu um bonde13 de funk que gastava mais em roupas para
apresentar-se em shows do que para produzir suas músicas. Questionados pela
pesquisadora sobre essa lógica e por que não a invertiam, assim, investindo mais na
produção de melhor qualidade de suas músicas, ela obteve a seguinte resposta de um de
seus interlocutores:
[...] é assim, quando a gente chega pra se apresentar numa boate da zona sul, o
playboy lá pode tá até de bermuda e havaiana. Mas se a gente chega vestido
mais ou menos, é logo “volta pra favela”, “favelado”. Então, a gente tem de ir
vestido com as marcas mesmo, na maior beca, pra não dá moral pra esses caras.
Eles já ficam putos de verem as meninas gritando pra gente, se tiverem a
oportunidade de esculachar, esculacham mesmo. Então, a gente não vai dar
esse mole pra eles (FACINA, 2013, p. 41).
Segundo Facina (2013), o consumo assim é percebido como meio de integração,
atuando como instrumento eficaz de reversão de estigmas, ainda que essa reversão seja
situacional.
O sentido da palavra “bonde” aqui se refere a uma gíria usada nos bairros da periferia,
especialmente no Rio de Janeiro, e serve para designar grupos de amigos que estão sempre
juntos, além de ser um termo muito utilizado em letras de funk e/ou compondo o nome
de algumas bandas desse gênero.
13
67
Simmel (1957) refere que a moda é uma das formas da vida social mais peculiares
porque, ao mesmo tempo em que produz uma tendência para a igualdade social, possui
uma tendência para marcar a distinção individual. Ainda, enquanto a primeira está
associada ao conservadorismo, a segunda tendência estaria associada ao componente da
variabilidade, da satisfação dos impulsos para a mudança. Simmel aduz que a moda é
usada pelas camadas superiores para se distinguir das camadas inferiores, e que estas, por
sua vez, imitam a primeira, que por sua vez, abandonam rapidamente a moda anterior, tão
logo essa é apropriada pelas camadas inferiores.
A necessidade de “imitar” o que as pessoas economicamente bem-sucedidas da
nossa sociedade, que é guiada pela meritocracia, consomem, para assim ser reconhecido
como um ser também útil e de valor, pode em parte explicar o desejo de usar roupas e
acessórios que pelo seu alto custo, e assim, sua exclusividade, foram concebidos
originalmente para jovens das camadas mais abastadas. A imitação teria, nesse caso, um
caráter de inclusão e não de distinção. Mas não uma inclusão intraclasse, uma inclusão
numa comunidade maior, a sociedade globalizada de mercado (SCIELKE in HEIMAN,
FREEMAN e LIECHTY, 2012), na qual o cartão de crédito é um identificador do valor
simbólico pessoal, muitas vezes, muito mais expressivo do que qualquer outro documento
(IANNI, 1997).
A suposição de que a felicidade e o empoderamento se dariam através da posse
material de marcas diferenciais e que o sonho é possível podem ser percebidos em trechos
da letra14 de outra música, dessa vez do MC Boy do Charmes:
Imaginei sorrindo eu tô na favela
Nike e o pisante da Oakley
Sou Robin Hood, eu mato e morro
Blusa Abercrombie ou então a
por ela
marca da Hollyster
sei que a inveja continua rodiando a
Eu de Armani, Brooksfield ou uma
gente
polo da Lacoste
Sou sofredor mais tô botando ainda a
chapa quente
Relógio novo no pulso tem meu
eco drive
Eu consegui comprar minha linda XT
Parando tudo de cordão tô
O meu Megane e a 1100 tá vindo por
invadindo os bailes
ae
14
Letra disponível em: < http://letras.mus.br/mc-boy-do-charmes/nos-de-nave/ >
acessado em junho/ 2014.
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Fui imaginando, e quem imagina
levanta a mão
Por ser humilde eu tenho um sonho e
Chandom na mesa,
não é em vão
quando estora cola as menina
Ostentação nois leva a vida nessa
Oi vamo imaginando nois de Audi ou
ousadia
de Citroen
De Capitiva, BMW ou de 1100
Oi vamo imaginando nois de Audi
Sorrindo a gente sonha imagina a
ou de Citroen
gente indo além
De Capitiva, BMW ou de 1100
Oi vamo imaginando nois de Audi ou
Sorrindo a gente sonha imagina a
de Citroen
gente indo além.
De Capitiva de Veloster ou de 1100
Toda semana a gente de rolé no
shopping
Meu tenis novo Adidas,
É oportuno salientar que na letra da música supratranscrita a imaginação através
do consumo está também conectada à imaginação como elemento mobilizador. Pereira
(2014) aponta para a centralidade do desenvolvimento das tecnologias da informação e
da comunicação como elemento de importância fundamental na constituição das
subjetividades modernas: “Assim, a imaginação assumiria um papel fundamental, pois,
mesmo que não se desloquem fisicamente, as pessoas, pelos meios de comunicação,
podem, cada vez mais, imaginar-se em outros lugares” (PEREIRA, 2014, p.8). E assim,
também, imaginar-se em outros papéis sociais, e em outras localizações no espaço social
hierarquizado e altamente desigual que constitui a sociedade brasileira.
Pereira, pautando-se na distinção que Appadurai faz dos conceitos de fantasia e
imaginação, explica que o primeiro teria um caráter individualista, autotélico e narcísico,
e o segundo um caráter projetivo e de ação, e essas dualidades estariam presentes de forma
associada nas práticas e relações que os protagonistas do funk ostentação oferecem
(PEREIRA, 2014, p.8). As duas dimensões estariam conectadas de forma que uma estaria
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ligada ao consumo, enquanto hedonismo; e a outra ligada à ascensão social como forma
de neutralização ou reversão de estigmas sociais.
Em mais um trecho da música dos MCs Backdi e Bio-g3, “Vem com os Trutas”,
eles dizem: “São Paulo não é bagunça / Tem que manter o respeito”; “Nós temos
disposição / De matar um leão por dia” – fica clara certa adesão à ética do trabalho.
Segundo Zaluar (2000), para os pobres, o que separa a condição de pobre da condição de
marginal é justamente a ética do provedor do lar desempenhada pelo primeiro. A moral
do trabalho em si manifestar-se-ia na capacidade de poder adquirir coisas. Assim “o nome
limpo na praça” tem um valor simbólico muito forte para as camadas populares
(MATTOSO, 2005), que, como vimos no relato do MC Bio-g3, na maioria das vezes, por
exemplo, óculos caros só podem ser adquiridos se parcelados em muitas vezes.
Appadurai (2004) refere que o consumo nas sociedades pós-industriais criou o
tempo mercantilizado, pois o consumo torna a sensação do tempo totalmente distinta
daquela sentida em épocas precedentes. Uma das características apontadas pelo autor para
a ocorrência de tal sensação é a da mercantilização do futuro que está no âmago da atual
dívida do consumidor (APPADURAI, 2004, p.114). Isso estaria intimamente relacionado
com as estruturas das técnicas de mercado, como a criação da fantasia e da moda, e nesse
caso especialmente o financiamento do consumo através do crediário:
As grandes inovações em forma de empréstimos tiveram, portanto, um notável
efeito cultural. Criaram um clima de circuito aberto em vez de cíclico para os
empréstimos ao consumidor e com isso ligaram os empréstimos ao longo
sentido linear de uma vida inteira de ganhos potenciais e ao sentido, igualmente
em aberto, do valor dos bens como casas, em vez de o manter ligado aos ciclos
curtos intrinsecamente restritivos do rendimento mensal ou anual
(APPADURAI, 2004, p.115).
A adesão ao consumo via crédito por boa parte das pessoas das camadas
populares 15 que, até décadas atrás, exercia um consumo muito restrito, passa a ser
alargada não só pelas demandas antes reprimidas e pela oferta e facilidade ao crédito,
15
Contudo o uso frequente do credito não é exclusivo dessa parcela da população,
conforme pode ser conferido na Pesquisa de Endividamento Inadimplência do
Consumidor realizada anualmente pela Confederação Nacional do Comércio de Bens,
Serviços e Turismo. Disponível em < http://www.cnc.org.br/central-doconhecimento/pesquisas/pesquisa-nacional-de-endividamento-e-inadimplencia-doconsumido-19 > acessada em junho/2014.
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mas, também, pelo ajustamento a um tempo social mercantilizado típico da sociedade
global de mercado.
A partir de um comportamento de consumo que, a princípio, pode ser considerado
caricato pelas joias excessivamente pesadas que carregam junto ao corpo; ou
“irresponsável” pelo valor pago ao óculos, tênis ou camisa de grife, um comportamento
considerado por alguns segmentos como alienado; enfim, é possível identificar, através
das representações via letras do funk ostentação, que esses jovens tentam construir uma
identidade através de uma determinada reflexividade, que é produto da sociedade em que
vivem e da posição social que ocupam nessa sociedade. Eu sustento aqui, que as atuais
práticas de consumo do segmento em questão podem ser, pelo menos em parte,
justificadas a partir de seu conteúdo simbólico, que se dá através da tentativa de
desvinculação do estigma da pobreza e de todas as significações negativas que isso
incorpora às identidades desses atores. No caso desses jovens, é se apresentar de uma
maneira que eles entendem que dissolve ou neutraliza as significações negativas. O
depoimento de um jovem a uma jornalista ilustra bem essa ideia:
[...] a gente da periferia não pode, mas quer ter, tanto é que eu parei de estudar
para poder trabalhar, comprar as minhas roupas ter os meus negócio, para
poder mostrar para todo mundo que eu não sou mais um favelado [...] que eu
não sou boy, mas eu também posso usar uma roupa de marca, um óculos, um
tênis de mil reais, quero mostrar para todo mundo, que nós na favela tem essa
mente de mostrar, que sempre a gente quer mostrar pros outros que pode
também, que não passa fome, que quer usar uma corrente e tal (Trecho extraído
do Programa Especial Globo News – Rozelinho 16).
Quando o jovem diz: “que nós na favela tem essa mente de mostrar, que a gente
sempre quer mostrar pros outros que a gente pode, que não passa fome”, quase que
literalmente está dizendo: “olha, eu sou um ser humano de valor”, “porque sou um ser
produtivo”, “porque eu posso consumir o que você consome”. Sennet (2004) aponta para
a importância dos mecanismos que levam à falta de respeito e à humilhação em nossa
sociedade: a falta do desenvolvimento de capacidades e de habilidades por parte do
indivíduo, que assim desperdiça um talento; a incapacidade de autossuficiência e a
16
Disponível em: <http://globotv.globo.com/globo-news/globo-newsespecial/v/especial-mostra-integrantes-do-rolezinho/3104111/ > acessado em:
junho/2014.
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consequente necessidade de dependência; o medo do parasitismo, ou a impossibilidade
de retribuir o que é recebido.
Daí a importância da equação historicamente contingente, trabalho e respeito,
numa sociedade como a nossa, na qual a produtividade é valorizada por todos. Com o
aumento da oferta de emprego no país, mesmo que em ocupações que não demandem
especialização e posições de prestígio social (POCHMANN, 2012) o fato de os jovens
das camadas populares poderem trabalhar e ter uma renda e, através dessa renda,
apresentar-se socialmente como alguém que tem a capacidade produtiva de consumir, de
dizer ao mundo que se ele se veste igual a alguém considerado de respeito, ele é igual a
esse alguém; não importa que more na favela, se consegue comprar esses produtos, é
porque não passa fome.
A busca por respeito e estima social através da aparência, para esses jovens pode
de fato revelar, dependendo da perspectiva, uma alienação em relação aos valores
considerados legítimos. Não pretendo aqui negar que o engajamento em movimentos
sociais ou em movimentos políticos, na luta pela transformação da realidade social por
parte desses jovens, provavelmente, poderia resultar em transformações sociais
estruturais efetivas.
Entretanto o que esses atores entendem no momento, como uma forma possível e
imediata de neutralização de estigmas, é a via do consumo. E isso implica abandonar os
estudos mais cedo para ingressar no mercado de trabalho e, assim, conseguir comprar
roupas e outras coisas, para não ser mais estigmatizado como um favelado ou marginal e,
desse modo, ser visto como alguém digno de respeito; investir na estilização da
apresentação pessoal, como faz o jovem supracitado, acreditando que, graças ao efeito
simbólico dessa estilização, será percebido como alguém produtivo, como alguém
inserido na dinâmica na qual está centrada a nossa sociedade: trabalho e mercado.
Para finalizar esse tópico gostaria também de chamar a atenção para outro aspecto
que reforça a característica de funk do bem desse estilo. A busca por disciplina e
autocontrole, que pode ser percebida no trecho de outra música dos MCs Backdi e Biog3: “Vem com os truta”, a qual tem um refrão que é repetido 2 vezes: "Pai nosso que estás
no céu/Santo é teu nome" – isso pode ser tomado como outro aspecto revelador ligado à
ideia do “funk do bem”, que se relaciona ao caminho certo do trabalho, que para ser
trilhado necessita da fé em Deus.
72
Rocha e Torres (in SOUZA et al., 2009) apontou para a centralidade do apego à
religião como esperança para se livrar de um destino de falta de oportunidades e assim
tentar alguma ascensão social. Para esses autores, a falta de conhecimento ou instrução
não é a principal causa do grande número de adeptos das camadas populares às religiões
neopentecostais: “a falta de conhecimento é, juntamente com a predisposição para a
conversão mágica, um efeito de condicionamentos que remontam a totalidade do modo
de vida dessa classe social” (ROCHA e TORRES in SOUZA et al., 2009, p.223).
Essa ideia fica mais clara no discurso da mãe de um jovem de periferia, quando
indagada por uma repórter sobre como ela fazia para manter seus filhos longe das drogas
e de outros excessos:
Eles estão sempre na igreja. São assim, mas estão sempre buscando a Deus, tá
sempre com a bíblia. Gostam dos rolezinhos? Gostam. Mas nunca esquecem a
parte da igreja. Então a gente conversa: - “Vê bem, você viu a droga aqui, não
ponha na boca, porque se você por, possa ser que você goste e possa ser que
você fique” (Trecho extraído do Programa Especial Globo News – Rozelinho).
Assim, a religiosidade mágica – no caso brasileiro, a forte adesão às religiões
neopentecostais – visaria a um controle do “eu” contra forças exógenas a esse “eu”:
vizinhos invejosos, macumba, “olho grande”, o diabo e até mesmo o acesso às drogas e
ao crime. O medo e a ansiedade, derivados da condição de existência, de um habitus
forjado na precariedade e na falta, nas experiências de vida acumuladas desde a infância
(BOURDIEU, 2011), não são percebidos como efeitos que resultam em uma perspectiva
limitada de ascensão social, devido à baixa aquisição de capital cultural, entre outras
faltas. A fé em Deus ajudaria a lidar com as expectativas subjetivas e a baixa expectativa
objetiva (ROCHA e TORRES in SOUZA et al., 2009).
Dessa forma, a denominação funk do bem relacionar-se-ia com aquilo que no
imaginário é o certo e que, se não é seguido, é por uma responsabilidade pessoal, e não
pela consciência das limitações sociais, isso representa a internalização da ideologia da
meritocracia por parte desses jovens, e, consequentemente, um sentimento naturalizado
de inferioridade por não conseguir ascender via mercado de trabalho a posições de
prestígio social.
73
Não no meu shopping
No final de 2013, uma onda de eventos organizada por jovens das camadas
populares, nas redes sociais, chamou a atenção, especialmente porque muitos desses
eventos aconteceram em shoppings centers, principalmente, da capital paulista e da
Grande São Paulo. Os eventos ficaram conhecidos como "rolezinhos". Com o intuito de
se divertir, na busca por opções de lazer, os jovens, imagina-se, entenderam que o lugar
onde encontram e consomem as marcas proclamadas nas letras do funk ostentação é
também seu lugar fisicamente de direito, principalmente, pela falta de espaços
alternativos nas periferias das grandes cidades. No entanto não foi essa a compreensão de
grande parte das pessoas que costumam frequentar shopping centers.
Apesar dos eventos se darem em shoppings centers próximos ao local de moradias
desses jovens, e de não haver registro de furtos na maioria dos encontros, vários deles
foram encaminhados para a delegacia de polícia para averiguação e soltos posteriormente
porque, de fato, nenhum crime havia sido cometido.
Esse fenômeno gerou muita discussão e polêmica, mas o que interessa nos termos
deste trabalho é justamente a revelação de uma face oculta na superfície, mas que se revela
no cotidiano das relações sociais: o racismo de classe. Subjetivamente, o que enquadraria
um jovem como “elemento estranho” ao ambiente do shopping center? Bourdieu (2008)
observa que as maneiras, a postura, o modo de se vestir, enfim, o habitus considerado
legítimo é aquele instituído pelas classes privilegiadas.
Da mesma forma, Souza (2010) afirma que a distinção social, que é negada e
reprimida na dimensão consciente, dá-se de modo turvo e tácito, na forma de violência
simbólica, um “racismo de classe” que, por não se assumir como tal, não permite defesa.
E, muitas vezes, nem mesmo o reconhecimento por parte de quem o pratica, pois a
naturalização da desigualdade impede, até mesmo, que as pessoas tenham consciência de
determinados padrões de atitude em relação aos mais pobres.
Os administradores dos shoppings e entidades representantes de lojistas entraram
na justiça e conseguiram liminares favoráveis impedindo a ocorrência de novos eventos17.
17
Conforme pode ser conferido, por exemplo, na reportagem do site do G1, disponível
em: < http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/01/shoppings-no-tatuape-temliminar-contra-rolezinhos-ate-fevereiro.html > acessado em: junho/2014.
74
Amparados pela justiça, os shoppings centers, com ajuda de seguranças privados e da
Polícia Militar do Estado de São Paulo, passaram a coibir a entrada de jovens que
tivessem qualquer aparência suspeita, leia-se “jovem com aparência de pobre”, mesmo
que estivesse sozinho. Ou seja, a desigualdade foi reafirmada através do Estado.
Mas por que incomoda tanto ter pobres frequentando os shoppings e outros lugares
antes reservados às pessoas das camadas média e alta? Segundo Elias e Scotson (2000),
os estigmas são utilizados pelos grupos estabelecidos para criar barreiras, com a função
social de preservar a supremacia de um grupo e podem variar conforme suas
características sociais e as tradições. No atual contexto, os tradicionais frequentadores de
shoppings imaginam sua identidade de grupo superior ameaçada pelos outsiders, no caso,
os pobres das periferias. Segundo Padilha (2003), enquanto aos pobres é destinado o
comércio de lojas de rua do comércio a céu aberto – como, por exemplo, em São Paulo,
a região da Rua 25 de Março, os shoppings se destinam a uma parcela privilegiada da
população que entende seus códigos:
Assim, por exemplo, suas lojas anunciam: sale, 50% off ou soldes quando estão
em liquidação porque supõem que as pessoas que frequentam esse espaço têm
o conhecimento básico das línguas inglesa e francesa como parte de seu
“capital cultural” [...]. Então, o ethos que se constrói a partir da centralidade
que os shopping centers ocupam nas cidades modernas capitalistas acaba
sendo o da segregação. Os que podem encerrar-se nos limites fechados desses
espaços são protegidos das intempéries e do “mundo social deteriorado”
(PADILHA, 1999, p. 245-246).
Miller et al. (1998) referem-se aos shoppings centers como espaços de compra
“domesticados”:
Sugerimos também que a popularidade de centros comerciais e shopping
centers está relacionada com a incivilidade percebida nos locais mais públicos,
como a rua, onde os encontros aleatórios com os outros racializados são muito
menos fácil de controlar. Os centros comerciais ou shoppings funcionam
através da gestão de tal diversidade, proporcionando um espaço de compras
"domesticado", onde os consumidores de classe média se sentem seguros, mas
isso é conseguido através da vigilância e da exclusão daqueles que não têm o
grau adequado de familiaridade. (MILLER et al. 1998, p.110-11)18.
“We also suggest that the popularity of shopping centres and malls is related to the
perceived incivility of more public places such as the high street where random
encounters with racialised Others are much less easy to control. Shopping centres work
18
75
Assim o shopping center é percebido como um lugar de controle, no qual o
“outro”, o não familiar, é segregado do lado de fora, para a garantia da segurança do
“nós”: na Inglaterra, onde Miller desenvolveu a sua etnografia, os outros seriam os
racialmente diferentes, os não ingleses; no Brasil, os outros seriam os pobres.
Segundo Hall (2014), o sistema de representação se dá através da articulação entre
a cultura e o significado, ou seja, os significados devem ser compreendidos a partir das
posições-de-sujeito que eles produzem e como os sujeitos são posicionados em seu
interior. A partir dos significados produzidos pelas representações, damos sentido às
nossas vidas, assim, a produção de significados e a produção das identidades são
posicionadas no e através dos sistemas de representação de forma estritamente vinculadas
(WOODWARD, 2014).
Por meio da cultura, a identidade é moldada dando sentido à experiência, assim,
de forma não essencialista, é possível escolher entre uma gama de identidades possíveis.
Entretanto, nas práticas produtoras de significado, estão envolvidas relações de poder, o
que implica que estamos constrangidos não apenas pelas relações simbólicas, mas
também pelas relações sociais (WOODWARD, 2014). O atual ingresso de milhares de
pessoas das camadas populares de forma mais efetiva no mercado de consumo revela,
através da crítica ao consumo desses atores, as posições diferenciais de poder que ditam
quem pode usar ou não determinadas marcas e definem quem está incluído e quem está
excluído, por exemplo, de frequentar shoppings.
O fenômeno dos "rolezinhos", visto, por alguns, como um movimento de jovens
alienados e, por outros, como um movimento que guarda um conteúdo político em sua
manifestação por denunciar a falta de espaços de encontro e de lazer destinados aos jovens
de periferia nas grandes cidades, acabou gerando o veto por parte do prefeito de São Paulo
ao Projeto de Lei 02-2013. Esse projeto proibia a utilização das vias públicas para
realização de bailes funks e de qualquer outro movimento cultural não autorizado pela
prefeitura. O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, vetou o projeto, em janeiro de
2014, quando os "rolezinhos" ainda estavam acontecendo nos shoppings. Na ocasião, o
prefeito afirmou que: "o funk é uma expressão legítima da cultura urbana jovem, não se
by managing such diversity, providing a ‘domesticated’ shopping space where middleclass consumers feel safe, though this is achieved by the surveillance and exclusion of
those who do not have the appropriate degree of familiarity” (MILLER et al. 1998, p.
110-111).
76
conformando com o interesse público sua proibição de maneira indiscriminada nos
logradouros públicos e espaços abertos"19.
Holston (2013) infere que as classes trabalhadoras no Brasil começaram a
participar do consumo moderno quando iniciaram a estabelecer-se nas periferias das
grandes cidades, nos anos de 1960. Ao transformarem habitações precárias em casas de
alvenaria, passaram progressivamente a consumir utilidades e objetos domésticos
industrializados. Isso resultou em mudança na subjetividade desses atores que passaram
a assumir a identidade de produtores e consumidores. A luta pela autoconstrução da
propriedade levou a transformações em relação à subjetividade e à cidadania.
O autor observa, ainda, que a ideia da cidadania formal fundada nos princípios do
Estado-nação, juntamente com a distribuição substantiva de direitos, significados,
instituições e práticas, de fato, gera cidadanias específicas a partir das contingências
históricas e sociais das quais essas cidadanias emergem. No caso brasileiro, o autor afirma
que temos um tipo de cidadania includentemente desigual. Discordando da análise social
que DaMatta (1997) faz em referência ao binômio indivíduo-pessoa, Holston (2013)
afirma que, em todas as sociedades, incluindo a americana, existe a exigência por um
tratamento pessoal, isso não é uma particularidade da sociedade brasileira.
Entretanto, para Holston, a lei brasileira, desde sua constituição inicial, uniria
todos através de uma cidadania diferenciada legalmente: “ela trata todos os indivíduos
como iguais de acordo com as distinções pessoais legalizadas” (HOLSTON, 2013, p.45).
Um tipo de cidadania que se utiliza de diferenças sociais: propriedade, educação, raça,
gênero e ocupação, resultando em tratamento diferenciado para os cidadãos. Assim, a
cidadania seria um sistema de distribuição desigual, configurando-se nos “meios
fundamentais pelos quais os Estados-nação reconhecem e administram algumas
diferenças como sistematicamente proeminentes, ao legitimá-las ou igualá-las para
propósitos diversos” (HOLSTON, 2013, p.28). Enfim, o sistema de cidadania em
qualquer Estado-nação serve para administrar as desigualdades em diferentes graus de
acordo com a contingência histórico-social de cada país.
Segundo reportagem do Jornal O Globo: “Haddad veta projeto que proibia realização
de bailes funk em São Paulo. Disponível em: <http://g1.globo.com/saopaulo/noticia/2014/01/haddad-veta-projeto-que-proibia-realizacao-de-bailes-funk-emsp.html> acessado em junho/2014.
19
77
Desenvolvendo o conceito de cidadania insurgente, Holston (2013) nomeia os
moradores das periferias das grandes cidades brasileiras como agentes autoconstrutores
que, a despeito das diferenças, desenvolveram um tipo de cidadania substantivamente
menos desigual. Lutando pela posse de seus terrenos e casas, por melhores condições de
moradia, por bairros aparelhados, esses atores transformaram periferias remotas em
relação aos grandes centros urbanos em bairros populares estruturados. O ator aponta para
o caráter insurgente na agência dos pobres das periferias no Brasil:
As periferias constituem um espaço de construtores da cidade e de sua
cidadania desbravadora. Por meio da autoconstrução, as classes trabalhadoras
transformaram as regiões longínquas dos anos 1940 nas periferias densamente
habitadas, socialmente organizadas e urbanizadas dos anos 1990 em todas as
principais cidades brasileiras. Elas as tornaram não apenas seu principal espaço
residencial dentro das regiões urbanas do Brasil, como também um novo tipo
de espaço simbólico na geografia do país (HOLSTON, 2013, p.30 e 34).
A cidadania insurgente seria, assim, aquela que transforma e subverte as
desigualdades substantivas. O que se confirma no fato do movimento dos "rolezinhos" ter
influenciado – se não totalmente, pelo menos em parte – uma decisão do executivo
municipal que garantiu algum direito aos jovens. A cidadania insurgente desses jovens se
dá também através da autoconstrução de sua própria música, dos seus próprios
videoclipes (PEREIRA, 2014), assim como a articulação de seus encontros de diversão e
lazer.
Conclusão
Tentei ilustrar aqui, através das representações e das falas do discurso de alguns
atores que hoje compõem uma parcela do universo jovem das camadas populares,
algumas ideias capazes de elucidar comportamentos que podem ser, à primeira vista, tidos
como irresponsáveis, irracionais ou alienados, mas que revelam, sob um olhar mais
atento, uma lógica simbólica conectada à necessidade de aceitação social em um sentido
mais amplo e profundo. Procurei não entrar no debate sobre consumismo e alienação por
considerar que o consumo é um aspecto da vida social encontrado em todas as sociedades
estudadas pela antropologia. Entendo que o que torna a nossa sociedade desigual e
alienada é a forma como os ganhos do sistema capitalista são distribuídos, a restrição ao
acesso ao conhecimento e consequentemente às tecnologias que podem tornar a vida de
78
todos melhor (TILLY, 1999); e na ideologia do mérito, que percebe todos com
capacidades e recursos iguais, desprezando as diferenças substantivas.
Tentei demonstrar que a reflexividade destes atores não pode ser considerada sem
que se situe as condições de existência e as posições sociais através das quais essa
reflexividade é produzida. É fato que o funk tem sido a principal expressão cultural de
boa parte dos jovens das periferias do país nas últimas duas décadas. Através desse
gênero, que não exige quase nenhuma educação musical “legítima”, esses atores
manifestam a realidade excludente, violenta, sexista e marginalizada na qual estão
imersos. Da mesma forma, manifestam um imaginário de bem aventurança ou boa vida.
O que foi aqui por mim exposto teve o objetivo de elucidar que, através da
possibilidade de consumir o que é considerado ideal, esses jovens tentam, de alguma
forma – ainda que esta seja superficial, nem de longe a melhor e a mais efetiva, mas a
forma possível no momento –, neutralizar o preconceito e a invisibilidade social que
vivem cotidianamente. A partir das reações aos "rolezinhos", por exemplo, percebe-se
que essa estratégia não surte muito efeito no que tange à maneira como os jovens das
camadas populares e das periferias continuam a ser percebidos pelas camadas
economicamente mais favorecidas. No entanto percebe-se um movimento positivo na
construção da autoestima por parte desses jovens, que elegem alguns dos seus ídolos entre
si próprios – muitos dos pop stars do funk ostentação nasceram e cresceram em
comunidades pobres –, consomem as músicas por eles produzidas e que, de alguma
forma, encontram um canal legítimo de expressão através do funk.
É óbvio que as melhoras percebidas na distribuição de renda e acesso ao emprego
no país, nos últimos anos, não dão conta de resolver todos os problemas estruturais da
desigualdade. Fatores simbólicos, tais como o preconceito de classe, o preconceito étnico,
o sexismo e principalmente a educação, entre outros, devem ser focalizados e revertidos,
e, para isso e para bem mais, muito ainda deve ser feito, todavia não existem fórmulas
prontas. Entretanto imagino que começar a ouvir atentamente esses jovens, perceber que,
por trás das suas manifestações culturais e de seus comportamentos, que, a princípio, são
tidos como vazios de reflexividade, pode ser percebida uma série de reivindicações, por
reconhecimento social, esão sendo articuladas.
79
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Notas:
81
O fio do tempo na tessitura do poder simbólico: passado, presente e
futuro na efeméride dos 190 anos do parlamento brasileiro
Political time and symbolic power: the past, present, future in 190 years anniversary of
the Brazilian parliament
Antonio Teixeira de Barros1
Recebido em 23/03/2015; aceito 10/06/2015
Resumo: Análises das representações políticas construídas pelos parlamentares durante a sessão solene em
homenagem aos 190 anos do Parlamento brasileiro. Por se tratar de uma efeméride, as representações sobre
o passado, o presente o futuro foram o fio condutor dos argumentos, de forma ritualizada. As imagens
relativas ao passado evocam o heroísmo e as virtudes de figuras emblemáticas da história política. A história
do parlamento é personificada na biografia heroica de figuras icônicas da política. Além disso, o parlamento
é representado como vítima de perseguições políticas nos regimes ditatoriais. O presente tem como foco os
seguintes elementos: as dificuldades nas relações interpoderes; a incompreensão perante a opinião pública;
a imagem negativa decorrentes dos escândalos de corrupção. Quando se referem ao futuro, os oradores
enfatizam os desafios: conquistar legitimidade perante a opinião pública; e fortalecer os projetos de
transparência e de permeabilidade às demandas da sociedade, na figura da “voz das ruas”.
Palavras-chave: Parlamento. Democracia. Discurso político. Memória política. Poder simbólico.
Abstract: Analyses of political representations constructed by parliamentarians during the formal session
in honor of the 190 years of the Brazilian Parliament. Because it is an ephemeris, representations of the
past, present the future were the thread of the argument, so ritualized. The images of the past evoke the
heroism and virtues of the emblematic figures of political history. The history of parliament is embodied in
heroic biography of iconic figures from politics. Moreover, parliament is represented as a victim of political
persecution in dictatorial regimes. This focuses on the following elements: relationship difficulties in
relations between the branches of government; misunderstanding in public opinion, the negative image
stemming from corruption scandals. When referring to the future, the speakers emphasized the challenges:
gaining legitimacy in public opinion, and strengthen project transparency and permeability to the demands
of society, in the figure of the "voice of the streets."
Key words: Parliament; democracy; political discourse; political memory; symbolic
power.
1
Doutor em Ciências Sociais. Docente e pesquisador do Programa de Mestrado em Ciência Política do
Centro de Formação da Câmara dos Deputados - CEFOR (Brasil) Endereço postal: SQS 110, Bloco A,
Edifício Independência, n. 602 – Asa Sul – Brasília-DF,CEP 70373-010; Tel:: 61-3335-0229 / 61-32167681. [email protected]
82
Introdução
Em geral os parlamentares fazem discursos para estabelecer ou reforçar vínculos
eleitorais, além de demarcar posições políticas e ideológicas perante o Poder Executivo
ou os opositores partidários. Contudo, existem ocasiões excepcionais, que fogem à lógica
concorrencial da democracia liberal. Entre tais exceções estão as sessões solenes, que
ocorrem especialmente para a celebração de efemérides, entre outros casos previstos pelo
regimento interno das instituições legislativas. Como se caracterizam, então, os discursos
parlamentares nessas solenidades? O que eles dizem? Como os argumentos são
articulados? Como as diferentes perspectivas são ordenadas nos casos em que a disputa
política está fora de cena?
A partir de tais questões, este artigo analisa os pronunciamentos de integrantes do
Congresso Nacional durante a sessão solene em homenagem aos 190 anos do Parlamento
brasileiro, realizada em 14 de maio de 2013, no plenário do Senado Federal, em Brasília.
A escolha dessa efeméride se justifica pelo seu caráter peculiar em termos de sessão
solene no Congresso Nacional. Consideradas um expediente ornamental na ordem
política do Poder Legislativo (MESSENBERG, 2007), essas cerimônias, em geral,
servem para prestar homenagens a instituições, grupos e segmentos sociais que compõem
a base eleitoral dos parlamentares, com vistas à conexão eleitoral. Entretanto, no caso da
sessão em homenagem aos 190 anos do Parlamento brasileiro, seu caráter é diferenciado
e excepcional, pois o foco não são segmentos ou parcelas do eleitorado, mas os próprios
representantes.
Outra peculiaridade é que não se trata de um evento político no sentido eleitoral
ou partidário, mas algo que unifica e congrega todo o corpo parlamentar, em sua dimensão
abstrata. Não há, portanto, demarcadores de identidades e afirmação de sectarismos. A
homenagem proposta não opera com a lógica da economia da grandeza (BOLTANSKI e
THEVENOT, 1991), mas da grandeza institucional, representada pelo capital simbólico
pertencente ao corpo político em sua totalidade, como uma instituição imaginada. É o
próprio parlamento e seu estatuto institucional, sua honra e sua reputação que se torna o
objeto dos discursos. Trata-se de uma dimensão política distinta do cotidiano de disputas,
conflitos e concorrência.
Após a análise do conjunto de discursos pronunciados na ocasião, constatamos
que houve uma arquitetura argumentativa pautada no ordenamento convergente de
83
perspectivas em torno do tempo e da memória do parlamento brasileiro. Observamos que
as evocações sobre o passado, o presente e o futuro foram recorrentes em todos os
pronunciamentos. Mediante tal constatação decidimos focar este estudo no eixo desse
ordenamento e suas confluências, o qual tem o tempo como operador simbólico. As
imagens e representações são acionadas exaustivamente pelos oradores de modo, de
modo ritualizado, colocando o poder simbólico acima do poder político.
Pressupostos que orientam a análise
A partir de tal constatação, optamos por guiar a análise pelas formulações de
Norbert Elias sobre o tempo e de Pierre Bourdieu (e outros autores de abordam de modo
similar e complementar) acerca do poder simbólico, aplicado ao campo da análise de
cerimônias públicas e situações cerimonializadas.
O tempo expressa a rede de configurações sociais nas quais estamos inseridos,
além de demarcar escalas históricas da política e regular relações sociais (ELIAS, 1989).
No caso de uma efeméride política, nos deparamos com uma oportunidade concreta para
o exame de questões suscitadas pela alusão ao pensador mencionado. Do ponto de vista
social, as efemérides expressam uma certa forma de memorial diário, um marcador no
calendário de um grupo, comunidade ou instituição. Apesar de apresentar diversas
possibilidades de analisá-las, em geral se referem a datas de relevância histórica, segundo
a lógica do tempo como elemento relevante no processo civilizatório e na experiência
humana de modo geral (ELIAS, 1989; 1994).
O calendário representa, em pequena escala, um modelo empírico de evolução e
sucessão de temporalidades socialmente delimitadas, numa relação dialética de
proximidade e distanciamento com o fato em si. Em suma, a experiência do tempo só é
compreensível à luz de uma reconstrução do passado, com afirma o autor já mencionado.
Todos os processos políticos são regulados pelo tempo, desde a campanha
eleitoral, a duração do mandato, a época de recesso parlamentar, o controle do uso da
tribuna legislativa pelos parlamentares, os dias da semana destinados às sessões
ordinárias, extraordinárias, deliberativas, de debates ou de homenagens. A antropologia
política já explora esses temas de variadas formas, a exemplo dos estudos de Palmeira e
Goldman (1996), Barreira e Palmeira (1998), Palmeira e Barreira (2006).
84
Quanto ao estudo das formas simbólicas, trata-se de um campo de especial
interesse para as ciências sociais, a exemplo da abordagem interpretativa de Clifford
Geertz (1989; 1997; 2001), que define a análise cultural como a elucidação de
significados, ou seja, a explicação interpretativa dos significados que estão incorporados
às formas simbólicas. São esses elementos aparentemente invisíveis que moldam a
percepção e a edificação das representações dos indivíduos. Afinal, como nos lembra o
postulado de Ruth Bennedict (1972), a cultura é uma lente através da qual as pessoas
enxergam o mundo.
A partir desse modo de se analisar o campo simbólico é que Hannah Arendt (1993)
contesta o argumento de Aristóteles de o homem seria um animal político. Para Arendt,
aceitar o postulado aristotélico implicaria acatar o pressuposto de que a política seria algo
inerente à natureza humana (inato), ou seja, todo ser humano já nasceria político. Ao
contrário, argumenta a pensadora alemã, a política é uma construção humana e não um
dado da natureza. A política é algo que se constrói e se realiza entre os homens. Portanto,
é da relação entre os cidadãos que nascem as instituições, as estruturas e as normas que
regem e orientam todas as formas políticas. A pluralidade da política, na visão da autora,
é decorrência da pluralidade dos humanos. Os sentidos políticos variam em função das
culturas e suas diferenciações.
Ao adotar tal argumento, na realidade Hannah Arendt adere às concepções
heurísticas do campo da Antropologia Filosófica, que tem alguns expoentes, tais como
Ernst Cassirer, especialmente nos três volumes da obra Filosofia das Formas Simbólicas
([1923] 1998a; [1925] 1998b; [1929] 1998c). Conforme Cassirer, as variadas
modalidades de conhecimento e de relação dos homens com o mundo passam pela
mediação das formas simbólicas, entendidas por ele como toda energia do espírito, “em
cuja virtude um conteúdo espiritual de significado é vinculado a um signo sensível
concreto e lhe é atribuído interiormente” (1956, p.163). Essa energia do espírito deve ser
compreendida como aquilo que o sujeito faz e que passa pela mediação simbólica, ou
seja, o sentido da ação humana é ativado pelos símbolos socialmente construídos. Por
isso, em sua visão, todos os modos de relação do homem com o ambiente político e social
é articulado pelas diversas construções simbólicas mobilizadas por uma determinada
sociedade.
Coube a Pierre Bourdieu a tarefa de sistematizar o conceito de poder simbólico e
sua inserção no campo da análise das práticas sociais e políticas. Segundo Bourdieu
85
(2007, p. 8), os diferentes universos simbólicos são instrumentos de conhecimento e de
construção do mundo. O autor afirma ainda que o poder simbólico seria um poder de
construção da realidade, tendente a estabelecer uma ordem que torna possível haver
concordância entre as inteligências, uma vez que os símbolos são instrumentos de
integração social por serem instrumentos de conhecimento e de comunicação. Trata-se do
que Bruno Latour (2000) denomina de poder de ordenamento, ou seja, de edificar as
relações sociais a partir de hierarquias com seus respectivos valores do ponto de vista
simbólico.
Cabe retomar aqui a função que o tempo exerceu na tessitura do poder simbólico,
a partir do ordenamento convergente dos discursos em torno do passado, do presente e do
futuro. Esses arranjos discursivos confluentes reiteram a dimensão ritualística típica dos
discursos parlamentares, conforme apontam Rai (2010a), (Rai, 2010b), Crewe (2010),
Armitage (2010) e Waylen (2010).
A história do parlamento no palco da cerimônia
A efeméride mobilizou várias equipes de servidores da Câmara dos Deputados e
do Senado Federal durante meses seguidos de reuniões, debates e divisão de tarefas. O
planejamento da solenidade ficou a cargo de um grupo conjunto de profissionais da área
de relações públicas, com o apoio de documentaristas, historiadores e jornalistas. Tratase de um conjunto articulado, uma rede de profissionais dos mecanismos de registro da
memória institucional. A rede de humanos, contudo, seria ineficaz sem o suporte dos
documentos digitalizados, dos bancos de dados e de imagem, ou seja, os sistemas
informatizados, constituindo uma rede sociotécnica (LATOUR, 2012), na qual os atores
humanos e não humanos exercem funções similarmente relevantes em termos de resgate
do registro da memória institucional.
O resgate das antigas fotografias do parlamento exerceram um papel fundamental
no processo de pesquisa, o que resultou na montagem de uma exposição pública como
evento integrante da efeméride. Todo esse aparato de registro de imagens reforçam as
teses de Walter Benjamin (1985) que apontam para a fotografia como uma metáfora da
memória. Outra fonte de consulta relevante, segundo informaram os organizadores da
solenidade, foram os jornais antigos, reiterando a função social do jornalismo como
86
marcador temporal e como registro da identidade de grupos sociais, comunidades e
instituições (BERGAMO, 2011).
Toda a pesquisa resultou em um kit de publicações distribuídas aos convidados da
cerimônia, cujo foco era a exaltação da memória histórica do parlamento. Além de uma
edição especial impressa do Jornal da Câmara e do Jornal do Senado e uma revista do
portal infantil Plenarinho (www.plenarinho.leg.br), destaca-se um livreto de 116 páginas,
em edição colorida, com a imagem estilizada da bandeira brasileira na capa. Nesta
publicação, a apresentação, assinada pelo presidente do Senado e pelo presidente da
Câmara, resumia a história que motivou a solenidade:
Ao comemorarmos 190 anos de Parlamento nacional no Brasil, no mês
de maio de 2013, aproveitamos para lembrar a história de nossas
tradicionais instituições e reafirmamos nosso compromisso com a
democracia.
O Brasil surge como Nação em 1822 para em seguida começar o
processo de consolidação do seu Parlamento. Assim, a Assembleia
Geral Constituinte e Legislativa de 1823 inicia o caminho que os
trabalhos legislativos terão no novo País. No entanto, com a outorga
pelo Imperador de uma nova constituição em 1824, a recém criada
Assembleia Geral, composta pela Câmara dos Deputados e a Câmara
do Senado, se depara com a necessidade de, em seguida, organizar os
seus trabalhos. Dessa forma, em 1826, o Senado Imperial inicia as suas
deliberações legislativas e formula o seu Regimento Interno e, no
mesmo ano, a Câmara dos Deputados elabora sua lei interna.
Instituído o sistema bicameral no Parlamento, este criara raízes
profundas no nosso ordenamento político para nunca mais ser
abandonado, se justificando plenamente com a adoção posterior do
federalismo. Muitas das nossas tradições legislativas começaram a
tomar forma nesse período. O voto nominal, o sistema de instrução por
pareceres de Comissões, o registro das sessões em atas, a capacidade de
apresentar projetos de lei, o poder de emendar proposições, a direção
dos trabalhos pela Presidência do Senado e o ordenamento dos debates
são todos institutos que já aparecem nesse momento inicial nos
respectivos Regimentos e terão profunda identificação com o processo
legislativo brasileiro ao longo da sua trajetória.
O trecho citado é emblemático do tom discursivo que seria adotado pelos oradores
ao longo da cerimônia, ao mesmo tempo em que exerce a função de situar e contextualizar
a própria história do parlamento, objeto da efeméride aqui analisada.
A cerimônia como ambiente discursivo ritualizado
87
A cerimônia foi realizada numa terça-feira, cuja abertura ocorreu às 11h45.
Segundo informações obtidas previamente com o corpo funcional responsável pela
organização do evento, na terça pela manhã é o momento costumeiro de desembarque de
parlamentares que chegam de suas bases e ficam até quinta em Brasília. Trata-se de uma
escolha estratégica a fim de facilitar o comparecimento do maior número de
parlamentares, mas de modo a não interferir na agenda das sessões deliberativas2.
A solenidade foi conduzida pelo presidente do Congresso Nacional. Entretanto,
cabe uma ressalva acerca da relevância da atuação do Secretário-Geral da Mesa do
Congresso Nacional 3 , responsável pela direção protocolar do rito cerimonial da
solenidade. Sua atribuição institucional é prestar assessoramento direto à Mesa Diretora
no desempenho de suas atribuições constitucionais, legais e regimentais (BRASIL, 2011).
Apesar da relevância da função, trata-se de uma figura sem visibilidade pública e sem
lugar na composição da Mesa.
O papel do secretário é apenas orientar e subsidiar a autoridade instituída, mas de
modo discreto e sem interferência notável. Isso contudo, não reduz sua importância e sua
função de “guardião da tradição”, isto é, uma espécie de sacerdote do ritual das
cerimônias (GIDDENS, 2009, p.124). Segundo o autor, a tradição é impensável sem
guardiães, porque estes têm acesso privilegiado à verdade e esta “se manifesta nas
interpretações e práticas dos guardiães”, de modo similar aos contextos e rituais
religiosos.
Essa ideia é reforçada pela concepção de que o cerimonial “está diretamente
inserido como produtor do poder simbólico, dinamizando as estruturas de representação
como forma de comunicação não-verbal utilizando ritos, rituais, cerimônias, marcandose pela construção de instrumentos de referências de poder (LOBO FILHO, 2009, p.4).As
regras de cerimonial público expressam um sistema de organização que visa a evidenciar
e demarcar as hierarquias das próprias instituições, de seus representantes e dos
convidados. São sistemas que expressam as estruturas do poder simbólico (BOURDIEU,
2007) das instituições e das autoridades que as representam. O cerimonial público,
portanto, deve ser entendido como forma simbólica de poder (THOMPSON, 2009), pela
2
Destinadas à votação de projetos em plenário, com a presença majoritária dos parlamentares.
Trata-se de cargo técnico, mas nomeado pelo Presidente do Congresso Nacional. O atual titular é servidor de
carreira e permanece no posto há mais de 15 anos, exatamente pela expertise acumulada.
3
88
perspectiva da formação cultural que remete à construção coletiva dos símbolos, valores,
ideias e representações do mundo social .
No caso em estudo, o Secretário-Geral da Mesa tem como função garantir que o
caráter ritualizado da situação seja preservado. Por se tratar de uma ocasião formal, há
necessidade de distanciamento da plateia, da manutenção da ordem hierárquica e da
ordem de precedência protocolar. Do ponto de vista antropológico, a formalidade é
entendida como uma propriedade do contexto social em situações cerimonializadas
(IRVINE, 1984).
A sessão teve lugar no Plenário do Senado Federal e foi aberta com 45 minutos
de atraso. 4 Os ritos iniciais foram proferidos pelo presidente do Congresso Nacional,
senador Renan Calheiros, que convidou a tomar assento à mesa as autoridades que
representavam instituições dos Três Poderes da República5, saudou os militares presentes
na plateia, o corpo diplomático, a imprensa e os demais cidadãos presentes. Em seguida
foi executado o Hino Nacional Brasileiro, pela banda de música da Política do Exército
Brasileiro, que ocupou a galeria superior do Plenário do Senado. A sonoridade da melodia
cívica em sua versão instrumental suave, reforçou o tom predominante no ambiente, de
sobriedade e austeridade. Além da ornamentação com flores, folhas e galhos naturais, o
ambiente contava com as bandeiras devidamente hasteadas, o brasão da República
exposto ao lado do crucifixo. A configuração sóbria do ambiente, com carpete e
mobiliário azul (cor oficial do Senado) atribuía ao local um timbre solene e austero ao
mesmo tempo, característica reforçada pelo vestuário dos parlamentares e demais
autoridades, quase todos de terno azul marinho. As mulheres também usavam vestes
sóbrias. A disposição hierárquica dos convidados foi demarcada pela posição central do
presidente da Mesa, ladeado pelos demais oradores e representantes dos Poderes da
República.
O conjunto desses elementos remete ao argumento de que
As cerimônias jamais poderão desprezar rituais, gestos, sons, cores,
formas, movimentos, como signos de expressão representacional para
4
Trata-se de conduta comum nas atividades do parlamento, segundo informaram os servidores responsáveis pelo
evento. “Raramente algum evento programada tem início com atraso menor de uma hora, o que já se tornou hábito”,
disse um deles. Ao observarmos a plateia, só o corpo diplomático, os militares e as autoridades estrangeiras pareciam
descontentes com o atraso injustificado.
5 Fizeram parte da mesa: o presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves; a ministra do Superior
Tribunal de Justiça, Eliana Calmon (representando o Poder Judiciário); a secretária-executiva do Ministério da Cultura,
Janine Pires e o ministro da Previdência Social, Garibaldi Alves (ambos representando o Poder Executivo); e o deputado
federal Alessandro Mollon (PT-RJ), autor do requerimento parlamentar para a realização da solenidade.
89
a comunicação de ideias. Sequer deixar de utilizar de recursos como a
música, a dança, desfiles, ritmos, as curvaturas, os cumprimentos e
saudações gestuais e rituais, os brasões de heráldica, os pendões da
vexilologia, os trajes, alegorias, recursos de artes plásticas e arquitetura,
em fim, todas essas fontes de signos (LINS, 2002, p.42).
Nesse contexto, o simbólico torna-se performático, o que reforça a importância do
cerimonial no âmbito dos eventos ritualizados do parlamento, especialmente no que se
refere à manutenção do status institucional das casas legislativas e de seus integrantes
(RAI, 2010a; CREWE, 2005). Dessa forma, a triangulação composto pelo poder, o
cerimonial e os símbolos é uma das características inerentes ao campo das atividades
parlamentares. Essa triangulação reforça o estoque de poder simbólico já existente, ou
seja, reitera tanto para “os de fora” como para “os de dentro” as visões dominantes e
hegemônicas de política. Trata-se de uma forma de exercer o poder no plano cognitivo
(ARMITAGE, 2010).
O tempo como operador simbólico do ordenamento convergente de perspectivas
políticas
Como se trata de uma data comemorativa que remete à memória de 190 anos de
atuação de uma instituição, a variável tempo foi predominante em todos os
pronunciamentos, com evocações recorrentes e ritualizadas sobre o passado, o presente e
o futuro. Para facilitar a leitura do texto, apresentamos um esquema com uma síntese das
representações evocadas pelos oradores, no que se refere à dimensão temporal, o principal
elemento que contribuiu para conformar a homogeneidade dos discursos (Quadro 1).
Quadro 1 – Resumo do esquema argumentativo dos oradores em perspectiva simbólica
convergente
Período
Passado
Representações evocadas
- Discursos que evocam o heroísmo e as virtudes de figuras
emblemáticas que atuaram no parlamento em diferentes fases da história
política. O passado do parlamento é personificado no traçado biográfico
heroico de figuras já consagradas pela história política.
- O parlamento como vítima de perseguições políticas nos regimes
ditatoriais do Estado Novo e do golpe militar de 1964.
- A história do parlamento como patrimônio político da sociedade e
como legado para as futuras gerações de políticos e cidadãos; o passado
evocado como inspiração para a vocação política de jovens.
90
Presente
- As dificuldades nas relações interpoderes, tanto com a alegada
preponderância do Poder Executivo (com a recorrente edição de medidas
provisórias), tanto com a concorrência legislativa com o Poder Judicário,
por meio da chamada judicialização da política.
- A incompreensão perante a opinião pública, o que se reflete nas
frequentes pesquisa que revelam a baixa confiança da população no
Poder Legislativo, nos partidos políticos e nos parlamentares.
- A imagem negativa decorrentes dos escândalos, denúncias de
corrupção, uso indevido da cota parlamentar e dos meios públicos, a
exemplo das notícias sobre abusos na cota de passagens aéreas e no uso
dos aviões da Força Aérea Brasileira para compromissos particulares .
Futuro
- Os desafios para os partidos, as instituições legislativas e os próprios
parlamentares para a conquista da legitimidade e da confiança da
população.
- Como conquistar apoio e legitimidade perante a opinião pública das
decisões tomadas pelos parlamentares.
- A implementação de projetos de transparência, accountability,
responsivity e de permeabilidade às demandas da sociedade, na figura da
“voz das ruas”.
Fonte: Elaboração do autor
O passado é atualizado pelo ritual e, assim, deixa de ser “um passado perdido” e
se torna uma inspiração para motivar o moral dos parlamentares no presente, na trilha
argumentativa de que o passado não deve ser visto como relíquia cultural (PEIRANO,
1995). O tempo de reveste de sentido social, além de constituir ele próprio um fator que
exerce coerções e interliga estruturas sociopsicológicas individuais com estruturas sociais
mais amplas, incluindo o campo político (ELIAS, 1989).
O primeiro orador, após os ritos de abertura da solenidade, foi o presidente da
Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), o qual foi anunciado
como “o mais antigo parlamentar em exercício no Congresso Nacional, com 32 anos
consecutivos de mandato, desde 1971”. O critério de antiguidade aqui, é destacado como
um valor simbólico de distinção política e de honra parlamentar. O orador iniciou seu
pronunciamento como legado histórico do parlamento:
É inegável a contribuição histórica do parlamento brasileiro para o atual
momento democrático por que passa o País. Nunca vivemos um período
de democracia tão plena quanto agora e o ambiente do Parlamento é o
melhor espelho disso. Basta uma passagem pelos corredores da Câmara
91
e do Senado para sentir-se que o Congresso Nacional tornou-se,
realmente, a Casa do povo. Esse é o maior legado que podemos deixar
para a população brasileira.
Nessa retomada histórica do legado político e da memória do parlamento, o
presidente da Câmara rememorou momentos emblemáticos do passado e disse que, ao
longo dos anos, “o parlamento mudou a sociedade e foi mudado por ela”. E acrescentou
enfático: “Mesmo nos momentos em que esteve fechado, o parlamento continuou a existir
para uma sociedade que sempre manteve a democracia como sua maior aspiração”.
Logo após evocar o passado como objeto simbólico de culto e farol hermenêutico
para o presente, o orador indicou a mudança e a inovação como méritos das instituições
políticas, uma operação argumentativa com o sentido de que a história e a memória são
importantes, mas devem ser (re)interpretadas e traduzidas em novos traçados para
reconfigurar os sentidos políticos do presente, em vistas ao fortalecimento da identidade.
Afinal, como afirma Giddens (2009, p.125), “a identidade é a criação da constância
através do tempo, a verdadeira união do passado com um futuro antecipado”.
É nessa moldura hermenêutica que o orador afirma: “O parlamento mudou a
sociedade e foi mudado por ela”, apontando para uma relação dialética e dinâmica entre
o passado e o presente, ao mesmo tempo que indica, de forma diplomática, a cooperação
política entre as duas instituições legislativas (Câmara e Senado) e os diversos segmentos
organizados da sociedade civil. A singularização é usada como estratégia discursiva para
reforçar a imagem de simetria política evocada pelo seu enunciado. Trata-se de uma fala
que deve ser entendida em sua dimensão ritualizada (PEIRANO, 1995), com a função de
reforçar o papel do Estado e da Sociedade, ambos postos estrategicamente no mesmo
patamar de poder pelo orador.
Na trilha das mudanças no cenário atual, Alves destaca o papel do parlamento
como protagonista de inovações políticas, com a instituição do voto direto e igualitário,
a valorização das instituições políticas, a revisão e atualização do ordenamento jurídico
constitucional e os recentes projetos de transparência, interatividade e participação. Como
a “Casa do Povo, o Congresso Nacional tem o dever de cada vez mais interagir com a
sociedade”, afirmou ao destacar os avanços nessa área, como os diversos mecanismos de
informação, comunicação e interação oferecidos pelas duas instituições que compõem o
Congresso Nacional. Ainda fincado no solo do presente o orador ressaltou que “o
parlamento é pilar da democracia, a base da importante função de fiscalizar as atividades
do Poder Executivo e revisão das leis”. Ao ressaltar os avanços registrados no presente,
92
também chamou atenção para os desafios e o horizonte futuro: “Para exercer o papel de
esteio da democracia precisamos ficar atentos à participação, às demandas da sociedade”.
Alves afirmou ainda que, para continuar a exercer plenamente o papel de base da
democracia, o Congresso precisa estar em processo de contínua atualização, incorporando
novas tecnologias ao processo legislativo, pautando os temas pelas reais demandas da
sociedade e, de fato, abrindo as portas à efetiva participação da população. É oportuno
ressaltar seu lugar de fala como presidente de uma das casas do Congresso Nacional, que
se reflete no reconhecimento dos desafios, mas também na estratégia discursiva de
justificação social (BOLTANSKI e THEVENOT, 2001),ou seja, de resposta às críticas
recorrentes à atuação deficitária do Poder Legislativo. Como forma de justificação, ele
destacou os avanços e os feitos de sua gestão e de seus antecessores no comando político
da Câmara dos Deputados. A fim de conferir maior credibilidade aos argumentos, optou
pela menção a casos reconhecidos como iniciativas robustas no campo da participação da
sociedade nos trâmites do Poder Legislativo:
Como exemplo de evolução e de aproximação com os anseios
populares, podemos destacar a criação da Comissão de Legislação
Participativa, que desde 2001, recebe sugestões da sociedade civil. Esse
mecanismo deu à população a chance de sugerir o projeto da Lei da
Ficha Limpa, que chegou à comissão com mais de um 1,3 milhão de
assinaturas.
Ao encerrar seu pronunciamento, Alves evocou mais uma vez o passado, em
forma de retrospecto, com ênfase para os períodos críticos em que os parlamentares foram
perseguidos pelos regimes de exceção. Assim, tenta sensibilizar a plateia e os demais
ouvintes da mensagem para os riscos, o sofrimento e a renúncia que envolvem o exercício
do mandato parlamentar, sobretudo no contexto histórico mencionado.
O segundo orador, senador Renan Calheiros, presidente do Congresso Nacional,
repetiu o ritual de saudações e cumprimentos aos integrantes da Mesa e às autoridades
convidadas, citando-as nominalmente, em uma extensa lista de chamada, com o intuito
de evitar saudações genéricas. O cumprimento personalizado também valoriza as
propriedades relacionais, mas de modo a colocar um ponto focal simbólico em cada
agente nomeado e identificado.
93
Em seguida, o seu pronunciamento refletiu bem o esquema apresentado no
Quadro 1, o qual foi dominante nos discursos proferidos. Iniciou pela retrospectiva
política da atuação do Congresso Nacional, apresentando o passado como um farol
simbólico para iluminar o presente e o futuro. O senador lembrou a importância do filósofo
Montesquieu que definiu, na obra O Espírito das Leis, a separação dos poderes de governo
em Executivo, Legislativo e Judiciário, cada um com sua função, que se complementam
e fiscalizam um ao outro, evitando abusos e arbitrariedades. "É o que comumente
chamamos de sistema de freios e contrapesos. É esse sistema o adotado na maioria
absoluta das nações democráticas do mundo, entre os quais o nosso país", enfatizou. Em
sua avaliação, “trata-se de uma visão política irretocável” e reiterou os argumentos sobre
autonomia e harmonia entre os Três Poderes.
É oportuno considerar, mais uma vez, a força das circunstâncias do presente na
formulação dos pronunciamentos, em um período de um longo período de notícias
políticas divulgadas pela imprensa sob o signo de uma “crise interpoderes”, no qual os
representantes das instituições da República foram representadas como atores em franco
antagonismo, em narrativas críticas retoricamente moduladas pelo noticiário. Os jornais
chegaram a usar expressões metafóricas coloquiais para expressar esse antagonismo, tais
como “guerra entre os poderes”, “poderes em choque” e similares, nos primeiros meses
do ano de 2013. 6 O que a imprensa anunciou como “crise” se refere às repercussões
relativas à aprovação de medidas pelo Congresso Nacional contrárias à agenda
institucional do Poder Judiciário e de conflitos entre parlamentares da base aliada em
votações de medidas provisórias e projetos originados no Poder Executivo7.
A ênfase ao tom de pacificação de Calheiros deve ser entendido, portanto, a partir
desses traços conjunturais, como forma de justificação pública perante as críticas que
surgiram desses embates. Em decorrência disso, o orador refere-se sempre ao Congresso
Nacional como “uma cidadela em defesa da democracia e da cidadania”, apontando para
o plano unificado e abstrato do Poder Legislativo como instituição portadora de verdades
6Tais
metáforas foram recorrentes nos jornais no início de 2013. A constatação resultou do acompanhamento do
noticiário realizado pelo pesquisador no período, como parte do processo de compreensão hermenêutica do objeto de
estudo (Giddens, 2009).
7 No primeiro caso destacam-se a criação de novos tribunais, sem o apoio do Supremo Tribunal Federal e de uma
proposta de emenda à Constituição que submetia determinadas decisões do STF ao Congresso Nacional, cuja
repercussão negativa foi unânime no meio jurídico e também no âmbito do Poder Legislativo. No segundo caso,
destacam-se os embates na votação do Orçamento da União, da distribuição dos royalties do petróleo e da Lei dos
Portos.
94
atemporais, na lógica da verdade formular, ou seja, uma verdade em si (GIDDENS,
2009).
Similar ao presidente da Câmara, o dirigente do Senado também recorreu à lógica
paradoxal da política desinteressada (BARREIRA e BARREIRA, 2012), ao enfatizar a
dimensão de vítima de perseguição política tanto da instituição quanto de seus
integrantes, em vários períodos da história, considerados por ele “tristes episódios, pelos
quais passou o Congresso Nacional brasileiro”. Ele citou, entre eles, o fechamento total
do Parlamento durante a ditadura que imperou no país de 1937 a 1945 e os atos
institucionais de 1966, “quando o regime militar fechou o Congresso, cassou mandatos
parlamentares, censurou os meios de comunicação e eliminou partidos políticos. Desde
então, o Congresso Nacional “percorreu uma longa trajetória de batalhas, renúncias,
sacrifícios de seus membros, o que implicou algumas derrotas, mas também conquistas,
que simbolizam a própria luta dos cidadãos brasileiros pela democracia. Ainda temos
gravado na memória os terríveis episódios, nos quais o Parlamento brasileiro foi
sacrificado e impedido de exercer sua função. Foram anos de chumbo onde o Congresso
foi amordaçado e até fechado”.
Nesse horizonte histórico, o orador enfatizou a resistência do Parlamento ao
regime ditatorial. Enquanto a ditadura foi associada à censura, a atuação do parlamento
foi diferenciada pela defesa da liberdade de opinião, em uma assimetria favorável à
reputação do parlamento: ditadura x democracia. Ao diferenciar o papel institucional do
parlamento no âmbito do Estado, o orador usa uma lógica de distinção da identidade do
Poder Legislativo, como “única instituição do Estado que não aderiu ao regime político
de exceção e manteve-se em defesa da democracia, das liberdades civis e dos direitos de
cidadania”. Um dos eixos do pronunciamento foi o papel do parlamento na transição
democrática, na qual o Congresso Nacional “exerceu a nobre missão de contribuir para a
redemocratização, com uma das arenas políticas mais emblemáticas desse período, a
Assembleia Nacional Constituinte que durou de 1986 a 1988 e resultou na Constituição
Cidadã que ainda hoje é a bússola de nossa democracia”.
Renan Calheiros acrescentou que as rememorações das vicissitudes que afetam o
Congresso Nacional devem servir para todos refletirem sobre a sua importância para a
vida do País. O sacrifício, contudo, em sua interpretação dramática, não ficou no passado,
mas permanece no tempo presente, “no trabalho diuturno exercido pelos parlamentares,
95
que nem sempre é visível ou bem compreendido pelo cidadão”. Ressaltou que a
responsabilidade dos senadores e deputados é grande e as atividades são múltiplas:
Além dos trabalhos no Plenário, o mandato de cada um exige a participação
em comissões, audiências públicas, frentes parlamentares, a fim de elaborar e
dar encaminhamento a projetos de lei, propostas de emenda constitucional, a
votações do Orçamento, além de fiscalizar a aplicação do dinheiro público. A
supressão do direito de exercermos tais funções se constitui numa grave
ameaça à democracia e é, sempre, um dos primeiros atos dos regimes
autoritários.
Glorificado o passado, o orador passou a tratar da importância do Parlamento para
a justiça social, para a cidadania e para a democracia:
Nada mais simbólico da normalidade democrática de uma nação do que um
parlamento funcionando com liberdade, e onde todos os partidos
representativos dos mais diversos segmentos da sociedade têm voz ativa, tal
como ocorre hoje aqui no Congresso Nacional.
No plano do contexto atual, o orador selecionou como framing privilegiado a
atuação do Congresso Nacional no campo da justiça social e sua conexão com os anseios
populares. “O Congresso sempre manteve um clamor pela justiça, a exemplo da recente
Lei do Trabalho Doméstico”. O tom do pronunciamento foi a defesa da justiça social e o
reconhecimento da dignidade do trabalho doméstico no Brasil:
Esta emenda, que eu prefiro chamar de Emenda da Igualdade, beneficiará
diretamente mais de 7 milhões de pessoas, das quais 97% são mulheres que
deixam suas casas para cuidar das nossas. Deixam seus filhos para cuidar dos
nossos filhos. O Brasil está assumindo que a igualdade é a regra. E regra tem
que começar dentro de casa.
Aqui, o senador usa como estratégia retórica a reiteração de um discurso
institucional do Senado, cujo ponto alto foi o pronunciamento do mesmo orador em rede
nacional de rádio e televisão, por ocasião da promulgação da emenda constitucional sobre
o tema, em 02 de abril de 2013.8
Em termos de desafios futuros, os argumentos repetiram as justificações em
resposta às críticas de falta de transparência, amenizadas no discurso de Calheiros, como
“o desafio descontínuo processo de revisão e de correção de imperfeições”. Nesse campo,
além de elencar todos os instrumentos, canais e mecanismos de transparência,
comunicação, informação, consulta à documentação e interatividade institucional, o
8A
íntegra do pronunciamento está disponível: http://www12.senado.gov.br/noticias/jornal/edicoes/2013/04/03/emrede-nacional-de-radio-e-televisao-renan-calheiros-comemora-promulgacao-da-pec-das-domesticas
96
orador anunciou como novidade, “a iniciativa inédita do Senado Federal de disponibilizar
ao público da internet um banco de discursos históricos de senadores”.
Por fim, o orador sublinhou a pluralidade da representação política do Congresso
Nacional e de seus integrantes, como uma virtude democrática e um mecanismo de
revigorar sua identidade institucional. Encerrou com os cumprimentos e saudações a
todos os parlamentares que fazem parte do corpo político atual e com uma homenagem
“a todos os que aqui já não mais estão, mas deixaram a marca imortal de sua biografia
inscritas na história política do Brasil”.
O terceiro orador na ordem de precedência foi o autor dor requerimento para a
realização da solenidade, o deputado federal Alessandro Mollon (PT-RJ).Após cumprir o
ritual de saudações e cumprimentos, ele expôs os motivos que o levaram a apresentar
requerimento parlamentar solicitando autorização da Mesa Diretora do Congresso
Nacional para a realização da solenidade:
A intenção do requerimento, de minha autoria, era exatamente para que
pudéssemos comemorar esses 190 anos. E a palavra ‘comemorar’
significa fazer memória juntos. Comemorar juntos, nos lembrarmos da
história e dos momentos mais marcantes do Parlamento brasileiro.
Como se vê, logo na abertura, o orador já demarca sua fala nos moldes do esquema
apresentado no Quadro 1.
Em seguida, o autor do requerimento destacou que a
efeméride tem valor fundador no traçado da trajetória institucional do Poder legislativo,
ou seja, a instalação da primeira Assembleia Constituinte do país, se deu em 3 de maio
de 1823, por iniciativa do monarca D. Pedro I, oito meses após a Independência do Brasil.
Na oportunidade, foi criada a Câmara dos Deputados na cidade do Rio de Janeiro, então
a capital do país. Após singularizar e substancializar a relevância do parlamento
brasileiro, o orador remete para o plano da história da civilização humana no sentido mais
amplo:
A história do Parlamento brasileiro, a história do Parlamento no mundo, é a
história da conquista, da transferência da soberania de um rei para o povo. E
isso se deu através do Parlamento. Pela resistência do Parlamento, nos séculos
da Baixa Idade Média, e pelas revoluções populares na Europa, deu-se a
transferência desse conceito para a soberania popular - o povo como o
soberano.
97
Ao ressaltar a dimensão histórica, Alessandro Mollon evocou o peso simbólico da
primeira assembleia constituinte realizada no Brasil, cuja instalação ocorreu no 03 de
maio de 1823: “Trata-se da primeira experiência de representação política da nossa
história”. Em seguida acentuou “o caráter plural e diverso que a representação adquiriu
ao longo do tempo, um patrimônio cívico intangível de valor inestimável.
O passado também foi evocado para demarcar a dimensão heroica da instituição
e de seus expoentes humanos, com a resistência parlamentar à ditatura sendo exaltada,
com ênfase para os anos em que o Parlamento resistiu ao arbítrio, ao pensamento único,
ao obscurantismo, à tortura e à repressão, “perdendo, inclusive, membros seus, mas
resistindo bravamente à ditadura e sendo uma das principais referências do nosso País na
luta contra o totalitarismo”.
A consolidação democrática e o legado social da Carta Magna de 1988 foi outra
ênfase no pronunciamento de Mollon:
E, ao celebrar, Srs. Presidentes, o aniversário de 190 anos do Parlamento e de
25 anos, em breve, da Constituição Cidadã, é hora também de lembrar aquele
momento que talvez tenha sido o de maior encontro do Parlamento com o
povo: o da Assembleia Nacional Constituinte, quando, nas audiências públicas,
na mais ampla manifestação da população diretamente aqui no Parlamento, nas
emendas populares, a Casa se abriu de maneira inesquecível à participação
popular.
O cenário dos próximos dez anos, rumo aos 200 anos foi destacado pelo orador
como o período para a discussão institucional acerca dos desafios mais imediatos e
concretos:
Talvez o nosso desafio seja pensar os próximos 10 anos, para o bicentenário
da nossa Independência. Ou seja, de que maneira o Parlamento pode contribuir
para que, em 2022, ao celebrarmos 200 anos de Independência, possamos
celebrar o País que nós queremos? Qual é a melhor contribuição que o
Parlamento pode dar para isso? De que maneira, nos próximos 10 anos,
podemos trabalhar para fortalecer o Poder Legislativo, o mais plural, o mais
aberto e o mais democrático dos Poderes, para que o Brasil se sinta melhor
representado nesta Casa?
Além dos oradores principais, todos os líderes partidários presentes no momento
da solenidade tiveram oportunidade de se pronunciar, embora em curto espaço de tempo
98
e sem acréscimos substanciais em termos de conteúdo discursivo 9. Em resumo, esses
oradores repetiram os cumprimentos e saudações às autoridades e, praticamente todos,
usaram a mesma fórmula adotada pelos pronunciamentos anteriores, resumidos no
Quadro 1. Trata-se de uma estratégia de reiteração e reafirmação dos sentidos
tacitamente negociados pelos oradores. Além disso, a homogeneidade das perspectivas
discursivas devem ser compreendidas como resultado impremeditado da internalização
das práticas parlamentares, ou seja, como fruto do habitus político, nos termos de Pierre
Bourdieu. Esse modo operatório de repetir os argumentos é uma forma típica de
comunicação política, como se observa nas campanhas eleitorais e nos debates
legislativos, a fim de fixar os sentidos pretendidos pelos oradores.
A reverência da plateia
A interação com a plateia é outro aspecto a ser considerado na conformação dessas
representações expressas pelos oradores. Os ocupantes da Mesa e da tribuna recorrem,
cada um a seu modo, a estratégias de manipulação impressão pessoal, a autoapresentação
e a retórica institucional em torno da reputação do parlamento. Para a análise desse tópico,
recorremos à contribuição de Erving Goffman sobre a arte de manipular a impressão
(2011). Por meio desse recurso os oradores buscam gerenciar e regular as significações
transmitidas aos que estão na plateia. Segundo essa lógica, o orador faz uma espécie de
edição em tempo real da sua autoapresentação, o que implica omitir algumas informações
e escolher o que deseja comunicar, a fim de causar boa impressão a seu interlocutor.
Nessa perspectiva, observa-se que entre os oradores, do ponto de vista das
estratégias de interação com os convidados, a convergência simbólica do repertório
aponta para uma lógica de monocultura discursiva que simplifica os sentidos, mas com o
propósito de lhe conferir densidade e espessura. Reduz a polissemia a fim de fixar
determinadas representações e focar nelas as estratégias de interação com a plateia.
Assim, a lógica da economia da grandeza parlamentar, pautada pela distinção e a
reputação diferenciada, é abdicada em um pacto tácito, em favor de uma lógica de que
reforça o poder simbólico do parlamento. Desse modo, a política da reputação dá lugar à
reputação da política, numa coalização simbólica, cujo regime de verdade tem como
9
Conforme informações dos servidores responsáveis pela organização da cerimônia, essa prática é habitual e se justifica
apenas como ritual dos líderes partidários para “marcar presença”, garantir visibilidade nas mídias legislativas e
assegurar a inclusão de seus pronunciamentos nos anais do Congresso Nacional.
99
suporte um mutirão semântico, uma coprodução, algo que se aproxima da noção de James
Clifford sobre a criação de universos de significação comuns.
A interação, nesse caso, enquadra-se no ponto de vista dos modos de regulação
social das aparências. Assim, pode-se afirmar que a solenidade constituiu um modo de
regular e manter as aparências, a fim de esconder as mazelas relacionadas aos conflitos e
disputas inerentes ao campo político. Contudo, como ressalta Sennett (2012, p.64), as
aparências exercem função de extrema relevância no mundo social, tanto em termos de
diplomacia cotidiana quanto no caso de relações políticas institucionais. “Manter as
aparências é um ritual de cooperação que permite que os fortes e os fracos passem a
compartilhar um mesmo código de honra”, ao parafrasear Frank Anderson Stewart
(1994).
A convergência simbólica do repertório moral regula os sentidos, com o propósito
de lhe conferir densidade, espessura e reverência, resultado da arte de manipular a
impressão (GOFFMAN, 2011), estratégia sublinhada por todos os oradores, conforme o
esquema apresentado no Quadro 1. Em suma, os pronunciamentos dos oradores
apresentaram como essência um engajamento retórico voltado para legitimar essa fachada
de política consensualmente reiterada, em torno da honra e da reputação institucional do
parlamento.
Cabe ainda uma breve observação a respeito do comportamento da plateia, uma
vez que, conforme Goffman (2011), as técnicas de manipulação da impressão nos
contextos de interação humana fazem parte de um jogo em que os que tanto os que falam
como os que ouvem exercem papeis que interferem no processo interacional. No caso em
discussão, cabe salientar o perfil dos convidados, habituados aos rituais das cerimônias e
à disciplina protocolar das solenidades, como no caso dos diplomatas, militares e
magistrados. Essa característica da plateia favoreceu uma configuração relacional pautada
pela postura reverente e disciplinada durante toda a solenidade. Essa postura de reverência
certamente estimulou os oradores em suas estratégias de manipulação da impressão.
Diante de um público que não fosse habituado aos rituais de cooperação e às formalidades
protocolares, certamente a postura dos oradores teria sido diferente, fruto de atributos e
práticas defensivas de interação, conforme preconizam as análises de Goffman já
referidas.
Outro fator relevante no que se refere à confluência de perspectivas, com o tempo
em destaque, com largas referências à história do parlamento, se deve ao conhecimento
100
da plateia sobre o assunto. Militares e diplomatas são reconhecidos como conhecedores
da história de seu país e de suas instituições, além de elevado espírito cívico e patriótico.
O culto à história do parlamento nos pronunciamentos dos oradores lembra a visão
filosófica de Kosik (1976) de que os humanos fazem e refazem a história política. Isso
implica entender que a história é criada, mas sua continuidade resgata o que já foi
previamente (re)construído pelas gerações precedentes. Trata-se do que o autor denomina
de reprodução espiritual e racional da realidade, um dos norteadores da práxis humana.
Considerações finais
A análise da cerimônia mostra que o cotidiano legislativo, marcado pelas
operações críticas situadas em contextos bem demarcados de contradição hermenêutica e
de disputas de poder, dá lugar a um momentâneo ritual de consenso simbólico que aponta
para a glorificação e a honra do parlamento como instituição. As diferentes ordens de
economia da grandeza política são unificadas em um único esquema de fluência
discursiva, portador de um valor universal, um capital simbólico ecumênico e
sacramental. Todos formam um só corpo político e abdicam algum tempo das disputas
inter e intrapoderes, além dos conflitos e tensões entre partidos, lideranças, facções etc.
A necessidade de inimigos, um imperativo na política (BAILEY, 1998) é
suplantada em nome de um interesse momentaneamente unificado sob os símbolos e
rituais de agregação e cooperação moral. Durante a cerimônia, a política deixa de ser um
jogo de antagonismos no qual se procura reforçar o prestígio e a honra dos aliados e
combater a reputação dos inimigos. Todos unem-se em um campo simbólico de aliança
perante a opinião pública. A pulsão narcísica que constrói heróis individuais é substituída
pela pulsão cívica e um engajamento retórico republicano em defesa do Parlamento, da
Política e da Democracia, no plano mais abstrato e distante dos antagonismos e dos jogos
de competição por poder, reputação, honra, reconhecimento público e visibilidade. Em
vez de demarcação de identidades partidárias e discursos dialéticos típicos da política de
reputação (BAILEY, 1998), passamos a presenciar uma estetização do narcisismo
institucional que busca um ordenamento de perspectivas e um consenso que coloca o
simbólico acima do político. A democracia liberal com sua lógica concorrencial e
assimétrica adquire sentido republicano, por meio dos discursos transformados em
101
interações-rituais que unificam o corpo político e recriam sua autoimagem, tecida com
discursos de justificação articulados pela ordemsimbólica.
O ritual ecumênico em termos partidários agrega os diferentes e une os “inimigos”
em um mesmo espírito de confraternização, um espírito republicano abstrato que nunca
consegue se materializar no plano objetivo dos campos conflituosos da democracia
liberal. Saem de cena a representação teatral calcada nas metáforas de guerra e adotamse metonímias de comunhão, à guisa de uma eucaristia política.
A efeméride dos 190 anos do parlamento transformou o plenário do Senado em
metáfora da plenitude simbólica da imagem de unificação da democracia como “governo
do povo”. Assim, a solenidade sublinha um texto marcado por entrelinhas que destacam
o plano superlativo do Parlamento como instituição política que abriga os planos relativos
de disputas, mas que se coloca como algo maior que o nível experiencial dos sectarismos
e facções da política diária.
O trânsito político tortuoso nos contextos de disputas é substituído por uma ponte
de equivalências simbólicas. Essa ponte une no mesmo plano os partidos, as duas
instituições do Poder Legislativo (Câmara e Senado), os Três Poderes e todos os 513
deputados e os 81 senadores. São todos irmanados pelo poder simbólico, a fim de regular
a suspensão temporária das hierarquias e classificações de grandeza concorrencial, típicos
do poder político. A solene fraternidade ensejada pelos ritos cerimoniais de celebração da
efeméride faz todos desviarem o olhar do horizonte hermenêutico da democracia
concorrencial e sua lógica de política agonística. A democracia é representada como
objeto simbólico de culto político e de veneração pública como um valor cívico em si.
Tal qual observou Moura (2007), em etnografia de cerimônia diplomática,
também no caso da solenidade em homenagem aos 190 anos do Parlamento, a solenidade
reafirma o status da Casa, demonstrando sua grandeza e tradição. Por isso o tempo
aparece como uma encruzilhada simbólica, que cruza representações de um passado
idealizado, o realismo do cotidiano presente e os desafios de um futuro imaginado. Nos
três casos, os discursos procuram glorificar e reforçar o status político da Instituição. A
própria efeméride favoreceu que o tempo exercesse o papel de fio condutor dos
argumentos, de forma ritualizada. As imagens do passado foram usadas como compostos
simbólicos sedimentados na memória da plateia: o heroísmo de figuras da história política
e suas biografias; e as perseguições políticas nos regimes ditatoriais, que impuseram a
censura aos parlamentares. As representações sobre o presente acionam elementos que
102
fazem parte do cotidiano político construídos nas páginas dois jornais: as dificuldades nas
relações interpoderes; a incompreensão perante a opinião pública; a imagem negativa
decorrentes dos escândalos de corrupção. O futuro imaginado remete para o campo dos
desafios, evocando mais vez a coragem, a sabedoria e a vocação política dos
parlamentares. Passado e futuro são afastados do ponto de vista da história, mas reunidos
sob o aspecto simbólico.
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105
Testemunhar o intestemunhável e o hiato sobre Auschwitz
Aline Ramos Barbosa1
Resenha de AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz [Homo Sacer III]. São
Paulo: Boitempo, 2008.
Recebido em 02/02/2015; aceito em 10/06/2015.
Em O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III),
Agamben retoma a discussão iniciada em Homo Sacer I – o poder soberano e a vida nua
e em Estado de Exceção (Homo Sacer II, 1). No volume III, o autor deixa o argumento –
que já está nas duas outras obras – mais robusto, de modo que neste livro podemos
enxergar melhor a ligação entre Homo Sacer I e Estado de Exceção. Se no primeiro,
Agamben nos apresenta o conceito de vida nua, ao retomar a discussão grega sobre a
diferença entre bios e zoe, no segundo, traz uma discussão vasta sobre o Estado de
Exceção. Dessa forma, entendemos como o Estado de Exceção – que é, de maneira
resumida, a suspensão da ordem democrática – cria mecanismos para classificar alguns
cidadãos como homines sacre, ou seja, vida nua, no sentido de que são despidos de seus
direitos de cidadania e, mais ainda, não são considerados vida humana.
No volume primeiro de Homo Sacer, Agamben retoma o conceito homônimo ao
título do livro, que vem do Direito Romano e diz respeito à figura que pode ser morta,
mas não sacrificada. Tal digressão é realizada para nos explicar como a ideia de inclusão
e exclusão se misturam e, antes de formar um par de oposição, são na verdade expressões
de um mesmo continuum. Esta análise, então, nos ajuda a entender vida e morte no
contexto da biopolítica. Dessa forma, na última parte do primeiro livro, Agamben indica
o campo de concentração como o local mais radical de expressão da biopolítica:
O campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a
tornar-se regra [...]. Na medida em que os seus habitantes foram
despojados de todo estatuto político e reduzidos integralmente à vida
nua, o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico jamais
Doutoranda em Ciências Sociais – UNESP de Marília. Rua Hygino Muzy Fº 737, Marília - SP, 17525901 . Tel. (14) 3402-1300.
1
106
realizado, no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem
qualquer mediação2.
Este exemplo histórico-prático é muito importante porque as reflexões sobre a
experiência do campo de concentração podem nos ajudar a entender melhor os
mecanismos da biopolítica – e também da tanatopolítica – que será explorada por
Agamben, nesse binômio de vida e morte e gestão do corpo coletivo, reunidos no que
Foucault chamou de população. Sendo assim, é possível construir uma pergunta com o
título do livro: o que resta de Auschwitz? Para responder a esta questão, Agamben reflete
sobre todos estes conceitos supracitados, com o horizonte na experiência prática do
campo de concentração e nos abre caminho para a discussão sobre a testemunha e o
arquivo e as possibilidades e limites de revisitar este fato histórico-político. Mais uma
vez citando Gagnebin: “O resto indica muito mais um hiato, uma lacuna essencial que
funda a língua do testemunho em oposição às classificações exaustivas do arquivo”3.
Sendo assim, este livro se debruça sobre a dificuldade de resgatar o que houve no campo
de concentração, já que a testemunha que vivenciou tudo é a mesma testemunha que, nas
palavras do autor, “fitou a górgona, [e] não voltou para contar”.
Como em seus outros livros, embora haja a divisão entre capítulos, o autor opta
por escrever em formas tópicas e, desta maneira, nos apresenta a várias discussões, por
partes, que se articulam com o decorrer do texto. Sendo assim, a divisão do livro se dá da
seguinte forma: a testemunha; o “muçulmano”; a vergonha, ou do sujeito; o arquivo e o
testemunho. Os dois primeiros capítulos – sobre os quais essa resenha se debruça mais
detalhadamente – desenvolvem o tema central da obra: a impossibilidade de acessar que
houve nos campos de concentração. Haja vista que testemunhas integrais não existem, já
que quem presenciou todas as etapas está morto. Os dois seguintes, de mais complicado
entendimento para leitores não familiarizados com Linguística, desenvolvem os limites
do testemunho e como isto pode ser relacionado com o arquivo, ou seja, compara duas
formas diferentes de armazenamento e acesso posterior às informações.
Para Agamben, então, o campo de concentração é expressão da situação de quando
a exceção vira regra, com a suspensão dos direitos políticos e do estatuto de humanidade,
2
Apresentação do livro O que resta de Auschwitz, por Jeanne Marie Gagnebin. Trecho extraído de Homo
Sacer: o poder soberano e a vida nua.
3
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Apresentação. In: AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o
arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008, p.11.
107
ou seja, o espaço mais absoluto da biopolítica. Esta expressão absoluta só foi possível a
mecanismos criados pelo regime nazista, que, segundo Agamben, tinha uma ordem
rígida, porém totalmente aleatória e, desta forma, também inexplicável. Por mais possível
que seja acessar reflexões de autores que vivenciaram o período, como Primo Levi e
Hannah Arendt, a explicação do fenômeno nos falta. Aliás, a mais assustadora das
conclusões possíveis é que não há explicação lógica e que seres humanos comuns foram
responsáveis pelo holocausto, a exemplo da discussão de Arendt sobre o caso de
Eichmann.
Sobre a palavra holocausto, Agamben tece um elaborado raciocínio sobre sua
origem e como sua utilização não é correta, pois relaciona os crematórios do período da
Shoá com altares rituais, com conotação e relação semântica “violentamente antissemita”.
Dessa forma, o autor prefere a utilização do termo Shoá, que remete a um eufemismo,
ligado à ideia de “devastação, catástrofe”, que para o autor, é mais respeitoso com o fato
histórico:
Mesmo que seja provavelmente a esse termo que se refere Levi, ao falar
da tentativa de interpretar o extermínio como uma punição pelos nossos
pecados, o eufemismo aqui não contém escárnio algum. Pelo contrário,
no caso do termo “holocausto”, estabelecer uma vinculação, mesmo
distante, entre Auschwitz e o olah bíblico, e entre a morte nas câmaras
de gás a “entrega total a causas sagradas e superiores” não pode deixar
de soar como uma zombaria” (p.40).
Voltando agora a discussão sobre os sobreviventes da Shoá, para Agamben eles
são “pseudotestemunhas”, já que não testemunharam todo o processo. Resgata, para isso,
a lendária história grega sobre a Górgona, “o rosto proibido, impossível de olhar porque
produz morte” (p.60). E dessa forma, nos alerta para a impossibilidade do testemunho
integral. E assim, nos conta a história de Hurbinek, “um nada, um filho da morte, um filho
de Auschwitz” (p.46). Menino que ninguém sabia nada a respeito e que era pequeno
demais para contar sua experiência ali em Auschwitz. Fora encontrado ao final da guerra
e seu nome – na verdade, o nome que a ele imputaram – derivou de um barulho que
balbuciava. Nas palavras de Primo Levi, transcrita por Agamben: “Hurninek morreu nos
primeiros dias de março de 1945, liberto mas não redimido. Nada resta dele: seu
testemunho se dá por meio de minhas palavras” (p.47). Ou seja, percebemos, nesta
pequena reflexão extraída de Primo Levi, como ele já se preocupava com a testemunha e
dar o seu testemunho sobre o ocorrido. Não testemunhar e tudo ser esquecido seria igual
à vitória e ao objetivo final do regime nazista.
108
Outra figura relatada por Primo Levi é o muçulmano. Muçulmanos eram os
considerados mortos-vivos no campo de concentração. Os que já não tinham mais
vontade de viver. A razão de serem chamados assim remete à origem etimológica do
termo, relacionado a “muslim” – incondicionalmente à vontade de Deus – mas também a
posição que os corpos desnutridos ficavam, lembrando a posição da oração dos
muçulmanos. Ironicamente, segundo Agamben, os judeus não conseguiam morrer
segundo a condição de judeus. A figura do muçulmano é de fundamental importância
para as reflexões sobre alguma possibilidade de testemunho e sobre o estatuto de
humanidade.
O que significa “continuar sendo homem”? Para Agamben, como a figura do
muçulmano praticamente estava destituída de toda possibilidade de dignidade humana,
continuar sendo homem diria respeito a uma “reivindicação quase biológica de pertença
à espécie humana” (p.65), quando a dignidade não se faz mais presente. “O muçulmano,
que é a formação mais extrema da mesma, é guardião do umbral de uma ética, de uma
forma de vida, que começa onde acaba a dignidade” (p.76) e, portanto, depois do evento
dos campos de concentração, nunca mais o referencial ético da humanidade poderia voltar
a ser o mesmo.
Na verdade, até a própria ideia de morte é alterada. No caso dos muçulmanos, a
“morte não pode ser chamada de morte”. Como analisa Arendt, podemos falar em
“produção de cadáveres”. Ou ainda relacionar as mortes à industrialização da morte,
como se fosse uma linha de produção, com “tempos e movimentos” cronometrados e
otimizados, a exemplo de Taylor e seu pensamento fabril. Dessa forma, a sacralidade da
vida e da morte é maculada, já que a figura do muçulmano “é o não-humano que se
apresenta obstinadamente como homem, e o humano que é impossível dissociar do
inumano” (p. 87). Então, Agamben, seguindo essa lógica de pares de opostos que na
verdade são expressões de um mesmo continuum, nos chama a atenção para uma
expressão do biopoder: a tanatopolítica.
Agamben retoma a discussão foucaultiana sobre biopoder, e a importante torção
que há em relação ao poder do soberano (discutida exaustivamente no volume primeiro
de Homo Sacer). Se antes da modernidade a intromissão do soberano na vida do corpo
social se dava pela lógica do “fazer morrer e deixar morrer” para a sua inversão na
modernidade “fazer viver e deixar morrer”. Dessa forma, além de biopolítica, o autor
sugere que a lógica da modernidade é a da tanatopolítica, ou seja, a ideia de o Estado
109
investir também sobre a morte do corpo social. Mais do que isso, a legitimidade do
Estado se fundaria, depois do final das sociedades sacrificiais, na morte das pessoas. Se
assim não fosse, quando mais mortes houvessem, menos o Estado teria força. E sabemos,
historicamente, que o processo é exatamente o contrário.
Sendo assim, depois de todos estes pontos discutidos, Agamben faz uma
explanação sobre como o Estado totalitário – especialmente o nazista – expressa a
coincidência perfeita entre a biopolítica e a tanatopolítica. Paradoxo este que foi apenas
possível com o racismo, que permitira ao biopoder um continuum biológico,
reintroduzindo o princípio da guerra. O muçulmano, então, é a “última substância
biopolítica isolável no continuum biológico. Para além disso, há apenas a câmara de gás”
(p. 90). Dessa forma, o muçulmano é a mais pura expressão do homo sacer. E também a
possibilidade maior de testemunha que possuímos do campo de concentração, que fora
criado, esquematizado e racionalizado de forma a massacrar uma população sem deixar
provas, rastros e sem permitir que ela contasse a sua história.
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