Document 611737
Transcrição
Document 611737
Projeto: Rede de Pesquisa e Desenvolvimento de Políticas Públicas (BRA/97/013) Pesquisa: Licitação, Organização Institucional e Regulação dos Serviços Públicos de Transporte Urbano no Brasil: estudos de caso (31U57/U) REFORMA INSTITUCIONAL E FINANCEIRA NOS TRANSPORTES PÚBLICOS URBANOS: IMPASSES E PERSPECTIVAS* Joaquim José Guilherme de Aragão Brasília, julho de 2004. * O conteúdo deste relatório corresponde à reprodução fiel do arquivo apresentado pelo(s) seu(s) autor(es), não tendo sido, portanto, objeto de tratamento editorial. 2 ÍNDICE 1 – APRESENTAÇÃO....................................................................................................................3 2 - A CRISE E SEU DIAGNÓSTICO ............................................................................................4 2.1 – Evolução geral: como se perdeu uma oportunidade........................................................... 4 2.2 – Avanços recentes ................................................................................................................ 7 2.3 – O financiamento das infra-estruturas.................................................................................. 8 2.4 – A função da União............................................................................................................ 10 2.6 – Sistemas sobre trilhos ....................................................................................................... 18 3 – QUADRO REFERENCIAL PARA A AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS REGULATÓRIAS ..20 3.1 – Posicionamento teórico..................................................................................................... 20 3.2 Necessidade de uma virada.................................................................................................. 31 4 – PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS PARA O INVESTIMENTO EM INFRAESTRUTURAS DE TRANSPORTE: CONDIÇÕES DE CONTORNO......................................32 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................................................37 3 1 – APRESENTAÇÃO O presente artigo, elemento do projeto mais abrangente intitulado “Licitação, Organização Institucional e Regulação dos Serviços Públicos de Transporte Urbano no Brasil: estudos de casos” (IPEA, Projeto BRA/97/013) visa discutir alguns pressupostos teóricos da regulamentação dos transportes públicos urbanos, a respectiva aplicação na análise da situação atual dos transportes públicos urbanos do Brasil, e o esboço de estratégias alternativas para sair do atual impasse. A crise do transporte público urbano e, de forma mais geral, da mobilidade urbana nas metrópoles brasileiras se inserem em um quadro mais amplo de crise econômica e social, sendo que a forte restrição financeira do Estado aparece como a ponta de um iceberg. Na verdade, tal impasse financeiro tem levado a um progressivo desmonte do Estado, que vem perdendo capacidade de implementar políticas públicas formuladas sob um ângulo de estratégia de desenvolvimento. A própria morosidade na implementação dos programas mais prioritários, freqüentemente interpretada como falta de vontade de liberação de verbas com vistas a garantir o superávit primário, tem por base a progressiva desmobilização de quadros administrativos capacitados para a formulação e gestão de programas e projetos. Entretanto, a crise no transporte público urbano, e é sobre essa que a presente contribuição se debruça, põe à tona elementos especificamente setoriais. O abandono, pelo Poder Público dos diferentes níveis, desse serviço público que a Constituição destacou, até à frente de outros, como “essencial” (art. 30,V) é patente, e se reflete na invasão das vias urbanas pelo transporte artesanal, sem base legal, o qual soube encontrar seu espaço no desespero dos usuários provocado pelo serviço ruim, não confiável e caro. O abandono comporta diversas explicações, históricas e políticas, datando o seu início no fechamento da EBTU e na negação da União de qualquer responsabilidade por esse serviço, sob a cômoda alegação a Constituição lhe tinha retirado a respectiva atribuição. Evidentemente, ao longo dessa longa descida, esforços houve da parte de diversas entidades públicas e civis, de reanimar o setor e propor soluções para a crise. Alguns resultados parciais podem ser celebrados, mesmo que não tenham conseguido reverter o quadro geral descrito. E o presente artigo, além de trabalhar com maior pormenor as teses aqui sumariamente expostas, deve finalizar com proposições para a recuperação do setor. Antes disso, porém, mister se faz detalhar a análise da situação. Para tal fim, uma primeira parte é dedicada ao diagnóstico da crise. Um breve histórico seu é sucedido pela compreensão dos processos ocorridos em sua base, qual seja a Reforma do Estado, que tem sua dinâmica autônoma, situada no campo da ideologia e da política, mas que também está intimamente ligado ao processo de deterioração das finanças públicas. A primeira parte prossegue relatando avanços recentes e abordando aspectos fundamentais para a política de transportes, tais como as fontes e procedimentos para o financiamento do setor, a administração dos serviços nas aglomerações pluri-municipais, a invasão do transporte informal, a situação nos sistemas sobre trilhos, 4 descrevendo ainda algumas experiências locais que ao menos impediram que o transporte seguisse o rumo à degradação observada alhures. A segunda parte tem caráter mais prepositivo, iniciando com lastro teórico fundamentado na Economia da Regulação, adaptada aos aspectos específicos do setor em tela. Nessa altura, experiências internacionais são trazidas à tona para ilustrar adicionalmente os argumentos teóricos em favor de uma reforma regulatória. As respectivas proposições são expostas, assim como as reações verificadas à mudança, sobretudo da parte das empresas de transporte, que devem ser co-responsabilizadas pelo estado atual do setor. Nesse ponto, o artigo dá uma inflexão, radicalizando seu caráter prepositivo, em favor de um instrumento atualmente em voga para financiar infra-estruturas, que são as parcerias público-privadas. Parte-se, pois, da avaliação, que a crise setorial não resulta de um impasse financeiro e sim político, especificamente ligado ao setor: o desinteresse das administrações locais de retomar a gestão de um setor capturado pelas empresas e desmoralizado pela opinião pública. De fato, o político profissional, cioso da sua sobrevivência nas eleições, tem uma natural preferência por ações que lhe trazem o necessário dividendo eleitoral, ações essas que têm se tornadas impossíveis no setor capturado e desmoralizado. Investimentos infra-estruturais, defende-se aqui, não são apenas necessários para a melhoria da qualidade de circulação e de vida nas cidades, mas também para despertar interesse dos políticos em uma democracia representativa que ainda pretende-se conservar e, até, consolidar. O impasse financeiro, evidentemente, se impõe como uma primeira barreira para sua rápida efetivação. Uma política abrangente de programas e projetos de parcerias público-privadas nas cidades, que envolvam o investimento nos transportes e na renovação urbana bem como a dinamização das economias das cidades precisa ser desenvolvida e adotada, e seus pressupostos econômicos, operacionais e legais são discutidos, à luz também de experiências internacionais. 2 - A CRISE E SEU DIAGNÓSTICO 2.1 – Evolução geral: como se perdeu uma oportunidade Desde os anos 50, o Brasil tem consolidado um imponente setor empresarial privado no transporte público rodoviário, na esteira da decadência dos antigos sistemas de bonde, os quais foram desativados na década de 60. Em algumas cidades, especialmente nas principais metrópoles, as empresas públicas sucedâneas desses antigos sistemas passaram, por algumas décadas, a operar sistemas de trólei e de ônibus. Entretanto, na década de 90, não conseguiram resistir à política de retirada da Administração Pública da operação, e as mesmas foram ou vendidas ou extintas. Por sua vez, o parque empresarial privado foi se consolidando, abandonando já na década de 60 seu estágio artesanal, graças às políticas de frota mínima, bem como de imposição do veículo auto-ônibus para a operação e de regulamentação protetora, adotadas pela Administração, a qual, contudo, conservava o seu poder de definir os serviços e as tarifas. O florescimento dessas empresas teve seu ápice entre 1985 e 1995, eis que essa evolução foi impulsionada pela adoção do Vale-Transporte e do financiamento pelo BNDES (FINAME), 5 que garantiram uma estabilidade de receita e acesso a financiamento de capital subsidiado, isso após revoltas de usuários no início da década de 80 contra o constante aumento das tarifas, que seus salários não conseguiam mais acompanhar. Durante as décadas de florescimento e de concentração apoiada por políticas públicas, o País pareceu, portanto, construir sistematicamente um moderno parque empresarial, que, além de prestar eficientes serviços, poderia eventualmente ser um gancho para políticas de exportação. Henry (1997) chegou a propor uma classificação em 8 categorias de tamanho, indo desde as empresas individuais e familiares até empresas hegemônicas e monopolísticas (com frotas de 600 a 700 veículos). Esse parque heterogêneo de tamanho possuia técnicas igualmente heterogêneas, fazendo com que a tarifa calculada pela média da estrutura de custos beneficiasse sobretudo as grandes, que usavam, assim, as pequenas como anteparo para ganhos extras em eficiência, não repassados para a sociedade. Entretanto, mesmo preservando o parque de pequenas empresas, o setor não deixou de apresentar processos contínuos de concentração, especialmente mediante a criação de redes de empresas operando ou em uma mesma cidade ou em várias cidades. Lado a lado ao florescimento desse parque empresarial cresceu a indústria nacional de fabricação de ônibus, cristalizando uma meia dúzia de grandes encarroçadoras nacionais − que passaram a exportar seus produtos e mesmo a construir fábricas no estrangeiro −, apoiadas por fabricantes internacionais de chassis (Mercedes-Benz, Volvo, Scania, Ford e Volkswagen). Nos seus melhores anos, essa indústria de equipamentos chegou a produzir mais de vinte mil veículos ao ano. A instabilidade do mercado interno as levou, entretanto, a que buscassem as exportações e a produção externa como instrumento de diversificação dos riscos comerciais. Entretanto, a recusa da União de qualquer responsabilidade pelo transporte urbano a partir da promulgação da Constituição de 1988 e a conseqüente extinção da EBTU em 1990 prenunciam um ocaso desse setor florescente de prestação de serviços públicos, se bem que ainda no início dessa década, os efeitos ainda não fossem visíveis: pois foi paulatinamente que os governos locais foram perdendo sua capacidade gerencial, ressentindo a falta do apoio técnico e financeiro que a EBTU vinha dispensando até então. Igualmente, a consolidação de uma estrutura oligárquica no setor foi impondo uma captura da regulamentação local, e nem a promulgação da Lei nº 8.987/95 foi capaz de introduzir aqui uma cultura de licitação competitiva. Com efeito, poucas foram as cidades que tentaram se submeter à prescrição constitucional da licitação, os processos resultantes resultaram demorados e dispendiosos, eis que todo avanço no processo tinha de ser conquistado em ferozes batalhas judiciais. Nesse clima de incertitude legal, as municipalidades não lograram, obviamente, atrair novos operadores, resultando as licitações em uma nova concentração de antigos operadores, agora lastreados em um contrato estável, mas não favorável ao interesse público. O que se seguiu então foi uma desmoralização do Poder Público e de seus órgãos gestores, levando a que os próprios Chefes de Executivo se desinteressassem a investir no setor, dominado que estava esse pela força dos empresários organizados. Abriu-se, em decorrência, um vácuo de autoridade pública, habilmente aproveitado por pequenos operadores de veículos utilitários, que desde a década 70 vinham explorando nichos marginais no mercado do deslocamento urbano, tais 6 como linhas em favelas ou periferias metropolitanas. A partir desses focos periféricos, passaram a invadir os principais corredores para os centros, estrangulando a operação das operadoras de ônibus. Um fato importante que viabilizou esse avanço foi a abertura à importação de modernos utilitários, que depois passaram a ser produzidos no País. Lado a lado desse crescimento mercadológico veio o político: os operadores desse transporte ainda não cobertos legalmente aprenderam a se organizar politicamente, impondo em certas cidades sua regulamentação, uma vez que contavam com respaldo junto à população de usuários, mal servida pelo sistema regulamentado e oligopolizado. Em 2001, 12 capitais já tinham licenciado o sistema, via de regra, expedindo outorgas a indivíduos ou cooperativas. Sua frota, diversificada quanto a modelos, atinge em várias cidades 20 a 30 por cento da frota de ônibus (em algumas chegou a igualar à frota de ônibus), disputando 15 a 20 por cento da demanda. Vale lembrar, ainda, que um grande número de pequenos operadores ou cooperativas desses atua ainda no transporte escolar, fretado e de turismo (Renault e COPPETEC 2001). Na verdade, mesmo tendo alcançado sua regulamentação, praticaram uma concorrência predatória ao sistema de ônibus, operando sobre as linhas mais rentáveis, sem se preocupar em atender igualmente as linhas e os horários menos rentáveis. Outros elementos predatórios foram a exploração da mão-de-obra, em desrespeito da legislação trabalhista, e a isenção de transportar categorias beneficiárias de descontos ou gratuidades no sistema comum. Esses fatos, e ainda o congestionamento provocado por esse sistema informal levou a que algumas cidades passassem a coibir essa competição selvagem, mesmo regularizando parte de seus operadores, com vistas a submetê-los ao império da autoridade pública. Contudo, persiste ainda a patente ilegalidade dos operadores de ônibus que ainda não se submeteram ao princípio licitatório previsto da Carta, fragilidade institucional essa que poderá sempre ser explorada pelos concorrentes predadores. Por outro lado, os esforços de regulamentação desses serviços caracterizaram-se, via de regra, como uma reação, a contragosto, do Poder Público, com vistas a restaurar o Poder Regulamentar, cedendo a fatos consumados, sem, contudo, integrar os novos atores como uma nova classe que merecesse suporte governamental para fins de sua capacitação, desenvolvimento e amadurecimento empresarial. O número de operadores admitidos costuma ser pequeno com relação à demanda de legalização, produzindo uma segregação entre os operadores “incluídos” e os “excluídos”, e sobre estes últimos se abate uma forte repressão. No que tange os que restam, os serviços para os quais são admitidos muito frequentemente não se sustentam financeiramente, de forma que, aliado ao fato de não receberam qualquer apoio de capacitação empresarial, aos poucos vão abandonando os serviços a que foram designados, para retomar a ilegalidade ou desaparecer do setor. Em suma, não existe nenhuma política ativa de desenvolver o segmento do pequeno operador autônomo de veículo de menor porte, e a paleta de serviços a que são admitidos reflete a falta de visão com relação a potenciais de mercado, onde o pequeno operador poderá prestar um valioso sérvio complementar. 7 2.2 – Avanços recentes Esse panorama geral de decadência do serviço público não obstante alguns poderes locais terem adotado o modelo de agência reguladora, setorial ou multi-setorial1 conheceu, obviamente, exceções. Cidades como Curitiba e Porto Alegre, e, em certa medida, Belo Horizonte e Recife, conseguiram, pelo menos por algum tempo, sustentar a autoridade pública sobre o sistema de transporte público. No caso de Curitiba, essa cidade preserva ainda sua força de exemplo como modelo de gestão pública que congrega a política de transportes ao planejamento urbano, atraindo ainda muitos visitantes estrangeiros desejosos de conhecer de perto a experiência. Entretanto, recentes inovações são poucas, e o projeto Transmilenio de Bogotá começa a disputar o interesse internacional. Igualmente, a escolha tecnológica de ônibus bi-articulados vem impondo pesados custos aos empresários. Mas, em virtude da forte presença do Poder Público, é uma cidade ainda livre do transporte informal, e os empresários podem ainda se beneficiar da uma estabilidade regulamentar, dado o Poder Público, não obstante a ilegalidade, não estar disposto a realizar licitações. No que tange a Região Metropolitana dessa cidade, vale lembrar que a experiência curitibana ainda tem por base o âmbito municipal, e que por muito tempo, os municípios vizinhos não puderam apresentar o mesmo nível de serviço sustentado na Capital. Aos poucos, contudo, o município vem fechando acordos com os municípios vizinhos e o Estado, de forma que a Rede Integrada abrange hoje 12 municípios da Região Metropolitana: Almirante Tamandaré, Colombo, Pinhais, São José dos Pinhais, Araucária, Fazenda Rio Grande, Campo Magro, Campo Largo, Contenda, Rio Branco do Sul, Itaperuçu e Piraquara. Essa integração se dá por linhas convencionais, de ônibus metropolitanos, Expressos e Ligeirinhos, transportando diariamente cerca de 500 mil pessoas que residem ou trabalham nas cidades vizinhas. Porto Alegre goza de uma relativa estabilidade e qualidade no seu sistema de transportes, graça a uma engenhosa política de cooperação entre o setor público e privado. Uma política de diversificação de serviços com a oferta de micro-ônibus ocupou preventivamente um mercado usualmente utilizado para a expansão do transporte informal. Outra característica do sistema institucional é a subdivisão da rede em bacias de atendimento servidas por consórcios de empresas. Contudo, a recusa de realização de licitações coloca o sistema em constante risco de questionamento legal. 1 A adoção de agências reguladoras, para tomar lugar dos tradicionais órgãos gestores, é uma conseqüência da Reforma do Estado, muito embora ela não seja impositiva aos governos locais. Entretanto, esse tipo de organização é mais própria do Direito Administrativo anglo-saxônico, e sua inserção em uma administração de um país filiado ao Direito Administrativo francês como o Brasil vem provocando sérias disfunções, pois ela exige uma cultura administrativa estranha ao espírito fiscalizador-policial típico ao administrador brasileiro, que não tem a característica arbitral-facilitadora do administrador público de índole anglo-saxônico. Os próprios funcionários se vêm sem instrumentos legais para a prática arbitral, ainda mais que são cobrados pelos tribunais de conta e pelo judiciário para procederem com o mesmo rigor fiscalizador típico do Direito francês (Aragão et al. 2000). Como resultado, temos a volta dos antigos órgãos gestores, com nova denominação, mas sem aparelhamento jurídico e pessoal, eis que as antigas unidades administrativas foram desbaratadas. 8 Em Belo Horizonte, uma das poucas cidades que lograram impor a realização de uma licitação competitiva, o Poder Público conseguiu, pelo menos no âmbito do município da Capital, recuperar sua autoridade, inclusive no combate ao transporte informal. Entretanto, um desenho infeliz do contrato lhe transferiu demasiadamente riscos financeiros que não consegue administrar, e vem provocando crescentes déficits, os quais consegue cada vez menos saldar. Recife tem sustentado, mais tempo do que as outras metrópoles, uma administração metropolitana com autoridade suficiente para impor melhorias significativas no sistema, como é o caso da rede metropolitana integrada (sistema SEI). Entretanto, essa autoridade foi erodida com o tempo, licitações não conseguiram ser efetuadas, e a progressiva captura do órgão pelos empresários erodiu sua força institucional. No mesmo tempo, tanto o município-sede quanto os periféricos foram tomados de assalto pelo transporte informal. Uma virada institucional, confirmando o ocaso da autoridade metropolitana, ocorreu com a recente chegada do Partido dos Trabalhadores à Administração da cidade do Recife, que inicialmente estava propensa a romper o pacto metropolitano. Entretanto, recentes negociações indicam que o mesmo será restaurado em bases novas, com maior voz ativa do município-sede. Seja como for, a Administração da Capital conteve em suas fronteiras o transporte informal, regulamentando uma parte menor e proibindo a maior parte dos operadores. Outro aspecto peculiar é que a empresa operadora pública, pertencente ao Município-sede, fora privatizada na Administração anterior, e constitui uma concessão especial, no concerto das empresas operadoras privadas. Com relação à implantação de agências reguladoras para substituir os tradicionais órgãos gestores, poucas informações estão disponíveis para atestar o sucesso ou a falha desse modelo para o setor. Analisando alguns casos, como por o exemplo o de Brasília, essa substituição vem agravando adicionalmente a situação crítica da Administração Pública. Em casos de eventuais sucessos, há de se indagar se eles vêm em função do modelo da agência ou de disponibilidade de um quadro técnico de qualidade e da firme vontade política de se resgatar um serviço público essencial. Em última instância, são esses, e menos a estrutura organizacional, os fatores decisivos para a qualidade da política. Por isso, os câmbios organizacionais são sempre momentos de perigos, pois podem desestruturar quadros que levam décadas para serem montados. 2.3 – O financiamento das infra-estruturas De uma forma geral, a paralisia institucional tem por companheira a crise do financiamento de investimentos novos. Nesse campo, restritos por uma situação de severo endividamento e de esgotamento dos recursos fiscais, os governos federal, estaduais e municipais pouco têm investido na última década na renovação e ampliação sobretudos dos sistemas de transporte público (ANTP 1997). Na medida em que o transporte coletivo é realizado, no Brasil, predominantemente pelo modo rodoviário, que raramente conta com vias exclusivas, o mesmo vem sendo muito prejudicado pelos congestionamentos, sofrendo ainda de uma forte concorrência de transportadores clandestinos e do transporte individual. Como resultado, o transporte público está reduzindo seu espaço no mercado de transporte urbano, apesar dos esforços de ampliação de seus serviços (NTU 1998). 9 Vale lembrar que, embora que tradicionalmente o transporte urbano não tem merecido atenção pelo Governo Federal brasileiro, o País vivenciou, durante uma época limitada, uma política federal de transportes urbanos bem estruturada, contando com um fundo composto de recursos fiscais vinculados e com uma competente instituição coordenadora. Trata-se da experiência da Empresa Brasileira de Transporte Urbano - EBTU, gerenciadora do Fundo Nacional de Transporte Urbano (esse alimentado de parte dos tributos sobre veículos rodoviários, combustíveis e lubrificantes). Iniciado em 1975, por decorrência da primeira crise do petróleo, esse sistema foi descontinuado em 1990, onde se extinguiu a referida empresa (cf. Brasileiro 1996). Mas bem antes disso, ainda no início da década de 80, os recursos vinculados já haviam cessado, na medida em que todos os recursos fiscais foram centralizados para fazer face à aguda crise de endividamento. Assim nos seus últimos anos de existência a EBTU contou apenas com escassos recursos, provenientes em sua maioria de agências multilaterais tais como o Banco Mundial. Entretanto, já no período de decadência, a EBTU ainda conseguiu um feito, desenvolvendo primeiramente uma cartilha para o cálculo tarifário, que em muito contribuiu para a consolidação da técnica gerencial do transporte público urbano no Brasil, além de ter participado na instituição do Vale-Transporte, fazendo os empregadores participar do financiamento de um sistema de transportes, dos quais são beneficiários indiretos. Mas, desde a sua morte definitiva, a expansão e a melhoria dos sistemas de transporte público urbano (e do sistema viário urbano, de uma maneira geral) vem enfrentando uma longa estagnação, produzindo os resultados nefastos acima assinalados. Mais recentemente, já incorporando a filosofia de se buscarem parceiros privados para o financiamento em transporte, foram colocados em prática os seguintes programas e projetos: a) concessão de operadoras públicas de transporte, tanto no modo ferroviário (Flumitrens e Metrô, no Rio de Janeiro), quanto do rodoviário (CMTC/SP, EMT-Santo André e João Pessoa, CTC-Rio de Janeiro, TRANSURB-Salvador e CTU-Recife) e até no hidroviário (Conerj, do Rio de Janeiro); b) privatização também no campo das infra-estruturas viárias (concessões de rodovias), tal como procedido nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná e na Rodovia Fernão Dias; c) mais recentemente, foi construída no Rio de Janeiro uma nova via expressa urbana pedagiada, com capitais privados, onde foram lançados títulos no mercado de capitais2; d) voltando para o campo dos recursos fiscais, uso da Contribuição de Melhoria para financiamento de infra-estrutura de transportes. A cidade de Joinville (Santa Catarina) vem aplicando sistematicamente esse procedimento para financiar a pavimentação de vias, onde a 2 De uma forma geral, o setor financeiro tem igualmente participado dos processos de privatização de infra-estruturas de transporte. 10 iniciativa privada é contratada, sob forma de concessão, para executar as obras, sendo ressarcida com a receita das contribuições; e) continuação dos esquemas clássicos de financiamento de sistemas de metrô, com base em recursos de agências multilaterais (casos dos metrôs de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Fortaleza, Belo Horizonte e Porto Alegre); f) no financiamento do metrô, foram feitas também algumas propostas de financiamento em parceria com a iniciativa privada (Linha 4 e extensão da Linha 1 do Metrô de Sào Paulo; ver Gallo 1998); g) uso do FINAME, gerenciado pelo BNDES, no financiamento do transporte público urbano, notadamente para a aquisição de ônibus, com grandes repercursões na cadeia produtiva e comercial de material de transporte; h) instituição de fundos locais compostos de créditos orçamentários locais, e receitas tributárias advindas especificamente do sistema de transporte, tais como a receita advinda de parte do ISS arrecadado do sistema de transporte, receita do ICMS advinda da comercialização de ônibus; taxas de gerenciamento do transporte coletivo; exploração de estacionamentos; taxas de terminais; exploração de publicidade nos equipamentos e nas infra-estruturas de transporte, entre outras (experiências de Goiânia e Cuiabá; cf. ANTP 1997). Nesse contexto, há ainda de lembrar a tentativa frustrada de instauração da taxa de transporte em Campinas-SP, onde os empregadores teriam sido instados a contribuir para o investimento em infra-estruturas de transporte público urbano. Entretanto, todas essas experiências ainda não foram capazes de deslanchar a retomada, em volumes maiores, do investimento no setor de transporte urbano. 2.4 – A função da União Nesse quadro de crise institucional e financeira, alguns temas merecem destaque. Primeiramente, a recusa insistente de se retomar uma política nacional de transportes urbanos, apesar de alguns recorrentes esforços de quadros governamentais, contudo sem apoio dos altos comandos da Administração Pública Federal. Entidades civis como a Associação Nacional dos Transportes Públicos ensaiaram, diversas vezes, em conjunto com outras entidades, ressuscitar a ação federal, com movimentos, eventos, construção de frentes parlamentares, logrando até que, no final do segundo mandato do Governo Fernando Henrique Cardoso, a Presidência da República instituísse uma coordenação para política de transporte urbano, no seio de uma Secretaria Especial dedicada às políticas urbanas. Entretanto, tanto a política urbana quanto as diretrizes e recomendações elaboradas ao longo de numerosas reuniões por diversos grupos de trabalho resultaram sem efeito, até porque as verbas previstas nunca foram empenhadas. Já no novo Governo (Presidente Luiz Inácio Lula da Silva), um Ministério das Cidades foi criado, incorporando as funções do transporte urbano e, com a transferência para aí do DENATRAN, até da circulação viária. Contudo, a imposição de austeridade absoluta em virtude da crise macroeconômica vem 11 dificultando a implementação das proposições. No seio da sociedade civil, as entidades como a ANTP e a NTU vem angariando apoio dos parlamentares para que seja instituído um tratamento fiscal favorecido para o setor de transporte público urbano. Apesar de algumas primeiras vitórias nesse sentido, a principal conquista, que é a vinculação parcial da CIDE para os investimentos do setor, ainda não foi efetivada. De uma maneira geral, não se pode esperar o retorno da era áurea do FDTU, ainda mais porque, ao contrário do que acontecia durante o Regime Militar, uma nova posição do Governo Federal não pode ser entendido como de comando e sim de cooperação com as instâncias descentralizadas, que gozam supremacia constitucional sobre suas áreas de competência (princípio da autonomia municipal). Assim sendo, a construção de um quadro institucional nacional para o transporte urbano deve se dar à luz desse espírito de parceria, abdicando a União de uma postura dirigista, e adotando outra de construção associativa de baixo para cima. Em um novo quadro de política nacional para os transportes urbanos, a União, enquanto parceira, tem por função de, no contexto de suas atribuições e potenciais, criar condições para que os poderes locais possam exercer mais eficientemente suas funções constitucionalmente definidas. Tendo por base uma visão econômica de seu papel, a União deverá criar condições de contorno favoráveis para as atividades localmente regulamentadas, especialmente mediante de criação e a regulamentação de mercados nacionais de insumos, fazendo com que a produção local dos serviços se beneficie com ganhos de eficiência em função de economias de escala e de escopo. Assim sendo, caberá à União as seguintes atribuições: • legislar sobre as normas gerais dos contratos administrativos e do Direito Financeiro e Fiscal, assim como do desenvolvimento urbano, entre outros campos relevantes; • adotar políticas industriais, que fortaleçam economias de escala na produção de insumos, especialmente no que tange a produção de veículos, combustíveis, lubrificantes e rodagem, e equipamentos de transporte inteligente; • adotar políticas ambientais que favoreçam o transporte público, inclusive por meio de uma política fiscal incentivadora do seu uso; • desenvolver programas de formação de recursos humanos tanto para o setor público quanto o privado; • desenvolver e fortalecer programas de pesquisa e desenvolvimento tecnológico na área. Podem-se, para tal política, sintetizar as seguintes diretrizes para a ação federal nos transportes urbanos: 1. deverá a União assegurar, por medidas regulamentadoras e financeiras, que o processo local de prestação de serviços de transporte urbano busque a máxima eficiência possível. Para tal fim, tanto as normas gerais da contratação administrativa no transporte urbano quanto as condições impostas para a liberação de recursos financeiros devem favorecer a construção de 12 um ambiente saudavelmente competitivo, gerador de um mercado amplo, de escala nacional, de prestadores d serviços de transporte. 2. Deverá a ação federal contribuir para o desenvolvimento de um genuíno mercado nacional de insumos para o setor. Para tal mister, haverá a União construir políticas industriais no contexto das cadeias de produção em que se inserem os serviços de transporte urbano, assim como viabilizar os necessários aporte de recursos financeiros (mediante financiamentos e empréstimos públicos, políticas fiscais e, especialmente, mediante o desenvolvimento de um mercado financeiro adequado), além de viabilizar o indispensável desenvolvimento dos recursos humanos e científico-tecnológico. 3. Ressaltamos, ainda, que o setor brasileiro de transporte urbano, não obstante seus problemas e sua necessidade de apoio federal, constitui, por sua história regressa, um setor com boas possibilidades de exportação de produtos, serviços e expertise, pelo o que a função federal se estende para o fomento do comércio externo nesse campo. Por último, vale fazer referência a uma questão recorrentemente colocada que é a promulgação de uma legislação nacional para o setor. Diversos países, para citar a Alemanha, a França, o Reino Unido e o Japão, dispõe desse quadro legislativo unificado, que permitiria um tratamento uniforme de um serviço, cujo mercado de oferta se consolida no plano nacional. A favor desse argumento pesa ainda o fato que, com a criação de comunidades plurinacionais regionais (ver a União Européia), é construído um quadro nacional. Entretanto, uma análise pormenorizada das situações nacionais pode mostrar alguma variação. Na França, o princípio da autonomia municipal e da liberdade de escolha das autoridades municipais do seu quadro organizacional relativiza a força da legislação nacional (p.ex., no que tange a licitação). Sustentamos a posição, que é mais detalhada adiante, que a vontade política e a capacitação efetiva da Administração Pública, tanto no plano do poder quanto da técnica, é o elemento fundamental para a regeneração no setor, constituindo a legislação e a organização institucional instrumentos essenciais para a sua boa execução; evidentemente, por si só, eles não serão capazes de produzir a regeneração. Esse princípio vale, no que tange as relações entre os níveis administrativos, tanto para o governo federal quanto para os estaduais e municipais. Por si só, uma legislação federal não será capaz de trazer de volta a União à política setorial e de dar uniformidade regulatória no tratamento despendido pelos governos locais ao transporte público. Uma vez decidida uma firme atuação da União e dos poderes locais no setor, tal legislação poderá provocar economias organizatórias tanto para o setor público quanto privado. 2.5 – A gestão metropolitana Um segundo problema tange a coordenação dos serviços de transporte urbano em regiões metropolitanas e nas aglomerações urbanas. Há que se ressaltar que um dos pontos chave da política nacional de transportes urbanos dos anos 70 era a criação das EMTUs. Nesse contexto, lembram Brasileiro et al. ( s.d.): 13 “O essencial desta proposta residia na crença, predominante à época, de que era possível, a partir de uma ação forte do governo central, impor às realidades locais uma visão idealista de uma rede multimodal de transporte integrada — em termos físicos, operacionais, tarifários e institucionais. Mas ... as experiências brasileiras são diversificadas, e predominam as lógicas locais baseadas nas dinâmicas sócio-econômicas e urbanísticas e nas relações entre atores. Logo, na grande maioria das aglomerações, as EMTUs nem chegaram a ser criadas. Ademais, onde o foram, os resultados e experiências foram diferentes. O caso mais evidente de insucesso foi a criação em 1979 e extinção em 1980 da EMTU em São Paulo, que teve apenas 18 meses de existência. Um organismo metropolitano importante foi a METROBEL, criada em Belo Horizonte em 1980, tendo exercido durante vários anos um papel de relevo na organização metropolitana local, sendo, todavia, extinto em 1987. Na mesma linha, e com maior vigência, situa-se o caso da EMTU — Recife, única estrutura de caráter metropolitano a permanecer atuante desde aquelas datas até hoje.” Os autores propõem os seguintes fatores explicativos para o fim desta experiência, quais sejam: a) as deficiências da legislação: a despeito de provisão legal, os sistemas sobre trilhos, que costumam possuir papel estruturador, nunca chegaram a ser integrados na coordenação metropolitana, frustrando a plena integração dos serviços; b) vários municípios recusaram-se a firmar os indispensáveis acordos com as entidades metropolitanas, fazendo prevalecer sua tese que tratava-se de um serviços constitucionalmente local; c) pouca clareza legal do papel da Região Metropolitana como nível administrativo intermediário, levando a sua subordinação ao Governo do Estado; d) acirramento dos conflitos de interesse pela gestão dos recursos financeiros, especialmente quando s municipalidades tinham logrado a obtê-los, por seu próprio esforço, do Governo Federal (caso da EMTU de São Paulo, que foi logo extinta); e) implantação autoritária da implantação das Regiões Metropolitanas; f) os regulamentos municipais criaram direitos de estabilidade das empresas sob sua permissão, dificultando o redesenho institucional do quadro concessionário em nível metropolitano. Nesse âmbito, os autores destacam a experiência de Recife, onde se logrou, pelo menos por certo tempo, desenvolver a gestão metropolitana. Recife, confirmam os autores, foi o caso que mais fielmente conseguiu implantar o modelo e garantir sua longa sobrevivência. Os fatores que contribuíram para o tal fato teriam sido: • “a relativamente pequena participação do Município de Recife na população da Região Metropolitana; • a existência de uma consolidada cultura no meio técnico de planejamento metropolitano; • a liderança técnica e política do Secretário de Estado dos Transportes da época, que, em sendo professor universitário e empresário, exercia grande influência local; 14 • o fato de o primeiro Presidente da EMTU-Recife ter, naquele momento de criação do órgão, uma grande liderança e representatividade a nível dos organismos federais de transportes; • o forte envolvimento dos atores locais que deu representatividade à EMTU-Recife — as empresas privadas de ônibus que passaram a contar um sistema estável e com normas definidas; associações de usuários aprovaram o projeto que garantia uma racionalização da programação das linhas, maior cobertura espacial e simplificação dos níveis tarifários; os poderes legislativos estadual e municipal da capital foram objeto de inúmeras apresentações dos objetivos do órgão; • o envolvimento de técnicos oriundos dos órgãos locais de transportes que, motivados e contando com respaldo técnico e político, souberam conceber e implantar um projeto técnico que dá à EMTU-Recife um respaldo profissional reconhecido nacionalmente; • a adoção de instrumentos institucionais e técnicos em permanente evolução: o Conselho Metropolitano de Transportes Urbanos, a Câmara de Compensação Tarifária, a Avaliação das Empresas Operadoras, o Estado Desejado dos Serviços, continuando até hoje com a gestão informatizada da operação e os estudos de um novo modelo de regulamentação dos serviços de transporte coletivo.” Faltou, ainda, para a plena implantação do conceito original a submissão dos municípios periféricos de sua gestão à entidade metropolitana. Igualmente, a cooperação entre a EMTU e a METROREC, a empresa operadora de trens metropolitanos, subsidiária da CBTU, deixou a desejar. Entrementes, a coordenação dos serviços nas aglomerações plurimunicipais resta ainda uma tarefa a se cumprir, dados os limites da atuação municipal para a gestão de massas deslocamento que atravessam as divisas administrativas e de sistemas que contam com diversas modalidades técnicas. Isso vale sobretudo para regiões metropolitanas cuja população vem se periferizando (ibid). Por outro lado, não pode ser olvidado que a Carta de 1988 atribuiu aos municípios uma autonomia inédita na história do País, e que os antigos instrumentos de comando centralizado não poderão mais ser aplicados. Portanto, toda a construção de uma gestão metropolitana só poderá ocorrer doravante “mediante um intenso processo de negociação entre atores relevantes, possuindo um formato flexível e adaptado à diversidade da realidade brasileira. Por outro lado, é cada vez mais impositivo que o planejamento de transportes esteja integrado no âmbito da ordenação do espaço metropolitano” (ibid.). O mais recente avanço institucional é a construção de um Consórcio Metropolitano, constituído de uma “associação entre o estado e os municípios do para gerir o transporte público conjuntamente” (Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado de Pernambuco 2004). Conforme a Secretaria, “este novo gerenciador permitirá a reestruturação e modernização institucional e financeira do modelo vigente, através da implementação de mudanças na atual rede de transporte e da implantação de uma nova relação contratual com as empresas operadoras. O modelo institucional do Consórcio Metropolitano de Transportes é proposto através da criação de uma empresa pública estadual. O acionista majoritário, com 51% das ações, será o estado. As demais prefeituras da Região Metropolitana do Recife (RMR) terão um percentual de ações definido em função de sua participação e interferência no sistema de transporte, combinado com 15 sua capacidade financeira.” (ibid.). Consta do programa de ação desse organismo o redesenho da rede (expansão do Sistema Estrutural Integrado – SEI para 70% das viagens do transporte público no sistema) e a utilização de um novo modelo de contratação dos serviços, após realização de licitações para todas as linhas do sistema. Uma outra cidade brasileira que conseguiu manter a gestão metropolitana por muitos anos, porém fazendo-a decair paulatinamente, é Goiânia. De fato, o sistema Transurb, onde uma empresa pública, metropolitana, fazia vez de gestor e operador, deixou há mais de uma década de funcionar satisfatoriamente. Em um primeiro tempo, os operadores foram ocupando espaços próprios de um regulador, deixando para a Administração Pública um papel meramente homologante de suas decisões. Ao vácuo institucional se seguiu uma invasão pelo transporte informal, que se organizou politicamente e conseguiu seu reconhecimento institucional. Em um novo acordo entre os atores públicos (municipais e estadual), as antigas empresas operadoras e os novos operadores artesanais, foi criado um novo quadro institucional. Destarte, a Lei Complementar nº 34 de 3 de setembro de 2001 instituiu a Rede Metropolitana de Transportes Coletivos, o Conselho de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Goiânia, a Câmara Deliberativa de Transportes Coletivos (CDTC) e, a esta subordinada, como braço executivo, um órgão gestor – a Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos (CMTC) – o qual conta com participação do Governo do Estado (25%), da Prefeitura Municipal de Goiânia (50%) e das demais prefeituras da RMG (25%). Como primeiras medidas dessa recuperação, foi re-estruturada a Rede Integrada de Transportes, e introduziu-se a bilhetagem integrada (Sistema Inteligente de Tarifação de Passagens - SIT-PASS). Outros pontos programáticos são a construção de novos terminais de integração, melhorias no controle do trânsito, a realização de licitações para as empresas de ônibus, assim como o estudo de viabilidade de um novo sistema de transporte de massa (VLT) no eixo Norte-Sul, orçado em 260 milhões de reais e apoiado pelo Banco Mundial (Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos 2003). Nesse ponto, vale a pena levar em apreender ensinamentos importantes de outros países, principalmente daquelas experiências que apontam para a flexibilização e para o necessário envolvimento dos níveis local/municipal e regional do Poder Público, bem como para a participação explícita e transparente da iniciativa privada e de organismos sociais com interesse na matéria. Tal é o caso do Consórcio Regional de Transportes de Madrid (Espanha). Criado em 1985, o organismo envolve duas esferas de governo (regional e local), resultantes de acordo voluntário — o governo regional propôs a iniciativa, e os municípios optaram em aderir ao consórcio, por decisão de seu Parlamento. As competências do Consórcio estendem-se ao planejamento da infraestrutura e dos serviços, política de financiamento e tarifa, delegação de linhas, etc. O Conselho compõe-se de 20 membros, assim distribuídos: Comunidade de Madrid —governo regional — (cinco); Prefeituras consorciadas (oito); sindicatos de trabalhadores (dois); associações empresariais (dois); usuários (um); governo central (dois). O Comitê Técnico do Consórcio também tem uma estruturação colegiada, com a participação das empresas públicas e 16 privadas operadoras, municipalidades, associações de usuários, etc (Comunidad de Madrid, 1986). Na Alemanha, citem-se as Federações de Transporte criadas a partir de 1965 em Hamburgo e depois (nos anos 70) em Munique, Frankfurt, Stuttgart e Região do Ruhr. A sua criação depende de contratos voluntários entre empresas e entre estas e as administrações federal, estadual, municipais. Dentre as competências das federações listam-se: integração do planejamento de transportes com o planejamento urbano; definição da rede e das linhas, pesquisas de demanda, definição de horários e tarifas, repartição da receita, publicidade/ relações públicas. Às empresas operadoras compete a disposição das instalações e veículos; o detalhamento do plano de serviço e sua execução, o controle operacional, recolhimento da tarifa e desenvolvimento tecnológico (Aragão, 1988). Institucionalmente, a Federação constitui-se como uma entidade de Direito Privado (geralmente, uma companhia limitada), com lastro em uma série de contratos entre as empresas e respectivas administrações públicas proprietárias. Um contrato guarda-chuva (contrato de cooperação) define os objetivos gerais da federação, a divisão das tarefas entre as empresas e a federação, e outras diretrizes básicas. Já o contrato organizacional determina a configuração dos órgãos internos. Além disso, o contrato de repartição de receitas, regulamenta a compensação tarifária entre as empresas. Finalmente, as funções de apoio das administrações federal, estadual e municipais são estabelecidas em um contrato de suporte. Contudo, todo o processo é iniciado com um contrato preliminar, o contrato preparatório. No que tange a organização interna das federações, a Federação costuma ser presidida pelo presidente da empresa municipal da cidade-núcleo. A diretoria subdivide-se em diversos departamentos. Já na assembléia, os representantes das diversas empresas tomam as decisões regulamentares previstas na legislação societária; e, no conselho, as administrações públicas envolvidas, assim como as respectivas empresas (e, em algumas federações, também representantes de empregados) decidem sobre os aspectos básicos do serviço (definição de rede, horário, tarifa, repartição da receita, política de marketing, etc.). As administrações públicas, além de influenciarem o planejamento e a política tarifária em conformidade com seus objetivos políticos, permanecem com a incumbência de cobrirem déficits, mas também os investimentos infra-estruturais. Alguns municípios nem possuem empresa própria, permanecendo apenas com o encargo de financiarem os déficits. Já a França apresenta formas diversificadas de gestão metropolitana, abrangendo desde associações voluntárias entre communes até organismos impostos de forma autoritária pelo Estado. A organização institucional do país compreende duas situações específicas: a da Région d'Ile-de-France e Província. A organização dos transporte na Région d'Ile-de-France (Paris e mais sete departamentos), tutelada pelo Estado Central, compete ao Syndicat des Transports Parisiens-STP, criado em 1959. O Conselho de Administração do STP compreende um total de 20 membros, assim repartidos: 10 representantes do Estado (o Presidente é o Prefeito da região, indicado pelo Estado; quatro 17 representantes do Ministério do Equipamento e dos Transportes; dois do Ministério da Economia; um do Ministério do Interior; um da Prefeitura de Polícia; um do Prefeito de Paris. Os dez representantes das coletividades locais (departamentos) são distribuídos entre cinco conselheiros de Paris e cinco dos Departamentos da região. O STP possui orçamento próprio e tem como competências relativas ao planejamento da rede de transportes a programação, a tarifação e as subvenções. As redes de província francesas, por sua vez, possuem formas de organização institucional, as chamadas Autoridades Organizativas, flexíveis e diversificadas, assim classificadas: • Commune : criada em 1789, constitui a célula de base da Administração francesa. • Syndicat de Communes : grupamento de communes que se associam para realizar uma obra ou gerir um serviço de "interesse comum". • Districts: criados em 1959, representam uma forma de cooperação intercomunal que engaja mais as communes. • Communautés Urbaines : criadas, de forma autoritária, nos anos 60, pelo Estado central, se aplicam apenas às aglomerações urbanas com mais de 50.000 habitantes. • Syndicats Mixtes : Criados em 1970, eles associam coletividades locais de níveis diferentes (communes/ departamentos; communes/Câmaras de Comércio) Dois ensinamentos se destacam da experiência francesa: o primeiro é que o Estado, em geral, apenas incita a cooperação intercomunal, pois a criação de uma autoridade organizativa fica a critério das comunas; o segundo é que o principal mecanismo de financiamento das infraestruturas e da operação — o Versement Transport — constitui também um poderoso incitador à cooperação entre cidades, posto que, para criar este recurso, votado pelas Câmaras de Vereadores, as municipalidades associadas em um sindicato devem atingir um teto mínimo de população, que variou ao longo do tempo: 300 mil habitantes em 1971; 100 mil habitantes em 1973; 30 mil em 1982 (Brasileiro, 1996). De uma maneira geral, a organização metropolitana da gestão é uma tendência mundial. Fatores que favorecem esse escopo organizativo são: a) a multimodalidade da rede metropolitana de transportes, que requer uma administração integrada, tanto nos aspectos dos investimentos, quanto no da operação e da tarifação; b) necessidade de integração igualmente no campo de financiamento e marketing (especialmente informação ao usuário); c) a dispersão dos operadores e dos organismos públicos; Evidentemente, cada país adequa o quadro legal da cooperação metropolitana ao seu sistema jurídico e à própria história dos atores em cada área. A conferência da European Metropolitan Transport Authorities, realizada em Barcelona em 2001, conclui os seguintes princípios (European Metropolitan Transport Authorities 2001): a) b) c) d) e) f) 18 não existe um modelo único, aplicável a todas as RM’s; contudo, deve haver troca de experiências entre as diversas entidades metropolitanas; a qualidade dos sistemas de transporte público em áreas metropolitanas está criticamente ligada à sua organização, igualmente em âmbito metropolitano; a organização metropolitana deve estender sua competência a todos os modos de transporte, incluindo aí os sistemas ferroviários; o financiamento dessas entidades e da rede é uma questão crucial da gestão metropolitana; a administração metropolitana tem um papel importante na informação e no marketing dos serviços; qualquer política de competição nos sistemas metropolitanas deve ter por pressuposto institucional .o reforço da autoridade metropolitana. 2.6 – Sistemas sobre trilhos O terceiro problema a ser destacado refere-se aos sistemas sobre trilhos. A história da decadência dos transportes ferroviários urbanos no Brasil, de sua tentativa de recuperação através da criação da CBTU e da implantação tardia e incompleta de sistemas metroviários nas duas principais metrópoles já está bastante documentada na literatura (Brasileiro et al. 1999, Lima Neto et al.2001). A partir da década de 90, o Governo Federal perseguiu a política de entregar esses sistemas aos estados, com vistas que estes, em uma segunda etapa, os repassassem à iniciativa privada. A filosofia de privatização deveria abranger igualmente os sistemas metroviários. Com tal finalidade, promulgou a Lei 8.693/93, que institucionalizou o modelo, caracterizado pelos seguintes elementos: a) cisão da CBTU em empresas locais para a exploração do serviço de transporte ferroviário coletivo de passageiros nos Estados e Municípios onde os serviços são prestados; b) transferência das ações da União na CBTU para os Estados e Municípios; e c) assunção do sistema pelo governo local (Estado ou Municípios), que responde por seu funcionamento e manutenção. O modelo seria implantado mediante a seguinte estratégia: inicialmente, a União aprovaria projeto para recuperação do sistema, sua modernização e/ou expansão, com a contratação de empréstimo externo de organismo internacional, devendo tal fato representar a disposição firme de executar o projeto, no objeto e prazo ajustado. Em seguida, a União assumiria os passivos, trabalhistas ou cíveis, contraídos até a data da transferência da empresa para o governo local, inclusive pendentes de decisão judicial. Dependendo de acordo em cada caso, ela assumiria outros encargos, não diretamente relacionados com o sistema a ser transferido, como "compensação" ao governo local (de acordo com cada caso). Por sua vez, o Governo local buscaria extrair o máximo em investimentos, “a fundo perdido”, no sistema, inclusive adequação urbana do projeto. A aplicação dessa política se arrastou, e apenas São Paulo e Rio de Janeiro aceitaram assumir os sistemas ferroviários suburbanos federais, e tão somente Rio de Janeiro concluiu a concessão à iniciativa privada, tanto do sistema suburbano quanto do metrô, contudo permanecendo com as responsabilidades de investimento de capital e os decorrentes riscos. Os respectivos governos dos Estados em que situam os outros sistemas se recusaram a fechar o acordo, apesar das propostas do Governo Federal de assunção de diversos passivos das empresas subsidiárias da CBTU. 19 Outras críticas ao modelo foram externadas, especialmente que o modelo provocaria exclusão social, eis que pautado pelo equilíbrio privado. Ademais, há de se lembrar que a própria União, embora tenha maior capacidade de financiamento que Estados e Municípios, jamais conseguiu evitar a degradação dos trens urbanos (RFFSA/CBTU), por falta de fluxo estável de recursos para custeio, para reposição e para expansão da oferta frente ao crescimento explosivo da demanda. Essa tarefa seria muito mais difícil para os governos locais cumprir (Companhia Brasileira de Trens Urbanos (2003). Apesar dos impasses, alguns investimentos têm sido realizados tanto nos sistemas metroviários quanto nos ferroviários suburbanos, tais como: • • • • • • • • implantação do sistema metroviário de Fortaleza (METROFOR); ampliação do sistema de Recife (METROREC), com a construção da Linha Sul e da extensão do Ramal de Timbi; início das obras do Metrô de Salvador; extensões nos sistemas de Porto Alegre (TRANSURB) e Belo Horizonte (DEMETRÔ); implantação do metrô de Brasília; extensões de linhas e construção da linha 5 do Metrô de São Paulo; modernizações dos sistemas de subúrbio do São Paulo (CPTM); e ampliação da Linha 1 do Metrô do Rio de Janeiro. Todos esses investimentos estão longe de atender as necessidades de mobilidade nas grandes metrópoles, contudo demonstram uma certa continuidade dos investimentos, pelos moldes tradicionais de investimento público, com apoio de agências de fomento e multilaterais. Por outro lado, a perspectiva de repasse à iniciativa privada, mesmo que tentada pelos governos locais (ex., construção da Linha 4 do metrô de São Paulo por intermédio de uma concessão do tipo BOT) ou pressionada pelo Banco Mundial (METROREC) não conseguiu se materializar, dados os pesados custos de capital envolvidos. Entretanto, presos ao financiamento tradicional, dificilmente os investimentos poderão dotar, em médio prazo, as cidades de sistemas mais possantes de transporte público. No novo Governo, o modelo de descentralização está sendo reformado, afastando-se da idéia de que os sistemas, forçosamente, haveriam de ser delegados à iniciativa privada em médio prazo. Além disso, a União assumiria os investimentos e um subsídio à tarifa em função do desempenho, conforme estabelecido em contrato de gestão. Em contrapartida, a União permaneceria como acionária da empresa descentralizada, participando de sua gestão enquanto responder pelo subsídio à operação. No caso de se preferir conceder à iniciativa privada, essa pressuporá integração multimodal e se estabelecerá em função de metas de desempenho passageiros transportados, nível de serviço e regularidade - e subvenção mínima (concessão negativa). 20 3 – QUADRO REFERENCIAL PARA A AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS REGULATÓRIAS 3.1 – Posicionamento teórico A rede de Estudos de Engenharia e Socioeconômicos em Transportes (RESET), à qual o autor se filia, tem tomado, ao longo dos últimos dez anos, posição com relação à regulação dos transportes públicos, exigindo sua modernização e a introdução de instrumentos incentivadores da eficiência, entre as quais licitações competitivas (Santos e Aragão 2000; Orrico Filho et al. 1996). Conforme as posições dessa rede, qualquer redesenho das relações institucionais no transporte público urbano tem de partir de uma profunda análise econômica da realidade desse setor, das suas especificidades estruturais e de suas eventuais falhas de mercado, para só então se decidir qual o remédio regulatório aplicar. Especialmente em se tratando de infra-estruturas, tidas de uma maneira geral como monopólios naturais, mister se faz levar em consideração o que as principais contribuições científicas concluíram acerca da regulamentação econômica, um dos principais itens da Economia da Regulação (os outros seriam políticas anti-truste e a regulação social, não econômica, dita de qualidade). De uma maneira geral, as infra-estruturas são tidas como monopólios naturais. Isso é, elas raramente comportam competição aberta, dada sua estrutura de custos com forte presença de custos fixos e enterrados, seus decorrentes custos médios decrescentes e dada, assim, sua subaditividade de custos. Pelo que, qualquer concorrência, além de ser ruinosa (levando a vitória não sempre o melhor e sim, mais freqüentemente o mais inescrupuloso; cf. Viscusi et al. 1995), implicaria em custos de produção superiores aos que ocorreriam, se fosse mantida a estrutura como apenas um produtor. Em princípio, o Poder Público, com intuito de defender os interesses dos consumidores e da sociedade em geral, especialmente de preservar algum incentivo à busca de eficiência e de competitividade (Possas et al. 1997), não pode permitir que empresários naturalmente monopolistas explorem de forma extorsiva a sociedade, provocando graves falhas na alocação social de recursos. De maneira geral, ele passa a controlar preços, o acesso à atividade ou até quantidades de produção, sobretudo nas infra-estruturas tidas como serviços públicos essenciais. Ou, inversamente, ele tenta quebrar a estrutura naturalmente monopolista, impondo separações entre diversos estágios do processo produtivo (política de unbundling). No caso das ferrovias, por exemplo, onde a naturalidade do monopólio é amplamente reconhecida, o Governo britânico resolveu separar a operação de serviços ferroviários da construção e manutenção de vias, permitindo, assim, que se instaurasse uma competição sobretudo no campo da operação ferroviária. Em casos excepcionais, ele pode assumir uma atitude mais radical ainda que é a produção direta de bens e serviços, sobretudo se não existe nenhum capital privado disposto a assumir a produção tida como essencial para a sociedade, nem em termos de monopólio natural e institucionalizado (ou seja, com direitos de exclusividade). Todos esses instrumentos, que aliás são extremamente variados e permitem diversas nuanças quanto ao grau de intervenção estatal, são resumidos pela Economia da Regulação como regulação econômica. 21 Todavia, mister se faz que a ação do Estado seja a mais eficaz possível para atingir os objetivos propostos. Além disso, há de se garantir de que a administração estatal das respectivas medidas regulatórias (controle, fiscalização, disciplinamento, etc.) não seja por demais onerosa aos cofres públicos ao ponto dos custos excederem os benefícios esperados da regulação (Guasch e Hahn 1997; Estache e Martimort 1999). Tal responsabilidade faz da regulação dos monopólios uma tarefa assaz complicada, dada a multiplicidade de ações possíveis e de respectivos efeitos positivos e negativos sobre a estrutura produtiva e o comportamento dos produtores. Desta feita, torna-se indispensável que o Poder Público planeje de forma bastante meticulosa suas intervenções. Assim, o desenho regulatório haverá de partir de análises detalhadas sobre a realidade, verificando concretamente as falhas a sanear, para depois definir claramente os objetivos a serem atingidos, passando a partir daí a estudar as diversas estratégias e medidas regulatórias cabíveis; uma vez essas esboçadas, cabe ainda uma avaliação prévia dos seus possíveis efeitos e sobretudo dos custos administrativos (análise da viabilidade institucional e econômica) e, finalmente, adotar-se-iam os passos organizativos e legais para a sua adoção (ver Fig. 1). Evidentemente, esse é um processo cíclico, eis que a regulação, ao impor ao mercado uma nova realidade, transforma-o, cria novas situações; outras situações são criadas independentemente da regulação (por exemplo, uma inovação tecnológica que torna obsoletos certos pressupostos de monopólio natural da regulação); além disso, os regulados aprendem, ao longo do tempo, a manipular a regulação, contornando-a ou, o que é pior, capturando-a para seus interesses. Assim, após algum tempo, a regulação haverá de ser revista. Como referido, as opções de atuação são muitas, abrangendo sobretudo os seguintes aspectos: a) Definição dos limites das atividades a serem submetidas à regulação: quais devem ser abrangidas, e quais podem continuar a atuar livremente? No caso do transporte de passageiros, o transporte de linha é geralmente fortemente regulamentado, mas o transporte fretado e de turismo não é abrangido por essa regulamentação. b) Definição das condições de entrada: em princípio, em se tratando de monopólios naturais e regulamentados, a entrada não é livre, não se admitindo a competição aberta, eis que tida como ruinosa. Entretanto, para não afrouxar o estímulo à eficiência das empresas monopolistas, o processo de entrada pode ser transformado em um momento de competição (competição pela entrada), geralmente mediante a realização de uma licitação. Em determinados casos, porém, pode haver uma certa liberdade de entrada, desde que o postulante demonstra certas qualificações mínimas. Portanto, a definição das condições de entrada admite diversos graus de liberdade. Inversamente, o Poder Público pode instituir restrições à livre saída do negócio, sobretudo em se tratando de uma atividade essencial (serviço público), cuja prestação não pode ser descontinuada. 22 Estudo das condições econômicas básicas do mercado Objetivos e diretrizes da regulamentação Estratégia e dimensões da intervenção regulatória Avaliação de custos e benefícios Processo de implantação e respectiva organização institucional Transformações das condições de mercado e obsolescência da regulação Figura 1 – Fluxograma do processo do desenho regulatório c) Definição de tipos e quantidades de serviço (regulação de quantidade): especialmente em se tratando de uma atividade essencial (serviço público), cujo consumo deve ser garantido a todo cidadão, independente da situação econômica e geográfica, o Estado se incumbe de planejar a atividade (e até de impor determinados investimentos mínimos), de forma que o direito de acessibilidade generalizada possa se realizar efetivamente. d) Política de preços: é outro elemento fundamental para efetivar o direito de acessibilidade generalizada. Em princípio, o preço deve, além de ser devidamente módico, tornar a atividade rentável e até atrativa para os investidores, sobretudo se não forem previstas outras fontes de remuneração dos exploradores dos serviços. Entretanto, tal garantia do "equilíbrio econômico-financeiro" não pode levar os mesmos a afrouxarem em seu esforço por ganhos de eficiência, pelo que a política, regulamentada, de preços pode aplicar diversos instrumentos e 23 variantes que incluam o incentivo à eficiência ou até a certa competitividade. Políticas tais como preço-teto, remuneração-teto, tarifa com base nos custos e taxa de remuneração com redutor de ganho esperado de produtividade, definição da tarifa em processo licitatório (por exemplo, licitação pela menor tarifa), entre tantas outras, podem, assim, substituir ou complementar políticas tradicionais de tarifa simplesmente planilhada com base nos custos médios e em taxa de remuneração (método cost-plus); por sinal, esta tem sido acusada de ser responsável pelo aumento sistemático dos custos e de outras ineficiências alocativas (Viscusi et al.1995, Crampes e Estache 1997, Possas et al. 1997). e) Indicadores de desempenho e qualidade: o Poder Público pode instituir e utilizar certos indicadores para premiar as empresas com melhores indicadores e punir as com pior, instaurando, assim, um processo controlado de competição. f) Regulação não-econômica: Além de garantir o acesso generalizado aos serviços e bens, o Poder Público pode instituir normas no sentido de reduzir ou eliminar externalidades indesejáveis tais como insegurança, poluição, desconforto, etc. Tais remédios regulatórios (que assim podemos chamar, eis que eles devem ser instituídos na exata medida para sanear as falhas reconhecidas de mercado) haverão de ser determinados e reunidos de uma forma coerente em função de uma estratégia regulatória sobrejacente. Basicamente, essa estratégia pode ser definida em termos do papel que o Poder Público vai assumir no desenho dos serviços, e qual grau de liberdade ele vai deixar para a empresa exploradora. A literatura lista uma variedade de estratégias, sistematizando-as, por ordem decrescente de grau de intervenção, em "empresa pública", "monopólio competitivamente concedido" (competitive franchising, equivalente à nossa delegação de serviço público mediante licitação competitiva) "monopólio privado regulamentado", e desregulamentação (a qual, contrariamente ao que o nome sugere, não implica em passividade regulatória da parte do Poder Público; cf. Viscusi et al. 1995). A rica experiência internacional pode demonstrar que todas elas podem ser desdobradas em um número grande de variantes, onde as diversas medidas acima listadas são aplicadas com diferentes graus de severidade. Em se tratando de infra-estruturas, que são via de regra monopólios naturais, a estratégia mais comum é a da concessão (de serviço público). Por esse instrumento, uma empresa obtém do governo o direito de prover um serviço determinado sob condições privilegiadas em termos de poder de mercado (Kerf et al. 1998). Contudo, esse privilégio não implica necessariamente na ausência total de competição. Primeiramente, só em situações especiais se justificam direitos de exclusividade (por exemplo, no caso de investimentos pesados em infra-estrutura), pelo que usualmente se admite, ainda que de forma controlada, certa concorrência na operação. E mesmo se o processo competitivo não ocorrer diretamente na operação, ele ainda pode ser instaurado quando da distribuição do direito de operação, geralmente mediante a realização de uma licitação competitiva; essa decidirá qual empresa irá gozar do privilégio de explorar, pelo prazo do contrato, o mercado em condições protegidas contra a competição. 24 Isso posto, o desenho de uma concessão contém diversos elementos básicos, entre os quais podem se listar (de forma não exaustiva): o desenho do contrato e respectivo processo, a flexibilidade e adaptabilidade nele contida, o objeto do contrato, a perspectiva de remuneração e de lucratividade da concessão, a alocação de riscos, os incentivos ao desempenho e respectiva avaliação e fiscalização; a alocação de responsabilidades e atribuições; programas de investimentos e respectivas fontes de financiamento; assim como a propriedade dos ativos. Destacam-se, no entanto, no debate acerca das concessões de serviço público, sobretudo as seguintes questões: a) a questão tarifária: os pontos mais polêmicos são, aqui, a clareza da estrutura tarifária, a autoridade tarifária do Poder Público (e o nível de liberdade que o operador goza para variar os preços), as fontes alternativas de remuneração, eventuais procedimentos de compensação mútua de receitas entre as empresas (entre nós designada vulgarmente de câmara de compensação), quando o sistema de subsídio cruzado atravessa as economias internas das empresas; e, finalmente, as regras de indexação e revisão tarifárias. b) o prazo do contrato: em princípio, esse prazo deve ser suficiente para a recuperação do capital investido, e até tornar atrativa a concessão aos olhos dos investidores; mas, em contrapartida, ele também deve servir de instrumento de indução à eficiência. Sendo ele relativamente breve (mas longo o suficiente para atender os dois requisitos anteriores), o concessionário levará em consideração, ao longo de toda a duração do contrato, a perspectiva de ter de voltar a disputá-lo em uma renovada licitação, pelo que ele haverá de se esforçar a desenvolver sua técnica gerencial de forma a buscar ganhos de produtividade e poder apresentar, na próxima rodada licitatória, um preço competitivo. c) o processo de contratação: Nos processos de concessão, a licitação competitiva tem sido amplamente adotada, inclusive imposta por Lei, embora tenham sido aplicados, em circunstâncias excepcionais, outros modos (negociação direta, negociação competitiva, etc.; ver Kerf et al. 1998). A licitação, embora complexa enquanto processo, visa garantir máxima transparência e isonomia e o clima competitivo entre os licitantes. Seu processo sói ser público e regulamentado mediante um edital. Tipicamente, ele se desdobra em uma fase de qualificação dos concorrentes, e outra de seleção do concessionário e de respectiva assinatura do contrato. A regulação dos serviços de transporte de passageiros está sendo há duas décadas centro de intensos debates teóricos e políticos em âmbito internacional. Especialmente no que tange o transporte urbano de passageiros, trata-se de um setor em franca crise, eis que com o aumento da renda, a motorização avança; e que a estrutura espacial das cidades e dos deslocamentos tem se modificado (verifica-se uma crescente dispersão de deslocamentos, onde o deslocamento para o trabalho perde seu peso relativo; ver Berechman 1993, Ingram 1997), dificultando cada vez mais seu atendimento por meios coletivos de transporte e reduzindo a participação relativa desses no transporte urbano. 25 Por sua vez, a política tradicional de subsidiá-lo e de regulamentá-lo fortemente, a título de se tratar de um serviço essencial e de caráter social, vem enfrentando críticas. Alega-se que, na verdade, tratar-se-ia de um setor contestável, que tem sido sujeito a uma regulação de monopólio natural mais por capricho político do que por necessidade econômica (essa ressalva diz respeito particularmente ao transporte rodoviário; cf. Aragão 1996). Com esse discurso, foram executadas políticas de desregulamentação em diversos países; em outros países, ocorreu pelo menos uma desestatização das operadoras e/ou a utilização de concessão via licitação, mantendo-se todavia a regulamentação. Contudo, a maneira mais apropriada de regular esse setor continua ainda uma questão aberta. Em conformidade com a metodologia acima proposta, a resposta a essa pergunta teria de partir de uma análise das condições de consumo e de produção e das decorrentes estruturas produtivas da prestação do serviço em questão. Essa tarefa se revela, entretanto, assaz complicada. Do lado do consumo, se verifica que a demanda é dispersa espacial e temporalmente, e que os diversos usuários apresentam condições diferenciadas de renda e preferência. Na verdade, trata-se de uma constelação de mercados diferenciados (quase que no plano individual), mas que, de alguma forma, têm de ser consolidados para viabilizar os serviços de transporte. Uma viagem veicular constitui, assim, a dimensão mínima de mercado para o explorador de serviço. Um operador mais potente vai definir o mercado como linha, isso é, uma sucessão de viagens veiculares ao longo do mesmo roteiro. Contudo, o que interessa ao Poder Público é a prestação de uma rede de linhas que garanta o usufruto do direito de acessibilidade aos cidadãos das diversas partes geográficas da cidade, ao longo dos mais diversos horários. Esse processo de consolidação de demandas individuais em serviços e redes viáveis produz conseqüências graves para o consumo e a produção: a) Existe uma discrepância sistemática entre o desejo individual do consumidor e o serviço oferecido e regulamentado. b) A imposição de ubiqüidade, regularidade e modicidade tarifária por motivo de interesse público, além de fazer cada passageiro ter de comprar serviços que se distanciam do seu padrão temporal e espacial de deslocamento e até de pagar, em função da tarifa pautada por custos médios do sistema, por serviços que efetivamente não consome, gera, no lado da produção, monopólios naturais, muito embora a tecnologia utilizada (veículo rodoviário) não constitua, por si só, uma barreira técnica nem econômica. c) O próprio viajante urbano, quando apresenta um padrão repetido de deslocamento, aspira a disponibilidade de um serviço regular ao longo do trajeto (ou seja, uma linha); quando apresenta uma pauta espacial e temporal diversificada de deslocamentos, passa a ser um consumidor de rede ao invés de linha. Isso reforça o caráter monopolista da produção, eis que a oferta de uma linha e, mais além, de uma rede exige investimentos que só são factíveis para organizações mais potentes. Como resultado dessas contradições, o setor de transporte de passageiros vive em tensão entre a garantia de acessibilidade generalizada e o máximo ajuste às demandas extremamente 26 diferenciadas: ao consumidor interessa o serviço que mais se adequa às suas necessidades específicas. Se ele for mal atendido em seu interesse, ele tenderá a buscar modos alternativos de transporte. Entretanto, a garantia da acessibilidade generalizada para todos os cidadãos impõe a consolidação de fluxos em um sistema economicamente viável de serviços, onde seja possível oferecer serviços de diferente nível de rentabilidade a preços acessíveis a todos, graças à exploração de economias de rede e de densidade. Sem essa lógica econômica, as populações sem opção de escolha e que constituem mercados com custo maior de produção, teriam de pagar uma tarifa insustentável para seu poder de compra. Como resultado, o setor apresenta as principais características estruturais (Berechman 1993): a) Em função sobretudo da alta flutuação da demanda, as empresas trabalham com um considerável excesso de capacidade, o qual excede o nível ótimo para atender o output observado; assim, elas põem à mostra uma grande economia de escala a curto prazo. b) as empresas apresentam um nível elevado de economias de densidade, na medida em que são obrigadas a manter um excesso de capacidade especialmente nos períodos entre-pico; presenciam-se igualmente economias de escopo, pois, aumentando a cobertura espacial, os custos totais não crescerão proporcionalmente; c) entretanto, no que tange a escala ótima de produção, os resultados não são tão conclusivos; diversos estudos estimam que essa escala estaria por volta de 100 a 500 ônibus; d) há uma relativa rigidez na composição dos fatores de produção, especialmente na proporção entre frota, mão-de-obra operacional e outros insumos correntes; em particular, a demanda por mão-de-obra é intensiva e relativamente inelástica. Em suma, o transporte público urbano, especialmente o serviço de linha, tende a ser regulado em termos de monopólio natural, embora essa solução apresente deficiências sistemáticas (ou seja, estamos diante de uma situação de second best). Necessidades diferenciadas só podem ser atendidas até um certo limite; por outro lado, há de se evitar que a estrutura monopolista criada não induza ineficiências, pelo que certo nível de competição se impõe, especialmente mediante a realização de licitações competitivas. Esse discurso teórico indica as seguintes conclusões: a) A oferta de um bom serviço geral, público, com qualidade e amplamente acessível, continua na ordem do dia, embora que há de se preocupar com a atratividade do sistema para as pessoas com opção de acesso ao transporte individual e informal. Além desses objetivos básicos, não há de se olvidar do papel do transporte como elemento estruturante do espaço urbano. b) Um conflito se instala entre o tratamento de rede e introdução de espaços para a competição e diversificação. Esse não é apenas um conflito técnico, e sim cultural e político. O 27 atendimento massivo e econômico das necessidades de deslocamento diante da escassez de espaço viário exige um tratamento de rede, o qual, contudo irá requerer dos viajantes uma disposição para compromisso e sacrifício. Em princípio, todos os viajantes, inclusive aqueles que utilizam o transporte individual, se beneficiam de um sistema eficiente de transporte público, concebido em rede. Eles até esperam do governo iniciativa no sentido de garantir sua provisão. Contudo, e isso vale novamente tanto para os usuários do transporte público e do transporte individual, a disposição para o sacrifício do conforto individual para o bem-estar coletivo é pequena, sobretudo em uma cultura que preza o individualismo: no dia-a-dia, o automobilista não abre mão do seu carro particular, e o usuário de transporte público aceita ingressar no serviço semi-individualizado do transporte alternativo, mesmo que a provisão da rede racional fique prejudicada. Evidentemente, no curto prazo, mudanças culturais profundas são difíceis de se introduzirem. Portanto, ao Poder Público, enquanto gestor maior da provisão (e desde que ele possa exercer efetivamente esse ofício) restam poucas alternativas à busca de soluções de compromisso, onde ao viajante sejam oferecidos serviços alternativos de transporte público, além da rede básica. Esses serviços terão forçosamente caráter complementar e marginal (por mais desenvolvidos e difundidos que sejam), para não prejudicar substancialmente a economia de rede. À rede básica, por sua vez, tem-se de garantir a máxima eficiência, pelo que a competição para o mercado se impõe. Os serviços complementares e básicos exercerão, em um campo controlado e limitado, uma competição mútua e com o transporte individual. Nesse contexto bem delimitado, a competição e a diversificação podem trazer benefícios para a rede geral e a universalização do acesso ao serviço; contudo, para além desse limite, a rede geral pode se degenerar. Evidentemente, a questão central fica sendo a definição do limite da competição, para qual não se dispõem regras gerais: precisamos, aqui, de um número mínimo de experiências locais para obter algumas indicações generalizáveis. c) Em suma, a questão da competição e do esforço contínuo pela eficiência merece definitivamente um destaque maior. No setor em tela, especialmente em se tratando de serviços de linha, a licitação competitiva se impõe como um instrumento central nesse sentido. Entretanto, ele tem de ser complementado com outros elementos, tais como o controle competitivo de desempenho e uma política tarifária incentivadora. Alguma competição residual e controlada da operação não deixa de ser bem-vinda, igualmente. Uma política de diversificação e de segmentação constitui também um valioso instrumento de competição, além de contribuírem para a elevação da atratividade do transporte público. Sobretudo, elas renovam o quadro social na produção, aumentando a sócio-diversidade do setor, atraindo novas poupanças e gerando novos empregos. Como dito, a diversificação tem seu limite onde passa a ameaçar gravemente a rede básica de serviço público e a congestionar as vias. d) Os segmentos táxi, transporte escolar e fretado precisam ser melhor integrados na rede de serviços públicos (aliás, eles já constituem tradicionais e valiosos segmentos alternativos). Experiências internacionais apontam, a título de exemplo, o benefício econômico da cooperação entre serviços de transporte coletivo de linha e o táxi, especialmente em horários e locais de demanda mais rarefeita. Um conselho de cooperação poderia ser instituído entre os segmentos, com apoio e supervisão do Poder Público. 28 e) É de se esperar que uma reforma regulatória pautada pela eficiência e competitividade, introduzindo mecanismos tais como a licitação, provoque certa reestruturação do setor, com alguma concentração empresarial. Em princípio, tal concentração pode ser um importante pressuposto para a competição global. Mas essa concentração não implica necessariamente no desaparecimento das pequenas empresas, eis que existem diversos nichos a serem ainda desenvolvidos, e que as pequenas empresas e até operadores individuais podem se consorciar em redes empresariais, cooperativas ou simplesmente se fundir. Alternativamente, elas poderiam ser subcontratadas por empresas maiores (uma vez devidamente adaptada a legislação) ou estabelecerem vínculos de franquia com estas últimas. f) De qualquer forma, mister se faz que o setor se prepare para a competição global que, mais cedo ou mais tarde, baterá às portas no País. Em contrapartida, o setor, robustecido por um regime regulatório pautado pela busca de eficiência e competitividade, poderá não apenas fazer face à competição estrangeira, mas também, ele mesmo, disputar espaços fora do País. A falta desse esforço e a insistência na construção de um (frágil) muro regulatório protetor, ao revés, vão fragilizá-lo definitivamente e fazê-lo, no final, sucumbir aos atores rivais. g) Há de se resgatar, sempre, a importância da autoridade pública para a implantação e regulamentação de um sistema eficiente, eficaz e sustentável de transporte de passageiros. O enfraquecimento político e técnico do Poder Público não interessa à sociedade, e até à maior parte dos operadores. Tal enfraquecimento leva, é bom lembrar, à desmoralização do setor regulamentado e ao seu subseqüente enfraquecimento. h) O setor rodoviário de passageiros do Brasil contém enormes potenciais para exportação e atração de poupanças da classe média (aliás, o próprio crescimento do transporte informal é uma demonstração disso). Assim sendo, uma política de relações institucionais teria de levar esses potenciais em consideração, ainda mais que eles têm uma relevância macro-econômica. Por sinal, não é de se esperar que o Governo Federal se empenhe mais pelo setor — e sua ausência tem sido alvo constante de amargas observações pelos signatários da proposta —, se a União não reconhecer a sua utilidade para a solução dos problemas mais eminentes que ela tenta resolver atualmente, que é a estabilização macro-econômica. i) A reforma regulatória, que está na ordem do dia, e que deve se pautar pelas diretrizes resumidas no Quadro 1 abaixo, exige um esforço coletivo da parte dos diversos atores sociais envolvidos. Assim sendo, para o desdobramento prático do debate regulatório recomenda-se o desenvolvimento de programas cooperativos entre esses atores nos seguintes campos: • programa de inteligência mercadológica; • programa de modernização gerencial; • programa de reforma regulatória; • programa de capacitação gerencial do setor público; • programa de re-estruturação do quadro empresarial; • programa de inovação tecnológica; • programa de formação de recursos humanos; 29 • programa de compensação de impactos sociais derivados dos processos de modernização tecnológica e gerencial; • programa de captação de recursos financeiros; • programa de expansão externa e de exportação. Quadro 1 - Diretrizes básicas para a Reforma Regulatória do Setor de Transporte Urbano de Passageiros do Brasil 1. bom atendimento aos diversos segmentos de público, garantindo-se a acessibilidade generalizada sobretudo ao público dependente dos serviços (inclusive aos que atualmente estão excluídos por motivos de insuficiência de renda), mas também resgatando a atratividade para segmentos que têm condições de escolha; 2. busca de eficiência produtiva mediante aplicação de mecanismos incentivadores dos respectivos esforços, especialmente de indução à competição e de abertura permanente do mercado a novos atores; 3. maximização da eficiência alocativa, construindo-se redes sistemicamente eficientes, com vistas a se explorarem economias de rede, de escopo e de densidade, preservando-se a qualidade dos serviços de caráter social e público; 4. adequação da regulação às especificidades locais, preservando-se para tal a autonomia do Poder local; igualmente, a regulação deve ser a mais efetiva e eficiente para a consecução de seus fins, reduzindo os custos administrativos de sua aplicação ao mínimo indispensável; 5. manutenção da sustentabilidade ambiental; 6. produção de efeitos macro-econômicos positivos, sobretudo no que tange a indução e atração de poupança nacional e esforços de exportação. Tal proposição abrange sobretudo o transporte urbano, cuja oferta tem nitidamente característica de rede. No transporte interurbano e no transporte municipal e pequenos municípios, de características rurais (portanto, onde a utilização de ônibus se faz predominantemente entre distritos e a sede, adquirindo caráter de deslocamento interurbano ao invés de urbano), outras modalidades regulatórias precisariam ser cogitadas, mais livres e competitivas, dependendo da geografia concreta de cada mercado. Seria de interesse, à essa altura, ter por pano de fundo a experiência internacional na regulação dos transportes públicos. Na Europa, a experiência radical de desregulamentação experimentada no Reino Unido não obteve eco. No próprio Reino Unido, o fogo de liberalização vem se apagando. Fora de Londres, há pouca mobilidade empresarial a observar, cristalizando-se em várias cidades maiores um pré-domínio das maiores empresas. Como última iniciativa de inovação, os governos vêm propondo às empresas já consolidadas contratos de “parceria de qualidade” (quality partnerships), tendência essa que já está se arrefecendo. Em Londres, subsiste o regime regulamentado, com aplicação de licitações competitivas. A novidade é a 30 adoção do pedágio urbano, cujas receitas têm sido aplicadas majoritariamente no transporte público. Nos outros países desse continente, a licitação competitiva tem sido a regra para a inserção da iniciativa privada na prestação de serviços de transporte público, tanto rodoviários quanto ferroviários. Entretanto, subsiste ainda em larga escala a prestação por empresas públicas, quando muito incentivadas por contratos de parceria de qualidade (Van de Velde 2003). Entretanto, uma reforma prevista no direito Europeu pode dar novo impulso à participação da iniciativa privada no setor: a prestação de serviços será sujeito a contrato, mesmo em se tratando de empresas públicas. Essas poderão ser diretamente contratadas, desde que o governo justifique que um melhor desempenho pode ser obtido por meio dessa via. Empresas privadas poderão desafiar o governo propondo um serviço de melhor desempenho, e o governo terá de estudar sua contra-proposta. No caso de rejeição, terá de justificá-la. Contudo, uma vez contratadas, as empresas públicas terão seu desempenho avaliado publicamente e, no caso das metas não serem atingidas, a licitação dos serviços se torna obrigatória (incentivo ao desempenho por meio de ameaça). Para linhas simples sem subsídio, o governo poderá licitar pelo critério de qualidade ou delegar diretamente o serviço a uma empresa que proponha um serviço inovador (Van de Velde 2003). Nos Estados Unidos, o setor de transporte público aprofunda sua posição marginal, sendo majoritariamente operado, nas cidades, pelo setor público. A inserção da iniciativa privada ocorre, quando muito, nos serviços alternativos para deficientes e sobretudo no transporte escolar, onde a licitação competitiva é de praxe. Em outros serviços, essa inserção ainda é rara, embora ocorra. Entretanto, várias cidades têm implantado sistemas de VLT, em função de políticas de incentivo financeiro por parte do Governo Federal (Cox 2003). Na Austrália, a licitação competitiva por áreas de operação, onde ao operador é oferecido algum espaço de detalhamento dos itinerários, costuma sendo a regra. Alternativamente, em algumas cidades, as empresas, tanto público quanto privadas, podem continuar operando indefinidamente, desde que seu desempenho não fique abaixo de um determinado limiar, sob o risco de terem de se submeter a uma licitação competitiva (ameaça de licitação; cf. Wallis 2003). Em contraste, nos países em desenvolvimento observa-se o quadro semelhante ao brasileiro, onde os governos pendulam entre a inação, provocando a invasão do mercado por operadores artesanais, e a manutenção de empresas estatais, ineficientes. Há os que licenciam, algumas vezes por licitação, operadores artesanais, fazendo-os se congregar em cooperativas empresariais, ou operadores de maior porte (Gwilliam 2003). Nesse quadro, claro, existem exceções, como é o caso da implantação dos corredores de ônibus em Bogotá, onde empresas e cooperativas foram levadas a se associarem ao Poder Público, montando uma complexa estrutura de parceria. Tanto a operação quando a arrecadação ficaram com a iniciativa privada (mas em entidades distintas), enquanto que o planejamento e a gestão central são de incumbência de uma empresa pública (Transmilenio S A). 31 3.2 Necessidade de uma virada Voltando para o panorama brasileiro, o conjunto de proposições acima exposto tem sido apresentadas em vários foros e publicados através de diversos artigos de revista, anais de congresso, e livros. Entretanto, as autoridades permaneceram por muito tempo imóveis, e a crise se aprofundou da forma diagnosticada acima. O transporte público brasileiro chegou a um ponto extremamente baixo, a despeito dos esforços de diversos governos locais de reforma-lo e investir em novos sistemas. A falta de recursos e de apoio por parte do Governo Federal e, da parte dos operadores, o bloqueio contra reformas regulatórias, especialmente contra a realização de licitações, tem provocado um desmonte e uma desmoralização da administração setorial, ao ponto dos chefes de executivo se desinteressarem por algum desempenho nessa seara. A invasão pelo transporte informal consagra esse abandono, e os próprios empresários, que levaram a Administração Pública a um estado de captura, são obrigados a arrumar as malas e sair do setor. Os que subsistem reclamam do Poder Público que assuma suas responsabilidade de órgãos gestor de um serviço público, não para submetê-los à disciplina regulatória em prol de um serviço de qualidade, regular e acessível à população, assim como às licitações, mas sim para coibir seus concorrentes. Assiste-se, assim, à uma perversão do conceito de serviço público, onde a proteção dos interesses das empresas e de seu “equilíbrio econômico-financeiro” predomina sobre o interesse público. Nessa lógica, o Poder Público se degrada a um mero “Leão de Chácara”, de um clube exclusivo, não podendo desenvolver nenhuma política que contrarie as empresas, mas tendo de protegê-las diante qualquer ameaça, sobretudo quando a população começa a desenvolver suas próprias alternativas. O bloqueio jurídico decorrente desse impasse é completo, pois diante da caducidade das permissões, qualquer tentativa de acordar, entre os Poderes Públicos e os operadores privados, eventuais projetos de parceria mais abrangentes que envolvam investimentos públicos e/ou privados ficam sujeitos a um enorme risco jurídico, eis que qualquer determinação judicial que cobre a realização de licitações que tardam irá fazer surgir massas de investimentos não amortizados, que complicarão ainda mais a vida das partes. Mister se faz que todos os atores do setor se conscientizam para que a segurança jurídica constitui um bem econômico, de valor incomensurável. Tanto é que em São Paulo, onde a legalidade foi re-estabelecida, os empresários se viram incentivados a realizar novos investimentos, seguros que se sentiam da sua situação institucional, eis que o risco legal e o seu custo foram reduzidos. Evidentemente, o bem econômico da segurança jurídica só pode ser produzido pelo Estado, o qual, em contrapartida, haverá impor restrições a particulares, para que o conjunto dos provedores possam prosperar com segurança e legitimidade. Isso implica em que os atores aceitem de pronto essas restrições em prol do bem comum, senão terão de arcar com o enorme custo da insegurança legal. E hoje, a restauração da segurança jurídica inicia com a realização de licitações e da afirmação do poder regulatório da Administração Pública. 32 Por todas essas razões, a reforma regulatória precede qualquer retomada do setor, onde ao Poder Público, devidamente refortalecido e re-estruturado, haverá de ser devolvida a capacidade de exercer sua função governamental. Sem essa devolução, qualquer modernização organizacional não terá força para implantar qualquer benefício, pelo que uma tentativa de esboçar medidas nesse sentido restará sendo mera terapia ocupacional. Portanto, a crise do setor tem caráter nitidamente político, e menos organizacional. Contudo, vendo pelo lado político, fica cada vez mais difícil provocar alguma melhoria apenas mediante medidas no campo administrativo e regulatório, eis que essas medidas vêm sempre acompanhadas de risco político para o administrador público. A recuperação de seu interesse pelo setor, interesse esse que é em última análise o fator mais crítico para a retomada, precisa ser provocada com alguma perspectiva de ganho político. Esse só virá com medidas de alto impacto, sobretudo no campo das infra-estruturas, mais visíveis, como a experiência ensina. A retomada da capacidade de investimento é, ao nosso ver, uma condição sine qua non tanto para reacender o interesse político quanto para a melhoria mais definitiva da circulação nas metrópoles. Por outro lado, essa conclusão nos remete ao problema crônico da falta de recursos financeiros públicos, que nem mesmo o retorno da algum fundo vinculado (p.ex; a CIDE), será capaz de resolvê-lo substancialmente. Evidentemente, o investimento privado não poderá deixar de ser considerado, ainda mais porque em um país onde o capital é o fator de produção mais escasso, não subsiste razão para que o capital originado das mais diversas fontes não conflua, de forma sinergética e eficiente, para a consecução de projetos de interesse comum. Por outro lado, as dificuldades de se buscarem investimentos privados para projetos de infra-estrutura de transporte público urbano são bastante conhecidas, ao ponto de não haver um número grande de projetos nesse setor e até do Banco Mundial reconhecer a falta geral de viabilidade. O próprio ambiente urbano, repleto de atores e conflitos aumenta o nível de risco para os compromissos financeiros. Mas, não havendo alternativas, as dificuldades inerentes ao investimento privado em infraestruturas modernas de transporte de massa têm de ser superadas, o que vai exigir um grande esforço de criatividade por parte dos atores públicos e privados do setor. A próxima seção tratará com maior pormenor as condições teoricamente mínimas para a viabilização do investimento privado nos transportes de massa, concluindo com um esboço de modelo de parceria apropriado para o contexto urbano. 4 – PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS PARA O INVESTIMENTO EM INFRAESTRUTURAS DE TRANSPORTE: CONDIÇÕES DE CONTORNO No plano internacional, o uso de parcerias públicas-privadas para a manutenção e até para a construção de novas rodovias mediante cobrança de pedágios ou mediante ressarcimento das concessionárias pelo Poder Público (conferir as experiências de pedágio-sombra e o modelo alemão de ressarcimento parcelado, apelidado de Modelo Morgendorf) é uma prática corrente (Izquierdo 1997). Evidentemente, esta modalidade de financiamento vai complementar as outras, especialmente as clássicas formas lastradas em recursos orçamentários e em fundos fiscais vinculadas (cuja reintrodução, mais cedo ou mais tarde, haverá de acontecer, a despeito de todas 33 as resistências!), assim como as simples concessões de sistemas de transporte, viabilizadas tão somente pela cobrança de tarifas ou pedágios. Entrementes, a exploração privada de infra-estruturas de transporte público urbano coloca problemas mais complexos, dada a limitação de se buscar o equilíbrio dos contratos exclusivamente pela receita. Um primeiro ponto de adaptação seria a concatenação mais intensa entre exploração da infra-estrutura e de outros negócios na faixa de domínio e até na área de influência, pela qual a exploração comercial do sistema de transporte seria vinculada à exploração desses outros negócios. Esses são, de um lado, viabilizados pela existência da nova via (p.ex., dutos para cabos de telecomunicação, complexos imobiliários, centros comerciais), mas, de outro lado, alimentam a via com uma nova demanda de transporte gerada pelos próprios negócios (Orrico Filho et al. 1998). São notórias praticantes desse modelo as empresas ferroviárias privadas japonesas (já existentes antes da privatização da Japan National Railways na década de 80), que, ainda nas décadas de 50 e 60 implantaram bairros e cidades inteiras ao longo de seus trilhos (cf. Tokyu Public Relations Committee 1997). Outros estudos internacionais sobre os impactos de valorização de investimentos de sistemas sobre trilhos (metrôs, ferrovias, VLT) confirmam esse potencial, sobretudo nas proximidades de paradas e estações (embora que, durante o período das obras, possa haver alguma desvalorização, sobretudo dos imóveis residenciais; ver Office of Deputy Prime Minister 2002; Pastinen 2001; Institute of Transport Studies 1999, Smith e Gihring 2003). A lógica funcional desse modelo está orientada para se produzirem sinergias entre o negócio de transportes e os empreendimentos associados, de tal forma que estes passam a: a) gerar demanda de transporte, aumentando, assim, a arrecadação tarifária; b) com os ganhos imobiliários e os advindos de outros empreendimentos associados (comércio, empreendimentos culturais e de entretenimento, venda ou aluguel de espaço para implantação de cabos de telecomunicação), ressarcir os custos de construção; c) com os mesmos ganhos, cobrir parte dos custos operacionais (uso mais provável do que a hipótese da alínea anterior); d) ativar a economia geral da área servida, com acréscimo de receita fiscal, que será parcialmente utilizada para cobrir os custos do investimento e do respectivo financiamento. Em recente contribuição (Aragão 2000), apontamos algumas premissas para a sua aplicação e otimização, esboçando o início de uma proposta organizacional. De início, as parcerias deverão se enquadrar em uma consistente política de transportes para a respectiva área de abrangência, política essa coerentemente inserida em uma política de desenvolvimento urbano e regional e em seu respectivo arranjo espacial projetado. Essa inserção, freqüentemente postulada mas raramente praticada (Vasconcellos 1996, ANTP 1999), é essencial para a viabilização econômica-financeira do modelo proposto, eis que, aqui, se dão as mãos a valorização do negócio de transporte e o florescimento de outros negócios nas áreas lindeira e de influência. 34 Mas o desenvolvimento e a implantação desse modelo deve, como postulamos, dar oportunidade ao equacionamento de questões muito mais amplas. Na medida em que os investimentos de transporte aportam efeitos diversos, benéficos ou maléficos, para o ambiente macroeconômico (criação de rendas e mercados, aumento da produtividade e da competitividade geral da economia, oferta e procura de moedas, efeitos anti-cíclicos dos investimentos infra-estruturais, etc.; cf. Baum 1997), o pleno aproveitamento dos investimentos públicos e privados nesses modelos haverá de dar ensejo à mobilização da poupança nacional e ao desenvolvimento do mercado financeiro interno, devidamente complementado com recursos à poupança externa (criando até novos espaços e oportunidades para o contínuo fluxo de capitais externos, uma vez concluída a etapa das grandes privatizações3). Olhando já para o lado privado, a viabilização das parcerias públicas-privadas, especialmente mediante amplo emprego de estruturas de project finance, exigirá que seguintes medidas sejam adotadas (Aragão 2000, Rodrigues Junior 1997, Nevitt e Fabozzi 1995): a) otimização do desempenho econômico possível do projeto, o que terá, por outro lado ser compatibilizado com as restrições de caráter ambiental, social e econômico; b) manutenção permanente do equilíbrio financeiro, o que exigirá a adoção de um plano estratégico de expansão paulatina dos investimentos; c) adoção de uma política equilibrada de endividamento, iniciando-se com o máximo volume possível de capital histórico, o que exigirá a participação, desde início, de entidades financeiramente robustas; d) construção de credibilidade do projeto junto ao mercado financeiro; e) adoção de uma política preventiva de redução das mais diversas categorias de riscos (conclusão, operacional/comercial, tecnológico, de fornecimento, financeiro, cambial, mas sobretudo do risco político, elemento esse de importância central em programas de concessionamento de infra-estruturas públicas); f) um cuidado especial terá de ser tomado com relação a eventuais efeitos excludentes das parcerias. Em princípio, a exploração privada de uma infra-estrutura está vinculada à possibilidade de introduzir exclusões de não pagantes (transformação do bem público em bem de clube). Para tal efeito, as principais medidas a serem tomadas são: primeiramente, os eixos deverão contemplar um número grande de infra-estruturas sociais (habitação popular, escolas, hospitais, centros culturais, etc.), de forma a aumentar o contingente de usuários. Em segundo lugar, a exploração dos negócios conexos deverá ser vinculada à concessão de subsídios à população carente, cadastrada. Isso pode ser feito diretamente pelo parceiro, conforme previsto no contrato de parceria, ou por uma outra entidade, que em troca da exploração dos negócios conexos cobriria o subsídio, completando a receita do concessionário da infraestrutura principal, conforme disposto em contrato entre essas partes. 3 Há de se analisar, igualmente, o potencial desses projetos integrados para a renegociação, vantajosa para o País, das dívidas internas e externas, na medida em que eles viabilizariam a troca de papéis de curto prazo por outros de longo prazo, vinculados aos projetos de parceria, melhorando-se, assim, o perfil da dívida pública. 35 Por sua vez, para aumentar o desempenho econômico, mister se faz que se maximizem os efeitos sinergéticos entre o negócio de transportes e os outros, com referência especial ao negócio imobiliário. Para tal fim, podem ser recomendadas as seguintes diretrizes: • priorizar o assentamento, nos eixos de parceria, daqueles setores que mais dependem da proximidade do mercado; • entretanto, ativar esse mercado, mediante indução de fluxos de clientes e do desenvolvimento habitacional na área; • preferência para setores com grande disponibilidade de pagar espaço valorizado, mas também para atividades geradoras de fluxo (educação, cultura, mercados populares) e de concentração populacional (habitação); • realizar análises e modelagens por setor, avaliando-se o contexto geral da cidades, inclusive os centros urbanos concorrentes; • procurar mistura adequada de atividades interdependentes (cadeias de produção, serviços públicos, habitação); • conectar desenho do projeto às atividades básicas da cidade, inserindo-o na política industrial da cidade e a seu fomento; observe-se que não necessariamente as plantas das atividades básicas, especialmente as industriais, serão localizadas ao longo do eixo, mas o projeto deve servir para a consolidação das atividades básicas; • dar sobremaneira importância a projetos sociais e culturais, na medida em que eles garantirão a necessária concentração de fluxo populacional; • garantir boa qualidade ambiental (inclusive no tocante ao ambiente social). Portanto, resumindo os principais postulados públicos e privados para a montagem do modelo de parcerias, poderíamos sintetizar os seguintes princípios norteadores 4: a) reforma do sistema tributário, com a reintrodução de fundos fiscais vinculados, mas garantindo-se a austeridade, eficiência e eficácia de seu uso; b) efetivo desenvolvimento de um amplo programa de parcerias públicas-privadas ao longo dos diversos eixos de desenvolvimento; c) nos respectivos projetos, promover o casamento entre o investimento e a exploração de sistemas de transporte com a capturação de valorização imobiliária e a exploração de negócios correlatos, tudo isso inserido no contexto mais amplo de políticas de desenvolvimento urbano, regional, industrial e de geração de empregos; d) desenvolvimento do mercado financeiro, possibilitando, sobretudo, que as camadas de classe média vislumbrem novas oportunidades atrativas de poupança; 4 Detalhamos e discutimos esses princípios na referida publicação recente (Aragão 2000). 36 e) concertação social e inserção dos projetos em um planejamento urbano mais amplo, para fins de maximização do bem-estar, minimização dos impactos negativos sobre a sociedade e o meio-ambiente e, com isso, redução do risco político que possa afetar a avaliação do projeto. Recentes reformas legislativas vem viabilizando juridicamente a adoção de instrumentos inovadores, cabendo destacar: a) a Lei sobre a Reforma de Estado (Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998), que criou a figura de Agências Executivas e Reguladoras; b) a Lei sobre Organizações Sociais (Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998); c) a Lei o Terceiro Setor, que deu à luz as OSCIP e os respectivos temos de parceria que possam constituir com o Poder Público (Lei no 9.790/99); d) o Estatuto da Cidade, que adotou a operação urbana e os certificados de potencial adicional de construção (Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001); e) e o Projeto de Lei sobre as Parcerias Público-Privadas, atualmente em tramitação no Senado Federal. Em particular, o projeto de lei em curso visa enriquecer a paleta de contratos administrativos, para abrigar diversas modalidades de parcerias público-privadas. Ao governo serão abertas novas possibilidades de participar e apoiar econômica e financeiramente os concessionários. Esses obterão igualmente proteções privilegiadas contra riscos, tais como a disponibilidade de recursos em fundos especialmente instituídos para garantir contrapartidas governamentais, fundos esses administrados por agentes fiduciários. Como compensação a esses favores fiscais, os projetos beneficiários serão sujeitos a uma seleção rigorosa quanto à sua prioridade e viabilidade, e os empenhos financeiros governamentais serão supervisionados pelo Banco Central. A celebração de contratos de parceria será necessariamente precedida de licitação, a qual, contudo, adquirirá características especiais, na medida em que contará com processos de pré-seleção e possibilidades de adaptação da proposta no decorrer do processo. Para o setor de transporte público urbano, novas possibilidades para o investimento e a política de regulação se abrem, apesar das dificuldades acima comentadas, pelo que as adaptações igualmente expostas se fazem indispensáveis. Alertamos, novamente aqui, que a licitação é um processo incontornável, pelo que as empresas operadoras terão de sujeitar à sua realização, sem a qual ou estarão excluídas das parcerias ou poderão se tornar em um sério obstáculo ao desenvolvimento das infra-estruturas, o que vai fragilizar adicionalmente sua posição política. No campo federal, defende-se a adoção de uma política nacional de apoio a projetos de parceria público-privadas no âmbito urbano com vistas à implementação de infra-estruturas de transporte público urbano (como também de outras infra-estruturas urbanas). O Governo Federal, por intermédio de uma agência própria ligada ao Ministério das Cidades e de suas agências de fomento nacionais, poderiam prestar variados serviços de assistência técnica para a elaboração dos projetos e para a formação de recursos humanos. Há de se ressaltar, pois, que a utilização de parcerias público-privadas implicará em uma mudança significativa de cultura econômica (e política) nos locais do projeto, pelo que a preparação das lideranças e sobretudo dos recursos humanos exigirá uma atenção especial do programa, senão os projetos muito rapidamente 37 poderão fracassar. Novas habilidades no campo do planejamento, da simulação de impactos e de fluxos financeiros, da negociação política e da gerência de conflitos, assim como do lançamento de títulos no mercado financeiro, haverão de ser desenvolvidas e difundidas, abrindo, em contrapartida, um novo e promissor mercado de consultorias e indústrias de software e de material de treinamento. Para agilizar a difusão da nova cultura, o Governo Federal poderia investir na produção de todo um arsenal de material de apoio, tais como manuais, modelos computacionais, materiais para cursos, entre outros. Há de se ressaltar que a oferta desse material de apoio, contra cobrança módica, a um público mais amplo possível será um dos elementos fundamentais não apenas para a criação da necessária capacitação técnica para os projetos concretos e para a geração da nova cultura econômica, como também para o florescimento de um amplo mercado de consultoria local, nacional, visando até a exportação de respectivos serviços. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Aragão, J. (1988) O Modelo de Federação de Transporte e sua Adaptação às Metrópoles Brasileiras. Revista dos Transportes Públicos, 10(42): 29-42. Aragão J. (2000) Financiando infra-estrutura de transporte urbano: em busca de novas trilhas. In: SANTOS E.M, Aragão J.: Transporte em Tempos de Reforma. Ensaios sobre a Problemática. Brasília: LGE. Aragão J.J.G, Santos, E. M., Brasileiro A., Lima Neto O. C, Orrico Filho R D (2000): Construindo modelos de relações institucionais e reguladoras no transporte público urbano: algumas considerações metodológicas. In: Santos E.M, Aragão J.: Transporte em Tempos de Reforma. Ensaios sobre a Problemática. Brasília: LGE. Associação Nacional de Transporte Público - ANTP (1999) O Transporte na Cidade do Século 21. Revista dos Transportes Públicos. Número 84. Ano 21. 3° Trimestre. São Paulo: ANTP. Associação Nacional de Transporte Público - ANTP (1997): Transporte Humano - Cidades com Qualidade de Vida. São Paulo: ANTP Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU (1998): Novos Tempos; A Era do Usuário. Anuário 1997-1998. Brasília: NTU. Baum H. (1997) Der volkswirtschaftliche Nutzen des Verkehrs. Zeitschrift für Verkehrswissenschaft. 68. Jahrgang. Heft 1. Düsseldorf: Verkehrs-Verlag J. Fischer. Berechman J. (1993): Public Transit Economics and Deregulation Policy. Amsterdam: Elsevier. Brasileiro A. (1996): Do artesanato à moderna gestão empresarial das empresas privadas de ônibus urbano no Brasil? In: Orrico Filho R.D., Brasileiro A. , Santos E.M., Aragão J.J.G.: Ônibus Urbano - Regulamentação e Mercados. Brasília: LGE. Brasileiro A, Henry E , TURMA (1999): Viação Ilimitada. Ônibus nas Cidades Brasileiras. São Paulo: Cultura. 38 Brasileiro, A. (1996): Regulamentação do Transporte por Ônibus: A Experiência Francesa de Gestão Pública e Operação Privada. In: Orrico, R., Santos E M, Brasileiro A, Aragão J J G (1996): Ônibus Urbano: Regulamentação e Mercados. LGE, Brasília. Brasileiro A, Santos E M, Aragão J J G (1999: A new institutional framework for Brazilian metropolitan railways. Proceedings of the CODATU VIII Conference: Urban Transport Policy – A Sustainable Development Tool.. Rotterdam: Balkema. Brasileiro A, Santos E M, Orrico Filho R D, Aragão J J G. (s.d.): Organização dos Transportes Públicos Metropolitanos no Brasil: Crise, Transição e Perspectivas. Recife: mimeo Companhia Brasileira de Trens Urbanos (2003): Programa de Descentralização da Gestão dos Trens Urbanos. Seminário: Mobilidade Urbana em Regiões Metropolitanas. Rio de Janeiro: BNDES e Ministério das Cidades. Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos (2003): O Transporte Público na Região Metropolitana de Goiânia. Seminário: Mobilidade Urbana em Regiões Metropolitanas. Rio de Janeiro: BNDES e Ministério das Cidades. Comunidad de Madrid (1986) Ley de Creación del Consórcio Regional de Transportes de Madrid. Comunidad de Madrid, Madri. Cox W (2003): Competitive Participation in U.S. Public Transport: Special Interests Versus the Public Interest. Proceedings of the 8th Conference on Competition and Ownership in Land Passenger Transport. Rio de Janeiro: COPPE. Crampes C., Estache A. (1997): Regulatory Tradeoffs in Designing Concession Contracts for Infrastructure Networks. Washington: The World Bank Estache A., Martimort D. (1999): Politics, Transaction Costs and the Design of Regulatory Institutions. Washington: The World Bank Gallo L.M. (1998): O Capital Privado e o Financiamento do Metrô. Revista do Transporte Público. nº 79. São Paulo: Associação Nacional de Transporte Público. European Metropolitan Transport Authorities (2001): What public transport authorities for the European metropolitan areas ? Proceedings of the Conference. Barcelona, 8 November 2001. Paris: EMTA Finnerty J.D. (1998) Project Finance. Engenharia Financeira Baseada em Ativos. São Paulo: Qualitymark. Guasch J.L., Hahn R.W. (1997): The Costs and Benefits of Regulation: Implications for Developing Countries Washington: The World Bank. Gwilliam K (2003): Bus Franchising in Developing Countries: Recent World Bank Experience. Proceedings of the 8th Conference on Competition and Ownership in Land Passenger Transport. Rio de Janeiro: COPPE. Henry E. (1997): Dinâmica das Empresas de Transporte por Ônibus no Brasil. in: Brasileiro A, Henry E.: A Empresa Privada de Ônibus Urbanos: Trajetória Brasileira e Realidades Locais. São Paulo: mimeo. Hokuso Kaihatsu Railway (s.d.): Hokuso Company Guide.. Tóquio: Hokuso Kaihatsu Railwau Co., Ltd. Institute of Transport Studies (1999): Project FATIMA. Final Report. Leeds (Reino Unido): Institute of Transport Studies 39 Izquierdo R. (1997): Gestion y Financiación de las Infrastructuras del Transporte Terrestre. Madrid: Associación Española de Carreteras. Kerf M., Gray R. D., Irwin T., Lévesque C., Taylor R.R. (1998): Concessions for Infrastructure A Guide to Their Design and Award. World Bank Technical Paper No. 399. Washington: The International Bank for Reconstruction and Development. Kyoto Municipal Transport Bureau (1998): The Subway of Kyoto City. Quioto: mimeo Lima Neto O C, , Brasileiro A, Santos, E M, Aragão, J J G, Senna J M, Orrico Filho R D (2001): Transportes no Brasil: história e reflexões.Brasília: GEIPOT. Ministry of Transport, Japan International Cooperation Agency - JICA (1998): Housing and Urban Development Corporation (HUD) Railway. Tóquio: Ministry of Transport (mimeo) Nevitt P K, F J Fabozzi (1995) Project Finance 6ª ed. London: Euromoney Publications Office of Deputy Prime Minister (2002): Land Value and Public Transport. London: Office of Deputy Prime Minister Orrico Filho R.D., A. Brasileiro, E. M. Santos, J.J.G Aragão (1996): Ônibus Urbanos: Regulamentação e Mercado. Brasília: LGE Orrico Filho R.D., A. Brasileiro, E. M. Santos, J.J.G Aragão (1998) Articulação Transporte e Empreendimento: Um possível modelo de financiamento de infra-estruturas de transporte urbano. Anais do XII Congresso Nacional de Pesquisa e Ensino em Transportes. Volume I. Fortaleza: Associação Nacional de Pesquisa e Ensino em Transportes. Pastinen V (2001) : The Value Capture Principle as a Financing Scheme for Transport Infrastructure Investments in the Helsinki Metropolitan Area. Helsinki: mimeo. Possas M.L, Ponde J.L., Fagundes J. (1997): Regulação da Concorrência nos Setores de Infra-estrutura no Brasil: Elementos para um Quadro Conceitual. In Rezende F., Paula T.B. (Coord.) (1997): Infra-estrutura: Perspectivas de Reorganização Regulação. Brasília: IPEA. Renault e COPPETEC (2001): Individual and Semi-Collective Transport in Brazil. Rio de Janeiro: COPPETEC. Rodrigues Junior W. (1997) Participação Privada no Investimento em Infra-estrutura e o Papel do Project Finance. Texto para Discussão nº 495. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Santos E.M, Aragão J.(2000): Transporte em Tempos de Reforma. Ensaios sobre a Problemática. Brasília: LGE. Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado de Pernambuco (2004): Principais Projetos – Trânsito e Transporte Urbano. Recife: Governo do Estado de Pernambuco. http://www.sedupe.pe.gov.br/asp/projetos_transito_consorcio.asp Smith J J, Gihring T A (2003): Financing Transit Systems Through Value Capture - An Annotated Bibliography. http://www.vtpi.org/smith.htm Transport Bureau of the City of Nagoya (1995): The Nagoya City Bus and Subway System. Nagóia: Transportation Bureau of the City of Nagoya. 40 Van de Velde D. (2003): Regulation and Competition in the European Land Transport Industry: Some Recent Evolutions. Proceedings of the 8th Conference on Competition and Ownership in Land Passenger Transport. Rio de Janeiro: COPPE. Vasconcellos E. A. (1996): Transporte urbano nos países em desenvolvimento. Reflexões e propostas. São Paulo: Editoras Unidas. Viscusi W.K, Vernon J.M., Harrington Jr. J.E (1995): Economics of Regulation and Antitrust. Cambridge (Massachussets): The MIT Press. Wallis I (2003): Regulatory Policy Development in the Australasian Urban Public Transport Sector. Proceedings of the 8th Conference on Competition and Ownership in Land Passenger Transport. Rio de Janeiro: COPPE.