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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DEPÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL (MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA SOCIAL) HELAYNE XAVIER BRAS OS MARGINALIZADOS PELA REPÚBLICA: o discurso sobre modernidade e cidadania na obra de José Nascimento Moraes São Luís 2014 HELAYNE XAVIER BRAS OS MARGINALIZADOS PELA REPÚBLICA: o discurso sobre modernidade e cidadania na obra de José Nascimento Moraes Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social (mestrado acadêmico), da Universidade Federal do Maranhão, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em História Social. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Izabel Barboza de Morais Oliveira. São Luís 2014 Bras, Helayne Xavier Os marginalizados pela república: o discurso sobre modernidade e cidadania na obra de José Nascimento Moraes/ Helayne Xavier Bras. –São Luís, 2014. 121 f. Orientadora: Maria Izabel Barbosa de Morais Oliveira. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade Federal do Maranhão, 2014. 1. História 2. Literatura 3. República 4. Cotidiano 5. Marginalização CDU 981.21 HELAYNE XAVIER BRAS OS MARGINALIZADOS PELA REPÚBLICA: o discurso sobre modernidade e cidadania na obra de José Nascimento Moraes Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social (mestrado acadêmico), da Universidade Federal do Maranhão, como requisito parcial para obtenção do grau de mestra em História Social. Data da defesa: 14/02/2014 BANCA EXAMINADORA Examinadores ____________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria Izabel Barboza de Morais Oliveira Orientadora ________________________________________________________ Prof.º Dr.º Josenildo de Jesus Pereira/ UFMA __________________________________________________________ Prof. º Dr.º Marcelo Cheche Galves/ UEMA ___________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Regina Helena de Faria/UFMA Suplente Dedico à minha família, minha incentivadora, desde sempre! À minha irmã Aline, pelo apoio moral e estrutural. Ao meu “chococat”, Wallace mesmo quando esteve distante. A José Nascimento Moraes, quem considero de fato um lutador. AGRADECIMENTOS Agradeço, antes de tudo, ao Criador que além da vida me proveu de inteligência, discernimento e um pouco de criatividade, altas doses de idílios sem os quais eu não teria chegado até aqui. Agradeço aos meus pais por desde cedo terem cultivado em mim o prazer da leitura, minha mãe me alfabetizando e meu pai me presenteado com gibis. Com certeza eles que não sabiam que ali estava nascendo uma futura historiadora! Agradeço à minha irmã, alma gêmea, Aline, por ser minha melhor amiga, minha cúmplice e minha secretária quando eu mais precisei. Obrigada por tudo, mana, je t’aime!! Agradeço ao meu designe preferido e, por acaso, irmão, Daniel, por mais uma vez concretizar meu projeto de capa. Você é o melhor! Agradeço ao meu amor, Wallace, por ser meu companheiro não apenas de vida, mais de sonhos, amor, nós vamos conseguir, eu sei! Agradeço aos professores do Programa de Pós-Graduação de História da UFMA, em especial aos professores Josenildo, João, Alexandre, Lyndon e Adriana Zierer, suas disciplinas e conselhos foram muito bem aproveitados nesta dissertação! Agradeço à minha orientadora, Maria Izabel, por me apoiar, ajudar nesses momentos finais e ser compreensiva. Agradeço também pela liberdade que me concedeu nesta escrita! Agradeço ao apoio financeiro da CAPES e FAPEMA. Por fim, um agradecimento especial aos meus “pretinhos” queridos Jakson, Solange e Claudimar, creio que esses dois curtos anos foram mais que suficientes para gerarem uma amizade/irmandade que levaremos para o resto de nossas vidas. Obrigada pela cumplicidade, amizade, apoio, pelas pequenas farras, pelo apelido “pretinha” que me faz sentir tão parte de vocês. Sinto muitas saudades dos nossos momentos, das nossas viagens, dos nossos papos virtuais. Espero encontrá-los nas próximas paradas desse trem que nunca para!! RESUMO Esta pesquisa pretende dar continuidade ao nosso trabalho de conclusão da graduação em História no qual tratamos da análise das representações da cidade de São Luís no romance: “Vencidos e Degenerados”, de José Nascimento Moraes. Objetivamos avançar em nossa análise, agora tratando da crítica que nosso intelectual tece, a partir de um universo literário, à concretização do estabelecimento da cidadania entre as categorias sociais da nascente república brasileira, especificamente a população pobre e de cor. As obras selecionadas narram o período que vai da Abolição até as primeiras décadas da República. Tratando o texto literário como metáfora do mundo que está representando, voltamo-nos para a análise da maneira como Nascimento Moraes se apropria do espaço e contexto que São Luís vivia para criar um discurso que evidencia a relação entre marginalização e República a partir da dinâmica do cotidiano dos seus personagens no espaço urbano. Tal universo literário tem como temas recorrentes a questão racial, o mundo do trabalho, o papel social da mulher e a cidadania. Palavras-chave: História. Literatura. República. Cotidiano. Marginalização. ABSTRACT This research intends to continue our work of completing graduation in history in which we deal with the analysis of representations of the city of São Luis in the novel: “Vencidos e Degenerados” by José Nascimento Moraes . We aim to advance in our analysis , now addressing the criticism that our intellectual weaves , from a literary universe, the implementation of the establishment of citizenship between the social categories of the nascent Brazilian republic, specifically the poor and people of color . The selected works narrate the period of abolition until the first decades of the Republic. Treating the literary text as a metaphor for the world we are representing , we turn to the analysis of how birth Moraes appropriates the space and context that São Luis lived to create a discourse that emphasizes the relationship between Republic and social marginalization from the dynamics of daily lives of its characters in urban space. Such literary universe has as recurring themes racial question, the world of work , the social paper of women and citizenship. Key- words: History. Literature. Republic. Quotidian. Marginalization. 9 SUMÁRIO O Fio de Ariadne (Introdução)..............................................................................................10 Cap. 1. Trajetória intelectual de José Nascimento Moraes.................................................24 1.1 A Tradição Literária Ateniense: da Oficina dos Novos à carreira jornalística............................................................................................................................27 1.2 O intelectual e o seu tempo........................................................................................38 Cap. 2. O pós Abolição na perspectiva dos textos literários de Nascimento Moraes.............................................................................................................................43 2.1 A multiplicidade das experiências dos homens de cor na passagem da escravidão à liberdade...............................................................................................................................44 2.2 Depois do “13 de Maio”, a reinvenção do cotidiano no mundo de trabalho....................52 Cap. 3. Uma República entre a Ordem e a Desordem .........................................................69 3.1 Uma cidade letárgica......................................................................................................77 3.2 “É assim que se trata um cidadão?”.................................................................................82 3.3 Uma modernidade que mata, moraliza e exclui ..............................................................91 3.4 A mulher, a moral e os bons costumes.........................................................................96 3.5 “Às letras, cidadãos!”: o papel transformador da educação no cotidiano dos marginalizados................................................................................................................. .....103 A modernidade se faz “cama de Procusto” na República (Conclusão).....................................................................................................................111 Referências Bibliográficas ...........................................................................................114 10 O Fio de Ariadne (Introdução) Passados alguns anos desde que pesquisamos a primeira vez Nascimento Moraes, retomamos nesta pesquisa a tentativa de trazer a lume o sentido do seu pensamento. Dessa vez, alargamos nossas fontes para além do romance Vencidos e degenerados, publicado em 1915, não por ele ter se esgotado, sua narrativa continua oferecendo leques de possibilidades de interpretações, o que justifica ainda uma vez sua presença em nosso repertório de fontes, já que estudamos o recorte temporal da Primeira República (1889-1930). Neste sentido, além do referido romance, utilizamos como fontes os contos A negra Benedita, A vida de um homem de bem e Desmoronamento, redigidos por Nascimento Moraes durante a Primeira República, mas publicados somente na década de 1940; assim como algumas crônicas e artigos escritos por ele no período de nossa análise. No prefácio do romance Vencidos e degenerados, Nascimento Moraes afirma que o livro era obra da sua juventude. Consta no volume o depoimento de um dos filhos do dono da editora, que publicou a primeira edição do romance, que ele foi levado à publicação dois anos antes, ou seja, em 1913, mas, por conta da penúria da época, a mesma demorou dois anos para se efetivar. Tendo sua primeira edição vinda a público em 1915, a obra foi reeditada três vezes: nos anos de 1968, 1982 e 2000. Sobre a temporalidade da escrita do romance, Dorval Nascimento infere ser pouco anterior a 1910 devido a conjuntura da época, que teve como governador Luiz Domingues, governando de 1910 a 1914, e caracterizou-se pela falta de afinidade com as oligarquias locais, o que lhe angariou um grupo de intelectuais, entre eles Nascimento Moraes, que partiram em sua defesa, inclusive, o romance Vencidos e degenerados é dedicado a esse governador (NASCIMENTO, 2012, p. 25). A primeira vez que nos deparamos com os contos A negra Benedita, A vida de um homem de bem e Desmoronamento foi no volume Contos de Valério Santiago, organizado por Morais Filho, editado pelo SECMA, no entanto, não havia nenhuma referência sobre onde esses contos foram originalmente publicados. Em 2011, Adriana Gama de Araújo, em sua dissertação de mestrado, pela UFRN, afirma que tais contos foram publicados na década de 1940, na Revista Athenas. Rastreando essas pistas, procedemos à localização da sua fonte original. No entanto, no acervo de obras raras da Biblioteca Pública Benedito Leite constam apenas cinco exemplares da revista e apenas do ano de 1940. Dentre esses exemplares, só foi possível localizar o conto A Preta 11 Benedita, publicado em agosto de 1940, número 20, páginas 11 a 13. Tentamos encontrar versões digitalizadas da revista, mas não obtivemos êxito. Bem como foram frustradas as tentativas de localizar algum parente de Nascimento Moraes que pudesse nos ajudar na questão. Há grande possibilidade de esses contos em sua publicação originária estarem perdidos. Ressaltamos a responsabilidade da biblioteca portadora da revista e os anos que ficou fechada, a inundação que sofreu o acervo em 2013 como possíveis causadores do sumiço das revistas que, até o período de 2008, constava em número considerável, mais de uma dezena, e que tivemos acesso. No entanto, como não era do nosso objeto, não nos preocupamos em localizar e datar os Contos de Valério Santiago. Este trabalho que ora apresentamos é fruto da experiência e da vontade de continuar a explorar o pensamento desse instigante intelectual maranhense. Experiência que só o tempo e as leituras possibilitaram e vontade de conhecer aquele universo, de que nos fala o nosso jornalista e educador, numa perspectiva mais próxima dos seus agentes em seu cotidiano. Portanto, muito do que trabalhamos aqui consta como uma leitura mais apurada de alguma consideração feita outrora, ainda que nosso objeto seja outro, alguns personagens virão agraciar-nos com sua presença e inquietar-nos com suas problemáticas e dilemas, alguns nos emocionarão com sua história, misto de sofrimento, luta e resistência. Sabemos que nossas fontes levantam suspeitas, para alguns mais ortodoxos esse trabalho merece total descrédito, pois o número de céticos que negam a possibilidade de textos e obras literárias serem usadas como fontes de análise histórica não é pequeno, prova disso são os eventos anuais que sempre dedicam um grupo de trabalhos para discutir essa questão vista muitas vezes como belicosa. Usamos, no entanto, como armadura, as palavras de um dos mais conceituados e cultuados historiadores contemporâneos, Michel de Certeau, em A Escrita da História (1999, p. 82), sobre a operação historiográfica que é por ele definida como o resultado de uma operação científica, pois usa um aporte teórico e metodológico para selecionar, enquadrar, questionar documentos, transformando-o em algo adverso, o texto histórico, ou seja, importam mais os meios e não exatamente o que, porque a história invariavelmente terá lacunas a preencher, portanto, a operação historiográfica é também um ato de fé, que, em O fio e os rastros, Carlo Ginzburg chama de fé histórica, pois é ela que 12 Permite-nos superar a incredulidade alimentada pelas objeções recorrentes do ceticismo, referindo-se a um passado invisível, graças a uma série de oportunas operações, sinais traçados no papel ou no pergaminho, moedas, fragmentos de estátuas erodidas pelo tempo etc. Não só. Permite-nos, como mostrou Chapelain, construir a verdade a partir das ficções [fables], a história verdadeira a partir da falsa (GINZBURG, 2007, p. 93). O suporte teórico metodológico surge então como o fio de Ariadne a nos guiar pelo tortuoso labirinto à caça desse Minotauro, e aqui nos valemos da figura híbrida do meio homem meio touro para referirmo-nos ao texto ficcional, ao mesmo tempo fruto da inventividade de um sujeito, mas também testemunho dos modos e costumes de uma época. Parece-nos assustador, a primeira vista, mas percorrendo o caminho que nosso fio aponta, estamos seguros de que não nos perderemos. Dessa forma, parte fundamental é embasar a pesquisa em conceitos que nortearam nossa análise. São eles: representação e representações coletivas (sociais), cotidiano, imaginário, memória coletiva e discurso. O uso da literatura como fonte histórica não é novo, como aponta Carlo Ginzburg (2007), mas é inegável que o número considerável de estudos que a utilizam como fonte foi motivado pelo campo da Nova História Cultural que ofereceu um suporte importante para que tais estudos fossem levados a termo. Em A História Nova (1993), Jacques Le Goff defende que o termo “Nova História” remete-se a uma continuidade da tradição dos Annales de trabalhar com novas perspectivas metodológicas, temáticas e problemas. Além dessa tendência a uma história total, a Nova História Cultural teria como objeto as práticas simbólicas da sociedade, isso influenciado por antropólogos, críticos literários e filósofos que, resumindo suas perspectivas, apontam para uma compreensão das relações econômicas e sociais dentro dos campos das produções culturais. Essa percepção do simbólico toca também a noção que se tem de documento, antes vistos como potentados da verdade histórica, hoje são entendidos como objetos simbólicos com significados diferentes que variam conforme as questões e os métodos utilizados pelos historiadores. Passemos então à questão do “cultural”. Percebemos que o conceito cultural, derivado de cultura, deu a essa corrente historiográfica muitas possibilidades de abordagem histórica, não poderia ser diferente uma vez que a concepção de “cultura” e a definição do que é seja tão abrangente quanto as possibilidades de estudos culturais. Portanto, compreender o que a História Cultural entende por cultura é essencial. 13 Procurando compreender o que é cultural, é impossível não se voltar para o debate exposto em Ideologia: uma introdução (2000) de Terry Eagleton. Vejamos o que esse teórico tem a nos dizer: Se a palavra “cultura” guarda em si os resquícios de uma transição histórica de grande importância, ela também codifica várias questões filosóficas fundamentais. Neste único termo, entram indistintamente em foco questões de liberdade e determinismo, o fazer e o sofrer, mudança e identidade, o dado e o criado. Se a cultura significa cultivo, um cuidar, que é ativo daquilo que cresce naturalmente, o termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz. É uma noção realista no sentido epistemológico, já que implica a existência de uma matéria-prima além de nós, mas também uma dimensão construtivista, já que essa matéria-prima precisa ser elaborada numa forma humanamente significativa. (EAGLETON, 2000, p. 11). Eagleton demonstra-nos que existem diferentes significados para a palavra cultura. Para tanto, historiciza o termo cujo significado germinal acompanhou o êxodo rural para a cidade. Inicialmente estava ligado ao campo num processo relacionado ao aspecto material e laboral para depois relacionar-se com as questões do espírito. Nessa relação da cultura com a natureza, Eagleton nos diz que a natureza estabelece uma continuidade do homem com o ambiente, ao passo que a cultura realça a diferença entre eles. O homem, embora um ente da natureza, possui a capacidade de se automodelar, o que lhe possibilita uma passagem do natural para o artificial. Um exemplo é a aquisição da linguagem. Naturalmente, o homem não nasce articulando palavras e formando enunciados, ele possui um aparelho fonador que é trabalhando culturalmente até que uma língua se desenvolva, esse aperfeiçoamento é possível porque ele é inserido numa cultura com a qual interage. Logo, percebemos que a cultura não diz respeito ao indivíduo, mas funciona em grupo, da interação dos membros desse grupo. Percebemos que essa ideia de cultura difere de uma das variantes mais comuns que relaciona cultura ao cultivo das ciências e das artes que redunda no termo “culto”. Sendo assim, a cultura seria privilégio de uma parcela pequena da sociedade, pois o termo culto, ele também tem a sua historicidade, e podemos entender que surgiu junto com a sociedade do Renascimento que primava pelo cultivo da “Razão”, numa visão racionalista e que hoje é contestada. O que podemos inferir, a partir das considerações de Eagleton, é que estamos integrados à cultura do nosso grupo desde o nascimento. À medida que interagimos com a linguagem e as práticas simbólicas do nosso grupo social, nos afastamos do estado 14 natural o que faz com que a nossa existência torne-se dependente das relações culturais. Por último, a cultura não é uma sentença fechada, ela está em constante mudança a partir do momento que há trocas culturais, ainda mais no mundo contemporâneo dito “mundo sem fronteiras”. Assim, tentando definir um termo de cultura que justifique seu uso para determinar os objetos de estudo da Nova História Cultural, poderíamos dizer que essa corrente historiográfica entende por cultural: todas as práticas, simbólicas, imagéticas que os indivíduos de uma dada sociedade compartilham, o fazer, o agir, a produção e a linguagem que compõe a dinâmica da vida social. Todas as ações que os indivíduos partilham com os outros do seu grupo e que caracterizam sua identidade diante de outros grupos, que pode sofrer alterações na medida em que ocorre uma interação entre eles. O cultural elenca o imaginário e a representação como formas de ver o mundo. A partir do que entendemos por cultural podemos passar agora para a noção de imaginário, percebendo que na nossa perspectiva não se refere a algo fictício, falso. Aqui o imaginário é entendido como uma matriz que gera as práticas sociais e os comportamentos humanos, dando não apenas coesão, mas uma explicação para a realidade. É, portanto, produto de uma dada cultura. O imaginário justifica desde atitudes diante da morte até a constituição da sociedade, como sugere Cornelius Castoriadis (1991). Para esse filósofo, em A Instituição imaginária da sociedade, a realidade (leia-se realidade histórica) de cada sociedade é uma criação e, em consequência disto, ele rejeita a perspectiva de que exista uma definição apriore para o ser humano e para a sociedade através de determinações já instituídas na realidade. Na perspectiva de Castoriadis, a realidade histórica é fruto do embate entre o imaginário social instituído e o imaginário social instituinte. O homem é um ser que procura sentido e para satisfazer esta necessidade de sentido, cria o sentido. Assim, a sociedade vale-se do imaginário para adquirir um significado. Conforme Castoriadis: O imaginário de que falo não é imagem de. É criação incessante e essencialmente indeterminada (social, histórica e psíquica) de figurar (formas/imagens), a partir das quais somente é possível falar-se de “alguma coisa a”. Aquilo que denominamos “realidade” e “racionalidade” são seus produtos (CASTORIADIS, 1982, p. 13). Dessa forma, é possível estabelecer uma relação entre imaginário e representação em que a representação é produto de um imaginário, é a forma como ele 15 se expressa. Em A Nova História Cultural, entre práticas e representações (1990), Roger Chartier determina que o objetivo da Nova História Cultural é identificar como “em diferentes lugares e momentos uma realidade social é construída, pensada, dada a ler (1990, p.16). A partir dessa ideia, podemos dizer que as representações são as percepções do social a partir de um indivíduo ou de um grupo. Como trabalhamos com a noção de representações coletivas, compreendemos essas percepções como relações de forças, pois, ainda conforme Chartier, as representações nunca são neutras de sentido, e portanto, variam de acordo com o grupo que as produzem, muito embora “aspirem à universalidade, são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam” e, por fim, “produzem estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade, uma deferência e mesmo a legitimar escolhas” (1990, p. 17). As representações coletivas seriam, portanto, o aparato que permitiria uma negociação entre as categorias que no jogo social estão em lados antípodas, muitas vezes ao longo da historiografia, enquadrados nos conceitos de dominadores e dominados, e que deixa entrever a sujeição de um grupo ao outro. No entanto, o que Chartier quer mostrar, é que não existe um enrijecimento nessa dicotomização, que as relações entre os grupos socialmente antípodas são intercambiáveis, negociáveis, muito embora o grupo dominante tente impor sua representação do mundo, o grupo a quem ela é direcionada e imposta a reformula, recria e vive sua própria interpretação. É no embalo da negociação entre os grupos antípodas que percebemos o papel importante do conceito de cotidiano traçado por Michel de Certeau, em A invenção do cotidiano. Quando Certeau aponta o cotidiano como o lugar da mudança, relemos como o lugar da negociação. Certeau não apresenta um conceito claro de cotidiano, mas oferece um suporte teórico e metodológico de onde podemos extrair uma ideia de cotidiano como o lugar da invenção realizada pelo sujeito ordinário e em que o homem comum adquire um papel ativo no qual interpreta o mundo que o circunscreve (geralmente baseado na norma e na vigilância), forjando uma liberdade quase microscópica e uma resistência, por vezes, pouco visível, mas, que denotam uma subversão às normas políticas e socialmente instituídas, e algumas vezes obtendo como resultado a demolição de discursos morais, políticos, religiosos que não apenas impõem como tentam naturalizar um estado de conformismo diante da realidade por eles forjada. É nessa perspectiva que Certeau fala em “artes de fazer”, pois na esfera do cotidiano essa realidade é reinventada permitindo ao homem comum fazer sua própria leitura do mundo e do seu papel na sociedade (CERTEAU, 1998, p. 38-41). 16 Tal cotidiano, lugar da invenção, é nosso objeto quando pretendemos investigar de que forma se deu a marginalização dos homens libertos pelo advento da República, no Brasil. Para tanto, utilizamos, como já dissemos, a produção literária de Nascimento Moraes. Portanto, é nos interstícios da narrativa ficcional que pretendemos alcançar nosso objetivo. Entre nosso objeto e nossa fonte temos como intermediário o discurso, organizado por um indivíduo historicamente localizado e também pelo regime de historicidade ao qual estava sujeito, detentor de uma memória coletiva. Antes de proceder aos esclarecimentos sobre como o discurso aponta como intermediador entre o objeto e o texto histórico (nossa dissertação desenvolvida) justificamos o motivo de percebermos Nascimento Moraes como portador de uma memória coletiva. Em Memória e identidade social, Michel Pollak define memória coletiva como Acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que,no fim das contas, é quase impossível que ele consiga saber se participou ou não... É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase herdada (POLLAK, 1992, p. 201). Nascimento Moraes não se nega o lugar social de homem de cor na temática dos seus textos, desde os literários até os artigos de opinião, ao menos nas duas primeiras décadas do século XX, mostra-se como tributário da memória que foi dos seus pais, ambos negros e escravos, o pai liberto pela atuação na Guerra do Paraguai, a mãe pela Lei Áurea, possivelmente de outros parentes, amigos, não por outro motivo um dos temas preferidos de suas tramas eram os tempos da escravidão e do pós Abolição, desde o cotidiano dos escravos até as práticas da elite escravocrata. Outro ponto que nos reforça essa percepção é o fato de geralmente o narrador de suas ficções contar o que ouviu do pai ou da mãe em tom perceptivelmente autobiográfico. Agora, elucidados os conceitos que permeiam nossa pesquisa, detemo-nos na questão dos textos ficcionais e sua validade enquanto fonte histórica, tal viabilidade se dá por entendermos o texto enquanto discurso. Todas as questões inerentes ao discurso são de suma importância para que não vejamos literatura apenas como mera invenção, mas como uma possibilidade de verdade, um resquício de um tempo perdido e que tentamos compreender a partir dos seus vestígios. 17 Atentem que não estamos usando texto e discurso como equivalentes. Guiados pelas concepções teóricas da Análise do Discurso (AD), especificamente em Mikhail Bakhtin e Dominique Maingueneau, foi possível traçar um percurso para operacionalizar uma análise de nossas fontes. Texto e discurso não são a mesma coisa, o discurso é uma parte constituinte do texto que, conforme a AD, “O texto se constitui de discursos divergentes cujas fronteiras se intersectam; o texto é heterogêneo, não é possível definir um dos discursos sem remeter ao outro” (MUSSALIM, 2000, p. 124). A questão que realmente importa para quem deseja analisar o sentido de um texto é perceber as relações que mantém os diversos discursos que o constituem, pois eles têm parte de seu sentido determinado pelo contexto histórico, ou contexto da enunciação, o que tira qualquer não intencionalidade de um discurso e, por sua vez, revela com quem o locutor está dialogando, seja explícito ou implicitamente, o sentido dos textos só se revelam quando aceitamos que eles são “historicamente construídos” (MUSSALIM, 2000, p. 123). Dessa forma, percebemos nos textos de Nascimento Moraes, que tratam do pós Abolição e Primeira República, o discurso racial, civilizador, eugênico, modernizador, mesmo quando aparentemente não trazem em seu bojo algum desses discursos, a enunciação remete-nos a eles, ocorre quando lemos algum conto com a temática educacional, os personagens na maioria negros e libertos, ou descendentes de escravos são sempre dotados de uma genuína inteligência, que “trabalhada” pela educação formal possibilita-lhes ascensão social, o que aponta para o discurso que anunciava a raça negra como geneticamente incapaz e propensa à demência, em nenhum momento, em nível de exemplo, no conto A vida de um homem de bem, dedica uma linha sobre o discurso racial que negativava o homem negro, por outro lado ele está implícito, bem como, uns mais outros menos explícitos que fazem referência à moralização do trabalho, dos costumes etc. Percebemos, portanto, que o texto se constrói por uma “relação de forças” entre os discursos que é a chamada formação ideológica, que denota por sua vez a forma como se relacionam as classes em conflito. A formação ideológica, por sua vez, remete-nos à formação discursiva, “lugar onde se articulam discurso e ideologia” (MUSSALIM, 2000, p. 125). A formação discursiva revela o caráter heterogêneo dos discursos, o que nos leva à concepção de dialogismo, definida por Mikhail Bakhtin e que não devemos confundir com um diálogo “face a face”, mas a maneira como um “discurso dialoga internamente com outros discursos”, Fernanda Mussalim, ao remeter às análises de Bakhtin diz que 18 O discurso, cujo dialogismo se orienta para outros discursos e para o outro da interlocução, instaura-se numa perspectiva plurivalente de sentidos, bem como a própria palavra que, pelo fato de ser atravessada de sentidos constituídos historicamente, não é monológica, não é neutra, mas atravessada pelos discursos nos quais viveu sua existência socialmente sustentada (MUSSALIM, 2000, p. 127). Por todas essas características constitutivas do texto, até aqui apontadas, vai ficando cada vez mais claro como é possível ao historiador utilizá-lo, mesmo sendo de ficção, porque ele está circunscrito em um regime de historicidade e todos os discursos que se relacionam no seu interior apontam para os sentidos e as ideologias do seu contexto de produção. Mas, ainda é preciso operacionalizar como surgem esses discursos no interior de um dado texto, é nessa perspectiva que, em Gênese dos discursos, Dominique Mangueneau trabalha com a ideia de que o interdiscurso precede os discursos. O linguista francês entende por interdiscurso, cujo significado é elucidado através da “tríade universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo” (MANGUENEAU, 2008, p. 33). Define universo discursivo como o conjunto de formações discursivas que interagem em uma conjuntura, esse conceito é importante porque é a partir dele que são recortados os campos discursivos, formações discursivas que se limitam e se encontram em concorrência, por fim o espaço discursivo como subconjunto formado por pelo menos duas formações discursivas que supostamente mantém relações privilegiadas para a compreensão do discurso considerado (MANGUENEAU, 2008, p. 33-35). O que se conclui disso é que um discurso não tem seu sentido explícito ou implícito em si mesmo, mas a partir de relação que mantém com outros discursos dentro de um universo e que apontam para um outro do discurso, aquele com que se mantém o diálogo. Dessa forma, Mangueneau afirma que há um primado do interdiscurso (2008, p. 35). Esse outro é definido como Aquele que faz sistematicamente falta a um discurso e lhe permite encerrar-se em um todo. É aquela parte de sentido que foi necessário o discurso sacrificar para constituir a própria identidade. Disso decorre o caráter essencialmente dialógico de todo enunciado do discurso, a impossibilidade de dissociar a interação dos discursos do funcionamento intradiscursivo. Essa imbricação do Mesmo e do Outro retira à coerência semântica das formações discursivas todo caráter de “essência”, cuja inscrição na história seria acessória; não é dela que a formação discursiva tira o princípio de sua unidade, mas de um conflito regulado (MANGUENEAU, 2008, p. 37). 19 Justamente por não entendermos a obra ficcional como criação, fruto de uma iluminação, mas o produto de uma dada época, que a aceitamos como fonte de investigação. Ao tratar a literatura como fonte, a história impõe-lhe um interrogatório e as respostas válidas e aceitáveis para a pesquisa histórica advém justamente da especificidade do texto ficcional. Como sublinhou Dominique Maingueneau, o discurso é o lugar por excelência da metáfora que aqui significa tomada de uma palavra por outra, dessa forma, no texto literário ela funciona como uma forma de interpretação do mundo, que se apresenta de forma cifrada. Nessa cifra podemos vislumbrar o não visto, por exemplo, o imaginário, as sensibilidades de uma época. Nesse sentido, é interessante citar o que nos diz Pesavento (2006) sobre as verdades da literatura: A verdade da ficção literária não está, pois, em revelar a existência real de personagens e fatos narrados, mas em possibilitar a leitura das questões em jogo numa temporalidade dada. Ou seja, houve uma troca substantiva, pois para o historiador que se volta para a literatura o que conta na leitura do texto não é o seu valor de documento, testemunha de verdade ou autenticidade do fato, mas o seu valor de problema. O texto literário revela e insinua as verdades da representação ou do simbólico através de fatos criados pela ficção. (PESAVENTO, 2006, p. 8). Por fim, para entendermos o sentido do romance Vencidos e degenerados, o conceito de polifonia foi necessário. Cunhado por Bakhtin em Problemas da Poética em Dostoiévski (1981), podemos entender polifonia como a multiplicidade de vozes dos personagens que se sobressaem à do autor, em suas palavras, A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de suas vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, a luz da consciência uma do autor, se desenvolve nos seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimentos, mantendo a sua imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoiévski suas personagens principais são em realidade, não apenas objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante (BAKHTIN, 1981, p. 17). A principal consequência dessa multiplicidade de vozes é que, na trama, os problemas e contradições não se solucionam, não possuem um desfecho dialético, mas 20 se mantém como uma sentença aberta. Percebemos essa característica no enredo de Vencidos e degenerados. De modo algum pretendemos equiparar os dois autores, sabemos que Bakhtin refere-se ao conjunto da obra dostoievskiana, ao passo que Nascimento Moraes nem se quer firmou-se como romancista, era de fato jornalista, que na juventude escreveu um romance e por vezes publicava alguma crônica ou conto. Sabemos também que Nascimento Moraes foi leitor de Dostoiévski (BARROS, 2006, p. 122) e não é impossível imaginar que ele possa ter se inspirado no modelo polifônico, não por uma consciência do mesmo, poderia ser por mimetismo, fato bastante comum em escritores aspirantes. A questão é que, de fato, os personagens na trama de Vencidos e degenerados não chegam a tecer uma rede de relações da qual necessita sua circulação ao longo da narrativa, não há uma interdependência e, portanto, não necessitam que a consciência do autor intercruze suas histórias para que se chegue a uma apoteose, aliás, não existe o desfecho da trama, não sabemos o destino da maioria dos personagens, suas odisseias não se solucionam, o romance termina, mas não as questões por ele suscitadas. Feitos esses esclarecimentos, o objetivo de nossa pesquisa é investigar de que forma os personagens do romance Vencidos e Degenerados, de crônicas e contos assinados por Nascimento Moraes ou um pseudônimo, alegorizam a ausência de um projeto político da inserção dos pobres na sociedade que não era mais aristocrática nem ainda industrializada naqueles primeiros anos da República. Buscamos usar a fonte literária como indício para investigar política, economia e cultura na relação do Estado Brasileiro e o seu povo. A literatura, nesse sentido, como pensamos ter deixado claro, é indispensável quando desejamos alcançar o imaginário e as práticas dos diversos sujeitos sociais porque ela nos permite rastrear nas representações das suas formações discursivas, ao longo da narrativa, práticas culturais e imaginários de uma época não como aquilo que foi de fato, mas o que poderia ter sido, ou, como na escolha que fizemos, na forma como um sujeito específico - que aqui chamamos de autor - pensou a sua sociedade e a representou na sua obra. É necessário esclarecer que algumas problemáticas se apresentaram no momento da seleção de nossas fontes. Desde o pré-projeto dessa pesquisa, intentamos trabalhar com os contos, assinados pelo pseudônimo Valério Santiago, aos quais tivemos um primeiro contato por meio da edição de 1982, organizado por Moraes Filho e publicados pela editora SECMA. Na época, ano de 2007, não nos preocupamos em localizar a publicação original dos mesmos, mas inferimos, pelo conteúdo remeter-nos ao período do pós-Abolição, que haviam sido publicados naqueles primeiros anos da República, 21 qual não foi nossa surpresa ao descobrirmos que a publicação dos contos ocorreu somente na década de 1940, dentro de uma revista que estava particularmente atrelada ao aparelho estatal, seu conteúdo fazia muitas homenagens aos políticos da época, tanto em artigos de opinião quanto na participação ao público leitor do dia a dia desses políticos, tratava-se da Revista Athenas. No entanto, encontramos contos com claro teor de crítica social, pois seus discursos referiam-se ao preconceito racial, um projeto de inclusão dos homens de cor por meio da educação, quando a educação, como veremos mais adiante, estava comprometida com o mercado de trabalho que necessitava de mão de obra para os projetos capitalistas da época. Outro problema que surgiu foi quando partimos à localização dos contos na dita revista, acreditando haver alguma referência do momento da escrita, dos cerca de 15 exemplares que encontramos no ano de 2007 apenas cinco restaram no acervo de obras raras da Biblioteca Pública Benedito Leite, possivelmente o processo de transposição em detrimento da reforma, que durou quase cinco anos, teve grande participação no sumiço dos exemplares, mas é apenas uma hipótese haja visto que os funcionários da biblioteca não souberam informar, há uma esperança de que as revistas estejam em tratamento e possam vir a ser digitalizadas, mas também há a possibilidade que tenham se perdido para sempre. Dentre os contos que selecionamos dessa coletânea, apenas A negra Benedita foi localizado entre os cinco exemplares restantes da Revista Athenas, os outros dois, Desmoronamento e A vida de um homem de bem encontram-se desprovidos de sua data de publicação primeira. Entretanto, insistimos em utilizar os contos, malgrado sua data de publicação, pois todo o seu texto remete-nos, como já dissemos, ao contexto da Primeira República. A negra Benedita fala do pós Abolição; em A vida de um homem de bem o narrador anuncia que os fatos que relata ocorreram a partir do ano de 1921; bem como Desmoronamento faz referência a operários, e deixa outras pistas que nos convencem tratar-se ainda da primeira década do século XX. O tom memorialístico dos dois primeiros contos e o fato do narrador informar que alguns fatos foram-lhes passados por seus pais ajudam a reforçar nossa hipótese que de fato foram escritos ainda na Primeira República. Além disso, o nome Valério Santiago já era citado em jornais, no ano de 1910, quando se deu a polêmica literária entre Nascimento Moraes e Antonio Lobo, cujo tema principal era o discurso racial e a eugenia, também constantes nos contos supracitados. Justamente por esses textos remeter-nos ao contexto histórico do pós Abolição e Primeira República que acreditamos não termos incorrido em uma falha metodológica, na verdade adotamos a postura do investigador que segue a pista da figura perdida em pequenos rastros, a 22 formação discursiva presente nos textos trabalhados apontam como algo muito maior que rastros, aparecem mais como verdadeiros sinalizadores de sua temporalidade de escrita. Sobre sua publicação na década de 40, acreditamos que o teor popular desses contos tenha sido o motivo, o país ainda vivia sob a política do Estado Novo cujas prerrogativas se baseavam na valorização do trabalhador, da indústria nacional, o carisma de caráter populista, quando os contos colocam em questão o papel ativo do homem de cor no mundo do trabalho e os hábitos reprováveis das elites, percebemos que há um público leitor, que apreciaria muito esse conteúdo. Karina Baptista (2003), em seu estudo sobre as memórias de homens de cor sobre o pós Abolição, no Rio de Janeiro, recolhe nos depoimentos (pois se trata de uma pesquisa baseada no testemunho oral) um grande afeto dos homens de cor por Getúlio Vargas, apontado ora como “o pai dos pobres” ou como aquele que “liberta realmente da escravidão” (BAPTISTA, 2003, p. 14). Assim, nossas fontes constituem-se do romance, Vencidos e degenerados, publicado em 1915, dos três contos já citados, e ainda de algumas crônicas e artigos publicados nos jornais A Campanha (no ano de 1902), A Imprensa (anos de 1907), ainda o jornal Pacotilha (ano de 1904), de onde extraímos um conto de Raul Astolfo Marques para nos ajudar a compor o universo representacional em torno do episódio da peste bubônica em São Luís. A leitura não apenas dos contos e crônicas nesses jornais, mas da própria estrutura como espaço ocupado por artigos, anúncios, reclamações, folhetins, classificados ajudou a entendermos um pouco das representações da época e do seu cotidiano, uma vez que eram jornais noticiosos e traziam várias informações sobre o dia a dia dos ludovicenses. Dados esses esclarecimentos, nosso trabalho subdivide-se em três macrocapítulos, subcaptulados. No primeiro capítulo, tentamos traçar a trajetória biográfica do nosso intelectual a partir do que propõe Jean François Sirinelli, em seu texto Os intelectuais (2003). Este autor nos direciona a investigar a vida e ação de um intelectual tendo como guia três conceitos: itinerário, geração e sociabilidade. Entende o intelectual como um sujeito criador e mediador entre a cultura e a sociedade. No intercurso desses conceitos temos a ideia de engajamento, ou seja, ao mesmo tempo em que o intelectual sugere opções à sociedade ele objetiva um lugar no centro de decisões. O intelectual é antes de tudo alguém que está atento ao seu tempo, e seu papel torna-se importante para a nossa pesquisa pelas representações que ele faz desse tempo na sua produção literária. Assim, sua trajetória é tecida a partir da participação no grupo da 23 Oficina dos Novos e Renascença Literária, sua atuação em jornais e como educador, tanto particular quanto na instituição pública do Liceu Maranhense. Tal trajetória, assim concebida, elucida também o projeto intelectual de Nascimento Moraes naquele período elencando os temas dos discursos racial, civilizador, modernizador e educacional como norteadores do seu pensamento, bem como as polêmicas nas quais se envolveu. O segundo capítulo dá início à análise do nosso objeto, partindo das experiências de liberdade dos homens de cor no universo ficcional de Nascimento Moraes, sua relação com uma memória coletiva de egressos da escravidão e a problemática da inserção desses homens no mercado de trabalho, desde as saídas buscadas ou apontadas pelas instâncias políticas até as maneiras como se configurou o mundo do trabalho em São Luís. O terceiro capítulo trata especificamente da Primeira República e os discursos mais debatidos: modernização, urbanização, higiene e saúde públicas, civilização como sinônimo de refinamento, cidadania e educação. Neste vislumbramos as representações e os imaginários que nos apontam os textos de Nascimento Moraes, é nesta parte que encontramos as “artes de fazer” que permitiam aos homens de cor sobreviver naquele universo, que, como bem ressalta Murilo de Carvalho formulava uma imagem negativa da nação brasileira porque já não se podiam negar sua heterogeneidade étnica. 24 1. Trajetória intelectual de José Nascimento Moraes José Nascimento Moraes nasceu em 19 de março de 1882 em São Luís, Maranhão. Filho de um escravo que lutou na Guerra do Paraguai, sendo depois servente e terminando seus dias como porteiro do Tesouro do Estado. Sua mãe era uma negra liberta que trabalhava como cozinheira e lavadeira para os brancos (BRAS, 2008, p. 24). Apesar de sua origem humilde, Nascimento Moraes teve acesso a uma boa educação, dentro dos padrões da época, estudando no Liceu Maranhense, o mais conceituado centro de formação educacional do Maranhão. Nesta escola estudaram jovens da elite ludovicense e lecionaram grandes figuras como o português Manoel Bithencourt, considerado um grande incentivador da juventude naquele período (MARTINS, 2006, p. 59). Na época em que Nascimento Moraes adentrou no Liceu, a grade curricular era composta das seguintes disciplinas: Língua Portuguesa, Latina, Grega, Inglesa, Francesa e Alemã; Matemática, Astrologia, Física, Química, Geografia, Mineralogia, Geologia, Meteorologia, Biologia, História Universal, História da Filosofia, Desenho, Música, Ginástica e Esgrima (ANDRADE, 1982, p. 52), Adriana Gama de Araújo informa que Nascimento Moraes também estudou matemática na sua passagem pela Academia Militar, no entanto a data não é informada (ARAÚJO, 2011, p. 16). Manoel Barros Martins informa que, influenciado pelo professor Manoel Bitencourt, Nascimento Moraes leu principalmente os escritores do século XIX, dentre eles: Gógol, Tolstói, Dostoiévski, Émile Zola, Spencer, Comte e Start Mill (MARTINS, 2006, p. 122). Nascimento Moraes concluiu as cadeiras do Liceu aos 18 anos de idade. Tudo indica que ele foi diretamente para a redação dos jornais, principalmente por ter sido Manoel Bithencout quem lhe conseguiu uma colocação e por ter participado dos grupos de leitura e discussão promovidos por aquele professor. (ARAÚJO, 2011, p. 17). O jovem Nascimento Moraes inicia sua carreira jornalística a partir de 1901 no jornal A Campanha, e fizera parte da juventude da Oficina dos Novos em 1900, sendo o termo “Novos Atenienses” usado pelo intelectual maranhense Antonio Lobo (18701916) para se referir ao grupo de jovens intelectuais que tentaram alavancar os ânimos maranhenses com uma rejuvenescência literária logo no início do século XX e cujo objetivo era cultuar personalidades do passado, orientar e incentivar novos escritores. Quando Antonio Lobo, principal fundador da Academia Maranhense de Letras, 25 conclamou a juventude maranhense da cidade de São Luís a vencer o marasmo intelectual em que se encontrava, seu objetivo era restaurar o brilho da auto proclamada Atenas Brasileira. A atuação desse grupo foi de tal importância que acabou por entrar para a história do Maranhão alcunhado de “neo-atenienses”. Conforme Manoel Barros Martins, os membros dessa geração permaneceram no Maranhão e buscaram acima de tudo “inventar um Maranhão reatado a suas antigas tradições inventadas de fausto econômico, de proeminência política, de requinte social e de cosmopolitismo cultural, de onde figurava esmerado beletrismo” (MARTINS, 2006, p. 59). Esse grupo de intelectuais, afirma Manoel Martins, pensava o Maranhão de forma a buscar explicações dos mecanismos sociais bem como consolidar uma identidade local. Essa identidade seria formada a partir de símbolos que estariam dados na trajetória dada do Maranhão, especialmente os grandes expoentes do Grupo Maranhense, grupo conhecido como o responsável pela consolidação da ideia-imagem da Atenas Brasileira por sua atuação brilhante no cenário cultural e político em âmbito nacional na primeira metade do século XIX (MARTINS, 2006, p. 115). Entre seus expoentes mais significativos figuram João Lisboa (1812-1863), Gonçalves Dias (18231864), Odorico Mendes (1799-1864) e Sotero dos Reis (1800-1871). No entanto, esses símbolos seriam ressignificados de forma a adquirir um “sentido novo”: Para esses letrados, o Maranhão deveria ser repensado desde suas entranhas mais profundas; nesse sentido, a eles competia realizar o mapeamento dos entraves paralisantes da vida ativa regional e indicar alguma projeção de futuro que engendrasse uma realidade estadual renovada, revigorada pelo influxo de tempos fáusticos, tomados como referências imorredouras (MARTINS, 2006, p. 56). Essa intenção mesclava a nostalgia provocada pela Ideologia da Decadência (aprofundaremos seu significado mais adiante) com as conjunturas locais. Vivia-se um período de crise e indefinição. Uma sociedade ancorada no alicerce da escravidão via-se sem seu motor de sustentação, ainda mais quando no limiar do novo século isso se somava à mudança no quadro político que era a então Primeira República (1889-1930). É dessa forma que intelectuais buscam o passado, consagrado por eles mesmos como uma época de prosperidade econômica de grande e rico brilho intelectual, para se formatar uma identidade que servisse ao ego da elite, principalmente. E, conforme Martins, no entusiasmo que provocou na juventude, sobretudo, foram eficazes porque 26 promoveram momentos em que os jovens podiam atuar escrevendo versos, reuniões em clubes para discutir os romances em voga (MARTINS, 2006, p. 115). Nascimento Moraes, no entanto, acaba rompendo com o grupo e funda A Renascença Literária, grêmio juvenil que liderado por ele desenvolve uma polêmica literária com a Oficina dos Novos. Tal polêmica se deu através da troca de artigos ferinos entre os dois líderes, Antonio Lobo e Nascimento Moraes, em colunas dos jornais que na época escreviam Correio da Tarde e A Pacotilha e, em 1910 foram organizados no livro Puxos e Repuxos. Um dos motivos, segundo as palavras do próprio Nascimento Moraes, foi a tentativa de Antonio Lobo e seus pares desejarem dominar o campo intelectual maranhense, lugar onde homens de cor, como era o caso de Nascimento Moraes, não seriam bem-vindos. Nascimento Moraes acusa Antonio Lobo de uma perseguição contra a sua pessoa motivada principalmente pelo preconceito racial. Adiante retomaremos este assunto. No ano de 1914, Nascimento Moraes concorre com os irmãos Antonio e Raimundo Lopes1 ao cargo para professor titular de Geografia do Liceu Maranhense e vence os já renomados irmãos. Nascimento Moraes escreve apenas um romance: Vencidos e Degenerados, publicado em 1915, mas atuou e ajudou ao longo de sua vida em diversos jornais locais onde ainda se encontra a grande parte do seu trabalho. Foi reconhecido e admirado por sua atuação jornalística e por seu trabalho como educador da mocidade maranhense. Além do romance Vencidos e degenerados (1915) e da coletânea Puxos e Repuxos (1910) foram feitas duas publicações com as obras de Nascimento Moraes. São elas: Neurose do Medo (1923), publicada pelo próprio autor, composta de artigos jornalísticos onde eram feitas ferrenhas críticas ao então governador Raul Machado; e Contos de Valério Santiago (1989), obra póstuma organizada por Moraes Filho que reúne contos publicados na década de 1940, pela Revista Athenas. Nesses contos, o pseudônimo se remete ao período posterior à Abolição para tratar sobre o destino dos libertos, além de eventos e personagens do cotidiano da Primeira República em São Luís, tentamos achar um sentido para o pseudônimo, inferindo a partir dos seus textos tratar-se de uma identificação com uma memória coletiva dos anos que antecederam e 1 Raimundo Lopes (1894-1941) é autor do livro O Torrão Maranhense, de 1916. Era funcionário do Museu Nacional. Seu irmão, Antonio Lopes, foi uma figura de destaque na primeira metade do século XX. Fundou e dirigiu muitas instituições, entre elas a Academia maranhense de Cultura Popular. Foi um dos pioneiros no estudo da cultura popular, destacamos o livro Presença do Romanceiro: versão maranhense. 27 sucederam a Abolição; no entanto, ao depararmo-nos com Valério Santiago jornalista, editor do Pacotilha na década de 1930, a inferência perdeu o sentido. Nascimento Moraes pertenceu à Academia Maranhense de Letras, onde foi admitido no ano de 1935 e que chegou a ser presidente por três vezes, nos anos de 1941, 1946 e 1947. Nesta academia, ele foi secretário, tesoureiro, ocupou a cadeira onze, cujo patrono é João Lisboa. Nascimento Moraes também foi redator da revista da Academia, a Revista Athenas (1941). Não podemos deixar de mencionar que Nascimento Moraes se casou com Ana Augusta Mendes Moraes, que lhe deu sete filhos. Dentre eles, dois seguiram os passos do pai: Paulo Nascimento Moraes e José do Nascimento Moraes Filho foram considerados pelos pares como jornalistas e poetas importantes (MARTINS, 2002). Moraes Filho, numa entrevista (1997), disse que seu pai, mesmo aposentado, continuava lecionando e escrevendo nos jornais O Dia e O Imparcial até que seus escritos deixaram de ser publicados por não apresentarem mais nexo (REGO, 1997). Em 22 de fevereiro de 1958, aos 76 anos, faleceu Nascimento Moraes, sem jamais ter saído do Maranhão. A Tradição Literária Ateniense: da Oficina dos Novos à carreira jornalística Nascimento Moraes foi uma figura de valor intelectual reconhecida em sua terra natal. Em todos os depoimentos que encontramos durante nossas pesquisas deparamonos com a mesma imagem com a qual ele foi pintado por seus conterrâneos. Citamos alguns desses depoimentos. Antonio Vieira da Silva, referindo-se a Nascimento Moraes, afirma, Vencendo as naturais restrições de um meio acanhado pelas discriminações de origem familiar e preconceitos diversos, teve o cronista de costumes, que muito bem saberia sê-lo em Vencidos e degenerados, que retemperar forças e concentrar as energias todas de sua vigorosa personalidade para impor-se e vencer... (VIEIRA DA SILVA, 1949, p. 81-82). Vieira Filho, ao falar da rua cujo nome foi uma homenagem ao jornalista: ... Professor emérito de português e jornalista de cálamo vibrante, o velho Moraes levou uma vida agitada, sempre metida em lutas políticas e polêmicas literárias. 28 Na cátedra ou no jornalismo era o combativo de sempre, esgrimindo, em prosa amena, argumentação cerrada e fulminante que surpreendia o adversário (VIEIRA FILHO, 1962, p. 87). Erasmo Dias, em um artigo quando da morte de Moraes: Aos estudiosos da evolução social do Maranhão, a figura de Nascimento Moraes, após liderar durante quase meio século a vida intelectual provinciana, se projeta com os nítidos contornos de um símbolo de ascensão do proletariado urbano, aos domínios da inteligência e da cultura, até então privilégios dos senhores de terra do interior e dos comendadores da Praia Grande, já através dos seus licenciados vindos de Coimbra, já pelos seus bacharéis formados no Recife e em São Paulo. (DIAS, in: Jornal O Dia. São Luís. 25/02/1958). O que tornava Nascimento Moraes motivo de espanto e admiração era o fato de, apesar da origem humilde, da cor da pele, alcançar um lugar privilegiado no panorama da intelectualidade maranhense, obtendo tal posição com o uso da pena e a firmeza de defender suas ideias. Nascimento Moraes foi produto de uma época em que a juventude de São Luís buscava reviver os momentos de glória do Grupo Maranhense, e cujas figuras ilustres da época emigravam para o centro intelectual do país. Esta juventude organizava-se em grêmios, fundava jornais, refugiava-se num passado mítico para levantar o moral baixo por conta da decadência da economia agroexportadora pela qual passava a província. É nesse sentido que Manoel Martins alcunha os intelectuais desse período de “Operários da Saudade”, porque buscavam “uma afirmação identitária” que pudesse “construir o futuro”, mas sempre respaldados no passado. E mais: Para eles, a situação reinante era a convocação incisiva para que interviessem concretamente naquela realidade carcomida, visando apontar soluções para o presente, capazes de projetar um futuro glorioso, tendo como artefato fundamental o passado mitológico da Atenas Brasileira (MARTINS, 2006, p. 118). A economia desenvolvida a partir da primeira metade do século XVIII possibilitou a fluorescência cultural na província do Maranhão. Conforme o relato de alguns viajantes, no século XIX, ao aportarem no cais de São Luís, o que se via era uma cidade de aspecto europeu. A cidade europeizou-se à custa do capital gerado pela lavoura agroexportadora do arroz e do algodão. O lucro com a exportação desses produtos também favoreceu o comércio dando origem a uma rica aristocracia comercial. 29 O sucesso econômico gerou o aumento da fortuna e consequentemente o poder de muitas famílias maranhenses. Tal alteração refletiu-se na vida social da província. Também pelo refinamento dos costumes urbanos das classes privilegiadas (CALDEIRA, 1991, p. 21). Ainda conforme os viajantes, o critério étnico era o principal para identificar os grupos sociais predominantes na sociedade maranhense (CALDEIRA, 1991, p. 22). José de Ribamar Chaves Caldeira, citado por Regina Faria, aponta cinco classes no início do século XIX: A primeira era dos reinóis, portugueses natos que ocupavam os principais postos da administração; a segunda era formada por nacionais (senhores nascidos no Brasil dedicados à exploração da grande lavoura) e portugueses possuidores de casa comerciais importador-exportadores; a terceira, dos mulatos, filhos dos cruzamentos de europeus com negros; a quarta, dos escravos, utilizados sobretudo no trabalho, nas fazendas; a quinta era a dos índios, “descendentes dos antigos proprietários” do país... (CALDEIRA, 1991, p. 22-23 apud FARIA, 2001). Havia uma rígida distinção social entre cada um desses grupos, como mostra o depoimento de D. Emília Pinto Magalhães Branco, uma mulher da elite maranhense do século XIX, que fala do cuidado dos pais portugueses em evitar o casamento de suas filhas com brasileiros, o trecho abaixo foi extraído do artigo da professora Maria de Lourdes Janotti em que analisa o perfil de três mulheres da elite maranhense no século XIX, dentre elas D. Emília Pinto: Tidos os naturais da terra como peraltas mandraços e pelintras não lhes era permitido levantarem os olhos para os descendentes diretos dos lusos que, em último caso importavam noivos para elas dentre seus parentes d’além-mar (JANOTTI, 1996, p. 225). Essa percepção do brasileiro como um desleixado estava assinalada na escrita dos viajantes que diziam estarem esses mais inclinados ao gozo do que ao trabalho e reconhecendo sobre si a supremacia dos portugueses natos (CALDEIRA, 1991, p. 23). Outro ponto importante era o valor, não apenas econômico, dos escravos. Estes eram um símbolo de prestígio para o seu dono. Conforme fosse o número de escravos maior seria a facilidade em se obter crédito. Com uma numerosa quantia de escravos, os fazendeiros maranhenses conseguiam mostrar sua opulência. Josenildo de Jesus Pereira nos dá o quadro que se desenvolvia com a relação entre escravaria e rendas econômicas: 30 Na agricultura mercantil e escravista, os escravos eram a um só tempo - força de trabalho e mercadoria. Desse modo, eles integravam o universo de transações comerciais de compra, venda e aluguel. Em razão disso o tráfico internacional foi por muito tempo um negócio rentável, como atestam os inúmeros anúncios de jornais tratando de compra, aluguel e venda de escravos, dado ao seu valor de uso e de troca (PEREIRA, 2006, p. 40). No período anterior à Abolição, os escravos eram classificados em duas categorias: os escravos do eito, que trabalhavam na lavoura, e os escravos urbanos, que tinham sua força de trabalho alugada ou trabalhavam para pagar um valor diário aos seus senhores de forma a incrementar ou produzir suas riquezas (PEREIRA, 2006, p. 40). Dessa forma, associada às expansões econômicas da grande lavoura com a prática da escravidão, a província de São Luís, especialmente sua elite branca, pôde acumular alguns dividendos. Além de tudo, por sua situação geográfica, São Luís, no século XIX, configurou-se num promissor entreposto portuário e comercial, dessa forma desenvolveu-se o que veio a ser chamado de Praia Grande, o centro comercial da província (BORRALHO, 2000, p. 55). A fortuna que alimentava o promissor centro comercial também financiava o envio de jovens à Europa a fim de que obtivessem o que havia de melhor na educação. Também se refinava os modos de agir, postar-se e apresentar-se dos ludovicenses. No entanto, era apenas a elite que experimentava esse privilégio. A riqueza e as oportunidades eram monopolizadas apenas por uma fatia da população. Era a elite pertencente à aristocracia rural e comercial que habitava nos suntuosos casarões com azulejos portugueses a ornamentar suas fachadas. Eram as moças “sinhazinhas” que aprendiam o francês, latim, música e vestiam trajes da última moda europeia. De fato, a elite ludovicense zelava de sua imagem, cuidava do seu conforto. Era uma questão de manter um status social. Henrique Borralho (2000) nos diz que, ao retornarem a São Luís, estes jovens realizavam reuniões e debates que acabaram incrementando a vida intelectual da elite maranhense (BORRALHO, 2000, p. 57). Tal incremento não se limitava às reuniões e debates, mas ao desenvolvimento das gráficas, ao fortalecimento da imprensa e ao acesso a livros da literatura europeia (BORRALHO, 2000, p. 57). Conforme Regina Faria, esse incremento se traduziu em 31 números, citando Mérian, mostra que essa efervescência cultural era eminentemente elitista e foi nela que se consolidou sobremaneira o mito da “Atenas Brasileira”: Inextricavelmente ligado à representação da Atenas Brasileira há outra auto-representação das elites oitocentistas do Maranhão, extremamente significativa. Trata-se do europeísmo dos hábitos e costumes, com particular predileção pela cultura francesa. No modo de falar, trajar-se, mobiliar as casas e divertir-se, em tudo, as elites seguiam os europeus (FARIA, 2001, p. 70). A partir deste contexto e aliando o talento pessoal, não foi surpreendente terem surgidos poetas, literatos e jornalistas do gabarito de Gonçalves Dias, João Lisboa, Sotero dos Reis, Odorico Mendes... O reconhecimento nacional à intelectualidade de figuras maranhenses que por vezes eram pioneiros em determinadas áreas – como é o caso de Celso Magalhães cujos estudos sobre o folclore foram importantes para o direcionamento do olhar de outros intelectuais à cultura popular – foi responsável para o florescimento e consolidação do mito da “Atenas Brasileira”. Quem nascesse neste meio estaria fortemente propenso a tornar-se uma eminente figura de destaque. Mais uma ideia-imagem se junta à da Atenas, é a da “terra prodigiosa” (FARIA, 2001, p. 37), terra em que ares, clima, geografia, tudo estava favorecendo a produção de mentes brilhantes. No entanto, esse período de prosperidade findou a partir da segunda metade do século XIX e com ele veio uma era de decadência que acabou por se instalar na mentalidade coletiva tornando-se o tônico que fortaleceu ainda mais a ideia da “Atenas Brasileira”. Faz-se necessário esclarecer o que foi essa propalada Decadência e como a historiografia comportou-se diante dela. Alfredo Wagner Berno de Almeida faz um interessante estudo sobre a formatação do que ele chama de “Ideologia da Decadência”. Em primeiro lugar, Decadência é um termo que se refere a um momento de degeneração, que só é possível onde antes não se observava esse estado (COSTA, 2002, p. 80). Explicamos: quando a historiografia, ainda no século XIX, usava o termo “decadência” se referia ao momento posterior ao que chamava de “Era de Ouro”, ou de “Prosperidade”. Esta “Era de Ouro” estaria localizada no século XVIII, trata-se de um período “mítico” em que a Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, sob a administração do Marquês de Pombal, financiou e facilitou o escoamento da produção na província (ALMEIDA, 1982, p.83). É dessa forma que o ano da criação dessa companhia, 1755, é visto como um divisor de águas da história local. Antes se vivia a 32 “Era da barbárie”, no sentido de um modo primitivo de funcionamento da região, com a implantação da Companhia de Comércio conheceu-se a Prosperidade e após seu desmantelamento veio a crise, a Decadência. Regina Faria mostra alguns dados que justificam o porquê dos intelectuais terem formulado essa noção de decadência: No alvorecer dos oitocentos, com o sistema agroexportador funcionando plenamente, é possível perceber como sua dinâmica suscitou um fluxo maior de africanos - dando nova feição à população da região- e impulsionando a expansão da conquista do território, bem como permitiu a concentração de riquezas nas mãos de comerciantes e fazendeiros e o desenvolvimento intelectual das elites locais (FARIA, 2001, p. 31). No entanto, a autora aponta que esse sistema passou por flutuações, descortinouse em “expansões” e “crises” em que dependia da situação do mercado internacional, de capital financeiro, mão de obra, enfim, vários fatores cuja presença/ausência influíam no desenvolvimento desse sistema agroexportador do Maranhão. O que Alfredo Wagner mostra é que os intelectuais do século XIX, observando a crise que desmantelou o sistema agroexportador, voltaram-se para o passado para ali encontrar a explicação para o presente. É dessa forma que a Decadência passa a ser dada como um fato, assim como a época de Prosperidade. Nesses termos: A decadência trata-se assim, do que deixou de ser de um passado idealizado. Passado que é, ao mesmo tempo, de certo modo, aonde se quer chegar. O passado idealizado representa para os administradores provinciais uma perspectiva do futuro desejado... (ALMEIDA, 1983, p. 83). O problema é que esses intelectuais sempre recorriam a esta explicação da decadência, desencadeada com o fim da Companhia de Comércio e mais tarde com a Abolição para explicar a sua realidade. A decadência passou a ser um estado permanente. Wagner Cabral (2002), ao falar da construção dessa ideia-imagem mostranos o quadro de um Maranhão em “eterna decadência”. Regina Faria sintetiza o pensamento de Alfredo Wagner que considera o uso inadequado uma vez que fazia referência não à economia geral do estado, mas àquela agroexportadora: Diante do exposto, espera-se ter ficado claro porque se considera inadequado o termo “decadência” para qualificar o que estava ocorrendo na economia do Maranhão no decurso do século XIX. Discorda-se também da idéia de “involução”, contida no sentido dado 33 à “decadência” e explicitada por muitos autores que analisam as conseqüências da Abolição. De fato, o 13 de maio foi o momento final da crise do escravismo e acelerou a crise terminal da agro-exportação do maranhão. Mas foi a grande lavoura que se desagregou, a pequena produção baseada no trabalho familiar, que vinha se ampliando desde meados daquele século, expandiu-se, passando a ser o padrão de produção no setor agrícola. A pequena produção estava nas grandes propriedades, com os “moradores” ou “agregados”, nas denominadas “terras de santo”, “terras de índios”, “terras de preto” ou nas terras devolutas das áreas de exploração mais recentes, com os chamados “posseiros” (FARIA, 2001, p. 38). Dessa forma, essa crítica à “Ideologia da Decadência” mostra que quando citamos decadência, falamos do fato ocorrido a um segmento social, a elite branca agroexportadora. E foram os homens saídos do seio dessa elite, que viram as fortunas de suas famílias liquidadas diante da crise do sistema agroexportador, que formularam essa ideologia. Era esta elite quem arcava com os estudos dos filhos na Europa. A grande maioria da população não tinha este privilégio. Em 1838 foi fundado o Liceu Maranhense que, apesar de ser uma instituição pública, tornou-se mais um recanto da juventude elitista. Rossini Corre diz que após a bancarrota financeira, quando já não havia recursos para financiar os estudos fora do Maranhão, os jovens tiveram que recorrer ao autodidatismo. Mas, até que se chegasse a esse ponto, a elite mantinha as aparências, não abria mão do requinte (CORREIA, 2001, p. 167). Na primeira década da República já havia passado duas gerações de atenienses2, vivia-se o período que Antonio Lobo, no livro Os Novos Atenienses (1909), chamou de “marasmo intelectual”. Um grupo de jovens, entre eles Nascimento Moraes, liderados por Fran Paxeco e Manoel Bithencourt, produziam no intento de manter acesa a chama do espírito da Atenas. Estava entranhada a ideia de que o Maranhão tinha que continuar produzindo gênios no campo das letras. Essa produção ganhava espaço nos jornais e nas revistas da cidade que por vezes tinham vida curta (MARTINS, 2006, p. 36). Por intermédio do professor Bithencourt, a juventude de meados do século XX entrou em contato com escritores como Tolstoi, Dickens, Zola e outros escritores que direcionavam seu olhar para o povo. Esses escritores acabaram influenciando a escrita 2 Esta divisão de “gerações de atenienses” foi formulada por Antonio Lobo (1870-1916) em Os Novos Atenienses (1909), onde o Grupo Maranhense seria a Primeira Geração, em seguida viria o grupo dos Emigrados, ou seja, dos intelectuais que migraram para fora do Maranhão, especialmente para a Corte e lá conquistaram o cenário nacional, sendo entre os mais famosos Aluízio Azevedo (1857-1913), Arthur Azevedo (1855-1908) e Coelho Neto (1864-1934), em seguida viria a terceira geração, os neoatenienses, cujo objetivo era reviver a produção intelectual a qual o Maranhão se habituara a produzir. 34 de Nascimento Moraes, pois, na sua produção intelectual, o povo, operários e suas desilusões recebem um espaço relevante. Como já foi dito, Nascimento Moraes figura a partir de 1900 no quadro dos componentes da Oficina dos Novos com o qual acaba rompendo por motivo de falta de reconhecimento a seu trabalho, preconceito racial e um desejo por parte de Antonio Lobo e seguidores de manter a elite branca como a única herdeira e continuadora da glória ateniense. Quem denuncia esse intento e essas razões é o próprio Nascimento Moraes durante a polêmica que travou com Antonio Lobo por meio de seus textos publicados no livro Puxos e Repuxos. Ele encarava o grupo como uma iniciativa de manipulação de um tipo de produção que correspondesse às perspectivas da elite letrada, privilegiada. É importante introduzirmos aqui a ideia de Campo intelectual, formulado por Pierre Boudieu, como um local dinâmico em que os sujeitos, diretamente envolvidos relacionam-se, demarcam posições e influenciam-se de forma a angariar um lugar de prestígio por meio de estratégias de consagração que lhes rendem o acúmulo de um capital simbólico (BOURDIEU, 2004, p. 20). Guardadas as devidas ressalvas, podemos afirmar que existiam estratégias de consagração intelectual, tanto no âmbito de um campo, e pensamos no grupo Oficina dos Novos como o seu núcleo, quanto no âmbito pessoal, em que, a partir dos elementos definidos no campo intelectual, cada membro tecia suas próprias estratégias. Colocados como os detentores do futuro cultural do Maranhão, os Novos foram responsáveis pela criação da Academia Maranhense de Letras, e do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão bem como usaram a herança da ideia de Atenas para acumular um capital que reforçava o seu importante papel naquela estrutura. Uma dessas estratégias, segundo Matheus G. de Jesus era o mecanismo de sociedade na Oficina e da patronagem na Academia Maranhense de Letras, que não por acaso foi cognomina de Casa de Antonio Lobo. Sobre os sócios, havia uma classificação entre efetivos, correspondentes e honorários. A consagração se dava pelo atrelamento da Oficina aos nomes dos sócios correspondentes e honorários, os correspondentes geralmente eram intelectuais radicados em outros estados, como o próprio termo sugere, sua função era divulgar a produção dos Novos, os honorários eram nomes consagrados no cenário nacional, conforme Matheus G. de Jesus “só eram eleitos para esses cargos aquelas personalidades consideradas representativas no meio literário local ou nacional... Seu trabalho era conferir prestígio e respaldo intelectual para as atividades e os membros da agremiação” (JESUS, 2010, p. 40). 35 Nascimento Moraes, entretanto não completou um ano na Oficina, sua justificativa foi ver frustradas as suas intenções de promover uma transformação social por meio da ação engajada dos Novos. Quando Santiago, pseudônimo de Nascimento Moraes, fala da sociedade ludovicense deixa bem evidente como percebia a estratificação social e o conformismo dos menos favorecidos, usa o conceito “casta”, tal sua percepção da imobilidade social existente na cidade: Em São Luis a sociedade estava dividida em castas, bem caracterizadas pelos recursos, pelo traje, pela habitação e pelos bairros. Os indivíduos desta casta eram plenamente convencidos de sua condição. O operário estava conformado com sua pobreza e não procurava sair dela. O que ganhava dava para suas despesas. Era feliz por isso. Os filhos freqüentavam uma escola primária, e depois aprendiam um ofício qualquer, e, por vezes, o próprio ofício do pai. Só envergava um paletó e calçava sapatos ou botinas aos domingos, dias santos ou feriados. E assim mesmo eram os mais graduados. Os mais eram descalços e em mangas de camisa. Traziam chinelas de couro cru, nos mesmos dias em que vestiam o paletó (MORAES, 1982, p. 230). A construção da ideia de casta é fruto da história da província escravocrata. Regina Faria mostra como ao referir-se à sociedade no século XIX: Ao representar a estrutura da sociedade através de um critério étnico, as elites deixavam transparecer como era importante para esta sociedade a cor, ou seja, a origem étnica das pessoas. Percebe-se, no entanto, que tal estratificação, que poderia gerar um verdadeiro sistema de castas, permitia a mobilidade horizontal entre as chamadas “classes inferiores” e episódios casos de ascensão social de indivíduos não “brancos”, o cafuzo se iguala ao mulato... (FARIA, 2001, p. 62). Vindo Nascimento Moraes da “casta” inferior, rompe com o determinismo social pelo menos no que dizia respeito à educação. Porque então outros não poderiam fazer o mesmo? Acreditamos que a crítica contra o conformismo do povo não era por acaso. Era uma forma de chamar atenção. Após sua saída da Oficina dos Novos em 1901, Nascimento Moraes inicia um período de calorosos debates, através do jornal no qual era correspondente, principalmente contra Antonio Lobo. Rossini Correa se refere a esse período, quando muitos intelectuais emigravam e outros permaneciam na terra em querelas que revelavam dicotomias sociais: 36 Mais prosadores, todos, do que poetas, a labutar, a marejar sob um signo comum: o da preservação ativa da mitologia da Atenas Brasileira. Enquanto, na província, permaneceria a guerra entre gramáticos e escritores, da palmatória contra o bico da pena... Antonio Lopes, Corrêa de Araújo e Nascimento Moraes ficaram, para enfrentar guerrilhas, quase sempre inglórias, na Ilha de São Luis. Autores de obras muitas vezes sacrificadas, feitas de esparsos, inéditos e póstumos, as quais foi difícil garantir o mínimo prêprio de alguma circulação continental, não obstante o mérito de que dispunham, os três, com atos aquém de sua potência, pagaram o preço por seu sedentarismo. Ganhou, porém, o Maranhão. Membros da geração que multiplicou instituições de cultura, para depois do Seminário Santo Antonio, do Liceu Maranhense e do Seminário de Nossa Senhora das Mercês, esses, e outros sacrificados, mantiveram acesa a chama do facho sagrado da cultura na província timbira (CORREIA, 2001 p. 167). Em suas memórias, publicadas em 1935, Humberto de Campos se refere a essa briga literária entre Antonio Lobo e Nascimento Moraes, e via nos dois intelectuais antípodas, cânones de facções sociais, sendo Antonio Lobo o representante da decadente burguesia ludovicense e Nascimento Moraes um símbolo das “classes laboriosas” que já não mais podiam ser ignoradas. No entanto, Humberto de Campos tinha uma ideia de que O Grupo Renascença (liderado por Nascimento Moraes) existia por teimosia não havendo talento que se aproveitasse ali: O outro periódico era mais variado e mais vivo. Nascimento Moraes, professor de português, criticava a língua d’Os Novos, arremetendo de palmatória em punho contra os rapazes do outro grupo. O que, porém caracterizava a Renascença era a fartura de sonetos. Nas suas seis páginas amplas, espalham-se mais de trinta, cada um dos quais assinado por poeta novo. Desses poetas, ao que parece, não vingou um só. À semelhança do que sucede, às vezes, às ninhadas de peru, desapareceram todos. Jornal, em síntese, de um gramático furibundo e de seus poetas frustrados (CAMPOS s/d Apud CORREIA, 2001, p. 169). Enquanto Nascimento Moraes era redator do Correio da Manhã a polêmica se arrastou a tal ponto de chamar atenção, o que acabou redundando no livro Puxos e Repuxos em 1910. Nesse livro revelam-se as preocupações que possuíam os lados antípodas dos quais falava Humberto de Campos. Nesse momento começa a ser forjada a autoimagem de Nascimento Moraes de “um lutador”, pois ele resistia aos ataques de Antonio Lobo e seus amigos. O episódio do negro lutando sozinho contra as forças do “branco caucásio” levou os amigos de Nascimento de Moraes, e aqueles que se viam de certa forma representados e vingados por ele, a publicarem o livro, essa informação está 37 explicitada nas primeiras páginas do livro em questão. Pelo significado desta polêmica na construção da imagem de Nascimento Moraes, transcrevemos aqui alguns trechos que consideramos relevantes: Puxos e Repuxos Polêmica sustentada do “Correio da tarde pelo professor Nascimento Moraes contra Antonio Lobo e seus dirigidos que o aggrediram [sic] nas inedictoriais [sic] da “Pacotilha” e “Diário do Maranhão”, sob o pseudônimo de G.Galizza.3 As agressões eram recíprocas. Punham-se à prova temáticas que para aquele contexto eram de suma importância, por exemplo, o domínio do vernáculo. Bastava ser publicado um artigo de um dos envolvidos para que o outro publicasse acusações de erros de construção, de gramática... Nascimento Moraes respondia por vezes chamando seu opositor pelo pseudônimo Galizza4 numa clara intenção de ridicularizá-lo. Mas a questão não permaneceu no campo linguístico. Nascimento Moraes atacou a ideia do livro Os Novos Atenienses (1909)5. O principal alvo foi a expressão “caliginosa noite”, a qual se referiu Antonio Lobo para definir o estado decadente da intelectualidade ludovicense. Nascimento Moraes acusou-o de tentar promover a própria imagem de redentor da cultura letrada e de aliciar a juventude: Fala o homem no celebrado livro em dissidência literária, e então explica que um grupo de moços se desligou da Oficina para formar a Renascença Literária, e diz que esses foram: Xavier de Carvalho, Nascimento Moraes, M. George Gronwell Octávio Galvão, Rodrigues d’Assunpção, Leôncio Rodrigues, Leslie Tavares e Caetano de Souza. Perguntamos: - que membros ficaram na Oficina dos Novos? Três apenas: João Quadros, Astolpho Marques e Francisco Serra, queria impor a sabença das sabenças!... Lobo e o “mano” nada ensinaram a ninguém: a verdade é esta! ...O que Lobo queria fazer com a Oficina dos Novos, e o que conseguiu depois, era um grupo de rapazes que o apoiasse, que lhe batesse palmas, que lhe glorificasse o nome e o do mano.... 3 O exemplar ao qual tivemos acesso é da primeira edição cuja editoração não contemplou a numeração das páginas. 4 Conforme o Dicionário Houaiss, Galiziano refere-se ao dialeto ou à poesia dos trovadores portugueses e da região da Galiza. Outro termo derivado deste é Galiza que significa antipositivista. Nesse sentido, depreendemos que o apelido Galizza era um duplo ataque: ao seu vernáculo do apelidado, que Moraes acusa de pomposo e de difícil compreensão assim como à sua condição de “branco do reino”, aliás era uma prática do século XIX usar o termo Galizza para ofender os portugueses. 5 Embora Nascimento Moraes tenha participado do grupo Oficina dos Novos e publicado no livro Os Novos Atenienses o soneto Mãe com o qual foi apresentado como um literato da juventude ludovicense, só depois de sua decepção com os ideais d’Os Novos foi que resolveu criticar o argumento de Antonio Lobo sobre a “noite caliginosa” e o “marasmo intelectual”. 38 Lobo quer dar a entender que o renascimento literário do Maranhão se lhe deve porque foi elle quem promoveu festas ao nosso glorioso patrício Coelho Netto e quem agüentou aqui o “mano”, que ele diz ter vindo para cá PARA O FIM DE CONHECER A TERRA QUE SE FAZIA REPRESENTAR NA LITERATURA BRAZILEIRA POR FIGURAS TÃO ELEVADAS!!! Nós sabemos, no entanto, que o homem veio desgarrado, depois de levar sovas no Pará, no amazonas, etc, etc, etc. Ainda uma vez Lobo mente, sem o menor vexame, porque todos os maranhenses conhecem de verdade este fato. Foi para demonstrar que a ele e ao “mano” o Maranhão deve seu reerguimento literário (Lobo está convencido de que o Maranhão se reegueu!) que elle inventou aquella caliginosa noite em cujas sombras deixou uma geração inteira! E isto para o subsídio da História do Maranhão! Ainda nessa coletânea, Nascimento Moraes evidencia preocupações que acompanharão sua carreira jornalística: a educação, a construção da República livre dos preconceitos, principalmente aquele que mais conhecia: Nada mais falta a Lobo para completar. Professor ensina os discípulos brancos e despreza os negros, mulatos, carafuzes, etc! Diz mesmo aos discípulos que entre o branco e o negro há um abysmo intransponível; afirma-lhes que o negro é um condenado, a quem se deve tratar com desprezo! Na verdade, não pode haver educador da mocidade republicana que se lhe compare! Estamos convencidos de que assim, elle preparará uma geração supimpa! Jornalista prega as mesmas idéias: julga que insulta o adversário lançando-lhe em rosto a cor, e não satisfeito, ameaçando-o de surra de relho cru! Edificante! Que República seria essa construída com o pensamento e as práticas do regime que acabara de ser derrubado? Essa fala de Nascimento Moraes nos mostra a carga do ressentimento que o intelectual sentia, revidando, já que a sociedade não permitia outra forma, com uma linguagem mesquinha inclusive. Elucida, por outro lado, a estratégia que ele adotaria a partir de então, a de um intelectual negro que defenderia, com as mesmas armas, a erudição e o vernáculo, os interesses dos seus consortes, homens de cor e pobres que embora evidenciados pela Abolição e República como cidadãos ainda eram perseguidos pelos estigmas da escravidão. O intelectual e o seu tempo 39 Acima, falamos da decepção que viveu Nascimento Moraes por não ser aceito e respeitado como intelectual por causa de sua cor e origens sociais, esta oposição contra ele demonstra que a Abolição da escravatura não foi mais que um acordo político que em nada mudou sobre a mentalidade da sociedade em relação aos negros. Conforme Regina Faria, na mentalidade da elite, ser negro era ser escravo, Os negros no século XIX não eram distinguidos, não se levava em conta se eram escravizados, libertos. Dão a impressão de que vêem a todos como cativos. Expressam assim, a estigmatização que recai sobre os africanos escravizados, subtraindo-lhes a identidade étnica e cultural e impingindo a de cativo: o africano tornou-se escravo e, estando enegrecida a escravidão, ser negro é ser escravo. “Negro” ou “preto” passam a ser termos equivalentes a escravo (FARIA, 2001, p. 57). Necessário pontuarmos que foi uma historiografia racista que organizou essa ideia. O Brasil não estava preparado para a inclusão social do negro. Nem em termos sociais, nem em termos morais, pois a carga de preconceito que tinha uma fundamentação histórica e a representação da cor ganhava mais peso com as ideias científicas e evolutivas como o Darwinismo e o Evolucionismo formatadas no século XIX. Em 1905, Manoel Bonfim publica A América Latina: males de origem, este livro causou polêmica nesse período e chegou a ser esquecido. Tentaremos expor mais abaixo que o pensamento de Bonfim objetivava realizar uma reação às concepções científicas e ideológicas, baseadas na raça como fator explicativo do atraso em todo o continente. Estas concepções bio positivas ou a questão racial dominam a cena intelectual latinoamericana, especialmente a brasileira, à época (ORTIZ, 1994, p. 14). A permanência de Nascimento Moraes no quadro intelectual era um “contraargumento” naquele cenário dominado pela elite branca e em grande parte cuidadosa de manter seus laços culturais atrelados à da sociedade portuguesa e branca, uma vez que o paradigma ideológico do cientificismo novecentista dizia que o mestiço era inferior. O negro era apenas uma ferramenta de trabalho; e mesmo com a eminência da Abolição, no Maranhão era uma questão cultural ter escravos. Estes, como já foi dito, desempenhavam determinadas atividades para arrecadar dinheiro para seus donos. O 13 de Maio de 1888 foi um terrível golpe para essas famílias. Em A Preta Benedita e em outros contos, escritos durante a Primeira República, Valério Santiago fala que a escravidão tornou-se um vício social e como tal seria difícil de ser abandonada. Os esforços que se faziam para adquirir escravos eram imensos. A 40 Abolição fora um golpe brutal. Conforme a narrativa do conto A preta Benedita, depois do 13 de Maio de 1888, São Luís viveu momentos sombrios. Além de revelar a imensa hipocrisia daquela sociedade. O calor dos amigos e aceitação dependia da garantia de renda das famílias. Entrar em falência era o óbito social. Não apenas o falido não podia bancar os animados saraus e outras reuniões sociais como se via abandonado pelos amigos da época de bonança. Uma das coisas que mais irritava Nascimento Moraes era a negação de alguns intelectuais brancos, como Antonio Lobo, da contribuição do negro à cultura brasileira, num claro discurso da superioridade branca. Então, como aceitar um negro intelectual? O problema não era apenas de vaidade. A raiz da oposição estava no imaginário da elite branca. Mesmo com o sistema escravocrata liquidado, não mudaria o pensamento de que o lugar do negro era no “trabalho pesado”. Quando Antonio Lobo, em muitos dos artigos publicados em Puxo e repuxos, para diminuir Nascimento de Moraes, chama-o de negro, deixa transparecer que o significado do negro no sistema escravista permanecia firme no início do século XX. O discurso do negro e seu papel de mão de obra serviam à elite agroexportadora e definiu o papel dos descendentes africanos naquela sociedade, alimentou o sentimento racista que se perpetuou. Não havia lugar ao negro que não fosse à labuta. É provável que Nascimento Moraes tenha lido Males de Origem (1905), pelo conteúdo de suas críticas e pelas ideias de mudança que defendia, inclusive quando acusa a politicagem como fator importante para manter a situação de subdesenvolvimento do país. Porque muitas conquistas foram obtidas com a participação popular, fosse lutando nas guerras empreendidas ou através do suor e sangue dos negros, que sustentaram o sistema agroexportador e que, por sua vez, enriqueceu cidades e famílias aristocráticas. Bonfim, em A América Latina: males de origem, trabalha a ideia de “parasitismo” numa perspectiva sociológica para explicar a exploração de uma nação sobre outra e de uma classe sobre outra. Seu efeito mais contundente seria a educação bacharelesca, o conservantismo e a fragmentação social. De acordo com Baroni, em estudo sobre Manoel Bonfim e sua retórica, Do ponto de vista da sociedade, o parasitismo atuaria principalmente do ponto de vista intelectual e moral. Disso resulta uma população heterogênea, instável, fragmentada, quase uma sociedade de castas. Esses traços se refletem na sociedade parasitada pelo que Bonfim denominou hereditariedade social, ou seja, o que faz com que as 41 colônias herdem o caráter da metrópole, ou seja, leis, instituições, traços psicossociais, enfim, sua cultura. Disto decorre que sofremos de um conservantismo, uma certa paralisia que impede a mudança, mais problemática por ser própria das classes dirigentes. A única coisa que as move é a possibilidade de opor-se à inovação. A qualquer transformação. Por causa disso o pensamento político insiste em encontrar estratégias de conservar as coisas como estão de maneira a tornar praticamente impossível qualquer tentativa de reforma. Esse conservantismo é, de acordo com Bonfim “das qualidades a nós transmitidas, a mais sensível e a mais interessante- por ser a mais funesta- é o conservantismo, não se pode dizer obstinado, por ser, em grande parte inconsciente, mas que se pode chamar propriamente um conservantismo essencial, mais afetivo que intelectual (BARONI, 2003, p. 39-40). A elite de São Luís voltou-se nostálgica ao período que considerava de prosperidade econômica e cultural, apegando-se, crédula, de que era necessário, obrigatório, manter a tradição pelo menos na intelectualidade, já que na economia era mais complicado, como já explicamos, acreditava-se na singularidade do maranhense6. A receita de Nascimento Moraes para se vencer o atraso era a vontade e a energia na ação política. O problema da estratificação social acentuada no país não estava somente no analfabetismo do povo, mas no fato da classe privilegiada manter-se no poder e voltar-se para si mesma. A solução estaria em conhecer o povo, ele repete essa questão da educação ao povo, do conhecimento de quem era esse povo e do que ele necessitava para mostrar seu potencial ao longo de vários artigos publicados no ano de 1931, no jornal Diário Oficial. Pelo teor desses artigos vê-se nitidamente que povo para Nascimento Moraes era o mesmo que aquela massa populacional composta por libertos e brancos e pobres que não usufruíam das benesses do Estado. Assim, para Nascimento Moraes a solução seria a instrução pública por meio de uma “ação educacional”. Ele acreditava no poder da educação em promover a inclusão social. Criticava o ensino brasileiro por este ser demasiadamente bitolado aos livros, em consequência havia uma debilidade na análise da própria realidade social à luz de sua historicidade e a pior das suas deficiências era não garantir ao estudante a autonomia por meio da razão. A percepção do social dava-se por meio de teorias dissociadas do seu contexto porque importadas. Dessa forma, Nascimento Moraes acreditava que a educação deveria ser vivida, a melhor aula seria 6 Maria de Lourdes Lauande Lacroix, no livro A Fundação Francesa de São Luis e seus Mitos (2002), fala do Mito da Singularidade que, formatado no século XIX pela elite ludovicense, consolida-se no século XX, neste mito a elite representava-se como culta, elegante, “francesa”. 42 aquela em que os alunos viveriam a matéria de estudo. Anos de abstrações haviam produzido intelectuais que não se postavam criticamente em relação às disparidades administrativas e sociais (sendo uma parte grande dessa administração composta por esses mesmos sujeitos que ocupavam cargos políticos no Império), intelectuais que não exerciam seu papel de porta-voz da sociedade. Em seu artigo intitulado Através das classes, publicado no Diário Oficial em 08 de julho de 1931, Nascimento Moraes defendia que o professor possuía um papel importante. Não deveria haver distanciamento entre mestre e aluno. Conhecer o aluno era necessário para saber como agir. Dessa forma, defendia a educação no seu sentido amplo e não como depósito de conhecimentos. A educação deveria alcançar o povo: Educar a mocidade. Educar o povo. Educar os homens de espírito. Educar os homens de ação. Educar o operário, o artistas, o homem de letras, o artesão, o funcionário público, o jornaleiro. Educar o soldado e o marinheiro. Educar incessantemente, infatigavelmente, dentro e fora da escola; nas oficinas, nas repartições públicas, Nas brigas, nos estabelecimentos comerciais, na rua e na praça pública (MORAES, 1982, p. 131). Aqui, Nascimento Moraes roga por educação ao povo e engloba nesse conceito o liberto, os marinheiros, operários que, na falta de uma educação científica estavam subjugados e fragilizados à manipulação e exploração das elites brancas. Reclama um direito político àqueles a quem os direitos civis não alcançavam da forma como deveria. Nascimento Moraes jamais saiu do Maranhão, o motivo não sabemos, opção pessoal, medo de encontrar lá fora o mesmo preconceito da sua terra ou de não conseguir lá o prestígio aqui já conquistado. Mas, um fato devemos deixar aqui assinalado: Nascimento Moraes julgou-se um lutador por tudo que conquistara. Via-se como um vencedor por ter conseguido firma-se como intelectual; e mesmo sendo negro e pobre, ele conseguira invadir e pertencer a um lugar que discursos raciais diziam-lhe ser historicamente e biologicamente proibido. Nossa pesquisa, diante do que foi exposto ao longo desse capítulo, vai compreender o período da Primeira República, momento pós Abolição da Escravatura, em que a questão da cidadania dos mais pobres era delicada e não fazia parte das preocupações maiores do Estado Republicano. E que, por outro lado, torna-se o grande tema dos escritos, especialmente literários do nosso intelectual. 43 A partir do próximo capítulo, vamos nos debruçar no universo literário de Nascimento de Moraes. Elegemos como fontes contos, crônicas e o romance Vencidos e degenerados. Nosso objetivo é, por meio das representações literárias que o literato deixou em seus escritos, achar indícios do cotidiano dos cidadãos pobres ludovicenses e assim perceber as suas práticas, seu pensamento, sua percepção acerca do advento da liberdade via Abolição, suas táticas de sobrevivência por meios dos mais variados misteres e as relações que teceram com as noções de modernidade e cidadania. 2. O pós Abolição na perspectiva dos textos literários de Nascimento Moraes Nascimento Moraes, enquanto intelectual negro, forja um pensamento calcado nas ideias de povo, cidadania e nação, uma vez que materializou na forma de letra as aspirações de uma população vitimada pela herança do cativeiro. Não é por acaso que seus textos literários e de outros gêneros discursivos possuem muitas vezes a tônica memorialística, pois entendemos seus escritos como um portador da memória coletiva das expectativas dos ex escravos no período que sucedeu a Abolição. Assim, entre epigramas, anedotas e silêncios são mostradas as possibilidades vislumbradas por aqueles indivíduos de viver naquele país que adentrava no trem da ordem e do progresso. A escrita de Nascimento Moraes faz dessa memória a estratégia que promove o debate e a denúncia da falta de um projeto político e social para os egressos da escravidão e de como esses egressos se posicionaram diante desse fato. E, é assim que a tônica das suas narrativas denota também a percepção desses personagens sobre a “modernidade” e a “civilização” sob os contornos da eugenia; há por parte dos personagens a consciência do discurso sobre barbárie, degeneração e sua inferioridade diante dos “verdadeiros cidadãos”. A questão racial torna-se o texto presente de forma insistente em cada página que ele escreve e no que ele deixa entender ser sua luta diária. Lutar contra o preconceito daqueles que, fazendo uso do discurso cientificista do século XIX, atribuíam aos negros características negativas, derramavam seus ódios e preconceitos contra aquela classe pobre e de cor que formava o grosso não só dos maranhenses, mas do brasileiro. 44 É no rastro do cotidiano dos personagens que povoam o romance Vencidos e Degenerados7, as crônicas e os contos de Nascimento Moraes (muitas vezes assinados com pseudônimos, e neste capítulo utilizamos contos assinados pelo pseudônimo Valério Santiago) que vamos perceber a questão racial enquanto um discurso que nos permite ler em suas linhas o teor da política republicana que manteve a posição das classes pobres na marginalização conhecida desde a Monarquia. Nascimento Moraes faz da sua escrita denúncia e revelação. Denuncia a forma como se deu a relação do Estado e elites com os pobres e revela, por outro lado, o potencial, a sagacidade e o posicionamento político dessas pessoas em suas posturas cotidianas, na expressão de um pensamento, na forma como se relacionavam entre si e com as elites. Esse cotidiano denuncia a percepção que os promotores da modernidade republicana entendiam por “moderno” e como se dava o exercício da cidadania entre os menos abastados. Como já foi dito, àquele período a ideia de modernidade estava diretamente associada ao aformoseamento das cidades, à aplicação da medicina higienista para combater a insalubridade e deter doenças causadas por más condições sanitárias, mas também garantir que os diversos espaços urbanos fossem devidamente ocupados por quem era de direito. A política urbana do Rio de Janeiro conseguiu derrubar os cortiços próximos ao centro da cidade e empurrar seus moradores aos morros fazendo assim surgir as favelas (CHALHOUB, 1996, p. 18). Em São Luís não ocorreu algo parecido devido a situação econômica desfavorável. Não obstante, existiam as ruas habitadas pelas elites comerciais e dos mais abastados e existiam as ruas dos populares, apesar de não haver um controle, pois muito embora existissem os códigos, as leis que tentavam a todo custo manter a ordem da modernidade a cidade crescia de forma desigual ou diferente daquela idealizada no papel. Tais determinações legais preconizavam como deveriam ser feitas as habitações, as medidas de higiene a serem tomadas para garantir o bem estar público e principalmente para punir a vadiagem e a embriaguês e condicionar no homem livre a ideia de moralidade advinda por meio, principalmente, do trabalho formal. Neste capítulo trataremos da forma como Nascimento Moraes representou a percepção da 7 Seu enredo gira em torno de cenas cotidianas da população pobre e de cor, guiada pelos oradores populares e intelectuais saídos dos seus interstícios, com aspectos de uma narrativa próxima ao gênero literário crônica, Vencidos e degenerados pontua os primeiros anos após a Abolição, sonhos e frustrações da população de São Luís diante das grandes dificuldades da época: a modernização, a cidadania e o preconceito de cor e social. 45 liberdade, pelos negros, e como se deu a passagem do trabalho escravo para o trabalho livre. A multiplicidade das experiências dos homens de cor na passagem da escravidão à liberdade O que a escrita de Nascimento Moraes nos mostra sobre a recepção da liberdade pelos ex escravos é que ela não se deu de forma homogênea. É no contexto da euforia diante da notícia da Abolição que se inicia a narrativa de Vencidos e Degenerados e também o conto memorialístico A preta Benedita. O narrador recorda o impacto da Lei Áurea e a reação dos libertos e despossuídos diante da novidade. Em ambos os relatos há um ponto de convergência sobre a consequência do decreto para os possuidores de escravos, muitos se tornaram pobres “da noite para o dia”. Mas também havia o outro lado, os libertos que, livres legalmente dos seus cativeiros, permaneceram ao lado dos seus antigos senhores. É interessante apontar a maneira como Nascimento Moraes nos apresenta a questão da percepção do que era a liberdade, dando margem a uma discussão sobre as negociações que existiam, durante o cativeiro, entre senhores e escravos. Tanto a personagem título do conto A preta Benedita como alguns personagens de Vencidos e degenerados, Domingos Olímpio e Daniel Aranha mantiveram-se indiferentes ante a liberdade legalizada; isso porque já gozavam de certo status de liberdade, muito embora, obtido por meio do relacionamento que mantinham com os senhores. Os personagens Domingos Olímpio e Daniel Aranha são introduzidos na trama de Vencidos e Degenerados na noite da Abolição, quando, em meio às comemorações de abolicionistas e libertos, mantinham-se à parte da convulsão em volta. Olímpio, apresentado como escravo livre que exercia o ofício de sapateiro, Daniel Aranha, liberto pela vontade do seu senhor (incentivada pelo temor que sentia pelo escravo), comungava do ofício de Olímpio. Eles eram unidos por laços de solidariedade e amizade, aliás, Aranha era o único amigo que Olímpio conhecia. Daniel Aranha era também um homem temido, famoso pelas “bravatas que constantemente praticava” (MORAES, 2000, p. 41) e exercia em tempos de cativo uma influência sobre o seu senhor. O narrador explica o motivo: Aranha fora capanga de seu senhor. Andava com ele em frequentes excursões pelo interior da província e, como o senhor se entregasse a 46 conquistas amorosas, arriscadas e difíceis, ele teve a ocasião de muitas vezes salvar-lhe a vida, poupando-a às investidas da vingança cruenta que não esmorece, nem mede perigos. Aranha passara a exercer sobre o ânimo daquele homem uma influência extraordinária. Inteligente, penetrante de espírito, compreendera cedo que o seu senhor era um vicioso covarde, uma índole má e perversa e tão miserável que nem tinha coragem de responsabilizar-se pela miséria que derramava a mancheias no lar alheio. Aranha ria de sua fraqueza, pensava e refletia sobre ela, como quem resolve um problema filosófico (MORAES, 2000, p. 41). Essa relativa liberdade de que gozavam esses personagens pode ser vista como fruto de uma estratégia de sobrevivência, sendo cúmplices e ao mesmo tempo testemunhos de segredos inconfessáveis de seus senhores, esses homens ganhavam um cadinho de liberdade. Essa cumplicidade também podia redundar em alforria, como constata Chalhoub em Visões da liberdade (1989): ...Numa sociedade escravista, a carta de alforria a que um senhor, concede a seu cativo deve ser também analisada como o resultado dos esforços bem sucedidos de um negro no sentido de arrancar a liberdade a seu senhor; no Brasil do século XIX, o fato de que cabia unicamente a cada senhor particular a decisão sobre a alforria ou não de qualquer um de seus escravos precisa ser entendida em termos de uma “hegemonia de classe” e os castigos físicos na escravidão precisavam se afigurar como moderados e aplicados por motivo justo, do contrário, os senhores estariam colocando em risco a sua própria segurança (CHALHOUB, 1989, p.18). Percebe-se aqui um acordo tácito entre esses dois sujeitos que poderia redundar tanto na liberdade legal quando em uma liberdade relativa que por sua vez poderia também permitir o desenvolvimento de laços de amizade entre cativo e senhor e converter-se em um elemento que é decisivo para a manutenção do cativeiro, depois da Lei Áurea. É o que nos é narrado rapidamente em Vencidos e degenerados e no conto A preta Benedita de forma mais detalhada. Talvez uma das mais importantes características do gênero literário, conto, seja a sua capacidade de condensar, de forma quase reflexa, os detalhes importantes do cotidiano do homem. Ao contrário do romance, o conto foca no fragmento da visão do homem. Alfredo Bosi nos diz que o conto funciona como um “poliedro capaz de refletir as situações mais diversas de nossa vida real ou imaginária” (BOSI, 1975, p. 31) e, para nossos objetivos, isso se torna um elemento importante, pois é nessa diversidade cotidiana que buscamos os indícios das situações de marginalização as quais se submeteram os libertos no pós-Abolição e no cenário da Primeira República. 47 Passemos ao conto. Em primeiro plano, ele figura uma informação que a Historiografia da Escravidão trabalha sobre o papel do escravo urbano8 que em muitos casos eram a fonte do dinheiro de seus proprietários empobrecidos. A narrativa do conto deixa nas entrelinhas a percepção do autor sobre a pobreza que se instalara entre muitas famílias ricas de São Luís que, na tentativa de ostentar uma riqueza que não mais possuíam, esforçavam-se em manter os escravos. Como foi dito no capítulo anterior, a economia agroexportadora, responsável pelo enriquecimento de muitas famílias, falira; a partir daí, suas posses iam minguando, restando a muitas delas apenas uns poucos escravos a quem ficava a responsabilidade de sustentar a casa. Em A preta Benedita há um relato detalhado desse processo. Neste conto, assinado pelo pseudônimo Valério Santiago, o narrador lembra seus tempos de estudante do Liceu Maranhense, deixando claro sua condição de pobre, uma vez que descreve os esforços dele e dos colegas para estudarem e de como se organizavam para adquirir livros a serem utilizados entres eles na forma de rodízio. Mas, o narrador detém-se em um colega específico, cuja casa era um dos locais em que os estudantes se reuniam para estudar. Tratava-se do Joaquim Alves Leitão. O narrador recorda algo que lhe causou à época curiosidade: a obediência que Joaquim e as irmãs tinham para com a negra Benedita, que também parecia gozar de grande estima da senhora da casa. Anos depois, o narrador descobre o motivo daquele bom relacionamento entre os senhores brancos e a negra. Ele era fruto do reconhecimento que tinham de dependerem do trabalho da Benedita. Era do fruto de seu trabalho como doceira, lavadeira e dos negócios que ela tinha com quitandeiros que a família Alves Leitão sobrevivia e os jovens se instruíam. Assim como muitas outras famílias, aquela empobrecera “da noite para o dia”, perdendo não apenas propriedades, mas o prestígio e o acesso à sociedade e seus espaços de sociabilidade, como relata a mãe do narrador quando este fala da família do antigo colega: 8 A escravidão urbana em São Luís, de acordo com Josenildo de Jesus Pereira, era constituída por escravos de ganho e escravos de aluguel, a distinção entre essas duas categoria foi assim definida por esse historiador: Os escravos de ganho eram aqueles que, por não terem uma profissão especializada, faziam qualquer tipo de serviço, dependendo da demanda. Esses escravos dispunham de uma relativa autonomia sobre a sua própria força de trabalho, em comparação com os escravos de aluguel, pois dependiam do que conseguissem em termos de renda, para pagarem as diárias que lhes eram impostas por seus senhores. Os escravos de aluguel eram aqueles que possuíam ofício especializado e, por isso, eram requisitados com frequência para os trabalhos em obras públicas como na construção de canais, iluminação pública, limpeza de praias, praças e fontes. Por se tratar de um trabalhador cuja rentabilidade era satisfatória, os proprietários investiam, instruindo-os em algum ofício. Do mesmo modo, engajava-os no mercado de trabalho por meio de petições à repartição de obras públicas (PEREIRA, 2006, p. 42). 48 O coronel poucas vezes saía à rua. E o que doía ao coronel Alves era que ele não tinha a seu lado todos aqueles velhos amigos do tempo das vacas gordas. Quando o coronel morreu, D. Francília ainda não tinha se casado com o coronel Leitão, que estava na crista da fama. Era diretor de bancos e sócio de grandes empresas, inclusive uma de navegação. O casamento surpreendeu a todos, porque, segundo constava o coronel Leitão comprara o sobrado por um preço vil, e que, dois meses depois, falecera a viúva ralada de desgostos, porque o coronel Leitão aproveitara-se de sua pobreza para arrebatar-lhe o único bem que lhes restara. - Não era o único bem, interrompeu meu pai. - Não era? - Não. O único bem ficou com D. Francília. Minha mãe não compreendeu. E meu pai, depois de tirar uma cachimbada: - O único bem era a preta Benedita que os credores não quiseram avaliar nem o coronel Leitão o quis comprar quando a mãe de D. Francília, a pedido da preta, a ofereceu para ser sacrificada (SANTIAGO, 1982, p. 207-208). O esposo de D. Francília perde toda a sua riqueza para o jogo e envergonhado da situação humilhante de penúria suicida-se. A partir desse momento, o ônus das despesas daquela família caiu sobre a negra, uma vez que D. Francília não conhecia o trabalho braçal e não era instruída o bastante para exercer qualquer outro ofício. O fato de possuir escravo ainda era um índice positivo ante a sociedade, podendo, apesar da ausência de outras posses, garantir “bons casamentos” às sinhazinhas. Pela explicação de meu pai, compreendi que a escravidão, nas cidades, transformara-se num vício social. O não ter escravos era um índice de pobreza e desprestígio das famílias. Pelo que as famílias pobres, mas, que sonhavam com uma posição melhor, pelo casamento das filhas, não mediam esforços nem sacrifícios para possuir meia dúzia de escravos que, trabalhavam em seus misteres de salário para as suas despesas particulares e reservadas (SANTIAGO, 1982, p. 209). A negra Benedita criara D. Francília e a seus filhos; e ainda que libertada pela lei, recusou-se a sair de perto e tampouco se desvencilhou da responsabilidade que havia tomado para si de sustentar os Alves Leitão. O inventário das atividades remuneradas de Benedita é vasto, revelando-nos seu tino para negócios, desde doces de tabuleiro vendidos à rua, à moda dos pregoeiros, até bebidas artesanais, fornecimento de refeições a botequins, dir-se-ia que a negra era “pau pra toda obra”: Só a preta Benedita era capaz de trabalhar, e a preta multiplicou-se num trabalho exaustivo. Fazia doce de todas as qualidades e todas as 49 tardes saía a vendê-los num tabuleiro, coberto por uma toalha muito alva e muito fina. Fazia gengibirra que era muito apreciada e deque tinha grande freguesia nas tavernas. Fazia doce de coco e vendia aos quilos nas casas das famílias. A canjica, o pé-de-moleque e o arroz de cuxá, davam bom rendimento. D. Francília ajudava-a em casa, mas não aparecia nunca nesses negócios. A preta era quem enfrentava a luta. Adquiriu crédito nas tavernas e no mercado. Toda gente queria negociar com ela, porque era séria e pontual nos seus tratos. Por último, um português do Desterro fechou com ela um negócio lucrativo - fornecer o almoço e o jantar para os seus trabalhadores encarregados de vender carvão na cidade. A preta Benedita deu conta do serviço, a contento do português, que passou a emprestar-lhe o dinheiro de que precisava (SANTIAGO, 1982, p. 210). Assim, Benedita multiplicou-se e garantiu tanto o sustento como os estudos das crianças, o rapaz foi estudar Direito em Recife, as moças tomaram suas lições típicas das casadoiras, incluindo aulas de piano. Nas palavras de Joaquim Alves Leitão, temos a metáfora que ilustra e explica o significado do negro naquela sociedade representada como decadente, denunciando também uma resignificação de um cativeiro concedido, cimentado nos laços de afetividade nascidos no período anterior à Abolição: “Minha mãe Benedita! Minha mãe e minha avó, porque foi também a mãe de minha mãe! Bebemos o teu leite, bebemos o teu sangue, arruinamos as tuas energias e escravizamos a tua alma! Que nos poderia dar mais?” (SANTIAGO, 1982, p. 211). Também em Vencidos e degenerados o narrador nos apresenta alguns casos de escravos libertados que se recusaram a abandonar seus donos devido aos laços afetivos, por terem sidos eles bons. Isso nos permite refletir sobre como esses laços contribuíram para o mascaramento da violência que significava o cativeiro, a exploração não era assimilada de forma negativa pelos cativos que tinham em conta uma suposta amizade de seus donos. O que significava ser “dono bom”? No caso da negra Benedita, muito embora duramente explorada em sua força de trabalho, era confidente das senhoras, obedecida pelos jovens, logo, ser bom, era não ser cruel, usar de violência física, humilhar. Por outro lado, em Vencidos e Degenerados, ao narrar a recepção de alguns libertos daquele 13 de Maio, o narrador nos revela o significado de não ser um “dono bom”, por exemplo, nas cenas em que escravos que sofreram das maldades de seus donos voltavam-se raivosos devolvendo tapas, praguejando, quebrando os bens da casa. O narrador revela algumas falas de personagens que lembram as maldades do tempo de 50 cativeiro, revelando a relação do ser mau com atos de violência física contra os escravos, a exemplo, o coronel Lousada: Lousada era um terrível senhor de escravos, que abalava a cidade com suas torpezas, quase diariamente cometidas, com variantes de requintada selvageria. Lousada tinha especiais e originalíssimos instrumentos de suplício, tais como: cabos preparados com estilhaços de vidro, por onde forçosamente subiam e desciam os escravos, até cortarem inteira e profundamente as mãos: redes com lâminas lacerantes e pregos onde se embalavam, num horrível balanço, aqueles infelizes até se retalharem as carnes e se rasgarem os tecidos das costas e dos flancos; martelinhos para baterem na arcada do peito até o sangue espirrar ou golfar pelo nariz e pela boca; espetos de ferro que se levavam ao fogo até o rubro, para queimarem os olhos, a língua e os membros dos escravos, que endoideciam nas prisões úmidas e sufocantes do pavimento térreo (MORAES, 2000, p. 30-31). Ante tal descrição, não é difícil compreender a relação que se fazia com a bondade o fato de o senhor não fazer uso dessa violência desmedida. É dessa forma que Nascimento Moraes representa a experiência da liberdade entre os negros: para alguns, apenas uma formalidade, uma vez que permaneciam cativos por vontade; para outros o momento da desforra, a hora do acerto de contas com seus algozes; e há ainda o caso daqueles que, tendo obtido a liberdade em período anterior, receberam com indiferença a Abolição. Conforme Hebe Mattos e Ana Maria Rios, essa questão sobre a liberdade tornou-se um diferencial nos últimos estudos sobre o pós Abolição que passam a analisar os Projetos dos libertos, sua ‘visão’ do que seria a liberdade, os significados deste conceito para a população que iria, finalmente vivenciá-la, e não apenas para os que o definiriam nos diferentes momentos do processo de emancipação. Em termos concretos, a liberdade alcançada com o fim legal da escravidão teve significados diferentes para ex escravos urbanos e rurais (MATTOS & REIS, 2004, p. 173). Podemos ainda acrescentar a essa análise de Mattos e Reis que entre os libertos urbanos também houve uma multiplicidade de experiências com a liberdade, como testemunhou o pai do narrador de A preta Benedita e o narrador de Vencidos e degenerados e essa percepção de Nascimento Moraes sobre a ideia de liberdade partilhada pelos libertos, condicionada à experiência da escravidão, foi também constatada por Sidney Chalhoub em seu estudo sobre a temática da liberdade dos negros 51 na cidade do Rio de Janeiro, sua conclusão é que para os negros, o significado da liberdade foi forjado na experiência do cativeiro (CHALOUB, 1989, p. 24). O enredo de Vencidos e degenerados deixa também entrever a patente participação dos negros no processo da Abolição, a abertura do romance traz a caracterização da assistência que aguardava ansiosa a notícia da libertação: Às oito horas da manhã do dia 13 de maio de 1888 a residência de José Maria Maranhense, na Rua São Pantaleão, uma meia-morada de bons cômodos regurgitava de gente. Ele, Maranhense, membro saliente do Clube Artístico Abolicionista Maranhense era um dos mais ardorosos e salientes cabos-de-guerra do abolicionismo e um dos que mais se expusera pela nobilíssima causa da liberdade, não poupando em favor deles as suas pequenas economias. Os que lá se achavam naquela gloriosa manhã eram pessoas de diversas classes sociais, desde o funcionário público e o homem de letras até artistas, operários livres, não faltando vagabundos e desclassificados (MORAES, 2000, p. 27). Mais à frente, a narrativa prossegue explicando o motivo do “alvoroço daquela gente” está acontecendo na casa de Maranhense, o motivo era que “os escravos o consideravam como um dos seus protetores, e porque ele era sincero na causa que defendia, eles o procuravam a todo momento para tratarem da liberdade deles” ([Grifos nossos] MORAES, 2000, p. 33). Como dissemos anteriormente, tratamos os textos literários de Nascimento Moraes como um relato que traz a lume a memória coletiva dos egressos da escravidão, e muito embora ele contasse com apenas seis anos na data da Abolição, não é difícil imaginar quantas vezes deve ter ouvido um parente, um conhecido relembrar aquela data que levou tantos populares à rua. Michel Pollak diz que os elementos que constituem uma memória coletiva ou individual são aqueles vividos pessoalmente, mas, não apenas estes, pois, considera os acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade na qual a pessoa está inserida e com a qual partilha uma identidade como “acontecimentos vividos por tabela” e que caracteriza como Acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que,no fim das contas, é quase impossível que ele consiga saber se participou ou não... É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase herdada (POLLAK, 1992, p. 201). 52 Mas o motivo de nosso grifo e do uso da teoria sobre a memória coletiva “vivida por tabela”, de Michael Pollak, é porque entendemos uma sutil, mas não sem intencionalidade, tentativa do nosso autor imprimir uma ideia de uma participação ativa do negro no processo de Abolição, participação esta que vai contra as teorias da época que falavam em um “assujeitamento” dos escravos devido aos séculos de escravidão, ou de uma busca pela liberdade por meio da revolta ou violência e que temos o caso do Quilombo de Palmares como um dos mais salutares e nunca é demais lembrar como essa leitura do escravo como “coisa” ou “revoltado” foi explorada pela historiografia até o início da década de 1980 (CHALHOUB, 1989). Quando o narrador diz que os escravos procuravam Maranhense para tratar da liberdade deles nos remetemos às estratégias que Sidney Chalhoub analisou em Visões de Liberdade em que o escravo buscava muitas vezes o mecanismo legal para conseguir ser alforriado, a própria participação desses escravos no Clube Abolicionista ou simples ato de ouvir o que diziam os oradores abolicionistas denotam que havia uma luta por parte dos cativos por sua liberdade, só que uma luta diluída no seu cotidiano. Assim como o autor sugere essa luta pela liberdade ele também deixa bem claro que não houve um assujeitamento desses homens, houve a manutenção de uma identidade negra e que ao longo do romance é insinuada quando o narrador fala de uma roda de tambor, no reque-reque, um miudinho, não apenas na noite da libertação. E também quando, a todo momento, na narrativa mostra um egresso tentando alcançar um lugar de cidadão naquela república por meio da educação. O fato de Daniel Aranha estudar à noite, mesmo com dificuldades e de ter entregado seu filho à família de Olivier para que este lhe criasse e educasse denotam um projeto para o pós-libertação por parte dos cativos, não à toa, e essa é uma leitura nossa, em muitos textos de Nascimento Moraes a questão da educação como via de acesso à cidadania é um discurso presente. Possivelmente a educação e sua simbologia, pois, naquele país, quem estudava se tornava “doutor”, era “alguém”. Possivelmente era este o motivo da melancolia que toma conta da narrativa quando um salto temporal nos leva ao segundo ano da República, porque o projeto de viver a liberdade como cidadão deveria ser viabilizado pelo Estado, graças aos “tribunos populares”, Olivier e Maranhense, aqueles egressos confiaram no novo regime, mas foram traídos. Assim, a narrativa de Vencidos e degenerados adquire essa dupla interpretação: a melancolia própria do intelectual neoateniense, que era Nascimento Moraes, mas também a melancolia do egresso que não se viu contemplado pela propalada igualdade entre os cidadãos, nem logrou alcançar a cidadania, fosse por meio 53 do trabalho ou da educação porque ambos estavam sendo pensados para atender à lógica capitalista, nem trabalhar, nem se doutorar enriqueceria ou transformaria os “vadios e desclassificados” em “alguém”. Depois do “13 de Maio”, a reinvenção do cotidiano no mundo de trabalho À medida que as demandas do capital, no mundo ocidental, indicavam a inevitável falência do sistema escravista em detrimento da necessidade de se inserir uma nova divisão social do trabalho naquelas regiões que ainda se atrelavam ao antigo regime escravocrata, a questão da liberdade dos escravos tornou-se o tema de um longo e indeciso debate nos últimos anos do Segundo Reinado (1840-1889), no Brasil, conforme Sidney Chalhoub: ... Talvez nenhum assunto tenha sido tão decisivo naquelas décadas finais do Segundo Reinado do que o significado da liberdade dos negros. Este era um assunto econômico, pois afinal, dele dependia a autonomia ou não dos negros em suas atividades produtivas, assim como a disponibilidade ou não da força de trabalho dos ex-escravos para os senhores que se tornavam patrões. Este era um assunto político, pois afinal o governo podia interferir mais decisivamente na organização das relações de trabalho. Insinuava-se aqui também a questão social: afinal eram agora necessárias políticas públicas no sentido de viabilizar ao negro liberto a obtenção de condições de moradia, alimentação e instrução, todos assuntos percebidos anteriormente como parte das atribuições dos senhores...(CHALHOUB, 1989, p. 22). Josenildo de Jesus Pereira, ao estudar as representações da escravidão na década de 1880, no Maranhão, a partir da imprensa jornalística, traz a lume as propostas para a solução da questão da substituição do trabalho escravo. O debate era um subconjunto de uma preocupação nacional, uma vez que, por se tratar de uma economia agroexportadora e, portanto, dependente das oscilações do mercado internacional, a economia brasileira baseada no trabalho escravo e na agro exportação estava fadada, em algum momento, à falência, por não estar adequada às novas demandas econômicas internacionais, portanto, a Abolição da escravatura seria o caminho natural a seguir a fim de que o país entrasse nos moldes do progresso e desenvolvimento econômico: Nesse sentido, pode-se afirmar que o fim da escravidão foi, no Brasil, um evento que resultou das lutas dos escravos e da dinâmica do Capitalismo no mundo ocidental a partir da Europa, quando a acumulação de capital, realizada por meio da exploração direta do 54 trabalho, no interior do sistema produtivo de mercadorias se afirmou e expandiu como o paradigma gerador de riqueza (PEREIRA, 2006, p. 135). Uma vez que a exploração direta do trabalho era a riqueza requerida, o debate sobre o futuro dos libertos girava em torno de inseri-los ou não nesse mundo de trabalho, e, se em caso positivo, de que forma esse processo seria feito uma vez que existiam discussões em torno da inadequação dos egressos da escravidão a um mundo de trabalho disciplinado e, por outro lado, o racismo arraigado nas elites era um fator que computava contra essa assimilação da força de trabalho dos ex escravos. A historiografia que aborda esse período e temática volta-se para as teorias 9 raciais que começaram a ser discutidas nas décadas finais do século XIX, sendo revisitadas até a década de 30 do século XX quando a obra clássica de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, publicada em 1933, parece resolver a questão racial por meio da fórmula da “democracia racial” (ORTIZ, 1994, p. 41). Conforme Giralda Seyferth, sobre essas teorias raciais, Guardadas as diferenças de interpretação, todas elas tinham em comum o dogma de que a diversidade humana, anatômica e cultural era produzida pela desigualdade das raças; e a partir desse dogma, produziram-se hierarquias raciais que invariavelmente localizavam os europeus civilizados no topo, os negros ‘bárbaros’ e os índios ‘selvagens’ se revezando na base, e todos os demais ocupando as posições intermediarias (SEYFERTH, 1996, p. 43). Mas, antes de Gilberto Freyre propor sua tese de democracia racial, a mestiçagem era tida como uma mácula à identidade nacional. Muitos intelectuais se desdobraram na tentativa de justificar o lado positivo da mestiçagem, quando o que a ciência da época afirmava era que o mestiço era biologicamente inferior e estava fadado 9 As teorias raciais chegam ao Brasil em meados do século XIX e vêm engrossar os já balizados etnocentrismo e eurocentrismo que fundamentavam a escravidão negra e indígena. Os principais fundamentos dessas teorias estavam expressos na Antropometria, Frenologia e na Antropologia Criminal. A Antropometria consistia em medir a potencialidade de uma raça a partir do diâmetro da cabeça de um homem, enquanto a Frenologia media a inteligência a partir do formato craniano. Eram, portanto, ciências complementares e que condicionavam a capacidade humana a fatores biológicos e, portanto, a um determinismo racial. Por outro lado, a Antropologia Criminal, que teve suas bases lançadas do livro de Cesare Lombroso, O Homem Delinquente (1876) e preconizava a possibilidade de identificar um criminoso antes que ele cometesse um crime, baseava-se no estudo de atavismos, divididos em três categorias: físicos (mandíbula grande, pele escura, grandes órbitas, acuidade visual, orelhas chapadas, braços compridos, face maior que o crânio, rugas precoces, testa pequena e estreita e não eram calvos), mentais (insensibilidade à dor, irresponsabilidade, maldade, desejo de mutilar e extinguir a vida, linguagem próxima a das crianças), e sociais (eplepsias, pederastria e a prática da tatuagem) (Schwarcz, 1996, p. 170). 55 à degeneração e desaparecimento. Os defensores da mestiçagem viam-na como um traço de peculiaridade na identidade do brasileiro e como fator importante para a adaptação do homem branco europeu ao clima tropical (DANTAS, 2009, p. 59). O que ficou das várias justificativas, análises e pesquisas feitas pelos intelectuais, como Silvio Romero, Euclides da Cunha, Olavo Bilac, Manoel Bonfim, era que a presença do negro era parte constituinte da identidade brasileira. Para os que viam essa presença como um fator negativo, a esperança estava no branqueamento, via imigração; para os que acreditavam na positividade da mestiçagem, a aposta estava na educação (DANTAS, 2009, p. 68). Enquanto as teorias raciais e racistas anunciavam que a “raça negra” estava fadada à degeneração, ao vício, à preguiça, os simpatizantes da mestiçagem acusavam o Estado de ter deixado os libertos à própria sorte. São interessantes os esforços do médico baiano Juliano Moreira (1873-1932) (DANTAS, 2009, p. 75-76) que pesquisa a origem de uma doença mental de um descendente de italianos para “provar” que a tese do conceituado médico Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) estava equivocada ao anunciar que a degeneração mental estava relacionada à raça negra. Uma vez descobrindo que o ítalo brasileiro tinha parentes europeus com a mesma doença, Juliano Moreira chega à conclusão que a degeneração não era condicionada pela cor. É este um dos pensadores que acreditavam no papel transformador da educação para os homens de cor; pela instrução, eles estariam aptos a serem inseridos no trabalho formal, regrado, cumprindo ordens e horários como faziam os imigrantes e homens brancos (DANTAS, 2009, p. 77-78). No Maranhão, foi a Associação Comercial do Maranhão, preocupada com os interesses dos grandes proprietários rurais, que propôs, em 1888, um concurso de monografias a fim de buscar medidas para substituir o trabalho escravo (PEREIRA, 2006, p. 158). Dentre os 21 trabalhos apresentados havia o consenso em se manter a grande propriedade privada, uma vez que a maioria dos autores eram proprietários rurais, a divergência deu-se quanto ao tipo de trabalho a ser implantado para a exploração das propriedades, desde o arrendamento até a mão de obra imigrante, quanto aos escravos, questões que já eram debatidas em âmbito nacional marcaram presença nas teses, desde a libertação e aproveitamento do liberto como trabalhador livre, até a sua rejeição justificada por questões inerentes aos vícios da escravidão e da raça. A defesa do trabalho livre ocorria por ser palpável o declínio da escravidão e a ciência de 56 que a exploração do trabalho era o novo fator de acumulação de riqueza. Em síntese, Josenildo Pereira conclui: ...os propositores do trabalho livre estavam cônscios de que ele seria a nova modalidade a partir da qual a riqueza seria produzida, pois, sendo o trabalho uma mercadoria, ele ficaria submetido à exploração do capital no processo de produção de outras mercadorias. Se esse problema não estivesse claro, os propositores do trabalho livre não se ocupariam em sugerir um conjunto de medidas repressivas como penitenciárias agrícolas, juízes lavradores para a proteção das classes dominantes contra o que eles chamavam de vagabundagem e ócio. Do mesmo modo, a construção de Escolas Agrícolas como um meio eficaz de garantir o “controle social” dos trabalhadores na sociedade do trabalho livre. Também o concurso de monografias para discutir a respeito da substituição do trabalho escravo para o livre não teria sido proposto (PEREIRA, 2006, p. 190-191). Em Vencidos e degenerados, o intelectual João Olivier sonha com a resolução da questão pela República, que tornaria a todos os cidadãos, negros ou brancos, legalmente tutelados pelas mesmas leis e teriam garantidos os mesmos direitos. No entanto, a preocupação da República naqueles primeiros anos era se consolidar e afastar o fantasma da Monarquia, inserir o Brasil no cenário das civilizações modernas (NEVES, 2011, p. 21) os libertos, negros, mestiços, precisavam sobreviver naquele universo que parecia não ter lugar para eles. É importante salientar que a República ao mesmo tempo em que se mantinha reticente quanto à inclusão de fato dos libertos no mundo de trabalho assalariado, criou mecanismo de controle e disciplina para esses cidadãos bem como democratizou os espaços daquele universo. A democratização dos espaços e bens públicos teve um caráter paradoxal uma vez que possibilitou a integração, ainda que de forma parcial, pois existia a barreira do preconceito, ao mesmo tempo em que acentuava as clivagens entre os setores da sociedade, tratando “a porrete”10 alguns e garantindo o usufruto das 10 “Cidadania a Porrete”, expressão utilizada por José Murilo de Carvalho em um artigo publicado no Jornal do Brasil em janeiro de 1988. Carvalho aproveita a fala de um ex revoltoso da Revolta da Chibata, alcunhado Ferreirinha, que dissera ter seu “gênio quebrado a paulada” e gênio aqui significado a recusa ao exercício da cidadania, só depois das “pauladas” que o marinheiro aceitara ser cidadão. Carvalho faz uma digressão pela história do Brasil, desde a Colônia, resgatando o cronista Antonil que relatou que o tratamento dispensado aos escravos seguia a regra dos três pês: pau, pão e pano. A regra, segundo Carvalho, nunca foi abandonada desde então. Em suas palavras: “Como era tratado o escravo e o agregado, assim foi tratado o cidadão. Em 1848, ao se discutir no Congresso um projeto de lei que regulasse a imigração após três anos de residência, o senador Vasconcelos objetou dizendo não desejar que o estrangeiro, confiado na lei, viesse a tomar cacete... Para os amigos pão, para os inimigos, pau. Era a mesma velha regra de Antonil, apenas adaptada à vida política... No mundo urbano que emergia, o espírito era o mesmo. Questão social era com a polícia mesmo, era no sarrafo” (CARVALHO, In: Jornal do Brasil, 18/12/1988). 57 benesses do progresso, como telégrafo, luz elétrica, o bonde, sistema de abastecimento e entretenimento para outros. Em síntese, circulavam nas mesmas ruas, tomavam os mesmo bondes, passeavam nas mesmas praças e assistiam as mesmas missas homens de cor e brancos (CÂMARA, 2008), mas, isso não significou aceitação. A minoria branca e elitista, ocupante dos cargos administrativos de maior importância, os homens que majoritariamente ocupavam-se de trabalhar no projeto de ordenar e civilizar aquela nascente república elaboravam mecanismos para manter a ordem desejada para garantir o seu bem estar. Havia, portanto, no espaço democrático daquela república, ajuntamento, mas não união entre os cidadãos. E civilizar significava colocar cada novo cidadão no seu devido lugar por meio de leis, posturas, decretos, do policiamento e do discurso civilizador que associava decadência material a sujeira, doenças e ao crime, tornando o termo “classes perigosas11” sinônimo de classes pobres. Sidney Chalhoub (1996) faz um estudo atento sobre o discurso dominante acerca da liberdade dos negros que, de modo geral, apontava que o liberto não estava preparado para o mundo do trabalho que exigia controle, pontualidade, obediência. Era necessário trabalhar a consciência que se tinha em torno do trabalho formal para que ele se tornasse atrativo. Conforme Chalhoub, no mesmo ano da Abolição, o ministro Ferreira Vianna elabora um projeto de lei que visa combater a ociosidade (CHALHOUB, 2001, p. 72). No entender desse ministro e de outros, o liberto carregava consigo os vícios da escravidão que lhes impossibilitava a convivência com a sociedade. Era necessário vencer tais vícios por meio da educação, no entanto, essa educação se daria por meio do trabalho, enquadrando aquele sujeito no rigor das regras do ambiente de trabalho, ainda que fosse necessário que o patrão usasse de violência, pois, aqui, o patrão estaria agindo como um pai que disciplina o filho (CHALHOUB, 2001, p. 73). Mas essa pedagogia não se encerraria na violência, era necessário elaborar uma representação pedagógica para o trabalho, o que foi feito associando trabalho à moralidade. Isso significava que, quanto mais o indivíduo trabalhasse, maiores seriam os seus atributos morais, o que pode ser resumido no ditado “o trabalho dignifica o homem”. Portanto, era necessário introduzir no corpo dos cidadãos o hábito do trabalho 11 Ao tratar da questão da tentativa dos deputados do Império em cunhar uma moralidade à ideia de trabalho formal que convencesse os libertos a aceitar se submeter a ele, Sidney Chalhoub busca a raiz do termo “classes perigosas” utilizado pelos legisladores em suas argumentações. O termo teria aparecido na Inglaterra e era restrito àqueles que tinham, conscientemente optado pela sobrevivência à margem da lei, ou seja, aqueles que já haviam sido presos ou que praticavam furtos para manter a família, no entanto, o que os deputados brasileiros buscaram foi apenas a relação que o termo mantinha com a pobreza, e transformaram-no em sinônimo de classes pobres, assim, não era necessário praticar um crime de furto ou ser preso para ser considerado perigoso, bastava ser pobre (CHALHOUB, 2001, p. 76). 58 a fim de acabar com os malefícios trazidos pela escravidão. É nesse contexto que é inserido no Código Penal, em 1890, um capítulo que previa a punição à vadiagem e à prática da capoeira. Conforme a historiadora Eliane Silva Guimarães, havia uma preocupação, entre os legisladores, em criar mecanismos que combatessem a ociosidade a fim de que os homens pobres e libertos estivessem envoltos em um “regime livre, baseado em relações de exploração e baixa remuneração” (GUIMARÃES, 2006, p. 152). O capítulo XII do Código Penal intitulado “Dos Vadios e Capoeiras” previa a punição à ociosidade e à prática da capoeira, ainda nos artigos 400 e 401, específicos sobre a ociosidade, previa a reclusão de 15 a 30 dias aos condenados. Assim, analisamos que a intenção era, por meio do medo da reclusão, que o ocioso buscasse um trabalho, ainda que de baixa remuneração. O que nos leva a uma conclusão: além de tentar prevenir a ociosidade, essa lei garantia bons lucros aos patrões, uma vez que, por medo da condenação, o futuro trabalhador estaria sujeito às determinações e disposições do empregador e ao salário que lhe quisesse pagar. De forma pragmática nos é possível afirmar que, findada a escravidão, essa lei era um substituto aos chicotes, pois ela acabava por empurrar os libertos a trabalhos de baixa remuneração e possivelmente de muita exploração da sua força de trabalho. A questão do trabalho que dignifica o homem e que funciona como um indicador de status social está também relacionada com a dinâmica do capital que atribui valor simbólico ao produto. Como ressalta Arjun Appadurai (2008), as coisas têm uma vida social, cuja troca econômica cria-lhe um valor que “é concretizado nas mercadorias que são trocadas, em vez de apenas nas formas e funções da troca, possibilita a argumentação de que o que cria o vínculo entre a troca e o valor é a política, em seu sentido mais amplo” (APPADURAI, 2008, p. 15). Desta forma, o discurso sobre o trabalho resolve duas questões em benefício do mercado, o da mão de obra barata, por um lado e o do poder de compra do trabalhador, por outro. Olivier, com sua contumaz ironia faz uma leitura dessa relação entre o consumo e o capital, o que Appadurai chama de política, o nosso jornalista chama de “moral”. Ao queixar-se ao português Manoel Machado que fazia já um dia que fumava o mesmo charuto, com o qual esse lhe presenteara, Olivier, em tom lamurioso, e ao mesmo tempo regado de pilhéria, faz um breve resumo do valor moral da coisa, no caso o charuto, cujo sabor ou satisfação de consumo estava condicionado à sua situação de presenteado ou comprado: 59 ...Como você não deve ignorar, a economia se prende à moral, e não há nada de moral nisto que lhe acabo de contar. Examine bem a razão das coisas: um dos gratíssimos prazeres do fumante, em que pese os filantes, é comprar o cigarro ou charuto. O fumo sobe melhor ao paladar quando é comprado. O cigarro filado não é tão agradável aos quais como o que é comprado. Eu sou deste verniz e creio que todo o mundo, que é fumante de vício e ofício. Guarde as caixas intactas, mesmo o resto da que você já começou a vender. Estou quase certo de que depois deste charuto não mais fumarei na minha vida. Aqui, como me vê, além do aborrecimento e do enjoo, tenho o beiço cansado; parece que me fatigaram as minhas glândulas salivares, meus pulmões arfam, exaustos, e eu mesmo me pareço mais morto que vivo, mais charuto que homem!... ([Grifos nossos] MORAES, 2002, p. 71). Ao afirmar, em forma de epigrama, que se parece mais charuto que homem Olivier ilustra bem como funciona o sistema capitalista que coisifica o homem ao transformá-lo em uma moeda de troca, no caso, sua força de trabalho a ser trocada por um salário. Não parecem ser inocentes suas últimas palavras que se assemelham a descrição de um homem fustigado após uma jornada de trabalho, jornada esta que naquele período não era padronizada e quem bem poderia reduzir um homem a “charuto”, coisa, o homem expropriado de uma consciência. A analogia é perfeita quando lembramos que esse discurso moralizador, em torno do trabalho, foi promovido pelo Estado em sua preocupação com o futuro econômico do país e com a implantação do trabalho livre em substituição ao trabalho escravo, segundo Chalhoub, foi em favor do trabalho que a República fora proclamada, em suas palavras: ... Pode-se dizer, mesmo que a República foi proclamada sobre a figura do homem livre pobre porque tinha para ele um projeto amplo, que era o de transformá-lo em trabalhador, ou seja, em fonte de acumulação de capital. E a República foi proclamada ainda sobre o homem livre pobre na medida em que este projeto de exploração econômica era acompanhado de todo um projeto de mudança “espiritual” (CHALHOUB, 1989, p. 171). É nesse sentido que, analisando como era tratada a questão da inserção dos libertos e, depois de 1889, cidadãos, no mundo de trabalho, percebemos que o Estado republicano, ao elaborar leis como a da condenação à ociosidade, mostrava que não encarava aquela camada pobre e de cor como cidadãos detentores de direitos, mas como sujeitos passíveis, por um viés, de políticas de enquadramento por serem propensos aos vícios da bebedeira, da criminalidade, enfim, sujeitos de alta periculosidade e, portanto, que desfrutavam – se é que podemos usar esse termo- de uma liberdade vigiada, ou melhor, dizendo, policiada, não só pela nova lei de combate à vadiagem, mas pelos 60 códigos de posturas e de ordenação urbanísticas que regulamentavam a rua e os novos espaços de sociabilidade que se abriram nesse novo momento político e por outro lado possíveis “corpos dóceis” para o mercado de trabalho. Murilo de Carvalho atribui essa postura do governo republicano a um “enrijecimento da ortodoxia liberal”, em suas palavras, A Constituição de 1891 também retirou um dispositivo da anterior que se referia à obrigação do Estado de promover os socorros públicos, em outra indicação de enrijecimento da ortodoxia liberal em detrimento dos direitos sociais. O Código Criminal de 1890 teve a mesma inspiração. Tentou proibir as greves e coligações operárias, em descompasso com as correções que já se faziam na Europa à interpretação rígida do princípio da liberdade de contrato de trabalho. Foi ameaça de greve por parte de alguns setores do operariado do Rio que forçam o governo a reformar logo os artigos que continham a disposição antioperária (205 a 206). (CARVALHO, 2002, p. 45). Não à toa, a historiografia recente refere-se a esse período como “tempo do liberalismo excludente” 12. Essa questão é representada por Nascimento Moraes, seus personagens negros e pobres são alvejados pela suspeição, seguidos pela polícia, disciplinados pelos códigos, mas, ainda assim, burlando, ou melhor, elaborando táticas de sobrevivência naquele ambiente que lhes era hostil. Essa suspeição gerada pelo preconceito é narrada em vários momentos de Vencidos e degenerados, temos a seguir um episódio de uma situação cotidiana do personagem Zé Catraia e que ele narra a Cláudio Olivier: - Ontem à tarde o Machado mandou prender-me. - O Machado? - O Machado. Ele tinha razão e não tinha... Eu lhe conto a coisa porque sei que ele é seu protetor... Ele subia a Rua de São Pantaleão de braço com uma senhora. Eu descia, arrimado numa camoeca furibunda. As janelas estavam repletas de moças... Eu, por um ímpeto involuntário, acostumado naquele bom tempo da Travessa do Precipício (o senhor não conhece essa época, mas pergunte a sua mãe) eu gritei: Oh Paletó Queimado? Como vais tu, português? - Prenda este homem- gritou ele. – Prenda este homem! – repetiu para um soldado que passava. O marinheiro ficou roxo de raiva. A senhora dele estava pálida no meio da rua. Eu não articulei palavra... Um caboclinho de São Bento, o tal capitão Cruz, que tem quitanda no canto com a Rua de Santana, possesso, furioso, passeando na calçada, arregaçando as mangas de camisa: 12 Esta expressão refere-se ao subtítulo do primeiro volume da coleção O Brasil republicano organizado por Jorge Ferreira e Lucília de Almeida Neves Delgado, publicado pela editora Civilização Brasileira e que traz uma coletânea de artigos analisando as principais temáticas da Primeira República. 61 - É um absurdo! Isto é uma coisa horrível! Este homem é um perigo, não respeita a família de ninguém. As moças batiam a cabeça em sinal de assentimento, os vagabundos que passavam, concordavam que eu era um safado! O soldado pegoume pelo cós, deu-me dois sacalões como faz o menino ao papagaio, e lá me levou para o São João. O Machado me fez essa! Meu amigo de anos sem conta! Ofendi-o, porventura? Todo mundo não sabe que ele é o Paletó Queimado? (MORAES, 2000, p. 149-150). Em Vencidos e degenerados, o cenário econômico de São Luís denota decadência, o que movia aquela cidade ainda era o comércio centralizado na Praia Grande cujo cenário é descrito pelo narrador como “clara denúncia de decadência e estagnação de elementos essenciais à atividade do trabalho” (MORAES, 2002, p. 54). Carroceiros bebendo a cana-capim, comerciantes a porta dos seus estabelecimentos, um e outro funcionário apressado compõe o cenário do centro comercial. Assim, não havia muitas possibilidades de um trabalho assalariado para aquela leva de libertos. O que o autor deixa explícito é que eles continuam exercendo seus misteres, no âmbito do espaço urbano, de estivadores, sapateiros, vendedores... Os poucos que conseguiam por meio de um tutor ou padrinho instruir-se, também a custas das amizades desse padrinho, obtinham uma locação em alguma repartição pública ou particular, na redação de um jornal. Aliás, é interessante tocar nesse assunto porque ele foi observado por Sérgio Micelli (2001) em Intelectuais à Brasileira. Num estudo de viés antropológico, o pesquisador percebe o papel crucial que exerceu essa prática da tutela para a carreira intelectual de muitos homens, como Lima Barreto, Humberto de Campos, que na falta desse incentivo não teriam condições materiais de se instruir nem de se lançar naquele mundo fechado. O próprio Nascimento Moraes, como mostramos no capítulo anterior, contou com a ajuda de Manoel de Bithencourt. Em A vida de um homem de bem, concebido por Nascimento Moraes durante a Primeira República, o narrador, professor, se recorda de um dos seus alunos, o Manuel Sotero Coruja, que adentrara em sua escola no ano de 1921. Pela descrição do rapaz, tratava-se de um mestiço, seu padrinho era um “alto coronel federal” e “respeitável cavalheiro” (SANTIAGO, 1982, p. 187) que tinha pelo pai de Manuel Coruja uma grande afeição que nasceu a partir da amizade que aquele dedicou à família do coronel Antonio de Carvalho e Melo como ele explica: - O pai do seu futuro discípulo morreu no avarandado de nossa fazenda, defendendo a vida de meus pais, a minha vida e a de meus irmãos. 62 O chefe político local mandou matar-nos, alta noite. Eram seis capangas bem armados e montados, dos mais terríveis que ele pôde arranjar em Goiás. Meu pai não esperava o ataque. Nada havia que o justificasse. Uma questão se levantara entre ele e o chefe político, por motivo da propriedade de umas terras, e o juiz resolveu-a a favor de meu pai. Apenas isto, mas fique certo de que foi o quanto bastou. O chefão, atrabiliário e vingativo, resolveu acabar com o meu pai e a família toda. Defende-nos [sic] como pudemos, a rifle e a faca. Caíram mortos três capangas e dois irmãos meus e o velho Coruja, que, de passagem para Carolina, pernoitara na nossa fazenda. Por tudo isto o senhor pode compreender o interesse que tenho por ele, que é o mais velho dos filhos do Coruja e que minha família tomou sob a sua responsabilidade, para o fim de lhe dar educação conveniente. (SANTIAGO, 1982, p. 187). Assim, Manuel Coruja passa a frequentar as aulas e mostra sua aplicação e inteligência, no entanto, a esposa do seu padrinho se engraça com o rapaz, tentando a todo custo seduzi-lo. Diante do problema, Manuel Coruja aconselha-se com o professor, que promete pensar em uma solução, solução que não veio. Manuel Coruja ganha a fama de conquistador e torna-se traidor aos olhos do padrinho que tira sua tutela, deixando o rapaz à própria sorte. Sentindo-se um pouco responsável, por não ter ajudado o rapaz, o professor dá-lhe abrigo, e como Manuel Coruja já tinha três anos de estudo, saindo-se bem nas matérias, não foi difícil ao professor conseguir um emprego para ele. Assim, Manuel Coruja vai exercendo cargos em escritórios, em fábricas, cargos que exigiam conhecimentos específicos na área de finanças. O motivo de não conseguir passar muito tempo nos empregos não era sua capacidade, a qual os empregadores todos elogiavam pela inteligência e dedicação. O motivo era o caráter do rapaz, incorruptível, que não lhe permitia ajudar os patrões em aproveitar-se dos clientes ou “passar a perna” nos sócios. Ainda assim, Manuel Coruja trabalhava durante o dia e estudava à noite chegando à conclusão dos estudos elementares e, como era dedicado, um dos ex discípulos do professor, que se bacharelou na faculdade de Recife e ofereceulhe um cargo de promotor numa cidade do interior, muito embora ele não tivesse formação de advogado, a coisa se arranjou à base da concessão de favores. Esse relato nos leva a considerar, seguindo o pensamento de Murilo de Carvalho, a substituição da Cidadania pela Estadania. Termo criado por Murilo de Carvalho13 para se referir à maneira como o poder público garante o direito de poucos, na verdade apenas dos grupos econômicos e cidadãos que com ele tecem “uma rede complexa clientelista de distribuição particularista de distribuição dos bens públicos” 13 Entrevista concedida à professora Isabel Guillen (UFF), publicada no Jornal do Brasil em 24/06/2001. 63 (CARVALHO, 2001, p. 8). Foi algo parecido que ocorreu a Manuel Coruja, como explica o narrador: Manuel Coruja a princípio recalcitrou. Não tinha habilitações para o cargo, porém, o acadêmico era amigo do Chefe do Estado e responsável político por dois importantes municípios, onde eram grandes as suas forças eleitorais. Não demorou a nomeação. Manuel Coruja partiu para o interior, levando, além de malas, um caixote cheio de livros que o deviam amparar no exercício de sua nova profissão (SANTIAGO, 1982, p. 194). A intenção por trás desse arranjo era clara: sendo um cargo concedido amigavelmente, o novo promotor estaria subjugado aos mandos do seu nomeador e por sua vez favoreceria os aliados do mesmo. Tal prática de favores dessa estirpe era comum naquele período, em que o federalismo já se consolidara a partir da política dos coronéis, uma política de compromisso que garantia a manutenção do poder dos grandes proprietários nas diversas regiões do Estado republicano (CHAVES, 2011, p. 65). No entanto, o caráter de Manuel Coruja não lhe permitiu jogar conforme as regras dos “politiqueiros” (SANTIAGO, 1982, p. 194) e, assim, mais uma vez ele se vê desempregado. Manuel Coruja resolve-se então partir para o Rio de Janeiro, onde acaba conseguindo uma colocação como tabelião. Uma das queixas do personagem João Olivier, de Vencidos e degenerados, é de que, no Maranhão, não havia lugar para homens de verdadeiro talento, uma alusão ao tipo de inteligência que se desenvolvia no Estado e que era aceita e prestigiada, preocupada com a aparência e a imitação da cultura europeia. Ele próprio, João Olivier, por questões políticas, acaba se vendo obrigado a deixar o Maranhão, bem como o seu filho, Cláudio Olivier, um jovem de muito talento que, pela pressão social e o preconceito também busca em outro Estado reconhecimento e sucesso. Assim, vemos Valério Santiago repetindo nesse conto a ideia de que existia um perfil de conduta que deveria ser seguido para que um indivíduo desfrutasse de prestígio na sociedade ludovicense da Primeira República, uma clara denúncia de que se tratava de uma cidade degradada por práticas espúrias na política e na elite que controlava o seu funcionamento e administração. Assim como denunciou em Puxos e repuxos a existência de uma hierarquia social rígida, em São Luís, que não permitia a ascensão social de homens vindos do que era considerada economicamente a “casta inferior” e principalmente, homens de cor, 64 Nascimento Moraes também o fez na literatura, principalmente em Vencidos e degenerados. Quando fala no mundo do trabalho formal, dá destaque aos cargos no comércio, nas repartições públicas e nos escritórios particulares, fazendo também uma divisão dos trabalhadores em “vaidosos” e “necessitados” (MORAES, 2000, p. 57). É na fala de João Olivier que encontramos a descrição desse universo de trabalhadores divididos pela hierarquia do nascimento. Olivier acusa o governo republicano de não tomar providências contra a paralisia social que se instalara em São Luís e que era orquestrada pela velha administração portuguesa, parasitária. Para Olivier, era necessário educar o povo para vencer essa paralisia, como podemos constatar nesse diálogo que ele trava com o velho Bento jornalista e professor, que também tinha convicções polêmicas e por isso se afastara da vida pública: - Mas é que não abriram escolas ao povo, não procuraram matar o analfabetismo, não foram verdadeiros republicanos os que se apossaram do poder... - Também não vou por aí, pois vejo que há vida e progresso em muitos Estados, onde se criaram escolas noturnas, estabelecimentos importantes, como sejam institutos profissionais, nas quais gratuitamente se dá instruções ao povo. O que tu deves registrar é que nós não tivemos elemento exterior, para auxiliar-nos, não nos favoreceu uma imigração qualquer, de gente trabalhadora e inteligente, nem, ao menos, uma coloniazinha de meia dúzia de holandeses, diligentes, audazes e ativos. Continuamos com os mesmos hóspedes, os irmãos portugueses, que filhos de uma cultura secundária, baldes de uma orientação apreciável, o que fazem é esse comércio de pequena bitola a que se acostumaram e que prejudicialmente ensinam aos filhos e aos caixeiros (MORAES, 2000, p. 77-78). O velho Bento não estava sendo conivente com a crença de que a solução para a economia maranhense estava na imigração, repetindo o discurso do problema da mestiçagem, mas atacando a política portuguesa, que repetia velhos e obsoletos hábitos que não tinha mais lugar no século XX. Por outro lado, sua fala acaba revelando um preconceito ou desencanto em relação aos brasileiros, ao contrário de Olivier, que acreditava no papel transformador da educação. Mas, o que nos interessa, aqui, é essa imagem negativa em torno do português. Em outras falas de Olivier e em episódios protagonizados por personagens portugueses, percebemos a imagem que se faziam deles: eram vaidosos e cuidadosos da manutenção de uma situação que lhes fosse favorável, um parasita parcimonioso cuja administração imprimira um estado de 65 imobilidade econômica a São Luís. Na descrição dos funcionários daquele período, vejamos como ele classificou os vaidosos e os necessitados: Os indivíduos, em geral, chegam aos dezesseis anos, aproximadamente; percebe com alguma admiração que os homens trabalham, e não percebem mais cedo. Compreende e vê que os que trabalham são, em parte, recompensados; gastam e gozam de certas vantagens na sociedade; E assim, vendo e compreendendo, tendo ele pronunciada tendência para a vida que é mais material que qualquer outra espécie procura empregar-se conforme as suas tendências no comércio ou no funcionalismo (MORAES, 2000, p. 55). O descobrimento do fato de que “os homens trabalham” explica-se pelo motivo desses jovens pertencerem à casta privilegiada, acostumada a ser servida e sustentada pelo suor alheio. Engajam-se esses jovens na vida do trabalho não braçal por uma questão de status, uma posição social que lhe possa dar um “q” de importância, de moralidade, como salientou Chalhoub (2001), o homem que trabalha é um homem probo, digno, que cumpre com seus deveres com a nação. Enquanto os necessitados são os que foram inseridos no mundo do trabalho após a Abolição, mestiços e negros habitantes dos bairros pobres e os homens livres e que desde crianças conheceram o esforço para sobreviver. Esses necessitados a todos os sacrifícios se prestavam para o bom exercício dos seus cargos e buscavam uma qualificação que lhes possibilitassem uma promoção: Os que trabalham por vaidade pertencem, na sua maioria, às antigas famílias do Estado, ou às que deles descendem. Os necessitados são, na sua maior parte, criados do povo, pertencem à famílias pobres e desprotegidas que não se misturam com as que representam a fina flor da sociedade. Os que trabalham por fatuidade são como os portugueses, mandados buscar nas vilas de Portugal, os futuros patrões, os diretores de Bancos, os proprietários capitalistas (MORAES, 2000, p. 57). No conto Desmoronamento, também escrito por Nascimento Moraes na época da Primeira República, o narrador nos apresenta uma descrição dos trabalhadores que é bastante interessante e que revela também essa distinção, sendo mais detalhado, o que pode ser em consequência das características estruturais desse gênero narrativo. O narrador não fala a data do ocorrido, mas por algumas falas infere-se que se trata da década de 1890, no período posterior a 1895 quando no Maranhão já havia se instalado 66 o parque têxtil que contava naquele ano com 25 indústrias (DOURADO & BOCLIN, 2008, p. 34). O conto trata o escândalo social em que se converteu o noivado de D. Vitorinha, filha e neta de abastados lavradores do Estado, que fora educada e preparada para casarse com um igual, mas anuncia aos pais o noivado com um simples caixeiro da Praia Grande e estudante em um curso comercial. Tal noivado representou uma grande humilhação pública para a sua família e, por conta de pressão, acaba sendo desfeito. Mas o que nos chamou a atenção nesse conto foi a descrição longa que o narrador fez da classe trabalhadora de São Luís: Em São Luís a sociedade estava dividida em castas, bem caracterizadas, pelos recursos, pelo traje, pela habitação e pelos bairros. Os indivíduos dessas castas eram plenamente convencidos de sua condição. O operário estava conformado com a sua pobreza e não procurava sair dela. O que ganhava dava para as suas despesas. Era feliz, por isso. Os filhos frequentavam uma escola primária, e depois aprendiam um ofício qualquer, e, por vezes, o próprio ofício do pai. Só envergava um paletó e calçava sapatos ou botinas, aos domingos, dias santos ou feriados. E assim mesmo esses eram os mais graduados. Os mais eram descalços e em mangas de camisa. Traziam chinelos de couro cru, nos mesmos dias em que vestiam o paletó. Os funcionários também viviam modestamente. Esses não tinham outra ambição que não fosse esperar que o mais graduado morresse ou se aposentasse. Pela sua pouquidade de recursos materiais, viviam encostados, numa atitude de inferioridade, aos ricaços da Praia Grande, padrinhos de seus filhos, e que por isso lhes dispensavam alguma consideração e lhes faziam pequenas dádivas, ou abastados lavradores ou criadores, chefes de partidos políticos, ou figuras altamente representativas da pública administração da província. Havia os “camisas fora da calça”, os “camisas curtas”, ambos descalços, que não eram operários propriamente ditos, mas artesãos, trabalhadores de serviços pesados, carregadores de móveis e bagagens, que não tinham direito a coisa alguma, e moravam em mansardas, em baixos sobrados, em casebres dos bairros mais inóspitos (SANTIAGO, 1982, p. 236). Essa descrição sobre os artesãos e suas moradias e pobreza também é feita em Vencidos e degenerados quando o narrador apresenta os sapateiros Olímpio e Daniel Aranha. Portanto, percebemos que nessa sociedade que o conto descreve e também no romance o mundo do trabalho era constituído pelos cargos públicos, cargos em indústrias, no comércio e escritórios e do trabalho informal composto dos mais diversos misteres, excetuando o trabalho dos artesãos, que pensamos aqui serem as costureiras, alfaiates e sapateiros que exerciam suas atividades em casa, os demais ocorriam nos 67 espaços públicos da rua, das feiras e do porto e o trabalho de aluguel, resquício da escravidão urbana e cujo modelo foi apresentado no romance de Nascimento Moraes por meio da personagem Andreza Vidal, amásia de Daniel Aranha e mãe de Cláudio Olivier. Não obstante, como o relato deixa claro, eram trabalhos exercidos pelos mais pobres e despreparados, a maioria deles libertos. Eram esses ofícios os mais alvejados pela política reguladora e ordenadora do Estado republicano (CÂMARA, 2008, p. 67). Paulo Roberto Câmara (2008), em sua pesquisa sobre o trabalho de rua no final do século XIX, em São Luís, procura demonstrar como esta denominação “trabalho de rua” agregava variadas atividades e de como elas sofreram ações das leis reguladoras do espaço urbano elaboradas pelo poder público. Câmara destaca também a importância desses pequenos misteres, uma vez que eles eram imprescindíveis ao abastecimento de alimentos à população. Outro ponto interessante é a instabilidade em que viviam essas pessoas, uma vez que eram alvejadas pelos códigos de ordenação da rua, podendo, assim, a qualquer momento ser “acusados de cruzarem a tênue barreira do legal/ilegal e do moral/imoral, sendo ainda confundidos com outros grupos sociais a exemplo dos mendigos e ‘vadios’” (CÂMARA, 2008, p. 62). Como relatado nos contos A preta Benedita e Desmoronamento, o trabalho de rua era exercido por homens e mulheres. Em A preta Benedita, a personagem título não apenas conseguiu sustentar a família da sua ex senhora como garantiu a educação dos jovens da família. Além da disposição para trabalhar, o narrador ressaltou a sua capacidade em fazer bons negócios com os comerciantes locais, seus negócios mais lucrativos eram os que envolviam o fornecimento de alimentos. Paulo Câmara aponta a preferência dos vendedores de rua em mercadejar alimentos como uma estratégia: Quanto à venda de gêneros de consumo, observa-se que essa ocorria mais em razão dos trabalhadores buscarem estratégias para realizar melhores negócios, do que propriamente pela efetiva ausência de locais apropriados na cidade, como mercados e feiras (CÂMARA, 2008, p. 62). Paulo Câmara demonstra que alguns códigos de posturas e decretos acabavam de certa forma levando os vendedores de rua a descumprirem a lei. Câmara aponta especificamente os códigos de 1866 que falavam sobre a Higiene e Saúde Pública e o código de 1893 que regulava as instalações de cortiços, estribarias e currais e a imposição de comercializar alimentos como o peixe em um local próprio (um local que funcionasse como ponto comercial). Paulo Câmara percebe que essas imposições 68 somadas à falta de casa própria ou um local comercial próprio levavam parte dos trabalhadores às ruas com o alimento à venda e consequentemente infringindo as leis vigentes (CÂMARA, 2008, p. 69). Em Vencidos e degenerados há cenas que nos permitem perceber o policiamento em algumas ruas da cidade. As ruas habitadas pelas famílias mais ricas eram policiadas a fim de evitar a perturbação de seus moradores causada por algum baderneiro, mas também havia a vigilância nos bairros mais pobres onde se entendia que a qualquer momento poderia irromper uma confusão. Dessa forma, a partir das conclusões de Paulo Câmara, a polícia em determinados locais da cidade estaria ao mesmo tempo garantindo a ordem e fiscalizando o trabalho dos ambulantes. No episódio abaixo, o narrador de Vencidos e degenerados mostra como era possível a qualquer momento ocorrer uma confusão nos bairros populares: O bairro pode-se dizer é da pobreza, e por isso é ela quem se diverte nesses dias, mal vestida, em geral modesta e simples, mas arruaceira, armada de grossos cacetes e vozes ásperas. A polícia é mal vista por lá, a cabroeira dos outros bairros também não é bem recebida e, assim, quando menos se espera, por causa de uma raparigota qualquer, que se faceira e se requebra com indivíduos estranhos ali, o rolo fecha, a capoeiragem se desenfreia e quem puder que se salve: fecha-se o tempo, atroa os ares um alarido medonho, correm as doceiras com as bandejas, os vendedores de garapa e rolete, com os seus apetrechos, fecham-se batendo com violência (MORAES, 2000, p. 95). Além desse fato, o trabalhador de rua poderia também ser confundido com um vadio, isso porque não eram raros os dias em que iam trabalhar bêbados e acabavam metendo-se em alguma confusão. Nos jornais, não eram incomuns reclamações de leitores sobre essas ocorrências. Os autores dessas reclamações usavam o termo vadios para se referir aos ambulantes, alegando que eles iam àquelas ruas bêbados, mas disfarçados de vendedores de peixe. Além da questão da proibição da venda do peixe de forma ambulante, há nessas reclamações a clara informação de que havia lugares em que os cidadãos alvos da suspeição não podiam circular (CÂMARA, 2008, p. 67). Pela maneira como funcionava a dinâmica do trabalho de rua, podemos apontar duas considerações. A primeira é que ele é praticado majoritariamente por libertos que antes da Abolição eram escravos de ganho ou aluguel, e, na falta de um projeto de integração voltado para eles, acabaram dando continuidade aos seus misteres cotidianos. A segunda consideração é sobre como, ainda que fosse um trabalho importante para o 69 abastecimento da cidade, sofreu com as consequências daquelas teorias raciais e leis que marginalizaram e criminalizaram os homens de cor e pobres, consequências essas figuradas pela vigilância da polícia, pela intolerância dos moradores dos bairros por onde esses vendedores circulavam que não viam neles trabalhadores, mas baderneiros bêbados e perigosos. 3. Uma República entre a Ordem e a Desordem Muito embora Nascimento Moraes acentue a questão racial em seus textos literários, não se furta de voltar-se nostálgico ao passado da cidade de São Luís quando trata dos primeiros anos da República. Assim, a república ludovisense, apresentada por Nascimento Moraes, é um misto de pretensões de civilidade, modernidade, mas também um canto lamentoso e nostálgico de um passado que pouco a pouco vai se perdendo, sobrevivendo a guisa da memória dos que puderam vivenciá-lo ou que dele tiveram notícias por meio dos parentes ou amigos, também é a República do possível, onde se pode vencer o marasmo econômico, intelectual e entrar de fato nos trilhos do progresso. Essa temática da retomada do passado da cidade é recorrente em muitos contos e crônicas assinadas por Nascimento Moraes. É notório também que dentre as questões mais aventadas estejam tanto a riqueza da elite local e seu “desmoronamento” e a decadência das letras, pois os que se proclamavam herdeiros da tradição ateniense não tinham qualidades intelectuais para lhe fazer justiça. Assim, percebe-se que a escrita de Nascimento Moraes tem essa dupla configuração que seria a de, por um lado, inscreverse no projeto neoateniense de louvar e perpetuar a tradição literária do passado glorioso14 do Maranhão e acenar uma possibilidade para que a Atenas Brasileira despertasse do seu sono, mas também de denunciar ou “cutucar” a elite em seus vícios e mazelas, sendo estes últimos os elementos atravancadores da evolução que a cidade não conseguia empreender, pois vinha da elite o racismo, o cunhadismo, a falta de 14 Em nossa monografia de graduação, destacamos que Nascimento Moraes sente orgulho e paixão pelo epíteto “Atenas Brasileira” cuja crítica se faz aos que deturpam a imagem do que ele entende ser a verdadeira imagem do intelectual ateniense (BRAS, 2008). 70 empreendedorismo, a politicagem, fatores que somados impediam a cidade de se desenvolver; partiram da elite, quando se torna republicana, também, as ações que derrubaram os sonhos de cidadania dos homens pobres. No Maranhão, especificamente em São Luís, o movimento republicano só veio a tomar fôlego a partir do advento da Abolição. O motivo não era senão outro que o inconformismo dos proprietários com a libertação dos escravos e a falta do pagamento de uma indenização a qual acreditavam ter direito. Animados por esse “espírito de justiça” esses senhores, majoritariamente ligados ao partido conservador, perceberam na República uma via de acesso ao exercício do seu poder pessoal sem os incômodos da intervenção do imperador. Portanto, não havia nada de ideológico ou utópico nesse republicanismo de última hora. Esses senhores compuseram a Junta Provisória que agiu com violência contra aqueles que demonstraram ou que se suspeitava alimentar simpatia ao regime derrubado15. Evento simbólico dessa repressão foi o fuzilamento de cerca de 400 pessoas, maioria de ex escravos que manifestaram apoio à Monarquia em frente a sede do jornal O Globo, republicano (JESUS, 2009, p. 82). Barbosa de Godóis explica que a Junta Provisória instalada no Maranhão em 18 de Novembro de 1888 caracterizou-se por não ter nem ideologia, nem ter lutado pela causa republicana, mas pretendia aproveitar-se do fato para executar seus planos de domínio, e assim foi que em São Luís, a ocasião fez a oposição e em Acorde com esse pensamento, a política cometida na própria capital a pessoas as menos idôneas para exercerem-na, por conhecida falta de critério tratou ai mesmo de se impor pelo medo, efetuando prisões a torto e a direita, castigando com palmatoadas as pessoas do povo d’um e outro sexo e raspando-lhe à navalha as sobrancelhas e metade do cabelo na cabeça... A República, logo nos seus primeiros passos, sofrera, portanto, com aquele governo coletivo, a influência perniciosa de uma impressão verdadeiramente desgraçada, aliando-se seu advento na província à prática de tropelias em ordem a gerarem no espírito popular a ideia de que o novo regime, em vez de a ordem e os direitos dos cidadãos fez periclitar a primeira e ir contra os segundos (GODÓIS, 2008, p. 361). Essa amostra de ação repressiva torna fácil entender o antagonismo nos ânimos com o qual Nascimento Moraes pinta em Vencidos e degenerados, da euforia pela 15 O historiador Mário Meirelles explica que esta prática era dirigida a homens e mulheres pobres que ao serem presos pela polícia eram “amaciados” com palmatórias e soltos após terem suas cabeças raspadas, prática adotada pelo Império para punir criminosos, o que simbolizava serem aqueles indivíduos simpatizantes da Monarquia, as principais vítimas eram negros e ex escravos que claramente manifestaram gratidão à princesa Isabel (MEIRELLES, 1991, p. 113) 71 Abolição à melancolia e desesperança na República. A confiar no marinheiro Ferreirinha (de quem falamos no capítulo anterior), a República empenhou-se em “quebrar os gênios” também da população em São Luís. É dessa forma que João Olivier torna-se, no romance Vencidos e degenerados, o porta-voz tanto da satisfação do povo ante a libertação, quanto a personificação do desejo de mudança política e social, mas que modifica seu discurso num crescente de desilusão à medida que a narrativa avança e transforma seus discursos em uma sinopse de queixas que expunham as contradições republicanas que impunham uma igualdade, no sentido de que todos deveriam ser republicanos, a golpes de porrete. Nesse sentido, a República vai cristalizando uma imagem negativa para aqueles que sonharam com sua ação de instauradora de uma liberdade na acepção plena da palavra, como sinônimo de repressão a todos os sonhos fomentados pela Abolição. Essa correlação entre Abolição e República ficou no imaginário coletivo brasileiro e podemos constatá-lo nos dois sambas enredo abaixo e cujo objetivo era remorar o centenário dos eventos supracitados. O samba enredo Cem anos de liberdade, realidade e ilusão, de 1988, nos diz: Cem anos de liberdade, realidade e ilusão16 Será... Que já raiou a liberdade Ou se foi tudo ilusão Será... Que a Lei Áurea tão sonhada Há tanto tempo assinada Não foi o fim da escravidão Hoje dentro da realidade Onde está a liberdade Onde está que ninguém viu Moço Não se esqueça que o negro também construiu as riquezas do nosso Brasil Pergunte ao Nosso Criador Quem pintou esta aquarela Livre do açoite da senzala 16 O Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira é uma das mais tradicionais escolas de samba do Rio de Janeiro. Foi fundada em 28 de abril de 1928, no Morro da Mangueira, próximo à região do Maracanã,pelos sambistas Carlos Cachaça, Cartola, Zé Espinguela, entre outros. Sua quadra está sediada na Rua Visconde de Niterói, no bairro do mesmo nome, os atuais presidentes são Chiquinho da Mangueira e Nelson Sargento. O samba enredo Cem Anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão? É da autoria de Júlio Mattos e foi interpretado por Jamelão. Fonte <http://www.mangueira.com.br/a-mangueira/historia/campeonatos/> pesquisa realizada em 15/11/2013. 72 Preso na miséria da favela Sonhei... Que Zumbi dos Palmares voltou A tristeza do negro acabou Foi uma nova redenção O samba enredo da Escola de Samba Mangueira traz a memória coletiva que foi cunhada não apenas nos acontecimentos vividos pelos negros, mas também numa cultura histórica, embasada tanto pela historiografia quanto pelos meios de comunicação que consagrou algumas visões em torno da Abolição quando os dois últimos versos o autor se refere a Zumbi dos Palmares como o novo redentor, ou seja, aqui temos a ideia, que ainda era difundida pela historiografia, de que a Abolição foi fruto da inevitável pressão do capital e que a participação do negro foi por meio da rebelião tendo em Zumbi seu exemplo maior e, portanto excluía as várias estratégias pela busca da liberdade que os negros empreenderam. Mas, interessa-nos o tom melancólico e queixoso sobre a liberdade propalada, mas não concretizada, atentemos que o primeiro verso fala em “já raiou a liberdade”, pois entendemos como uma dupla referência: Libertação e República. Um ano após, com o centenário da República, em 1989, foi a escola Imperatriz Leopoldinense que dedicou seu samba em memória ao evento, percebemos, no entanto, um tom diferente na letra: Liberdade, Liberdade17 Vem ver, vem reviver, comigo amor O centenário em poesia Nesta pátria, mãe querida O Império decadente, muito rico incoerente Era fidalguia [...] A imigração floriu de cultura o Brasil A música encanta e o povo canta assim Pra Isabel, a heroína Que assinou a lei divina Negro dança, comemora o fim da sina Na noite quinze reluzente 17 O samba-enredo “Liberdade, Liberdade” foi composto por oito compositores membros da escola, interpretado por Dominguinhos, intérprete principal, até hoje, da Imperatriz Leopoldinense. G.R.E.S. Imperatriz Leopoldinense foi fundada no ano de 1959 com o intuito de fornecer aos moradores da chamada zona Leopoldinense um local de caráter carnavalesco igual ao que havia no Recreio de Ramos. E cujos frequentadores eram integrantes da mais alta estirpe musical da cidade: Armando Marçal, Pixinguinha, Villa-Lobos, Heitor dos Prazeres, Bidê (Alcebíades Barcelos), Mano Décio da Viola e outros mais, o atual presidente da escola é Luizinho Drummond. Fonte <http://www.imperatrizleopoldinense.com.br/>, pesquisa realisada em 25/05/2013. 73 Com a bravura, finalmente O marechal que proclamou foi presidente Liberdade, liberdade! Abra as asas sobre nós E que a voz da igualdade Seja sempre a nossa voz! A ideia de que houve uma libertação é patente nesses versos. Uma libertação não apenas política, mas de um estado que cativava pessoas, práticas, cultura. Como se aquele 15 de Novembro longínquo houvesse feito uma transformação na estrutura social, econômica e cultural, trazendo ao mundo um novo Brasil. Um Brasil sem fidalguia, sem escravos oprimidos, os versos são claros ao dizer que apesar da princesa ter assinado a lei divina só no advento da República que o negro dança, comemora o fim da sina. Doravante, o que era uma sociedade hierarquizada, passava a ser uma república de cidadãos. Atribuímos, no entanto, o tom eufórico do samba como resultado do retorno da democracia, a memória da ditadura militar ainda estava viva na mente dos brasileiros, um ano antes havia sido promulgada a nova Constituição Brasileira, cognominada de “Constituição cidadã”, assim, compreende-se a não repetição do tom lamentoso que encontramos no samba da Mangueira, aqui a liberdade tinha uma conotação mais política que social. A questão da qual nos ocuparemos agora é justamente sobre até que ponto a República tornou iguais os filhos dessa “pátria mãe gentil”. Como as classes sociais que viveram esse período e os anos posteriores a ele se viram e viram aos demais, como se deu a relação do Estado Republicano com a nação brasileira e quais foram, realmente, as mudanças que se operaram após a queda do regime monárquico. Sobre os eventos e motivação que puseram fim à Monarquia existiram várias versões que foram organizadas em duas categorias, as dos vencedores e as dos vencidos. De forma geral, os vencedores acusavam o poder do imperador como a fonte de toda corrupção, injustiça e de estar alheio às necessidades do povo. Já os monarquistas divulgavam que aquela proclamação foi resultado de uma confabulação de militares indisciplinados apoiados por fazendeiros descontentes com a abolição da escravatura. Além disso, esses simpatizantes da monarquia enumeravam as qualidades da administração da Coroa que dera ao país setenta anos de paz interna e externa garantindo a unidade nacional, o progresso, a liberdade e o prestígio internacional, ao passo que o novo regime era instável e incapaz de garantir a ordem e segurança que existia (COSTA, 1999, p. 393). 74 Com a revisão das conjunturas econômicas, sociais e políticas da época, Emília Viotti chega à conclusão de que uma soma de fatores levou ao fim da Monarquia. Desde as necessidades do mercado internacional, do processo de urbanização e das questões sociais, o clima estava propício à falência daquele sistema político. Assim, cristaliza-se a imagem do Império relacionado ao passado e da República ao futuro, ao moderno e ao progresso (COSTA, 1999, p. 395). Com a primeira década republicana passada fica claro que naquele processo alguns foram beneficiados e outros sacrificados. O baluarte da democracia, a coisa pública mostra-se potentado do exercício de poder das oligarquias, principalmente as paulistas e mineiras. Assim, àquelas explicações dadas ao advento republicano foi adicionado o dado que expunha a participação dos fazendeiros do sul. Foi dessa forma que a República foi fruto de “ressentimentos acumulados: do clero contra a Monarquia, dos fazendeiros contra a Coroa, dos militares contra o governo, dos políticos contra o imperador” somados à incompetência dos políticos imperiais que não souberam defender o seu regime (COSTA, 1999, p. 415). Diante dessa afirmação fica evidente que se tratou de uma mudança motivada pelas necessidades das elites que buscavam no novo regime uma via de acesso ao poder de forma a se beneficiar dele (COSTA, 1999, p. 416). Nossa pesquisa se baseia nos sonhos que os intelectuais brasileiros depositaram nos eventos da Abolição e Proclamação da República como os passos decisivos rumo à cidadania, pois permitiriam o fim dos privilégios e a inclusão e assistência a todos aqueles que estariam “abaixo” da lei, permitiria a todos os brasileiros participar da vida política através do sistema representativo e calcados nos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. Significava não apenas a inclusão daquela massa populacional recém liberta, mas a inclusão dos intelectuais nas tomadas de decisão importantes ao país. Na década de 1880 a inteligência brasileira fazia uso de jornais e panfletos para difundir ideias novas ao público interessado nas campanhas abolicionista e republicana. Mais tarde, na primeira década da República a questão racial torna-se recorrente nas retóricas daqueles que defendiam uma nação brasileira autêntica, o que significava incorporar aos recém libertos tanto na vida nacional quanto na identidade da nação. Várias foram as suas sugestões, desde as que defendiam manter as tradições do passado até as que defendiam um novo começo voltado para o futuro. A Geração de 20, encabeçada pelos realizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, como Mário de Andrade (1893-1945), Manoel Bandeira (1886-1968) e Oswald de Andrade (1890- 75 1954), defendia que era hora de acabar com a prática do mimetismo18 europeu e cultuar o que era da terra, a herança dos povos que deram origem ao brasileiro, que o Brasil deveria assumir o “ser brasileiro”, ou como diríamos hoje, assumir sua brasilidade. Se, por um lado, os intelectuais queixavam-se da política do regime, por outro, teciam suas críticas também à população, principalmente pela sua postura de apatia em relação às questões políticas, que deveriam ser do seu interesse, uma vez que se tratava de um regime representativo. O que os estudos mostraram sobre o comportamento da população naquele período é que havia uma concepção diferente sobre como deveria ser seu relacionamento com o governo, pensamento que parece não ter sido compreendido por aqueles que tentaram entender esse fenômeno (CARVALHO, 2005, p. 75). Primeiramente, Murilo de Carvalho revela em seus estudos que houve quem apontasse que, ao passo que a República foi ovacionada pelas elites, foi lamentada pelo povo. Em pesquisa sobre a cultura política daquele período, José Murilo de Carvalho chega a essa conclusão: Em todas essas revoltas populares que se deram a partir do início do Segundo Reinado verifica-se que, apesar de não participar da política oficial, de não votar ou não ter consciência clara do sentido do voto, a população tinha alguma noção sobre direitos dos cidadãos e deveres do Estado. O Estado era aceito por esses cidadãos, desde que não violasse o pacto implícito de não interferir em sua vida privada, de não desrespeitar seus valores, sobretudo religiosos. Tais pessoas não podiam ser consideradas politicamente apáticas (CARVALHO, 2002, p. 75). Enquanto se esperava que esse cidadão desse o passo por si, o que ocorria era ele primeiro ser “provocado” para enfim partir para a contestação, o que Murilo de Carvalho, em Os Bestializados, chama de movimento reativo e que tem na Revolta da Vacina (1904), no Rio de Janeiro, um exemplo célebre. O fato é que o povo via com desconfiança o novo regime, pois a ação do governo provocou essa sensação. Em níveis de mentalidade, Murilo de Carvalho aponta que foi nos padrões da moral e honestidade que mais se viu modificações na transição da Monarquia para a República. Os dados populacionais que revelam o crescimento da 18 Mimetismo é um termo da biologia que faz referência à semelhança que tomam alguns seres vivos, seja com o meio que habitam, seja como outros animais mais protegidos a fim de garantirem sua sobrevivência e despistar os predadores. Quando os intelectuais brasileiros utilizam esse termo é no sentido de denunciar o caráter imitativo que adquiria a produção artística brasileira em relação ao modelo europeu. 76 população marginal, registros de nascimentos, baixo número de casamentos são dados que revelam uma época em que se vivia de maneira menos conservadora (CARVALHO, 2005, p. 27). Por outro lado, a perseguição feita aos bicheiros, a criminalização do capoeira – por meio da Lei que versava sobre Vadios e Capoeiras e aprovada em 11 de outubro de 1890 – e o favorecimento à especulação na bolsa foram elementos adicionados àquele caldeirão de transformações que contribuíram para aumentar o sentimento de suspeita da população em relação ao governo: O fato de a República ter favorecido o grande jogo da bolsa e perseguidos os capoeiras e o pequeno jogo dos bicheiros sugere uma recepção diferente do novo regime por parte do que poderia ser chamado de proletariado da capital. A euforia inicial, a sensação de que se abriam caminhos novos de participação parecem não ter atingido este setor da população. (CARVALHO, 2005, p. 29). Diante desse quadro que em tudo contribuía para a fomentação de uma imagem negativa da República diante do povo, especialmente diante dos libertos, escritores negros, como Nascimento Moraes, têm diante de si a dura tarefa de congregar os valores da memória coletiva da qual são herdeiros e ao mesmo tempo manter o diálogo em favor da República que, após os dois primeiros mandatos e com a concretização do federalismo, balizado na política dos coronéis, havia afastado de vez o fantasma da Monarquia, portanto, sonhar com a época do imperador e da redentora não era mais um caminho. O caminho era agora achar uma solução para o Brasil que aspirava a modernidade e civilidade “à la Europa” e as aspirações dos ex escravos à cidadania que, a cada ação do Estado rumo ao pretenso progresso, empurrava mais e mais essa categoria social ao limbo da marginalização. O pensamento de Nascimento Moraes, aqui percebido, segue essa linha de mostrar que apesar dos antagonismos, da violência, o problema não estava de fato do regime, mas em como e por quem ele estava sendo viabilizado, não por outro motivo os personagens intelectuais, ou instruídos, em suas narrativas sabem exatamente o que fazer para que essa República funcione de forma a integrar os cidadãos, negros e brancos, ricos e pobres, pois mesmo com todos os poréns, essa República permitiu que homens como ele, Nascimento Moraes, o conterrâneo Astolfo Marques, dentre outros, ocupasse um lugar, apesar de negros, de importância política e social; seu exemplo de vida poderia ser repetido, principalmente via educação e, mais uma vez, esse tema é insistente nas páginas escritas por Nascimento Moraes, muitos personagens que podem ter sua vida confundida com a do próprio intelectual. 77 Ascende na trama de Nascimento Moraes a imagem do intelectual orgânico (GRAMSCI, 1982) nas figuras e Cláudio e João Olivier, negro e mulato que tomavam a posição de porta-voz das necessidades e anseios da população pobre de São Luís. Assim, a República pensada por nosso intelectual enseja toda essa questão problemática da integração do homem negro e/ou pobre naquele sistema que ainda lhe jogava em face que ser “negro” era ser inferior. Uma cidade letárgica Quando pensamos em São Luís, a partir da segunda metade do século XIX, chegando aos primeiros anos da República fica quase impossível não pensar em uma cidade com uma dupla configuração, uma imaginada (idealizada) e o seu contraponto a cidade real, suja, desordenada que se firmava cada vez mais à medida que o processo de urbanização se efetivava. Falamos em uma cidade ideal porque existiam leis que denotavam esse desejo de se fazer da capital maranhense uma urbe condizente com as grandes metrópoles nacionais e internacionais. Assim, é possível perceber essa imagem ao estudarmos os Códigos de Posturas, eles mesmos carregados de um significado paradoxal, pois tentam ordenar a partir da desordem, sem contudo alcançar resultado satisfatório19, as representações da elite e as ações que foram implementadas para que São Luís denotasse civilização e progresso20. A realidade, no entanto, era contraditória. Parece-nos, e essa impressão é passada, sobretudo na leitura do conto O Desmoronamento e do romance Vencidos e degenerados que a cidade apresentada, já na aurora do século XX, ainda era aquela pintada três décadas antes pelo autor de O Mulato, Aluízio Azevedo (1857-1913), nesta cidade de Nascimento Moraes “paralisia” é a palavra de ordem, que define exatamente a situação econômica, cultural e social que estava imersa a população tanto rica quanto a pobre. Apesar da pretensão de se empreender ações de modernização no cenário urbano, a economia não permitia, assim, os atores sociais parecem encenar uma realidade falseada, desmascarada por intelectuais 19 Para compreender como funcionávamos códigos em São Luís, indicamos a leitura da dissertação de mestrado de Heitor Ferreira de Carvalho, Urbanização em São Luís: entre o institucional e o repressivo, 2005, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, UFMA. 20 Não queremos repetir aqui um debate já bastante discutido sobre as aspirações de desenvolvimento e requite alimentadas pela política e elites ludovicenses, remetemos os leitores ao livro da Dra Maria de Lourdes Lauande Lacroix, A Fundação Francesa de São Luís e seus Mitos, Lithograf, 2002, onde a autora explora a emergência dos mitos da Atenas Brasileira e da Singularidade, determinantes para que se projetasse uma imagem de uma São Luís culta, bela e requintada. 78 e pelas estratégias de sobrevivência adotadas pela população pobre e em sua maioria de cor. A situação econômica é sintetizada por Olivier que término do dia, após fazer algumas contas, desabafa: Um horror! Isto já não é viver, é vegetar! Dia a dia as necessidades aumentam e as dificuldades surgem, como por encanto. O Estado, a olhos nus, definha: a exportação é uma miséria... As fábricas foram a pior das cafifas que nos podiam vir acagibar. Quanto capital empatado e brevemente perdido! As fábricas!... (MORAES, 2000, p. 89). E a lista de problemas calamitosos não cessava, - E as companhias - Outras desgraças que nós temos, via de meia-dúzia, em um enorme estava, porque protegidas como são pelo governo, apesar dos maus serviços que prestam,das falhas, de vez em quando, abertas nos contratos, não dão lugar a que outros apareçam, nacionais ou estrangeiros, mas que sejam sérias, úteis, cumpridoras das cláusulas ... -Mas o governo podia chamá-las às contas. - Qual contas! Qual carapuça! O governo está peiado e a peia do preconceito é a pior de todas. O governo não pode ser contra a companhia A, porque o seu gerente, o Senhor B, é um compadre do primo do doutor C, que é um dos chefes militantes no partido situacionista. Não pode contra a companhia D, é um dos seus diretores, o senhor E, que é sobrinho do coronel F, que é compadre do senhor G, que é presidente do Congresso, ou administrador do mercado (MORAES, 2000, p. 89). Parece-nos até que Olivier fala dos dias atuais no Maranhão, o que daria ao pensamento de Nascimento Moraes um tom quase profético, não obstante, o caso é outro, ocorre que Olivier desvela os motivos do letargo econômico no estado: as relações cunhadistas, o favor e as concessões que acabam produzindo uma rede de comprometimento entre meia dúzia de pessoas “de grande quilate” e que deixava a região em tal estado de paralisia que tornava a vida da população mais difícil. As cenas no cotidiano do comércio, da população são reveladoras desse período que mescla algumas novidades que denotavam os novos tempos como automóveis circulando, a iluminação elétrica, o bonde, mas, por outro lado, símbolos do atraso, as carroças, ruas escuras, falta de sistema de esgotos, abastecimento de água. Na crônica a seguir, uma síntese do que passavam os mais humildes na capital maranhense: Em noites como a de hontem, tenebrosas e tristes, em que não se distinguem os vultos suspeitos que passam, eu me deixo ficar em casa, satisfeito com o enxuto que me protege da humidade que se extorce 79 doente nos casebres ruins, desolando e matando, de acordo com a fome. E ouvia vozes que subiam e desciam por necessidade, praguejando contra o destino e contra a natureza, descalços, tropeçando aqui e alli, no calçamento desigual, topando em cheio nas pontas de pedras e esbarrando nas construções... Pelas esquinas vejo brazas accesas como a que eu mantenho num stender delicioso, e nas janellas das casas vizinhas também as descubro. Essas brazas, e não há negar, protestam, silenciosas, contra o horror da noite, contra essa prisão fechada, a que são obrigados os trabalhadores que esperam, à noite, divertir o espírito abatido, pagar visitas, refastellar pelas praças em descontos das horas passadas no terrível ganha pão. Conversam as das janelas, e conversam as dos cantos. Que dirão estas? Que há naturezas humanas incorrigíveis, intransigentes em seus hábitos e em seus desejos. Que nada pode contra ellas a falta de carvão no gazômetro, e de policiamento na cidade (A Imprensa, 19/04/1907). A crônica mais uma vez reforça o culpado pelo atraso, pela fome e miséria que assola os trabalhadores, impedindo-lhes uma boa alimentação, um descanso quente e confortável e até a socialização ao fim do trabalho, pois tudo está imerso nessa escuridão, sinônimo de decadência econômica e moral, pois que são as naturezas humanas incorrigíveis, intransigentes em seus hábitos e em seus desejos que impedem que a escuridão desapareça. Em O Desmoronamento, o narrador utiliza o noivo escolhido pela família de Vitorinha, como o ideal, o socialmente aceitável, por ter posses e ter passado anos na Europa, logo, um rapaz civilizado, para revelar essa natureza incorrigível e seus vícios. Armando é um mulherengo da pior estipe, mas por outro lado usa a própria convenção social que o elegeu como um noivo ideal para troçar dos hábitos “indígenas” da elite maranhense. Logo após o casamento, as máscaras caem e Vitorinha descobre a verdadeira personalidade do esposo. A educação de Armando, à europeia, era em São Luís, um simulacro de educação. Armando bebia todas as bebidas alcoólicas. Passava as noites em orgias nas casas das horizontais mais afamadas de S. Luís. Depois das reuniões familiares a que comparecia, Armando entregavase em companhias de mulheres vadias, a excessos que, por vezes, avultavam como escândalos. Ao dia seguinte, a meia voz, toda a cidade sabia do caso, com todos os pormenores. Citavam-se os nomes das “horizontais” que haviam tomado parte da farra! Era inútil negar ou procurar estabelecer a balbúrdia, em torno do que se passava. Aliás, Armando não escondia as suas diabruras. Acostumara-se nos 80 grandes centros de civilização a fazer tudo às claras. Mulheres, prazeres, vinho, que havia de mais! (SANTIAGO, 1989, p. 238). E quando interpelado pela esposa, Armando ria de sua inocência e citava nomes de companheiros de vadiação, nomes insuspeitos. E Armando retrucava, entre doses de escárnio, que era preciso que a esposa passasse uma temporada na Europa, a fim de civilizar-se, pois lá suas práticas eram da maior normalidade. A boca miúda que condenava Armando revelava o maior de todos os vícios da cidade, a hipocrisia e o falatório. Em uma crônica, publicada em 1902, Nascimento Moraes explora o espaço da barbearia como um ponto de sociabilidade e um local onde se podia fazer, a pretexto do asseio pessoal, aquilo que mais se gozava naquela cidade: saber da vida alheia. O personagem principal é o barbeiro, olhos e ouvidos da cidade, sabia o que acontecia a todos e não se furtava a oportunidade de pôr seus clientes em dias com as novidades da vida oculta que não se conseguia esconder de fato. Nascimento Moraes não é nem um pouco benevolente ao descrever o barbeiro e seu vil ofício, pois fica bem claro que a barbearia era apenas uma fachada, seu verdadeiro ofício era dar conta de vida de tudo e de todos, dramatizando, aumentando e jubilando-se de tudo. ... Quem o vê, com tezoira e pente, aparando cabelleiras ou raspando cascos á escovinha, espichando o pescoço, piscando os olhos, revirando-os, como que seguindo os movimentos do ferro, crê ter diante de si verdadeiro typo de homem trabalhador, que não se incommoda com o que se diz e se faz ao redor... Emfim, sahe essa turma. O barbeiro descança e fuma. Não é mais o homem de ha pouco, serio e impertubável. Agora é elle quem provoca os freguezes. Atira-lhes tudo o que ouviu da conversa dos que sahiram, aumenta mesmo alguma coisa por sua conta. Esbraveja, grita, salta, deixa de barbear ou de cortar cabellos, para agitar o braço no ar exprobrando e convencendo os freguezes que o olham, admirados da sua fecundice... (A Campanha 27/05/1902). O barbeiro encerra a analogia perfeita da teatralização de uma vida moralizante que alguns naquela cidade queriam passar, mas quando a oportunidade acenava, mostravam sua verdadeira face, assim como Armando revelava à esposa que a noite nomes ilustres frequentavam as mesmas “horizontais” em sua companhia, no entanto, era o que mais se exigia naquela sociedade, decoro, bom comportamento, reclamavam alguns nos jornais dos bêbados na rua quando esse era um vício de todos, das roupas “despudoradas” das mulheres, mas era preciso manter a imagem da cidade civilizada, do 81 cidadão que seguia a moral e os bons costumes, no entanto, à noite, todos os gatos se faziam pardos. Essa hipocrisia não era perdoada por Nascimento Moraes, sempre apontando algum vício, alguma prática torpe por debaixo das máscaras de requinte e boa educação. Quanto ao povo miúdo, em meio a essa teatralização do cotidiano não abria mão de sua identidade, como já salientamos, vivia, especialmente no espaço da rua, e à noite a sua negritude, o tambor, as danças, os pagodes tingiam as noites tristes na cidade iluminada em muitos trechos à brasa de carvão, as festas religiosas também configuravam um espaço de liberdade para que as identidades se revelassem e se confirmassem, o povo gosta de festejar, sociabilizar com seus confrades e expressar-se sem que os códigos de polidez controlassem seu instinto. Em Vencidos e degenerados temos o relato de como se dava o festejo de Santa Severa, no adro de São Pantaleão; Prolongam-se pela noite, como de costume os festejos da tarde, aformoseados com a solene pompa deslumbrante do culto católico de São Pantaleão. Havia iluminação no adro que a mais e mais se enchia de gente – agradável promiscuidade de classe. A vida da festa, ruidosa, intensa, lucrativa e cativante começava a manifestar-se: animava-se a vozeria, movimentavam-se os botequins e as casas de sorte... Mocinhas do bairro, muito modestas, muito simples, com a garridice da beleza sem artifício passeavam, rosas nos seios, rosas nos cabelos, aberta a flor do lábio num sorriso encantador. Os fogos só se tocariam às onze horas, ou mais tarde. Por isso, muitas famílias se retiravam, acabada a reza. Outras porém, que não se aborreciam de esperar, pediam cadeiras nas casas vizinhas e colocavam-se na parte superior do adro... O bairro pode-se dizer que é da pobreza, e por isso ela é quem se diverte nesses dias, mal vestida, em geral modesta e simples, mas arruaceira armada de grossos cacetes e vozes ásperas para os moços bonitos da cidade, como dizem os rapazes, em tom de mofa, enfezadamente agressivos. A polícia é mal vista por lá, a cabroeira dos outros bairros também não é bem recebida e, assim, quando menos se espera, por causa de uma raparigota qualquer, que faceira se requebra a um indivíduo estranho ali, o rolo fecha, a capueragem se desenfreia e quem puder que se salve... (MORAES, 2000, p. 95). A rua também é carregada dessa ambiguidade, pois em determinadas horas e locais não é vigiada, e ainda que fosse, há lugares que nem a polícia se atreve a frequentar, a rua torna-se, portanto o lugar em que as identidades podem ser vividas de forma livre, sem que haja empecilhos. Nesta outra passagem o velho Bento dá conta a Olivier sobre um pagode que ocorre todas as noites na esquina da rua em que habita. 82 - Se encontrasse uma casinha aqui, mudava-me! Isto parece tão silencioso e pacato! - É o que te parece. É fato que, de dia, estes quarteirões abrem apetite à gente, mas à noite, Deus nos acuda! Esta quitanda ai da esquina põe em reboliço a quadra! É um ponto de reunião dos peraltas e vagabundos dessa cidade. A pinga deste português tem um sabor especial, ao que me parece. De dia, eles se mantêm sem desordem: gritam, vociferam, discutem; mas, depois que anoitece, é uma bulha dos diabos... (MORAES, 2000, p. 86). Dir-se-ia que nessa São Luís pintada por Nascimento Moraes o paradoxo faz morada e “a noite todos os gatos são pardos”, sejam aqueles que se enquadram durante dia para fugir do controle policial e social, sejam os que encenam uma vida correta, mas que, sendo espíritos fracos, cedem aos instintos jogando-se nos prazeres carnais e da bebida, e assim o teatro da vida é encenado na capital maranhense. “É assim que se trata um cidadão?” O parágrafo segundo do romance Vencidos e degenerados aponta quem compunha a multidão que aguardava pela notícia da libertação: “Os que lá se achavam naquela gloriosa manhã eram pessoas de diversas classes sociais, desde o funcionário público e o homem de letras até artistas, operários livres, não faltando vagabundos e desclassificados” (MORAES, 2000, p. 27). Após a Abolição, e após a República, essas diversas classes seriam reduzidas a uma única categoria, a de cidadão e este foi um problema para a sociedade brasileira calcada numa estrutura hierárquica, racista e patriarcalista onde o respeito e a submissão eram as prerrogativas para a relação entre as classes, sempre no sentido vertical. Desta forma, diante da homogeneidade legal a sociedade busca novas maneiras de conservar as hierarquias e distinções. Deu-se das mais variadas formas, desde o uso de aspectos legais, até no relacionamento interpessoal nos interstícios da vida cotidiana, do modo de se vestir aos hábitos de sociabilidade, do uso do poder econômico para mostrar aos desavisados que a lei uniu, mas nunca misturaria aqueles sujeitos. O Ocidente, ao longo de sua história, desenvolveu um ideal de cidadania plena em que liberdade, participação e igualdade seriam direitos que estariam ao alcance de todos. Possivelmente por tratar-se de um “ideal” não vejamos uma similaridade com a prática. No entanto, faremos uso das bases do que seria o pleno exercício da cidadania a fim de termos um modelo com o qual compararemos as faces que adquiriu a prática da 83 cidadania no Brasil, nas primeiras décadas do regime republicano, objeto da nossa pesquisa. Cidadania plena seria aquela que garantisse direitos civis, políticos e sociais. Sendo que os dois primeiros direitos seriam necessários para a existência do terceiro. Compreende os direitos civis o direito à vida, à liberdade, à igualdade perante a lei, à propriedade. Já os direitos políticos dizem respeito à participação do cidadão no governo da sociedade, que se resumiria no direito de votar e ser votado. Conforme, José Murilo de Carvalho (2002), os direitos civis e políticos garantem a vida na sociedade e a participação no governo, enquanto que os direitos sociais garantiriam a participação na riqueza coletiva, por isso eles incluiriam: O direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria... Na ausência de direitos civis e políticos, seu conteúdo e alcance tendem a ser arbitrários. Os direitos sociais permitem às sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo e garantir um mínimo de bem-estar para todos. A ideia central que se baseiam é o da justiça social. (CARVALHO, 2002, p. 10). Como percebemos facilmente, voltando-nos para os dias atuais, a cidadania plena ainda é um ideal a ser alcançado e que os direitos civis e políticos ainda não obtiveram o mérito de garantir aos cidadãos os direitos sociais que permitiriam enfim a igualdade entre todos. Assim como a cidadania se desdobra em três tipos de direitos, o cidadão também é denominado a partir dos direitos que usufrui, ou não. “O cidadão completo seria aquele que fosse titular dos três direitos. Cidadãos incompletos seriam os que possuíssem apenas alguns dos direitos. Os que não se beneficiassem de nenhum dos direitos seriam os não cidadãos” (CARVALHO, 2009, p. 9). Quando se fala em cidadania ainda estamos presos à ideia que relaciona o cidadão àquele que vota e principalmente àquele que tem posses. No Brasil, essa ideia constrói-se ao longo de sua história de Estado independente, quando o voto torna-se uma prática política constitucionalmente instituída. Isso poderia explicar o que prevalece em muitos imaginários de que ser cidadão é apenas participar da vida política do país através do voto e do apoio expresso ou da revolta declarada contra as ações do governo e, possivelmente, foi um dos fatores que motivou Aristides Lobos, em carta publicada no jornal Diário Popular do dia 18 de novembro de 1889, a afirmar que não existia cidadão no Brasil, devido a uma suposta não participação popular no advento da 84 proclamação republicana21. Ideia já desconstruída por José Murilo de Carvalho em Os Bestializados (1987), principalmente por existirem várias formas da prática cidadã a qual nos voltaremos mais adiante. Possivelmente um dos grandes entraves à concretização da cidadania, de forma plena, seja o fato de não se tratar de um bem que seja doado a alguém, mas algo que se constrói a partir da relação das pessoas com o Estado. Tal relação requer que os indivíduos sintam-se membros do Estado, identifiquem-se como componentes de uma nação. Torna-se, portanto, impossível pensar em cidadania sem que se reflita sobre o nacionalismo. Verificamos na história do Brasil que vários fatores atravancaram e até minaram o nascimento de sentimento de nação na população. Desde o sistema políticoadministrativo implantado pelos portugueses até a prática autoritária do regime republicano instalado no último decênio do século XIX. Durante o período colonial (1530-1822) não se pode pensar nem em cidadania, nem em nacionalismo. Não existia nem ideia, tampouco a prática da igualdade perante a lei, quem tinha posses fazia uso da justiça como instrumento do poder pessoal. O sentimento de unidade ou de patriotismo foi dificultado pela dinâmica da colonização lusitana que ao findar22 deixou como herança ao Estado Brasileiro uma sociedade escravocrata, latifundiária, pautada nos princípios do patriarcalismo subjugador de uma grande massa de analfabetos. Conforme José Murilo de Carvalho, Chegou-se ao fim do período colonial com a grande maioria da população excluída dos direitos civis e políticos e sem a existência de um sentido de nacionalidade. No máximo, havia alguns centros urbanos dotados de uma população politicamente mais aguerrida e algum sentimento de identidade regional. (CARVALHO, 2002, p. 25). Percebemos que o nascente Estado brasileiro a partir do advento do Império, em 1822, tinha uma grande tarefa a realizar a fim de converter aquela população segregada por hierarquias econômicas e distinções regionais em uma nação. Como tornar essas pessoas em cidadãs quando o próprio processo de independência política foi nada mais que um acordo entre a elite latifundiária, a Coroa Portuguesa e a Inglaterra? 21 Utilizamos o termo “suposta” porque existem outras versões que falam não apenas da participação popular mas, também de que se sabia o que estava acontecendo, inclusive há nos jornais cariocas testemunhos de figuras conhecidas como, por exemplo, Euclídes da Cunha. 22 Referimo-nos especificadamente ao fim do monopólio político e econômico da Coroa Portuguesa, em agosto de 1822. 85 Murilo de Carvalho nos informa um dado interessante que pode justificar a relação que se faz entre a prática cidadã e o ato de votar. Segundo esse historiador, a Constituição de 1824 permitia que homens a partir de 21 anos com renda mínima de cem mil réis votassem. Essa determinação ampliava bastante o número de votantes, pois essa renda não era um valor exorbitante, qualquer homem com um ofício a possuía, e para confirmá-la bastava um testemunho, uma declaração. Além disso, o fato de ser analfabeto não interditava o votante (CARVALHO, 2002, p. 31-32). O que deveria ter sido um avanço rumo a uma política liberal tornou-se problema, pois o direito ao voto não foi acompanhado por uma política de conscientização do votante. Eram em sua maioria pessoas despolitizadas e ainda oprimidas pela justiça dos mais fortes. A fraude, o uso da força e até a venda de votos tornaram-se lugares-comuns e parece-nos que até hoje deixou fortes marcas nos processos eleitorais brasileiros. Em outras palavras, quando o votante era mais esperto, fazia do voto uma moeda de troca, o período eleitoral tornou-se um momento de ganhar dinheiro fácil e as eleições uma via de os detentores de maior poder de compra e persuasão pela força um meio para chegar à administração do Estado (CARVALHO, 2002, p. 36). Dessa forma, percebemos como a construção da cidadania no Brasil inicia-se de forma distorcida do ideal. Inicia-se pela doação de um direito político que a princípio pode subsistir aos direitos civis e sociais, o que ocorreu no período monárquico em que existia a prática do voto (direito político). Partimos, no entanto, do pensamento de que a confiança no Estado é determinante para garantir-lhe um relacionamento positivo com o cidadão. Confiança que deveria ser garantida, principalmente, com a excelência dos direitos civis e sociais, principalmente os sociais, pois trariam ao cidadão não apenas o bem-estar, mas a própria consciência do seu papel dentro da política e funcionamento do país. A segunda via de acesso ao apoio da população seria via patriotismo. No entanto, em um Estado em que cada província cultivava um regionalismo marcante, muitas vezes se rebelando a fim de separar-se do restante do território do país, o sentimento de patriotismo resumia-se ao ódio ao português. O motivo era o fato de não só a economia, como a administração estar quase em sua totalidade em mãos lusitanas. Tal quadro só mudaria com a Guerra do Paraguai (1864-1870) quando o ódio ao estrangeiro vizinho foi partilhado pelos brasileiros para além das fronteiras regionais (CARVALHO, 2002, p. 32). 86 No entanto, quando esse passo positivo foi computado em favor do patriotismo, a construção da cidadania sofre um golpe com a Constituição de 1881 que aprova a lei do voto direto, aumentando a renda mínima do eleitor para duzentos mil réis e excluindo aos analfabetos. Essa lei diminuía a participação da população por duas vias, não necessariamente pelo aumento da renda, já que duzentos mil réis ainda era um valor que não chegava a ser exorbitante para a época, mas a comprovação tornava-se tão desgastante que muitos desistiam, mas foi principalmente a exclusão dos analfabetos que causou a diminuição do eleitorado a números extraordinários. Dos homens aptos a votar, apenas 20% eram alfabetizados (Cf. CARVALHO, 2002, p. 39). Essa restrição não motivou o Estado a implementar medidas para alfabetizar essa população, aliás, por muito tempo a educação passou longe das preocupações do Estado Brasileiro. Ainda uma vez, pensando nos dias atuais, cobra-se do brasileiro uma prática cidadã mais contundente – tendo como parâmetro o ideal de cidadania – acusando-o de apático, conformado, despolitizado. Mas, torna-se necessário e justo investigar as causas desse comportamento. Mais uma vez voltamos ao processo histórico que nos mostra que desde o momento da instituição das eleições, a partir do período monárquico, não só a população, mas também o governo não estava preparado para o exercício da cidadania. Se havia corrupção nos pleitos, existiam dois agentes, o que vendia e o que comprava, o que persuadia pela violência ou ameaça e o que calava e aceitava. Não apenas os direitos sociais eram ausentes, o direito civil também, a começar pelo direito à liberdade e igualdade. Tratava-se de um Estado escravocrata. Além disso, o que prevalecia era o direito à propriedade que podemos deduzir ser o latifúndio monocultor, principalmente. O Estado mantinha-se nos alicerces do patriarcalismo e estava comprometido com o poder privado. Emília Viotti Costa destaca que, muito embora, parte dos colaboradores da Constituição de 1824 se voltassem ao modelo do liberalismo e democracia europeus, como França e Inglaterra, o regime escravocrata e a suspeição das elites em relação ao imperador dificultavam que aqui existisse algo parecido ao sistema político da Europa. Tornar os brasileiros iguais poderia desencadear algo parecido à Revolução Francesa (1789-1799) ou a bem sucedida Revolução Haitiana (1791-1804), que foi influenciada pela primeira, por exemplo. Aos integrantes da elite brasileira não era interessante um exercício pleno da cidadania: 87 Atemorizados pelos aspectos da Revolução Francesa e da revolta de escravos no Haiti, desconfiavam tanto do absolutismo monárquico quanto dos levantes populares revolucionários e estavam decididos a restringir o poder do imperador e manter o povo sob controle. Para levar a cabo seu projeto encontraram sua principal fonte de inspiração no liberalismo europeu (COSTA, 1999, p. 132). O que a princípio pode parecer estranho é facilmente justificável, ao mesmo tempo, em que o liberalismo defende a liberdade, o que prevalece é a defesa à propriedade privada, a livre iniciativa em detrimento da ação estatal, o que estava totalmente em acordo com os interesses das elites locais. Outro princípio que era base do liberalismo, mas que no Brasil não teve espaço foi o da liberdade individual que esbarrava no sistema escravocrata. Assim, cria-se uma dualidade nos direitos civis, pois o direito à vida, à liberdade e à propriedade estavam além do alcance deles, os escravos, que não eram considerados pessoas, mas coisas, propriedade a qual o dono tinha todo o poder. Porém, o mais importante foi o que essa prática operou nos imaginários. Enquanto os escravos estavam abaixo ou mesmo fora do alcance das leis, pois eram controlados pela lei pessoal do seu dono, os proprietários julgavam-se acima da lei uma vez que realizavam os mais variados tipos de maus tratos com seus escravos, matar era apenas uma delas. O cidadão brasileiro é formatado nessa perspectiva dual daquele que merece ser tratado com justiça pela lei e daquele a quem a justiça não enxerga. Conforme Murilo de Carvalho, A consequência da escravidão não atingiu apenas os negros. Do ponto de vista que aqui nos interessa – a formação do cidadão-, a escravidão afetou tanto o escravo como o senhor. Se o escravo não desenvolvia a consciência de seus direitos civis, o senhor tampouco o fazia. O senhor não admitia os direitos dos escravos e exigia privilégios para si próprio. Se um estava abaixo da lei, o outro se considerava acima. A libertação dos escravos não trouxe consigo a igualdade efetiva. Essa igualdade era afirmada nas leis, mas negada na prática. (CARVALHO, 2002, p. 53). Essa negação ainda se faz presente nas práticas sociais brasileiras atuais, sendo bem traduzida na fala “você sabe com quem está falando?”, mostrando que o que prevalece é o privilégio em detrimento do direito. Apesar de o movimento abolicionista significar um avanço em termos de construção da cidadania o que de fato era ordem nas propostas liberais era adequar aquela sociedade tal como estava estruturada ao processo de modernização que se via nas grandes metrópoles capitalistas, como Inglaterra e França. A estrutura social e 88 econômica não sofreu muitas mudanças com o advento da Abolição em 1888, os escravos foram libertos e deixados à própria sorte, a liberdade continuava sendo mais retórica que real. Entre as várias estratégias adotadas pelo liberto, representado no romance Vencidos e degenerados, para sobreviver na cidade republicana, temos o recurso que hoje a antropologia cultural denomina de malandragem. Optamos por analisar apenas o personagem Zé Catraia, uma vez que nossa exploração do pensamento de Nascimento Moraes não se esgotará nesse trabalho, outro motivo, e, este é o mais importante, são as características desse personagem que nos permitem perceber sua trajetória entre a ordem e a desordem e os modos com os quais ele enfrentava seus oponentes. Logo no início do romance, Zé Catraia é apresentado como um orador popular, qualidade explicitada na forma como ele debatia em público “quando falava unia a palavra ao gesto, rasgava demoradamente o vocábulo, tinha tons e semitons com que coloria as suas frases, que não se primavam pela pureza e precisão vernácula, não eram também amostras de idiotismo e mau gosto literário” (MORAES, 2000, p. 45). Onde em outros o tom soava como empáfia e artificialidade, em Zé Catraia fluía sedutoramente, chamando atenção para si. Zé Catraia era mais um libertado naquela noite de 13 de maio, no entanto a liberdade não significou vantagem, passara de consultor temido pelo ex senhor a vadio, muito embora realizasse diversos misteres e fosse refinado sapateiro, a imagem que sobressaía era do bêbado capoeirista e abusado, pois, além da oratória, Zé Catraia tinha um “quengo” que lhe tornou temido por alguns, sabia da vida de todos, dos detalhes mais escusos, especialmente dos graúdos, que, quando topavam com o Catraia sentiam-se ameaçados. Aquela sociedade de “homens livres numa ordem hierárquica”, Nascimento Moraes soube descrever as marcas de distinção, uma delas no trajar. Os personagens membros da elite apresentados no maior aprumo, os desclassificados, trabalhadores menores e vadios em farrapos, sem camisa, pés descalços. Roberto DaMatta sublinha que esse era um mecanismo dos altos estratos sociais para reagir à lei que igualava os cidadãos: Diante da lei geral e impessoal que igualava juridicamente, o que fazia o membro dos segmentos senhoriais e aristocráticos? Estabelecia toda uma corrente de contra hábitos visando a demarcar as diferenças e assim, retomar a hierarquização do mundo nos domínios fundamentais do mundo das relações pessoais, e dos elos de substância. E assim, inventamos uma teoria do corpo, acompanhada de uma prática cujo 89 aprendizado é, até hoje, extremamente cuidadosa (DAMATTA, 1997, p. 199-200). Zé Catraia é descrito como “muito macilento, magro, olhos encovados, sujo”, mas quando falava, saíam coisas do tipo “desculpe-me a ousadia ex-abrupta. Mas, eu o aprecio, assim como apreciava seu pai...” (MORAES, 2000, p. 145). Mas a figura de vadio tornava-o culpado, no episódio em que Zé Catraia é preso, o policial quando chamado pelo senhor que se sentiu injuriado não perde tempo em apurar o motivo da queixa, o desclassificado Zé Catraia, sem camisa, descalço, suado é culpado e, portanto levado, como ele narra o corrido a Cláudio Olivier: Zé Catraia deu um pulo à porta, olhou para um e outro lado, coçou a barba, fazendo uma careta em que todos os músculos da cara se lhe contraíram, e voltou à primitiva posição: - Ontem à tarde o Machado mandou prender-me. - O Machado? - O Machado. Ele tinha razão e não tinha... Eu lhe conto a coisa porque sei que ele é seu protetor... Ele subia a Rua de São Pantaleão de braço com uma senhora. Eu descia, arrimado numa camoeca furibunda. As janelas estavam repletas de moças... Eu, por um ímpeto involuntário, acostumado naquele bom tempo da Travessa do Precipício (o senhor não conhece essa época, mas pergunte a sua mãe) eu gritei: Oh Paletó Queimado? Como vais tu, português? - Prenda este homem- gritou ele. – Prenda este homem! – repetiu para um soldado que passava... (MORAES, 2000, p. 149-150). O motivo da raiva de Machado não estava na afronta, mas no temor que sentia por Zé Catraia, este sabendo de suas origens, quando era o bodegueiro no Beco do Precipício, o Paletó Queimado, era uma forte ameaça às boas relações que o português mantinha e que custava seu sucesso social. Machado é uma personalidade fraca que tudo faz para agradar de forma a não cair das graças da elite. Dessa forma, Machado representa o inverso do Zé Catraia: este, apesar de genuinamente inteligente, de conhecer fatos dos quais se tirasse proveito, obteria algum e talvez significativo lucro, negava-se, sua escolha era impor sua presença, sua troça, importunar de fato, fazer com que lhe suportassem a pessoa; ao contrário, Machado, enriquecido a golpe de sorte tratou de cortar laços que pudessem relacioná-lo aos desclassificados, bajulou, se fez de tapete e virou marionete naquele teatro encenado pela elite da cidade. Roberto DaMatta diz que o herói na narrativa deve sempre ser um pouco trágico (DAMATTA, 1997, p. 257), o trágico na trajetória de Zé Catraia é a sua própria 90 existência, marcada pelo nascimento no cativeiro e pelo estigma da cor, estava condenado, pois, obscuro, desprezado, sem amigos, sem recursos, levando uma existência miserável, não era, contudo, o engravatado pelintra, que ganha pataca e meia, que lhe rende um emprego fértil, e que não conhece o ambiente onde vive. O imbecil do colarinho inveja a sorte dos ricos, e curva-se ante a potentade de seu ouro. Zé Catraia não: naquela água em que vivia mergulhado, sem princípio nem fim, não invejava a boa fortuna dos graúdos, nem lhes beijava os calcanhares. Ali, onde o viam, era dos poucos que sabiam e podiam desprezar os miseráveis, rir do despudor hipócrita, fotografar a eterna comédia da vida (MORAES, 2000, p. 155). Fôssemos traçar um perfil, Zé Catraia encaixa-se no do perfeito malandro elaborado pela literatura brasileira. Em Zé Catraia há pobreza e desgraça, mas não mediocridade. Nele abundam a esperteza e a sagacidade, temos a própria estrutura narrativa de Vencidos e degenerados que conta sua trajetória por meios de episódios breves, quando se sente ameaçado, usa da zombaria, que junto à sagacidade são as maiores armas dos fracos, e por fim, ele possui meios de ascender, mas recusa-se a usálos, nesse ponto Zé Catraia não é um herói sem nenhum caráter, e talvez essa seja a contrapartida do autor quando cria um personagem símbolo da marginalização e imoralidade, no período, não por seus predicados morais, mas pela sua condição étnica, ao passo que o seu “oponente” na narrativa, o português dos arranjos, dos favores, que se torna “alguém digno de deferências”, não por merecimento, mas por um mero golpe de sorte e um pouco de velhacaria, desmascara a lógica do estado republicano e de inclinação liberalista e excludente, pois diante dessas relações sociais não há como o trabalho ser o mediador entre a riqueza e a pobreza. Zé Catraia confia a Cláudio o segredo da riqueza de Manoel Machado, e por isso, sabendo que aquele sujeito não é digno de nenhum reconhecimento e deferência insiste em chamá-lo de Paletó Queimado. O uso de apelidos pelos populares pode ser vislumbrado como uma forma de desnortear e desmascarar o histórico “você sabe com quem está falando?”, pois o apelido pode revelar alguma torpeza no caráter o que desmereceria o reconhecimento social ou, como reconhece o próprio Zé Catraia, poderia levar o alcunhado à pilhéria e isso não fica bem a um graúdo, deixemos a molecagem aos vadios e desclassificados! A pergunta de abertura do nosso subcapítulo é respondida pelas ações tecidas nos interstícios da ordem em São Luís. Quando a própria insignificância social é usada como arma por Zé Catraia, percebemos que aquele cidadão de cor é tratado por vezes 91 com indiferença “Ora, quem dá importância ao Zé Catraia? Ninguém! Um bêbado que anda encostado nas esquinas... Um pobre diabo, imbecil, cretino...”; outras com desprezo, “Por que se consente este homem tomar o bonde? Não respeita ninguém!”; e também com pena por ver nele também um débil “deixe o homem... é o Zé Catraia, um pobre diabo”. Uma modernidade que mata, moraliza e exclui Nas enfermarias públicas de um hospital veem-se horrores que a gente parece não encontrar entre as pessoas que conseguem morrer em casa, como se certas doenças só atacassem pessoas dos estratos de renda mais baixos. George Orwell A questão sobre a qual nos ateremos neste item é a maneira como Nascimento Moraes estabelece a percepção que a população pobre tem da modernidade como algo ruim, que traz inclusive a morte. Para tanto, estudamos o papel do imaginário em torno da Peste Bubônica nos primeiros anos do século XX. No ano de 1904 a cidade de São Luís foi assolada pela peste bubônica. Dentre as causas da deflagração estavam principalmente a higiene pública, que na falta ou ineficácia de serviço sanitário e escoamento ocasionava o acúmulo de lixo, exposição ao ar livre de animais mortos, esgotos, falta d’água... Esse cenário insalubre estava presente principalmente nas ruas mais populares em torno da Praia Grande e no próprio centro da cidade porque o pouco que havia de serviço sanitário ficava restrito às ruas mais abastadas e ainda assim era um serviço precário. Não fica difícil perceber que esse quadro estava propício para o ajuntamento de moscas, ratos, baratas, além do mau cheiro e lamaçal, criando as condições perfeitas para a proliferação da peste bubônica que logo se tornou uma epidemia. Diante das condições sanitárias desfavoráveis, a peste se espalhava com extrema rapidez fazendo inúmeras vítimas. A Junta de Higiene, instituição pelas condições de salubridade local, reproduzia o mesmo quadro de desigualdade que havia na cidade, pois enquanto os membros das famílias mais ricas recebiam assistência médica, a população pobre era deixada de lado. Quando esta última recebia algum tipo de atenção por parte do poder público, era de qualidade inferior sendo geralmente deslocada para um hospital de isolamento improvisado que ficou conhecido vulgarmente como “sepultura em vida”, dada às suas péssimas condições (MEDEIROS, 2003, p. 201). 92 O médico carioca, Victor Godinho (1862-1922), que fazia parte da Junta de Higiene, fez em 1904 um relatório sobre a situação da peste, desde as possíveis causas da sua deflagração até a situação da população, denunciando também as práticas que se adotavam em benefício dos doentes da elite, desde o desvio das poucas vacinas que chegavam até o aluguel de leitos no Hospital Português, principal destino dos acometidos pela enfermidade. Parece até que George Orwell havia visitado São Luís naquele ano, pois o que se via nos corredores e leitos daquele hospital eram “verdadeiros horrores” (GODINHO, 1904). Percebe-se, portanto, que a camada mais pobre sofria duplamente com a ideia da peste, primeiro estavam mais suscetíveis a contraí-la, depois, uma vez vitimados, possivelmente tinham a ciência de que seriam “sepultados vivos” na necessidade de serem internados. Encontramos publicados no jornal A Campanha um conto de Nascimento Moraes, intitulado A Peste (1902), em que ele trata desse temor popular pela peste, o título é A Peste e é dedicado “aos pequenos leitores”. Neste conto, o autor explora o medo popular em torno da peste e também a representação que se fazia da mesma, num jogo metafórico regado de ironia, a troçar do temor desvairado e ao mesmo tempo elucidando uma concepção supersticiosa por parte do povo. A narrativa inicia introduzindo um lavrador a cavalo que interrompe a cavalgada ao ouvir seu nome ser chamado três vezes, voltando para ver quem o chama depara-se com a visão de uma velha que lhe pede uma carona: A velha aproximou-se e ligeiramente subio como se tivesse vinte annos. Abraçou-se ao cavalleiro que sem mais esperar esporeou com força o animal. Se o Cavallo d’ante corria, agora voava, o lavrador não distinguia mais nada. Elle acostumado a montaria, teme desta vez. -Aqui há coisa, disse elle, este Cavallo não corria assim. É esta velha que está fazendo este Cavallo correr tanto! E desconfiado, empregou esforços sobrehumanos e para o animal (MORAES, A Peste in A Campanha, 10/10/1902). Já o começo do conto nos faz lembrar aquelas antigas histórias que os avós de alguns costumavam contar no fim da noite, geralmente após o jantar. Os ingredientes desse conto, claramente mimetizando um conto folclórico, estão lançados: um viajante humilde e supersticioso no meio do caminho depara-se com o sobrenatural, a referência ao chamado do nome três vezes que, segundo a crença popular, é a morte chamando, 93 depois é feito um acordo entre ambos e o desfecho, que no conto de Nascimento Moraes distancia-se do arquétipo popular para dotar de uma moral sobre a situação real que vivia a cidade. Transcrevemos abaixo o desfecho da narrativa a partir do momento em que o lavrador toma conhecimento que tem a Peste como companheira de viagem: - O que velha?! Disse o lavrador benzendo-se e saltando immediatamente. - Sim, eu sou a Peste, mas não se assuste, que eu não lhe faço mal. - Desça do Cavallo é que é! Suma-se velha! (MORAES, A Peste in A Campanha, 10/10/1902). A velha convence o lavrador que não lhe fará mal e consegue chegar a seu destino, descendo logo à entrada da cidade e prometendo que ali mataria apenas oito pessoas e nenhum seria parente do viajante. Depois de uma semana, a velha começou a sua obra; o lavrador de casa, muito desconfiado, recebia as notícias d’um terrível mal que lavrava. Ele calado, ouvia as narrações, tremulo porque via que já passara de oito pessoas, já haviam enterrado dezesseis, fora os que estavam doente. O lavrador cada vez mais desconfiado, vendo o mal cahir-lhe em casa, preparou-se para ir ao encontro da velha. E de fato, sahindo da cidade depois de dois dias de ronda, próximo do lugar onde a deixara encontrou-a. - Então, você é uma dannada! Quantas pessoas já matou você! - Eu! - Quem há de ser mais? -Pois você está enganado! Eu ainda não matei seis pessoas... - E esses que tem morrido, velha?! - Ah! Isso não é trabalho meu, é do medo. A velhinha sumiu-se. (MORAES, A Peste in A Campanha, 10/10/1902). Assim, temos um conto escrito numa linguagem de fácil compreensão aos que Nascimento Moraes chama de “pequenos leitores”, adequando ao universo representacional popular o tema da peste e da sua principal obra, a deflagração do medo. O medo não era foro privilegiado dos pobres, a elite também era por ele flagelada, isto porque havia todo um imaginário em torno da peste, no entanto, a motivação do medo ganha nuances diferentes para o povo e para os mais abastados, como veremos mais à frente. 94 No ano de 1904, na data de primeiro de janeiro, Raul Astolfo Marques (18761918) publica o conto A Opinião de Euzébia, também abordando a temática da peste e sua relação com o medo, a opinião da liberta Euzébia é justamente uma interpretação sobre o cenário da cidade e o medo, principalmente por parte da elite, da peste. O conto de Marques é mais abrangente que o de Nascimento Moraes. Euzébia, ao encontrar-se com uma ex companheira de cativeiro, que morava distante do centro de São Luís, no bairro do Filipinho, faz um relato completo sobre a peste, desde a forma e a suspeita de como se instalara, as medidas tomadas para combatê-la, da Junta Higiênica, até a forma de “espantá-la” adotadas pela elite. Transcrevemos abaixo os principais trechos do conto: - Você ainda não viu mulher... Pois até os pobres dos ratos nascidos e criados ao Deus dará nos canos do Ribeirão, não foram mortos de surpresa?...Dique deram combate neles tal como se faz no Fandango lá nas Barraquinhas. A Joana Pau-Bonito, na rua da Fundição, teve de mudar-se às pressas para tocarem fogo na palhoça onde ela morava. E no meio de tudo isso quem mais sofre, já se vê, é a pobreza... os ricos se arremedeiam, não se importam que a farinha e o jabá subam de preço... Era só que nos faltava, essa doença agora! - E você não tem medo, minha comadre? - Eu! Oras quaes! Então você não me conhece?Até me rio dessa patacoada. Os brancos lá em casa vivem a toda hora às voltas com crioulinha, o defumador da moda, quando nos tempos de bexiga doutor Maia mandava que se queimasse breu e mais breu e a coisa foise. Hoje é um angu, uma misturada, que até parece que a gente pega a cuja mais depressa... É um reboliço, senhora! ... Pela cidade, a toda hora, é um barulho de carro de nossa morte, diz-se por bocas pequenas que o governo só de carro paga a seu Baltazá cem mil réis por dia! O doutor que veio do Rio disse que é borbonica, e também pegou, mas também alguns doutores daqui, desses mais velhos e mais aquilatados, e ainda um outro lá da terra de onde vem portugueses para cá, que disseram lá pros meus brancos que é febre passageira... E vive a gente nessa dipindura, metida nessa bandalheira... Se isto continuar pego meus cacaréus, faço minha trouxa, e vou empoleirar-me na minha terra, ou então vou a Vargem Grande, só para me ver livre desse baculejo dessa patuscada macha! - Pois eu não sabia, minha comadre, dessa doença. - Não é coisa de maior, senhora, é andaço e mais nada. Eles são que andam com tamanho espalhafato. São Sebastião há de ser por nós, com as preces que estão de fazendo (MARQUES, Pacotilha, 01/01/1904). Percebe-se nos dois contos que o medo anda matando mais que a própria peste, no entanto a narrativa informa alguns detalhes de como fora enfrentada a questão pelas classes, além de a doença estar diretamente relacionada com a cidade e a urbanização, no conto de Nascimento Moraes, a peste instala-se logo no começo da cidade, em A 95 Opinião de Euzébia, o bairro do Filipinho, um pouco afastado do centro, ainda não se tinha notícia da dita cuja. Os contos aproximam-se ao explorar o campo representacional do povo, e pela linguagem adotada pelos escritores imitando as falas, o que nos faz inferir um possível leitor dos mesmos. Assim, vê-se, conforme informa Euzébia, a perseguição aos ratos e queima de casas de palha, interpretada como um foco da doença, logo, aí temos um motivo salutar para que o pobre tema a peste, a ação do Estado em eliminar os locais suspeitos de infecção; acrescente-se a alta de preços dos gêneros alimentícios, uma das suspeitas da deflagração da doença era a contaminação da carne vermelha (MEDEIROS, 2003), assim a peste atinge a camada pobre em dois pontos estruturais que são a moradia e o custo de vida, então, como não temer a tal doença que, confiando em “dona” Peste e na Euzébia, nem estava matando tanto quando se dizia. Outro ponto para o qual os contos acenam é para o espírito religioso do povo, o lavrador ao saber-se em companhia da peste benze-se, Euzébia acredita no poder das preces a São Sebastião, enquanto os ricos apelavam aos métodos da “moda”, o povo apegava-se ao sagrado, o que denota a manutenção de uma identidade cultural, uma vez que esse sagrado não era exatamente o oficial da Igreja, mas tendendo a um catolicismo popular (MEDEIROS, 2003). O medo também é fomentado pela imagem que se tem da doença, e nesse ponto os temores de pobres e ricos se assemelham. Carlos Henrique G. Medeiros, em sua pesquisa sobre as representações coletivas sobre a peste no Maranhão, aponta o imaginário coletivo sobre a ação aniquiladora da bubônica e do sofrimento que causava ao corpo em que se instava. Dessa forma, com o peso do imaginário a suspeita de que a carne estava contaminada e que ratos também eram os agentes contaminadores, as notícias sobre a doença corriam rápido e contribuíam para o alarde generalizado que tomou conta de São Luís. Conforme Medeiros, A disseminação rápida dessas notícias acarretou tumultuo e pânico em toda a sociedade ludovicense, porque não trazia boas recordações às populações urbanas. Surto durante os séculos XIV, XVII e XVIII assolaram os países europeus dizimando quase um terço de suas populações. Além desse histórico de mortes em larga escala, há ainda a própria manifestação sintomática da doença que representa grande violência não só ao corpo, mas ao imaginário dos moradores da cidade (MEDEIROS, 2006, p. 200). Percebe-se que Nascimento Moraes, ao descrever a peste como uma velha decrépita, pode estar fazendo referência à antiguidade dessa doença, vinda da Idade 96 Média e que se instalara numa cidade em pleno século XX, ou seja, uma crítica sutil às condições urbanas que ainda não alcançara o ideal de progresso no âmbito de salubridade, pois se a peste chegara a São Luís é porque o ambiente a atraía. Juntando, portanto, o imaginário sobre a peste e as ações abusivas do Estado, o tratamento dispensado aos doentes pobres, o coletivo popular de São Luís elaborou seu próprio mecanismo de combate à doença em que se mesclavam doses de religiosidade e receitas caseiras, estes elementos tornando-se mais confiáveis que os remédios e as ações da moda que seduziam “os brancos”, conforme explicou Euzébia à sua comadre23. Os jornais, principalmente o Pacotilha e A Campanha, publicavam receitas e orações principalmente a São Sebastião24, que se tornou o principal advogado do povo em sua defesa contra a peste. Carlos Henrique Medeiros atribui a escolha do santo ao sincretismo religioso da população ludovicense, especialmente a pobre uma vez que havia uma relação entre esse santo e o rei português D. Sebastião I25, cujo mito já era consumido em forma de lendas, e pela semelhança em suas mortes, ambos crivados por flechas (MEDEIROS, 2006, p. 204). O apego ao sagrado também denota a crença da peste como a ação da mão de Deus, expurgando os pecados dos homens, logo, as preces eram um meio de abrandar a ira divina, que em sua justiça pouparia os inocentes; ao contrário do Estado que agia com violência, queimando casas, expulsando os moradores ou que lhes dispensava um tratamento desumano e que no entender do povo era ineficaz. Assim, esses mecanismos se ajustam a uma estratégia de resistência ao progresso, que era representado pela Junta de Higiene e seus métodos e ao mesmo tempo conformismo, pois, em se ater a tradicionais práticas populares de enfrentamento a enfermidades epidêmicas, a população aceitava que para ela não havia lugar naquela ordem. A mulher, a moral e os bons costumes 23 Para um estudo mais profundo sobre as representações coletivas sobre a peste em São Luís, recomendamos a leitura da monografia de graduação de Carlos Henrique Guimarães Medeiros. Remédios do Mal Suspeito: Peste Bubônica na São Luís do século XX, Departamento de História, UFMA, 2003. 24 Nascido na França em 256, Sebastião foi um soldado do exército romano. Em 286, por ter sido considerado traidor pelo imperador Diocleciano, devido defender os cristãos, foi julgado e condenado à morte, que consistiu em ser atingido por flechas amarrado em um tronco. No século IV passou a ser cultuado pela Igreja Católica como também pela Igreja Ortodoxa. Nos séculos XIV e XV o seu culto alcançou o auge. 25 D. Sebastião I reinou em Portugal de 1557 a 1578. 97 Até o ponto em que estamos, percebemos a presença de um discurso civilizador que tenta moldar o cotidiano na cidade de São Luís. Tal discurso age no sentido vertical da sociedade, ou seja, da elite para o povo, e numa perspectiva política, da Europa metropolitana às colônias do Novo Continente, ele torna-se um instrumento de poder a favor dos privilegiados. Como dissemos anteriormente, o não enquadramento nos padrões de comportamento é punido, e punição muitas vezes pesada, chegando ao ponto de causar prisão. Não é por acaso que temos os Códigos de Posturas que dissertam sobre que tipo de roupa vestir em determinados locais, consumo de álcool, limitação de sons, etc. Em O Processo Civilizador (1994), Norbert Elias explora a civilidade como transformação dos costumes que vai de mudanças nos costumes da pessoa à mesa, no momento das refeições, na forma de comer, em relação às funções corporais, tais como espirrar ou tossir, passando também por regras de convivência entre adultos e crianças e o estabelecimento de tabus ao longo do tempo. O texto de Elias deixa claro que a história das boas maneiras está diretamente relacionada às regras de comportamento social. As sociedades em dadas temporalidades criaram normas e princípios com a finalidade de orientar as relações entre grupos e pessoas. Esses princípios estabeleciam regras que deveriam ser seguidas e quando infringidas acarretavam – e ainda acarretam – penalidades que configuravam uma violência simbólica que vai da desaprovação até a exclusão daqueles que não as respeitassem. Um dado apontado por Elias e que é importantíssimo para a nossa pesquisa é que, em relação aos costumes, as transformações que ocorrem estão relacionadas à dinâmica das classes sociais. Quando a elite procura distanciar-se das outras classes sociais cria-se novos padrões de comportamento que acabam sendo adotados ou copiados por outras classes até que esses sejam internalizados ou naturalizados. Por fim, o processo civilizador também age na personalidade. O autocontrole passa a ser um indicador de um grau de civilidade. Na medida em que o homem se educa, torna-se capaz de controlar seus impulsos e paixões mais primitivas. Em A Dialética da Colonização (1992), Alfredo Bosi analisa o processo de colonização do Brasil sob a égide do discurso hegemônico e civilizador dos portugueses. Discurso esse que possibilitou a escravidão de índios de forma violenta, entendendo-se aqui tanto a violência física quanto a simbólica e cultural. 98 Mas, esse processo se efetiva conjuntamente com as considerações do pensamento científico no século XIX. A constituição da definição da cultura, da história e da nação brasileira feita pelo Romantismo26, pela ação do IHGB27 e pelos discursos etnocêntricos e higienista exemplificam a tentativa de executar a materialização desse projeto civilizador no Brasil, Bosi nos fala de uma transposição dos valores e padrões de comportamento da Europa para cá. Isso ocasionou reações desde a aceitação e acomodação até a negação. Os padrões europeus de comportamento, gosto e refinamento introduzidos de forma mais efetiva com a vinda da família real portuguesa também permitiu a abertura cultural ao pensamento europeu, uma vez que temos a instalação de um sistema de imprensa que segue os moldes do velho continente. Assim, a imprensa não é apenas veículo de notícias e debates de ordem política e econômica, ela também veicula literatura, e textos com dicas de comportamento. No entanto, tal contato com a cultura europeia deu-se de maneira unilateral, uma vez que apenas a elite tinha condições econômicas de vivenciar esse estilo de vida, desde a estrutura da morada, o vestuário, mobiliário até as formas de sociabilidade e isso torna cada vez mais nítidas as cisões entre elite e povo, bem como os discursos que hostilizam e condenam o comportamento popular qualificando-o principalmente como bárbaro. Neste sentido, elegemos o papel da mulher como sintomático da ação desse processo civilizador que estabelece um comportamento, um vestuário e uma submissão como os indicadores de civilidade que é determinante para que se qualifique a mulher ludovicense como uma distinta dama ou uma depravada. No romance de Nascimento Moraes Vencidos e degenerados fica evidente a dualidade e o crivo social que a “civilização” estabelece quando nos detemos representações que faz da mulher pobre e da rica. Andreza Vital, liberta e mãe de Cláudio Olivier, trabalha do aluguel de serviços domésticos, mora em um cortiço e é um exemplo quase canônico da imagem da mulher pobre e de cor, não apenas em São Luís, mas no Brasil. Dentre os seus predicados que 26 O Romantismo foi introduzido no Brasil em 1833, seguindo a inspiração europeia, foi um movimento artístico, político e filosófico que terminou por volta do ano de 1878. Seus principais fundamentos teóricos são o egocentrismo, nacionalismo e ufanismo e a liberdade quanto à forma estética. Seus principais temas eram a nação, sua origem, com o tema indianista, o egocentrismo centrado no subjetivismo e temas sociais como a escravidão, a história, o modelo de vida urbano e idealização da mulher. Encontrou expressão na poesia, no teatro e na prosa. 27 O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) foi fundado em 1838 e tinha a finalidade de preservar a cultura nacional, estimular estudos históricos, geográficos e demais estudos sociais referentes ao Brasil. Fonte http://www.ihgb.org.br/. Consulta feita em 20/05/2013. 99 acenam para um indivíduo desprovido da moral burguesa do bom comportamento consta desde seu modo de vestir que revela a voluptuosidade do seu corpo, o hábito da bebedeira, o uso de palavrões na linguagem cotidiana e a falta de autocontrole. Seus hábitos causam vergonha ao filho. No trecho abaixo há uma descrição do encontro de Cláudio com a mãe causando alvoroço na rua: E indo ele em uma linha reta, a partir do canto da Rua da Cotovia com a de São Pantaleão, para o outro extremo da Igreja, junto a um armarinho com que se davam sortes a cem réis, deparou-se-lhe Andreza. A gritar, em desespero, pelo seu bilhete que lhe não deixava tirara turba que ao redor se agitava. Andreza trajava um vestido inteiro de chita ramalhuda, que ela enrolava como toga, em volta do corpo metendo a ponta de baixo do braço. Desconcertara-se-lhe o penteado na cabeça, corria-lhe o suor pela fronte brônzea e pelo pescoço quase nu. Brilhava-lhe no colo um esplêndido cordão de ouro que ela angariara outrora e nas orelhas, grandes rosetas de diamante, de antigo gosto. Andreza era alta e fornida. Sua estatura avultava e sua voz sobressaía, com o seu timbre argentino. Andreza gritava e insultava os circunstantes, empurrando-os violentamente, abrindo disputa com uns e outros (MORAES, 2000, p. 96). A confusão causada por Andreza não demora a atrair a patrulha policial, no entanto Claudio impede que o policial se aproxime, afastando-o violentamente e com isso chamando para si a atenção da mãe. Andreza voltou-se, perturbada, com os olhos pasmos, a boca semiaberta, os braços erguidos, como para amparar-se de uma queda, e dá de cara com o filho, impassível, o olhar flamejante cravado nela, firme como um soldado em linha, impondo o seu busto desenvolvido e musculoso. - Meu filho! - Sim, o filho mesmo, a quem a mãe não cansa de dar desgosto. - Estou bêbada, não é? Cláudio sem lhe responder à interrogação, persistiu em olhá-la, Andreza compreendeu-lhe a expressão do olhar, e não o suportando mais, rompeu a multidão, que de momento se aglomerava no lugar, e foi-se, cabisbaixa, na linha por onde viera Cláudio. (p. 96-97). Quase ninguém sabia que Cláudio era filho de Andreza e isso causou uma comoção naquele círculo, isto porque o jovem já gozava de algum prestigio, primeiro por ser conhecido como o herdeiro intelectual de Olivier, depois por sua própria atuação junto ao grêmio literário que fundara com os amigos, e agora que Olivier já morrera, dava aulas particulares e tomava notas para comerciantes para garantir a subsistência. 100 Cláudio era distinto e ter sua imagem associada àquela mulher não lhe era favorável, muitos amigos aconselharam-lhe a renegar a mãe como forma de não cair em desgraça social. Pode-se afirmar que Andreza constituía uma imagem paradoxal da mulher na República, por um lado, era a mulher que se sustentava com seu trabalho, não precisou de um casamento nem ficou presa a um marido por causa do filho, tinha liberdade de ir e vir, pois não tinha homem que lhe mandasse; por outro lado, representava tudo o que uma mulher civilizada não podia ser: exagerada no trajar, no falar e escrava da bebida. Camila Ferreira S. Silva, em seu estudo sobre a moda que vestia as mulheres da elite ludovicense assinala que a vestimenta e o comportamento em público eram um dos principais sinalizadores da distinção de uma mulher e também um determinante do grau de civilidade que a sociedade alcançara, isto porque foi a mulher quem mais teve sua vida mais afetada por ter acesso às mudanças sociais e culturais naquele início do século XX, circulando nas ruas, tomando bondes, indo ao teatro, frequentando os bailes, a mulher se mostrava e, portanto, era um alvo fácil para os moralistas que não se furtavam em queixar-se nos jornais, junto à Igreja se alguma mulher fosse vista trajando algo considerado obsceno, o que estava em jogo era principalmente a família cuja base estava na mulher ainda cunhada na imagem de esposa e mãe, ir contra esse papel era ameaçar os pilares dessa instituição social. Havia, portanto, um discurso moralista por parte de jornalistas e da Igreja Católica endereçado às mulheres da elite para que cuidassem da maneira como se apresentavam em público. Várias eram as colunas nos jornais trazendo informações e notícias do exterior, de outras cidades, da própria São Luís, informando sobre a renúncia dos padres e bispos etc. em virtude do uso de saias curtas e decotes pelas cristãs, exemplo máximo das mudanças dos padrões de vestir. O jornal O Diário de São Luiz informa que o reverendo na missa paroquial em São Luís, não informando de qual paróquia, concluiu as reflexões na missa do dia, tratando das “modas modernas”, utilizando-se de um manifesto produzido pelos vigários do Rio de Janeiro. O autor da notícia, chamando a atenção das leitoras transcreve tal manifesto que se inicia de forma contundente: “Não basta ser casta e honesta, é também necessário parecer ser”. Continuando, menciona que se fazia urgente mostrar os “inconvenientes”, as “más consequências” e os “gravíssimos perigos” dos “abusos da moda”, com o único fim de combatê-lo (SILVA, 2013, p. 72). Não fica difícil perceber que a modernidade, aqui configurada na moda feminina, representa agora uma ameaça aos padrões e valores da elite, pois o trajar 101 vulgar de uma mulher poderia pôr fim a sua reputação, ameaçar-lhe a possibilidade de um bom casamento ou até igualá-la a uma desclassificada do povo, era preciso, portanto admoestar essa mulher de forma que se mantivesse a distinção entre as classes. Verifica-se que o discurso moralizador tolhe a mulher de posses a partir da diminuição da mulher pobre, pois aqueles trajes da moda que revelavam partes do corpo feminino podia ser uma novidade entre as damas, mas não entre as mulheres do povo. O narrador de Vencidos e degenerados ao descrever as mulheres pobres não foge ao cânone da sensualidade, elas estão sempre revelando seus corpos e provocando o desejo nos homens. Epifânia Bragança, uma mulata ainda nova, tipo sedutor, de fartas ancas e braços roliços de gordos. Abrira-se-lhe o casaco azul e o corpete, mostrando um pedaço do seio moreno, os cabelos enrolados no alto da cabeça, deixava á vista a nuca admirável em que artisticamente caíam dois pequenos cachos de cabelos graciosos; o olhar úmido, voluptuoso e morno, parecia esconder uma efervescência de gozos reprimidos (MORAES, 2000, p. 115). A insinuação da nudez feminina demonstra um tipo de liberdade que só a mulher pobre possuía, além de outro aspecto relacionado à bebida. Por outro lado, era um símbolo de incivilidade, como anuncia Mary Del Priore ao afirmar que na representação do corpo da mulata confundem-se o hedonismo, a sensualidade e a liberdade e a sua contrapartida negativa, que é a relação com a ideia de barbárie e pobreza: A melhor representação desses atrativos está no quadro A Carioca, famosa tele pintada entre 1862 e 1863, por Pedro Américo... A ninfa nua, longe de aproximar a pátria brasileira da tradição europeia, caminhando na direção oposta à selvageria, remetia à pobreza e bestialidade... A mulher de sangue misto, símbolo do hibridismo racial na moda, nua como Deus a pôs no mundo, remetia não a “ordem e o progresso”, mas ao desregramento sexual. Os longos cabelos escuros, os olhos negros e a pele morena nada tinham a ver com a beleza Greco-romana que encheu de nus depilados os salões de artes na Europa. Desejável? Sim. Mas a Carioca era a imagem do atraso e não do civilizado. E sua nudez continuava sinônimo de pobreza (DEL PRIORE, 2011, p. 65). No que se concerne à mulher da elite, não significava somente ficar mal falada, mas chegar a ter uma liberdade tais quais as populares e subverter os limites que separavam aqueles mundos. Sidney Chalhoub, ao estudar o cotidiano dos trabalhadores do Rio de Janeiro, analisa a mulher pobre e sua liberdade em escolher parceiros, pois 102 era ela a responsável por sua vida, ainda que dividisse a alcova com um homem não estava submissa a ele (CHALHOUB, 2006, p. 148). Este era o caso de Andreza e Daniel Aranha, inclusive ela é descrita pelo narrador como sua “amásia”. É preciso acrescentar que essa postura acarretava muitos transtornos às mulheres pobres, desde a violência dos companheiros, o assédio de patrões e a vergonha dos filhos. A moral que associa a mulher pobre a um objeto sexual a tornava uma vítima fácil dos aproveitadores que tinham algum poder aquisitivo. No jornal A Campanha, assinada por “Os interessados”, encontramos a seguinte denúncia sobre os abusos que sofriam as operárias nas fábricas da cidade: Começaram então para as famílias ali empregadas, manifesto desgosto, porque anteviam o mau futuro que as esperavam. E não se enganaram, como provam os fatos delictuosos que em seguida se deram. Na fábrica Gamboa um empregado de confiança da gerência, contou que abusava vergonhosamente de diversas moças, deixando-as depois cobertas de infelicidades e de baldões. Na fábrica do Anil o procedimento do gerente Pinto é de todos conhecido, pelo grande número de meninas prostituídas por elle, que além de tudo éra e ainda é autoridade policial! Na mesma fábrica tem um mestre que só se conhece por Alves, que as trata tão brutalmente, que as obriga a estarem constantemente recorrendo aos jornais, no sentido de o abrandar afim de que elle se convença que trata com Sras (A Campanha, 10/10/1902). Assim, com a imagem avaliada como convite sexual, e, tornadas submissas pela necessidade de sobrevivência, essas mulheres usavam como recurso de combate aos atos dos patrões, dentre outras ações, as denuncias nos jornais28. O temor da elite de ter uma de suas senhoras mal faladas é representado por Nascimento Moraes com a personagem Armênia Cruz, uma estrela caída que festejava com os desclassificados da cidade como forma de afrontar a sociedade que a julgara após um malogrado caso amoroso com um professor29. Após a humilhação que sofrera e a condenação dos seus, Armênia entra no que é considerado o submundo, junta-se aos “vencidos da vida” e passa a frequentar a casa de João da Moda, “príncipe dos 28 Sobre as estratégias e o cotidiano das mulheres operárias em São Luís, remetemos o leitor ao livro Nos fios da trama, quem é essa mulher? Cotidiano e trabalho operariado feminino em São Luís na virada do século XIX, 2006, EDUFMA, de Maria da Glória G. Correia. 29 Não nos aprofundaremos nos detalhes do “desmoronamento moral” de Armênia porque já tratamos desse tema em nossa monografia, quando analisamos o romance Vencidos e degenerados e seus personagens mais instigantes. 103 vencidos”, escolhendo entre os convivas um parceiro que melhor possa ser usado para afrontar a digna sociedade, E foi nesta tarde que ela amou Trancoso, o poeta popular, de que ela muitas vezes ouvira falar e que lhe parecera, com a convivência, com o trocar de ideias e conceitos, um homem de ação e energia com que ela poderia afrontar a sociedade e esmagar a canalha que a perseguia, que lhe estreitava um círculo de pretensões, qual bando de abutres a esvoaçar em torno da carniça (MORAES, 2000, p. 141). O exemplo de Armênia é muito ilustrativo, pois, ao igualar-se a uma mulher popular, associando sua imagem à devassidão, à bebida e à degeneração moral, ela mancha a própria imagem da sua casta, funciona como uma ponte que une de forma incômoda o espaço que distinguia as mulheres da elite e do povo; é uma rachadura naquele espelho de Narciso no qual a elite gostava de se mirar crendo-se uma classe refinada, civilizada e portadora da moral cristã e burguesa. “Às letras, cidadãos!”: o papel transformador da educação no cotidiano dos marginalizados Muitas vezes ao longo do nosso texto reiteremos que a educação foi mostrada por Nascimento Moraes como um meio de os libertos alcançarem a cidadania de fato, no entanto, na contramão desse projeto estavam as ações do governo para promover o acesso público à educação. Com a inauguração do Império, a educação, outrora veiculada pela Igreja por meio dos padres Jesuítas, sofreu modificações a partir da segunda metade do século XIX, momento em que já estavam inseridas nos debates políticos as ideias de cunho liberal, portanto, criticou-se a educação e foram propostas reformas em que se pregava a liberdade do ensino, a fiscalização do magistério, a possibilidade de abertura de escolas de tendência positivista (REIS FILHO, 1974, p. 9-10). No Maranhão, o ensino secundário era restrito a um único estabelecimento, o Liceu Maranhense30, fundado em 1838, e atribuí-se essa pouca oferta ao fato de a elite maranhense enviar seus filhos para estudar fora do Estado (ANDRADE, 1982, p. 49). 30 Apesar de ser a única escola secundária do Maranhão em detrimento da opção da elite em educar seus filhos fora do estado, o Liceu era mais um reduto dos mais abastados. Sua importância foi tanta que em 1893 o plano de estudo dessa escola foi equiparado ao do Gimnasio Nacional, atualmente conhecido como Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro. Esta equiparação exigiu uma reforma que aumentou a oferta das cadeiras e ampliou o quadro das disciplinas, conforme Beatriz Andrade, passaram a compor o currículo da escola 23 disciplinas: “Língua Portuguesa, Latina, Grega, Inglesa, Francesa e Alemã; 104 Em 1889, na passagem do Império à República a educação ganha novos contornos, revelando a tendência que se salientou após a mudança de regime que era a existência de “dois brasis”, um agroexportador e outro urbano das cidades voltadas para a indústria e escritórios (SALES, 2009, p. 2). Isso significava que a educação deveria ser implementada de forma a atender as demandas do Estado, especificamente, econômicas e voltadas para a preparação dos jovens para o mercado de trabalho. Demerval Savianni interpreta o período republicano como um retrocesso em relação ao anterior. Isto porque, à medida que o Império deu um passo rumo a um sistema nacional de ensino, a República, uma vez estabelecida, não corroborava esse projeto, o que ocorreu foi uma descentralização do ensino que foi deixado a cargo dos governos estaduais (SAVIANNI, 2008, p. 170). Ednéia Regina Rossi argumenta que, apesar dos problemas relacionados à educação, como estrutura da escola, condições de trabalho, a escola foi pensada para atender a demanda do espaço urbano das cidades destinadas a toda a população (ROSSI, 2008, p. 148). Em 1890, no Maranhão foi baixado um decreto que visava organizar a educação em três categorias: primário, secundário e técnico. Coube ao Liceu Maranhense o ensino secundário, foi criada também a Escola Normal (destinada a mulheres), além do Conselho Superior da Instrução Pública e o Instituto Técnico (SALES, 2008, p. 4). A partir da década de 1920 duas perspectivas educacionais são lançadas. O movimento denominado “entusiasmo pela educação”, que defendia a abertura de mais escolas, e o “otimismo pedagógico”, que focava nos conteúdos e metodologias de ensino, os quais contribuíram para a divulgação da importância da educação e da necessidade de se atender à população em geral. Conforme Ghiraldelli Júnior, Durante a Primeira República, tivemos dois grandes movimentos de ideias a respeito da necessidade de aperfeiçoamento de escolas: aqueles movimentos, que chamamos de “entusiasmo pela educação” e o “otimismo pedagógico”. O primeiro movimento solicitava abertura de escolas. O segundo se preocupava com os métodos e conteúdos de ensino. Tais movimentos se alternaram durante a Primeira República e, em alguns momentos se complementaram (GHIRALDELLI JÚNIOR, 2006, p. 32). Matemática, Astrologia, Física, Química, Geografia, Mineralogia, Geologia, Meteorologia, Biologia, História Universal, História da Filosofia, Desenho, Música, Ginástica e Esgrima. Com esse currículo, o aluno egresso do Liceu era dispensando de qualquer outro exame quando se candidatava a uma vaga no ensino superior do país” (ANDRADE, 1982, p. 52). 105 De forma geral, há uma tentativa de democratizar o acesso à educação. Beatriz Martins de Andrade fala sobre como se deu a difusão do ensino no Maranhão, no governo de Godofredo Viana (1923-1926): Godofredo Viana cuida em promover a difusão do ensino por todo o estado. Cria escolas urbanas e rurais e, numa tentativa de suprir a grande demanda de matrículas na capital para a Escola Modelo Benedito Leite, equiparou a esta os cursos primários de alguns estabelecimentos, como os da Escola Normal Primária, os da escola de São Luiz Gonzaga, os do Colégio Santa Teresa, Instituto Fernandes e Educandário Maria Auxiliadora (ANDRADE, 1984, p. 37). Apesar dessa ótica de que era necessário preparar o cidadão para melhor servir a nação, no Maranhão revela-se dificultosa a manutenção das escolas. Os jornais locais (Jornal O Zephero, Jornal O Ser) tomam a frente na denúncia da estrutura precária das escolas. Segundo esses jornais, isto era fruto do pouco caso que o governo fazia da escola pública primária. Ainda, esses jornais defendiam a importância das escolas primárias na formação do cidadão e para o desenvolvimento da nação (SALES, 2008, p. 7). Essa educação a serviço da nação refletiu-se na abertura de escolas noturnas e cursos profissionalizantes. Segundo Sales, em 1922 registrou-se nesses cursos a matrícula de 155 homens, a maioria com mais de 15 anos (SALES, 2008, p. 7). Entretanto era a escola um mecanismo de formação de uma classe trabalhadora que atendesse às demandas dos capitalistas, ou seja, massificada, para que se efetivasse a devida exploração da força de trabalho, dessa forma as condições eram precárias, tanto na estrutura física quanto no tipo de conhecimento ofertado (ANDRADE, 1982, p. 141), algo que não passou despercebido por Nascimento Moraes. Não obstante, a partir da leitura dos textos de Nascimento Moraes, desde os literários até os artigos de opinião, percebemos alguns pontos de convergência em relação ao cenário que apresentamos. Primeiro, a educação é apontada, por esse intelectual como uma necessidade para se preparar o cidadão para cumprir o seu dever com a nação, principalmente no que tange ao mercado de trabalho. Segundo, muito embora houvesse essa expansão do ensino público, ainda era dificultoso aos mais pobres manter os estudos, uma vez que faltavam as ferramentas básicas como livros, material escolar; o que acabava levando muitos filhos de famílias pobres a não chegar 106 ao ensino secundário, procurando aprender um ofício, como sugeriu o conto e como ficou implícito na fala de João Olivier, personagem de Vencidos e degenerados, quando ele critica que a República não levou a escola ao povo. Quando do centenário da Biblioteca Pública do Maranhão, em 24 de setembro de 1929, para a comemoração foi feita uma solenidade presidida pelo presidente31 do Estado e outras pessoas de posição. Esse evento foi tema do artigo de Nascimento Moraes, publicado no jornal A Tribuna, intitulado A Festa do Livro (26/09/1929), referente a este evento, Nascimento Moraes critica o pouco caso dispensado à data e a pouca repercussão que se lhe deu defendendo, por outro lado, que era necessária uma festa à altura da importância simbólica daquele prédio. Em suas palavras: A Festa do Livro dispensa galas fidalgas e austeras solenidades. É a festa da intelectualidade. É a festa do pensamento. É a festa da vibração mental dos povos cultos. É a festa da sentimentalidade que dirigiu as civilizações, que levantou em aurifulgentes tronos, paixões desvairadas, que criou visões augustas que se santificaram, que se despiu a virtude, e desmascarou o vício. É a festa da razão que constituiu altares a gênio e dignificou o caráter e a vontade. É a festa da audácia que se sublimou alfurjas de criminosos e antros de fraqueza e do desânimo. A festa do Livro é a grande festa da evolução social e política dos povos. É a que se viveu (MORAES, 1982, p. 249). Em seu argumento, Nascimento Moraes lista os significados de um livro de forma apaixonada, ao mesmo tempo faltou apenas chamar o diretor da biblioteca de egoísta, uma vez que negara a devida celebração à data por sua importância à cultura e por escondê-la a quem lhe era de direito: o povo. Conforme seus próprios termos, Por que não apontar aquela data ao povo, o esplendor do seu merecimento?Por que não espalhar por todos os cantos desta cidade exemplos modestos do seu vasto catálogo para que o povo conhecesse o valor desse patrimônio intelectual que ele representa e que lhe pertence, e que se não é uma Universidade, é povo, motivo de maus governos (MORAES, 1982, p. 250). Nascimento Moraes questiona-se, a partir desta crítica, até que ponto os menos abastados realmente tinham acesso à educação. Ao que parece, as leis e decretos preocuparam-se em expandir o acesso, mas não se fixou no processo do ensino. Em A 31 O termo “presidente do Estado” é utilizado por Nascimento Moraes nesse artigo do jornal A Tribuna. 107 preta Benedita nos é feito um relato sobre como os alunos pobres que estudavam no Liceu faziam para dar conta dos estudos e das exigências das matérias da escola com livros e outras ferramentas de estudo. Particularmente em relação à dificuldade de se adquirir livros, diz o autor através de seu personagem: Ao tempo em que andei pelo Liceu quase todos os estudantes na minha turma eram pobres, mas muito amigos uns dos outros. Ao princípio do ano, depois que recebíamos dos nossos professores as notas dos livros reuníamos para dividir as despesas. Em geral, cada um se encarregava de comprar um livro. Se havia necessidade de comprar um livro caro, como um dicionário ou uma “tábua de Callet”, então o preço do livro era dividido por todos. À medida que íamos avançando no curso, os livros iam passando às mãos de outros estudantes pobres que se aproximavam de nós. E, quando terminava o curso, os livros restantes eram divididos pelos pobrezinhos, como nós, que vinham ao nosso encalço (SANTIAGO, 1982, p. 207). Esse sacrifício que se fazia para estudar também é apontado por Nascimento Moraes em A vida de um homem de bem. Manuel Coruja, uma vez que perde a tutela do padrinho, tem que trabalhar durante o dia, mas ele dá continuidade aos estudos durante a noite, assim como o noivo desafortunado de dona Vitorinha, em O Desmoronamento, que trabalha como caixeiro no comércio de São Luís e frequenta o curso técnico provavelmente à noite. A lógica capitalista de que nesse sistema todos têm chances de ascender socialmente está implícita nesses textos, quando o autor coloca a educação como o meio dessa ascensão. Todos os personagens que conseguiram se instruir alcançaram algum sucesso profissional e venceram a pobreza; por outro lado, os que permaneceram no analfabetismo ou que não chegaram a cursar nenhum nível escolar permanecem vivendo de biscates, vendas, diárias, como é o caso da maioria das personagens de Vencidos e degenerados. Além da questão econômica, a educação torna-se um meio de vencer, em parte, a barreira do preconceito contra os populares, em parte porque, nos textos de Nascimento Moraes, o preconceito racial é apresentado como um vício que faz parte da cultura elitista e provinciana de São Luís. Em Vencidos e degenerados, Nascimento Moraes mostra que Claudio Olivier, filho de escravos libertos pela Lei Áurea e criado pela família de João Olivier, torna-se um líder entre os jovens de São Luís, mesmo alguns de famílias ricas têm algum respeito pelo jovem que segue os passos do pai adotivo. Por sua clareza de ideias e 108 intelecto, Cláudio consegue adentrar no seio da elite, é convidado aos bailes, às rodas de poesia e só é expulso quando se envolve num romance escandaloso com uma mulher da elite. Podemos vislumbrar, na figura de Cláudio, aquele jovem Nascimento Moraes que tentava a todo custo mostrar seu valor intelectual diante da sociedade branca de São Luís e que vendo nele um negro atrevido não apenas não o aceitava como o perseguia na figura de Antonio Lobo. Mas, como Nascimento Moraes denunciava, em seus artigos de jornais e através de seus personagens, a educação era ainda um privilégio que custava caro. No conto A preta Benedita, o narrador mostra como a negra se desdobrava nos mais variados misteres para garantir não apenas o sustento, mas a educação dos filhos de sua ex senhora financiando inclusive o curso de Direito em Recife ao filho mais velho da senhora. O resultado dos esforços da Benedita aliado com a dedicação dos jovens resultou que todos conseguiram vencer a pobreza advinda com a falência da família. Assim, pela lógica apresentada nos textos de Nascimento Moraes, quem conseguisse, ao custo que fosse, instruir-se conseguia vencer a pobreza imposta pelo nascimento ou pela falência de famílias que experimentaram a riqueza nos tempos da escravidão. Como educador, Nascimento Moraes não cansava de reafirmar essa fórmula da educação, instrução, que venceria as barreiras da marginalização, da pobreza; e sonhava que ela vencesse também a barreira do preconceito, uma vez que, dando a oportunidade aos negros, taxados pelas teorias raciais de cognitivamente inferiores, preguiçosos, propensos ao vício, eles mostrariam seu potencial. Nascimento Moraes referia-se ao povo como aquela entidade abandonada pelo sistema, que merecia uma chance para mostrar sua capacidade, a chance da educação (MORAES, 1982, p. 273). Essa temática da educação é persistente na pena de Nascimento Moraes, há uma série de artigos em que ele faz a análise crítica da educação infantil, da relação escola e família, do papel e desafios do professor, do sistema educacional, no entanto não nos deteremos aqui, pois, a maioria desses artigos foi publicada na década de quarenta dialogando diretamente com aquele período específico. Percebemos que a noção de educação defendida por Nascimento Moraes é de viés Iluminista, caracterizada pela ideia de transformação do mundo por meio de progressos teóricos e do homem sob a tutela da liberdade e não subjugado ao tradicionalismo, fosse da religião ou da política. A educação daria enfim autonomia do homem por centrar-se na concepção do indivíduo unificado e dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação (ZENI, 2010, p. 10). 109 Sobre a educação feminina, nas primeiras décadas da República não encontramos muitas referências nos textos de Nascimento Moraes, encontramos uma crítica em Vencidos e degenerados à educação que as moças da elite recebiam, que consistia basicamente em prepará-las para o casamento e para o convívio social. Em Vencidos e degenerados, por meio da personagem Amélia Rodrigues, Nascimento Moraes retrata a mulher como uma moeda de troca, essa característica sendo apontada como um dos fatores da decadência de São Luís. Quando Cláudio Olivier idealiza uma vida conjugal com Amélia, fica claro esse papel e a crítica: O que lhe prendia o espírito e o arrastava poderosamente para D. Amélia Rodrigues era a plástica. Neste ponto discordava inteiramente de João Olivier a quem jamais ouvira falar de mulher com entusiasmo e admiração plástica e sim, muito se lembrava, que ele, muitas vezes dizia “não lhe vale a formosura, com aqueles modos e aquela gramática”. Ele não ia por ai: - não lhe vale a gramática, não tem carnes. Pode ser a mulher uma pérola: boa, carinhosa - dizia ele aos colegas- hábil sem serviços domésticos, tocar piano ou bandolim, cantar e dançar, vestirse com elegância e bom gosto; se não tem carnes artisticamente distribuídas, não vai, se não se impõe pela plástica, nãolhe vale a educação nobre. Creio mesmo que há muitos homens que admiram na mulher os lavores de uma educação distinta, e que sopor eles se casem; mas, a meu ver, é que esse marido muito cedo começa a demorar-se na rua! O homem tem mesmo certa vaidade de animal, quando apresenta a mulher, aos amigos, ou a uma sociedade, quando ela se salienta pela plástica. O homem se sente apoucado, amesquinhado, ridículo até, quando alguém lhe apresenta uma mulher fornida e cativante, e que tem de apresentar a sua, uma coisa alta, magra, angulosa, chupado o rosto, o peito seco, as espáduas estreitas (MORAES, 2000, p. 106). A leitura mais latente que podemos fazer desse pensamento de Cláudio Olivier seria a reafirmação da mulher enquanto objeto, um bem que se equivalia a um bem material e a um passaporte ao marido para as rodas sociais e de boa convivência, ou não. Por outro lado, vemos reafirmada a crítica do autor sobre a manutenção de algumas práticas no que se refere à mulher da elite, que seria disponibilizada a ela uma educação voltada para o desempenho de sua tarefa enquanto esposa, mãe e senhora distinta da sociedade. O autor, que criticava a ignorância e a apontava como um dos motivos da decadência da sociedade mostra como as mulheres, ao receber essa educação voltada apenas para o trato social e familiar, estariam fora do contexto das discussões e mudanças substanciais que São Luís carecia, por isso, essa mulher não agradava a Olivier que acreditava e pregava as ideias como um veículo de transformação social 110 Não deixamos de perceber que, nos textos de Nascimento Moraes, essa educação capaz de transformar a situação de marginalização e pobreza é a educação instrumentalizada, possivelmente contra-argumentando com as teorias de Nina Rodrigues que atribuía à raça negra uma relação com a degeneração. Como lembramos anteriormente, Nascimento Moraes apresenta seus personagens como pessoas sagazes, inteligentes, que sabem como lidar com as situações de cotidiano e até surpreendendo muitas vezes. Foi o caso que mostramos em A preta Benedita, em que a personagem título tinha muito tino para fechar bons negócios; Manuel Coruja que se saía bem nos estudos, mesmo quando teve que revezá-los com o trabalho. Em Vencidos e degenerados temos mais uma vez o caso do esperto Zé Catraia, o malandro que se fingia de desentendido como estratégia para passar desapercebido entre os membros da “boa sociedade”, mas que sabia de tudo a seu redor, tinha seus pensamentos, suas filosofias e ria quando pensava na própria esperteza com a qual enganava os doutores. Claudio Olivier faz uma análise bem interessante da personalidade de Zé Catraia. A análise é longa, mas soa como uma síntese sobre os espíritos dos tipos populares e das suas estratégias de sobrevivência em meio à marginalização e perseguição que sofriam: Cláudio, parado no meio do beco, ouvia as últimas despedidas do Zé Catraia. E indo ao rumo de casa, pensava no espírito daquele homem do povo, ferino e alusivo, conhecedor das misérias de sua terra, da hipocrisia de muita gente e o como dos capitais dos ricos. Aquele homem era uma preciosidade... No seu abandono, desmerecimento, nada lhe molestava a alma, nem lhe lacerava o amor próprio. Fazia horas de carregação que vendia aos quitandeiros e, quando, porventura, encontrava quem quisesse calçar bem, e lhe pedia uma obra acabada com gosto, ele era um bom artista, e por isso estava à altura dos tiques do ofício, sabia, como poucos, esmerar-se, e daquele biombo sujo, sem luz e quase sem ar, onde trabalhava e morava em companhia da mais completa desordem, saía uma obra que por dias e dias, andava de mão em mão admirada à farta. E note-se: no fundo escuro de sua miséria e do seu abandono não tinha inveja ao nome mais brilhante da terra, pelo talento ou pelo capital. Porque, hábil também ele o era, e ao capital dava soberanamente o maior desprezo (MORAES, 2000, p. 154-155). Destacamos deste relato a inteligência genuína de Zé Catraia, sua capacidade de observação que lhe fazia saber a origem “dos capitais” e uma informação importante, por “fotografara comédia da vida”, Zé Catraia conhecia bem os problemas da cidade, porque ele, mais que os ricos que desconheciam, os vivenciava. Esse relato também é um ponto de convergência com vários textos de Nascimento Moraes em que ele exalta a 111 capacidade do povo, criticando sempre que era preciso investir nessa classe, investimento, obviamente materializado na educação, para que assim vencessem a marginalização que sofriam. A modernidade se faz “cama de Procusto” na República (Conclusão) No dia 21 de março de 1907, Nascimento Moraes, em sua coluna do jornal A Imprensa, na qual costumava publicar críticas literárias assinadas pelo pseudônimo Braz Cubas, publica uma crônica sobre o choque que a chegada do telégrafo, então um símbolo da modernidade, causa em um interiorano. Transcrevemos os principais trechos da crônica: Fulô Rico era um desses poucos afortunados da vida... Filho da “Fazenda Nova”, ahi se creara... Nunca viera na cidade dos prazeres da vida civilisada, nunca seus olhos de matuto se deslumbraram à espectativa irradiante da azafama dos homens que se acotovellam na concurrencia insessante dos centros populosos... Felizardo! Lia pouco e escrevia menos... Não sabia se vivia num paíz republicano ou monachico, não sabia mesmo quem mandava chover no Maranhão. Mas oh! O Progresso! Num bello dia, dia fatal e de maus presságios, por traz da “Fazenda Nova”, appareceram a turma dos trabalhadores que rompem a matta e cavam a terra, para asseptarem os postes do “fio que fala”, o telégrapho. Fûlo Rico, ao ouvir falar em semelhante coisa, tomou tamanho susto que adoeceu. Foi obrigado a deixar sua fazenda a procurar um médico... E assim, numa tarde formosa e clara chegou a uma cidade... Mas imaginem os leitores, o pânico, o terror quando à noite a luz elétrica sallitou, victoriosa nos fios, dando uma belíssima paródia do dia! Ele que viera curar-se, recebe choque duplamente maior. Fûlo não pôde resistir. Morreu dias depois de assombrado... Leitor, verte commigo uma lágrima piedosa sobre mais esta victima do progresso! (A Imprensa, 21/03/1907) Utilizamos essa crônica para encerrar o que propomos refletir neste trabalho. Fulô Rico não morava na cidade, mas já se podia ouvir o apito do trem do progresso no interior, onde, conforme a crônica, a vida continuava tal qual era no Império. A questão é: por que a ideia do progresso causou mortal assombro em Fulô Rico, porque fizera dele mais uma vítima da sua expansão? A resposta aparece ao longo do nosso texto. Fulô era mais um pequeno que não fora, de fato, tornado cidadão, ele personifica aquele homem à margem, e nesse caso, conforme Nascimento Moraes, um felizardo porque, passados oito anos de República, ele vivia sossegado, longe dos extremos do Estado, sem ter seu sossego bolinado, mas, na vida há sempre um dia em que as coisas mudam e 112 a mudança chegara a Fulô, de forma abrupta e infere-se que foi essa brusquidão a agente que ceifara a vida do nosso personagem. Brusquidão que modificava o cotidiano de forma violenta, assim, como a Junta Higiênica fazia ao queimar palhoças na cidade de São Luís, ou as Posturas que tentava a todo custo moldar o comportamento do povo na rua, lugar que deveria ser democrático, mas que se fizera privado por ser regido também por leis. Concordamos com Marilena Chauí em uma crítica à interpretação que Roberto DaMatta faz sobre a rua como um espaço em que o cidadão vive sua cidadania, Porque o “mundo da rua” não é senão “o mundo da casa” da classe dominante que a rua é arbitrária e violenta. Não se trata apenas da violência característica das técnicas racionais de disciplina e vigilância e da legalidade – impessoalidade da dominação capitalista... É porque a política brasileira é relação de tutela e de favor, e porque nela o espaço público é tratado como espaço privado dos dominantes, que não há cidadania no país... (CHAUÍ, 1986, p. 136-137). Há também a imposição de uma nova moralidade, regida pelo capital, que pretende domesticar o sujeito para que ele se torne “economicamente viável”, mas, em São Luís a coisa não caminhava por esse rumo, as fábricas não obtiveram sucesso, o comércio, devido à situação portuária da cidade, ainda era uma mola para a economia, apesar de apresentar sinais de decadência, por outro lado, trabalhadores de rua tinham seu cotidiano regulado pela polícia ou pelos “cidadãos de bem”, as mulheres seguidas pela polícia e por moralistas, admoestando-as quanto a sua vestimenta, seu vocabulário... Esse progresso viera se instalar em uma cidade que não estava preparada para ele, especialmente em níveis de mentalidade, como constou Cláudio Olivier durante uma festa da elite, Estudava e aprendia com tudo o que se passava em volta de si. As cenas de namoro e faceirismo, às vezes cheios de muito ridículo, grotescas, divertidas, cômicas, ficavam nítidas no seu espírito profundamente observador. Tais cenas examinadas com atenção davam-lhe resultados inesperados, úteis, apreciáveis, e não raramente filosóficos. Cláudio deduzia do que se passava nos bailes, princípios de rotina, nos quais se prendia a sociedade em que ele vivia; antigos defeitos de educação, vícios e hábitos inveterados de um meio que não se modifica, os quais, a despeito da transformação de caráter radical que se vai operando em todo o país, persistem e resistem a ação do progresso e da civilização (MORAES, 2000, p. 159). Assim, a resistência ao progresso não era unilateral, a elite presa a velhos hábitos também não conseguia acompanhar aquela marcha, a questão é que era essa elite quem 113 fomentava esse progresso, ela era um entrave para a solução da república, principalmente porque não aceitava o fato de que habitava em um país mestiço. Na urgência da elite e do governo em civilizar-se e ordenar, o progresso era imposto e quem não se adequasse a esses novos tempos era mutilado, tal qual as vítimas que não tinham as proporções da cama de Procrusto32, em São Luís a mutilação era moral, espiritual e até de fato. O progresso viera causar uma revolução naqueles espíritos, pois modificava seu mundo representacional e não oferecia uma contrapartida, prometera cidadania, mas o que lhes trouxe foi a marginalização, a ação da lei e o porrete da polícia. Neste sentido, os textos de Nascimento Moraes elucidam os desafios para a realização do desenvolvimento da sociedade ludovicense no século XX e que encontrava na própria estrutura social e política os entraves para a sua concretização, e assim a cidade permanecia no letargo a sonhar ou iludir-se com uma realidade imaginária e desmascarada pelo movimento cotidiano da população. A ideia de cidadania, entendida pelo nosso intelectual como o usufruto de forma igualitária dos direitos sociais e políticos, torna-se quase utópica porque ele mostra as variadas formas de hierarquização, exclusão e principalmente a paralisia intelectual que não rompia com velhos preceitos e preconceitos, nessa perspectiva cidadania seria sempre um sonho impossível. Restava, portanto, à população pobre resistir. A resistência de Fulô foi a morte, a de Zé Catraia a troça, a de tantos outros, o conformismo que os tornava em “vencidos e degenerados”. 32 Na mitologia grega, Procusto era um gigante que convidava viajantes a pousarem em seu castelo. Uma vez prendendo esses viajantes, obrigava-os a deitar-se em sua cama. E na desproporção entre o corpo e o tamanho da cama, Procusto mutilava ou esticava o viajante até que este estivesse proporcional à cama. Assim, esse personagem torna-se um símbolo da intolerância e sua principal consequência é a violência. Fonte<http://pt.wikipedia.org/wiki/Procusto>, pesquisa realizada em 15/01/2014. 114 Referências Fontes MORAES, José Nascimento de. Vencidos e Degenerados e Contos de Valério Santiago. São Luís: SECMA, 1982. _________________________. Vencidos e Degenerados. 4ª ed. São Luís: Centro Cultural Nascimento Moraes, 2000. ________________________. Puxos e Repuxos. São Luís: Typographia dos Artistas, 1910. Jornais consultados A Campanha (1902) A Imprensa (1907) A Pacotilha (1907) Diário Oficial (1931) Bibliografia ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. A ideologia da decadência: leitura antropológica e uma história da agricultura do Maranhão. São Luís, IPES, 1983. ANDRADE, Beatriz Martins de. O discurso educacional do Maranhão na Primeira República. São Luís, UFMA, SECMA, 1984. ARAÚJO, Adriana Gama de. Em nome da cidade vencida: a São Luís Republicana de José Nascimento Moraes (1989-1920). Programa de Pós Graduação em História, UFRN, Natal, 2011. AZEVEDO, Fernando de. 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