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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DEPÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
(MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA SOCIAL)
HELAYNE XAVIER BRAS
OS MARGINALIZADOS PELA REPÚBLICA: o discurso sobre
modernidade e cidadania na obra de José Nascimento Moraes
São Luís
2014
HELAYNE XAVIER BRAS
OS MARGINALIZADOS PELA REPÚBLICA: o discurso
sobre modernidade e cidadania na obra de José Nascimento
Moraes
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História Social
(mestrado acadêmico), da Universidade
Federal do Maranhão, como requisito
parcial para obtenção do grau de mestre
em História Social.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Izabel
Barboza de Morais Oliveira.
São Luís
2014
Bras, Helayne Xavier
Os marginalizados pela república: o discurso sobre modernidade e
cidadania na obra de José Nascimento Moraes/ Helayne Xavier Bras.
–São Luís, 2014.
121 f.
Orientadora: Maria Izabel Barbosa de Morais Oliveira.
Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade Federal
do Maranhão, 2014.
1. História 2. Literatura 3. República 4. Cotidiano 5.
Marginalização
CDU 981.21
HELAYNE XAVIER BRAS
OS MARGINALIZADOS PELA REPÚBLICA: o discurso sobre
modernidade e cidadania na obra de José Nascimento Moraes
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História Social
(mestrado acadêmico), da Universidade
Federal do Maranhão, como requisito
parcial para obtenção do grau de mestra
em História Social.
Data da defesa: 14/02/2014
BANCA EXAMINADORA
Examinadores
____________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Izabel Barboza de Morais Oliveira
Orientadora
________________________________________________________
Prof.º Dr.º Josenildo de Jesus Pereira/ UFMA
__________________________________________________________
Prof. º Dr.º Marcelo Cheche Galves/ UEMA
___________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Regina Helena de Faria/UFMA
Suplente
Dedico à minha família, minha incentivadora,
desde sempre!
À minha irmã Aline, pelo apoio moral e
estrutural.
Ao meu “chococat”, Wallace mesmo quando
esteve distante.
A José Nascimento Moraes, quem considero
de fato um lutador.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, antes de tudo, ao Criador que além da vida me proveu de inteligência,
discernimento e um pouco de criatividade, altas doses de idílios sem os quais eu não
teria chegado até aqui.
Agradeço aos meus pais por desde cedo terem cultivado em mim o prazer da leitura,
minha mãe me alfabetizando e meu pai me presenteado com gibis. Com certeza eles que
não sabiam que ali estava nascendo uma futura historiadora!
Agradeço à minha irmã, alma gêmea, Aline, por ser minha melhor amiga, minha
cúmplice e minha secretária quando eu mais precisei. Obrigada por tudo, mana, je
t’aime!!
Agradeço ao meu designe preferido e, por acaso, irmão, Daniel, por mais uma vez
concretizar meu projeto de capa. Você é o melhor!
Agradeço ao meu amor, Wallace, por ser meu companheiro não apenas de vida, mais de
sonhos, amor, nós vamos conseguir, eu sei!
Agradeço aos professores do Programa de Pós-Graduação de História da UFMA, em
especial aos professores Josenildo, João, Alexandre, Lyndon e Adriana Zierer, suas
disciplinas e conselhos foram muito bem aproveitados nesta dissertação!
Agradeço à minha orientadora, Maria Izabel, por me apoiar, ajudar nesses momentos
finais e ser compreensiva. Agradeço também pela liberdade que me concedeu nesta
escrita!
Agradeço ao apoio financeiro da CAPES e FAPEMA.
Por fim, um agradecimento especial aos meus “pretinhos” queridos Jakson, Solange e
Claudimar, creio que esses dois curtos anos foram mais que suficientes para gerarem
uma amizade/irmandade que levaremos para o resto de nossas vidas. Obrigada pela
cumplicidade, amizade, apoio, pelas pequenas farras, pelo apelido “pretinha” que me
faz sentir tão parte de vocês. Sinto muitas saudades dos nossos momentos, das nossas
viagens, dos nossos papos virtuais. Espero encontrá-los nas próximas paradas desse
trem que nunca para!!
RESUMO
Esta pesquisa pretende dar continuidade ao nosso trabalho de conclusão da graduação
em História no qual tratamos da análise das representações da cidade de São Luís no
romance: “Vencidos e Degenerados”, de José Nascimento Moraes.
Objetivamos
avançar em nossa análise, agora tratando da crítica que nosso intelectual tece, a partir de
um universo literário, à concretização do estabelecimento da cidadania entre as
categorias sociais da nascente república brasileira, especificamente a população pobre e
de cor. As obras selecionadas narram o período que vai da Abolição até as primeiras
décadas da República. Tratando o texto literário como metáfora do mundo que está
representando, voltamo-nos para a análise da maneira como Nascimento Moraes se
apropria do espaço e contexto que São Luís vivia para criar um discurso que evidencia a
relação entre marginalização e República a partir da dinâmica do cotidiano dos seus
personagens no espaço urbano. Tal universo literário tem como temas recorrentes a
questão racial, o mundo do trabalho, o papel social da mulher e a cidadania.
Palavras-chave: História. Literatura. República. Cotidiano. Marginalização.
ABSTRACT
This research intends to continue our work of completing graduation in history in which
we deal with the analysis of representations of the city of São Luis in the novel:
“Vencidos e Degenerados” by José Nascimento Moraes . We aim to advance in our
analysis , now addressing the criticism that our intellectual weaves , from a literary
universe, the implementation of the establishment of citizenship between the social
categories of the nascent Brazilian republic, specifically the poor and people of color .
The selected works narrate the period of abolition until the first decades of the Republic.
Treating the literary text as a metaphor for the world we are representing , we turn to the
analysis of how birth Moraes appropriates the space and context that São Luis lived to
create a discourse that emphasizes the relationship between Republic and social
marginalization from the dynamics of daily lives of its characters in urban space. Such
literary universe has as recurring themes racial question, the world of work , the social
paper of women and citizenship.
Key- words: History. Literature. Republic. Quotidian. Marginalization.
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SUMÁRIO
O Fio de Ariadne (Introdução)..............................................................................................10
Cap. 1. Trajetória intelectual de José Nascimento Moraes.................................................24
1.1
A
Tradição
Literária
Ateniense:
da
Oficina
dos
Novos
à
carreira
jornalística............................................................................................................................27
1.2
O intelectual e o seu tempo........................................................................................38
Cap. 2.
O pós Abolição na perspectiva dos textos literários de Nascimento
Moraes.............................................................................................................................43
2.1 A multiplicidade das experiências dos homens de cor na passagem da escravidão à
liberdade...............................................................................................................................44
2.2 Depois do “13 de Maio”, a reinvenção do cotidiano no mundo de trabalho....................52
Cap. 3. Uma República entre a Ordem e a Desordem .........................................................69
3.1 Uma cidade letárgica......................................................................................................77
3.2 “É assim que se trata um cidadão?”.................................................................................82
3.3 Uma modernidade que mata, moraliza e exclui ..............................................................91
3.4 A mulher, a moral e os bons costumes.........................................................................96
3.5 “Às letras, cidadãos!”: o papel transformador da educação no cotidiano dos
marginalizados................................................................................................................. .....103
A modernidade se faz “cama de Procusto” na República
(Conclusão).....................................................................................................................111
Referências Bibliográficas ...........................................................................................114
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O Fio de Ariadne (Introdução)
Passados alguns anos desde que pesquisamos a primeira vez Nascimento
Moraes, retomamos nesta pesquisa a tentativa de trazer a lume o sentido do seu
pensamento. Dessa vez, alargamos nossas fontes para além do romance Vencidos e
degenerados, publicado em 1915, não por ele ter se esgotado, sua narrativa continua
oferecendo leques de possibilidades de interpretações, o que justifica ainda uma vez sua
presença em nosso repertório de fontes, já que estudamos o recorte temporal da Primeira
República (1889-1930). Neste sentido, além do referido romance, utilizamos como
fontes os contos A negra Benedita, A vida de um homem de bem e Desmoronamento,
redigidos por Nascimento Moraes durante a Primeira República, mas publicados
somente na década de 1940; assim como algumas crônicas e artigos escritos por ele no
período de nossa análise.
No prefácio do romance Vencidos e degenerados, Nascimento Moraes afirma
que o livro era obra da sua juventude. Consta no volume o depoimento de um dos filhos
do dono da editora, que publicou a primeira edição do romance, que ele foi levado à
publicação dois anos antes, ou seja, em 1913, mas, por conta da penúria da época, a
mesma demorou dois anos para se efetivar. Tendo sua primeira edição vinda a público
em 1915, a obra foi reeditada três vezes: nos anos de 1968, 1982 e 2000. Sobre a
temporalidade da escrita do romance, Dorval Nascimento infere ser pouco anterior a
1910 devido a conjuntura da época, que teve como governador Luiz Domingues,
governando de 1910 a 1914, e caracterizou-se pela falta de afinidade com as oligarquias
locais, o que lhe angariou um grupo de intelectuais, entre eles Nascimento Moraes, que
partiram em sua defesa, inclusive, o romance Vencidos e degenerados é dedicado a esse
governador (NASCIMENTO, 2012, p. 25).
A primeira vez que nos deparamos com os contos A negra Benedita, A vida de
um homem de bem e Desmoronamento foi no volume Contos de Valério Santiago,
organizado por Morais Filho, editado pelo SECMA, no entanto, não havia nenhuma
referência sobre onde esses contos foram originalmente publicados. Em 2011, Adriana
Gama de Araújo, em sua dissertação de mestrado, pela UFRN, afirma que tais contos
foram publicados na década de 1940, na Revista Athenas. Rastreando essas pistas,
procedemos à localização da sua fonte original. No entanto, no acervo de obras raras da
Biblioteca Pública Benedito Leite constam apenas cinco exemplares da revista e apenas
do ano de 1940. Dentre esses exemplares, só foi possível localizar o conto A Preta
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Benedita, publicado em agosto de 1940, número 20, páginas 11 a 13. Tentamos
encontrar versões digitalizadas da revista, mas não obtivemos êxito. Bem como foram
frustradas as tentativas de localizar algum parente de Nascimento Moraes que pudesse
nos ajudar na questão. Há grande possibilidade de esses contos em sua publicação
originária estarem perdidos. Ressaltamos a responsabilidade da biblioteca portadora da
revista e os anos que ficou fechada, a inundação que sofreu o acervo em 2013 como
possíveis causadores do sumiço das revistas que, até o período de 2008, constava em
número considerável, mais de uma dezena, e que tivemos acesso. No entanto, como não
era do nosso objeto, não nos preocupamos em localizar e datar os Contos de Valério
Santiago.
Este trabalho que ora apresentamos é fruto da experiência e da vontade de
continuar a explorar o pensamento desse instigante intelectual maranhense. Experiência
que só o tempo e as leituras possibilitaram e vontade de conhecer aquele universo, de
que nos fala o nosso jornalista e educador, numa perspectiva mais próxima dos seus
agentes em seu cotidiano. Portanto, muito do que trabalhamos aqui consta como uma
leitura mais apurada de alguma consideração feita outrora, ainda que nosso objeto seja
outro, alguns personagens virão agraciar-nos com sua presença e inquietar-nos com suas
problemáticas e dilemas, alguns nos emocionarão com sua história, misto de sofrimento,
luta e resistência.
Sabemos que nossas fontes levantam suspeitas, para alguns mais ortodoxos esse
trabalho merece total descrédito, pois o número de céticos que negam a possibilidade de
textos e obras literárias serem usadas como fontes de análise histórica não é pequeno,
prova disso são os eventos anuais que sempre dedicam um grupo de trabalhos para
discutir essa questão vista muitas vezes como belicosa. Usamos, no entanto, como
armadura, as palavras de um dos mais conceituados e cultuados historiadores
contemporâneos, Michel de Certeau, em A Escrita da História (1999, p. 82), sobre a
operação historiográfica que é por ele definida como o resultado de uma operação
científica, pois usa um aporte teórico e metodológico para selecionar, enquadrar,
questionar documentos, transformando-o em algo adverso, o texto histórico, ou seja,
importam mais os meios e não exatamente o que, porque a história invariavelmente terá
lacunas a preencher, portanto, a operação historiográfica é também um ato de fé, que,
em O fio e os rastros, Carlo Ginzburg chama de fé histórica, pois é ela que
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Permite-nos superar a incredulidade alimentada pelas objeções
recorrentes do ceticismo, referindo-se a um passado invisível, graças a
uma série de oportunas operações, sinais traçados no papel ou no
pergaminho, moedas, fragmentos de estátuas erodidas pelo tempo etc.
Não só. Permite-nos, como mostrou Chapelain, construir a verdade a
partir das ficções [fables], a história verdadeira a partir da falsa
(GINZBURG, 2007, p. 93).
O suporte teórico metodológico surge então como o fio de Ariadne a nos guiar
pelo tortuoso labirinto à caça desse Minotauro, e aqui nos valemos da figura híbrida do
meio homem meio touro para referirmo-nos ao texto ficcional, ao mesmo tempo fruto
da inventividade de um sujeito, mas também testemunho dos modos e costumes de uma
época. Parece-nos assustador, a primeira vista, mas percorrendo o caminho que nosso
fio aponta, estamos seguros de que não nos perderemos. Dessa forma, parte
fundamental é embasar a pesquisa em conceitos que nortearam nossa análise. São eles:
representação e representações coletivas (sociais), cotidiano, imaginário, memória
coletiva e discurso.
O uso da literatura como fonte histórica não é novo, como aponta Carlo
Ginzburg (2007), mas é inegável que o número considerável de estudos que a utilizam
como fonte foi motivado pelo campo da Nova História Cultural que ofereceu um
suporte importante para que tais estudos fossem levados a termo.
Em A História Nova (1993), Jacques Le Goff defende que o termo “Nova
História” remete-se a uma continuidade da tradição dos Annales de trabalhar com novas
perspectivas metodológicas, temáticas e problemas. Além dessa tendência a uma
história total, a Nova História Cultural teria como objeto as práticas simbólicas da
sociedade, isso influenciado por antropólogos, críticos literários e filósofos que,
resumindo suas perspectivas, apontam para uma compreensão das relações econômicas
e sociais dentro dos campos das produções culturais. Essa percepção do simbólico toca
também a noção que se tem de documento, antes vistos como potentados da verdade
histórica, hoje são entendidos como objetos simbólicos com significados diferentes que
variam conforme as questões e os métodos utilizados pelos historiadores.
Passemos então à questão do “cultural”. Percebemos que o conceito cultural,
derivado de cultura, deu a essa corrente historiográfica muitas possibilidades de
abordagem histórica, não poderia ser diferente uma vez que a concepção de “cultura” e
a definição do que é seja tão abrangente quanto as possibilidades de estudos culturais.
Portanto, compreender o que a História Cultural entende por cultura é essencial.
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Procurando compreender o que é cultural, é impossível não se voltar para o debate
exposto em Ideologia: uma introdução (2000) de Terry Eagleton. Vejamos o que esse
teórico tem a nos dizer:
Se a palavra “cultura” guarda em si os resquícios de uma transição
histórica de grande importância, ela também codifica várias questões
filosóficas fundamentais. Neste único termo, entram indistintamente
em foco questões de liberdade e determinismo, o fazer e o sofrer,
mudança e identidade, o dado e o criado. Se a cultura significa cultivo,
um cuidar, que é ativo daquilo que cresce naturalmente, o termo
sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos
ao mundo e o que o mundo nos faz. É uma noção realista no sentido
epistemológico, já que implica a existência de uma matéria-prima
além de nós, mas também uma dimensão construtivista, já que essa
matéria-prima precisa ser elaborada numa forma humanamente
significativa. (EAGLETON, 2000, p. 11).
Eagleton demonstra-nos que existem diferentes significados para a palavra
cultura. Para tanto, historiciza o termo cujo significado germinal acompanhou o êxodo
rural para a cidade. Inicialmente estava ligado ao campo num processo relacionado ao
aspecto material e laboral para depois relacionar-se com as questões do espírito. Nessa
relação da cultura com a natureza, Eagleton nos diz que a natureza estabelece uma
continuidade do homem com o ambiente, ao passo que a cultura realça a diferença entre
eles. O homem, embora um ente da natureza, possui a capacidade de se automodelar, o
que lhe possibilita uma passagem do natural para o artificial. Um exemplo é a aquisição
da linguagem. Naturalmente, o homem não nasce articulando palavras e formando
enunciados, ele possui um aparelho fonador que é trabalhando culturalmente até que
uma língua se desenvolva, esse aperfeiçoamento é possível porque ele é inserido numa
cultura com a qual interage. Logo, percebemos que a cultura não diz respeito ao
indivíduo, mas funciona em grupo, da interação dos membros desse grupo.
Percebemos que essa ideia de cultura difere de uma das variantes mais comuns
que relaciona cultura ao cultivo das ciências e das artes que redunda no termo “culto”.
Sendo assim, a cultura seria privilégio de uma parcela pequena da sociedade, pois o
termo culto, ele também tem a sua historicidade, e podemos entender que surgiu junto
com a sociedade do Renascimento que primava pelo cultivo da “Razão”, numa visão
racionalista e que hoje é contestada.
O que podemos inferir, a partir das considerações de Eagleton, é que estamos
integrados à cultura do nosso grupo desde o nascimento. À medida que interagimos com
a linguagem e as práticas simbólicas do nosso grupo social, nos afastamos do estado
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natural o que faz com que a nossa existência torne-se dependente das relações culturais.
Por último, a cultura não é uma sentença fechada, ela está em constante mudança a
partir do momento que há trocas culturais, ainda mais no mundo contemporâneo dito
“mundo sem fronteiras”. Assim, tentando definir um termo de cultura que justifique seu
uso para determinar os objetos de estudo da Nova História Cultural, poderíamos dizer
que essa corrente historiográfica entende por cultural: todas as práticas, simbólicas,
imagéticas que os indivíduos de uma dada sociedade compartilham, o fazer, o agir, a
produção e a linguagem que compõe a dinâmica da vida social. Todas as ações que os
indivíduos partilham com os outros do seu grupo e que caracterizam sua identidade
diante de outros grupos, que pode sofrer alterações na medida em que ocorre uma
interação entre eles.
O cultural elenca o imaginário e a representação como formas de ver o mundo.
A partir do que entendemos por cultural podemos passar agora para a noção de
imaginário, percebendo que na nossa perspectiva não se refere a algo fictício, falso.
Aqui o imaginário é entendido como uma matriz que gera as práticas sociais e os
comportamentos humanos, dando não apenas coesão, mas uma explicação para a
realidade. É, portanto, produto de uma dada cultura. O imaginário justifica desde
atitudes diante da morte até a constituição da sociedade, como sugere Cornelius
Castoriadis (1991).
Para esse filósofo, em A Instituição imaginária da sociedade, a realidade (leia-se
realidade histórica) de cada sociedade é uma criação e, em consequência disto, ele
rejeita a perspectiva de que exista uma definição apriore para o ser humano e para a
sociedade através de determinações já instituídas na realidade. Na perspectiva de
Castoriadis, a realidade histórica é fruto do embate entre o imaginário social instituído e
o imaginário social instituinte. O homem é um ser que procura sentido e para satisfazer
esta necessidade de sentido, cria o sentido. Assim, a sociedade vale-se do imaginário
para adquirir um significado. Conforme Castoriadis:
O imaginário de que falo não é imagem de. É criação incessante e
essencialmente indeterminada (social, histórica e psíquica) de figurar
(formas/imagens), a partir das quais somente é possível falar-se de
“alguma coisa a”. Aquilo que denominamos “realidade” e
“racionalidade” são seus produtos (CASTORIADIS, 1982, p. 13).
Dessa forma, é possível estabelecer uma relação entre imaginário e
representação em que a representação é produto de um imaginário, é a forma como ele
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se expressa. Em A Nova História Cultural, entre práticas e representações (1990),
Roger Chartier determina que o objetivo da Nova História Cultural é identificar como
“em diferentes lugares e momentos uma realidade social é construída, pensada, dada a
ler (1990, p.16). A partir dessa ideia, podemos dizer que as representações são as
percepções do social a partir de um indivíduo ou de um grupo. Como trabalhamos com
a noção de representações coletivas, compreendemos essas percepções como relações
de forças, pois, ainda conforme Chartier, as representações nunca são neutras de
sentido, e portanto, variam de acordo com o grupo que as produzem, muito embora
“aspirem à universalidade, são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as
forjam” e, por fim, “produzem estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade,
uma deferência e mesmo a legitimar escolhas” (1990, p. 17). As representações
coletivas seriam, portanto, o aparato que permitiria uma negociação entre as categorias
que no jogo social estão em lados antípodas, muitas vezes ao longo da historiografia,
enquadrados nos conceitos de dominadores e dominados, e que deixa entrever a
sujeição de um grupo ao outro. No entanto, o que Chartier quer mostrar, é que não
existe um enrijecimento nessa
dicotomização, que as relações entre os grupos
socialmente antípodas são intercambiáveis, negociáveis, muito embora o grupo
dominante tente impor sua representação do mundo, o grupo a quem ela é direcionada e
imposta a reformula, recria e vive sua própria interpretação.
É no embalo da negociação entre os grupos antípodas que percebemos o papel
importante do conceito de cotidiano traçado por Michel de Certeau, em A invenção do
cotidiano. Quando Certeau aponta o cotidiano como o lugar da mudança, relemos como
o lugar da negociação. Certeau não apresenta um conceito claro de cotidiano, mas
oferece um suporte teórico e metodológico de onde podemos extrair uma ideia de
cotidiano como o lugar da invenção realizada pelo sujeito ordinário e em que o homem
comum adquire um papel ativo no qual interpreta o mundo que o circunscreve
(geralmente baseado na norma e na vigilância), forjando uma liberdade quase
microscópica e uma resistência, por vezes, pouco visível, mas, que denotam uma
subversão às normas políticas e socialmente instituídas, e algumas vezes obtendo como
resultado a demolição de discursos morais, políticos, religiosos que não apenas impõem
como tentam naturalizar um estado de conformismo diante da realidade por eles forjada.
É nessa perspectiva que Certeau fala em “artes de fazer”, pois na esfera do cotidiano
essa realidade é reinventada permitindo ao homem comum fazer sua própria leitura do
mundo e do seu papel na sociedade (CERTEAU, 1998, p. 38-41).
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Tal cotidiano, lugar da invenção, é nosso objeto quando pretendemos investigar
de que forma se deu a marginalização dos homens libertos pelo advento da República,
no Brasil. Para tanto, utilizamos, como já dissemos, a produção literária de Nascimento
Moraes. Portanto, é nos interstícios da narrativa ficcional que pretendemos alcançar
nosso objetivo. Entre nosso objeto e nossa fonte temos como intermediário o discurso,
organizado por um indivíduo historicamente localizado e também pelo regime de
historicidade ao qual estava sujeito, detentor de uma memória coletiva. Antes de
proceder aos esclarecimentos sobre como o discurso aponta como intermediador entre o
objeto e o texto histórico (nossa dissertação desenvolvida) justificamos o motivo de
percebermos Nascimento Moraes como portador de uma memória coletiva.
Em Memória e identidade social, Michel Pollak define memória coletiva como
Acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que,
no imaginário, tomaram tamanho relevo que,no fim das contas, é
quase impossível que ele consiga saber se participou ou não... É
perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da
socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de
identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar
numa memória quase herdada (POLLAK, 1992, p. 201).
Nascimento Moraes não se nega o lugar social de homem de cor na temática dos
seus textos, desde os literários até os artigos de opinião, ao menos nas duas primeiras
décadas do século XX, mostra-se como tributário da memória que foi dos seus pais,
ambos negros e escravos, o pai liberto pela atuação na Guerra do Paraguai, a mãe pela
Lei Áurea, possivelmente de outros parentes, amigos, não por outro motivo um dos
temas preferidos de suas tramas eram os tempos da escravidão e do pós Abolição, desde
o cotidiano dos escravos até as práticas da elite escravocrata. Outro ponto que nos
reforça essa percepção é o fato de geralmente o narrador de suas ficções contar o que
ouviu do pai ou da mãe em tom perceptivelmente autobiográfico.
Agora, elucidados os conceitos que permeiam nossa pesquisa, detemo-nos na
questão dos textos ficcionais e sua validade enquanto fonte histórica, tal viabilidade se
dá por entendermos o texto enquanto discurso. Todas as questões inerentes ao discurso
são de suma importância para que não vejamos literatura apenas como mera invenção,
mas como uma possibilidade de verdade, um resquício de um tempo perdido e que
tentamos compreender a partir dos seus vestígios.
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Atentem que não estamos usando texto e discurso como equivalentes. Guiados
pelas concepções teóricas da Análise do Discurso (AD), especificamente em Mikhail
Bakhtin e Dominique Maingueneau, foi possível traçar um percurso para
operacionalizar uma análise de nossas fontes. Texto e discurso não são a mesma coisa, o
discurso é uma parte constituinte do texto que, conforme a AD, “O texto se constitui de
discursos divergentes cujas fronteiras se intersectam; o texto é heterogêneo, não é
possível definir um dos discursos sem remeter ao outro” (MUSSALIM, 2000, p. 124). A
questão que realmente importa para quem deseja analisar o sentido de um texto é
perceber as relações que mantém os diversos discursos que o constituem, pois eles têm
parte de seu sentido determinado pelo contexto histórico, ou contexto da enunciação, o
que tira qualquer não intencionalidade de um discurso e, por sua vez, revela com quem
o locutor está dialogando, seja explícito ou implicitamente, o sentido dos textos só se
revelam quando aceitamos que eles são “historicamente construídos” (MUSSALIM,
2000, p. 123). Dessa forma, percebemos nos textos de Nascimento Moraes, que tratam
do pós Abolição e Primeira República, o discurso racial, civilizador, eugênico,
modernizador, mesmo quando aparentemente não trazem em seu bojo algum desses
discursos, a enunciação remete-nos a eles, ocorre quando lemos algum conto com a
temática educacional, os personagens na maioria negros e libertos, ou descendentes de
escravos são sempre dotados de uma genuína inteligência, que “trabalhada” pela
educação formal possibilita-lhes ascensão social, o que aponta para o discurso que
anunciava a raça negra como geneticamente incapaz e propensa à demência, em
nenhum momento, em nível de exemplo, no conto A vida de um homem de bem, dedica
uma linha sobre o discurso racial que negativava o homem negro, por outro lado ele está
implícito, bem como, uns mais outros menos explícitos que fazem referência à
moralização do trabalho, dos costumes etc. Percebemos, portanto, que o texto se
constrói por uma “relação de forças” entre os discursos que é a chamada formação
ideológica, que denota por sua vez a forma como se relacionam as classes em conflito.
A formação ideológica, por sua vez, remete-nos à formação discursiva, “lugar onde se
articulam discurso e ideologia” (MUSSALIM, 2000, p. 125). A formação discursiva
revela o caráter heterogêneo dos discursos, o que nos leva à concepção de dialogismo,
definida por Mikhail Bakhtin e que não devemos confundir com um diálogo “face a
face”, mas a maneira como um “discurso dialoga internamente com outros discursos”,
Fernanda Mussalim, ao remeter às análises de Bakhtin diz que
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O discurso, cujo dialogismo se orienta para outros discursos e para o
outro da interlocução, instaura-se numa perspectiva plurivalente de
sentidos, bem como a própria palavra que, pelo fato de ser atravessada
de sentidos constituídos historicamente, não é monológica, não é
neutra, mas atravessada pelos discursos nos quais viveu sua existência
socialmente sustentada (MUSSALIM, 2000, p. 127).
Por todas essas características constitutivas do texto, até aqui apontadas, vai
ficando cada vez mais claro como é possível ao historiador utilizá-lo, mesmo sendo de
ficção, porque ele está circunscrito em um regime de historicidade e todos os discursos
que se relacionam no seu interior apontam para os sentidos e as ideologias do seu
contexto de produção. Mas, ainda é preciso operacionalizar como surgem esses
discursos no interior de um dado texto, é nessa perspectiva que, em Gênese dos
discursos, Dominique Mangueneau trabalha com a ideia de que o interdiscurso precede
os discursos. O linguista francês entende por interdiscurso, cujo significado é elucidado
através da “tríade universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo”
(MANGUENEAU, 2008, p. 33). Define universo discursivo como o conjunto de
formações discursivas que interagem em uma conjuntura, esse conceito é importante
porque é a partir dele que são recortados os campos discursivos, formações discursivas
que se limitam e se encontram em concorrência, por fim o espaço discursivo como
subconjunto formado por pelo menos duas formações discursivas que supostamente
mantém relações privilegiadas para a compreensão do discurso considerado
(MANGUENEAU, 2008, p. 33-35). O que se conclui disso é que um discurso não tem
seu sentido explícito ou implícito em si mesmo, mas a partir de relação que mantém
com outros discursos dentro de um universo e que apontam para um outro do discurso,
aquele com que se mantém o diálogo. Dessa forma, Mangueneau afirma que há um
primado do interdiscurso (2008, p. 35). Esse outro é definido como
Aquele que faz sistematicamente falta a um discurso e lhe permite
encerrar-se em um todo. É aquela parte de sentido que foi necessário o
discurso sacrificar para constituir a própria identidade.
Disso decorre o caráter essencialmente dialógico de todo enunciado
do discurso, a impossibilidade de dissociar a interação dos discursos
do funcionamento intradiscursivo. Essa imbricação do Mesmo e do
Outro retira à coerência semântica das formações discursivas todo
caráter de “essência”, cuja inscrição na história seria acessória; não é
dela que a formação discursiva tira o princípio de sua unidade, mas de
um conflito regulado (MANGUENEAU, 2008, p. 37).
19
Justamente por não entendermos a obra ficcional como criação, fruto de uma
iluminação, mas o produto de uma dada época, que a aceitamos como fonte de
investigação.
Ao tratar a literatura como fonte, a história impõe-lhe um interrogatório e as
respostas válidas e aceitáveis para a pesquisa histórica advém justamente da
especificidade do texto ficcional. Como sublinhou Dominique Maingueneau, o discurso
é o lugar por excelência da metáfora que aqui significa tomada de uma palavra por
outra, dessa forma, no texto literário ela funciona como uma forma de interpretação do
mundo, que se apresenta de forma cifrada. Nessa cifra podemos vislumbrar o não visto,
por exemplo, o imaginário, as sensibilidades de uma época. Nesse sentido, é
interessante citar o que nos diz Pesavento (2006) sobre as verdades da literatura:
A verdade da ficção literária não está, pois, em revelar a existência
real de personagens e fatos narrados, mas em possibilitar a leitura das
questões em jogo numa temporalidade dada. Ou seja, houve uma troca
substantiva, pois para o historiador que se volta para a literatura o que
conta na leitura do texto não é o seu valor de documento, testemunha
de verdade ou autenticidade do fato, mas o seu valor de problema. O
texto literário revela e insinua as verdades da representação ou do
simbólico através de fatos criados pela ficção. (PESAVENTO, 2006,
p. 8).
Por fim, para entendermos o sentido do romance Vencidos e degenerados, o
conceito de polifonia foi necessário. Cunhado por Bakhtin em Problemas da Poética em
Dostoiévski (1981), podemos entender polifonia como a multiplicidade de vozes dos
personagens que se sobressaem à do autor, em suas palavras,
A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e
a autêntica polifonia de suas vozes plenivalentes constituem, de fato, a
peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a
multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo
uno, a luz da consciência uma do autor, se desenvolve nos seus
romances; é precisamente a multiplicidade de consciências
equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de
acontecimentos, mantendo a sua imiscibilidade.
Dentro do plano artístico de Dostoiévski suas personagens principais
são em realidade, não apenas objetos do discurso do autor, mas os
próprios sujeitos desse discurso diretamente significante (BAKHTIN,
1981, p. 17).
A principal consequência dessa multiplicidade de vozes é que, na trama, os
problemas e contradições não se solucionam, não possuem um desfecho dialético, mas
20
se mantém como uma sentença aberta. Percebemos essa característica no enredo de
Vencidos e degenerados. De modo algum pretendemos equiparar os dois autores,
sabemos que Bakhtin refere-se ao conjunto da obra dostoievskiana, ao passo que
Nascimento Moraes nem se quer firmou-se como romancista, era de fato jornalista, que
na juventude escreveu um romance e por vezes publicava alguma crônica ou conto.
Sabemos também que Nascimento Moraes foi leitor de Dostoiévski (BARROS, 2006, p.
122) e não é impossível imaginar que ele possa ter se inspirado no modelo polifônico,
não por uma consciência do mesmo, poderia ser por mimetismo, fato bastante comum
em escritores aspirantes. A questão é que, de fato, os personagens na trama de Vencidos
e degenerados não chegam a tecer uma rede de relações da qual necessita sua circulação
ao longo da narrativa, não há uma interdependência e, portanto, não necessitam que a
consciência do autor intercruze suas histórias para que se chegue a uma apoteose, aliás,
não existe o desfecho da trama, não sabemos o destino da maioria dos personagens, suas
odisseias não se solucionam, o romance termina, mas não as questões por ele suscitadas.
Feitos esses esclarecimentos, o objetivo de nossa pesquisa é investigar de que
forma os personagens do romance Vencidos e Degenerados, de crônicas e contos
assinados por Nascimento Moraes ou um pseudônimo, alegorizam a ausência de um
projeto político da inserção dos pobres na sociedade que não era mais aristocrática nem
ainda industrializada naqueles primeiros anos da República.
Buscamos usar a fonte literária como indício para investigar política, economia e
cultura na relação do Estado Brasileiro e o seu povo. A literatura, nesse sentido, como
pensamos ter deixado claro, é indispensável quando desejamos alcançar o imaginário e
as práticas dos diversos sujeitos sociais porque ela nos permite rastrear nas
representações das suas formações discursivas, ao longo da narrativa, práticas culturais
e imaginários de uma época não como aquilo que foi de fato, mas o que poderia ter sido,
ou, como na escolha que fizemos, na forma como um sujeito específico - que aqui
chamamos de autor - pensou a sua sociedade e a representou na sua obra.
É necessário esclarecer que algumas problemáticas se apresentaram no momento
da seleção de nossas fontes. Desde o pré-projeto dessa pesquisa, intentamos trabalhar
com os contos, assinados pelo pseudônimo Valério Santiago, aos quais tivemos um
primeiro contato por meio da edição de 1982, organizado por Moraes Filho e publicados
pela editora SECMA. Na época, ano de 2007, não nos preocupamos em localizar a
publicação original dos mesmos, mas inferimos, pelo conteúdo remeter-nos ao período
do pós-Abolição, que haviam sido publicados naqueles primeiros anos da República,
21
qual não foi nossa surpresa ao descobrirmos que a publicação dos contos ocorreu
somente na década de 1940, dentro de uma revista que estava particularmente atrelada
ao aparelho estatal, seu conteúdo fazia muitas homenagens aos políticos da época, tanto
em artigos de opinião quanto na participação ao público leitor do dia a dia desses
políticos, tratava-se da Revista Athenas. No entanto, encontramos contos com claro teor
de crítica social, pois seus discursos referiam-se ao preconceito racial, um projeto de
inclusão dos homens de cor por meio da educação, quando a educação, como veremos
mais adiante, estava comprometida com o mercado de trabalho que necessitava de mão
de obra para os projetos capitalistas da época. Outro problema que surgiu foi quando
partimos à localização dos contos na dita revista, acreditando haver alguma referência
do momento da escrita, dos cerca de 15 exemplares que encontramos no ano de 2007
apenas cinco restaram no acervo de obras raras da Biblioteca Pública Benedito Leite,
possivelmente o processo de transposição em detrimento da reforma, que durou quase
cinco anos, teve grande participação no sumiço dos exemplares, mas é apenas uma
hipótese haja visto que os funcionários da biblioteca não souberam informar, há uma
esperança de que as revistas estejam em tratamento e possam vir a ser digitalizadas, mas
também há a possibilidade que tenham se perdido para sempre. Dentre os contos que
selecionamos dessa coletânea, apenas A negra Benedita foi localizado entre os cinco
exemplares restantes da Revista Athenas, os outros dois, Desmoronamento e A vida de
um homem de bem encontram-se desprovidos de sua data de publicação primeira.
Entretanto, insistimos em utilizar os contos, malgrado sua data de publicação, pois todo
o seu texto remete-nos, como já dissemos, ao contexto da Primeira República. A negra
Benedita fala do pós Abolição; em A vida de um homem de bem o narrador anuncia que
os fatos que relata ocorreram a partir do ano de 1921; bem como Desmoronamento faz
referência a operários, e deixa outras pistas que nos convencem tratar-se ainda da
primeira década do século XX. O tom memorialístico dos dois primeiros contos e o fato
do narrador informar que alguns fatos foram-lhes passados por seus pais ajudam a
reforçar nossa hipótese que de fato foram escritos ainda na Primeira República. Além
disso, o nome Valério Santiago já era citado em jornais, no ano de 1910, quando se deu
a polêmica literária entre Nascimento Moraes e Antonio Lobo, cujo tema principal era o
discurso racial e a eugenia, também constantes nos contos supracitados. Justamente por
esses textos remeter-nos ao contexto histórico do pós Abolição e Primeira República
que acreditamos não termos incorrido em uma falha metodológica, na verdade adotamos
a postura do investigador que segue a pista da figura perdida em pequenos rastros, a
22
formação discursiva presente nos textos trabalhados apontam como algo muito maior
que rastros, aparecem mais como verdadeiros sinalizadores de sua temporalidade de
escrita. Sobre sua publicação na década de 40, acreditamos que o teor popular desses
contos tenha sido o motivo, o país ainda vivia sob a política do Estado Novo cujas
prerrogativas se baseavam na valorização do trabalhador, da indústria nacional, o
carisma de caráter populista, quando os contos colocam em questão o papel ativo do
homem de cor no mundo do trabalho e os hábitos reprováveis das elites, percebemos
que há um público leitor, que apreciaria muito esse conteúdo. Karina Baptista (2003),
em seu estudo sobre as memórias de homens de cor sobre o pós Abolição, no Rio de
Janeiro, recolhe nos depoimentos (pois se trata de uma pesquisa baseada no testemunho
oral) um grande afeto dos homens de cor por Getúlio Vargas, apontado ora como “o pai
dos pobres” ou como aquele que “liberta realmente da escravidão” (BAPTISTA, 2003,
p. 14).
Assim, nossas fontes constituem-se do romance, Vencidos e degenerados,
publicado em 1915, dos três contos já citados, e ainda de algumas crônicas e artigos
publicados nos jornais A Campanha (no ano de 1902), A Imprensa (anos de 1907),
ainda o jornal Pacotilha (ano de 1904), de onde extraímos um conto de Raul Astolfo
Marques para nos ajudar a compor o universo representacional em torno do episódio da
peste bubônica em São Luís. A leitura não apenas dos contos e crônicas nesses jornais,
mas da própria estrutura como espaço ocupado por artigos, anúncios, reclamações,
folhetins, classificados ajudou a entendermos um pouco das representações da época e
do seu cotidiano, uma vez que eram jornais noticiosos e traziam várias informações
sobre o dia a dia dos ludovicenses.
Dados
esses
esclarecimentos,
nosso
trabalho
subdivide-se
em
três
macrocapítulos, subcaptulados. No primeiro capítulo, tentamos traçar a trajetória
biográfica do nosso intelectual a partir do que propõe Jean François Sirinelli, em seu
texto Os intelectuais (2003). Este autor nos direciona a investigar a vida e ação de um
intelectual tendo como guia três conceitos: itinerário, geração e sociabilidade. Entende o
intelectual como um sujeito criador e mediador entre a cultura e a sociedade. No
intercurso desses conceitos temos a ideia de engajamento, ou seja, ao mesmo tempo em
que o intelectual sugere opções à sociedade ele objetiva um lugar no centro de decisões.
O intelectual é antes de tudo alguém que está atento ao seu tempo, e seu papel torna-se
importante para a nossa pesquisa pelas representações que ele faz desse tempo na sua
produção literária. Assim, sua trajetória é tecida a partir da participação no grupo da
23
Oficina dos Novos e Renascença Literária, sua atuação em jornais e como educador,
tanto particular quanto na instituição pública do Liceu Maranhense. Tal trajetória, assim
concebida, elucida também o projeto intelectual de Nascimento Moraes naquele período
elencando os temas dos discursos racial, civilizador, modernizador e educacional como
norteadores do seu pensamento, bem como as polêmicas nas quais se envolveu.
O segundo capítulo dá início à análise do nosso objeto, partindo das experiências
de liberdade dos homens de cor no universo ficcional de Nascimento Moraes, sua
relação com uma memória coletiva de egressos da escravidão e a problemática da
inserção desses homens no mercado de trabalho, desde as saídas buscadas ou apontadas
pelas instâncias políticas até as maneiras como se configurou o mundo do trabalho em
São Luís.
O terceiro capítulo trata especificamente da Primeira República e os discursos
mais debatidos: modernização, urbanização, higiene e saúde públicas, civilização como
sinônimo de refinamento, cidadania e educação. Neste vislumbramos as representações
e os imaginários que nos apontam os textos de Nascimento Moraes, é nesta parte que
encontramos as “artes de fazer” que permitiam aos homens de cor sobreviver naquele
universo, que, como bem ressalta Murilo de Carvalho formulava uma imagem negativa
da nação brasileira porque já não se podiam negar sua heterogeneidade étnica.
24
1. Trajetória intelectual de José Nascimento Moraes
José Nascimento Moraes nasceu em 19 de março de 1882 em São Luís,
Maranhão. Filho de um escravo que lutou na Guerra do Paraguai, sendo depois servente
e terminando seus dias como porteiro do Tesouro do Estado. Sua mãe era uma negra
liberta que trabalhava como cozinheira e lavadeira para os brancos (BRAS, 2008, p. 24).
Apesar de sua origem humilde, Nascimento Moraes teve acesso a uma boa
educação, dentro dos padrões da época, estudando no Liceu Maranhense, o mais
conceituado centro de formação educacional do Maranhão. Nesta escola estudaram
jovens da elite ludovicense e lecionaram grandes figuras como o português Manoel
Bithencourt, considerado um grande incentivador da juventude naquele período
(MARTINS, 2006, p. 59).
Na época em que Nascimento Moraes adentrou no Liceu, a grade curricular era
composta das seguintes disciplinas: Língua Portuguesa, Latina, Grega, Inglesa, Francesa
e Alemã; Matemática, Astrologia, Física, Química, Geografia, Mineralogia, Geologia,
Meteorologia, Biologia, História Universal, História da Filosofia, Desenho, Música,
Ginástica e Esgrima (ANDRADE, 1982, p. 52), Adriana Gama de Araújo informa que
Nascimento Moraes também estudou matemática na sua passagem pela Academia
Militar, no entanto a data não é informada (ARAÚJO, 2011, p. 16).
Manoel Barros Martins informa que, influenciado pelo professor Manoel
Bitencourt, Nascimento Moraes leu principalmente os escritores do século XIX, dentre
eles: Gógol, Tolstói, Dostoiévski, Émile Zola, Spencer, Comte e Start Mill (MARTINS,
2006, p. 122).
Nascimento Moraes concluiu as cadeiras do Liceu aos 18 anos de idade. Tudo
indica que ele foi diretamente para a redação dos jornais, principalmente por ter sido
Manoel Bithencout quem lhe conseguiu uma colocação e por ter participado dos grupos
de leitura e discussão promovidos por aquele professor. (ARAÚJO, 2011, p. 17).
O jovem Nascimento Moraes inicia sua carreira jornalística a partir de 1901 no
jornal A Campanha, e fizera parte da juventude da Oficina dos Novos em 1900, sendo o
termo “Novos Atenienses” usado pelo intelectual maranhense Antonio Lobo (18701916) para se referir ao grupo de jovens intelectuais que tentaram alavancar os ânimos
maranhenses com uma rejuvenescência literária logo no início do século XX e cujo
objetivo era cultuar personalidades do passado, orientar e incentivar novos escritores.
Quando Antonio Lobo, principal fundador da Academia Maranhense de Letras,
25
conclamou a juventude maranhense da cidade de São Luís a vencer o marasmo
intelectual em que se encontrava, seu objetivo era restaurar o brilho da auto proclamada
Atenas Brasileira. A atuação desse grupo foi de tal importância que acabou por entrar
para a história do Maranhão alcunhado de “neo-atenienses”. Conforme Manoel Barros
Martins, os membros dessa geração permaneceram no Maranhão e buscaram acima de
tudo “inventar um Maranhão reatado a suas antigas tradições inventadas de fausto
econômico, de proeminência política, de requinte social e de cosmopolitismo cultural,
de onde figurava esmerado beletrismo” (MARTINS, 2006, p. 59).
Esse grupo de intelectuais, afirma Manoel Martins, pensava o Maranhão de
forma a buscar explicações dos mecanismos sociais bem como consolidar uma
identidade local. Essa identidade seria formada a partir de símbolos que estariam dados
na trajetória dada do Maranhão, especialmente os grandes expoentes do Grupo
Maranhense, grupo conhecido como o responsável pela consolidação da ideia-imagem
da Atenas Brasileira por sua atuação brilhante no cenário cultural e político em âmbito
nacional na primeira metade do século XIX (MARTINS, 2006, p. 115). Entre seus
expoentes mais significativos figuram João Lisboa (1812-1863), Gonçalves Dias (18231864), Odorico Mendes (1799-1864) e Sotero dos Reis (1800-1871).
No entanto, esses símbolos seriam ressignificados de forma a adquirir um
“sentido novo”:
Para esses letrados, o Maranhão deveria ser repensado desde suas
entranhas mais profundas; nesse sentido, a eles competia realizar o
mapeamento dos entraves paralisantes da vida ativa regional e indicar
alguma projeção de futuro que engendrasse uma realidade estadual
renovada, revigorada pelo influxo de tempos fáusticos, tomados como
referências imorredouras (MARTINS, 2006, p. 56).
Essa intenção mesclava a nostalgia provocada pela Ideologia da Decadência
(aprofundaremos seu significado mais adiante) com as conjunturas locais. Vivia-se um
período de crise e indefinição. Uma sociedade ancorada no alicerce da escravidão via-se
sem seu motor de sustentação, ainda mais quando no limiar do novo século isso se
somava à mudança no quadro político que era a então Primeira República (1889-1930).
É dessa forma que intelectuais buscam o passado, consagrado por eles mesmos como
uma época de prosperidade econômica de grande e rico brilho intelectual, para se
formatar uma identidade que servisse ao ego da elite, principalmente. E, conforme
Martins, no entusiasmo que provocou na juventude, sobretudo, foram eficazes porque
26
promoveram momentos em que os jovens podiam atuar escrevendo versos, reuniões em
clubes para discutir os romances em voga (MARTINS, 2006, p. 115).
Nascimento Moraes, no entanto, acaba rompendo com o grupo e funda A
Renascença Literária, grêmio juvenil que liderado por ele desenvolve uma polêmica
literária com a Oficina dos Novos. Tal polêmica se deu através da troca de artigos
ferinos entre os dois líderes, Antonio Lobo e Nascimento Moraes, em colunas dos
jornais que na época escreviam Correio da Tarde e A Pacotilha e, em 1910 foram
organizados no livro Puxos e Repuxos. Um dos motivos, segundo as palavras do próprio
Nascimento Moraes, foi a tentativa de Antonio Lobo e seus pares desejarem dominar o
campo intelectual maranhense, lugar onde homens de cor, como era o caso de
Nascimento Moraes, não seriam bem-vindos. Nascimento Moraes acusa Antonio Lobo
de uma perseguição contra a sua pessoa motivada principalmente pelo preconceito
racial. Adiante retomaremos este assunto.
No ano de 1914, Nascimento Moraes concorre com os irmãos Antonio e
Raimundo Lopes1 ao cargo para professor titular de Geografia do Liceu Maranhense e
vence os já renomados irmãos. Nascimento Moraes escreve apenas um romance:
Vencidos e Degenerados, publicado em 1915, mas atuou e ajudou ao longo de sua vida
em diversos jornais locais onde ainda se encontra a grande parte do seu trabalho. Foi
reconhecido e admirado por sua atuação jornalística e por seu trabalho como educador
da mocidade maranhense.
Além do romance Vencidos e degenerados (1915) e da coletânea Puxos e
Repuxos (1910) foram feitas duas publicações com as obras de Nascimento Moraes. São
elas: Neurose do Medo (1923), publicada pelo próprio autor, composta de artigos
jornalísticos onde eram feitas ferrenhas críticas ao então governador Raul Machado; e
Contos de Valério Santiago (1989), obra póstuma organizada por Moraes Filho que
reúne contos publicados na década de 1940, pela Revista Athenas. Nesses contos, o
pseudônimo se remete ao período posterior à Abolição para tratar sobre o destino dos
libertos, além de eventos e personagens do cotidiano da Primeira República em São
Luís, tentamos achar um sentido para o pseudônimo, inferindo a partir dos seus textos
tratar-se de uma identificação com uma memória coletiva dos anos que antecederam e
1
Raimundo Lopes (1894-1941) é autor do livro O Torrão Maranhense, de 1916. Era funcionário do
Museu Nacional. Seu irmão, Antonio Lopes, foi uma figura de destaque na primeira metade do século
XX. Fundou e dirigiu muitas instituições, entre elas a Academia maranhense de Cultura Popular. Foi um
dos pioneiros no estudo da cultura popular, destacamos o livro Presença do Romanceiro: versão
maranhense.
27
sucederam a Abolição; no entanto, ao depararmo-nos com Valério Santiago jornalista,
editor do Pacotilha na década de 1930, a inferência perdeu o sentido.
Nascimento Moraes pertenceu à Academia Maranhense de Letras, onde foi
admitido no ano de 1935 e que chegou a ser presidente por três vezes, nos anos de 1941,
1946 e 1947. Nesta academia, ele foi secretário, tesoureiro, ocupou a cadeira onze, cujo
patrono é João Lisboa. Nascimento Moraes também foi redator da revista da Academia,
a Revista Athenas (1941).
Não podemos deixar de mencionar que Nascimento Moraes se casou com Ana
Augusta Mendes Moraes, que lhe deu sete filhos. Dentre eles, dois seguiram os passos
do pai: Paulo Nascimento Moraes e José do Nascimento Moraes Filho foram
considerados pelos pares como jornalistas e poetas importantes (MARTINS, 2002).
Moraes Filho, numa entrevista (1997), disse que seu pai, mesmo aposentado, continuava
lecionando e escrevendo nos jornais O Dia e O Imparcial até que seus escritos deixaram
de ser publicados por não apresentarem mais nexo (REGO, 1997). Em 22 de fevereiro
de 1958, aos 76 anos, faleceu Nascimento Moraes, sem jamais ter saído do Maranhão.
A Tradição Literária Ateniense: da Oficina dos Novos à carreira jornalística
Nascimento Moraes foi uma figura de valor intelectual reconhecida em sua terra
natal. Em todos os depoimentos que encontramos durante nossas pesquisas deparamonos com a mesma imagem com a qual ele foi pintado por seus conterrâneos. Citamos
alguns desses depoimentos.
Antonio Vieira da Silva, referindo-se a Nascimento Moraes, afirma,
Vencendo as naturais restrições de um meio acanhado pelas
discriminações de origem familiar e preconceitos diversos, teve o
cronista de costumes, que muito bem saberia sê-lo em Vencidos e
degenerados, que retemperar forças e concentrar as energias todas de
sua vigorosa personalidade para impor-se e vencer... (VIEIRA DA
SILVA, 1949, p. 81-82).
Vieira Filho, ao falar da rua cujo nome foi uma homenagem ao jornalista:
... Professor emérito de português e jornalista de cálamo vibrante, o
velho Moraes levou uma vida agitada, sempre metida em lutas
políticas e polêmicas literárias.
28
Na cátedra ou no jornalismo era o combativo de sempre, esgrimindo,
em prosa amena, argumentação cerrada e fulminante que surpreendia
o adversário (VIEIRA FILHO, 1962, p. 87).
Erasmo Dias, em um artigo quando da morte de Moraes:
Aos estudiosos da evolução social do Maranhão, a figura de
Nascimento Moraes, após liderar durante quase meio século a vida
intelectual provinciana, se projeta com os nítidos contornos de um
símbolo de ascensão do proletariado urbano, aos domínios da
inteligência e da cultura, até então privilégios dos senhores de terra do
interior e dos comendadores da Praia Grande, já através dos seus
licenciados vindos de Coimbra, já pelos seus bacharéis formados no
Recife e em São Paulo. (DIAS, in: Jornal O Dia. São Luís.
25/02/1958).
O que tornava Nascimento Moraes motivo de espanto e admiração era o fato de,
apesar da origem humilde, da cor da pele, alcançar um lugar privilegiado no panorama
da intelectualidade maranhense, obtendo tal posição com o uso da pena e a firmeza de
defender suas ideias.
Nascimento Moraes foi produto de uma época em que a juventude de São Luís
buscava reviver os momentos de glória do Grupo Maranhense, e cujas figuras ilustres
da época emigravam para o centro intelectual do país. Esta juventude organizava-se em
grêmios, fundava jornais, refugiava-se num passado mítico para levantar o moral baixo
por conta da decadência da economia agroexportadora pela qual passava a província. É
nesse sentido que Manoel Martins alcunha os intelectuais desse período de “Operários
da Saudade”, porque buscavam “uma afirmação identitária” que pudesse “construir o
futuro”, mas sempre respaldados no passado. E mais:
Para eles, a situação reinante era a convocação incisiva para que
interviessem concretamente naquela realidade carcomida, visando
apontar soluções para o presente, capazes de projetar um futuro
glorioso, tendo como artefato fundamental o passado mitológico da
Atenas Brasileira (MARTINS, 2006, p. 118).
A economia desenvolvida a partir da primeira metade do século XVIII
possibilitou a fluorescência cultural na província do Maranhão. Conforme o relato de
alguns viajantes, no século XIX, ao aportarem no cais de São Luís, o que se via era uma
cidade de aspecto europeu. A cidade europeizou-se à custa do capital gerado pela
lavoura agroexportadora do arroz e do algodão. O lucro com a exportação desses
produtos também favoreceu o comércio dando origem a uma rica aristocracia comercial.
29
O sucesso econômico gerou o aumento da fortuna e consequentemente o poder de
muitas famílias maranhenses. Tal alteração refletiu-se na vida social da província.
Também pelo refinamento dos costumes urbanos das classes privilegiadas
(CALDEIRA, 1991, p. 21).
Ainda conforme os viajantes, o critério étnico era o principal para identificar os
grupos sociais predominantes na sociedade maranhense (CALDEIRA, 1991, p. 22).
José de Ribamar Chaves Caldeira, citado por Regina Faria, aponta cinco classes
no início do século XIX:
A primeira era dos reinóis, portugueses natos que ocupavam os
principais postos da administração; a segunda era formada por
nacionais (senhores nascidos no Brasil dedicados à exploração da
grande lavoura) e portugueses possuidores de casa comerciais
importador-exportadores; a terceira, dos mulatos, filhos dos
cruzamentos de europeus com negros; a quarta, dos escravos,
utilizados sobretudo no trabalho, nas fazendas; a quinta era a dos
índios, “descendentes dos antigos proprietários” do país...
(CALDEIRA, 1991, p. 22-23 apud FARIA, 2001).
Havia uma rígida distinção social entre cada um desses grupos, como mostra o
depoimento de D. Emília Pinto Magalhães Branco, uma mulher da elite maranhense do
século XIX, que fala do cuidado dos pais portugueses em evitar o casamento de suas
filhas com brasileiros, o trecho abaixo foi extraído do artigo da professora Maria de
Lourdes Janotti em que analisa o perfil de três mulheres da elite maranhense no século
XIX, dentre elas D. Emília Pinto:
Tidos os naturais da terra como peraltas mandraços e pelintras não
lhes era permitido levantarem os olhos para os descendentes diretos
dos lusos que, em último caso importavam noivos para elas dentre
seus parentes d’além-mar (JANOTTI, 1996, p. 225).
Essa percepção do brasileiro como um desleixado estava assinalada na escrita
dos viajantes que diziam estarem esses mais inclinados ao gozo do que ao trabalho e
reconhecendo sobre si a supremacia dos portugueses natos (CALDEIRA, 1991, p. 23).
Outro ponto importante era o valor, não apenas econômico, dos escravos. Estes
eram um símbolo de prestígio para o seu dono. Conforme fosse o número de escravos
maior seria a facilidade em se obter crédito. Com uma numerosa quantia de escravos, os
fazendeiros maranhenses conseguiam mostrar sua opulência. Josenildo de Jesus Pereira
nos dá o quadro que se desenvolvia com a relação entre escravaria e rendas econômicas:
30
Na agricultura mercantil e escravista, os escravos eram a um só tempo
- força de trabalho e mercadoria. Desse modo, eles integravam o
universo de transações comerciais de compra, venda e aluguel. Em
razão disso o tráfico internacional foi por muito tempo um negócio
rentável, como atestam os inúmeros anúncios de jornais tratando de
compra, aluguel e venda de escravos, dado ao seu valor de uso e de
troca (PEREIRA, 2006, p. 40).
No período anterior à Abolição, os escravos eram classificados em duas
categorias: os escravos do eito, que trabalhavam na lavoura, e os escravos urbanos, que
tinham sua força de trabalho alugada ou trabalhavam para pagar um valor diário aos
seus senhores de forma a incrementar ou produzir suas riquezas (PEREIRA, 2006, p.
40).
Dessa forma, associada às expansões econômicas da grande lavoura com a
prática da escravidão, a província de São Luís, especialmente sua elite branca, pôde
acumular alguns dividendos. Além de tudo, por sua situação geográfica, São Luís, no
século XIX, configurou-se num promissor entreposto portuário e comercial, dessa
forma desenvolveu-se o que veio a ser chamado de Praia Grande, o centro comercial da
província (BORRALHO, 2000, p. 55).
A fortuna que alimentava o promissor centro comercial também financiava o
envio de jovens à Europa a fim de que obtivessem o que havia de melhor na educação.
Também se refinava os modos de agir, postar-se e apresentar-se dos ludovicenses. No
entanto, era apenas a elite que experimentava esse privilégio. A riqueza e as
oportunidades eram monopolizadas apenas por uma fatia da população. Era a elite
pertencente à aristocracia rural e comercial que habitava nos suntuosos casarões com
azulejos portugueses a ornamentar suas fachadas. Eram as moças “sinhazinhas” que
aprendiam o francês, latim, música e vestiam trajes da última moda europeia. De fato, a
elite ludovicense zelava de sua imagem, cuidava do seu conforto. Era uma questão de
manter um status social. Henrique Borralho (2000) nos diz que, ao retornarem a São
Luís, estes jovens realizavam reuniões e debates que acabaram incrementando a vida
intelectual da elite maranhense (BORRALHO, 2000, p. 57).
Tal incremento não se limitava às reuniões e debates, mas ao desenvolvimento
das gráficas, ao fortalecimento da imprensa e ao acesso a livros da literatura europeia
(BORRALHO, 2000, p. 57). Conforme Regina Faria, esse incremento se traduziu em
31
números, citando Mérian, mostra que essa efervescência cultural era eminentemente
elitista e foi nela que se consolidou sobremaneira o mito da “Atenas Brasileira”:
Inextricavelmente ligado à representação da Atenas Brasileira há outra
auto-representação das elites oitocentistas do Maranhão,
extremamente significativa. Trata-se do europeísmo dos hábitos e
costumes, com particular predileção pela cultura francesa. No modo
de falar, trajar-se, mobiliar as casas e divertir-se, em tudo, as elites
seguiam os europeus (FARIA, 2001, p. 70).
A partir deste contexto e aliando o talento pessoal, não foi surpreendente terem
surgidos poetas, literatos e jornalistas do gabarito de Gonçalves Dias, João Lisboa,
Sotero dos Reis, Odorico Mendes... O reconhecimento nacional à intelectualidade de
figuras maranhenses que por vezes eram pioneiros em determinadas áreas – como é o
caso de Celso Magalhães cujos estudos sobre o folclore foram importantes para o
direcionamento do olhar de outros intelectuais à cultura popular – foi responsável para o
florescimento e consolidação do mito da “Atenas Brasileira”. Quem nascesse neste meio
estaria fortemente propenso a tornar-se uma eminente figura de destaque. Mais uma
ideia-imagem se junta à da Atenas, é a da “terra prodigiosa” (FARIA, 2001, p. 37), terra
em que ares, clima, geografia, tudo estava favorecendo a produção de mentes brilhantes.
No entanto, esse período de prosperidade findou a partir da segunda metade do
século XIX e com ele veio uma era de decadência que acabou por se instalar na
mentalidade coletiva tornando-se o tônico que fortaleceu ainda mais a ideia da “Atenas
Brasileira”.
Faz-se necessário esclarecer o que foi essa propalada Decadência e como a
historiografia comportou-se diante dela. Alfredo Wagner Berno de Almeida faz um
interessante estudo sobre a formatação do que ele chama de “Ideologia da Decadência”.
Em primeiro lugar, Decadência é um termo que se refere a um momento de
degeneração, que só é possível onde antes não se observava esse estado (COSTA, 2002,
p. 80). Explicamos: quando a historiografia, ainda no século XIX, usava o termo
“decadência” se referia ao momento posterior ao que chamava de “Era de Ouro”, ou de
“Prosperidade”. Esta “Era de Ouro” estaria localizada no século XVIII, trata-se de um
período “mítico” em que a Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, sob a
administração do Marquês de Pombal, financiou e facilitou o escoamento da produção
na província (ALMEIDA, 1982, p.83). É dessa forma que o ano da criação dessa
companhia, 1755, é visto como um divisor de águas da história local. Antes se vivia a
32
“Era da barbárie”, no sentido de um modo primitivo de funcionamento da região, com a
implantação da Companhia de Comércio conheceu-se a Prosperidade e após seu
desmantelamento veio a crise, a Decadência. Regina Faria mostra alguns dados que
justificam o porquê dos intelectuais terem formulado essa noção de decadência:
No alvorecer dos oitocentos, com o sistema agroexportador
funcionando plenamente, é possível perceber como sua dinâmica
suscitou um fluxo maior de africanos - dando nova feição à população
da região- e impulsionando a expansão da conquista do território, bem
como permitiu a concentração de riquezas nas mãos de comerciantes e
fazendeiros e o desenvolvimento intelectual das elites locais (FARIA,
2001, p. 31).
No entanto, a autora aponta que esse sistema passou por flutuações, descortinouse em “expansões” e “crises” em que dependia da situação do mercado internacional, de
capital financeiro, mão de obra, enfim, vários fatores cuja presença/ausência influíam no
desenvolvimento desse sistema agroexportador do Maranhão. O que Alfredo Wagner
mostra é que os intelectuais do século XIX, observando a crise que desmantelou o
sistema agroexportador, voltaram-se para o passado para ali encontrar a explicação para
o presente. É dessa forma que a Decadência passa a ser dada como um fato, assim como
a época de Prosperidade. Nesses termos:
A decadência trata-se assim, do que deixou de ser de um passado
idealizado. Passado que é, ao mesmo tempo, de certo modo, aonde se
quer chegar. O passado idealizado representa para os administradores
provinciais uma perspectiva do futuro desejado... (ALMEIDA, 1983,
p. 83).
O problema é que esses intelectuais sempre recorriam a esta explicação da
decadência, desencadeada com o fim da Companhia de Comércio e mais tarde com a
Abolição para explicar a sua realidade. A decadência passou a ser um estado
permanente. Wagner Cabral (2002), ao falar da construção dessa ideia-imagem mostranos o quadro de um Maranhão em “eterna decadência”. Regina Faria sintetiza o
pensamento de Alfredo Wagner que considera o uso inadequado uma vez que fazia
referência não à economia geral do estado, mas àquela agroexportadora:
Diante do exposto, espera-se ter ficado claro porque se considera
inadequado o termo “decadência” para qualificar o que estava
ocorrendo na economia do Maranhão no decurso do século XIX.
Discorda-se também da idéia de “involução”, contida no sentido dado
33
à “decadência” e explicitada por muitos autores que analisam as
conseqüências da Abolição. De fato, o 13 de maio foi o momento final
da crise do escravismo e acelerou a crise terminal da agro-exportação
do maranhão. Mas foi a grande lavoura que se desagregou, a pequena
produção baseada no trabalho familiar, que vinha se ampliando desde
meados daquele século, expandiu-se, passando a ser o padrão de
produção no setor agrícola. A pequena produção estava nas grandes
propriedades, com os “moradores” ou “agregados”, nas denominadas
“terras de santo”, “terras de índios”, “terras de preto” ou nas terras
devolutas das áreas de exploração mais recentes, com os chamados
“posseiros” (FARIA, 2001, p. 38).
Dessa forma, essa crítica à “Ideologia da Decadência” mostra que quando
citamos decadência, falamos do fato ocorrido a um segmento social, a elite branca
agroexportadora. E foram os homens saídos do seio dessa elite, que viram as fortunas de
suas famílias liquidadas diante da crise do sistema agroexportador, que formularam essa
ideologia.
Era esta elite quem arcava com os estudos dos filhos na Europa. A grande
maioria da população não tinha este privilégio. Em 1838 foi fundado o Liceu
Maranhense que, apesar de ser uma instituição pública, tornou-se mais um recanto da
juventude elitista. Rossini Corre diz que após a bancarrota financeira, quando já não
havia recursos para financiar os estudos fora do Maranhão, os jovens tiveram que
recorrer ao autodidatismo. Mas, até que se chegasse a esse ponto, a elite mantinha as
aparências, não abria mão do requinte (CORREIA, 2001, p. 167).
Na primeira década da República já havia passado duas gerações de atenienses2,
vivia-se o período que Antonio Lobo, no livro Os Novos Atenienses (1909), chamou de
“marasmo intelectual”. Um grupo de jovens, entre eles Nascimento Moraes, liderados
por Fran Paxeco e Manoel Bithencourt, produziam no intento de manter acesa a chama
do espírito da Atenas. Estava entranhada a ideia de que o Maranhão tinha que continuar
produzindo gênios no campo das letras. Essa produção ganhava espaço nos jornais e nas
revistas da cidade que por vezes tinham vida curta (MARTINS, 2006, p. 36).
Por intermédio do professor Bithencourt, a juventude de meados do século XX
entrou em contato com escritores como Tolstoi, Dickens, Zola e outros escritores que
direcionavam seu olhar para o povo. Esses escritores acabaram influenciando a escrita
2
Esta divisão de “gerações de atenienses” foi formulada por Antonio Lobo (1870-1916) em Os Novos
Atenienses (1909), onde o Grupo Maranhense seria a Primeira Geração, em seguida viria o grupo dos
Emigrados, ou seja, dos intelectuais que migraram para fora do Maranhão, especialmente para a Corte e lá
conquistaram o cenário nacional, sendo entre os mais famosos Aluízio Azevedo (1857-1913), Arthur
Azevedo (1855-1908) e Coelho Neto (1864-1934), em seguida viria a terceira geração, os neoatenienses,
cujo objetivo era reviver a produção intelectual a qual o Maranhão se habituara a produzir.
34
de Nascimento Moraes, pois, na sua produção intelectual, o povo, operários e suas
desilusões recebem um espaço relevante.
Como já foi dito, Nascimento Moraes figura a partir de 1900 no quadro dos
componentes da Oficina dos Novos com o qual acaba rompendo por motivo de falta de
reconhecimento a seu trabalho, preconceito racial e um desejo por parte de Antonio
Lobo e seguidores de manter a elite branca como a única herdeira e continuadora da
glória ateniense. Quem denuncia esse intento e essas razões é o próprio Nascimento
Moraes durante a polêmica que travou com Antonio Lobo por meio de seus textos
publicados no livro Puxos e Repuxos. Ele encarava o grupo como uma iniciativa de
manipulação de um tipo de produção que correspondesse às perspectivas da elite
letrada, privilegiada.
É importante introduzirmos aqui a ideia de Campo intelectual, formulado por
Pierre Boudieu, como um local dinâmico em que os sujeitos, diretamente envolvidos
relacionam-se, demarcam posições e influenciam-se de forma a angariar um lugar de
prestígio por meio de estratégias de consagração que lhes rendem o acúmulo de um
capital simbólico (BOURDIEU, 2004, p. 20). Guardadas as devidas ressalvas, podemos
afirmar que existiam estratégias de consagração intelectual, tanto no âmbito de um
campo, e pensamos no grupo Oficina dos Novos como o seu núcleo, quanto no âmbito
pessoal, em que, a partir dos elementos definidos no campo intelectual, cada membro
tecia suas próprias estratégias. Colocados como os detentores do futuro cultural do
Maranhão, os Novos foram responsáveis pela criação da Academia Maranhense de
Letras, e do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão bem como usaram a herança
da ideia de Atenas para acumular um capital que reforçava o seu importante papel
naquela estrutura. Uma dessas estratégias, segundo Matheus G. de Jesus era o
mecanismo de sociedade na Oficina e da patronagem na Academia Maranhense de
Letras, que não por acaso foi cognomina de Casa de Antonio Lobo. Sobre os sócios,
havia uma classificação entre efetivos, correspondentes e honorários. A consagração se
dava pelo atrelamento da Oficina aos nomes dos sócios correspondentes e honorários,
os correspondentes geralmente eram intelectuais radicados em outros estados, como o
próprio termo sugere, sua função era divulgar a produção dos Novos, os honorários
eram nomes consagrados no cenário nacional, conforme Matheus G. de Jesus “só eram
eleitos para esses cargos aquelas personalidades consideradas representativas no meio
literário local ou nacional... Seu trabalho era conferir prestígio e respaldo intelectual
para as atividades e os membros da agremiação” (JESUS, 2010, p. 40).
35
Nascimento Moraes, entretanto não completou um ano na Oficina, sua
justificativa foi ver frustradas as suas intenções de promover uma transformação social
por meio da ação engajada dos Novos. Quando Santiago, pseudônimo de Nascimento
Moraes, fala da sociedade ludovicense deixa bem evidente como percebia a
estratificação social e o conformismo dos menos favorecidos, usa o conceito “casta”, tal
sua percepção da imobilidade social existente na cidade:
Em São Luis a sociedade estava dividida em castas, bem
caracterizadas pelos recursos, pelo traje, pela habitação e pelos
bairros. Os indivíduos desta casta eram plenamente convencidos de
sua condição. O operário estava conformado com sua pobreza e não
procurava sair dela. O que ganhava dava para suas despesas. Era feliz
por isso. Os filhos freqüentavam uma escola primária, e depois
aprendiam um ofício qualquer, e, por vezes, o próprio ofício do pai.
Só envergava um paletó e calçava sapatos ou botinas aos domingos,
dias santos ou feriados. E assim mesmo eram os mais graduados. Os
mais eram descalços e em mangas de camisa. Traziam chinelas de
couro cru, nos mesmos dias em que vestiam o paletó (MORAES,
1982, p. 230).
A construção da ideia de casta é fruto da história da província escravocrata.
Regina Faria mostra como ao referir-se à sociedade no século XIX:
Ao representar a estrutura da sociedade através de um critério étnico,
as elites deixavam transparecer como era importante para esta
sociedade a cor, ou seja, a origem étnica das pessoas. Percebe-se, no
entanto, que tal estratificação, que poderia gerar um verdadeiro
sistema de castas, permitia a mobilidade horizontal entre as chamadas
“classes inferiores” e episódios casos de ascensão social de indivíduos
não “brancos”, o cafuzo se iguala ao mulato... (FARIA, 2001, p. 62).
Vindo Nascimento Moraes da “casta” inferior, rompe com o determinismo social
pelo menos no que dizia respeito à educação. Porque então outros não poderiam fazer o
mesmo? Acreditamos que a crítica contra o conformismo do povo não era por acaso.
Era uma forma de chamar atenção.
Após sua saída da Oficina dos Novos em 1901, Nascimento Moraes inicia um
período de calorosos debates, através do jornal no qual era correspondente,
principalmente contra Antonio Lobo. Rossini Correa se refere a esse período, quando
muitos intelectuais emigravam e outros permaneciam na terra em querelas que
revelavam dicotomias sociais:
36
Mais prosadores, todos, do que poetas, a labutar, a marejar sob um
signo comum: o da preservação ativa da mitologia da Atenas
Brasileira. Enquanto, na província, permaneceria a guerra entre
gramáticos e escritores, da palmatória contra o bico da pena... Antonio
Lopes, Corrêa de Araújo e Nascimento Moraes ficaram, para enfrentar
guerrilhas, quase sempre inglórias, na Ilha de São Luis. Autores de
obras muitas vezes sacrificadas, feitas de esparsos, inéditos e
póstumos, as quais foi difícil garantir o mínimo prêprio de alguma
circulação continental, não obstante o mérito de que dispunham, os
três, com atos aquém de sua potência, pagaram o preço por seu
sedentarismo. Ganhou, porém, o Maranhão. Membros da geração que
multiplicou instituições de cultura, para depois do Seminário Santo
Antonio, do Liceu Maranhense e do Seminário de Nossa Senhora das
Mercês, esses, e outros sacrificados, mantiveram acesa a chama do
facho sagrado da cultura na província timbira (CORREIA, 2001 p.
167).
Em suas memórias, publicadas em 1935, Humberto de Campos se refere a essa
briga literária entre Antonio Lobo e Nascimento Moraes, e via nos dois intelectuais
antípodas, cânones de facções sociais, sendo Antonio Lobo o representante da
decadente burguesia ludovicense e Nascimento Moraes um símbolo das “classes
laboriosas” que já não mais podiam ser ignoradas. No entanto, Humberto de Campos
tinha uma ideia de que O Grupo Renascença (liderado por Nascimento Moraes) existia
por teimosia não havendo talento que se aproveitasse ali:
O outro periódico era mais variado e mais vivo. Nascimento Moraes,
professor de português, criticava a língua d’Os Novos, arremetendo de
palmatória em punho contra os rapazes do outro grupo. O que, porém
caracterizava a Renascença era a fartura de sonetos. Nas suas seis
páginas amplas, espalham-se mais de trinta, cada um dos quais
assinado por poeta novo. Desses poetas, ao que parece, não vingou um
só. À semelhança do que sucede, às vezes, às ninhadas de peru,
desapareceram todos. Jornal, em síntese, de um gramático furibundo e
de seus poetas frustrados (CAMPOS s/d Apud CORREIA, 2001, p.
169).
Enquanto Nascimento Moraes era redator do Correio da Manhã a polêmica se
arrastou a tal ponto de chamar atenção, o que acabou redundando no livro Puxos e
Repuxos em 1910. Nesse livro revelam-se as preocupações que possuíam os lados
antípodas dos quais falava Humberto de Campos. Nesse momento começa a ser forjada
a autoimagem de Nascimento Moraes de “um lutador”, pois ele resistia aos ataques de
Antonio Lobo e seus amigos. O episódio do negro lutando sozinho contra as forças do
“branco caucásio” levou os amigos de Nascimento de Moraes, e aqueles que se viam de
certa forma representados e vingados por ele, a publicarem o livro, essa informação está
37
explicitada nas primeiras páginas do livro em questão. Pelo significado desta polêmica
na construção da imagem de Nascimento Moraes, transcrevemos aqui alguns trechos
que consideramos relevantes:
Puxos e Repuxos
Polêmica sustentada do “Correio da tarde pelo professor Nascimento
Moraes contra Antonio Lobo e seus dirigidos que o aggrediram [sic]
nas inedictoriais [sic] da “Pacotilha” e “Diário do Maranhão”, sob o
pseudônimo de G.Galizza.3
As agressões eram recíprocas. Punham-se à prova temáticas que para aquele
contexto eram de suma importância, por exemplo, o domínio do vernáculo. Bastava ser
publicado um artigo de um dos envolvidos para que o outro publicasse acusações de
erros de construção, de gramática... Nascimento Moraes respondia por vezes chamando
seu opositor pelo pseudônimo Galizza4 numa clara intenção de ridicularizá-lo.
Mas a questão não permaneceu no campo linguístico. Nascimento Moraes
atacou a ideia do livro Os Novos Atenienses (1909)5. O principal alvo foi a expressão
“caliginosa noite”, a qual se referiu Antonio Lobo para definir o estado decadente da
intelectualidade ludovicense. Nascimento Moraes acusou-o de tentar promover a própria
imagem de redentor da cultura letrada e de aliciar a juventude:
Fala o homem no celebrado livro em dissidência literária, e então
explica que um grupo de moços se desligou da Oficina para formar a
Renascença Literária, e diz que esses foram: Xavier de Carvalho,
Nascimento Moraes, M. George Gronwell Octávio Galvão, Rodrigues
d’Assunpção, Leôncio Rodrigues, Leslie Tavares e Caetano de Souza.
Perguntamos: - que membros ficaram na Oficina dos Novos? Três apenas: João Quadros, Astolpho Marques e Francisco Serra, queria
impor a sabença das sabenças!...
Lobo e o “mano” nada ensinaram a ninguém: a verdade é esta!
...O que Lobo queria fazer com a Oficina dos Novos, e o que
conseguiu depois, era um grupo de rapazes que o apoiasse, que lhe
batesse palmas, que lhe glorificasse o nome e o do mano....
3
O exemplar ao qual tivemos acesso é da primeira edição cuja editoração não contemplou a numeração
das páginas.
4
Conforme o Dicionário Houaiss, Galiziano refere-se ao dialeto ou à poesia dos trovadores portugueses e
da região da Galiza. Outro termo derivado deste é Galiza que significa antipositivista. Nesse sentido,
depreendemos que o apelido Galizza era um duplo ataque: ao seu vernáculo do apelidado, que Moraes
acusa de pomposo e de difícil compreensão assim como à sua condição de “branco do reino”, aliás era
uma prática do século XIX usar o termo Galizza para ofender os portugueses.
5
Embora Nascimento Moraes tenha participado do grupo Oficina dos Novos e publicado no livro Os
Novos Atenienses o soneto Mãe com o qual foi apresentado como um literato da juventude ludovicense,
só depois de sua decepção com os ideais d’Os Novos foi que resolveu criticar o argumento de Antonio
Lobo sobre a “noite caliginosa” e o “marasmo intelectual”.
38
Lobo quer dar a entender que o renascimento literário do Maranhão se
lhe deve porque foi elle quem promoveu festas ao nosso glorioso
patrício Coelho Netto e quem agüentou aqui o “mano”, que ele diz ter
vindo para cá PARA O FIM DE CONHECER A TERRA QUE SE
FAZIA REPRESENTAR NA LITERATURA BRAZILEIRA POR
FIGURAS TÃO ELEVADAS!!!
Nós sabemos, no entanto, que o homem veio desgarrado, depois de
levar sovas no Pará, no amazonas, etc, etc, etc.
Ainda uma vez Lobo mente, sem o menor vexame, porque todos os
maranhenses conhecem de verdade este fato.
Foi para demonstrar que a ele e ao “mano” o Maranhão deve seu
reerguimento literário (Lobo está convencido de que o Maranhão se
reegueu!) que elle inventou aquella caliginosa noite em cujas sombras
deixou uma geração inteira! E isto para o subsídio da História do
Maranhão!
Ainda nessa coletânea, Nascimento Moraes evidencia preocupações que
acompanharão sua carreira jornalística: a educação, a construção da República livre dos
preconceitos, principalmente aquele que mais conhecia:
Nada mais falta a Lobo para completar. Professor ensina os discípulos
brancos e despreza os negros, mulatos, carafuzes, etc! Diz mesmo aos
discípulos que entre o branco e o negro há um abysmo intransponível;
afirma-lhes que o negro é um condenado, a quem se deve tratar com
desprezo!
Na verdade, não pode haver educador da mocidade republicana que se
lhe compare! Estamos convencidos de que assim, elle preparará uma
geração supimpa!
Jornalista prega as mesmas idéias: julga que insulta o adversário
lançando-lhe em rosto a cor, e não satisfeito, ameaçando-o de surra de
relho cru! Edificante!
Que República seria essa construída com o pensamento e as práticas do regime
que acabara de ser derrubado? Essa fala de Nascimento Moraes nos mostra a carga do
ressentimento que o intelectual sentia, revidando, já que a sociedade não permitia outra
forma, com uma linguagem mesquinha inclusive. Elucida, por outro lado, a estratégia
que ele adotaria a partir de então, a de um intelectual negro que defenderia, com as
mesmas armas, a erudição e o vernáculo, os interesses dos seus consortes, homens de
cor e pobres que embora evidenciados pela Abolição e República como cidadãos ainda
eram perseguidos pelos estigmas da escravidão.
O intelectual e o seu tempo
39
Acima, falamos da decepção que viveu Nascimento Moraes por não ser aceito e
respeitado como intelectual por causa de sua cor e origens sociais, esta oposição contra
ele demonstra que a Abolição da escravatura não foi mais que um acordo político que
em nada mudou sobre a mentalidade da sociedade em relação aos negros. Conforme
Regina Faria, na mentalidade da elite, ser negro era ser escravo,
Os negros no século XIX não eram distinguidos, não se levava em
conta se eram escravizados, libertos. Dão a impressão de que vêem a
todos como cativos. Expressam assim, a estigmatização que recai
sobre os africanos escravizados, subtraindo-lhes a identidade étnica e
cultural e impingindo a de cativo: o africano tornou-se escravo e,
estando enegrecida a escravidão, ser negro é ser escravo. “Negro” ou
“preto” passam a ser termos equivalentes a escravo (FARIA, 2001, p.
57).
Necessário pontuarmos que foi uma historiografia racista que organizou essa
ideia.
O Brasil não estava preparado para a inclusão social do negro. Nem em termos
sociais, nem em termos morais, pois a carga de preconceito que tinha uma
fundamentação histórica e a representação da cor ganhava mais peso com as ideias
científicas e evolutivas como o Darwinismo e o Evolucionismo formatadas no século
XIX.
Em 1905, Manoel Bonfim publica A América Latina: males de origem, este livro
causou polêmica nesse período e chegou a ser esquecido. Tentaremos expor mais abaixo
que o pensamento de Bonfim objetivava realizar uma reação às concepções científicas e
ideológicas, baseadas na raça como fator explicativo do atraso em todo o continente.
Estas concepções bio positivas ou a questão racial dominam a cena intelectual latinoamericana, especialmente a brasileira, à época (ORTIZ, 1994, p. 14).
A permanência de Nascimento Moraes no quadro intelectual era um “contraargumento” naquele cenário dominado pela elite branca e em grande parte cuidadosa de
manter seus laços culturais atrelados à da sociedade portuguesa e branca, uma vez que o
paradigma ideológico do cientificismo novecentista dizia que o mestiço era inferior. O
negro era apenas uma ferramenta de trabalho; e mesmo com a eminência da Abolição,
no Maranhão era uma questão cultural ter escravos. Estes, como já foi dito,
desempenhavam determinadas atividades para arrecadar dinheiro para seus donos. O 13
de Maio de 1888 foi um terrível golpe para essas famílias.
Em A Preta Benedita e em outros contos, escritos durante a Primeira República,
Valério Santiago fala que a escravidão tornou-se um vício social e como tal seria difícil
de ser abandonada. Os esforços que se faziam para adquirir escravos eram imensos. A
40
Abolição fora um golpe brutal. Conforme a narrativa do conto A preta Benedita, depois
do 13 de Maio de 1888, São Luís viveu momentos sombrios. Além de revelar a imensa
hipocrisia daquela sociedade. O calor dos amigos e aceitação dependia da garantia de
renda das famílias. Entrar em falência era o óbito social. Não apenas o falido não podia
bancar os animados saraus e outras reuniões sociais como se via abandonado pelos
amigos da época de bonança.
Uma das coisas que mais irritava Nascimento Moraes era a negação de alguns
intelectuais brancos, como Antonio Lobo, da contribuição do negro à cultura brasileira,
num claro discurso da superioridade branca. Então, como aceitar um negro intelectual?
O problema não era apenas de vaidade. A raiz da oposição estava no imaginário da elite
branca. Mesmo com o sistema escravocrata liquidado, não mudaria o pensamento de
que o lugar do negro era no “trabalho pesado”. Quando Antonio Lobo, em muitos dos
artigos publicados em Puxo e repuxos, para diminuir Nascimento de Moraes, chama-o
de negro, deixa transparecer que o significado do negro no sistema escravista
permanecia firme no início do século XX. O discurso do negro e seu papel de mão de
obra serviam à elite agroexportadora e definiu o papel dos descendentes africanos
naquela sociedade, alimentou o sentimento racista que se perpetuou. Não havia lugar ao
negro que não fosse à labuta.
É provável que Nascimento Moraes tenha lido Males de Origem (1905), pelo
conteúdo de suas críticas e pelas ideias de mudança que defendia, inclusive quando
acusa
a
politicagem
como
fator
importante
para
manter
a
situação
de
subdesenvolvimento do país. Porque muitas conquistas foram obtidas com a
participação popular, fosse lutando nas guerras empreendidas ou através do suor e
sangue dos negros, que sustentaram o sistema agroexportador e que, por sua vez,
enriqueceu cidades e famílias aristocráticas. Bonfim, em A América Latina: males de
origem, trabalha a ideia de “parasitismo” numa perspectiva sociológica para explicar a
exploração de uma nação sobre outra e de uma classe sobre outra. Seu efeito mais
contundente seria a educação bacharelesca, o conservantismo e a fragmentação social.
De acordo com Baroni, em estudo sobre Manoel Bonfim e sua retórica,
Do ponto de vista da sociedade, o parasitismo atuaria principalmente
do ponto de vista intelectual e moral. Disso resulta uma população
heterogênea, instável, fragmentada, quase uma sociedade de castas.
Esses traços se refletem na sociedade parasitada pelo que Bonfim
denominou hereditariedade social, ou seja, o que faz com que as
41
colônias herdem o caráter da metrópole, ou seja, leis, instituições,
traços psicossociais, enfim, sua cultura.
Disto decorre que sofremos de um conservantismo, uma certa paralisia
que impede a mudança, mais problemática por ser própria das classes
dirigentes. A única coisa que as move é a possibilidade de opor-se à
inovação. A qualquer transformação. Por causa disso o pensamento
político insiste em encontrar estratégias de conservar as coisas como
estão de maneira a tornar praticamente impossível qualquer tentativa
de reforma.
Esse conservantismo é, de acordo com Bonfim “das qualidades a nós
transmitidas, a mais sensível e a mais interessante- por ser a mais
funesta- é o conservantismo, não se pode dizer obstinado, por ser, em
grande parte inconsciente, mas que se pode chamar propriamente um
conservantismo essencial, mais afetivo que intelectual (BARONI,
2003, p. 39-40).
A elite de São Luís voltou-se nostálgica ao período que considerava de
prosperidade econômica e cultural, apegando-se, crédula, de que era necessário,
obrigatório, manter a tradição pelo menos na intelectualidade, já que na economia era
mais complicado, como já explicamos, acreditava-se na singularidade do maranhense6.
A receita de Nascimento Moraes para se vencer o atraso era a vontade e a
energia na ação política. O problema da estratificação social acentuada no país não
estava somente no analfabetismo do povo, mas no fato da classe privilegiada manter-se
no poder e voltar-se para si mesma. A solução estaria em conhecer o povo, ele repete
essa questão da educação ao povo, do conhecimento de quem era esse povo e do que ele
necessitava para mostrar seu potencial ao longo de vários artigos publicados no ano de
1931, no jornal Diário Oficial.
Pelo teor desses artigos vê-se nitidamente que povo para Nascimento Moraes era
o mesmo que aquela massa populacional composta por libertos e brancos e pobres que
não usufruíam das benesses do Estado. Assim, para Nascimento Moraes a solução seria
a instrução pública por meio de uma “ação educacional”. Ele acreditava no poder da
educação em promover a inclusão social. Criticava o ensino brasileiro por este ser
demasiadamente bitolado aos livros, em consequência havia uma debilidade na análise
da própria realidade social à luz de sua historicidade e a pior das suas deficiências era
não garantir ao estudante a autonomia por meio da razão. A percepção do social dava-se
por meio de teorias dissociadas do seu contexto porque importadas. Dessa forma,
Nascimento Moraes acreditava que a educação deveria ser vivida, a melhor aula seria
6
Maria de Lourdes Lauande Lacroix, no livro A Fundação Francesa de São Luis e seus Mitos (2002),
fala do Mito da Singularidade que, formatado no século XIX pela elite ludovicense, consolida-se no
século XX, neste mito a elite representava-se como culta, elegante, “francesa”.
42
aquela em que os alunos viveriam a matéria de estudo. Anos de abstrações haviam
produzido intelectuais que não se postavam criticamente em relação às disparidades
administrativas e sociais (sendo uma parte grande dessa administração composta por
esses mesmos sujeitos que ocupavam cargos políticos no Império), intelectuais que não
exerciam seu papel de porta-voz da sociedade.
Em seu artigo intitulado Através das classes, publicado no Diário Oficial em 08
de julho de 1931, Nascimento Moraes defendia que o professor possuía um papel
importante. Não deveria haver distanciamento entre mestre e aluno. Conhecer o aluno
era necessário para saber como agir. Dessa forma, defendia a educação no seu sentido
amplo e não como depósito de conhecimentos. A educação deveria alcançar o povo:
Educar a mocidade. Educar o povo.
Educar os homens de espírito. Educar os homens de ação.
Educar o operário, o artistas, o homem de letras,
o artesão, o funcionário público, o jornaleiro.
Educar o soldado e o marinheiro.
Educar incessantemente, infatigavelmente, dentro e fora da escola; nas
oficinas, nas repartições públicas,
Nas brigas, nos estabelecimentos comerciais, na rua e na praça pública
(MORAES, 1982, p. 131).
Aqui, Nascimento Moraes roga por educação ao povo e engloba nesse conceito o
liberto, os marinheiros, operários que, na falta de uma educação científica estavam
subjugados e fragilizados à manipulação e exploração das elites brancas. Reclama um
direito político àqueles a quem os direitos civis não alcançavam da forma como deveria.
Nascimento Moraes jamais saiu do Maranhão, o motivo não sabemos, opção
pessoal, medo de encontrar lá fora o mesmo preconceito da sua terra ou de não
conseguir lá o prestígio aqui já conquistado. Mas, um fato devemos deixar aqui
assinalado: Nascimento Moraes julgou-se um lutador por tudo que conquistara. Via-se
como um vencedor por ter conseguido firma-se como intelectual; e mesmo sendo negro
e pobre, ele conseguira invadir e pertencer a um lugar que discursos raciais diziam-lhe
ser historicamente e biologicamente proibido.
Nossa pesquisa, diante do que foi exposto ao longo desse capítulo, vai
compreender o período da Primeira República, momento pós Abolição da Escravatura,
em que a questão da cidadania dos mais pobres era delicada e não fazia parte das
preocupações maiores do Estado Republicano. E que, por outro lado, torna-se o grande
tema dos escritos, especialmente literários do nosso intelectual.
43
A partir do próximo capítulo, vamos nos debruçar no universo literário de
Nascimento de Moraes. Elegemos como fontes contos, crônicas e o romance Vencidos e
degenerados. Nosso objetivo é, por meio das representações literárias que o literato
deixou em seus escritos, achar indícios do cotidiano dos cidadãos pobres ludovicenses e
assim perceber as suas práticas, seu pensamento, sua percepção acerca do advento da
liberdade via Abolição, suas táticas de sobrevivência por meios dos mais variados
misteres e as relações que teceram com as noções de modernidade e cidadania.
2. O pós Abolição na perspectiva dos textos literários de Nascimento Moraes
Nascimento Moraes, enquanto intelectual negro, forja um pensamento calcado
nas ideias de povo, cidadania e nação, uma vez que materializou na forma de letra as
aspirações de uma população vitimada pela herança do cativeiro. Não é por acaso que
seus textos literários e de outros gêneros discursivos possuem muitas vezes a tônica
memorialística, pois entendemos seus escritos como um portador da memória coletiva
das expectativas dos ex escravos no período que sucedeu a Abolição. Assim, entre
epigramas, anedotas e silêncios são mostradas as possibilidades vislumbradas por
aqueles indivíduos de viver naquele país que adentrava no trem da ordem e do
progresso. A escrita de Nascimento Moraes faz dessa memória a estratégia que promove
o debate e a denúncia da falta de um projeto político e social para os egressos da
escravidão e de como esses egressos se posicionaram diante desse fato. E, é assim que a
tônica das suas narrativas denota também a percepção desses personagens sobre a
“modernidade” e a “civilização” sob os contornos da eugenia; há por parte dos
personagens a consciência do discurso sobre barbárie, degeneração e sua inferioridade
diante dos “verdadeiros cidadãos”.
A questão racial torna-se o texto presente de forma insistente em cada página
que ele escreve e no que ele deixa entender ser sua luta diária. Lutar contra o
preconceito daqueles que, fazendo uso do discurso cientificista do século XIX,
atribuíam aos negros características negativas, derramavam seus ódios e preconceitos
contra aquela classe pobre e de cor que formava o grosso não só dos maranhenses, mas
do brasileiro.
44
É no rastro do cotidiano dos personagens que povoam o romance Vencidos e
Degenerados7, as crônicas e os contos de Nascimento Moraes (muitas vezes assinados
com pseudônimos, e neste capítulo utilizamos contos assinados pelo pseudônimo
Valério Santiago) que vamos perceber a questão racial enquanto um discurso que nos
permite ler em suas linhas o teor da política republicana que manteve a posição das
classes pobres na marginalização conhecida desde a Monarquia.
Nascimento Moraes faz da sua escrita denúncia e revelação. Denuncia a forma
como se deu a relação do Estado e elites com os pobres e revela, por outro lado, o
potencial, a sagacidade e o posicionamento político dessas pessoas em suas posturas
cotidianas, na expressão de um pensamento, na forma como se relacionavam entre si e
com as elites.
Esse cotidiano denuncia a percepção que os promotores da modernidade
republicana entendiam por “moderno” e como se dava o exercício da cidadania entre os
menos abastados. Como já foi dito, àquele período a ideia de modernidade estava
diretamente associada ao aformoseamento das cidades, à aplicação da medicina
higienista para combater a insalubridade e deter doenças causadas por más condições
sanitárias, mas também garantir que os diversos espaços urbanos fossem devidamente
ocupados por quem era de direito.
A política urbana do Rio de Janeiro conseguiu derrubar os cortiços próximos ao
centro da cidade e empurrar seus moradores aos morros fazendo assim surgir as favelas
(CHALHOUB, 1996, p. 18). Em São Luís não ocorreu algo parecido devido a situação
econômica desfavorável. Não obstante, existiam as ruas habitadas pelas elites
comerciais e dos mais abastados e existiam as ruas dos populares, apesar de não haver
um controle, pois muito embora existissem os códigos, as leis que tentavam a todo custo
manter a ordem da modernidade a cidade crescia de forma desigual ou diferente daquela
idealizada no papel. Tais determinações legais preconizavam como deveriam ser feitas
as habitações, as medidas de higiene a serem tomadas para garantir o bem estar público
e principalmente para punir a vadiagem e a embriaguês e condicionar no homem livre a
ideia de moralidade advinda por meio, principalmente, do trabalho formal. Neste
capítulo trataremos da forma como Nascimento Moraes representou a percepção da
7
Seu enredo gira em torno de cenas cotidianas da população pobre e de cor, guiada pelos oradores
populares e intelectuais saídos dos seus interstícios, com aspectos de uma narrativa próxima ao gênero
literário crônica, Vencidos e degenerados pontua os primeiros anos após a Abolição, sonhos e frustrações
da população de São Luís diante das grandes dificuldades da época: a modernização, a cidadania e o
preconceito de cor e social.
45
liberdade, pelos negros, e como se deu a passagem do trabalho escravo para o trabalho
livre.
A multiplicidade das experiências dos homens de cor na passagem da escravidão à
liberdade
O que a escrita de Nascimento Moraes nos mostra sobre a recepção da liberdade
pelos ex escravos é que ela não se deu de forma homogênea. É no contexto da euforia
diante da notícia da Abolição que se inicia a narrativa de Vencidos e Degenerados e
também o conto memorialístico A preta Benedita. O narrador recorda o impacto da Lei
Áurea e a reação dos libertos e despossuídos diante da novidade. Em ambos os relatos
há um ponto de convergência sobre a consequência do decreto para os possuidores de
escravos, muitos se tornaram pobres “da noite para o dia”.
Mas também havia o outro lado, os libertos que, livres legalmente dos seus
cativeiros, permaneceram ao lado dos seus antigos senhores. É interessante apontar a
maneira como Nascimento Moraes nos apresenta a questão da percepção do que era a
liberdade, dando margem a uma discussão sobre as negociações que existiam, durante o
cativeiro, entre senhores e escravos. Tanto a personagem título do conto A preta
Benedita como alguns personagens de Vencidos e degenerados, Domingos Olímpio e
Daniel Aranha mantiveram-se indiferentes ante a liberdade legalizada; isso porque já
gozavam de certo status de liberdade, muito embora, obtido por meio do
relacionamento que mantinham com os senhores.
Os personagens Domingos Olímpio e Daniel Aranha são introduzidos na trama
de Vencidos e Degenerados na noite da Abolição, quando, em meio às comemorações
de abolicionistas e libertos, mantinham-se à parte da convulsão em volta. Olímpio,
apresentado como escravo livre que exercia o ofício de sapateiro, Daniel Aranha, liberto
pela vontade do seu senhor (incentivada pelo temor que sentia pelo escravo),
comungava do ofício de Olímpio. Eles eram unidos por laços de solidariedade e
amizade, aliás, Aranha era o único amigo que Olímpio conhecia. Daniel Aranha era
também um homem temido, famoso pelas “bravatas que constantemente praticava”
(MORAES, 2000, p. 41) e exercia em tempos de cativo uma influência sobre o seu
senhor. O narrador explica o motivo:
Aranha fora capanga de seu senhor. Andava com ele em frequentes
excursões pelo interior da província e, como o senhor se entregasse a
46
conquistas amorosas, arriscadas e difíceis, ele teve a ocasião de muitas
vezes salvar-lhe a vida, poupando-a às investidas da vingança cruenta
que não esmorece, nem mede perigos.
Aranha passara a exercer sobre o ânimo daquele homem uma
influência extraordinária. Inteligente, penetrante de espírito,
compreendera cedo que o seu senhor era um vicioso covarde, uma
índole má e perversa e tão miserável que nem tinha coragem de
responsabilizar-se pela miséria que derramava a mancheias no lar
alheio. Aranha ria de sua fraqueza, pensava e refletia sobre ela, como
quem resolve um problema filosófico (MORAES, 2000, p. 41).
Essa relativa liberdade de que gozavam esses personagens pode ser vista como
fruto de uma estratégia de sobrevivência, sendo cúmplices e ao mesmo tempo
testemunhos de segredos inconfessáveis de seus senhores, esses homens ganhavam um
cadinho de liberdade. Essa cumplicidade também podia redundar em alforria, como
constata Chalhoub em Visões da liberdade (1989):
...Numa sociedade escravista, a carta de alforria a que um senhor,
concede a seu cativo deve ser também analisada como o resultado dos
esforços bem sucedidos de um negro no sentido de arrancar a
liberdade a seu senhor; no Brasil do século XIX, o fato de que cabia
unicamente a cada senhor particular a decisão sobre a alforria ou não
de qualquer um de seus escravos precisa ser entendida em termos de
uma “hegemonia de classe” e os castigos físicos na escravidão
precisavam se afigurar como moderados e aplicados por motivo justo,
do contrário, os senhores estariam colocando em risco a sua própria
segurança (CHALHOUB, 1989, p.18).
Percebe-se aqui um acordo tácito entre esses dois sujeitos que poderia redundar
tanto na liberdade legal quando em uma liberdade relativa que por sua vez poderia
também permitir o desenvolvimento de laços de amizade entre cativo e senhor e
converter-se em um elemento que é decisivo para a manutenção do cativeiro, depois da
Lei Áurea. É o que nos é narrado rapidamente em Vencidos e degenerados e no conto A
preta Benedita de forma mais detalhada.
Talvez uma das mais importantes características do gênero literário, conto, seja a
sua capacidade de condensar, de forma quase reflexa, os detalhes importantes do
cotidiano do homem. Ao contrário do romance, o conto foca no fragmento da visão do
homem. Alfredo Bosi nos diz que o conto funciona como um “poliedro capaz de refletir
as situações mais diversas de nossa vida real ou imaginária” (BOSI, 1975, p. 31) e, para
nossos objetivos, isso se torna um elemento importante, pois é nessa diversidade
cotidiana que buscamos os indícios das situações de marginalização as quais se
submeteram os libertos no pós-Abolição e no cenário da Primeira República.
47
Passemos ao conto. Em primeiro plano, ele figura uma informação que a
Historiografia da Escravidão trabalha sobre o papel do escravo urbano8 que em muitos
casos eram a fonte do dinheiro de seus proprietários empobrecidos. A narrativa do conto
deixa nas entrelinhas a percepção do autor sobre a pobreza que se instalara entre muitas
famílias ricas de São Luís que, na tentativa de ostentar uma riqueza que não mais
possuíam, esforçavam-se em manter os escravos.
Como foi dito no capítulo anterior, a economia agroexportadora, responsável
pelo enriquecimento de muitas famílias, falira; a partir daí, suas posses iam minguando,
restando a muitas delas apenas uns poucos escravos a quem ficava a responsabilidade de
sustentar a casa. Em A preta Benedita há um relato detalhado desse processo.
Neste conto, assinado pelo pseudônimo Valério Santiago, o narrador lembra seus
tempos de estudante do Liceu Maranhense, deixando claro sua condição de pobre, uma
vez que descreve os esforços dele e dos colegas para estudarem e de como se
organizavam para adquirir livros a serem utilizados entres eles na forma de rodízio.
Mas, o narrador detém-se em um colega específico, cuja casa era um dos locais em que
os estudantes se reuniam para estudar. Tratava-se do Joaquim Alves Leitão. O narrador
recorda algo que lhe causou à época curiosidade: a obediência que Joaquim e as irmãs
tinham para com a negra Benedita, que também parecia gozar de grande estima da
senhora da casa. Anos depois, o narrador descobre o motivo daquele bom
relacionamento entre os senhores brancos e a negra. Ele era fruto do reconhecimento
que tinham de dependerem do trabalho da Benedita. Era do fruto de seu trabalho como
doceira, lavadeira e dos negócios que ela tinha com quitandeiros que a família Alves
Leitão sobrevivia e os jovens se instruíam. Assim como muitas outras famílias, aquela
empobrecera “da noite para o dia”, perdendo não apenas propriedades, mas o prestígio e
o acesso à sociedade e seus espaços de sociabilidade, como relata a mãe do narrador
quando este fala da família do antigo colega:
8
A escravidão urbana em São Luís, de acordo com Josenildo de Jesus Pereira, era constituída por
escravos de ganho e escravos de aluguel, a distinção entre essas duas categoria foi assim definida por esse
historiador: Os escravos de ganho eram aqueles que, por não terem uma profissão especializada, faziam
qualquer tipo de serviço, dependendo da demanda. Esses escravos dispunham de uma relativa autonomia
sobre a sua própria força de trabalho, em comparação com os escravos de aluguel, pois dependiam do que
conseguissem em termos de renda, para pagarem as diárias que lhes eram impostas por seus senhores. Os
escravos de aluguel eram aqueles que possuíam ofício especializado e, por isso, eram requisitados com
frequência para os trabalhos em obras públicas como na construção de canais, iluminação pública,
limpeza de praias, praças e fontes. Por se tratar de um trabalhador cuja rentabilidade era satisfatória, os
proprietários investiam, instruindo-os em algum ofício. Do mesmo modo, engajava-os no mercado de
trabalho por meio de petições à repartição de obras públicas (PEREIRA, 2006, p. 42).
48
O coronel poucas vezes saía à rua. E o que doía ao coronel Alves era
que ele não tinha a seu lado todos aqueles velhos amigos do tempo das
vacas gordas. Quando o coronel morreu, D. Francília ainda não tinha
se casado com o coronel Leitão, que estava na crista da fama. Era
diretor de bancos e sócio de grandes empresas, inclusive uma de
navegação.
O casamento surpreendeu a todos, porque, segundo constava o coronel
Leitão comprara o sobrado por um preço vil, e que, dois meses depois,
falecera a viúva ralada de desgostos, porque o coronel Leitão
aproveitara-se de sua pobreza para arrebatar-lhe o único bem que lhes
restara.
- Não era o único bem, interrompeu meu pai.
- Não era?
- Não. O único bem ficou com D. Francília.
Minha mãe não compreendeu.
E meu pai, depois de tirar uma cachimbada:
- O único bem era a preta Benedita que os credores não quiseram
avaliar nem o coronel Leitão o quis comprar quando a mãe de D.
Francília, a pedido da preta, a ofereceu para ser sacrificada
(SANTIAGO, 1982, p. 207-208).
O esposo de D. Francília perde toda a sua riqueza para o jogo e envergonhado da
situação humilhante de penúria suicida-se. A partir desse momento, o ônus das despesas
daquela família caiu sobre a negra, uma vez que D. Francília não conhecia o trabalho
braçal e não era instruída o bastante para exercer qualquer outro ofício. O fato de
possuir escravo ainda era um índice positivo ante a sociedade, podendo, apesar da
ausência de outras posses, garantir “bons casamentos” às sinhazinhas.
Pela explicação de meu pai, compreendi que a escravidão, nas
cidades, transformara-se num vício social. O não ter escravos era um
índice de pobreza e desprestígio das famílias. Pelo que as famílias
pobres, mas, que sonhavam com uma posição melhor, pelo casamento
das filhas, não mediam esforços nem sacrifícios para possuir meia
dúzia de escravos que, trabalhavam em seus misteres de salário para
as suas despesas particulares e reservadas (SANTIAGO, 1982, p.
209).
A negra Benedita criara D. Francília e a seus filhos; e ainda que libertada pela
lei, recusou-se a sair de perto e tampouco se desvencilhou da responsabilidade que havia
tomado para si de sustentar os Alves Leitão. O inventário das atividades remuneradas de
Benedita é vasto, revelando-nos seu tino para negócios, desde doces de tabuleiro
vendidos à rua, à moda dos pregoeiros, até bebidas artesanais, fornecimento de refeições
a botequins, dir-se-ia que a negra era “pau pra toda obra”:
Só a preta Benedita era capaz de trabalhar, e a preta multiplicou-se
num trabalho exaustivo. Fazia doce de todas as qualidades e todas as
49
tardes saía a vendê-los num tabuleiro, coberto por uma toalha muito
alva e muito fina.
Fazia gengibirra que era muito apreciada e deque tinha grande
freguesia nas tavernas. Fazia doce de coco e vendia aos quilos nas
casas das famílias. A canjica, o pé-de-moleque e o arroz de cuxá,
davam bom rendimento.
D. Francília ajudava-a em casa, mas não aparecia nunca nesses
negócios. A preta era quem enfrentava a luta. Adquiriu crédito nas
tavernas e no mercado. Toda gente queria negociar com ela, porque
era séria e pontual nos seus tratos. Por último, um português do
Desterro fechou com ela um negócio lucrativo - fornecer o almoço e o
jantar para os seus trabalhadores encarregados de vender carvão na
cidade. A preta Benedita deu conta do serviço, a contento do
português, que passou a emprestar-lhe o dinheiro de que precisava
(SANTIAGO, 1982, p. 210).
Assim, Benedita multiplicou-se e garantiu tanto o sustento como os estudos das
crianças, o rapaz foi estudar Direito em Recife, as moças tomaram suas lições típicas
das casadoiras, incluindo aulas de piano. Nas palavras de Joaquim Alves Leitão, temos
a metáfora que ilustra e explica o significado do negro naquela sociedade representada
como decadente, denunciando também uma resignificação de um cativeiro concedido,
cimentado nos laços de afetividade nascidos no período anterior à Abolição: “Minha
mãe Benedita! Minha mãe e minha avó, porque foi também a mãe de minha mãe!
Bebemos o teu leite, bebemos o teu sangue, arruinamos as tuas energias e escravizamos
a tua alma! Que nos poderia dar mais?” (SANTIAGO, 1982, p. 211).
Também em Vencidos e degenerados o narrador nos apresenta alguns casos de
escravos libertados que se recusaram a abandonar seus donos devido aos laços afetivos,
por terem sidos eles bons. Isso nos permite refletir sobre como esses laços contribuíram
para o mascaramento da violência que significava o cativeiro, a exploração não era
assimilada de forma negativa pelos cativos que tinham em conta uma suposta amizade
de seus donos. O que significava ser “dono bom”? No caso da negra Benedita, muito
embora duramente explorada em sua força de trabalho, era confidente das senhoras,
obedecida pelos jovens, logo, ser bom, era não ser cruel, usar de violência física,
humilhar.
Por outro lado, em Vencidos e Degenerados, ao narrar a recepção de alguns
libertos daquele 13 de Maio, o narrador nos revela o significado de não ser um “dono
bom”, por exemplo, nas cenas em que escravos que sofreram das maldades de seus
donos voltavam-se raivosos devolvendo tapas, praguejando, quebrando os bens da casa.
O narrador revela algumas falas de personagens que lembram as maldades do tempo de
50
cativeiro, revelando a relação do ser mau com atos de violência física contra os
escravos, a exemplo, o coronel Lousada:
Lousada era um terrível senhor de escravos, que abalava a cidade com
suas torpezas, quase diariamente cometidas, com variantes de
requintada selvageria. Lousada tinha especiais e originalíssimos
instrumentos de suplício, tais como: cabos preparados com estilhaços
de vidro, por onde forçosamente subiam e desciam os escravos, até
cortarem inteira e profundamente as mãos: redes com lâminas
lacerantes e pregos onde se embalavam, num horrível balanço, aqueles
infelizes até se retalharem as carnes e se rasgarem os tecidos das
costas e dos flancos; martelinhos para baterem na arcada do peito até o
sangue espirrar ou golfar pelo nariz e pela boca; espetos de ferro que
se levavam ao fogo até o rubro, para queimarem os olhos, a língua e
os membros dos escravos, que endoideciam nas prisões úmidas e
sufocantes do pavimento térreo (MORAES, 2000, p. 30-31).
Ante tal descrição, não é difícil compreender a relação que se fazia com a
bondade o fato de o senhor não fazer uso dessa violência desmedida.
É dessa forma que Nascimento Moraes representa a experiência da liberdade
entre os negros: para alguns, apenas uma formalidade, uma vez que permaneciam
cativos por vontade; para outros o momento da desforra, a hora do acerto de contas com
seus algozes; e há ainda o caso daqueles que, tendo obtido a liberdade em período
anterior, receberam com indiferença a Abolição.
Conforme Hebe Mattos e Ana Maria Rios, essa questão sobre a liberdade
tornou-se um diferencial nos últimos estudos sobre o pós Abolição que passam a
analisar os
Projetos dos libertos, sua ‘visão’ do que seria a liberdade, os
significados deste conceito para a população que iria, finalmente
vivenciá-la, e não apenas para os que o definiriam nos diferentes
momentos do processo de emancipação. Em termos concretos, a
liberdade alcançada com o fim legal da escravidão teve significados
diferentes para ex escravos urbanos e rurais (MATTOS & REIS, 2004,
p. 173).
Podemos ainda acrescentar a essa análise de Mattos e Reis que entre os libertos
urbanos também houve uma multiplicidade de experiências com a liberdade, como
testemunhou o pai do narrador de A preta Benedita e o narrador de Vencidos e
degenerados e essa percepção de Nascimento Moraes sobre a ideia de liberdade
partilhada pelos libertos, condicionada à experiência da escravidão, foi também
constatada por Sidney Chalhoub em seu estudo sobre a temática da liberdade dos negros
51
na cidade do Rio de Janeiro, sua conclusão é que para os negros, o significado da
liberdade foi forjado na experiência do cativeiro (CHALOUB, 1989, p. 24).
O enredo de Vencidos e degenerados deixa também entrever a patente
participação dos negros no processo da Abolição, a abertura do romance traz a
caracterização da assistência que aguardava ansiosa a notícia da libertação:
Às oito horas da manhã do dia 13 de maio de 1888 a residência de
José Maria Maranhense, na Rua São Pantaleão, uma meia-morada de
bons cômodos regurgitava de gente. Ele, Maranhense, membro
saliente do Clube Artístico Abolicionista Maranhense era um dos mais
ardorosos e salientes cabos-de-guerra do abolicionismo e um dos que
mais se expusera pela nobilíssima causa da liberdade, não poupando
em favor deles as suas pequenas economias.
Os que lá se achavam naquela gloriosa manhã eram pessoas de
diversas classes sociais, desde o funcionário público e o homem de
letras até artistas, operários livres, não faltando vagabundos e
desclassificados (MORAES, 2000, p. 27).
Mais à frente, a narrativa prossegue explicando o motivo do “alvoroço daquela
gente” está acontecendo na casa de Maranhense, o motivo era que “os escravos o
consideravam como um dos seus protetores, e porque ele era sincero na causa que
defendia, eles o procuravam a todo momento para tratarem da liberdade deles”
([Grifos nossos] MORAES, 2000, p. 33).
Como dissemos anteriormente, tratamos os textos literários de Nascimento
Moraes como um relato que traz a lume a memória coletiva dos egressos da escravidão,
e muito embora ele contasse com apenas seis anos na data da Abolição, não é difícil
imaginar quantas vezes deve ter ouvido um parente, um conhecido relembrar aquela
data que levou tantos populares à rua. Michel Pollak diz que os elementos que
constituem uma memória coletiva ou individual são aqueles vividos pessoalmente, mas,
não apenas estes, pois, considera os acontecimentos vividos pelo grupo ou pela
coletividade na qual a pessoa está inserida e com a qual partilha uma identidade como
“acontecimentos vividos por tabela” e que caracteriza como
Acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que,
no imaginário, tomaram tamanho relevo que,no fim das contas, é
quase impossível que ele consiga saber se participou ou não... É
perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da
socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de
identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar
numa memória quase herdada (POLLAK, 1992, p. 201).
52
Mas o motivo de nosso grifo e do uso da teoria sobre a memória coletiva “vivida
por tabela”, de Michael Pollak, é porque entendemos uma sutil, mas não sem
intencionalidade, tentativa do nosso autor imprimir uma ideia de uma participação ativa
do negro no processo de Abolição, participação esta que vai contra as teorias da época
que falavam em um “assujeitamento” dos escravos devido aos séculos de escravidão, ou
de uma busca pela liberdade por meio da revolta ou violência e que temos o caso do
Quilombo de Palmares como um dos mais salutares e nunca é demais lembrar como
essa leitura do escravo como “coisa” ou “revoltado” foi explorada pela historiografia até
o início da década de 1980 (CHALHOUB, 1989). Quando o narrador diz que os
escravos procuravam Maranhense para tratar da liberdade deles nos remetemos às
estratégias que Sidney Chalhoub analisou em Visões de Liberdade em que o escravo
buscava muitas vezes o mecanismo legal para conseguir ser alforriado, a própria
participação desses escravos no Clube Abolicionista ou simples ato de ouvir o que
diziam os oradores abolicionistas denotam que havia uma luta por parte dos cativos por
sua liberdade, só que uma luta diluída no seu cotidiano. Assim como o autor sugere essa
luta pela liberdade ele também deixa bem claro que não houve um assujeitamento
desses homens, houve a manutenção de uma identidade negra e que ao longo do
romance é insinuada quando o narrador fala de uma roda de tambor, no reque-reque, um
miudinho, não apenas na noite da libertação. E também quando, a todo momento, na
narrativa mostra um egresso tentando alcançar um lugar de cidadão naquela república
por meio da educação. O fato de Daniel Aranha estudar à noite, mesmo com
dificuldades e de ter entregado seu filho à família de Olivier para que este lhe criasse e
educasse denotam um projeto para o pós-libertação por parte dos cativos, não à toa, e
essa é uma leitura nossa, em muitos textos de Nascimento Moraes a questão da
educação como via de acesso à cidadania é um discurso presente. Possivelmente a
educação e sua simbologia, pois, naquele país, quem estudava se tornava “doutor”, era
“alguém”. Possivelmente era este o motivo da melancolia que toma conta da narrativa
quando um salto temporal nos leva ao segundo ano da República, porque o projeto de
viver a liberdade como cidadão deveria ser viabilizado pelo Estado, graças aos “tribunos
populares”, Olivier e Maranhense, aqueles egressos confiaram no novo regime, mas
foram traídos. Assim, a narrativa de Vencidos e degenerados adquire essa dupla
interpretação: a melancolia própria do intelectual neoateniense, que era Nascimento
Moraes, mas também a melancolia do egresso que não se viu contemplado pela
propalada igualdade entre os cidadãos, nem logrou alcançar a cidadania, fosse por meio
53
do trabalho ou da educação porque ambos estavam sendo pensados para atender à lógica
capitalista, nem trabalhar, nem se doutorar enriqueceria ou transformaria os “vadios e
desclassificados” em “alguém”.
Depois do “13 de Maio”, a reinvenção do cotidiano no mundo de trabalho
À medida que as demandas do capital, no mundo ocidental, indicavam a
inevitável falência do sistema escravista em detrimento da necessidade de se inserir uma
nova divisão social do trabalho naquelas regiões que ainda se atrelavam ao antigo
regime escravocrata, a questão da liberdade dos escravos tornou-se o tema de um longo
e indeciso debate nos últimos anos do Segundo Reinado (1840-1889), no Brasil,
conforme Sidney Chalhoub:
... Talvez nenhum assunto tenha sido tão decisivo naquelas décadas
finais do Segundo Reinado do que o significado da liberdade dos
negros. Este era um assunto econômico, pois afinal, dele dependia a
autonomia ou não dos negros em suas atividades produtivas, assim
como a disponibilidade ou não da força de trabalho dos ex-escravos
para os senhores que se tornavam patrões. Este era um assunto
político, pois afinal o governo podia interferir mais decisivamente na
organização das relações de trabalho. Insinuava-se aqui também a
questão social: afinal eram agora necessárias políticas públicas no
sentido de viabilizar ao negro liberto a obtenção de condições de
moradia, alimentação e instrução, todos assuntos percebidos
anteriormente
como
parte
das
atribuições
dos
senhores...(CHALHOUB, 1989, p. 22).
Josenildo de Jesus Pereira, ao estudar as representações da escravidão na década
de 1880, no Maranhão, a partir da imprensa jornalística, traz a lume as propostas para a
solução da questão da substituição do trabalho escravo. O debate era um subconjunto de
uma preocupação nacional, uma vez que, por se tratar de uma economia
agroexportadora e, portanto, dependente das oscilações do mercado internacional, a
economia brasileira baseada no trabalho escravo e na agro exportação estava fadada, em
algum momento, à falência, por não estar adequada às novas demandas econômicas
internacionais, portanto, a Abolição da escravatura seria o caminho natural a seguir a
fim de que o país entrasse nos moldes do progresso e desenvolvimento econômico:
Nesse sentido, pode-se afirmar que o fim da escravidão foi, no Brasil,
um evento que resultou das lutas dos escravos e da dinâmica do
Capitalismo no mundo ocidental a partir da Europa, quando a
acumulação de capital, realizada por meio da exploração direta do
54
trabalho, no interior do sistema produtivo de mercadorias se afirmou e
expandiu como o paradigma gerador de riqueza (PEREIRA, 2006, p.
135).
Uma vez que a exploração direta do trabalho era a riqueza requerida, o debate
sobre o futuro dos libertos girava em torno de inseri-los ou não nesse mundo de
trabalho, e, se em caso positivo, de que forma esse processo seria feito uma vez que
existiam discussões em torno da inadequação dos egressos da escravidão a um mundo
de trabalho disciplinado e, por outro lado, o racismo arraigado nas elites era um fator
que computava contra essa assimilação da força de trabalho dos ex escravos.
A historiografia que aborda esse período e temática volta-se para as teorias
9
raciais que começaram a ser discutidas nas décadas finais do século XIX, sendo
revisitadas até a década de 30 do século XX quando a obra clássica de Gilberto Freyre,
Casa Grande e Senzala, publicada em 1933, parece resolver a questão racial por meio
da fórmula da “democracia racial” (ORTIZ, 1994, p. 41). Conforme Giralda Seyferth,
sobre essas teorias raciais,
Guardadas as diferenças de interpretação, todas elas tinham em
comum o dogma de que a diversidade humana, anatômica e cultural
era produzida pela desigualdade das raças; e a partir desse dogma,
produziram-se hierarquias raciais que invariavelmente localizavam os
europeus civilizados no topo, os negros ‘bárbaros’ e os índios
‘selvagens’ se revezando na base, e todos os demais ocupando as
posições intermediarias (SEYFERTH, 1996, p. 43).
Mas, antes de Gilberto Freyre propor sua tese de democracia racial, a
mestiçagem era tida como uma mácula à identidade nacional. Muitos intelectuais se
desdobraram na tentativa de justificar o lado positivo da mestiçagem, quando o que a
ciência da época afirmava era que o mestiço era biologicamente inferior e estava fadado
9
As teorias raciais chegam ao Brasil em meados do século XIX e vêm engrossar os já balizados
etnocentrismo e eurocentrismo que fundamentavam a escravidão negra e indígena. Os principais
fundamentos dessas teorias estavam expressos na Antropometria, Frenologia e na Antropologia Criminal.
A Antropometria consistia em medir a potencialidade de uma raça a partir do diâmetro da cabeça de um
homem, enquanto a Frenologia media a inteligência a partir do formato craniano. Eram, portanto, ciências
complementares e que condicionavam a capacidade humana a fatores biológicos e, portanto, a um
determinismo racial. Por outro lado, a Antropologia Criminal, que teve suas bases lançadas do livro de
Cesare Lombroso, O Homem Delinquente (1876) e preconizava a possibilidade de identificar um
criminoso antes que ele cometesse um crime, baseava-se no estudo de atavismos, divididos em três
categorias: físicos (mandíbula grande, pele escura, grandes órbitas, acuidade visual, orelhas chapadas,
braços compridos, face maior que o crânio, rugas precoces, testa pequena e estreita e não eram calvos),
mentais (insensibilidade à dor, irresponsabilidade, maldade, desejo de mutilar e extinguir a vida,
linguagem próxima a das crianças), e sociais (eplepsias, pederastria e a prática da tatuagem) (Schwarcz,
1996, p. 170).
55
à degeneração e desaparecimento. Os defensores da mestiçagem viam-na como um
traço de peculiaridade na identidade do brasileiro e como fator importante para a
adaptação do homem branco europeu ao clima tropical (DANTAS, 2009, p. 59).
O que ficou das várias justificativas, análises e pesquisas feitas pelos
intelectuais, como Silvio Romero, Euclides da Cunha, Olavo Bilac, Manoel Bonfim, era
que a presença do negro era parte constituinte da identidade brasileira. Para os que viam
essa presença como um fator negativo, a esperança estava no branqueamento, via
imigração; para os que acreditavam na positividade da mestiçagem, a aposta estava na
educação (DANTAS, 2009, p. 68).
Enquanto as teorias raciais e racistas anunciavam que a “raça negra” estava
fadada à degeneração, ao vício, à preguiça, os simpatizantes da mestiçagem acusavam o
Estado de ter deixado os libertos à própria sorte. São interessantes os esforços do
médico baiano Juliano Moreira (1873-1932) (DANTAS, 2009, p. 75-76) que pesquisa a
origem de uma doença mental de um descendente de italianos para “provar” que a tese
do conceituado médico Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) estava equivocada ao
anunciar que a degeneração mental estava relacionada à raça negra. Uma vez
descobrindo que o ítalo brasileiro tinha parentes europeus com a mesma doença, Juliano
Moreira chega à conclusão que a degeneração não era condicionada pela cor. É este um
dos pensadores que acreditavam no papel transformador da educação para os homens de
cor; pela instrução, eles estariam aptos a serem inseridos no trabalho formal, regrado,
cumprindo ordens e horários como faziam os imigrantes e homens brancos (DANTAS,
2009, p. 77-78).
No Maranhão, foi a Associação Comercial do Maranhão, preocupada com os
interesses dos grandes proprietários rurais, que propôs, em 1888, um concurso de
monografias a fim de buscar medidas para substituir o trabalho escravo (PEREIRA,
2006, p. 158). Dentre os 21 trabalhos apresentados havia o consenso em se manter a
grande propriedade privada, uma vez que a maioria dos autores eram proprietários
rurais, a divergência deu-se quanto ao tipo de trabalho a ser implantado para a
exploração das propriedades, desde o arrendamento até a mão de obra imigrante, quanto
aos escravos, questões que já eram debatidas em âmbito nacional marcaram presença
nas teses, desde a libertação e aproveitamento do liberto como trabalhador livre, até a
sua rejeição justificada por questões inerentes aos vícios da escravidão e da raça. A
defesa do trabalho livre ocorria por ser palpável o declínio da escravidão e a ciência de
56
que a exploração do trabalho era o novo fator de acumulação de riqueza. Em síntese,
Josenildo Pereira conclui:
...os propositores do trabalho livre estavam cônscios de que ele seria a
nova modalidade a partir da qual a riqueza seria produzida, pois,
sendo o trabalho uma mercadoria, ele ficaria submetido à exploração
do capital no processo de produção de outras mercadorias.
Se esse problema não estivesse claro, os propositores do trabalho livre
não se ocupariam em sugerir um conjunto de medidas repressivas
como penitenciárias agrícolas, juízes lavradores para a proteção das
classes dominantes contra o que eles chamavam de vagabundagem e
ócio. Do mesmo modo, a construção de Escolas Agrícolas como um
meio eficaz de garantir o “controle social” dos trabalhadores na
sociedade do trabalho livre. Também o concurso de monografias para
discutir a respeito da substituição do trabalho escravo para o livre não
teria sido proposto (PEREIRA, 2006, p. 190-191).
Em Vencidos e degenerados, o intelectual João Olivier sonha com a resolução da
questão pela República, que tornaria a todos os cidadãos, negros ou brancos, legalmente
tutelados pelas mesmas leis e teriam garantidos os mesmos direitos. No entanto, a
preocupação da República naqueles primeiros anos era se consolidar e afastar o
fantasma da Monarquia, inserir o Brasil no cenário das civilizações modernas (NEVES,
2011, p. 21) os libertos, negros, mestiços, precisavam sobreviver naquele universo que
parecia não ter lugar para eles.
É importante salientar que a República ao mesmo tempo em que se mantinha
reticente quanto à inclusão de fato dos libertos no mundo de trabalho assalariado, criou
mecanismo de controle e disciplina para esses cidadãos bem como democratizou os
espaços daquele universo. A democratização dos espaços e bens públicos teve um
caráter paradoxal uma vez que possibilitou a integração, ainda que de forma parcial,
pois existia a barreira do preconceito, ao mesmo tempo em que acentuava as clivagens
entre os setores da sociedade, tratando “a porrete”10 alguns e garantindo o usufruto das
10
“Cidadania a Porrete”, expressão utilizada por José Murilo de Carvalho em um artigo publicado no
Jornal do Brasil em janeiro de 1988. Carvalho aproveita a fala de um ex revoltoso da Revolta da Chibata,
alcunhado Ferreirinha, que dissera ter seu “gênio quebrado a paulada” e gênio aqui significado a recusa
ao exercício da cidadania, só depois das “pauladas” que o marinheiro aceitara ser cidadão. Carvalho faz
uma digressão pela história do Brasil, desde a Colônia, resgatando o cronista Antonil que relatou que o
tratamento dispensado aos escravos seguia a regra dos três pês: pau, pão e pano. A regra, segundo
Carvalho, nunca foi abandonada desde então. Em suas palavras: “Como era tratado o escravo e o
agregado, assim foi tratado o cidadão. Em 1848, ao se discutir no Congresso um projeto de lei que
regulasse a imigração após três anos de residência, o senador Vasconcelos objetou dizendo não desejar
que o estrangeiro, confiado na lei, viesse a tomar cacete... Para os amigos pão, para os inimigos, pau. Era
a mesma velha regra de Antonil, apenas adaptada à vida política... No mundo urbano que emergia, o
espírito era o mesmo. Questão social era com a polícia mesmo, era no sarrafo” (CARVALHO, In: Jornal
do Brasil, 18/12/1988).
57
benesses do progresso, como telégrafo, luz elétrica, o bonde, sistema de abastecimento e
entretenimento para outros. Em síntese, circulavam nas mesmas ruas, tomavam os
mesmo bondes, passeavam nas mesmas praças e assistiam as mesmas missas homens de
cor e brancos (CÂMARA, 2008), mas, isso não significou aceitação. A minoria branca e
elitista, ocupante dos cargos administrativos de maior importância, os homens que
majoritariamente ocupavam-se de trabalhar no projeto de ordenar e civilizar aquela
nascente república elaboravam mecanismos para manter a ordem desejada para garantir
o seu bem estar. Havia, portanto, no espaço democrático daquela república,
ajuntamento, mas não união entre os cidadãos. E civilizar significava colocar cada novo
cidadão no seu devido lugar por meio de leis, posturas, decretos, do policiamento e do
discurso civilizador que associava decadência material a sujeira, doenças e ao crime,
tornando o termo “classes perigosas11” sinônimo de classes pobres.
Sidney Chalhoub (1996) faz um estudo atento sobre o discurso dominante acerca
da liberdade dos negros que, de modo geral, apontava que o liberto não estava
preparado para o mundo do trabalho que exigia controle, pontualidade, obediência. Era
necessário trabalhar a consciência que se tinha em torno do trabalho formal para que ele
se tornasse atrativo. Conforme Chalhoub, no mesmo ano da Abolição, o ministro
Ferreira Vianna elabora um projeto de lei que visa combater a ociosidade
(CHALHOUB, 2001, p. 72). No entender desse ministro e de outros, o liberto carregava
consigo os vícios da escravidão que lhes impossibilitava a convivência com a sociedade.
Era necessário vencer tais vícios por meio da educação, no entanto, essa educação se
daria por meio do trabalho, enquadrando aquele sujeito no rigor das regras do ambiente
de trabalho, ainda que fosse necessário que o patrão usasse de violência, pois, aqui, o
patrão estaria agindo como um pai que disciplina o filho (CHALHOUB, 2001, p. 73).
Mas essa pedagogia não se encerraria na violência, era necessário elaborar uma
representação pedagógica para o trabalho, o que foi feito associando trabalho à
moralidade. Isso significava que, quanto mais o indivíduo trabalhasse, maiores seriam
os seus atributos morais, o que pode ser resumido no ditado “o trabalho dignifica o
homem”. Portanto, era necessário introduzir no corpo dos cidadãos o hábito do trabalho
11
Ao tratar da questão da tentativa dos deputados do Império em cunhar uma moralidade à ideia de
trabalho formal que convencesse os libertos a aceitar se submeter a ele, Sidney Chalhoub busca a raiz do
termo “classes perigosas” utilizado pelos legisladores em suas argumentações. O termo teria aparecido na
Inglaterra e era restrito àqueles que tinham, conscientemente optado pela sobrevivência à margem da lei,
ou seja, aqueles que já haviam sido presos ou que praticavam furtos para manter a família, no entanto, o
que os deputados brasileiros buscaram foi apenas a relação que o termo mantinha com a pobreza, e
transformaram-no em sinônimo de classes pobres, assim, não era necessário praticar um crime de furto ou
ser preso para ser considerado perigoso, bastava ser pobre (CHALHOUB, 2001, p. 76).
58
a fim de acabar com os malefícios trazidos pela escravidão. É nesse contexto que é
inserido no Código Penal, em 1890, um capítulo que previa a punição à vadiagem e à
prática da capoeira. Conforme a historiadora Eliane Silva Guimarães, havia uma
preocupação, entre os legisladores, em criar mecanismos que combatessem a ociosidade
a fim de que os homens pobres e libertos estivessem envoltos em um “regime livre,
baseado em relações de exploração e baixa remuneração” (GUIMARÃES, 2006, p.
152).
O capítulo XII do Código Penal intitulado “Dos Vadios e Capoeiras” previa a
punição à ociosidade e à prática da capoeira, ainda nos artigos 400 e 401, específicos
sobre a ociosidade, previa a reclusão de 15 a 30 dias aos condenados. Assim,
analisamos que a intenção era, por meio do medo da reclusão, que o ocioso buscasse um
trabalho, ainda que de baixa remuneração. O que nos leva a uma conclusão: além de
tentar prevenir a ociosidade, essa lei garantia bons lucros aos patrões, uma vez que, por
medo da condenação, o futuro trabalhador estaria sujeito às determinações e disposições
do empregador e ao salário que lhe quisesse pagar. De forma pragmática nos é possível
afirmar que, findada a escravidão, essa lei era um substituto aos chicotes, pois ela
acabava por empurrar os libertos a trabalhos de baixa remuneração e possivelmente de
muita exploração da sua força de trabalho.
A questão do trabalho que dignifica o homem e que funciona como um indicador
de status social está também relacionada com a dinâmica do capital que atribui valor
simbólico ao produto. Como ressalta Arjun Appadurai (2008), as coisas têm uma vida
social, cuja troca econômica cria-lhe um valor que “é concretizado nas mercadorias que
são trocadas, em vez de apenas nas formas e funções da troca, possibilita a
argumentação de que o que cria o vínculo entre a troca e o valor é a política, em seu
sentido mais amplo” (APPADURAI, 2008, p. 15). Desta forma, o discurso sobre o
trabalho resolve duas questões em benefício do mercado, o da mão de obra barata, por
um lado e o do poder de compra do trabalhador, por outro. Olivier, com sua contumaz
ironia faz uma leitura dessa relação entre o consumo e o capital, o que Appadurai chama
de política, o nosso jornalista chama de “moral”. Ao queixar-se ao português Manoel
Machado que fazia já um dia que fumava o mesmo charuto, com o qual esse lhe
presenteara, Olivier, em tom lamurioso, e ao mesmo tempo regado de pilhéria, faz um
breve resumo do valor moral da coisa, no caso o charuto, cujo sabor ou satisfação de
consumo estava condicionado à sua situação de presenteado ou comprado:
59
...Como você não deve ignorar, a economia se prende à moral, e não
há nada de moral nisto que lhe acabo de contar. Examine bem a razão
das coisas: um dos gratíssimos prazeres do fumante, em que pese os
filantes, é comprar o cigarro ou charuto. O fumo sobe melhor ao
paladar quando é comprado. O cigarro filado não é tão agradável aos
quais como o que é comprado. Eu sou deste verniz e creio que todo o
mundo, que é fumante de vício e ofício. Guarde as caixas intactas,
mesmo o resto da que você já começou a vender. Estou quase certo de
que depois deste charuto não mais fumarei na minha vida. Aqui, como
me vê, além do aborrecimento e do enjoo, tenho o beiço cansado;
parece que me fatigaram as minhas glândulas salivares, meus pulmões
arfam, exaustos, e eu mesmo me pareço mais morto que vivo, mais
charuto que homem!... ([Grifos nossos] MORAES, 2002, p. 71).
Ao afirmar, em forma de epigrama, que se parece mais charuto que homem
Olivier ilustra bem como funciona o sistema capitalista que coisifica o homem ao
transformá-lo em uma moeda de troca, no caso, sua força de trabalho a ser trocada por
um salário. Não parecem ser inocentes suas últimas palavras que se assemelham a
descrição de um homem fustigado após uma jornada de trabalho, jornada esta que
naquele período não era padronizada e quem bem poderia reduzir um homem a
“charuto”, coisa, o homem expropriado de uma consciência. A analogia é perfeita
quando lembramos que esse discurso moralizador, em torno do trabalho, foi promovido
pelo Estado em sua preocupação com o futuro econômico do país e com a implantação
do trabalho livre em substituição ao trabalho escravo, segundo Chalhoub, foi em favor
do trabalho que a República fora proclamada, em suas palavras:
... Pode-se dizer, mesmo que a República foi proclamada sobre a
figura do homem livre pobre porque tinha para ele um projeto amplo,
que era o de transformá-lo em trabalhador, ou seja, em fonte de
acumulação de capital. E a República foi proclamada ainda sobre o
homem livre pobre na medida em que este projeto de exploração
econômica era acompanhado de todo um projeto de mudança
“espiritual” (CHALHOUB, 1989, p. 171).
É nesse sentido que, analisando como era tratada a questão da inserção dos
libertos e, depois de 1889, cidadãos, no mundo de trabalho, percebemos que o Estado
republicano, ao elaborar leis como a da condenação à ociosidade, mostrava que não
encarava aquela camada pobre e de cor como cidadãos detentores de direitos, mas como
sujeitos passíveis, por um viés, de políticas de enquadramento por serem propensos aos
vícios da bebedeira, da criminalidade, enfim, sujeitos de alta periculosidade e, portanto,
que desfrutavam – se é que podemos usar esse termo- de uma liberdade vigiada, ou
melhor, dizendo, policiada, não só pela nova lei de combate à vadiagem, mas pelos
60
códigos de posturas e de ordenação urbanísticas que regulamentavam a rua e os novos
espaços de sociabilidade que se abriram nesse novo momento político e por outro lado
possíveis “corpos dóceis” para o mercado de trabalho. Murilo de Carvalho atribui essa
postura do governo republicano a um “enrijecimento da ortodoxia liberal”, em suas
palavras,
A Constituição de 1891 também retirou um dispositivo da anterior que
se referia à obrigação do Estado de promover os socorros públicos, em
outra indicação de enrijecimento da ortodoxia liberal em detrimento
dos direitos sociais. O Código Criminal de 1890 teve a mesma
inspiração. Tentou proibir as greves e coligações operárias, em
descompasso com as correções que já se faziam na Europa à
interpretação rígida do princípio da liberdade de contrato de trabalho.
Foi ameaça de greve por parte de alguns setores do operariado do Rio
que forçam o governo a reformar logo os artigos que continham a
disposição antioperária (205 a 206). (CARVALHO, 2002, p. 45).
Não à toa, a historiografia recente refere-se a esse período como “tempo do
liberalismo excludente” 12.
Essa questão é representada por Nascimento Moraes, seus personagens negros e
pobres são alvejados pela suspeição, seguidos pela polícia, disciplinados pelos códigos,
mas, ainda assim, burlando, ou melhor, elaborando táticas de sobrevivência naquele
ambiente que lhes era hostil. Essa suspeição gerada pelo preconceito é narrada em
vários momentos de Vencidos e degenerados, temos a seguir um episódio de uma
situação cotidiana do personagem Zé Catraia e que ele narra a Cláudio Olivier:
- Ontem à tarde o Machado mandou prender-me.
- O Machado?
- O Machado. Ele tinha razão e não tinha... Eu lhe conto a coisa
porque sei que ele é seu protetor... Ele subia a Rua de São Pantaleão
de braço com uma senhora. Eu descia, arrimado numa camoeca
furibunda. As janelas estavam repletas de moças... Eu, por um ímpeto
involuntário, acostumado naquele bom tempo da Travessa do
Precipício (o senhor não conhece essa época, mas pergunte a sua mãe)
eu gritei: Oh Paletó Queimado? Como vais tu, português?
- Prenda este homem- gritou ele. – Prenda este homem! – repetiu para
um soldado que passava.
O marinheiro ficou roxo de raiva. A senhora dele estava pálida no
meio da rua. Eu não articulei palavra... Um caboclinho de São Bento,
o tal capitão Cruz, que tem quitanda no canto com a Rua de Santana,
possesso, furioso, passeando na calçada, arregaçando as mangas de
camisa:
12
Esta expressão refere-se ao subtítulo do primeiro volume da coleção O Brasil republicano organizado
por Jorge Ferreira e Lucília de Almeida Neves Delgado, publicado pela editora Civilização Brasileira e
que traz uma coletânea de artigos analisando as principais temáticas da Primeira República.
61
- É um absurdo! Isto é uma coisa horrível! Este homem é um perigo,
não respeita a família de ninguém.
As moças batiam a cabeça em sinal de assentimento, os vagabundos
que passavam, concordavam que eu era um safado! O soldado pegoume pelo cós, deu-me dois sacalões como faz o menino ao papagaio, e
lá me levou para o São João. O Machado me fez essa! Meu amigo de
anos sem conta! Ofendi-o, porventura? Todo mundo não sabe que ele
é o Paletó Queimado? (MORAES, 2000, p. 149-150).
Em Vencidos e degenerados, o cenário econômico de São Luís denota
decadência, o que movia aquela cidade ainda era o comércio centralizado na Praia
Grande cujo cenário é descrito pelo narrador como “clara denúncia de decadência e
estagnação de elementos essenciais à atividade do trabalho” (MORAES, 2002, p. 54).
Carroceiros bebendo a cana-capim, comerciantes a porta dos seus estabelecimentos, um
e outro funcionário apressado compõe o cenário do centro comercial.
Assim, não havia muitas possibilidades de um trabalho assalariado para aquela
leva de libertos. O que o autor deixa explícito é que eles continuam exercendo seus
misteres, no âmbito do espaço urbano, de estivadores, sapateiros, vendedores... Os
poucos que conseguiam por meio de um tutor ou padrinho instruir-se, também a custas
das amizades desse padrinho, obtinham uma locação em alguma repartição pública ou
particular, na redação de um jornal. Aliás, é interessante tocar nesse assunto porque ele
foi observado por Sérgio Micelli (2001) em Intelectuais à Brasileira. Num estudo de
viés antropológico, o pesquisador percebe o papel crucial que exerceu essa prática da
tutela para a carreira intelectual de muitos homens, como Lima Barreto, Humberto de
Campos, que na falta desse incentivo não teriam condições materiais de se instruir nem
de se lançar naquele mundo fechado. O próprio Nascimento Moraes, como mostramos
no capítulo anterior, contou com a ajuda de Manoel de Bithencourt.
Em A vida de um homem de bem, concebido por Nascimento Moraes durante a
Primeira República, o narrador, professor, se recorda de um dos seus alunos, o Manuel
Sotero Coruja, que adentrara em sua escola no ano de 1921. Pela descrição do rapaz,
tratava-se de um mestiço, seu padrinho era um “alto coronel federal” e “respeitável
cavalheiro” (SANTIAGO, 1982, p. 187) que tinha pelo pai de Manuel Coruja uma
grande afeição que nasceu a partir da amizade que aquele dedicou à família do coronel
Antonio de Carvalho e Melo como ele explica:
- O pai do seu futuro discípulo morreu no avarandado de nossa
fazenda, defendendo a vida de meus pais, a minha vida e a de meus
irmãos.
62
O chefe político local mandou matar-nos, alta noite. Eram seis
capangas bem armados e montados, dos mais terríveis que ele pôde
arranjar em Goiás. Meu pai não esperava o ataque. Nada havia que o
justificasse. Uma questão se levantara entre ele e o chefe político, por
motivo da propriedade de umas terras, e o juiz resolveu-a a favor de
meu pai. Apenas isto, mas fique certo de que foi o quanto bastou. O
chefão, atrabiliário e vingativo, resolveu acabar com o meu pai e a
família toda. Defende-nos [sic] como pudemos, a rifle e a faca.
Caíram mortos três capangas e dois irmãos meus e o velho Coruja,
que, de passagem para Carolina, pernoitara na nossa fazenda.
Por tudo isto o senhor pode compreender o interesse que tenho por
ele, que é o mais velho dos filhos do Coruja e que minha família
tomou sob a sua responsabilidade, para o fim de lhe dar educação
conveniente. (SANTIAGO, 1982, p. 187).
Assim, Manuel Coruja passa a frequentar as aulas e mostra sua aplicação e
inteligência, no entanto, a esposa do seu padrinho se engraça com o rapaz, tentando a
todo custo seduzi-lo. Diante do problema, Manuel Coruja aconselha-se com o professor,
que promete pensar em uma solução, solução que não veio. Manuel Coruja ganha a
fama de conquistador e torna-se traidor aos olhos do padrinho que tira sua tutela,
deixando o rapaz à própria sorte. Sentindo-se um pouco responsável, por não ter
ajudado o rapaz, o professor dá-lhe abrigo, e como Manuel Coruja já tinha três anos de
estudo, saindo-se bem nas matérias, não foi difícil ao professor conseguir um emprego
para ele. Assim, Manuel Coruja vai exercendo cargos em escritórios, em fábricas,
cargos que exigiam conhecimentos específicos na área de finanças. O motivo de não
conseguir passar muito tempo nos empregos não era sua capacidade, a qual os
empregadores todos elogiavam pela inteligência e dedicação. O motivo era o caráter do
rapaz, incorruptível, que não lhe permitia ajudar os patrões em aproveitar-se dos clientes
ou “passar a perna” nos sócios. Ainda assim, Manuel Coruja trabalhava durante o dia e
estudava à noite chegando à conclusão dos estudos elementares e, como era dedicado,
um dos ex discípulos do professor, que se bacharelou na faculdade de Recife e ofereceulhe um cargo de promotor numa cidade do interior, muito embora ele não tivesse
formação de advogado, a coisa se arranjou à base da concessão de favores.
Esse relato nos leva a considerar, seguindo o pensamento de Murilo de
Carvalho, a substituição da Cidadania pela Estadania. Termo criado por Murilo de
Carvalho13 para se referir à maneira como o poder público garante o direito de poucos,
na verdade apenas dos grupos econômicos e cidadãos que com ele tecem “uma rede
complexa clientelista de distribuição particularista de distribuição dos bens públicos”
13
Entrevista concedida à professora Isabel Guillen (UFF), publicada no Jornal do Brasil em 24/06/2001.
63
(CARVALHO, 2001, p. 8). Foi algo parecido que ocorreu a Manuel Coruja, como
explica o narrador:
Manuel Coruja a princípio recalcitrou. Não tinha habilitações para o
cargo, porém, o acadêmico era amigo do Chefe do Estado e
responsável político por dois importantes municípios, onde eram
grandes as suas forças eleitorais. Não demorou a nomeação. Manuel
Coruja partiu para o interior, levando, além de malas, um caixote
cheio de livros que o deviam amparar no exercício de sua nova
profissão (SANTIAGO, 1982, p. 194).
A intenção por trás desse arranjo era clara: sendo um cargo concedido
amigavelmente, o novo promotor estaria subjugado aos mandos do seu nomeador e por
sua vez favoreceria os aliados do mesmo. Tal prática de favores dessa estirpe era
comum naquele período, em que o federalismo já se consolidara a partir da política dos
coronéis, uma política de compromisso que garantia a manutenção do poder dos grandes
proprietários nas diversas regiões do Estado republicano (CHAVES, 2011, p. 65). No
entanto, o caráter de Manuel Coruja não lhe permitiu jogar conforme as regras dos
“politiqueiros” (SANTIAGO, 1982, p. 194) e, assim, mais uma vez ele se vê
desempregado. Manuel Coruja resolve-se então partir para o Rio de Janeiro, onde acaba
conseguindo uma colocação como tabelião.
Uma das queixas do personagem João Olivier, de Vencidos e degenerados, é de
que, no Maranhão, não havia lugar para homens de verdadeiro talento, uma alusão ao
tipo de inteligência que se desenvolvia no Estado e que era aceita e prestigiada,
preocupada com a aparência e a imitação da cultura europeia. Ele próprio, João Olivier,
por questões políticas, acaba se vendo obrigado a deixar o Maranhão, bem como o seu
filho, Cláudio Olivier, um jovem de muito talento que, pela pressão social e o
preconceito também busca em outro Estado reconhecimento e sucesso. Assim, vemos
Valério Santiago repetindo nesse conto a ideia de que existia um perfil de conduta que
deveria ser seguido para que um indivíduo desfrutasse de prestígio na sociedade
ludovicense da Primeira República, uma clara denúncia de que se tratava de uma cidade
degradada por práticas espúrias na política e na elite que controlava o seu
funcionamento e administração.
Assim como denunciou em Puxos e repuxos a existência de uma hierarquia
social rígida, em São Luís, que não permitia a ascensão social de homens vindos do que
era considerada economicamente a “casta inferior” e principalmente, homens de cor,
64
Nascimento Moraes também o fez na literatura, principalmente em Vencidos e
degenerados. Quando fala no mundo do trabalho formal, dá destaque aos cargos no
comércio, nas repartições públicas e nos escritórios particulares, fazendo também uma
divisão dos trabalhadores em “vaidosos” e “necessitados” (MORAES, 2000, p. 57). É
na fala de João Olivier que encontramos a descrição desse universo de trabalhadores
divididos pela hierarquia do nascimento. Olivier acusa o governo republicano de não
tomar providências contra a paralisia social que se instalara em São Luís e que era
orquestrada pela velha administração portuguesa, parasitária. Para Olivier, era
necessário educar o povo para vencer essa paralisia, como podemos constatar nesse
diálogo que ele trava com o velho Bento jornalista e professor, que também tinha
convicções polêmicas e por isso se afastara da vida pública:
- Mas é que não abriram escolas ao povo, não procuraram matar o
analfabetismo, não foram verdadeiros republicanos os que se
apossaram do poder...
- Também não vou por aí, pois vejo que há vida e progresso em
muitos Estados, onde se criaram escolas noturnas, estabelecimentos
importantes, como sejam institutos profissionais, nas quais
gratuitamente se dá instruções ao povo. O que tu deves registrar é que
nós não tivemos elemento exterior, para auxiliar-nos, não nos
favoreceu uma imigração qualquer, de gente trabalhadora e
inteligente, nem, ao menos, uma coloniazinha de meia dúzia de
holandeses, diligentes, audazes e ativos. Continuamos com os mesmos
hóspedes, os irmãos portugueses, que filhos de uma cultura
secundária, baldes de uma orientação apreciável, o que fazem é esse
comércio de pequena bitola a que se acostumaram e que
prejudicialmente ensinam aos filhos e aos caixeiros (MORAES, 2000,
p. 77-78).
O velho Bento não estava sendo conivente com a crença de que a solução para a
economia maranhense estava na imigração, repetindo o discurso do problema da
mestiçagem, mas atacando a política portuguesa, que repetia velhos e obsoletos hábitos
que não tinha mais lugar no século XX. Por outro lado, sua fala acaba revelando um
preconceito ou desencanto em relação aos brasileiros, ao contrário de Olivier, que
acreditava no papel transformador da educação. Mas, o que nos interessa, aqui, é essa
imagem negativa em torno do português. Em outras falas de Olivier e em episódios
protagonizados por personagens portugueses, percebemos a imagem que se faziam
deles: eram vaidosos e cuidadosos da manutenção de uma situação que lhes fosse
favorável, um parasita parcimonioso cuja administração imprimira um estado de
65
imobilidade econômica a São Luís. Na descrição dos funcionários daquele período,
vejamos como ele classificou os vaidosos e os necessitados:
Os indivíduos, em geral, chegam aos dezesseis anos,
aproximadamente; percebe com alguma admiração que os homens
trabalham, e não percebem mais cedo. Compreende e vê que os que
trabalham são, em parte, recompensados; gastam e gozam de certas
vantagens na sociedade; E assim, vendo e compreendendo, tendo ele
pronunciada tendência para a vida que é mais material que qualquer
outra espécie procura empregar-se conforme as suas tendências no
comércio ou no funcionalismo (MORAES, 2000, p. 55).
O descobrimento do fato de que “os homens trabalham” explica-se pelo motivo
desses jovens pertencerem à casta privilegiada, acostumada a ser servida e sustentada
pelo suor alheio. Engajam-se esses jovens na vida do trabalho não braçal por uma
questão de status, uma posição social que lhe possa dar um “q” de importância, de
moralidade, como salientou Chalhoub (2001), o homem que trabalha é um homem
probo, digno, que cumpre com seus deveres com a nação.
Enquanto os necessitados são os que foram inseridos no mundo do trabalho após
a Abolição, mestiços e negros habitantes dos bairros pobres e os homens livres e que
desde crianças conheceram o esforço para sobreviver. Esses necessitados a todos os
sacrifícios se prestavam para o bom exercício dos seus cargos e buscavam uma
qualificação que lhes possibilitassem uma promoção:
Os que trabalham por vaidade pertencem, na sua maioria, às antigas
famílias do Estado, ou às que deles descendem. Os necessitados são,
na sua maior parte, criados do povo, pertencem à famílias pobres e
desprotegidas que não se misturam com as que representam a fina flor
da sociedade. Os que trabalham por fatuidade são como os
portugueses, mandados buscar nas vilas de Portugal, os futuros
patrões, os diretores de Bancos, os proprietários capitalistas
(MORAES, 2000, p. 57).
No conto Desmoronamento, também escrito por Nascimento Moraes na época
da Primeira República, o narrador nos apresenta uma descrição dos trabalhadores que é
bastante interessante e que revela também essa distinção, sendo mais detalhado, o que
pode ser em consequência das características estruturais desse gênero narrativo. O
narrador não fala a data do ocorrido, mas por algumas falas infere-se que se trata da
década de 1890, no período posterior a 1895 quando no Maranhão já havia se instalado
66
o parque têxtil que contava naquele ano com 25 indústrias (DOURADO & BOCLIN,
2008, p. 34).
O conto trata o escândalo social em que se converteu o noivado de D. Vitorinha,
filha e neta de abastados lavradores do Estado, que fora educada e preparada para casarse com um igual, mas anuncia aos pais o noivado com um simples caixeiro da Praia
Grande e estudante em um curso comercial. Tal noivado representou uma grande
humilhação pública para a sua família e, por conta de pressão, acaba sendo desfeito.
Mas o que nos chamou a atenção nesse conto foi a descrição longa que o narrador fez da
classe trabalhadora de São Luís:
Em São Luís a sociedade estava dividida em castas, bem
caracterizadas, pelos recursos, pelo traje, pela habitação e pelos
bairros. Os indivíduos dessas castas eram plenamente convencidos de
sua condição. O operário estava conformado com a sua pobreza e não
procurava sair dela. O que ganhava dava para as suas despesas. Era
feliz, por isso. Os filhos frequentavam uma escola primária, e depois
aprendiam um ofício qualquer, e, por vezes, o próprio ofício do pai.
Só envergava um paletó e calçava sapatos ou botinas, aos domingos,
dias santos ou feriados. E assim mesmo esses eram os mais graduados.
Os mais eram descalços e em mangas de camisa. Traziam chinelos de
couro cru, nos mesmos dias em que vestiam o paletó.
Os funcionários também viviam modestamente. Esses não tinham
outra ambição que não fosse esperar que o mais graduado morresse ou
se aposentasse. Pela sua pouquidade de recursos materiais, viviam
encostados, numa atitude de inferioridade, aos ricaços da Praia
Grande, padrinhos de seus filhos, e que por isso lhes dispensavam
alguma consideração e lhes faziam pequenas dádivas, ou abastados
lavradores ou criadores, chefes de partidos políticos, ou figuras
altamente representativas da pública administração da província.
Havia os “camisas fora da calça”, os “camisas curtas”, ambos
descalços, que não eram operários propriamente ditos, mas artesãos,
trabalhadores de serviços pesados, carregadores de móveis e
bagagens, que não tinham direito a coisa alguma, e moravam em
mansardas, em baixos sobrados, em casebres dos bairros mais
inóspitos (SANTIAGO, 1982, p. 236).
Essa descrição sobre os artesãos e suas moradias e pobreza também é feita em
Vencidos e degenerados quando o narrador apresenta os sapateiros Olímpio e Daniel
Aranha. Portanto, percebemos que nessa sociedade que o conto descreve e também no
romance o mundo do trabalho era constituído pelos cargos públicos, cargos em
indústrias, no comércio e escritórios e do trabalho informal composto dos mais diversos
misteres, excetuando o trabalho dos artesãos, que pensamos aqui serem as costureiras,
alfaiates e sapateiros que exerciam suas atividades em casa, os demais ocorriam nos
67
espaços públicos da rua, das feiras e do porto e o trabalho de aluguel, resquício da
escravidão urbana e cujo modelo foi apresentado no romance de Nascimento Moraes
por meio da personagem Andreza Vidal, amásia de Daniel Aranha e mãe de Cláudio
Olivier. Não obstante, como o relato deixa claro, eram trabalhos exercidos pelos mais
pobres e despreparados, a maioria deles libertos. Eram esses ofícios os mais alvejados
pela política reguladora e ordenadora do Estado republicano (CÂMARA, 2008, p. 67).
Paulo Roberto Câmara (2008), em sua pesquisa sobre o trabalho de rua no final
do século XIX, em São Luís, procura demonstrar como esta denominação “trabalho de
rua” agregava variadas atividades e de como elas sofreram ações das leis reguladoras do
espaço urbano elaboradas pelo poder público. Câmara destaca também a importância
desses pequenos misteres, uma vez que eles eram imprescindíveis ao abastecimento de
alimentos à população. Outro ponto interessante é a instabilidade em que viviam essas
pessoas, uma vez que eram alvejadas pelos códigos de ordenação da rua, podendo,
assim, a qualquer momento ser “acusados de cruzarem a tênue barreira do legal/ilegal e
do moral/imoral, sendo ainda confundidos com outros grupos sociais a exemplo dos
mendigos e ‘vadios’” (CÂMARA, 2008, p. 62).
Como relatado nos contos A preta Benedita e Desmoronamento, o trabalho de
rua era exercido por homens e mulheres. Em A preta Benedita, a personagem título não
apenas conseguiu sustentar a família da sua ex senhora como garantiu a educação dos
jovens da família. Além da disposição para trabalhar, o narrador ressaltou a sua
capacidade em fazer bons negócios com os comerciantes locais, seus negócios mais
lucrativos eram os que envolviam o fornecimento de alimentos. Paulo Câmara aponta a
preferência dos vendedores de rua em mercadejar alimentos como uma estratégia:
Quanto à venda de gêneros de consumo, observa-se que essa ocorria
mais em razão dos trabalhadores buscarem estratégias para realizar
melhores negócios, do que propriamente pela efetiva ausência de
locais apropriados na cidade, como mercados e feiras (CÂMARA,
2008, p. 62).
Paulo Câmara demonstra que alguns códigos de posturas e decretos acabavam de
certa forma levando os vendedores de rua a descumprirem a lei. Câmara aponta
especificamente os códigos de 1866 que falavam sobre a Higiene e Saúde Pública e o
código de 1893 que regulava as instalações de cortiços, estribarias e currais e a
imposição de comercializar alimentos como o peixe em um local próprio (um local que
funcionasse como ponto comercial). Paulo Câmara percebe que essas imposições
68
somadas à falta de casa própria ou um local comercial próprio levavam parte dos
trabalhadores às ruas com o alimento à venda e consequentemente infringindo as leis
vigentes (CÂMARA, 2008, p. 69).
Em Vencidos e degenerados há cenas que nos permitem perceber o policiamento
em algumas ruas da cidade. As ruas habitadas pelas famílias mais ricas eram policiadas
a fim de evitar a perturbação de seus moradores causada por algum baderneiro, mas
também havia a vigilância nos bairros mais pobres onde se entendia que a qualquer
momento poderia irromper uma confusão.
Dessa forma, a partir das conclusões de Paulo Câmara, a polícia em
determinados locais da cidade estaria ao mesmo tempo garantindo a ordem e
fiscalizando o trabalho dos ambulantes. No episódio abaixo, o narrador de Vencidos e
degenerados mostra como era possível a qualquer momento ocorrer uma confusão nos
bairros populares:
O bairro pode-se dizer é da pobreza, e por isso é ela quem se diverte
nesses dias, mal vestida, em geral modesta e simples, mas arruaceira,
armada de grossos cacetes e vozes ásperas. A polícia é mal vista por
lá, a cabroeira dos outros bairros também não é bem recebida e, assim,
quando menos se espera, por causa de uma raparigota qualquer, que se
faceira e se requebra com indivíduos estranhos ali, o rolo fecha, a
capoeiragem se desenfreia e quem puder que se salve: fecha-se o
tempo, atroa os ares um alarido medonho, correm as doceiras com as
bandejas, os vendedores de garapa e rolete, com os seus apetrechos,
fecham-se batendo com violência (MORAES, 2000, p. 95).
Além desse fato, o trabalhador de rua poderia também ser confundido com um
vadio, isso porque não eram raros os dias em que iam trabalhar bêbados e acabavam
metendo-se em alguma confusão. Nos jornais, não eram incomuns reclamações de
leitores sobre essas ocorrências. Os autores dessas reclamações usavam o termo vadios
para se referir aos ambulantes, alegando que eles iam àquelas ruas bêbados, mas
disfarçados de vendedores de peixe. Além da questão da proibição da venda do peixe de
forma ambulante, há nessas reclamações a clara informação de que havia lugares em
que os cidadãos alvos da suspeição não podiam circular (CÂMARA, 2008, p. 67).
Pela maneira como funcionava a dinâmica do trabalho de rua, podemos apontar
duas considerações. A primeira é que ele é praticado majoritariamente por libertos que
antes da Abolição eram escravos de ganho ou aluguel, e, na falta de um projeto de
integração voltado para eles, acabaram dando continuidade aos seus misteres cotidianos.
A segunda consideração é sobre como, ainda que fosse um trabalho importante para o
69
abastecimento da cidade, sofreu com as consequências daquelas teorias raciais e leis que
marginalizaram e criminalizaram os homens de cor e pobres, consequências essas
figuradas pela vigilância da polícia, pela intolerância dos moradores dos bairros por
onde esses vendedores circulavam que não viam neles trabalhadores, mas baderneiros
bêbados e perigosos.
3. Uma República entre a Ordem e a Desordem
Muito embora Nascimento Moraes acentue a questão racial em seus textos
literários, não se furta de voltar-se nostálgico ao passado da cidade de São Luís quando
trata dos primeiros anos da República. Assim, a república ludovisense, apresentada por
Nascimento Moraes, é um misto de pretensões de civilidade, modernidade, mas também
um canto lamentoso e nostálgico de um passado que pouco a pouco vai se perdendo,
sobrevivendo a guisa da memória dos que puderam vivenciá-lo ou que dele tiveram
notícias por meio dos parentes ou amigos, também é a República do possível, onde se
pode vencer o marasmo econômico, intelectual e entrar de fato nos trilhos do progresso.
Essa temática da retomada do passado da cidade é recorrente em muitos contos e
crônicas assinadas por Nascimento Moraes. É notório também que dentre as questões
mais aventadas estejam tanto a riqueza da elite local e seu “desmoronamento” e a
decadência das letras, pois os que se proclamavam herdeiros da tradição ateniense não
tinham qualidades intelectuais para lhe fazer justiça. Assim, percebe-se que a escrita de
Nascimento Moraes tem essa dupla configuração que seria a de, por um lado, inscreverse no projeto neoateniense de louvar e perpetuar a tradição literária do passado
glorioso14 do Maranhão e acenar uma possibilidade para que a Atenas Brasileira
despertasse do seu sono, mas também de denunciar ou “cutucar” a elite em seus vícios e
mazelas, sendo estes últimos os elementos atravancadores da evolução que a cidade não
conseguia empreender, pois vinha da elite o racismo, o cunhadismo, a falta de
14
Em nossa monografia de graduação, destacamos que Nascimento Moraes sente orgulho e paixão pelo
epíteto “Atenas Brasileira” cuja crítica se faz aos que deturpam a imagem do que ele entende ser a
verdadeira imagem do intelectual ateniense (BRAS, 2008).
70
empreendedorismo, a politicagem, fatores que somados impediam a cidade de se
desenvolver; partiram da elite, quando se torna republicana, também, as ações que
derrubaram os sonhos de cidadania dos homens pobres.
No Maranhão, especificamente em São Luís, o movimento republicano só veio a
tomar fôlego a partir do advento da Abolição. O motivo não era senão outro que o
inconformismo dos proprietários com a libertação dos escravos e a falta do pagamento
de uma indenização a qual acreditavam ter direito. Animados por esse “espírito de
justiça” esses senhores, majoritariamente ligados ao partido conservador, perceberam na
República uma via de acesso ao exercício do seu poder pessoal sem os incômodos da
intervenção do imperador. Portanto, não havia nada de ideológico ou utópico nesse
republicanismo de última hora. Esses senhores compuseram a Junta Provisória que agiu
com violência contra aqueles que demonstraram ou que se suspeitava alimentar simpatia
ao regime derrubado15. Evento simbólico dessa repressão foi o fuzilamento de cerca de
400 pessoas, maioria de ex escravos que manifestaram apoio à Monarquia em frente a
sede do jornal O Globo, republicano (JESUS, 2009, p. 82).
Barbosa de Godóis explica que a Junta Provisória instalada no Maranhão em 18
de Novembro de 1888 caracterizou-se por não ter nem ideologia, nem ter lutado pela
causa republicana, mas pretendia aproveitar-se do fato para executar seus planos de
domínio, e assim foi que em São Luís, a ocasião fez a oposição e em
Acorde com esse pensamento, a política cometida na própria capital a
pessoas as menos idôneas para exercerem-na, por conhecida falta de
critério tratou ai mesmo de se impor pelo medo, efetuando prisões a
torto e a direita, castigando com palmatoadas as pessoas do povo d’um
e outro sexo e raspando-lhe à navalha as sobrancelhas e metade do
cabelo na cabeça... A República, logo nos seus primeiros passos,
sofrera, portanto, com aquele governo coletivo, a influência perniciosa
de uma impressão verdadeiramente desgraçada, aliando-se seu
advento na província à prática de tropelias em ordem a gerarem no
espírito popular a ideia de que o novo regime, em vez de a ordem e os
direitos dos cidadãos fez periclitar a primeira e ir contra os segundos
(GODÓIS, 2008, p. 361).
Essa amostra de ação repressiva torna fácil entender o antagonismo nos ânimos
com o qual Nascimento Moraes pinta em Vencidos e degenerados, da euforia pela
15
O historiador Mário Meirelles explica que esta prática era dirigida a homens e mulheres pobres que ao
serem presos pela polícia eram “amaciados” com palmatórias e soltos após terem suas cabeças raspadas,
prática adotada pelo Império para punir criminosos, o que simbolizava serem aqueles indivíduos
simpatizantes da Monarquia, as principais vítimas eram negros e ex escravos que claramente
manifestaram gratidão à princesa Isabel (MEIRELLES, 1991, p. 113)
71
Abolição à melancolia e desesperança na República. A confiar no marinheiro
Ferreirinha (de quem falamos no capítulo anterior), a República empenhou-se em
“quebrar os gênios” também da população em São Luís. É dessa forma que João Olivier
torna-se, no romance Vencidos e degenerados, o porta-voz tanto da satisfação do povo
ante a libertação, quanto a personificação do desejo de mudança política e social, mas
que modifica seu discurso num crescente de desilusão à medida que a narrativa avança e
transforma seus discursos em uma sinopse de queixas que expunham as contradições
republicanas que impunham uma igualdade, no sentido de que todos deveriam ser
republicanos, a golpes de porrete.
Nesse sentido, a República vai cristalizando uma imagem negativa para aqueles
que sonharam com sua ação de instauradora de uma liberdade na acepção plena da
palavra, como sinônimo de repressão a todos os sonhos fomentados pela Abolição. Essa
correlação entre Abolição e República ficou no imaginário coletivo brasileiro e
podemos constatá-lo nos dois sambas enredo abaixo e cujo objetivo era remorar o
centenário dos eventos supracitados. O samba enredo Cem anos de liberdade, realidade
e ilusão, de 1988, nos diz:
Cem anos de liberdade, realidade e ilusão16
Será...
Que já raiou a liberdade
Ou se foi tudo ilusão
Será...
Que a Lei Áurea tão sonhada
Há tanto tempo assinada
Não foi o fim da escravidão
Hoje dentro da realidade
Onde está a liberdade
Onde está que ninguém viu
Moço
Não se esqueça que o negro também
construiu as riquezas do nosso Brasil
Pergunte ao Nosso Criador
Quem pintou esta aquarela
Livre do açoite da senzala
16
O Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira é uma das mais tradicionais
escolas de samba do Rio de Janeiro. Foi fundada em 28 de abril de 1928, no Morro da Mangueira,
próximo à região do Maracanã,pelos sambistas Carlos Cachaça, Cartola, Zé Espinguela, entre outros. Sua
quadra está sediada na Rua Visconde de Niterói, no bairro do mesmo nome, os atuais presidentes são
Chiquinho da Mangueira e Nelson Sargento. O samba enredo Cem Anos de Liberdade, Realidade ou
Ilusão? É da autoria de Júlio Mattos e foi interpretado por Jamelão. Fonte
<http://www.mangueira.com.br/a-mangueira/historia/campeonatos/> pesquisa realizada em 15/11/2013.
72
Preso na miséria da favela
Sonhei...
Que Zumbi dos Palmares voltou
A tristeza do negro acabou
Foi uma nova redenção
O samba enredo da Escola de Samba Mangueira traz a memória coletiva que foi
cunhada não apenas nos acontecimentos vividos pelos negros, mas também numa
cultura histórica, embasada tanto pela historiografia quanto pelos meios de comunicação
que consagrou algumas visões em torno da Abolição quando os dois últimos versos o
autor se refere a Zumbi dos Palmares como o novo redentor, ou seja, aqui temos a ideia,
que ainda era difundida pela historiografia, de que a Abolição foi fruto da inevitável
pressão do capital e que a participação do negro foi por meio da rebelião tendo em
Zumbi seu exemplo maior e, portanto excluía as várias estratégias pela busca da
liberdade que os negros empreenderam. Mas, interessa-nos o tom melancólico e
queixoso sobre a liberdade propalada, mas não concretizada, atentemos que o primeiro
verso fala em “já raiou a liberdade”, pois entendemos como uma dupla referência:
Libertação e República. Um ano após, com o centenário da República, em 1989, foi a
escola Imperatriz Leopoldinense que dedicou seu samba em memória ao evento,
percebemos, no entanto, um tom diferente na letra:
Liberdade, Liberdade17
Vem ver, vem reviver, comigo amor
O centenário em poesia
Nesta pátria, mãe querida
O Império decadente, muito rico incoerente
Era fidalguia
[...]
A imigração floriu de cultura o Brasil
A música encanta e o povo canta assim
Pra Isabel, a heroína
Que assinou a lei divina
Negro dança, comemora o fim da sina
Na noite quinze reluzente
17
O samba-enredo “Liberdade, Liberdade” foi composto por oito compositores membros da escola,
interpretado por Dominguinhos, intérprete principal, até hoje, da Imperatriz Leopoldinense. G.R.E.S.
Imperatriz Leopoldinense foi fundada no ano de 1959 com o intuito de fornecer aos moradores da
chamada zona Leopoldinense um local de caráter carnavalesco igual ao que havia no Recreio de Ramos.
E cujos frequentadores eram integrantes da mais alta estirpe musical da cidade: Armando Marçal,
Pixinguinha, Villa-Lobos, Heitor dos Prazeres, Bidê (Alcebíades Barcelos), Mano Décio da Viola e
outros
mais,
o
atual
presidente
da
escola
é
Luizinho
Drummond.
Fonte
<http://www.imperatrizleopoldinense.com.br/>, pesquisa realisada em 25/05/2013.
73
Com a bravura, finalmente
O marechal que proclamou foi presidente
Liberdade, liberdade!
Abra as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz!
A ideia de que houve uma libertação é patente nesses versos. Uma libertação não
apenas política, mas de um estado que cativava pessoas, práticas, cultura. Como se
aquele 15 de Novembro longínquo houvesse feito uma transformação na estrutura
social, econômica e cultural, trazendo ao mundo um novo Brasil. Um Brasil sem
fidalguia, sem escravos oprimidos, os versos são claros ao dizer que apesar da princesa
ter assinado a lei divina só no advento da República que o negro dança, comemora o
fim da sina. Doravante, o que era uma sociedade hierarquizada, passava a ser uma
república de cidadãos. Atribuímos, no entanto, o tom eufórico do samba como resultado
do retorno da democracia, a memória da ditadura militar ainda estava viva na mente dos
brasileiros, um ano antes havia sido promulgada a nova Constituição Brasileira,
cognominada de “Constituição cidadã”, assim, compreende-se a não repetição do tom
lamentoso que encontramos no samba da Mangueira, aqui a liberdade tinha uma
conotação mais política que social.
A questão da qual nos ocuparemos agora é justamente sobre até que ponto a
República tornou iguais os filhos dessa “pátria mãe gentil”. Como as classes sociais que
viveram esse período e os anos posteriores a ele se viram e viram aos demais, como se
deu a relação do Estado Republicano com a nação brasileira e quais foram, realmente,
as mudanças que se operaram após a queda do regime monárquico.
Sobre os eventos e motivação que puseram fim à Monarquia existiram várias
versões que foram organizadas em duas categorias, as dos vencedores e as dos vencidos.
De forma geral, os vencedores acusavam o poder do imperador como a fonte de toda
corrupção, injustiça e de estar alheio às necessidades do povo. Já os monarquistas
divulgavam que aquela proclamação foi resultado de uma confabulação de militares
indisciplinados apoiados por fazendeiros descontentes com a abolição da escravatura.
Além disso, esses simpatizantes da monarquia enumeravam as qualidades da
administração da Coroa que dera ao país setenta anos de paz interna e externa
garantindo a unidade nacional, o progresso, a liberdade e o prestígio internacional, ao
passo que o novo regime era instável e incapaz de garantir a ordem e segurança que
existia (COSTA, 1999, p. 393).
74
Com a revisão das conjunturas econômicas, sociais e políticas da época, Emília
Viotti chega à conclusão de que uma soma de fatores levou ao fim da Monarquia. Desde
as necessidades do mercado internacional, do processo de urbanização e das questões
sociais, o clima estava propício à falência daquele sistema político. Assim, cristaliza-se
a imagem do Império relacionado ao passado e da República ao futuro, ao moderno e ao
progresso (COSTA, 1999, p. 395).
Com a primeira década republicana passada fica claro que naquele processo
alguns foram beneficiados e outros sacrificados. O baluarte da democracia, a coisa
pública mostra-se potentado do exercício de poder das oligarquias, principalmente as
paulistas e mineiras. Assim, àquelas explicações dadas ao advento republicano foi
adicionado o dado que expunha a participação dos fazendeiros do sul. Foi dessa forma
que a República foi fruto de “ressentimentos acumulados: do clero contra a Monarquia,
dos fazendeiros contra a Coroa, dos militares contra o governo, dos políticos contra o
imperador” somados à incompetência dos políticos imperiais que não souberam
defender o seu regime (COSTA, 1999, p. 415).
Diante dessa afirmação fica evidente que se tratou de uma mudança motivada
pelas necessidades das elites que buscavam no novo regime uma via de acesso ao poder
de forma a se beneficiar dele (COSTA, 1999, p. 416).
Nossa pesquisa se baseia nos sonhos que os intelectuais brasileiros depositaram
nos eventos da Abolição e Proclamação da República como os passos decisivos rumo à
cidadania, pois permitiriam o fim dos privilégios e a inclusão e assistência a todos
aqueles que estariam “abaixo” da lei, permitiria a todos os brasileiros participar da vida
política através do sistema representativo e calcados nos princípios de liberdade,
igualdade e fraternidade. Significava não apenas a inclusão daquela massa populacional
recém liberta, mas a inclusão dos intelectuais nas tomadas de decisão importantes ao
país. Na década de 1880 a inteligência brasileira fazia uso de jornais e panfletos para
difundir ideias novas ao público interessado nas campanhas abolicionista e republicana.
Mais tarde, na primeira década da República a questão racial torna-se recorrente nas
retóricas daqueles que defendiam uma nação brasileira autêntica, o que significava
incorporar aos recém libertos tanto na vida nacional quanto na identidade da nação.
Várias foram as suas sugestões, desde as que defendiam manter as tradições do
passado até as que defendiam um novo começo voltado para o futuro. A Geração de 20,
encabeçada pelos realizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, como Mário de
Andrade (1893-1945), Manoel Bandeira (1886-1968) e Oswald de Andrade (1890-
75
1954), defendia que era hora de acabar com a prática do mimetismo18 europeu e cultuar
o que era da terra, a herança dos povos que deram origem ao brasileiro, que o Brasil
deveria assumir o “ser brasileiro”, ou como diríamos hoje, assumir sua brasilidade.
Se, por um lado, os intelectuais queixavam-se da política do regime, por outro,
teciam suas críticas também à população, principalmente pela sua postura de apatia em
relação às questões políticas, que deveriam ser do seu interesse, uma vez que se tratava
de um regime representativo.
O que os estudos mostraram sobre o comportamento da população naquele
período é que havia uma concepção diferente sobre como deveria ser seu
relacionamento com o governo, pensamento que parece não ter sido compreendido por
aqueles que tentaram entender esse fenômeno (CARVALHO, 2005, p. 75).
Primeiramente, Murilo de Carvalho revela em seus estudos que houve quem
apontasse que, ao passo que a República foi ovacionada pelas elites, foi lamentada pelo
povo. Em pesquisa sobre a cultura política daquele período, José Murilo de Carvalho
chega a essa conclusão:
Em todas essas revoltas populares que se deram a partir do início do
Segundo Reinado verifica-se que, apesar de não participar da política
oficial, de não votar ou não ter consciência clara do sentido do voto, a
população tinha alguma noção sobre direitos dos cidadãos e deveres
do Estado. O Estado era aceito por esses cidadãos, desde que não
violasse o pacto implícito de não interferir em sua vida privada, de
não desrespeitar seus valores, sobretudo religiosos. Tais pessoas não
podiam ser consideradas politicamente apáticas (CARVALHO, 2002,
p. 75).
Enquanto se esperava que esse cidadão desse o passo por si, o que ocorria era ele
primeiro ser “provocado” para enfim partir para a contestação, o que Murilo de
Carvalho, em Os Bestializados, chama de movimento reativo e que tem na Revolta da
Vacina (1904), no Rio de Janeiro, um exemplo célebre.
O fato é que o povo via com desconfiança o novo regime, pois a ação do
governo provocou essa sensação. Em níveis de mentalidade, Murilo de Carvalho aponta
que foi nos padrões da moral e honestidade que mais se viu modificações na transição
da Monarquia para a República. Os dados populacionais que revelam o crescimento da
18
Mimetismo é um termo da biologia que faz referência à semelhança que tomam alguns seres vivos, seja
com o meio que habitam, seja como outros animais mais protegidos a fim de garantirem sua
sobrevivência e despistar os predadores. Quando os intelectuais brasileiros utilizam esse termo é no
sentido de denunciar o caráter imitativo que adquiria a produção artística brasileira em relação ao modelo
europeu.
76
população marginal, registros de nascimentos, baixo número de casamentos são dados
que revelam uma época em que se vivia de maneira menos conservadora
(CARVALHO, 2005, p. 27). Por outro lado, a perseguição feita aos bicheiros, a
criminalização do capoeira – por meio da Lei que versava sobre Vadios e Capoeiras e
aprovada em 11 de outubro de 1890 – e o favorecimento à especulação na bolsa foram
elementos adicionados àquele caldeirão de transformações que contribuíram para
aumentar o sentimento de suspeita da população em relação ao governo:
O fato de a República ter favorecido o grande jogo da bolsa e
perseguidos os capoeiras e o pequeno jogo dos bicheiros sugere uma
recepção diferente do novo regime por parte do que poderia ser
chamado de proletariado da capital. A euforia inicial, a sensação de
que se abriam caminhos novos de participação parecem não ter
atingido este setor da população. (CARVALHO, 2005, p. 29).
Diante desse quadro que em tudo contribuía para a fomentação de uma imagem
negativa da República diante do povo, especialmente diante dos libertos, escritores
negros, como Nascimento Moraes, têm diante de si a dura tarefa de congregar os valores
da memória coletiva da qual são herdeiros e ao mesmo tempo manter o diálogo em
favor da República que, após os dois primeiros mandatos e com a concretização do
federalismo, balizado na política dos coronéis, havia afastado de vez o fantasma da
Monarquia, portanto, sonhar com a época do imperador e da redentora não era mais um
caminho. O caminho era agora achar uma solução para o Brasil que aspirava a
modernidade e civilidade “à la Europa” e as aspirações dos ex escravos à cidadania que,
a cada ação do Estado rumo ao pretenso progresso, empurrava mais e mais essa
categoria social ao limbo da marginalização. O pensamento de Nascimento Moraes,
aqui percebido, segue essa linha de mostrar que apesar dos antagonismos, da violência,
o problema não estava de fato do regime, mas em como e por quem ele estava sendo
viabilizado, não por outro motivo os personagens intelectuais, ou instruídos, em suas
narrativas sabem exatamente o que fazer para que essa República funcione de forma a
integrar os cidadãos, negros e brancos, ricos e pobres, pois mesmo com todos os poréns,
essa República permitiu que homens como ele, Nascimento Moraes, o conterrâneo
Astolfo Marques, dentre outros, ocupasse um lugar, apesar de negros, de importância
política e social; seu exemplo de vida poderia ser repetido, principalmente via educação
e, mais uma vez, esse tema é insistente nas páginas escritas por Nascimento Moraes,
muitos personagens que podem ter sua vida confundida com a do próprio intelectual.
77
Ascende na trama de Nascimento Moraes a imagem do intelectual orgânico
(GRAMSCI, 1982) nas figuras e Cláudio e João Olivier, negro e mulato que tomavam a
posição de porta-voz das necessidades e anseios da população pobre de São Luís.
Assim, a República pensada por nosso intelectual enseja toda essa questão problemática
da integração do homem negro e/ou pobre naquele sistema que ainda lhe jogava em face
que ser “negro” era ser inferior.
Uma cidade letárgica
Quando pensamos em São Luís, a partir da segunda metade do século XIX,
chegando aos primeiros anos da República fica quase impossível não pensar em uma
cidade com uma dupla configuração, uma imaginada (idealizada) e o seu contraponto a
cidade real, suja, desordenada que se firmava cada vez mais à medida que o processo de
urbanização se efetivava. Falamos em uma cidade ideal porque existiam leis que
denotavam esse desejo de se fazer da capital maranhense uma urbe condizente com as
grandes metrópoles nacionais e internacionais. Assim, é possível perceber essa imagem
ao estudarmos os Códigos de Posturas, eles mesmos carregados de um significado
paradoxal, pois tentam ordenar a partir da desordem, sem contudo alcançar resultado
satisfatório19, as representações da elite e as ações que foram implementadas para que
São Luís denotasse civilização e progresso20. A realidade, no entanto, era contraditória.
Parece-nos, e essa impressão é passada, sobretudo na leitura do conto O
Desmoronamento e do romance Vencidos e degenerados que a cidade apresentada, já na
aurora do século XX, ainda era aquela pintada três décadas antes pelo autor de O
Mulato, Aluízio Azevedo (1857-1913), nesta cidade de Nascimento Moraes “paralisia”
é a palavra de ordem, que define exatamente a situação econômica, cultural e social que
estava imersa a população tanto rica quanto a pobre. Apesar da pretensão de se
empreender ações de modernização no cenário urbano, a economia não permitia, assim,
os atores sociais parecem encenar uma realidade falseada, desmascarada por intelectuais
19
Para compreender como funcionávamos códigos em São Luís, indicamos a leitura da dissertação de
mestrado de Heitor Ferreira de Carvalho, Urbanização em São Luís: entre o institucional e o repressivo,
2005, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, UFMA.
20
Não queremos repetir aqui um debate já bastante discutido sobre as aspirações de desenvolvimento e
requite alimentadas pela política e elites ludovicenses, remetemos os leitores ao livro da Dra Maria de
Lourdes Lauande Lacroix, A Fundação Francesa de São Luís e seus Mitos, Lithograf, 2002, onde a autora
explora a emergência dos mitos da Atenas Brasileira e da Singularidade, determinantes para que se
projetasse uma imagem de uma São Luís culta, bela e requintada.
78
e pelas estratégias de sobrevivência adotadas pela população pobre e em sua maioria de
cor.
A situação econômica é sintetizada por Olivier que término do dia, após fazer
algumas contas, desabafa:
Um horror! Isto já não é viver, é vegetar! Dia a dia as necessidades
aumentam e as dificuldades surgem, como por encanto. O Estado, a
olhos nus, definha: a exportação é uma miséria... As fábricas foram a
pior das cafifas que nos podiam vir acagibar. Quanto capital empatado
e brevemente perdido! As fábricas!... (MORAES, 2000, p. 89).
E a lista de problemas calamitosos não cessava,
- E as companhias
- Outras desgraças que nós temos, via de meia-dúzia, em um enorme
estava, porque protegidas como são pelo governo, apesar dos maus
serviços que prestam,das falhas, de vez em quando, abertas nos
contratos, não dão lugar a que outros apareçam, nacionais ou
estrangeiros, mas que sejam sérias, úteis, cumpridoras das cláusulas ...
-Mas o governo podia chamá-las às contas.
- Qual contas! Qual carapuça! O governo está peiado e a peia do
preconceito é a pior de todas. O governo não pode ser contra a
companhia A, porque o seu gerente, o Senhor B, é um compadre do
primo do doutor C, que é um dos chefes militantes no partido
situacionista. Não pode contra a companhia D, é um dos seus
diretores, o senhor E, que é sobrinho do coronel F, que é compadre do
senhor G, que é presidente do Congresso, ou administrador do
mercado (MORAES, 2000, p. 89).
Parece-nos até que Olivier fala dos dias atuais no Maranhão, o que daria ao
pensamento de Nascimento Moraes um tom quase profético, não obstante, o caso é
outro, ocorre que Olivier desvela os motivos do letargo econômico no estado: as
relações cunhadistas, o favor e as concessões que acabam produzindo uma rede de
comprometimento entre meia dúzia de pessoas “de grande quilate” e que deixava a
região em tal estado de paralisia que tornava a vida da população mais difícil.
As cenas no cotidiano do comércio, da população são reveladoras desse período
que mescla algumas novidades que denotavam os novos tempos como automóveis
circulando, a iluminação elétrica, o bonde, mas, por outro lado, símbolos do atraso, as
carroças, ruas escuras, falta de sistema de esgotos, abastecimento de água. Na crônica a
seguir, uma síntese do que passavam os mais humildes na capital maranhense:
Em noites como a de hontem, tenebrosas e tristes, em que não se
distinguem os vultos suspeitos que passam, eu me deixo ficar em casa,
satisfeito com o enxuto que me protege da humidade que se extorce
79
doente nos casebres ruins, desolando e matando, de acordo com a
fome.
E ouvia vozes que subiam e desciam por necessidade, praguejando
contra o destino e contra a natureza, descalços, tropeçando aqui e alli,
no calçamento desigual, topando em cheio nas pontas de pedras e
esbarrando nas construções...
Pelas esquinas vejo brazas accesas como a que eu mantenho num
stender delicioso, e nas janellas das casas vizinhas também as
descubro.
Essas brazas, e não há negar, protestam, silenciosas, contra o horror da
noite, contra essa prisão fechada, a que são obrigados os trabalhadores
que esperam, à noite, divertir o espírito abatido, pagar visitas,
refastellar pelas praças em descontos das horas passadas no terrível
ganha pão.
Conversam as das janelas, e conversam as dos cantos. Que dirão
estas?
Que há naturezas humanas incorrigíveis, intransigentes em seus
hábitos e em seus desejos.
Que nada pode contra ellas a falta de carvão no gazômetro, e de
policiamento na cidade (A Imprensa, 19/04/1907).
A crônica mais uma vez reforça o culpado pelo atraso, pela fome e miséria que
assola os trabalhadores, impedindo-lhes uma boa alimentação, um descanso quente e
confortável e até a socialização ao fim do trabalho, pois tudo está imerso nessa
escuridão, sinônimo de decadência econômica e moral, pois que são as naturezas
humanas incorrigíveis, intransigentes em seus hábitos e em seus desejos que impedem
que a escuridão desapareça.
Em O Desmoronamento, o narrador utiliza o noivo escolhido pela família de
Vitorinha, como o ideal, o socialmente aceitável, por ter posses e ter passado anos na
Europa, logo, um rapaz civilizado, para revelar essa natureza incorrigível e seus vícios.
Armando é um mulherengo da pior estipe, mas por outro lado usa a própria convenção
social que o elegeu como um noivo ideal para troçar dos hábitos “indígenas” da elite
maranhense. Logo após o casamento, as máscaras caem e Vitorinha descobre a
verdadeira personalidade do esposo.
A educação de Armando, à europeia, era em São Luís, um simulacro
de educação. Armando bebia todas as bebidas alcoólicas. Passava as
noites em orgias nas casas das horizontais mais afamadas de S. Luís.
Depois das reuniões familiares a que comparecia, Armando entregavase em companhias de mulheres vadias, a excessos que, por vezes,
avultavam como escândalos. Ao dia seguinte, a meia voz, toda a
cidade sabia do caso, com todos os pormenores. Citavam-se os nomes
das “horizontais” que haviam tomado parte da farra! Era inútil negar
ou procurar estabelecer a balbúrdia, em torno do que se passava.
Aliás, Armando não escondia as suas diabruras. Acostumara-se nos
80
grandes centros de civilização a fazer tudo às claras. Mulheres,
prazeres, vinho, que havia de mais! (SANTIAGO, 1989, p. 238).
E quando interpelado pela esposa, Armando ria de sua inocência e citava nomes
de companheiros de vadiação, nomes insuspeitos. E Armando retrucava, entre doses de
escárnio, que era preciso que a esposa passasse uma temporada na Europa, a fim de
civilizar-se, pois lá suas práticas eram da maior normalidade. A boca miúda que
condenava Armando revelava o maior de todos os vícios da cidade, a hipocrisia e o
falatório.
Em uma crônica, publicada em 1902, Nascimento Moraes explora o espaço da
barbearia como um ponto de sociabilidade e um local onde se podia fazer, a pretexto do
asseio pessoal, aquilo que mais se gozava naquela cidade: saber da vida alheia. O
personagem principal é o barbeiro, olhos e ouvidos da cidade, sabia o que acontecia a
todos e não se furtava a oportunidade de pôr seus clientes em dias com as novidades da
vida oculta que não se conseguia esconder de fato. Nascimento Moraes não é nem um
pouco benevolente ao descrever o barbeiro e seu vil ofício, pois fica bem claro que a
barbearia era apenas uma fachada, seu verdadeiro ofício era dar conta de vida de tudo e
de todos, dramatizando, aumentando e jubilando-se de tudo.
... Quem o vê, com tezoira e pente, aparando cabelleiras ou raspando
cascos á escovinha, espichando o pescoço, piscando os olhos,
revirando-os, como que seguindo os movimentos do ferro, crê ter
diante de si verdadeiro typo de homem trabalhador, que não se
incommoda com o que se diz e se faz ao redor...
Emfim, sahe essa turma. O barbeiro descança e fuma. Não é mais o
homem de ha pouco, serio e impertubável. Agora é elle quem provoca
os freguezes. Atira-lhes tudo o que ouviu da conversa dos que
sahiram, aumenta mesmo alguma coisa por sua conta. Esbraveja, grita,
salta, deixa de barbear ou de cortar cabellos, para agitar o braço no ar
exprobrando e convencendo os freguezes que o olham, admirados da
sua fecundice... (A Campanha 27/05/1902).
O barbeiro encerra a analogia perfeita da teatralização de uma vida moralizante
que alguns naquela cidade queriam passar, mas quando a oportunidade acenava,
mostravam sua verdadeira face, assim como Armando revelava à esposa que a noite
nomes ilustres frequentavam as mesmas “horizontais” em sua companhia, no entanto,
era o que mais se exigia naquela sociedade, decoro, bom comportamento, reclamavam
alguns nos jornais dos bêbados na rua quando esse era um vício de todos, das roupas
“despudoradas” das mulheres, mas era preciso manter a imagem da cidade civilizada, do
81
cidadão que seguia a moral e os bons costumes, no entanto, à noite, todos os gatos se
faziam pardos. Essa hipocrisia não era perdoada por Nascimento Moraes, sempre
apontando algum vício, alguma prática torpe por debaixo das máscaras de requinte e
boa educação.
Quanto ao povo miúdo, em meio a essa teatralização do cotidiano não abria mão
de sua identidade, como já salientamos, vivia, especialmente no espaço da rua, e à noite
a sua negritude, o tambor, as danças, os pagodes tingiam as noites tristes na cidade
iluminada em muitos trechos à brasa de carvão, as festas religiosas também
configuravam um espaço de liberdade para que as identidades se revelassem e se
confirmassem, o povo gosta de festejar, sociabilizar com seus confrades e expressar-se
sem que os códigos de polidez controlassem seu instinto. Em Vencidos e degenerados
temos o relato de como se dava o festejo de Santa Severa, no adro de São Pantaleão;
Prolongam-se pela noite, como de costume os festejos da tarde,
aformoseados com a solene pompa deslumbrante do culto católico de
São Pantaleão. Havia iluminação no adro que a mais e mais se enchia
de gente – agradável promiscuidade de classe. A vida da festa,
ruidosa, intensa, lucrativa e cativante começava a manifestar-se:
animava-se a vozeria, movimentavam-se os botequins e as casas de
sorte... Mocinhas do bairro, muito modestas, muito simples, com a
garridice da beleza sem artifício passeavam, rosas nos seios, rosas nos
cabelos, aberta a flor do lábio num sorriso encantador.
Os fogos só se tocariam às onze horas, ou mais tarde. Por isso, muitas
famílias se retiravam, acabada a reza. Outras porém, que não se
aborreciam de esperar, pediam cadeiras nas casas vizinhas e
colocavam-se na parte superior do adro...
O bairro pode-se dizer que é da pobreza, e por isso ela é quem se
diverte nesses dias, mal vestida, em geral modesta e simples, mas
arruaceira armada de grossos cacetes e vozes ásperas para os moços
bonitos da cidade, como dizem os rapazes, em tom de mofa,
enfezadamente agressivos. A polícia é mal vista por lá, a cabroeira dos
outros bairros também não é bem recebida e, assim, quando menos se
espera, por causa de uma raparigota qualquer, que faceira se requebra
a um indivíduo estranho ali, o rolo fecha, a capueragem se desenfreia
e quem puder que se salve... (MORAES, 2000, p. 95).
A rua também é carregada dessa ambiguidade, pois em determinadas horas e
locais não é vigiada, e ainda que fosse, há lugares que nem a polícia se atreve a
frequentar, a rua torna-se, portanto o lugar em que as identidades podem ser vividas de
forma livre, sem que haja empecilhos. Nesta outra passagem o velho Bento dá conta a
Olivier sobre um pagode que ocorre todas as noites na esquina da rua em que habita.
82
- Se encontrasse uma casinha aqui, mudava-me! Isto parece tão
silencioso e pacato!
- É o que te parece. É fato que, de dia, estes quarteirões abrem apetite
à gente, mas à noite, Deus nos acuda! Esta quitanda ai da esquina põe
em reboliço a quadra! É um ponto de reunião dos peraltas e
vagabundos dessa cidade. A pinga deste português tem um sabor
especial, ao que me parece. De dia, eles se mantêm sem desordem:
gritam, vociferam, discutem; mas, depois que anoitece, é uma bulha
dos diabos... (MORAES, 2000, p. 86).
Dir-se-ia que nessa São Luís pintada por Nascimento Moraes o paradoxo faz
morada e “a noite todos os gatos são pardos”, sejam aqueles que se enquadram durante
dia para fugir do controle policial e social, sejam os que encenam uma vida correta, mas
que, sendo espíritos fracos, cedem aos instintos jogando-se nos prazeres carnais e da
bebida, e assim o teatro da vida é encenado na capital maranhense.
“É assim que se trata um cidadão?”
O parágrafo segundo do romance Vencidos e degenerados aponta quem
compunha a multidão que aguardava pela notícia da libertação: “Os que lá se achavam
naquela gloriosa manhã eram pessoas de diversas classes sociais, desde o funcionário
público e o homem de letras até artistas, operários livres, não faltando vagabundos e
desclassificados” (MORAES, 2000, p. 27).
Após a Abolição, e após a República, essas diversas classes seriam reduzidas a
uma única categoria, a de cidadão e este foi um problema para a sociedade brasileira
calcada numa estrutura hierárquica, racista e patriarcalista onde o respeito e a submissão
eram as prerrogativas para a relação entre as classes, sempre no sentido vertical. Desta
forma, diante da homogeneidade legal a sociedade busca novas maneiras de conservar
as hierarquias e distinções. Deu-se das mais variadas formas, desde o uso de aspectos
legais, até no relacionamento interpessoal nos interstícios da vida cotidiana, do modo de
se vestir aos hábitos de sociabilidade, do uso do poder econômico para mostrar aos
desavisados que a lei uniu, mas nunca misturaria aqueles sujeitos.
O Ocidente, ao longo de sua história, desenvolveu um ideal de cidadania plena
em que liberdade, participação e igualdade seriam direitos que estariam ao alcance de
todos. Possivelmente por tratar-se de um “ideal” não vejamos uma similaridade com a
prática. No entanto, faremos uso das bases do que seria o pleno exercício da cidadania a
fim de termos um modelo com o qual compararemos as faces que adquiriu a prática da
83
cidadania no Brasil, nas primeiras décadas do regime republicano, objeto da nossa
pesquisa.
Cidadania plena seria aquela que garantisse direitos civis, políticos e sociais.
Sendo que os dois primeiros direitos seriam necessários para a existência do terceiro.
Compreende os direitos civis o direito à vida, à liberdade, à igualdade perante a lei, à
propriedade. Já os direitos políticos dizem respeito à participação do cidadão no
governo da sociedade, que se resumiria no direito de votar e ser votado. Conforme,
José Murilo de Carvalho (2002), os direitos civis e políticos garantem a vida na
sociedade e a participação no governo, enquanto que os direitos sociais garantiriam a
participação na riqueza coletiva, por isso eles incluiriam:
O direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à
aposentadoria... Na ausência de direitos civis e políticos, seu conteúdo
e alcance tendem a ser arbitrários. Os direitos sociais permitem às
sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de
desigualdade produzidos pelo capitalismo e garantir um mínimo de
bem-estar para todos. A ideia central que se baseiam é o da justiça
social. (CARVALHO, 2002, p. 10).
Como percebemos facilmente, voltando-nos para os dias atuais, a cidadania
plena ainda é um ideal a ser alcançado e que os direitos civis e políticos ainda não
obtiveram o mérito de garantir aos cidadãos os direitos sociais que permitiriam enfim a
igualdade entre todos.
Assim como a cidadania se desdobra em três tipos de direitos, o cidadão também
é denominado a partir dos direitos que usufrui, ou não. “O cidadão completo seria
aquele que fosse titular dos três direitos. Cidadãos incompletos seriam os que
possuíssem apenas alguns dos direitos. Os que não se beneficiassem de nenhum dos
direitos seriam os não cidadãos” (CARVALHO, 2009, p. 9).
Quando se fala em cidadania ainda estamos presos à ideia que relaciona o
cidadão àquele que vota e principalmente àquele que tem posses. No Brasil, essa ideia
constrói-se ao longo de sua história de Estado independente, quando o voto torna-se
uma prática política constitucionalmente instituída. Isso poderia explicar o que
prevalece em muitos imaginários de que ser cidadão é apenas participar da vida política
do país através do voto e do apoio expresso ou da revolta declarada contra as ações do
governo e, possivelmente, foi um dos fatores que motivou Aristides Lobos, em carta
publicada no jornal Diário Popular do dia 18 de novembro de 1889, a afirmar que não
existia cidadão no Brasil, devido a uma suposta não participação popular no advento da
84
proclamação republicana21. Ideia já desconstruída por José Murilo de Carvalho em Os
Bestializados (1987), principalmente por existirem várias formas da prática cidadã a
qual nos voltaremos mais adiante.
Possivelmente um dos grandes entraves à concretização da cidadania, de forma
plena, seja o fato de não se tratar de um bem que seja doado a alguém, mas algo que se
constrói a partir da relação das pessoas com o Estado. Tal relação requer que os
indivíduos sintam-se membros do Estado, identifiquem-se como componentes de uma
nação. Torna-se, portanto, impossível pensar em cidadania sem que se reflita sobre o
nacionalismo.
Verificamos na história do Brasil que vários fatores atravancaram e até minaram
o nascimento de sentimento de nação na população. Desde o sistema políticoadministrativo implantado pelos portugueses até a prática autoritária do regime
republicano instalado no último decênio do século XIX.
Durante o período colonial (1530-1822) não se pode pensar nem em cidadania,
nem em nacionalismo. Não existia nem ideia, tampouco a prática da igualdade perante a
lei, quem tinha posses fazia uso da justiça como instrumento do poder pessoal. O
sentimento de unidade ou de patriotismo foi dificultado pela dinâmica da colonização
lusitana que ao findar22 deixou como herança ao Estado Brasileiro uma sociedade
escravocrata, latifundiária, pautada nos princípios do patriarcalismo subjugador de uma
grande massa de analfabetos. Conforme José Murilo de Carvalho,
Chegou-se ao fim do período colonial com a grande maioria da
população excluída dos direitos civis e políticos e sem a existência de
um sentido de nacionalidade. No máximo, havia alguns centros
urbanos dotados de uma população politicamente mais aguerrida e
algum sentimento de identidade regional. (CARVALHO, 2002, p. 25).
Percebemos que o nascente Estado brasileiro a partir do advento do Império, em
1822, tinha uma grande tarefa a realizar a fim de converter aquela população segregada
por hierarquias econômicas e distinções regionais em uma nação. Como tornar essas
pessoas em cidadãs quando o próprio processo de independência política foi nada mais
que um acordo entre a elite latifundiária, a Coroa Portuguesa e a Inglaterra?
21
Utilizamos o termo “suposta” porque existem outras versões que falam não apenas da participação
popular mas, também de que se sabia o que estava acontecendo, inclusive há nos jornais cariocas
testemunhos de figuras conhecidas como, por exemplo, Euclídes da Cunha.
22
Referimo-nos especificadamente ao fim do monopólio político e econômico da Coroa Portuguesa, em
agosto de 1822.
85
Murilo de Carvalho nos informa um dado interessante que pode justificar a
relação que se faz entre a prática cidadã e o ato de votar. Segundo esse historiador, a
Constituição de 1824 permitia que homens a partir de 21 anos com renda mínima de
cem mil réis votassem. Essa determinação ampliava bastante o número de votantes, pois
essa renda não era um valor exorbitante, qualquer homem com um ofício a possuía, e
para confirmá-la bastava um testemunho, uma declaração. Além disso, o fato de ser
analfabeto não interditava o votante (CARVALHO, 2002, p. 31-32).
O que deveria ter sido um avanço rumo a uma política liberal tornou-se
problema, pois o direito ao voto não foi acompanhado por uma política de
conscientização do votante. Eram em sua maioria pessoas despolitizadas e ainda
oprimidas pela justiça dos mais fortes. A fraude, o uso da força e até a venda de votos
tornaram-se lugares-comuns e parece-nos que até hoje deixou fortes marcas nos
processos eleitorais brasileiros. Em outras palavras, quando o votante era mais esperto,
fazia do voto uma moeda de troca, o período eleitoral tornou-se um momento de ganhar
dinheiro fácil e as eleições uma via de os detentores de maior poder de compra e
persuasão pela força um meio para chegar à administração do Estado (CARVALHO,
2002, p. 36).
Dessa forma, percebemos como a construção da cidadania no Brasil inicia-se de
forma distorcida do ideal. Inicia-se pela doação de um direito político que a princípio
pode subsistir aos direitos civis e sociais, o que ocorreu no período monárquico em que
existia a prática do voto (direito político). Partimos, no entanto, do pensamento de que a
confiança no Estado é determinante para garantir-lhe um relacionamento positivo com o
cidadão. Confiança que deveria ser garantida, principalmente, com a excelência dos
direitos civis e sociais, principalmente os sociais, pois trariam ao cidadão não apenas o
bem-estar, mas a própria consciência do seu papel dentro da política e funcionamento
do país.
A segunda via de acesso ao apoio da população seria via patriotismo. No
entanto, em um Estado em que cada província cultivava um regionalismo marcante,
muitas vezes se rebelando a fim de separar-se do restante do território do país, o
sentimento de patriotismo resumia-se ao ódio ao português. O motivo era o fato de não
só a economia, como a administração estar quase em sua totalidade em mãos lusitanas.
Tal quadro só mudaria com a Guerra do Paraguai (1864-1870) quando o ódio ao
estrangeiro vizinho foi partilhado pelos brasileiros para além das fronteiras regionais
(CARVALHO, 2002, p. 32).
86
No entanto, quando esse passo positivo foi computado em favor do patriotismo,
a construção da cidadania sofre um golpe com a Constituição de 1881 que aprova a lei
do voto direto, aumentando a renda mínima do eleitor para duzentos mil réis e
excluindo aos analfabetos. Essa lei diminuía a participação da população por duas vias,
não necessariamente pelo aumento da renda, já que duzentos mil réis ainda era um valor
que não chegava a ser exorbitante para a época, mas a comprovação tornava-se tão
desgastante que muitos desistiam, mas foi principalmente a exclusão dos analfabetos
que causou a diminuição do eleitorado a números extraordinários. Dos homens aptos a
votar, apenas 20% eram alfabetizados (Cf. CARVALHO, 2002, p. 39). Essa restrição
não motivou o Estado a implementar medidas para alfabetizar essa população, aliás, por
muito tempo a educação passou longe das preocupações do Estado Brasileiro.
Ainda uma vez, pensando nos dias atuais, cobra-se do brasileiro uma prática
cidadã mais contundente – tendo como parâmetro o ideal de cidadania – acusando-o de
apático, conformado, despolitizado. Mas, torna-se necessário e justo investigar as causas
desse comportamento. Mais uma vez voltamos ao processo histórico que nos mostra que
desde o momento da instituição das eleições, a partir do período monárquico, não só a
população, mas também o governo não estava preparado para o exercício da cidadania.
Se havia corrupção nos pleitos, existiam dois agentes, o que vendia e o que comprava, o
que persuadia pela violência ou ameaça e o que calava e aceitava. Não apenas os
direitos sociais eram ausentes, o direito civil também, a começar pelo direito à liberdade
e igualdade. Tratava-se de um Estado escravocrata. Além disso, o que prevalecia era o
direito à propriedade que podemos deduzir ser o latifúndio monocultor, principalmente.
O Estado mantinha-se nos alicerces do patriarcalismo e estava comprometido com o
poder privado.
Emília Viotti Costa destaca que, muito embora, parte dos colaboradores da
Constituição de 1824 se voltassem ao modelo do liberalismo e democracia europeus,
como França e Inglaterra, o regime escravocrata e a suspeição das elites em relação ao
imperador dificultavam que aqui existisse algo parecido ao sistema político da Europa.
Tornar os brasileiros iguais poderia desencadear algo parecido à Revolução Francesa
(1789-1799) ou a bem sucedida Revolução Haitiana (1791-1804), que foi influenciada
pela primeira, por exemplo. Aos integrantes da elite brasileira não era interessante um
exercício pleno da cidadania:
87
Atemorizados pelos aspectos da Revolução Francesa e da revolta de
escravos no Haiti, desconfiavam tanto do absolutismo monárquico
quanto dos levantes populares revolucionários e estavam decididos a
restringir o poder do imperador e manter o povo sob controle. Para
levar a cabo seu projeto encontraram sua principal fonte de inspiração
no liberalismo europeu (COSTA, 1999, p. 132).
O que a princípio pode parecer estranho é facilmente justificável, ao mesmo
tempo, em que o liberalismo defende a liberdade, o que prevalece é a defesa à
propriedade privada, a livre iniciativa em detrimento da ação estatal, o que estava
totalmente em acordo com os interesses das elites locais.
Outro princípio que era base do liberalismo, mas que no Brasil não teve espaço
foi o da liberdade individual que esbarrava no sistema escravocrata. Assim, cria-se uma
dualidade nos direitos civis, pois o direito à vida, à liberdade e à propriedade estavam
além do alcance deles, os escravos, que não eram considerados pessoas, mas coisas,
propriedade a qual o dono tinha todo o poder. Porém, o mais importante foi o que essa
prática operou nos imaginários. Enquanto os escravos estavam abaixo ou mesmo fora
do alcance das leis, pois eram controlados pela lei pessoal do seu dono, os proprietários
julgavam-se acima da lei uma vez que realizavam os mais variados tipos de maus tratos
com seus escravos, matar era apenas uma delas. O cidadão brasileiro é formatado nessa
perspectiva dual daquele que merece ser tratado com justiça pela lei e daquele a quem a
justiça não enxerga. Conforme Murilo de Carvalho,
A consequência da escravidão não atingiu apenas os negros. Do ponto
de vista que aqui nos interessa – a formação do cidadão-, a escravidão
afetou tanto o escravo como o senhor. Se o escravo não desenvolvia a
consciência de seus direitos civis, o senhor tampouco o fazia. O
senhor não admitia os direitos dos escravos e exigia privilégios para si
próprio. Se um estava abaixo da lei, o outro se considerava acima. A
libertação dos escravos não trouxe consigo a igualdade efetiva. Essa
igualdade era afirmada nas leis, mas negada na prática.
(CARVALHO, 2002, p. 53).
Essa negação ainda se faz presente nas práticas sociais brasileiras atuais, sendo
bem traduzida na fala “você sabe com quem está falando?”, mostrando que o que
prevalece é o privilégio em detrimento do direito.
Apesar de o movimento abolicionista significar um avanço em termos de
construção da cidadania o que de fato era ordem nas propostas liberais era adequar
aquela sociedade tal como estava estruturada ao processo de modernização que se via
nas grandes metrópoles capitalistas, como Inglaterra e França. A estrutura social e
88
econômica não sofreu muitas mudanças com o advento da Abolição em 1888, os
escravos foram libertos e deixados à própria sorte, a liberdade continuava sendo mais
retórica que real.
Entre as várias estratégias adotadas pelo liberto, representado no romance
Vencidos e degenerados, para sobreviver na cidade republicana, temos o recurso que
hoje a antropologia cultural denomina de malandragem. Optamos por analisar apenas o
personagem Zé Catraia, uma vez que nossa exploração do pensamento de Nascimento
Moraes não se esgotará nesse trabalho, outro motivo, e, este é o mais importante, são as
características desse personagem que nos permitem perceber sua trajetória entre a
ordem e a desordem e os modos com os quais ele enfrentava seus oponentes.
Logo no início do romance, Zé Catraia é apresentado como um orador popular,
qualidade explicitada na forma como ele debatia em público “quando falava unia a
palavra ao gesto, rasgava demoradamente o vocábulo, tinha tons e semitons com que
coloria as suas frases, que não se primavam pela pureza e precisão vernácula, não eram
também amostras de idiotismo e mau gosto literário” (MORAES, 2000, p. 45). Onde em
outros o tom soava como empáfia e artificialidade, em Zé Catraia fluía sedutoramente,
chamando atenção para si. Zé Catraia era mais um libertado naquela noite de 13 de
maio, no entanto a liberdade não significou vantagem, passara de consultor temido pelo
ex senhor a vadio, muito embora realizasse diversos misteres e fosse refinado sapateiro,
a imagem que sobressaía era do bêbado capoeirista e abusado, pois, além da oratória, Zé
Catraia tinha um “quengo” que lhe tornou temido por alguns, sabia da vida de todos,
dos detalhes mais escusos, especialmente dos graúdos, que, quando topavam com o
Catraia sentiam-se ameaçados.
Aquela sociedade de “homens livres numa ordem hierárquica”, Nascimento
Moraes soube descrever as marcas de distinção, uma delas no trajar. Os personagens
membros da elite apresentados no maior aprumo, os desclassificados, trabalhadores
menores e vadios em farrapos, sem camisa, pés descalços. Roberto DaMatta sublinha
que esse era um mecanismo dos altos estratos sociais para reagir à lei que igualava os
cidadãos:
Diante da lei geral e impessoal que igualava juridicamente, o que fazia
o membro dos segmentos senhoriais e aristocráticos? Estabelecia toda
uma corrente de contra hábitos visando a demarcar as diferenças e
assim, retomar a hierarquização do mundo nos domínios fundamentais
do mundo das relações pessoais, e dos elos de substância. E assim,
inventamos uma teoria do corpo, acompanhada de uma prática cujo
89
aprendizado é, até hoje, extremamente cuidadosa (DAMATTA, 1997,
p. 199-200).
Zé Catraia é descrito como “muito macilento, magro, olhos encovados, sujo”,
mas quando falava, saíam coisas do tipo “desculpe-me a ousadia ex-abrupta. Mas, eu o
aprecio, assim como apreciava seu pai...” (MORAES, 2000, p. 145).
Mas a figura de vadio tornava-o culpado, no episódio em que Zé Catraia é preso,
o policial quando chamado pelo senhor que se sentiu injuriado não perde tempo em
apurar o motivo da queixa, o desclassificado Zé Catraia, sem camisa, descalço, suado é
culpado e, portanto levado, como ele narra o corrido a Cláudio Olivier:
Zé Catraia deu um pulo à porta, olhou para um e outro lado, coçou a
barba, fazendo uma careta em que todos os músculos da cara se lhe
contraíram, e voltou à primitiva posição:
- Ontem à tarde o Machado mandou prender-me.
- O Machado?
- O Machado. Ele tinha razão e não tinha... Eu lhe conto a coisa
porque sei que ele é seu protetor... Ele subia a Rua de São Pantaleão
de braço com uma senhora. Eu descia, arrimado numa camoeca
furibunda. As janelas estavam repletas de moças... Eu, por um ímpeto
involuntário, acostumado naquele bom tempo da Travessa do
Precipício (o senhor não conhece essa época, mas pergunte a sua mãe)
eu gritei: Oh Paletó Queimado? Como vais tu, português?
- Prenda este homem- gritou ele. – Prenda este homem! – repetiu para
um soldado que passava... (MORAES, 2000, p. 149-150).
O motivo da raiva de Machado não estava na afronta, mas no temor que sentia
por Zé Catraia, este sabendo de suas origens, quando era o bodegueiro no Beco do
Precipício, o Paletó Queimado, era uma forte ameaça às boas relações que o português
mantinha e que custava seu sucesso social. Machado é uma personalidade fraca que
tudo faz para agradar de forma a não cair das graças da elite. Dessa forma, Machado
representa o inverso do Zé Catraia: este, apesar de genuinamente inteligente, de
conhecer fatos dos quais se tirasse proveito, obteria algum e talvez significativo lucro,
negava-se, sua escolha era impor sua presença, sua troça, importunar de fato, fazer com
que lhe suportassem a pessoa; ao contrário, Machado, enriquecido a golpe de sorte
tratou de cortar laços que pudessem relacioná-lo aos desclassificados, bajulou, se fez de
tapete e virou marionete naquele teatro encenado pela elite da cidade.
Roberto DaMatta diz que o herói na narrativa deve sempre ser um pouco trágico
(DAMATTA, 1997, p. 257), o trágico na trajetória de Zé Catraia é a sua própria
90
existência, marcada pelo nascimento no cativeiro e pelo estigma da cor, estava
condenado, pois,
obscuro, desprezado, sem amigos, sem recursos, levando uma
existência miserável, não era, contudo, o engravatado pelintra, que
ganha pataca e meia, que lhe rende um emprego fértil, e que não
conhece o ambiente onde vive. O imbecil do colarinho inveja a sorte
dos ricos, e curva-se ante a potentade de seu ouro. Zé Catraia não:
naquela água em que vivia mergulhado, sem princípio nem fim, não
invejava a boa fortuna dos graúdos, nem lhes beijava os calcanhares.
Ali, onde o viam, era dos poucos que sabiam e podiam desprezar os
miseráveis, rir do despudor hipócrita, fotografar a eterna comédia da
vida (MORAES, 2000, p. 155).
Fôssemos traçar um perfil, Zé Catraia encaixa-se no do perfeito malandro
elaborado pela literatura brasileira. Em Zé Catraia há pobreza e desgraça, mas não
mediocridade. Nele abundam a esperteza e a sagacidade, temos a própria estrutura
narrativa de Vencidos e degenerados que conta sua trajetória por meios de episódios
breves, quando se sente ameaçado, usa da zombaria, que junto à sagacidade são as
maiores armas dos fracos, e por fim, ele possui meios de ascender, mas recusa-se a usálos, nesse ponto Zé Catraia não é um herói sem nenhum caráter, e talvez essa seja a
contrapartida do autor quando cria um personagem símbolo da marginalização e
imoralidade, no período, não por seus predicados morais, mas pela sua condição étnica,
ao passo que o seu “oponente” na narrativa, o português dos arranjos, dos favores, que
se torna “alguém digno de deferências”, não por merecimento, mas por um mero golpe
de sorte e um pouco de velhacaria, desmascara a lógica do estado republicano e de
inclinação liberalista e excludente, pois diante dessas relações sociais não há como o
trabalho ser o mediador entre a riqueza e a pobreza.
Zé Catraia confia a Cláudio o segredo da riqueza de Manoel Machado, e por
isso, sabendo que aquele sujeito não é digno de nenhum reconhecimento e deferência
insiste em chamá-lo de Paletó Queimado. O uso de apelidos pelos populares pode ser
vislumbrado como uma forma de desnortear e desmascarar o histórico “você sabe com
quem está falando?”, pois o apelido pode revelar alguma torpeza no caráter o que
desmereceria o reconhecimento social ou, como reconhece o próprio Zé Catraia, poderia
levar o alcunhado à pilhéria e isso não fica bem a um graúdo, deixemos a molecagem
aos vadios e desclassificados!
A pergunta de abertura do nosso subcapítulo é respondida pelas ações tecidas
nos interstícios da ordem em São Luís. Quando a própria insignificância social é usada
como arma por Zé Catraia, percebemos que aquele cidadão de cor é tratado por vezes
91
com indiferença “Ora, quem dá importância ao Zé Catraia? Ninguém! Um bêbado que
anda encostado nas esquinas... Um pobre diabo, imbecil, cretino...”; outras com
desprezo, “Por que se consente este homem tomar o bonde? Não respeita ninguém!”; e
também com pena por ver nele também um débil “deixe o homem... é o Zé Catraia, um
pobre diabo”.
Uma modernidade que mata, moraliza e exclui
Nas enfermarias públicas de um hospital veem-se
horrores que a gente parece não encontrar entre
as pessoas que conseguem morrer em casa, como
se certas doenças só atacassem pessoas dos
estratos de renda mais baixos.
George Orwell
A questão sobre a qual nos ateremos neste item é a maneira como Nascimento
Moraes estabelece a percepção que a população pobre tem da modernidade como algo
ruim, que traz inclusive a morte. Para tanto, estudamos o papel do imaginário em torno
da Peste Bubônica nos primeiros anos do século XX.
No ano de 1904 a cidade de São Luís foi assolada pela peste bubônica. Dentre as
causas da deflagração estavam principalmente a higiene pública, que na falta ou
ineficácia de serviço sanitário e escoamento ocasionava o acúmulo de lixo, exposição ao
ar livre de animais mortos, esgotos, falta d’água... Esse cenário insalubre estava
presente principalmente nas ruas mais populares em torno da Praia Grande e no próprio
centro da cidade porque o pouco que havia de serviço sanitário ficava restrito às ruas
mais abastadas e ainda assim era um serviço precário. Não fica difícil perceber que esse
quadro estava propício para o ajuntamento de moscas, ratos, baratas, além do mau
cheiro e lamaçal, criando as condições perfeitas para a proliferação da peste bubônica
que logo se tornou uma epidemia.
Diante das condições sanitárias desfavoráveis, a peste se espalhava
com extrema rapidez fazendo inúmeras vítimas. A Junta de Higiene,
instituição pelas condições de salubridade local, reproduzia o mesmo
quadro de desigualdade que havia na cidade, pois enquanto os
membros das famílias mais ricas recebiam assistência médica, a
população pobre era deixada de lado. Quando esta última recebia
algum tipo de atenção por parte do poder público, era de qualidade
inferior sendo geralmente deslocada para um hospital de isolamento
improvisado que ficou conhecido vulgarmente como “sepultura em
vida”, dada às suas péssimas condições (MEDEIROS, 2003, p. 201).
92
O médico carioca, Victor Godinho (1862-1922), que fazia parte da Junta de
Higiene, fez em 1904 um relatório sobre a situação da peste, desde as possíveis causas
da sua deflagração até a situação da população, denunciando também as práticas que se
adotavam em benefício dos doentes da elite, desde o desvio das poucas vacinas que
chegavam até o aluguel de leitos no Hospital Português, principal destino dos
acometidos pela enfermidade. Parece até que George Orwell havia visitado São Luís
naquele ano, pois o que se via nos corredores e leitos daquele hospital eram
“verdadeiros horrores” (GODINHO, 1904). Percebe-se, portanto, que a camada mais
pobre sofria duplamente com a ideia da peste, primeiro estavam mais suscetíveis a
contraí-la, depois, uma vez vitimados, possivelmente tinham a ciência de que seriam
“sepultados vivos” na necessidade de serem internados. Encontramos publicados no
jornal A Campanha um conto de Nascimento Moraes, intitulado A Peste (1902), em que
ele trata desse temor popular pela peste, o título é A Peste e é dedicado “aos pequenos
leitores”. Neste conto, o autor explora o medo popular em torno da peste e também a
representação que se fazia da mesma, num jogo metafórico regado de ironia, a troçar do
temor desvairado e ao mesmo tempo elucidando uma concepção supersticiosa por parte
do povo.
A narrativa inicia introduzindo um lavrador a cavalo que interrompe a cavalgada
ao ouvir seu nome ser chamado três vezes, voltando para ver quem o chama depara-se
com a visão de uma velha que lhe pede uma carona:
A velha aproximou-se e ligeiramente subio como se tivesse vinte
annos. Abraçou-se ao cavalleiro que sem mais esperar esporeou com
força o animal.
Se o Cavallo d’ante corria, agora voava, o lavrador não distinguia
mais nada. Elle acostumado a montaria, teme desta vez.
-Aqui há coisa, disse elle, este Cavallo não corria assim. É esta velha
que está fazendo este Cavallo correr tanto! E desconfiado, empregou
esforços sobrehumanos e para o animal (MORAES, A Peste in A
Campanha, 10/10/1902).
Já o começo do conto nos faz lembrar aquelas antigas histórias que os avós de
alguns costumavam contar no fim da noite, geralmente após o jantar. Os ingredientes
desse conto, claramente mimetizando um conto folclórico, estão lançados: um viajante
humilde e supersticioso no meio do caminho depara-se com o sobrenatural, a referência
ao chamado do nome três vezes que, segundo a crença popular, é a morte chamando,
93
depois é feito um acordo entre ambos e o desfecho, que no conto de Nascimento Moraes
distancia-se do arquétipo popular para dotar de uma moral sobre a situação real que
vivia a cidade. Transcrevemos abaixo o desfecho da narrativa a partir do momento em
que o lavrador toma conhecimento que tem a Peste como companheira de viagem:
- O que velha?! Disse o lavrador benzendo-se e saltando
immediatamente.
- Sim, eu sou a Peste, mas não se assuste, que eu não lhe faço
mal.
- Desça do Cavallo é que é! Suma-se velha! (MORAES, A Peste
in A Campanha, 10/10/1902).
A velha convence o lavrador que não lhe fará mal e consegue chegar a seu
destino, descendo logo à entrada da cidade e prometendo que ali mataria apenas oito
pessoas e nenhum seria parente do viajante.
Depois de uma semana, a velha começou a sua obra; o lavrador de
casa, muito desconfiado, recebia as notícias d’um terrível mal que
lavrava. Ele calado, ouvia as narrações, tremulo porque via que já
passara de oito pessoas, já haviam enterrado dezesseis, fora os que
estavam doente.
O lavrador cada vez mais desconfiado, vendo o mal cahir-lhe em casa,
preparou-se para ir ao encontro da velha.
E de fato, sahindo da cidade depois de dois dias de ronda, próximo do
lugar onde a deixara encontrou-a.
- Então, você é uma dannada! Quantas pessoas já matou você!
- Eu!
- Quem há de ser mais?
-Pois você está enganado! Eu ainda não matei seis pessoas...
- E esses que tem morrido, velha?!
- Ah! Isso não é trabalho meu, é do medo.
A velhinha sumiu-se. (MORAES, A Peste in A Campanha,
10/10/1902).
Assim, temos um conto escrito numa linguagem de fácil compreensão aos que
Nascimento Moraes chama de “pequenos leitores”, adequando ao universo
representacional popular o tema da peste e da sua principal obra, a deflagração do medo.
O medo não era foro privilegiado dos pobres, a elite também era por ele flagelada, isto
porque havia todo um imaginário em torno da peste, no entanto, a motivação do medo
ganha nuances diferentes para o povo e para os mais abastados, como veremos mais à
frente.
94
No ano de 1904, na data de primeiro de janeiro, Raul Astolfo Marques (18761918) publica o conto A Opinião de Euzébia, também abordando a temática da peste e
sua relação com o medo, a opinião da liberta Euzébia é justamente uma interpretação
sobre o cenário da cidade e o medo, principalmente por parte da elite, da peste. O conto
de Marques é mais abrangente que o de Nascimento Moraes. Euzébia, ao encontrar-se
com uma ex companheira de cativeiro, que morava distante do centro de São Luís, no
bairro do Filipinho, faz um relato completo sobre a peste, desde a forma e a suspeita de
como se instalara, as medidas tomadas para combatê-la, da Junta Higiênica, até a forma
de “espantá-la” adotadas pela elite. Transcrevemos abaixo os principais trechos do
conto:
- Você ainda não viu mulher... Pois até os pobres dos ratos nascidos e
criados ao Deus dará nos canos do Ribeirão, não foram mortos de
surpresa?...Dique deram combate neles tal como se faz no Fandango
lá nas Barraquinhas. A Joana Pau-Bonito, na rua da Fundição, teve de
mudar-se às pressas para tocarem fogo na palhoça onde ela morava. E
no meio de tudo isso quem mais sofre, já se vê, é a pobreza... os ricos
se arremedeiam, não se importam que a farinha e o jabá subam de
preço... Era só que nos faltava, essa doença agora!
- E você não tem medo, minha comadre?
- Eu! Oras quaes! Então você não me conhece?Até me rio dessa
patacoada. Os brancos lá em casa vivem a toda hora às voltas com
crioulinha, o defumador da moda, quando nos tempos de bexiga
doutor Maia mandava que se queimasse breu e mais breu e a coisa foise. Hoje é um angu, uma misturada, que até parece que a gente pega a
cuja mais depressa... É um reboliço, senhora! ...
Pela cidade, a toda hora, é um barulho de carro de nossa morte, diz-se
por bocas pequenas que o governo só de carro paga a seu Baltazá cem
mil réis por dia! O doutor que veio do Rio disse que é borbonica, e
também pegou, mas também alguns doutores daqui, desses mais
velhos e mais aquilatados, e ainda um outro lá da terra de onde vem
portugueses para cá, que disseram lá pros meus brancos que é febre
passageira... E vive a gente nessa dipindura, metida nessa
bandalheira... Se isto continuar pego meus cacaréus, faço minha
trouxa, e vou empoleirar-me na minha terra, ou então vou a Vargem
Grande, só para me ver livre desse baculejo dessa patuscada macha!
- Pois eu não sabia, minha comadre, dessa doença.
- Não é coisa de maior, senhora, é andaço e mais nada. Eles são que
andam com tamanho espalhafato. São Sebastião há de ser por nós,
com as preces que estão de fazendo (MARQUES, Pacotilha,
01/01/1904).
Percebe-se nos dois contos que o medo anda matando mais que a própria peste,
no entanto a narrativa informa alguns detalhes de como fora enfrentada a questão pelas
classes, além de a doença estar diretamente relacionada com a cidade e a urbanização,
no conto de Nascimento Moraes, a peste instala-se logo no começo da cidade, em A
95
Opinião de Euzébia, o bairro do Filipinho, um pouco afastado do centro, ainda não se
tinha notícia da dita cuja. Os contos aproximam-se ao explorar o campo
representacional do povo, e pela linguagem adotada pelos escritores imitando as falas, o
que nos faz inferir um possível leitor dos mesmos.
Assim, vê-se, conforme informa Euzébia, a perseguição aos ratos e queima de
casas de palha, interpretada como um foco da doença, logo, aí temos um motivo salutar
para que o pobre tema a peste, a ação do Estado em eliminar os locais suspeitos de
infecção; acrescente-se a alta de preços dos gêneros alimentícios, uma das suspeitas da
deflagração da doença era a contaminação da carne vermelha (MEDEIROS, 2003),
assim a peste atinge a camada pobre em dois pontos estruturais que são a moradia e o
custo de vida, então, como não temer a tal doença que, confiando em “dona” Peste e na
Euzébia, nem estava matando tanto quando se dizia. Outro ponto para o qual os contos
acenam é para o espírito religioso do povo, o lavrador ao saber-se em companhia da
peste benze-se, Euzébia acredita no poder das preces a São Sebastião, enquanto os ricos
apelavam aos métodos da “moda”, o povo apegava-se ao sagrado, o que denota a
manutenção de uma identidade cultural, uma vez que esse sagrado não era exatamente o
oficial da Igreja, mas tendendo a um catolicismo popular (MEDEIROS, 2003).
O medo também é fomentado pela imagem que se tem da doença, e nesse ponto
os temores de pobres e ricos se assemelham. Carlos Henrique G. Medeiros, em sua
pesquisa sobre as representações coletivas sobre a peste no Maranhão, aponta o
imaginário coletivo sobre a ação aniquiladora da bubônica e do sofrimento que causava
ao corpo em que se instava. Dessa forma, com o peso do imaginário a suspeita de que a
carne estava contaminada e que ratos também eram os agentes contaminadores, as
notícias sobre a doença corriam rápido e contribuíam para o alarde generalizado que
tomou conta de São Luís. Conforme Medeiros,
A disseminação rápida dessas notícias acarretou tumultuo e pânico em
toda a sociedade ludovicense, porque não trazia boas recordações às
populações urbanas. Surto durante os séculos XIV, XVII e XVIII
assolaram os países europeus dizimando quase um terço de suas
populações. Além desse histórico de mortes em larga escala, há ainda
a própria manifestação sintomática da doença que representa grande
violência não só ao corpo, mas ao imaginário dos moradores da cidade
(MEDEIROS, 2006, p. 200).
Percebe-se que Nascimento Moraes, ao descrever a peste como uma velha
decrépita, pode estar fazendo referência à antiguidade dessa doença, vinda da Idade
96
Média e que se instalara numa cidade em pleno século XX, ou seja, uma crítica sutil às
condições urbanas que ainda não alcançara o ideal de progresso no âmbito de
salubridade, pois se a peste chegara a São Luís é porque o ambiente a atraía.
Juntando, portanto, o imaginário sobre a peste e as ações abusivas do Estado, o
tratamento dispensado aos doentes pobres, o coletivo popular de São Luís elaborou seu
próprio mecanismo de combate à doença em que se mesclavam doses de religiosidade e
receitas caseiras, estes elementos tornando-se mais confiáveis que os remédios e as
ações da moda que seduziam “os brancos”, conforme explicou Euzébia à sua comadre23.
Os jornais, principalmente o Pacotilha e A Campanha, publicavam receitas e
orações principalmente a São Sebastião24, que se tornou o principal advogado do povo
em sua defesa contra a peste. Carlos Henrique Medeiros atribui a escolha do santo ao
sincretismo religioso da população ludovicense, especialmente a pobre uma vez que
havia uma relação entre esse santo e o rei português D. Sebastião I25, cujo mito já era
consumido em forma de lendas, e pela semelhança em suas mortes, ambos crivados por
flechas (MEDEIROS, 2006, p. 204).
O apego ao sagrado também denota a crença da peste como a ação da mão de
Deus, expurgando os pecados dos homens, logo, as preces eram um meio de abrandar a
ira divina, que em sua justiça pouparia os inocentes; ao contrário do Estado que agia
com violência, queimando casas, expulsando os moradores ou que lhes dispensava um
tratamento desumano e que no entender do povo era ineficaz. Assim, esses mecanismos
se ajustam a uma estratégia de resistência ao progresso, que era representado pela Junta
de Higiene e seus métodos e ao mesmo tempo conformismo, pois, em se ater a
tradicionais práticas populares de enfrentamento a enfermidades epidêmicas, a
população aceitava que para ela não havia lugar naquela ordem.
A mulher, a moral e os bons costumes
23
Para um estudo mais profundo sobre as representações coletivas sobre a peste em São Luís,
recomendamos a leitura da monografia de graduação de Carlos Henrique Guimarães Medeiros. Remédios
do Mal Suspeito: Peste Bubônica na São Luís do século XX, Departamento de História, UFMA, 2003.
24
Nascido na França em 256, Sebastião foi um soldado do exército romano. Em 286, por ter sido
considerado traidor pelo imperador Diocleciano, devido defender os cristãos, foi julgado e condenado à
morte, que consistiu em ser atingido por flechas amarrado em um tronco. No século IV passou a ser
cultuado pela Igreja Católica como também pela Igreja Ortodoxa. Nos séculos XIV e XV o seu culto
alcançou o auge.
25
D. Sebastião I reinou em Portugal de 1557 a 1578.
97
Até o ponto em que estamos, percebemos a presença de um discurso civilizador
que tenta moldar o cotidiano na cidade de São Luís. Tal discurso age no sentido vertical
da sociedade, ou seja, da elite para o povo, e numa perspectiva política, da Europa
metropolitana às colônias do Novo Continente, ele torna-se um instrumento de poder a
favor dos privilegiados. Como dissemos anteriormente, o não enquadramento nos
padrões de comportamento é punido, e punição muitas vezes pesada, chegando ao ponto
de causar prisão. Não é por acaso que temos os Códigos de Posturas que dissertam
sobre que tipo de roupa vestir em determinados locais, consumo de álcool, limitação de
sons, etc.
Em O Processo Civilizador (1994), Norbert Elias explora a civilidade como
transformação dos costumes que vai de mudanças nos costumes da pessoa à mesa, no
momento das refeições, na forma de comer, em relação às funções corporais, tais como
espirrar ou tossir, passando também por regras de convivência entre adultos e crianças e
o estabelecimento de tabus ao longo do tempo.
O texto de Elias deixa claro que a história das boas maneiras está diretamente
relacionada às regras de comportamento social. As sociedades em dadas temporalidades
criaram normas e princípios com a finalidade de orientar as relações entre grupos e
pessoas. Esses princípios estabeleciam regras que deveriam ser seguidas e quando
infringidas acarretavam – e ainda acarretam – penalidades que configuravam uma
violência simbólica que vai da desaprovação até a exclusão daqueles que não as
respeitassem.
Um dado apontado por Elias e que é importantíssimo para a nossa pesquisa é
que, em relação aos costumes, as transformações que ocorrem estão relacionadas à
dinâmica das classes sociais. Quando a elite procura distanciar-se das outras classes
sociais cria-se novos padrões de comportamento que acabam sendo adotados ou
copiados por outras classes até que esses sejam internalizados ou naturalizados.
Por fim, o processo civilizador também age na personalidade. O autocontrole
passa a ser um indicador de um grau de civilidade. Na medida em que o homem se
educa, torna-se capaz de controlar seus impulsos e paixões mais primitivas.
Em A Dialética da Colonização (1992), Alfredo Bosi analisa o processo de
colonização do Brasil sob a égide do discurso hegemônico e civilizador dos
portugueses. Discurso esse que possibilitou a escravidão de índios de forma violenta,
entendendo-se aqui tanto a violência física quanto a simbólica e cultural.
98
Mas, esse processo se efetiva conjuntamente com as considerações do
pensamento científico no século XIX. A constituição da definição da cultura, da história
e da nação brasileira feita pelo Romantismo26, pela ação do IHGB27 e pelos discursos
etnocêntricos e higienista exemplificam a tentativa de executar a materialização desse
projeto civilizador no Brasil, Bosi nos fala de uma transposição dos valores e padrões de
comportamento da Europa para cá. Isso ocasionou reações desde a aceitação e
acomodação até a negação.
Os padrões europeus de comportamento, gosto e refinamento introduzidos de
forma mais efetiva com a vinda da família real portuguesa também permitiu a abertura
cultural ao pensamento europeu, uma vez que temos a instalação de um sistema de
imprensa que segue os moldes do velho continente. Assim, a imprensa não é apenas
veículo de notícias e debates de ordem política e econômica, ela também veicula
literatura, e textos com dicas de comportamento. No entanto, tal contato com a cultura
europeia deu-se de maneira unilateral, uma vez que apenas a elite tinha condições
econômicas de vivenciar esse estilo de vida, desde a estrutura da morada, o vestuário,
mobiliário até as formas de sociabilidade e isso torna cada vez mais nítidas as cisões
entre elite e povo, bem como os discursos que hostilizam e condenam o comportamento
popular qualificando-o principalmente como bárbaro. Neste sentido, elegemos o papel
da mulher como sintomático da ação desse processo civilizador que estabelece um
comportamento, um vestuário e uma submissão como os indicadores de civilidade que é
determinante para que se qualifique a mulher ludovicense como uma distinta dama ou
uma depravada. No romance de Nascimento Moraes Vencidos e degenerados fica
evidente a dualidade e o crivo social que a “civilização” estabelece quando nos detemos
representações que faz da mulher pobre e da rica.
Andreza Vital, liberta e mãe de Cláudio Olivier, trabalha do aluguel de serviços
domésticos, mora em um cortiço e é um exemplo quase canônico da imagem da mulher
pobre e de cor, não apenas em São Luís, mas no Brasil. Dentre os seus predicados que
26
O Romantismo foi introduzido no Brasil em 1833, seguindo a inspiração europeia, foi um movimento
artístico, político e filosófico que terminou por volta do ano de 1878. Seus principais fundamentos
teóricos são o egocentrismo, nacionalismo e ufanismo e a liberdade quanto à forma estética. Seus
principais temas eram a nação, sua origem, com o tema indianista, o egocentrismo centrado no
subjetivismo e temas sociais como a escravidão, a história, o modelo de vida urbano e idealização da
mulher. Encontrou expressão na poesia, no teatro e na prosa.
27
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) foi fundado em 1838 e tinha a finalidade de
preservar a cultura nacional, estimular estudos históricos, geográficos e demais estudos sociais referentes
ao Brasil. Fonte http://www.ihgb.org.br/. Consulta feita em 20/05/2013.
99
acenam para um indivíduo desprovido da moral burguesa do bom comportamento
consta desde seu modo de vestir que revela a voluptuosidade do seu corpo, o hábito da
bebedeira, o uso de palavrões na linguagem cotidiana e a falta de autocontrole. Seus
hábitos causam vergonha ao filho. No trecho abaixo há uma descrição do encontro de
Cláudio com a mãe causando alvoroço na rua:
E indo ele em uma linha reta, a partir do canto da Rua da Cotovia com
a de São Pantaleão, para o outro extremo da Igreja, junto a um
armarinho com que se davam sortes a cem réis, deparou-se-lhe
Andreza. A gritar, em desespero, pelo seu bilhete que lhe não deixava
tirara turba que ao redor se agitava.
Andreza trajava um vestido inteiro de chita ramalhuda, que ela
enrolava como toga, em volta do corpo metendo a ponta de baixo do
braço. Desconcertara-se-lhe o penteado na cabeça, corria-lhe o suor
pela fronte brônzea e pelo pescoço quase nu.
Brilhava-lhe no colo um esplêndido cordão de ouro que ela angariara
outrora e nas orelhas, grandes rosetas de diamante, de antigo gosto.
Andreza era alta e fornida. Sua estatura avultava e sua voz sobressaía,
com o seu timbre argentino. Andreza gritava e insultava os
circunstantes, empurrando-os violentamente, abrindo disputa com uns
e outros (MORAES, 2000, p. 96).
A confusão causada por Andreza não demora a atrair a patrulha policial, no
entanto Claudio impede que o policial se aproxime, afastando-o violentamente e com
isso chamando para si a atenção da mãe.
Andreza voltou-se, perturbada, com os olhos pasmos, a boca
semiaberta, os braços erguidos, como para amparar-se de uma queda,
e dá de cara com o filho, impassível, o olhar flamejante cravado nela,
firme como um soldado em linha, impondo o seu busto desenvolvido e
musculoso.
- Meu filho!
- Sim, o filho mesmo, a quem a mãe não cansa de dar desgosto.
- Estou bêbada, não é?
Cláudio sem lhe responder à interrogação, persistiu em olhá-la,
Andreza compreendeu-lhe a expressão do olhar, e não o suportando
mais, rompeu a multidão, que de momento se aglomerava no lugar, e
foi-se, cabisbaixa, na linha por onde viera Cláudio. (p. 96-97).
Quase ninguém sabia que Cláudio era filho de Andreza e isso causou uma
comoção naquele círculo, isto porque o jovem já gozava de algum prestigio, primeiro
por ser conhecido como o herdeiro intelectual de Olivier, depois por sua própria atuação
junto ao grêmio literário que fundara com os amigos, e agora que Olivier já morrera,
dava aulas particulares e tomava notas para comerciantes para garantir a subsistência.
100
Cláudio era distinto e ter sua imagem associada àquela mulher não lhe era favorável,
muitos amigos aconselharam-lhe a renegar a mãe como forma de não cair em desgraça
social.
Pode-se afirmar que Andreza constituía uma imagem paradoxal da mulher na
República, por um lado, era a mulher que se sustentava com seu trabalho, não precisou
de um casamento nem ficou presa a um marido por causa do filho, tinha liberdade de ir
e vir, pois não tinha homem que lhe mandasse; por outro lado, representava tudo o que
uma mulher civilizada não podia ser: exagerada no trajar, no falar e escrava da bebida.
Camila Ferreira S. Silva, em seu estudo sobre a moda que vestia as mulheres da
elite ludovicense assinala que a vestimenta e o comportamento em público eram um dos
principais sinalizadores da distinção de uma mulher e também um determinante do grau
de civilidade que a sociedade alcançara, isto porque foi a mulher quem mais teve sua
vida mais afetada por ter acesso às mudanças sociais e culturais naquele início do século
XX, circulando nas ruas, tomando bondes, indo ao teatro, frequentando os bailes, a
mulher se mostrava e, portanto, era um alvo fácil para os moralistas que não se furtavam
em queixar-se nos jornais, junto à Igreja se alguma mulher fosse vista trajando algo
considerado obsceno, o que estava em jogo era principalmente a família cuja base
estava na mulher ainda cunhada na imagem de esposa e mãe, ir contra esse papel era
ameaçar os pilares dessa instituição social. Havia, portanto, um discurso moralista por
parte de jornalistas e da Igreja Católica endereçado às mulheres da elite para que
cuidassem da maneira como se apresentavam em público.
Várias eram as colunas nos jornais trazendo informações e notícias do
exterior, de outras cidades, da própria São Luís, informando sobre a
renúncia dos padres e bispos etc. em virtude do uso de saias curtas e
decotes pelas cristãs, exemplo máximo das mudanças dos padrões de
vestir. O jornal O Diário de São Luiz informa que o reverendo na
missa paroquial em São Luís, não informando de qual paróquia,
concluiu as reflexões na missa do dia, tratando das “modas
modernas”, utilizando-se de um manifesto produzido pelos vigários do
Rio de Janeiro. O autor da notícia, chamando a atenção das leitoras
transcreve tal manifesto que se inicia de forma contundente: “Não
basta ser casta e honesta, é também necessário parecer ser”.
Continuando, menciona que se fazia urgente mostrar os
“inconvenientes”, as “más consequências” e os “gravíssimos perigos”
dos “abusos da moda”, com o único fim de combatê-lo (SILVA, 2013,
p. 72).
Não fica difícil perceber que a modernidade, aqui configurada na moda
feminina, representa agora uma ameaça aos padrões e valores da elite, pois o trajar
101
vulgar de uma mulher poderia pôr fim a sua reputação, ameaçar-lhe a possibilidade de
um bom casamento ou até igualá-la a uma desclassificada do povo, era preciso, portanto
admoestar essa mulher de forma que se mantivesse a distinção entre as classes.
Verifica-se que o discurso moralizador tolhe a mulher de posses a partir da
diminuição da mulher pobre, pois aqueles trajes da moda que revelavam partes do corpo
feminino podia ser uma novidade entre as damas, mas não entre as mulheres do povo. O
narrador de Vencidos e degenerados ao descrever as mulheres pobres não foge ao
cânone da sensualidade, elas estão sempre revelando seus corpos e provocando o desejo
nos homens.
Epifânia Bragança, uma mulata ainda nova, tipo sedutor, de fartas
ancas e braços roliços de gordos. Abrira-se-lhe o casaco azul e o
corpete, mostrando um pedaço do seio moreno, os cabelos enrolados
no alto da cabeça, deixava á vista a nuca admirável em que
artisticamente caíam dois pequenos cachos de cabelos graciosos; o
olhar úmido, voluptuoso e morno, parecia esconder uma efervescência
de gozos reprimidos (MORAES, 2000, p. 115).
A insinuação da nudez feminina demonstra um tipo de liberdade que só a mulher
pobre possuía, além de outro aspecto relacionado à bebida. Por outro lado, era um
símbolo de incivilidade, como anuncia Mary Del Priore ao afirmar que na representação
do corpo da mulata confundem-se o hedonismo, a sensualidade e a liberdade e a sua
contrapartida negativa, que é a relação com a ideia de barbárie e pobreza:
A melhor representação desses atrativos está no quadro A Carioca,
famosa tele pintada entre 1862 e 1863, por Pedro Américo... A ninfa
nua, longe de aproximar a pátria brasileira da tradição europeia,
caminhando na direção oposta à selvageria, remetia à pobreza e
bestialidade... A mulher de sangue misto, símbolo do hibridismo racial
na moda, nua como Deus a pôs no mundo, remetia não a “ordem e o
progresso”, mas ao desregramento sexual. Os longos cabelos escuros,
os olhos negros e a pele morena nada tinham a ver com a beleza
Greco-romana que encheu de nus depilados os salões de artes na
Europa. Desejável? Sim. Mas a Carioca era a imagem do atraso e não
do civilizado. E sua nudez continuava sinônimo de pobreza (DEL
PRIORE, 2011, p. 65).
No que se concerne à mulher da elite, não significava somente ficar mal falada,
mas chegar a ter uma liberdade tais quais as populares e subverter os limites que
separavam aqueles mundos. Sidney Chalhoub, ao estudar o cotidiano dos trabalhadores
do Rio de Janeiro, analisa a mulher pobre e sua liberdade em escolher parceiros, pois
102
era ela a responsável por sua vida, ainda que dividisse a alcova com um homem não
estava submissa a ele (CHALHOUB, 2006, p. 148). Este era o caso de Andreza e Daniel
Aranha, inclusive ela é descrita pelo narrador como sua “amásia”. É preciso acrescentar
que essa postura acarretava muitos transtornos às mulheres pobres, desde a violência
dos companheiros, o assédio de patrões e a vergonha dos filhos. A moral que associa a
mulher pobre a um objeto sexual a tornava uma vítima fácil dos aproveitadores que
tinham algum poder aquisitivo. No jornal A Campanha, assinada por “Os interessados”,
encontramos a seguinte denúncia sobre os abusos que sofriam as operárias nas fábricas
da cidade:
Começaram então para as famílias ali empregadas, manifesto
desgosto, porque anteviam o mau futuro que as esperavam. E não se
enganaram, como provam os fatos delictuosos que em seguida se
deram.
Na fábrica Gamboa um empregado de confiança da gerência, contou
que abusava vergonhosamente de diversas moças, deixando-as depois
cobertas de infelicidades e de baldões.
Na fábrica do Anil o procedimento do gerente Pinto é de todos
conhecido, pelo grande número de meninas prostituídas por elle, que
além de tudo éra e ainda é autoridade policial!
Na mesma fábrica tem um mestre que só se conhece por Alves, que as
trata tão brutalmente, que as obriga a estarem constantemente
recorrendo aos jornais, no sentido de o abrandar afim de que elle se
convença que trata com Sras (A Campanha, 10/10/1902).
Assim, com a imagem avaliada como convite sexual, e, tornadas submissas pela
necessidade de sobrevivência, essas mulheres usavam como recurso de combate aos
atos dos patrões, dentre outras ações, as denuncias nos jornais28.
O temor da elite de ter uma de suas senhoras mal faladas é representado por
Nascimento Moraes com a personagem Armênia Cruz, uma estrela caída que festejava
com os desclassificados da cidade como forma de afrontar a sociedade que a julgara
após um malogrado caso amoroso com um professor29. Após a humilhação que sofrera
e a condenação dos seus, Armênia entra no que é considerado o submundo, junta-se aos
“vencidos da vida” e passa a frequentar a casa de João da Moda, “príncipe dos
28
Sobre as estratégias e o cotidiano das mulheres operárias em São Luís, remetemos o leitor ao livro Nos
fios da trama, quem é essa mulher? Cotidiano e trabalho operariado feminino em São Luís na virada do
século XIX, 2006, EDUFMA, de Maria da Glória G. Correia.
29
Não nos aprofundaremos nos detalhes do “desmoronamento moral” de Armênia porque já tratamos
desse tema em nossa monografia, quando analisamos o romance Vencidos e degenerados e seus
personagens mais instigantes.
103
vencidos”, escolhendo entre os convivas um parceiro que melhor possa ser usado para
afrontar a digna sociedade,
E foi nesta tarde que ela amou Trancoso, o poeta popular, de que ela
muitas vezes ouvira falar e que lhe parecera, com a convivência, com
o trocar de ideias e conceitos, um homem de ação e energia com que
ela poderia afrontar a sociedade e esmagar a canalha que a perseguia,
que lhe estreitava um círculo de pretensões, qual bando de abutres a
esvoaçar em torno da carniça (MORAES, 2000, p. 141).
O exemplo de Armênia é muito ilustrativo, pois, ao igualar-se a uma mulher
popular, associando sua imagem à devassidão, à bebida e à degeneração moral, ela
mancha a própria imagem da sua casta, funciona como uma ponte que une de forma
incômoda o espaço que distinguia as mulheres da elite e do povo; é uma rachadura
naquele espelho de Narciso no qual a elite gostava de se mirar crendo-se uma classe
refinada, civilizada e portadora da moral cristã e burguesa.
“Às letras, cidadãos!”: o papel transformador da educação no cotidiano dos
marginalizados
Muitas vezes ao longo do nosso texto reiteremos que a educação foi mostrada
por Nascimento Moraes como um meio de os libertos alcançarem a cidadania de fato,
no entanto, na contramão desse projeto estavam as ações do governo para promover o
acesso público à educação.
Com a inauguração do Império, a educação, outrora veiculada pela Igreja por
meio dos padres Jesuítas, sofreu modificações a partir da segunda metade do século
XIX, momento em que já estavam inseridas nos debates políticos as ideias de cunho
liberal, portanto, criticou-se a educação e foram propostas reformas em que se pregava a
liberdade do ensino, a fiscalização do magistério, a possibilidade de abertura de escolas
de tendência positivista (REIS FILHO, 1974, p. 9-10).
No Maranhão, o ensino secundário era restrito a um único estabelecimento, o
Liceu Maranhense30, fundado em 1838, e atribuí-se essa pouca oferta ao fato de a elite
maranhense enviar seus filhos para estudar fora do Estado (ANDRADE, 1982, p. 49).
30
Apesar de ser a única escola secundária do Maranhão em detrimento da opção da elite em educar seus
filhos fora do estado, o Liceu era mais um reduto dos mais abastados. Sua importância foi tanta que em
1893 o plano de estudo dessa escola foi equiparado ao do Gimnasio Nacional, atualmente conhecido
como Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro. Esta equiparação exigiu uma reforma que aumentou a oferta
das cadeiras e ampliou o quadro das disciplinas, conforme Beatriz Andrade, passaram a compor o
currículo da escola 23 disciplinas: “Língua Portuguesa, Latina, Grega, Inglesa, Francesa e Alemã;
104
Em 1889, na passagem do Império à República a educação ganha novos
contornos, revelando a tendência que se salientou após a mudança de regime que era a
existência de “dois brasis”, um agroexportador e outro urbano das cidades voltadas para
a indústria e escritórios (SALES, 2009, p. 2). Isso significava que a educação deveria
ser implementada de forma a atender as demandas do Estado, especificamente,
econômicas e voltadas para a preparação dos jovens para o mercado de trabalho.
Demerval Savianni interpreta o período republicano como um retrocesso em
relação ao anterior. Isto porque, à medida que o Império deu um passo rumo a um
sistema nacional de ensino, a República, uma vez estabelecida, não corroborava esse
projeto, o que ocorreu foi uma descentralização do ensino que foi deixado a cargo dos
governos estaduais (SAVIANNI, 2008, p. 170).
Ednéia Regina Rossi argumenta que, apesar dos problemas relacionados à
educação, como estrutura da escola, condições de trabalho, a escola foi pensada para
atender a demanda do espaço urbano das cidades destinadas a toda a população (ROSSI,
2008, p. 148).
Em 1890, no Maranhão foi baixado um decreto que visava organizar a educação
em três categorias: primário, secundário e técnico. Coube ao Liceu Maranhense o ensino
secundário, foi criada também a Escola Normal (destinada a mulheres), além do
Conselho Superior da Instrução Pública e o Instituto Técnico (SALES, 2008, p. 4).
A partir da década de 1920 duas perspectivas educacionais são lançadas. O
movimento denominado “entusiasmo pela educação”, que defendia a abertura de mais
escolas, e o “otimismo pedagógico”, que focava nos conteúdos e metodologias de
ensino, os quais contribuíram para a divulgação da importância da educação e da
necessidade de se atender à população em geral. Conforme Ghiraldelli Júnior,
Durante a Primeira República, tivemos dois grandes movimentos de
ideias a respeito da necessidade de aperfeiçoamento de escolas:
aqueles movimentos, que chamamos de “entusiasmo pela educação” e
o “otimismo pedagógico”. O primeiro movimento solicitava abertura
de escolas. O segundo se preocupava com os métodos e conteúdos de
ensino. Tais movimentos se alternaram durante a Primeira República
e, em alguns momentos se complementaram (GHIRALDELLI
JÚNIOR, 2006, p. 32).
Matemática, Astrologia, Física, Química, Geografia, Mineralogia, Geologia, Meteorologia, Biologia,
História Universal, História da Filosofia, Desenho, Música, Ginástica e Esgrima. Com esse currículo, o
aluno egresso do Liceu era dispensando de qualquer outro exame quando se candidatava a uma vaga no
ensino superior do país” (ANDRADE, 1982, p. 52).
105
De forma geral, há uma tentativa de democratizar o acesso à educação. Beatriz
Martins de Andrade fala sobre como se deu a difusão do ensino no Maranhão, no
governo de Godofredo Viana (1923-1926):
Godofredo Viana cuida em promover a difusão do ensino por todo o
estado. Cria escolas urbanas e rurais e, numa tentativa de suprir a
grande demanda de matrículas na capital para a Escola Modelo
Benedito Leite, equiparou a esta os cursos primários de alguns
estabelecimentos, como os da Escola Normal Primária, os da escola de
São Luiz Gonzaga, os do Colégio Santa Teresa, Instituto Fernandes e
Educandário Maria Auxiliadora (ANDRADE, 1984, p. 37).
Apesar dessa ótica de que era necessário preparar o cidadão para melhor servir a
nação, no Maranhão revela-se dificultosa a manutenção das escolas. Os jornais locais
(Jornal O Zephero, Jornal O Ser) tomam a frente na denúncia da estrutura precária das
escolas. Segundo esses jornais, isto era fruto do pouco caso que o governo fazia da
escola pública primária. Ainda, esses jornais defendiam a importância das escolas
primárias na formação do cidadão e para o desenvolvimento da nação (SALES, 2008, p.
7).
Essa educação a serviço da nação refletiu-se na abertura de escolas noturnas e
cursos profissionalizantes. Segundo Sales, em 1922 registrou-se nesses cursos a
matrícula de 155 homens, a maioria com mais de 15 anos (SALES, 2008, p. 7).
Entretanto era a escola um mecanismo de formação de uma classe trabalhadora que
atendesse às demandas dos capitalistas, ou seja, massificada, para que se efetivasse a
devida exploração da força de trabalho, dessa forma as condições eram precárias, tanto
na estrutura física quanto no tipo de conhecimento ofertado (ANDRADE, 1982, p. 141),
algo que não passou despercebido por Nascimento Moraes.
Não obstante, a partir da leitura dos textos de Nascimento Moraes, desde os
literários até os artigos de opinião, percebemos alguns pontos de convergência em
relação ao cenário que apresentamos. Primeiro, a educação é apontada, por esse
intelectual como uma necessidade para se preparar o cidadão para cumprir o seu dever
com a nação, principalmente no que tange ao mercado de trabalho. Segundo, muito
embora houvesse essa expansão do ensino público, ainda era dificultoso aos mais
pobres manter os estudos, uma vez que faltavam as ferramentas básicas como livros,
material escolar; o que acabava levando muitos filhos de famílias pobres a não chegar
106
ao ensino secundário, procurando aprender um ofício, como sugeriu o conto e como
ficou implícito na fala de João Olivier, personagem de Vencidos e degenerados, quando
ele critica que a República não levou a escola ao povo.
Quando do centenário da Biblioteca Pública do Maranhão, em 24 de setembro de
1929, para a comemoração foi feita uma solenidade presidida pelo presidente31 do
Estado e outras pessoas de posição. Esse evento foi tema do artigo de Nascimento
Moraes, publicado no jornal A Tribuna, intitulado A Festa do Livro (26/09/1929),
referente a este evento, Nascimento Moraes critica o pouco caso dispensado à data e a
pouca repercussão que se lhe deu defendendo, por outro lado, que era necessária uma
festa à altura da importância simbólica daquele prédio. Em suas palavras:
A Festa do Livro dispensa galas fidalgas e austeras solenidades. É a
festa da intelectualidade. É a festa do pensamento. É a festa da
vibração mental dos povos cultos. É a festa da sentimentalidade que
dirigiu as civilizações, que levantou em aurifulgentes tronos, paixões
desvairadas, que criou visões augustas que se santificaram, que se
despiu a virtude, e desmascarou o vício. É a festa da razão que
constituiu altares a gênio e dignificou o caráter e a vontade. É a festa
da audácia que se sublimou alfurjas de criminosos e antros de
fraqueza e do desânimo.
A festa do Livro é a grande festa da evolução social e política dos
povos. É a que se viveu (MORAES, 1982, p. 249).
Em seu argumento, Nascimento Moraes lista os significados de um livro de
forma apaixonada, ao mesmo tempo faltou apenas chamar o diretor da biblioteca de
egoísta, uma vez que negara a devida celebração à data por sua importância à cultura e
por escondê-la a quem lhe era de direito: o povo. Conforme seus próprios termos,
Por que não apontar aquela data ao povo, o esplendor do seu
merecimento?Por que não espalhar por todos os cantos desta cidade
exemplos modestos do seu vasto catálogo para que o povo conhecesse
o valor desse patrimônio intelectual que ele representa e que lhe
pertence, e que se não é uma Universidade, é povo, motivo de maus
governos (MORAES, 1982, p. 250).
Nascimento Moraes questiona-se, a partir desta crítica, até que ponto os menos
abastados realmente tinham acesso à educação. Ao que parece, as leis e decretos
preocuparam-se em expandir o acesso, mas não se fixou no processo do ensino. Em A
31
O termo “presidente do Estado” é utilizado por Nascimento Moraes nesse artigo do jornal A Tribuna.
107
preta Benedita nos é feito um relato sobre como os alunos pobres que estudavam no
Liceu faziam para dar conta dos estudos e das exigências das matérias da escola com
livros e outras ferramentas de estudo. Particularmente em relação à dificuldade de se
adquirir livros, diz o autor através de seu personagem:
Ao tempo em que andei pelo Liceu quase todos os estudantes na
minha turma eram pobres, mas muito amigos uns dos outros.
Ao princípio do ano, depois que recebíamos dos nossos professores as
notas dos livros reuníamos para dividir as despesas. Em geral, cada
um se encarregava de comprar um livro.
Se havia necessidade de comprar um livro caro, como um dicionário
ou uma “tábua de Callet”, então o preço do livro era dividido por
todos. À medida que íamos avançando no curso, os livros iam
passando às mãos de outros estudantes pobres que se aproximavam de
nós. E, quando terminava o curso, os livros restantes eram divididos
pelos pobrezinhos, como nós, que vinham ao nosso encalço
(SANTIAGO, 1982, p. 207).
Esse sacrifício que se fazia para estudar também é apontado por Nascimento
Moraes em A vida de um homem de bem. Manuel Coruja, uma vez que perde a tutela do
padrinho, tem que trabalhar durante o dia, mas ele dá continuidade aos estudos durante a
noite, assim como o noivo desafortunado de dona Vitorinha, em O Desmoronamento,
que trabalha como caixeiro no comércio de São Luís e frequenta o curso técnico
provavelmente à noite.
A lógica capitalista de que nesse sistema todos têm chances de ascender
socialmente está implícita nesses textos, quando o autor coloca a educação como o meio
dessa ascensão. Todos os personagens que conseguiram se instruir alcançaram algum
sucesso profissional e venceram a pobreza; por outro lado, os que permaneceram no
analfabetismo ou que não chegaram a cursar nenhum nível escolar permanecem vivendo
de biscates, vendas, diárias, como é o caso da maioria das personagens de Vencidos e
degenerados. Além da questão econômica, a educação torna-se um meio de vencer, em
parte, a barreira do preconceito contra os populares, em parte porque, nos textos de
Nascimento Moraes, o preconceito racial é apresentado como um vício que faz parte da
cultura elitista e provinciana de São Luís.
Em Vencidos e degenerados, Nascimento Moraes mostra que Claudio Olivier,
filho de escravos libertos pela Lei Áurea e criado pela família de João Olivier, torna-se
um líder entre os jovens de São Luís, mesmo alguns de famílias ricas têm algum
respeito pelo jovem que segue os passos do pai adotivo. Por sua clareza de ideias e
108
intelecto, Cláudio consegue adentrar no seio da elite, é convidado aos bailes, às rodas de
poesia e só é expulso quando se envolve num romance escandaloso com uma mulher da
elite. Podemos vislumbrar, na figura de Cláudio, aquele jovem Nascimento Moraes que
tentava a todo custo mostrar seu valor intelectual diante da sociedade branca de São
Luís e que vendo nele um negro atrevido não apenas não o aceitava como o perseguia
na figura de Antonio Lobo.
Mas, como Nascimento Moraes denunciava, em seus artigos de jornais e através
de seus personagens, a educação era ainda um privilégio que custava caro. No conto A
preta Benedita, o narrador mostra como a negra se desdobrava nos mais variados
misteres para garantir não apenas o sustento, mas a educação dos filhos de sua ex
senhora financiando inclusive o curso de Direito em Recife ao filho mais velho da
senhora. O resultado dos esforços da Benedita aliado com a dedicação dos jovens
resultou que todos conseguiram vencer a pobreza advinda com a falência da família.
Assim, pela lógica apresentada nos textos de Nascimento Moraes, quem
conseguisse, ao custo que fosse, instruir-se conseguia vencer a pobreza imposta pelo
nascimento ou pela falência de famílias que experimentaram a riqueza nos tempos da
escravidão.
Como educador, Nascimento Moraes não cansava de reafirmar essa fórmula da
educação, instrução, que venceria as barreiras da marginalização, da pobreza; e sonhava
que ela vencesse também a barreira do preconceito, uma vez que, dando a oportunidade
aos negros, taxados pelas teorias raciais de cognitivamente inferiores, preguiçosos,
propensos ao vício, eles mostrariam seu potencial. Nascimento Moraes referia-se ao
povo como aquela entidade abandonada pelo sistema, que merecia uma chance para
mostrar sua capacidade, a chance da educação (MORAES, 1982, p. 273). Essa temática
da educação é persistente na pena de Nascimento Moraes, há uma série de artigos em
que ele faz a análise crítica da educação infantil, da relação escola e família, do papel e
desafios do professor, do sistema educacional, no entanto não nos deteremos aqui, pois,
a maioria desses artigos foi publicada na década de quarenta dialogando diretamente
com aquele período específico. Percebemos que a noção de educação defendida por
Nascimento Moraes é de viés Iluminista, caracterizada pela ideia de transformação do
mundo por meio de progressos teóricos e do homem sob a tutela da liberdade e não
subjugado ao tradicionalismo, fosse da religião ou da política. A educação daria enfim
autonomia do homem por centrar-se na concepção do indivíduo unificado e dotado das
capacidades de razão, de consciência e de ação (ZENI, 2010, p. 10).
109
Sobre a educação feminina, nas primeiras décadas da República não
encontramos muitas referências nos textos de Nascimento Moraes, encontramos uma
crítica em Vencidos e degenerados à educação que as moças da elite recebiam, que
consistia basicamente em prepará-las para o casamento e para o convívio social. Em
Vencidos e degenerados, por meio da personagem Amélia Rodrigues, Nascimento
Moraes retrata a mulher como uma moeda de troca, essa característica sendo apontada
como um dos fatores da decadência de São Luís. Quando Cláudio Olivier idealiza uma
vida conjugal com Amélia, fica claro esse papel e a crítica:
O que lhe prendia o espírito e o arrastava poderosamente para D.
Amélia Rodrigues era a plástica. Neste ponto discordava inteiramente
de João Olivier a quem jamais ouvira falar de mulher com entusiasmo
e admiração plástica e sim, muito se lembrava, que ele, muitas vezes
dizia “não lhe vale a formosura, com aqueles modos e aquela
gramática”.
Ele não ia por ai: - não lhe vale a gramática, não tem carnes. Pode ser
a mulher uma pérola: boa, carinhosa - dizia ele aos colegas- hábil sem
serviços domésticos, tocar piano ou bandolim, cantar e dançar, vestirse com elegância e bom gosto; se não tem carnes artisticamente
distribuídas, não vai, se não se impõe pela plástica, nãolhe vale a
educação nobre. Creio mesmo que há muitos homens que admiram na
mulher os lavores de uma educação distinta, e que sopor eles se
casem; mas, a meu ver, é que esse marido muito cedo começa a
demorar-se na rua! O homem tem mesmo certa vaidade de animal,
quando apresenta a mulher, aos amigos, ou a uma sociedade, quando
ela se salienta pela plástica. O homem se sente apoucado,
amesquinhado, ridículo até, quando alguém lhe apresenta uma mulher
fornida e cativante, e que tem de apresentar a sua, uma coisa alta,
magra, angulosa, chupado o rosto, o peito seco, as espáduas estreitas
(MORAES, 2000, p. 106).
A leitura mais latente que podemos fazer desse pensamento de Cláudio Olivier
seria a reafirmação da mulher enquanto objeto, um bem que se equivalia a um bem
material e a um passaporte ao marido para as rodas sociais e de boa convivência, ou
não. Por outro lado, vemos reafirmada a crítica do autor sobre a manutenção de algumas
práticas no que se refere à mulher da elite, que seria disponibilizada a ela uma educação
voltada para o desempenho de sua tarefa enquanto esposa, mãe e senhora distinta da
sociedade. O autor, que criticava a ignorância e a apontava como um dos motivos da
decadência da sociedade mostra como as mulheres, ao receber essa educação voltada
apenas para o trato social e familiar, estariam fora do contexto das discussões e
mudanças substanciais que São Luís carecia, por isso, essa mulher não agradava a
Olivier que acreditava e pregava as ideias como um veículo de transformação social
110
Não deixamos de perceber que, nos textos de Nascimento Moraes, essa educação
capaz de transformar a situação de marginalização e pobreza é a educação
instrumentalizada, possivelmente contra-argumentando com as teorias de Nina
Rodrigues que atribuía à raça negra uma relação com a degeneração. Como lembramos
anteriormente, Nascimento Moraes apresenta seus personagens como pessoas sagazes,
inteligentes, que sabem como lidar com as situações de cotidiano e até surpreendendo
muitas vezes. Foi o caso que mostramos em A preta Benedita, em que a personagem
título tinha muito tino para fechar bons negócios; Manuel Coruja que se saía bem nos
estudos, mesmo quando teve que revezá-los com o trabalho. Em Vencidos e
degenerados temos mais uma vez o caso do esperto Zé Catraia, o malandro que se
fingia de desentendido como estratégia para passar desapercebido entre os membros da
“boa sociedade”, mas que sabia de tudo a seu redor, tinha seus pensamentos, suas
filosofias e ria quando pensava na própria esperteza com a qual enganava os doutores.
Claudio Olivier faz uma análise bem interessante da personalidade de Zé Catraia. A
análise é longa, mas soa como uma síntese sobre os espíritos dos tipos populares e das
suas estratégias de sobrevivência em meio à marginalização e perseguição que sofriam:
Cláudio, parado no meio do beco, ouvia as últimas despedidas do Zé
Catraia. E indo ao rumo de casa, pensava no espírito daquele homem
do povo, ferino e alusivo, conhecedor das misérias de sua terra, da
hipocrisia de muita gente e o como dos capitais dos ricos. Aquele
homem era uma preciosidade... No seu abandono, desmerecimento,
nada lhe molestava a alma, nem lhe lacerava o amor próprio. Fazia
horas de carregação que vendia aos quitandeiros e, quando,
porventura, encontrava quem quisesse calçar bem, e lhe pedia uma
obra acabada com gosto, ele era um bom artista, e por isso estava à
altura dos tiques do ofício, sabia, como poucos, esmerar-se, e daquele
biombo sujo, sem luz e quase sem ar, onde trabalhava e morava em
companhia da mais completa desordem, saía uma obra que por dias e
dias, andava de mão em mão admirada à farta. E note-se: no fundo
escuro de sua miséria e do seu abandono não tinha inveja ao nome
mais brilhante da terra, pelo talento ou pelo capital. Porque, hábil
também ele o era, e ao capital dava soberanamente o maior desprezo
(MORAES, 2000, p. 154-155).
Destacamos deste relato a inteligência genuína de Zé Catraia, sua capacidade de
observação que lhe fazia saber a origem “dos capitais” e uma informação importante,
por “fotografara comédia da vida”, Zé Catraia conhecia bem os problemas da cidade,
porque ele, mais que os ricos que desconheciam, os vivenciava. Esse relato também é
um ponto de convergência com vários textos de Nascimento Moraes em que ele exalta a
111
capacidade do povo, criticando sempre que era preciso investir nessa classe,
investimento, obviamente materializado na educação, para que assim vencessem a
marginalização que sofriam.
A modernidade se faz “cama de Procusto” na República (Conclusão)
No dia 21 de março de 1907, Nascimento Moraes, em sua coluna do jornal A
Imprensa, na qual costumava publicar críticas literárias assinadas pelo pseudônimo Braz
Cubas, publica uma crônica sobre o choque que a chegada do telégrafo, então um
símbolo da modernidade, causa em um interiorano. Transcrevemos os principais trechos
da crônica:
Fulô Rico era um desses poucos afortunados da vida... Filho da
“Fazenda Nova”, ahi se creara... Nunca viera na cidade dos prazeres
da vida civilisada, nunca seus olhos de matuto se deslumbraram à
espectativa irradiante da azafama dos homens que se acotovellam na
concurrencia insessante dos centros populosos... Felizardo! Lia pouco
e escrevia menos... Não sabia se vivia num paíz republicano ou
monachico, não sabia mesmo quem mandava chover no Maranhão.
Mas oh! O Progresso! Num bello dia, dia fatal e de maus presságios,
por traz da “Fazenda Nova”, appareceram a turma dos trabalhadores
que rompem a matta e cavam a terra, para asseptarem os postes do
“fio que fala”, o telégrapho. Fûlo Rico, ao ouvir falar em semelhante
coisa, tomou tamanho susto que adoeceu. Foi obrigado a deixar sua
fazenda a procurar um médico... E assim, numa tarde formosa e clara
chegou a uma cidade... Mas imaginem os leitores, o pânico, o terror
quando à noite a luz elétrica sallitou, victoriosa nos fios, dando uma
belíssima paródia do dia! Ele que viera curar-se, recebe choque
duplamente maior. Fûlo não pôde resistir. Morreu dias depois de
assombrado... Leitor, verte commigo uma lágrima piedosa sobre mais
esta victima do progresso! (A Imprensa, 21/03/1907)
Utilizamos essa crônica para encerrar o que propomos refletir neste trabalho.
Fulô Rico não morava na cidade, mas já se podia ouvir o apito do trem do progresso no
interior, onde, conforme a crônica, a vida continuava tal qual era no Império. A questão
é: por que a ideia do progresso causou mortal assombro em Fulô Rico, porque fizera
dele mais uma vítima da sua expansão? A resposta aparece ao longo do nosso texto.
Fulô era mais um pequeno que não fora, de fato, tornado cidadão, ele personifica aquele
homem à margem, e nesse caso, conforme Nascimento Moraes, um felizardo porque,
passados oito anos de República, ele vivia sossegado, longe dos extremos do Estado,
sem ter seu sossego bolinado, mas, na vida há sempre um dia em que as coisas mudam e
112
a mudança chegara a Fulô, de forma abrupta e infere-se que foi essa brusquidão a agente
que ceifara a vida do nosso personagem. Brusquidão que modificava o cotidiano de
forma violenta, assim, como a Junta Higiênica fazia ao queimar palhoças na cidade de
São Luís, ou as Posturas que tentava a todo custo moldar o comportamento do povo na
rua, lugar que deveria ser democrático, mas que se fizera privado por ser regido também
por leis. Concordamos com Marilena Chauí em uma crítica à interpretação que Roberto
DaMatta faz sobre a rua como um espaço em que o cidadão vive sua cidadania,
Porque o “mundo da rua” não é senão “o mundo da casa” da classe
dominante que a rua é arbitrária e violenta. Não se trata apenas da
violência característica das técnicas racionais de disciplina e vigilância
e da legalidade – impessoalidade da dominação capitalista... É porque
a política brasileira é relação de tutela e de favor, e porque nela o
espaço público é tratado como espaço privado dos dominantes, que
não há cidadania no país... (CHAUÍ, 1986, p. 136-137).
Há também a imposição de uma nova moralidade, regida pelo capital, que
pretende domesticar o sujeito para que ele se torne “economicamente viável”, mas, em
São Luís a coisa não caminhava por esse rumo, as fábricas não obtiveram sucesso, o
comércio, devido à situação portuária da cidade, ainda era uma mola para a economia,
apesar de apresentar sinais de decadência, por outro lado, trabalhadores de rua tinham
seu cotidiano regulado pela polícia ou pelos “cidadãos de bem”, as mulheres seguidas
pela polícia e por moralistas, admoestando-as quanto a sua vestimenta, seu
vocabulário... Esse progresso viera se instalar em uma cidade que não estava preparada
para ele, especialmente em níveis de mentalidade, como constou Cláudio Olivier
durante uma festa da elite,
Estudava e aprendia com tudo o que se passava em volta de si. As
cenas de namoro e faceirismo, às vezes cheios de muito ridículo,
grotescas, divertidas, cômicas, ficavam nítidas no seu espírito
profundamente observador. Tais cenas examinadas com atenção
davam-lhe resultados inesperados, úteis, apreciáveis, e não raramente
filosóficos. Cláudio deduzia do que se passava nos bailes, princípios
de rotina, nos quais se prendia a sociedade em que ele vivia; antigos
defeitos de educação, vícios e hábitos inveterados de um meio que não
se modifica, os quais, a despeito da transformação de caráter radical
que se vai operando em todo o país, persistem e resistem a ação do
progresso e da civilização (MORAES, 2000, p. 159).
Assim, a resistência ao progresso não era unilateral, a elite presa a velhos hábitos
também não conseguia acompanhar aquela marcha, a questão é que era essa elite quem
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fomentava esse progresso, ela era um entrave para a solução da república,
principalmente porque não aceitava o fato de que habitava em um país mestiço. Na
urgência da elite e do governo em civilizar-se e ordenar, o progresso era imposto e
quem não se adequasse a esses novos tempos era mutilado, tal qual as vítimas que não
tinham as proporções da cama de Procrusto32, em São Luís a mutilação era moral,
espiritual e até de fato. O progresso viera causar uma revolução naqueles espíritos, pois
modificava seu mundo representacional e não oferecia uma contrapartida, prometera
cidadania, mas o que lhes trouxe foi a marginalização, a ação da lei e o porrete da
polícia. Neste sentido, os textos de Nascimento Moraes elucidam os desafios para a
realização do desenvolvimento da sociedade ludovicense no século XX e que
encontrava na própria estrutura social e política os entraves para a sua concretização, e
assim a cidade permanecia no letargo a sonhar ou iludir-se com uma realidade
imaginária e desmascarada pelo movimento cotidiano da população. A ideia de
cidadania, entendida pelo nosso intelectual como o usufruto de forma igualitária dos
direitos sociais e políticos, torna-se quase utópica porque ele mostra as variadas formas
de hierarquização, exclusão e principalmente a paralisia intelectual que não rompia com
velhos preceitos e preconceitos, nessa perspectiva cidadania seria sempre um sonho
impossível.
Restava, portanto, à população pobre resistir. A resistência de Fulô foi a morte,
a de Zé Catraia a troça, a de tantos outros, o conformismo que os tornava em “vencidos
e degenerados”.
32
Na mitologia grega, Procusto era um gigante que convidava viajantes a pousarem em seu castelo. Uma
vez prendendo esses viajantes, obrigava-os a deitar-se em sua cama. E na desproporção entre o corpo e o
tamanho da cama, Procusto mutilava ou esticava o viajante até que este estivesse proporcional à cama.
Assim, esse personagem torna-se um símbolo da intolerância e sua principal consequência é a violência.
Fonte<http://pt.wikipedia.org/wiki/Procusto>, pesquisa realizada em 15/01/2014.
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