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Sumário NÚMERO 03 - ANO 01 - ABRIL 2016 ENTREVISTA 04 CULTUR A - MÚSICA Conceição Evaristo Becos de Memória em Ouro Preto Linhas de resistência e escrevivência 21 GENTE DO CANJERÊ NOTÍCIAS 10 22 Leo Olivera E a música negra no mundo OLHAR SOCIAL ENSAIO 12 24 Mulheres da Vila Estrela Universo feminino permeia história e acervo do Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos MC Soffia Representatividade não tem idade • • • • Literatura feminina Representatividade Beyoncé celebra luta e poder negros Novos blocos afros Mulher negra: tempo de manter a resistência e se empoderar MATÉRIA DE CAPA CULTUR A - LITER ATUR A 14 27 Carisma e Determinação Gaby Amarantos conduz sua trajetória artística com passos firmes NEGÓCIOS 18 POESIA Só por hoje vou deixar o meu cabelo em paz CULTUR A - COMPORTAMENTO Mulheres negras Empreendedorismo e resistência 28 CULTUR A - TEATRO ÁFRICA 20 31 Oduduwá A boneca crespa De combatentes a cidadãs As mulheres guineenses na luta pela emancipação Ano 01 - Edição 03 Abril de 2016 ISSN 2447-1143 - PUBLICAÇÃO ONLINE Valorização e promoção da cultura africana e afro-brasileira Expediente A REVISTA CANJERÊ É UMA PUBLICAÇÃO QUADRIMESTRAL DO INSTITUTO CULTURAL CASARÃO DAS ARTES E DA TRADIÇÃO PLANALTO PRODUÇÕES VISUAIS E EDITORIAIS LTDA. FOTO DA CAPA Gaby Amarantos Foto: Bruna Brandão 2016 INSTITUTO CULTURAL CASARÃO DAS ARTES PRESIDENTE Marcial Ávila PRESIDENTA DE HONRA Rosália Diogo VICE-PRESIDENTA Virgínia Marques EDITORIAL DIRETORA DE REDAÇÃO Rosália Diogo EDITOR EXECUTIVO Ricardo S. Gonçalves EDITORA Sandrinha Flávia REPÓRTERES MATÉRIA DE CAPA Janaína Cunha Adriana Borges, Janaína Cunha, Moisés Mota, Robson Di Brito e Samira Reis CARISMA E DETERMINAÇÃO Gaby Amarantos conduz sua trajetória artística com passos firmes PROJETO GRÁFICO Leonardo Oliveira e Maria Luiza Viana ILUSTRAÇÃO Leo Ramaldes, Marcial Ávila e Maria Luiza Viana FOTOGRAFIA Ricardo SG, Rita Peixoto e Sol Brito REVISÃO Paulo Roberto Antunes e Versão Final COMERCIAL PUBLICIDADE Tradição Planalto (31) 3226-2829 CONSELHO EDITORIAL Carlos Serra UNIVERSIDADE EDUARDO MONDLANE - MOÇAMBIQUE Edimilson de Almeida Pereira COLABORARAM NESTA EDIÇÃO Aline Vila Real, Brígida Alvim, Bruna Brandão, Célia Gonçalves Souza, Cristiane Sobral, Davidson Reis, Du Pente, Etiene Martins, João Milet Meirelles, Joyce Fonseca, Nereu Júnior, Netun Lima, Patrícia Godinho Gomes, Raça Mundi, Rafaela Pereira, Roger Deff, Rubem Filho e Virgínia Marques UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA - BRASIL Eduardo de Assis Duarte UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - BRASIL Filinto Elísio ROSA DE PORCELANA EDITORA - CABO VERDE Agradecemos a todos da equipe Casarão das Artes e parceiros do Brasil e do exterior que aceitaram o desafio de construir essa importante fonte de informação e pesquisa. Editorial Empoderar é preciso Esta edição da Revista Canjerê destaca o crescente protagonismo da mulher negra. Para materializar o nosso propósito, iniciamos a busca de colaboradores com experiências em temas relacionados com esse universo. E o resultado é fruto da motivação e da paixão dos envolvidos nessa construção. Seguramente a terceira edição da Revista Canjerê pode ser traduzida em uma palavra: Empoderamento. A acepção desse termo reflete muito bem o momento atual. Várias mulheres negras são símbolo de resistência e militância. Elas defendem os seus direitos com garra, força e resiliência. Essas guerreiras empoderadas, argumentativas e cheias de atitude abordam temas veementes, como hipersexualização, relacionamentos inter-raciais, estética negra, violência contra a mulher, machismo, feminismo e mercado de trabalho. São muitas questões que permeiam o dia a dia das mulheres negras. Mas elas não querem ficar só no discurso: propõem a busca por soluções e resultados concretos. Estrategicamente traçamos uma linha do tempo com mulheres de diversas gerações para apresentar nesta edição. A dona Maria Marta Martins, de 73 anos, é o destaque da matéria “Mulheres da Vila Estrela”, grande matriarca do Aglomerado Santa Lúcia. Conceição Evaristo, 69, é uma das mais importantes escritoras negras da atualidade. A autora foi entrevistada na cidade de Ouro Preto (MG), lugar marcado por forte influência da cultura de matriz africana. A matéria de capa traz a cantora Gaby Amarantos, 37, mulher negra e nortista que enfrentou o racismo e a ditadura dos padrões de beleza para se tornar referência musical no país. Como exemplo de uma geração mais recente, destacamos Mc Soffia, 11. A revelação infantil no rol das mulheres empoderadas é a mais nova representante da militância negra no campo musical. Ela é a comprovação de que a luta é perene e vale a pena. Para além das pautas, as próximas páginas refletem a nossa diligência para oferecer ao leitor um conteúdo que busca registrar a história artística e cultural da população afro-brasileira, do ponto de vista de quem a vivencia no dia a dia. Então aí está uma produção especial para você conhecer o fascinante universo das atrações de matriz africana e afrodescendente. Afroabraço e boa leitura! Ibrahima Gaye CENTRO CULTURAL CASA ÁFRICA - BRASIL - SENEGAL Maria de Mazzarelo Rodrigues MAZZA EDIÇÕES - BRASIL Marcial Ávila CASARÃO DAS ARTES - BELO HORIZONTE/MG - BRASIL Maria Nazareth S. Fonseca PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS - BRASIL Olusegun Michael Akinrulli AV. BERNARDO MONTEIRO, 414 - SANTA EFIGÊNIA 30150-280 - BELO HORIZONTE/MG - TELEFONE: (31) 3273 0601 [email protected] INSTITUTO YOURUBÁ - BRASIL - NIGÉRIA Sandrinha Flávia Patricia Gomes (Guiné-Bissau) UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - BRASIL Rosália Diogo CASARÃO DAS ARTES - BELO HORIZONTE/MG - BRASIL EDITORA RUA LINDOLFO DE AZEVEDO, 192 - SL. - NOVA SUÍÇA 30421-265 - BELO HORIZONTE/MG - TELEFONE: (31) 3226-2829 [email protected] Foto: Bruna Brandão R EVISTA CANJ ERÊ - 3 E n tre v i s ta Conceição Evaristo Becos de Memória em Ouro Preto Linhas de resistência e escrevivência “E como a escrita e o viver se con(fundem), sigo eu nessa escrevivência.” Foto: Joyce Fonseca Moisés Mota GRADUANDO EM JORNALISMO PELA UFOP, É COLABORADOR DO CASARÃO DAS ARTES E MEMBRO DA ACADEMIA DE CIÊNCIAS E LETRAS DE CONSELHEIRO LAFAIETE - MG 4 - R EV ISTA CA NJERÊ Em novembro de 2015, a escritora Conceição Evaristo esteve em Ouro Preto para participar do Fórum das Letras – evento literário promovido anualmente pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). O encontro da escritora engajada na luta do povo negro com a cidade que fora berço da escravidão negra no Brasil foi um momento histórico. Maria Conceição Evaristo Brito nasceu em 1946, na extinta favela Pindura Saia, em Belo Horizonte. A escritora cresceu rodeada de aprendizado. Na infância, quando percebeu que já sabia ler, dava aulas particulares para seus vizinhos, reforçando o que aprendeu desde cedo: “compartilhar suas vitórias e conquistas”. A época escolar não foi fácil, mas sua mãe sempre foi grande incentivadora dos estudos. Às vezes, ia para a escola sem o café da manhã, mas nunca sem o caderno. Em 1972, a favela Pindura Saia não existia mais. Evaristo lembra como se fosse hoje a derrubada da sua casa. “A gente desmanchou o barraco para levar as tábuas e os tijolos, e eu segurei o meu quarto até a última hora. Ele foi o último cômodo a ser derrubado”. Os ventos mudaram de direção. Um ano depois, ela se mudou para o Rio de Janeiro. Na capital fluminense, Evaristo se formou em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez mestrado na PUC/Rio e doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ). Com o apoio do Ministério da Cultura, ela lançou seu primeiro livro Becos da Memória em 1988 – ano do centenário da abolição da escravatura. A partir daí, vieram os lançamentos do romance Ponciá Vicêncio, em 2003, Poemas da recordação e outros movimentos, em 2008, e Insubmissas lágrimas de mulheres – uma coletânea de contos publicada em 2011. Caminhando pelos Becos dos Apaixonados no Centro de Ouro Preto, Conceição diz olhando para as paredes de pedra da cidade: “É claro que isto é trabalho escravo. Eu fico vendo assentar pedra por pedra. E será quanto tempo que levava uma construção dessas? Eles deveriam trabalhar noite e dia para esta coisa ficar pronta. Sem falar que apanhavam e passavam fome...”. REVISTA CANJ ERÊ - 5 Foto: Joyce Fonseca ““A nossa escrevivência não pode ser lida como história para “ninar os da casa grande”, mas para acordá-los de seus sonos injustos.” Assim, nesse cenário de beleza e dor, a Canjerê iniciou uma conversa com Conceição Evaristo. Como é seu processo de escrita no dia a dia? Eu não escrevo todos os dias. Na maioria das vezes, eu passo até tempos sem escrever. Sente falta? Muita, muita! Por exemplo: agora eu estou me sentindo mal, porque tenho produzido somente textos críticos e palestras. Saio para um lugar; saio para outro. E eu preciso parar para escrever. Estou com dois romances, um livro de contos e um de minicontos iniciados. Cheguei à conclusão de que, para eu escrever, tenho que parar com essas coisas que eu ando fazendo. Não tem condição. Enquanto eu estou conseguindo produzir, preciso produzir. Você acha que a Academia Brasileira de Letras (ABL) representa a literatura afro-brasileira? Sim. Quando você pensa que Machado de Assis foi o fundador da Academia, eu acho que já é uma representação da parcela negra brasileira, pelo menos no momento da fundação. Hoje, por exemplo, que escritor negro nós temos lá? Temos o Proença. Agora, que mulher negra tem na academia? Desconheço. Mas também não sei quais são os propósitos da ABL. Se forem os de também apresentar a diversidade da literatura brasileira, então falta ainda uma representatividade no que tange à autoria de mulheres negras. O que você está achando das produções literárias afro-brasileiras mais recentes? Acompanhando este ensaio fotográfico, a gente vê que Ouro Preto foi uma cidade construída com a força dos povos escravizados. Como é chegar atualmente a Ouro Preto, sendo uma escritora negra reconhecida e sabendo desse histórico da cidade? Eu acho que deu um grande salto em termos de valorização e visibilidade desses textos. A gente não pode perder de vista essa perspectiva histórica. Os Cadernos Negros foram fundamentais. Para isso, muitos escritores e escritoras passaram primeiro por publicações nos Cadernos Negros. Outro aspecto relevante nesse projeto histórico é o acesso de estudantes negros à universidade. Essa relevância não é só na questão da literatura, mas de um modo geral. Muitas mulheres, negras e brancas, também estão trabalhando com os meus textos. Eu acho que ainda não chegamos a um estágio que a gente mereça. Se a universidade pretende ser universal, tem de caber ali toda a cultura, todos os processos criativos e toda a diversidade no mesmo patamar e com a mesma valorização. Olha: a primeira sensação que eu tenho é que estar em Ouro Preto é estar no meu lugar; é como voltar e recuperar um território. Ouro Preto é um espaço de memória negra. Pensar a construção desta cidade é pensar o sangue negro; o sangue escravo que está aqui derramado. Eu acho que nas ladeiras de Ouro Preto escorrem lágrimas; lágrimas de sangue. Hoje a cidade tem esta beleza e é considerada patrimônio cultural da humanidade, porém, quem construiu esse patrimônio? Foram justamente os sujeitos que tiveram negada a sua humanidade. Então me emociona muito e, ao mesmo tempo, dá a certeza de que Ouro Preto, não só Ouro Preto, mas a nação brasileira é minha. Nada que o Estado brasileiro fizer, como as ações afirmativas para compensar o que foi feito aos 6 - R EV ISTA CA NJERÊ africanos aqui escravizados e seus descendentes vai saldar essa dívida histórica. É pouco ainda... A dívida é eterna. Ontem uma menina daqui estava me dizendo de um bairro pobre onde está justamente a população mais vulnerável, sem nenhuma condição econômica. É a população mais vítima e a mais produtora da violência pela questão da droga. Ninguém percebe que isso é consequência de um processo histórico, de um processo de escravização e da luta de classes. E aí eu fico pensando: será que essas pessoas pensam que esta cidade é delas ou dessa juventude que está lá e hoje está vulnerável ao tráfico e à violência? Quem desses jovens tem a perspectiva de fazer uma faculdade aqui? Quem? “Estar em Ouro Preto é estar no meu lugar; é como voltar e recuperar um território.” REVISTA CANJ ERÊ - 7 C a n je rê Casarão das Artes Nossos encontros de afrocultura Equipe Casarão das Artes A Revista Canjerê agrega pessoas e aponta para novas ações Quilombo Urbano foi destaque na Feira Nacional de Artesanato O dia 5 de dezembro de 2015 ficou marcado para a equipe do Casarão das Artes, os parceiros, colaboradores e demais interessados em culturas. A Revista Canjerê lançou a sua segunda edição. O local foi o mais original e propício – Centro Cultural Casa África. As dezenas de pessoas presentes propuseram vários temas para serem analisados e incluídos nas próximas edições. Este é o objetivo da Revista: agregar pessoas para fortalecer a mídia negra. A atração cultural ficou por conta do profissional de comunicação e Dj Du Pente. Ele embalou a todos com um repertório recheado de música negra. A grife Chica da Silva e o Instituto Cultural Casarão das Artes executaram o projeto “Quilombo Urbano” – uma representação da arte e do artesanato negros de Belo Horizonte. O evento aconteceu durante a 26ª Feira Nacional de Artesanato realizada em dezembro de 2015. A experiência da grife em feiras permitiu que os idealizadores percebessem a ausência de negros ou de uma cultura que efetivamente os representasse na feira. A contrapartida dos proponentes para a obtenção de um espaço mais amplo no local foram as oficinas. Os empreendedores Virgínia Marques (Black Vika), Cida Santos (Nêga Badu) e Énia Dára (Feira Ébano), além de Etiene Martins (Mazza Edições) e do artista Camilo Gan (Bloco Afro Magia Negra), promoveram oficinas e ministraram palestras, tudo com a coordenação de Marcial Ávila (Chica da Silva). E todas as marcas fizeram um cortejo pelos corredores da feira mostrando suas produções. Bairro Concórdia festeja a coroação da Nova Rainha do Congado De origem africana, o congado é uma manifestação cultural que mistura cultos católicos e africanos. As guardas de congado nasceram com o povo Bantu principalmente nas áreas do Congo, de Angola e de Moçambique. E essa tradição se mantém viva no bairro Concórdia, em Belo Horizonte. O 8 de dezembro de 2015, Dia de Nossa Senhora da Conceição, está marcado por um momento histórico para o congado mineiro: Isabel Casimira foi coroada a nova Rainha da Guarda de Moçambique e do Congo Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário. Escolhida pelos membros da comunidade, a nova rainha assume o lugar de sua mãe, a falecida Isabel Cassimira das Dores Gasparino. Além de Rainha da comunidade, ela era Rainha Conga do Estado de Minas Gerais. A equipe do Casarão das Artes esteve presente para participar da solenidade de coroação. Negrura Linda No dia 20 de dezembro de 2015, a Black Vika realizou o Negrura Linda – Não é só cor de pele. A proprietária da marca e vice-presidenta do Casarão das Artes, Virgínia Marques, escolheu o Empoderamento da Raça Negra como mote para a produção do evento. As conquistas são traduzidas pela visibilidade das artes, da dança, da música e do empreendedorismo dos movimentos LGBT, hip-hop e dos ligados às ações sociais. A oportunidade de encontro e interação envolvendo essa diversidade cultural propiciou uma grande confraternização de talentos e parcerias somada à boa energia dos presentes. Belo Horizonte recebe Folia de Santos Reis de Paracatu de Baixo No dia 10 de janeiro, a equipe do Casarão das Artes marcou presença na Paróquia Nossa Senhora do Morro, localizada no aglomerado da barragem Santa Lúcia. No local também está instalado o Museu dos Quilombos e Favelas Urbanas (Muquifu). Os representantes do Casarão assistiram à apresentação do grupo “Folia de Reis de Paracatu de Baixo”. O grupo é proveniente do subdistrito de Monsenhor Horta, município de Mariana. O encontro do grupo com a comunidade foi alusivo ao dia de Reis comemorado em 6 de janeiro. Segundo Dalva Pereira, Museóloga do Muquifu, o grupo trouxe à comunidade do Aglomerado uma mensagem de esperança e de exemplo na luta pela preservação da memória, da identidade e dos valores culturais. O encontro ocorreu no dia 10 de janeiro. Canjerê Mulher. Parceria com o Memorial Minas Gerais Vale Em 2015, o Casarão das Artes organizou três eventos em Parceria com o Memorial Minas Gerais Vale: Palestras Feminino Negro, com a artista visual e fotógrafa Maria Rosa, Nelson Mandela – O Homem do Século XX, com o filósofo Marcos Cardoso e Pigmentos e Melanina, com o artista Marcial Ávila e o jornalista Robson Di Brito. A bem-sucedida experiência foi motivo para que o Memorial convidasse o Casarão das Artes a ocupar o espaço com arte e cultura negra em 2016. A utilização do espaço começou no dia 12 de março, com o primeiro Canjerê do ano intitulado Gèledés: o Poder do Canto Feminino. As atrações ficaram por conta das cantoras D’aiolla e Eda Costa, acompanhadas por Débora Gregório, Gleison Júnio e Felipe Venceslau nos instrumentos. E para incrementar a apresentação, as cantoras convidaram um coro formado pelas artistas Carlandreia Nascimento, Madu Costa e Vânia Gregório. Sempre presente nos eventos que promovem a cultura negra, o Clube de Blogueiras Negras de BH cobriu a apresentação. Fotos: Equipe Casarão das Artes e Etiene Martins 8 - R EV ISTA CA NJERÊ REVISTA CANJ ERÊ - 9 G e nte d o C a n je rê Leo Olivera e a música negra no mundo “Todos os estilos musicais atuais, ou pelo menos a maioria do que está aí, dependeram da música negra”, afirma Leo Olivera, pesquisador, colaborador do Casarão das Artes, DJ e professor da Escola de Arquitetura da UFMG. A fala não poderia ser mais assertiva. Segundo Leo, uma das principais características da música negra é o ritmo, e foi isso que a tornou tão cotidiana: “A música africana é corpo; ela tem sintonia com o movimento, com o ritmo, e movimento é vida. Não é uma música puramente de contemplação como a erudita. Há muito mais influência da música africana na composição popular”, contextualiza. Entusiasta da música de matriz africana, ele tem interesse especial pela música eletrônica e pesquisa as similaridades rítmicas dos dois estilos. Leo apresenta um programa sobre música eletrônica na rádio FM da UFMG (*) com os resultados dessas pesquisas: “As pessoas, de uma forma geral, têm um entendimento superficial sobre a música eletrônica. Ela está fortemente presente no contexto da música negra também”, explica. “Ritmos como house, acid jazz, techno, drum´n´bass, funk carioca devem a artistas negros suas criações em situações muito análogas à do surgimento do jazz e do rhythm in blues, por exemplo”, destaca. Como pesquisador, Leo considera que o Jazz é vertente à parte da black music. “Tudo que é muito bom, nasce no jazz, se cria no blues, amadurece no soul e depois vira hip-hop” Roger Deff RAPPER E JORNALISTA Segundo ele, o jazz surgiu com blues muito antes de surgiram gêneros como o soul e o R&B. “Os negros que foram para o sul dos EUA são da costa-oeste da África e tinham uma cultura musical muito rica. O jazz é ritmo derivado do ancestral africano misturado com o que se tinha de popular na música da Europa no mesmo período”. Apesar do racismo Mesmo em um país com histórico de discriminação racial explícita, como os Estados Unidos, a música negra e os artistas negros ocupam posição de destaque. Para Olivera, essa faceta da expressão cultural negra não é discriminada por uma questão de mercado. “A música negra não sofre preconceito porque dá dinheiro. Simples assim. Durante mais de 40 anos, os negros americanos bancaram esse mercado musical. Os primeiros discos de blues, jazz, soul, R&B e funk eram gravados para venda num mercado para os negros (conhecida como música de raça). Os brancos só começaram a consumi-los na década de 50. É por esse motivo que James Brown tinha uma gravadora. Ele sabia que se não tivesse o próprio selo, seus discos não chegariam ao público negro. Foi só depois da Segunda Guerra que os brancos tomaram conta desse mercado. Antes disso, muitos negros tinham gravadoras e emissoras de rádio pois sabiam que, sem isso, suas canções não seriam divulgadas. Houve muita batalha do povo negro norte-americano e sua música para que, no fim das contas, ela quase terminasse nas mãos dos brancos”, problematiza. Leo lembra que a música negra sempre esteve muito próxima da vida cotidiana do povo negro, sempre presente nos momentos de tensão social, nas mobilizações. E seguiram assim, deixando rastros e heranças, como no hip-hop. A composição negra moderna nasce nesse contexto. “Recentemente tivemos dois exemplos incríveis que foram Beyoncé e Kendrick Lamar, ganhando premiações por trabalhos que abordam em suas músicas os problemas da comunidade negra. É preciso entender que a música negra é o grande meio de revolução que temos em mão porque alcança mais pessoas. O hip-hop, por exemplo, tem um contexto muito mais evidente de revolução social que imaginamos. O fato de Kendrick se apresentar vestido de presidiário numa premiação do Grammy, trazendo à tona todo um histórico de desigualdade, já é incrível e confirma isso”, conclui. (*) Você pode ouvir um pouco dos resultados das pesquisas de Leo Olivera sobre música negra e música eletrônica no programa ELEKTRONICA, que vai ao ar todos os sábados, às 21h, na Rádio UFMG Educativa FM 104,5 ou acessar em tempo real, no site www.ufmg.br/radio Foto: Ricardo Foto:S. G. 10 - REV ISTA CA NJ E RÊ Ricardo S. G. REVISTA CANJ ERÊ - 1 1 Olhar Social Mulheres da Vila Estrela Universo feminino permeia história e acervo do Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos Brígida Alvim JORNALISTA E PRODUTORA CULTURAL Foto: Moisés Mota O Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos (Muquifu) tem o papel de salvaguardar a memória da comunidade que habita a região desde a década de 20. O espaço foi aberto há pouco mais de três anos na Vila Estrela, que fica no Aglomerado Santa Lúcia, em Belo Horizonte. De forma sensível e lúdica, o museu revela o cotidiano e as raízes culturais da população do Morro. O acervo reúne objetos pessoais, fotos, 12 - REV ISTA CA NJ E RÊ pinturas, lembranças, imagens, livros, filmes e exposições. “É o primeiro museu voltado para a cultura da periferia com temática específica quilombola e racial”, ressalta o padre Mauro Luiz da Silva, diretor e curador do museu. O universo feminino permeia significativamente o local. A Capela Maria Estrela da Manhã, conhecida como Igreja dos Santos Pretos, é o maior símbolo dessa influência. Ela está instalada na entrada da Vila e integra o Muquifu. Tudo começou pela iniciativa de 14 mulheres negras que bravamente ocuparam e mantiveram um cômodo para promover encontros comunitários e orações. O templo é completamente original. As imagens sacras são de santos pretos que retratam a comunidade predominantemente formada por negros. Duas santas produzidas em gesso pela artista plástica Sônia Toledo receberam rostos de Generosa e Marta, que estão entre as senhoras que batalharam pela igreja. Já os artistas Marcial Ávila e Cleiton Gos desenvolvem a pintura das paredes em obra que relata a vida das 14 mulheres da comunidade, fazendo uma metáfora com as 14 cenas de Maria (mãe de Jesus) descritas na bíblia. Maria Marta da Silva Martins, de 73 anos, é uma das matriarcas que alicerçam a história e recebeu uma santa em sua homenagem. Ela nasceu e cresceu na comunidade, é Rainha de Santa Efigênia da Guarda de São Cosme e Damião e exerce importante função na Capela. Delicada, fala baixo e sereno, mas de mansa não tem nada. Sozinha, criou oito filhos e ajuda na criação de quatro netos e uma bisneta. O marido morreu quando ela tinha apenas 23 anos. “Sofri muito e precisei trabalhar demais para sustentar meus filhos”, lembra. Por muitos anos, trabalhou como faxineira em casas de família e em empresas até se aposentar. Não faltaram pretendentes, mas Marta não quis se casar novamente. “Homem é muito difícil. Chega cheio de carinho quando quer conquistar, mas, depois que casa, muda tudo! Fico vendo as moças de hoje, que se casam e um mês depois já estão brigando. Eu não quero brigar. Por isso prefiro ficar sozinha com meus meninos, sem ninguém para me atrapalhar”, explica, segura e bem-humorada. Marta avalia que hoje tem tempo para cuidar de sua casa, dar mais atenção à família e participar das atividades da comunidade, como festividades, encontros, reuniões, atos políticos e celebrações religiosas. Os passeios preferidos são os festejos de Congado e as viagens para procissões. “Além de rezar, a gente aproveita para passear na cidade, comprar alguma coisa e, à noite, sair pra dançar”, revela com sorriso no rosto. Para conhecer mais sobre o universo de Dona Marta e de outras mulheres da Vila Estrela, é indispensável a visita à Capela dos Santos Pretos e ao Muquifu. Esses locais revelam artes, costumes, sentimentos, saberes e fazeres que representam sobremaneira as culturas popular e afro-brasileira. Essas manifestações estão presentes e, ao mesmo tempo, invisíveis no nosso cotidiano. Foto: Moisés Mota REVISTA CANJ ERÊ - 13 M até r i a d e C a pa Aos 15 de idade, Gabriela Amaral dos Santos trabalhava como atendente de telemarketing e dava aulas de reforço escolar para alunos do ensino médio para garantir alguma renda durante o mês. Na periferia de Belém, onde nasceu, o sonho de ser cantora era vivenciado ocasionalmente, quando havia tempo e oportunidade. Foi assim até que, aos 18 anos, ela conseguiu permissão dos pais para cantar em bares e participar de bandas. Negra e acima do peso, Gabriela estava longe de ter o perfil desejado pelo mercado, como ela recorda. “Eu cantava bem, mas não era a vocalista branca e magra que as pessoas queriam. Os grupos não tinham coragem de colocar suas músicas de trabalho na minha voz por causa da minha imagem. Então resolvi montar a minha banda”. E assim se fez Gaby Amarantos. Apesar de todos os ingredientes para uma narrativa autopiedosa, não há rancor nas memórias da artista. Militante firme, que tem dimensão da importância social e coletiva da sua trajetória individual, ela recusa o tom de lamúria. “Vejo essa fase com gratidão. Que bom que eu tive coragem de acreditar no meu trabalho! A gente não tem que dar bola para o não”. Autoconfiante, ela tem consciência de que venceu muitos desafios, do preconceito racial à timidez. “Mesmo com todas as dificuldades, eu sabia que ia conseguir. Acreditava nisso e cheguei onde queria”, diz a cantora que venceu quatro das cinco categorias do MTV Music Award em 2012. Foi também nesse ano que ela foi apontada como a melhor cantora pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Com o sucesso Ex-Mai Love, ela recebeu o Prêmio Multishow na categoria Novo Hit. Entre outras conquistas, garantiu no VMB 2012 os prêmios Artista do Ano, Melhor Artista Feminina e Melhor Capa – três das quatro categorias em que foi indicada. “Os prêmios abrem portas. As pessoas passam a ver você com mais respeito. Naquela época, eu ainda não tinha música na abertura de novela”. A cantora paraense também lembra a indicação ao Grammy Latino como um momento “inesquecível” de sua carreira. “Mas ainda tenho muito a conquistar. Agora é trabalhar para continuar na estrada”. Carisma e Determinação Gaby Amarantos conduz sua trajetória artística com passos firmes Janaina Cunha JORNALISTA CULTURAL E EDITORA DA REVISTA MITOCÔNDRIA. ESPECIALISTA EM GESTÃO DE PROJETOS, FOI SUPERINTENDENTE DE AÇÃO CULTURAL E INTERIORIZAÇÃO DA SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA. TRABALHOU COMO REPÓRTER DOS JORNAIS O TEMPO E ESTADO DE MINAS. MULHER NEGRA Preconceito racial e de gênero caminham juntos na observação de Gaby Amarantos. Para ela, a opressão contra a mulher está também diretamente relacionada ao racismo, como duas forças que se somam contra os direitos das mulheres negras no país. “O racismo ainda é tão velado e hipócrita no Brasil que fico preocupada com a forma leviana como as pessoas tratam do assunto, como se fosse algo que não merecesse atenção”. Ela lembra casos recentes em que personalidades do meio artístico foram achincalhadas em redes sociais. “São artistas, apresentadoras, atrizes e gente famosa sofrendo com isso. Imagina então como é para mulheres negras, pobres e de periferia. A gente ainda está numa situação de combater com energia essas agressões”. Para Gaby, no entanto, a principal arma contra a opressão é o amor. A cantora critica as reações agressivas as quais ela considera tão racistas quanto as provocações que as originaram. “É um erro continuar o processo de ridicularização do outro. Fico receosa quando vejo isso acontecer. O fato de eu ser uma negra com o cabelo alisado e loiro, por exemplo, não faz de mim menos ativista. Nós, negros, precisamos nos fortalecer internamente”. Dar conta de tratar “com amor” essa e outras questões que geralmente dividem contundentes opiniões no movimento negro, para Gaby, é o grande diferencial. “Eu cantava bem, mas não era a vocalista branca e magra que as pessoas queriam” Foto: Netun Lima 14 - REV ISTA CA NJ E RÊ REVISTA CANJ ERÊ - 15 Ela defende uma revolução social que se dê, sobretudo, por um processo de conscientização o qual a cantora percebe estar cada dia mais forte e consequente. Segundo Gaby, a postura assertiva dos militantes tem conseguido mudar o pensamento de uma geração que já avançou quanto ao que se espera socialmente das mulheres. “Hoje vemos mulheres negras felizes com sua sexualidade e sua negritude. Isso é uma questão importante. Esses movimentos têm que ser observados, exaltados e aplaudidos”. DITADURA DA BELEZA Em 2013, Gaby Amarantos recebeu convite para participar de um reality show com meta para perda de peso. E aceitou. Na época, perdeu quase 20 quilos e chegou a vestir numeração 38, algo impensado até então. O resultado, no entanto, mais uma vez não estava no rol de critérios a serem atendidos comercialmente. Não era uma resposta à capacidade de alcançar os padrões vigentes de beleza. “Quando me propus aceitar, pensava em emagrecer por uma questão de saúde. Estava em busca de uma alimentação mais saudável e de bem-estar”, ela diz. E chama a atenção para o fato de continuar não sendo uma mulher magra, de não atender a essa falsa expectativa social. “Não deixei de ter orgulho de ser como sou. Apenas melhorei um pouco minha qualidade de vida. Eu me sinto muito bem não sendo uma mulher magra, e perder peso não é um objetivo de vida”. A cantora, ativa nas redes sociais, “causa reboliço” com a publicação de fotos na contramão da estética convencional. “Não aceito a crítica como uma imposição. Posso postar o que eu quiser, do jeito que eu estiver fisicamente. Toda mulher pode se sentir bonita com o próprio padrão e não deve aceitar nada diferente disso”. Não por acaso, essa convicção, somada ao carisma e ao despojamento, conduziu Gaby para a segunda temporada à frente do programa de moda Troca de Estilos, no Discovery Home&Health, neste ano. Acompanhada por uma equipe de especialistas, ela atua como uma consultora de estilo dos participantes. E elogia a iniciativa do canal: “Muito legal esse espaço que eles abrem para pessoas normais. Tenho muito orgulho de estar fora do estereótipo de apresentadora-Barbie. A diversidade do brasileiro tem que ser contemplada”. CANTORA APOSTA EM REPERTÓRIO AUTORAL Em 2012, Gaby Amarantos lançou seu primeiro álbum solo, o “Treme”, e um ano depois já fazia sua primeira turnê internacional, levando seu trabalho a Londres, Bélgica e Nova Iorque. Na América Latina, realizou shows na Argentina e na Colômbia. Para o segundo semestre deste ano, ela espera voltar a circular mundo afora, desta vez, em show um pouco mais condensado – e “extravagante” –, com participação de DJs para ser possível levar sua música numa estrutura um pouco mais reduzida. Mas o foco deste primeiro semestre é o lançamento do segundo CD, que está centrado em composições de sua autoria. “Gosto de viajar, mas esse é um projeto paralelo. Estou mesmo concentrada em conseguir lançar o CD para mostrar minha diversidade como compositora”, adianta. Com o feito de conseguir destaque num país de cantoras extraordinárias, ela brinca: “Não posso me sentir menos que extraordinária também. Hoje tenho colegas incríveis, como a Elza Soares, que cresci ouvindo com admiração”. A cantora paraense também aponta Sandra de Sá e Alcione como artistas que a inspiram. De certo modo, o trabalho delas estimulou Gaby, a continuar perseguindo o sonho de atuar profissionalmente como cantora. “Sou fã de todas elas. Fazer parte desse convívio é algo maravilhoso”. Bem-humorada e segura das decisões – práticas e ideológicas – que precisa tomar rotineiramente na condução de sua carreira, Gaby lembra que, no início, via uma montanha e só pensava que era necessário chegar ao topo dela. Hoje está convencida de que não precisa ser considerada a “artista número 1” para se sentir valorizada no que faz. “O importante é você estar num lugar onde as pessoas saibam quem você é”. E agora que encontrou o caminho, ela investe em novas oportunidades. “O que quero é continuar mostrando minha diversidade como uma cantora de forma universal, mostrar minha música e prosseguir”. Foto: Netun Lima 16 - REV ISTA CA NJ E RÊ Foto: Bruna Brandão REVISTA CANJ ERÊ - 17 Ne g ó c i o s Mulheres negras Empreendedorismo e resistência Célia Gonçalves Souza JORNALISTA, EMPREENDEDORA SOCIAL DA REDE ASHOKA E COORDENADORA NACIONAL DO CENARAB Como jornalista negra, falar da mulher empreendedora com foco em tecnologia não me permite focar apenas nesse tema tão atual e importante em nosso contexto. Por isso, vou fazer pequenas digressões que me remetem às estórias contadas em casa pelos meus pais. Eles falavam sobre o papel das mulheres negras como protagonistas de uma história em que figuram como pilares de suas fragilizadas famílias. Essas mulheres se tornaram empreendedoras sem nem saber o que era isso. A necessidade não lhes dava alternativas: elas tinham de ir para as ruas vender seus quitutes, seus doces, lavar roupas, cozinhar e empreender suas vidas. Era questão de sobrevivência. Isso ocorreu após a chamada “abolição”, quando os homens negros tinham diante de si grandes dificuldades de acessar o mercado de trabalho. Portanto, coube à mulher a tarefa de prover a sobrevivência de todos com suas artes, talento, sabedoria e espírito empreendedor. Com o passar dos anos, essa mesma mulher foi adquirindo conhecimentos e aperfeiçoando suas técnicas. Assim ela percebeu a própria capacidade de identificar oportunidades que permitiriam a ela transformar suas ideias criativas em lucro. Mas a própria condição de mulher negra num país entremeado em preconceitos raciais e de gênero não facilita sua condição empreendedora. Isso afeta de forma visceral sua competitividade. Por isso, mesmo com o pioneirismo das mulheres negras empreendedoras, vemos bem poucos empreendimentos sustentáveis que tenham mulheres negras à frente. Vivemos num período em que há uma ação afirmativa em relação aos valores culturais. A história e a tradição afro-brasileiras, aliadas ao acesso à educação, ao mercado de trabalho e de consumo, fazem com que a população negra, historicamente excluída, permaneça sendo tratada na invisibilidade. Essa condição passa a ser reconhecida e cobiçada em seu potencial econômico. A indústria e o mercado percebem que há uma classe média negra que não mais aceita produtos que reproduzam estereótipos e arquétipos que não lhe dizem respeito. Então o consumidor negro opta por consumir produtos compatíveis com seu gosto. O afroempreendedorismo é visto por muitos como modismo, uma simples tendência, folclore, exotismo. Nós, porém, encaramos como fortalecimento de uma identidade, de um pertencimento que vai além A empresária Totty Soraya, da marca Criações em E.V.A (BH), cria bonecas afropersonalizadas com objetivo de trabalhar a autoestima e a representatividade das crianças negras. Sua filha Nicoly Dandara ajuda nas vendas reforçando a nova geração de mulheres negras empreendedoras A empresária Jossély Alves, da grife Crespo Soul (RJ), é um exemplo de mulher afroempreendedora. Ela participa de feiras em vários estados brasileiros levando a sua arte que é inspirada no conceito étnico Foto: Davidson Reis Foto: Davidson Reis 18 - REV ISTA CA NJ E RÊ do campo do consumo. A participação no mercado de consumo e empreendedor estende a atuação negra para o campo do fortalecimento político, econômico e social. Isso justifica o investimento em novas tecnologias que nos atendam em nossas especificidades objetivas e subjetivas. Precisamos de tecnologias que nos compreendam como sujeitos da própria história dotados de desejos, opiniões e tendências. Apostamos num mercado que nos inclua e nos compreenda e que esteja disposto a empreender tecnologias que nos contemplem em nossa complexidade de ser. Não existem espelhos que reflitam grandes e variadas experiências de empreendedorismo feminino que lhes possam assegurar a troca de experiências e de inspiração. Como se não bastasse, existem as dificuldades de incentivo de financiamento em um mercado majoritariamente masculino e preconceituoso. Esses aspectos são relevantes e desagregadores da ideia de que, sim, a maioria das mulheres negras são empreendedoras e competentes na gestão de negócios e no uso de tecnologias. Há uma desconexão entre o mercado empresarial e de financiamento com a realidade das empreendedoras negras. Elas não dispuseram do nome e do sobrenome de famílias tradicionais e com veias empresariais; contam apenas com a própria história de desejo de transformar para sobreviver. As empreendedoras negras não dispõem de uma tradição e de uma história familiar que lhes permita ter um ponto de partida para dar continuidade ou transformar. Se alguns já nascem no topo da árvore, ainda que essa árvore tenha sido forjada a partir da exploração de outros, as negras e os negros deste país nascem fortes, empreendedores e resistentes a partir da semente. REVISTA CANJ ERÊ - 19 Te a tro M ú sic a Oduduwá MC Soffia “Foram me chamar Eu estou aqui. O que é que há? Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho Mas eu vim de lá pequenininho Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho” Representatividade não tem idade Du Pente DJ, PUBLICITÁRIO E PRODUTOR CULTURAL Aline Vila Real FORMADA EM COMUNICAÇÃO SOCIAL, ESPECIALIZADA EM IMAGENS E CULTURAS MIDIÁTICAS, INTEGRANTE DO GRUPO TEATRAL ESPANCA! E DO NEGR.A – COLETIVO DE NEGRAS AUTORAS. É UMA DAS IDEALIZADORAS DO POLIFÔNICA NEGRA É evocando Dona Ivone Lara que respondo a esse chamado da Revista Canjerê. Dona Ivone é a rainha dos bambas tal quais as pessoas que encontrei na Bahia durante o IV Fórum Nacional de Performance Negra. É assim que eu sintetizo a experiência de quatro dias de encontros com artistas, produtores e articuladores negros – atuantes sobretudo nas Artes Cênicas – provenientes de todas as regiões do país. Fazendo jus ao seu significado etimológico, o Fórum foi um espaço para discussão política, religiosa, econômica e social, permeado pela Arte Negra. Nessa edição foi lançada a Campanha CULTURA SEM RACISMO – buscando estabelecer estratégias de participação na definição dos rumos das políticas públicas para as artes. O fórum trabalhou as possibilidades de ação dos artistas negros em sua dimensão política, estética e ideológica. O êxito na realização dessa Foto: João Milet Meirelles 20 - REV ISTA CA NJ E RÊ quarta edição pode ser medido por suas propostas concretas. Dentre elas, destaco a reivindicação por representatividade negra nos cargos de curadoria, seleção e decisão nos setores culturais dos órgãos públicos. Outra proposta relevante é o entendimento das políticas de ações afirmativas como parte de um processo de reparação, ciente de que o trabalho artístico desenvolvido na performance negra tem valor como obra de arte. A arte negra é capaz de ser referência no universo das artes cênicas. Sendo assim, as políticas públicas precisam absorver essa produção dentro de seu ‘ecossistema cultural plural e diversificado’ (assim qualificado pelo Minc e pela Funarte) na mesma medida de sua relevância. O Fórum mais uma vez teve como principal estratégia a Convivência – vários sotaques seduzindo uns aos outros para a construção do comum, com reconhecimento das individualidades e das subjetividades do coletivo. Estiveram presentes aproximadamente 300 pessoas de mais de 80 coletivos dos diversos estados do país. A grande homenageada do Fórum foi Mercedes Baptista, bailarina e coreógrafa, considerada a maior precursora do Balé e da Dança Afro no Brasil. Presença predominante de mulheres lançando seus livros, fazendo performances, dando o tom dos debates – miras certeiras munidas de discursos-flechas. Nada coincidência Elza Soares ter sido evocada pelo coletivo de mulheres negras que apresentaram a leitura dramática do texto “Oduduwá - O poder feminino da criação”, de autoria e direção de Fernanda Júlia. Ubuntu. Foto: Netun Lima O ano de 2015 foi marcado pela efervescência das expressões negras na cidade de Belo Horizonte. Dentre as diversas manifestações, a oitava edição do Festival de Arte Negra comemorou 20 anos. “Encontros” foi o tema do festival que proporcionou a reunião musical da Banda Aláfia, de São Paulo, a cantora Zaika, de Belo Horizonte, e a revelação do rap Mc Soffia, também de São Paulo. Mc Soffia tem apenas 11 anos e surge como protagonista na cena musical infantojuvenil e independente. Com sua performance, Soffia elucida a reflexão sobre quanto, no universo infantil, o racismo estrutural está presente. Suas letras questionam desde o lugar da sua beleza natural à falta das bonecas negras nas lojas de brinquedos, desconstrói, por meio de suas rimas, expressões racistas naturalizadas ao longo da história, e tudo isso com forte afirmação de sua identidade negra. Ela esbanja empoderamento por onde passa, seu som é influenciado pelos beats do rap, dancehall e do reggae, estilos musicais de origem negra que contagiaram o palco Baobá. Ela mesma compõe suas canções que são baseadas em suas jovens experiências, e conta com a colaboração de familiares como sua avó, mãe e outros parceiros. A DJ, que tem consciência que pode ser o que quiser, além de abordar questões raciais e sociais, aponta em um de seus versos o machismo imposto nas brincadeiras de menino e menina, “... menino e menina podem brincar de boneca”, um exemplo de como a educação racial e de gênero devem ser exercícios diários. Com tão pouca idade, Soffia é exemplo de representatividade não só para as crianças como para muito marmanjo. REVISTA CANJ ERÊ - 2 1 Novos blocos afros esquentam o carnaval de BH No tí c i a s Literatura feminina dá voz às mulheres marginalizadas Em janeiro, a presidenta de honra do Casarão das Artes, Rosália Diogo, participou do Zora! Festival em homenagem à escritora americana Zora Neale Hurston. O evento acontece há 25 anos na cidade de Eatonville, Flórida, nos Estados Unidos. Diogo falou sobre o protagonismo das mulheres negras na literatura e em outras áreas do conhecimento. Tendo como referência as escritoras negras Paulina Chiziane, de Moçambique, Conceição Evaristo, do Brasil, e Zora Neale Hurston, dos Estados Unidos, Diogo destacou algumas consequências da diáspora africana no mundo. Segundo ela, as três escritoras optam por extravasar a forma redutora como a escrita masculina trata o corpo feminino – ou o papel da mulher – na maioria das vezes. “Entendemos que as vozes de várias mulheres, secularmente marginalizadas e oprimidas pelo sistema de poder patriarcal e racista nos quais vivem, sejam ouvidas por meio da produção literária dessas escritoras”. Fotos: Acervo pessoal Rosália Diogo Representatividade ganha espaço no mercado infantil Beyoncé celebra luta e poder negro A embalagem de fantasia do Finn - personagem negro coadjuvante de “Star Wars” - O Despertar da Força” - fez explodir a campanha “Não me vejo, não compro” nas redes sociais. A bela atuação de John Boyega repercutiu ainda mais com a embalagem da fantasia, que foi ilustrada por um menino branco. A campanha recebeu apoio de um grande público e demonstrou a alegria de um menino negro por se sentir representado com a imagem do boneco. E, finalmente, a empresa que fabrica a boneca Barbie anunciou uma nova linha de bonecas “mulheres reais” com quatro tipos de corpos, sete tons de pele, 22 cores dos olhos e 24 penteados. As empresas estão começando a reagir às demandas estimuladas pela diversidade. Ainda há muito a ser mudado, mas estamos conquistando espaços com o ativismo nosso de cada dia. A cantora Beyoncé causou fortes reações com o novo clipe da música “Formation”. No trabalho, ela exalta as lutas contra a discriminação racial e a cultura afro-americana. Com coreografia inspirada em formações militares e dançarinas usando roupas dos Panteras Negras, ela fez o show no maior evento esportivo dos EUA, causando grande polêmica. O ato foi político: uma resposta da cantora negra que assumiu o seu posicionamento como artista e cidadã. Na performance, Beyoncé explicitou seu apoio ao movimento Black Lives Matter, que combate a brutalidade policial contra negros nos EUA. O clipe “Formation” é um desfile de referências à história dos negros. Ela soube usar seu poder e conquistou vários fãs com o clipe e a canção, já celebrada como o novo hino do orgulho negro. O renascimento do carnaval de Belo Horizonte faz com que, a cada ano, surjam novas expressões culturais de matriz africana. As manifestações ampliam a diversidade de ritmos e sons. O bloco Angola Janga trouxe um novo colorido e energia ao carnaval mineiro, tocando Ilê Aiyê, Margareth Menezes, Olodum, funks e ijexás de afoxés baianos, como o Filhos de Gandhy. O bloco exibiu e reforçou a pluralidade da identidade negra, tanto nas músicas quanto no visual, trazendo uma bateria exclusiva para aqueles que se autodenominam negros. O bloco Dreadlocko, com o cantor Sérgio Pererê no vocal, trouxe uma bateria de Dreads com forte influência banto, iorubá e de cânticos do candomblé. O bloco Magia Negra cantou músicas autorais e exaltou a cultura afro com opanijé, ijexá, funk soul e tamborzão. Já o bloco Afoxé Foto: Raça Mundi Bandarerê, que desfila desde 2014, ocupou novamente as ruas da Concórdia, o bairro mais negro de BH, onde começaram muitas casas de candomblé e os terreiros de umbanda. O bloco também levou seu desfile para outros pontos da cidade, como a Praça da Liberdade e a Zona Sul de BH. Os grupos conseguiram agitar a cena carnavalesca e levar um grande público às ruas, celebrando a arte e a cultura negra. Carnaval 2016 prestigia cultura e religiões afro-brasileiras Neste ano, as escolas de samba do Rio de Janeiro exibiram temas que dialogaram com a nossa ancestralidade, como as religiões de origem africana e suas culturas. A Salgueiro falou sobre Exu e da malandragem com um enredo cheio de cores. A grande campeã Estação Primeira de Mangueira homenageou a cantora Maria Bethânia, reconhecidamente adepta do Candomblé e filha do orixá Iansã. Em Belo Horizonte, a Canto da Alvorada foi a campeã dos desfiles das Escolas de Samba. Com o enredo Tizumba Ê, a escola fez uma bela homenagem ao cantor, compositor, multi-instrumentista e ator Maurício Tizumba. O desfile reuniu representações da religiosidade e da cultura afro-mineira. Foto: Divulgação Gente que apoia a Canjerê A Revista Canjerê tem o privilégio de contar com o apoio e a colaboração do vereador Arnaldo Godoy. Ele é professor de História, graduado pela UFMG, e professor licenciado do Instituto São Rafael. Está no quinto mandato como vereador. No seu histórico político, Godoy se empenha na luta pela afirmação da cultura negra em Belo Horizonte. O vereador criou leis para o movimento e o apoio às manifestações de matriz africana, como o Tambolelê, Tizumba, Tambores de Minas, Fala Tambor, Odum Orixás, o terreiro Ilê Opô Jucam e grupos do hip-hop. 2 2 - REV ISTA CA NJ E RÊ REVISTA CANJ ERÊ - 2 3 Ensaio Mulher negra: tempo de manter a resistência e se empoderar Virgínia Marques VICE-PRESIDENTA DO INSTITUTO CULTURAL CASARÃO DAS ARTES, ARTESÃ, PROPRIETÁRIA DA GRIFE BLACK VIKA (...) porque deixar de ser racista, meu amor, não é comer uma mulata. Elisa Lucinda Em 2010, o então senador Demóstenes Torres (DEM/ GO) declarou que não ocorreu estupro de mulheres negras pelos senhores donos de escravizadas no período de escravização no Brasil. Segundo ele, havia consenso para que ocorresse a relação sexual. A declaração dada no mês de março daquele ano parecia saudar as mulheres negras. Não é de se estranhar, pois, em uma sociedade machista e racista como é a brasileira, esse tipo de compreensão/declaração é habitual. Para um homem branco, que pertence à uma estrutura política e social que se dedica à manutenção de políticas que possam manter o status quo de uma elite branca, cuja maioria é constituída de homens brancos, que se apresentam como heterossexuais, emitir esse tipo 24 - REV ISTA CA NJ E RÊ de opinião não causa o menor constrangimento. Não obstante, nós, mulheres negras, temos travado severas batalhas por melhores oportunidades, visibilidade e respeito no cenário nacional. O movimento feminista e o movimento de mulheres negras são relativamente novos no Brasil. Emergem na década de 70, consolidando-se como sujeitos coletivos no transcorrer das décadas de 80 e 90, período em que suas ações políticas se concretizaram. Nesse contexto, as mulheres negras, que discutiam suas especificidades desde meados da década de 80, tanto no interior do movimento negro quanto no do movimento feminista, não se viam contempladas. Somos 49 milhões de mulheres negras, isto é, 25% da população brasileira. Vivenciamos a face mais perversa do racismo e do sexismo por sermos negras e mulheres. Observamos, no decurso diário de nossas vidas, a forjada superioridade do componente racial branco, do patriarcado e do sexismo, que fundamenta e dinamiza um sistema de opressões que impõe, a cada mulher negra, a luta pela própria sobrevivência e de sua comunidade. Em 2002, a filósofa Sueli Carneiro fez por meio de uma pesquisa que analisou as estruturas familiares segundo a raça ou a cor da chefia do domicílio e constatou que as mulheres negras são a maioria entre as responsáveis por famílias do tipo “mulher com filhos” (1). A pesquisa atesta também que as mulheres e os negros em geral encontram mais dificuldades para ocupar postos de trabalho. A falta de pertencimento étnico-racial está entre os traços que definem o perfil sociodemográfico das mulheres brasileiras. Essa é a constatação obtida por uma pesquisa feita pela Unifem no início do século 21. Esse diagnóstico ratifica e aprofunda o quadro de desigualdades sociais vivido pelas mulheres. A situação da mulher negra é ainda mais perversa. Os indicadores demonstram importante defasagem no acesso à educação, saúde e renda. O resultado do levantamento foi apresentado no relatório de Direitos Humanos no Brasil lançado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos em 2005. Em relação à composição etária, os níveis são muito semelhantes entre as mulheres brancas e as negras na faixa de 25 a 44 anos. A partir daí, começa a distinção decorrente das diferenças de expectativa de vida. Em 2000, a expectativa de vida das mulheres brancas era de 73,8 anos. A das mulheres negras era de 69,5 anos. O Mapa da Violência apresentou uma pesquisa sobre a violência de gênero no país. O resultado foi divulgado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e enfatizou dados alarmantes no país a respeito da violência com a mulher negra. O resultado mostra que morreram 66,7% mais mulheres negras que brancas no Brasil. 1) Carneiro, Sueli. A Batalha de Durban. In Revista Estudo Feministas, 2002. Foto: Rosália Diogo REVISTA CANJ ERÊ - 2 5 L iteratu ra O estudo foi considerado inovador pela representante da ONU Mulheres Brasil, Nadine Gasman. Uma “combinação cruel” se estabelece entre racismo e sexismo: em uma década (a pesquisa abarca o período de 2003 a 2013), os feminicídios contra negras aumentaram 54%, ao passo que o índice de mortes violentas de mulheres brancas diminuiu 9,8%. Vários pesquisadores têm se dedicado a compreender esse fenômeno tão negativo em relação à mulher negra. Dados preliminares dão conta de que o ambiente de violência no qual vive a maior parte das mulheres negras, em comparação com a situação de moradia da mulher branca, pode ser um dos fatores determinantes. Em contraponto, as organizações das mulheres vem promovendo várias ações para denunciar as diversas situações de opressão vividas pelas mulheres negras. Um dos exemplos dos movimentos de reação foi o flashmob realizado no Centro de Belo Horizonte, no dia 28 de fevereiro. Um grupo de mulheres, com uma marcante presença de negras, gravou a coreografia de uma dança para contribuir com a campanha “Um Bilhão Que Se Ergue” (One Billion Rising), movimento ativista global para acabar com a violência contra a mulher. O movimento denuncia que uma em cada três mulheres no mundo foi, está sendo ou será violentada ou estuprada na sua vida. Lá esteve o Casarão das Artes se solidarizando com a necessária campanha. Nesse sentido, são bem-vindas iniciativas de várias mulheres, como o poema da poetisa, atriz e cantora Elisa Lucinda intitulado “Mulata Exportação”, epígrafe deste texto, e campanhas como “Um Bilhão Que Se Ergue” (One Billion Rising), que jogam luz para a compreensão das tramas que são inerentes e relacionadas à mulher negra no Brasil. Essas ações são tocantes para o enfrentamento à postura machista e sexista como a do Senhor Demóstenes Torres e de outros cidadãos e cidadãs. POESIA Cristiane Sobral INTEGRANTE DA ACADEMIA DE LETRAS DO BRASIL E DO SINDICATO DOS ESCRITORES DO DF (CADEIRA 34), ESCRITORA, POETISA E ATRIZ NEGRA. Só por hoje vou deixar o meu cabelo em paz Referências bibliográficas a) Morte de mulheres negras no Brasil avança 54% em dez anos, aponta estudo. Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/ rs/noticias/noticia/2015/11/morte-demulheres-negras-no-brasil-avanca-54em-10-anos-aponta-estudo-4898023. html. Acesso em 20 de janeiro de 2016. b) LUCINDA, Elisa. O Semelhante. Rio de Janeiro: Ed.Record, 1998. Só por hoje Vou deixar o meu cabelo em paz Durante 24 horas serei capaz De tirar Os óculos escuros modelo europeu que eu uso Enfrentar a claridade Só por hoje Só por hoje Durante 24 horas Serei capaz De contemplar o que sou Só por hoje Encarar a claridade Sem as sedutoras lentes Que nos ensinam A desejar ser quem não somos Só por hoje Desafiar a claridade Com os escurecimentos necessários De um olhar “3 D” Só por hoje Só por hoje Vou deixar o meu cabelo em paz. 2 6 - REV ISTA CA NJ E RÊ Foto: Rosália Diogo Ilustração: Leo Ramaldes REVISTA CANJ ERÊ - 27 C o m p o r ta m e n to A boneca crespa Rafaela Pereira É GRADUANDA EM LETRAS PELA UFMG, MEMBRA DO NÚCLEO DE ESTUDOS INTERDISCIPLINARES DA ALTERIDADE (NEIA) E PESQUISADORA E COLABORADORA DO PORTAL LITERAFRO Foto: Rosália Diogo Foto: Guto Muniz 2 8 - REV ISTA CA NJ E RÊ - Olha, amor! Uma boneca com o black igual ao seu! - Engraçado: houve um momento na minha infância em que perdi o gosto pelas bonecas. - Por quê? - Nunca tive uma que se parecesse comigo. Brincava com as que eu ganhava, mas deixava-as de lado. Também não gostava de contos de fadas, pois eu nunca podia ser a princesa. Eram bem diferentes de mim. Eu me interessei mais pelos jogos em vez daquelas bonecas e de personagens que pareciam tão iguais! Entraram em um bar. Começaram a conversar, e o namorado pediu que ela falasse mais sobre a sua infância. “Por volta dos meus 7 anos, minha mãe dizia que meu cabelo era ruim e dava muito trabalho. Ela começou a trabalhar fora e não tinha tempo para me pentear. Sentia agonia por vê-la todo sábado com rolos na cabeça o dia inteiro. Desejei tê-lo liso para não usar rolos encapados com páginas de revistas. Tive que aderir ao acessório. Sair à rua? Nem pensar! Se chovesse, muito menos. Durante alguns anos, meus finais de semana foram assim... E a televisão nunca me ajudava a encontrar alguma referência. Comecei a crer que ser negra não era legal. Adorava desenhar pessoas, com diversos tipos de roupas, mas minhas figuras seguiam o padrão vigente. Só percebi isso anos depois, quando encontrei uma pasta e notei que minhas modelos não tinham traços negros. Sem parâmetros, eu perdi a inspiração para desenhar. Comecei a ter gosto por literatura. Matava as aulas de Educação Física para ir à biblioteca ler Machado de Assis. “Outro dilema: o lanche na época do jardim de infância. Ficava aflita quando minha mãe colocava banana na minha merendeira. Eu dizia que não gostava só para ela não me obrigar a levar. Impunha e ameaçava, caso eu voltasse com a fruta para casa. Eu ficava naquele conflito: comer a banana e correr o risco de ser chamada de macaca ou voltar com a fruta para casa e apanhar. “Voltando ao cabelo, chegou o momento em que as paranoias da estética me irritaram e resolvi não relaxar mais. No início foi difícil, a raiz começou a dar sinais de sua crespicidade e a lisura persistia da metade do cabelo até as pontas. Ficava estranho. Minha mãe me perguntava se eu não ia dar um “jeito”. Ela me deu dinheiro para resolver o problema. Voltei com o cabelo trançado. Amei aquele visual novo! Minha mãe fez o maior terror, dizendo que eu não ia arrumar emprego. Fiquei preocupada, mas paguei para ver. Então eu me interessei por eventos culturais sobre a identidade negra e percebi que eu fazia parte de uma sociedade em que a diversidade é numerosa, mas nem sempre aceita. - Ouvindo você, percebo que passei por situações bem parecidas. O namorado saiu, e ela ficou pensando: “Mudanças estão acontecendo, mas ainda precisamos ficar na defensiva. Até quando?”. Percebeu que o namorado ainda não retornava. Chamou o garçom e perguntou se viu um homem de dread. Ele respondeu que sim, que havia alguns minutos e que tinha saído. Pegou a sua bolsa e saiu do bar, olhando para todos os lados. Passando pela praça, eis que alguém sai de trás de uma das palmeiras, segurando um embrulho. - Uma boneca crespa para a crespa mais linda! Ela se assustou. Olhou o namorado com ternura e pegou o presente. Ele adorava fazer surpresas! - Você fica linda com esses cachos passando pelo seu rosto! Não disseram mais nada. Apenas se abraçaram e se olharam. Eles pensaram na cumplicidade que havia entre eles, enquanto o black e os dreads dançavam ao balanço do vento. REVISTA CANJ ERÊ - 29 Á fr i c a De combatentes a cidadãs As mulheres guineenses na luta pela emancipação Patricia Godinho Gomes DOUTORA EM HISTÓRIA E INSTITUIÇÕES DA ÁFRICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA - UNIVERSIDADE CAGLIARI, ITÁLIA. TITULAR DE BOLSA PÓS-DOC NO PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE ESTUDOS ÉTNICOS E AFRICANOS, PÓS-AFRO, UNVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. ESTUDA SOBRE FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL NA GUINÉ-BISSAU, CONDIÇÃO DAS MULHERES NOS PALOP, FEMINISMOS E RELAÇÕES DE GÊNERO NA ÁFRICA Falar da participação feminina na cidadania ativa na GuinéBissau é um exercício complexo. As mulheres insurgiram ao lado dos homens desde os tempos da resistência à conquista colonial e durante a luta pela independência. Demonstraram reconhecida capacidade de se implicar em ações em prol da preservação e da restauração da liberdade confiscada durante a experiência colonial. Quem não ouviu falar na figura imponente da rainha Pampa da sociedade Bijago que, no início do século XX, travou uma batalha sem tréguas contra a penetração portuguesa? E quem não conheceu ou não ouviu falar, numa fase mais contemporânea, da história das mulheres responsáveis políticas como Carmem Pereira ou Teodora Inácia Gomes, comandantes militares como Titina Sila, governantes de regiões das áreas libertadas como Francisca Pereira ou ainda membras dos Tribunais Populares instituídos nas áreas libertadas como Tenem Camara? Ao teorizar a luta armada na Guiné-Bissau, Amílcar Cabral(1) evidenciou o papel fundamental das mulheres na revolução e no processo de construção nacional. O sucesso de qualquer tipo de transformação social, segundo a sua análise, consistia “em constatar de que forma a mulher participa no mais amplo processo de libertação da sociedade (…). A nossa revolução nunca será vitoriosa, se não conseguirmos a plena participação das mulheres” (2). Qual era o significado da libertação das mulheres para homens como Cabral e para os seus movimentos? E de que forma se passou do discurso para a prática, sem que isso tenha sido efetivamente verificado? No caso da Guiné-Bissau, a questão da emancipação feminina foi tema de debate político e abordado continuamente nos discursos de Amílcar Cabral, que chamou a atenção desde logo para o dever de respeitar as vontades das jovens mulheres regressadas às próprias aldeias após a guerra colonial. Não eram poucas as vezes que, em diálogo com mulheres e homens das áreas libertadas, chamava a atenção para o problema dos casamentos forçados e para a necessidade de educar as meninas como forma de torná-las autônomas, livres e aptas a fazer as próprias escolhas, quer no trabalho, quer na vida privada. Seguindo essa ótica, o esforço realizado durante a luta armada foi no sentido de contribuir para a edificação de uma cultura nacional ancorada nos valores dos diferentes grupos sociais da GuinéBissau e inspirada pelas aquisições de uma cultura científica universal. Essa visão de sociedade teria favorecido, na interpretação de Cabral, a desconstrução política e econômica do discurso colonial e a criação e a consolidação de uma capacidade endógena capaz de romper com os modelos teóricos e epistemológicos existentes. Mas esse caminho exigiria, como referiu Eliso Macamo(3), “o desenvolvimento de um campo intelectual autônomo de reflexão e de análise que permitisse aos intelectuais “A nossa revolução nunca será vitoriosa se não conseguirmos a plena participação das mulheres” Amílcar Cabral 1) Sobre a biografia de Amílcar Cabral e a luta armada na Guiné-Bissau veja: CHABAL, Patrick, Amílcar Cabral: revolutionary leadership and people’s war, Cambridge, Cambridge University Press, 1983; LOPES, Carlos, “Special issue on Amílcar Cabral”, in African identities, London, Routledge, 2005; SOARES SOUSA, Julião, Amilcar Cabral, vida e obra de um revolucionário, Lisboa, Vega, 2011; MANJI, Firoze, FLETCHER JR., Bill (Eds), Claim no easy victories. The legacy of Amílcar Cabral, Dakar, CODESRIA/Daraja Press, 2013, 516 pp.; ANDRADE, Mário de (Org.), A arma da teoria-Unidade e luta (Obras escolhidas de Amilcar Cabral), vol.I, Lisboa, Seara Nova, 1976; DAVIDSON, Basil,Unity and struggle: speeches and writings of Amilcar Cabral, Monthly Review Press, 1979, 336 pp. 2) PAIGC, Rapport sur le role politiquesocial et économique de la femme en guinée et aux iles du cap vert, Conacry, 1972, p.5, FundaçãoAmílcar Cabral, Praia (Cabo verde). Ilustração: Rubem Filho 30 - REV ISTA CA NJ E RÊ REVISTA CANJ ERÊ - 31 africanos um comprometimento mais direto com as realidades sociais africanas”. Foi nesse sentido que Amílcar Cabral defendeu o conhecimento da realidade como condição de luta pelas independências e pelo desenvolvimento. A ampliação da luta armada e a necessidade de organizar um movimento de libertação autônomo contribuiriam para a incorporação das mulheres no processo de construção nacional. Nesse contexto tornou-se imprescindível a participação delas não apenas nas tarefas de execução, mas na direção da luta em todos os escalões, inclusive nas reuniões dos órgãos de decisão do movimento. Desse movimento nasceu a União Democrática das Mulheres da Guiné e de Cabo Verde (Udemu) criada em Conacri, em 1961. A iniciativa foi antes de eclodir a guerra colonial na Guiné. Essa pode ser considerada uma das estratégias de emancipação postas em prática. No entanto, a organização das mulheres foi criada na vizinha República da Guiné. Portanto, a Udemu nasceu fora das áreas libertadas onde de facto, as populações e os combatentes criavam, numa relação de complementaridade, as bases de uma nova sociedade. Nessa fase inicial a organização não incluiu ou incluiu só marginalmente as mulheres guineenses empenhadas nas várias atividades das frentes de combate. O fato de a Udemu ter assumido uma função internacional para a captação de fundos materiais e financeiros para o desenvolvimento da luta armada foi um dos fatores determinantes de fragilidade da organização como movimento político de conscienciatização e preparação ideológica das mulheres guineenses. A maioria, pertencente às comunidades rurais, acabaria por ficar à margem da organização feminina do Paigc, a mesma que tinha sido criada para responder aos seus anseios. Admitindo o inegável impacto político positivo e, de certa forma, prático, que o discurso de gênero produzido por Amílcar Cabral e pelo Paigc teve na mudança de mentalidades, algumas narrativas de mulheres guineenses(4) que participaram de forma direta e ativa na luta armada deixam pressupor que as atividades desempenhadas por elas reproduziram in toto os papéis sociais e os estereótipos por meio dos quais se perpetuaram as desigualdades de gênero. 3) Citado em FURTADO, Cláudio Alves, “Desafios teóricos e metodológicos nos estudos de África: possibilidades e limites”, in CARVALHO, Maria Rosário, FURTADO, Cláudio, BARBOSA CORREIA Wesley, VINHAS, Wagner (Orgs.), Estudos étnicos e africanos. Revisitando questões teóricas e metodológicas, Salvador, EDUFBA, 2014, p.31. 4) Para uma leitura mais aprofundada sobre testemunhos de mulheres guineenses que participaram da luta de libertação na Guiné-Bissau, vejaWW o meu texto “Sobre a génese do movimento feminino na Guiné-Bissau: bases e práticas (1961-1982)”, in Patrícia Godinho Gomes, Rosália Diogo, Débora Diniz, Maria Helena Santos (Orgs.), O que é o feminismo?, Cadernos de Ciências Sociais (Coordenação de Carlos SERRA), Maputo, Editora Escolar, 2015. 32 - REV ISTA CA NJ E RÊ