Projeto-03 Rev WEB.indd - Tradição Planalto Editora

Transcrição

Projeto-03 Rev WEB.indd - Tradição Planalto Editora
Sumário
NÚMERO 03 - ANO 01 - ABRIL 2016
ENTREVISTA
04
CULTUR A - MÚSICA
Conceição Evaristo
Becos de Memória em Ouro Preto
Linhas de resistência e escrevivência
21
GENTE DO CANJERÊ
NOTÍCIAS
10
22
Leo Olivera
E a música negra no mundo
OLHAR SOCIAL
ENSAIO
12
24
Mulheres da Vila Estrela
Universo feminino permeia história
e acervo do Museu dos Quilombos e
Favelas Urbanos
MC Soffia
Representatividade não tem idade
•
•
•
•
Literatura feminina
Representatividade
Beyoncé celebra luta e poder negros
Novos blocos afros
Mulher negra:
tempo de manter a resistência e se
empoderar
MATÉRIA DE CAPA
CULTUR A - LITER ATUR A
14
27
Carisma e Determinação
Gaby Amarantos conduz sua trajetória
artística com passos firmes
NEGÓCIOS
18
POESIA
Só por hoje vou deixar o meu cabelo
em paz
CULTUR A - COMPORTAMENTO
Mulheres negras
Empreendedorismo e resistência
28
CULTUR A - TEATRO
ÁFRICA
20
31
Oduduwá
A boneca crespa
De combatentes a cidadãs
As mulheres guineenses na luta pela
emancipação
Ano 01 - Edição 03
Abril de 2016
ISSN 2447-1143 - PUBLICAÇÃO ONLINE
Valorização e promoção da cultura africana e afro-brasileira
Expediente
A REVISTA CANJERÊ É UMA PUBLICAÇÃO
QUADRIMESTRAL DO INSTITUTO CULTURAL
CASARÃO DAS ARTES E DA TRADIÇÃO PLANALTO
PRODUÇÕES VISUAIS E EDITORIAIS LTDA.
FOTO DA CAPA
Gaby Amarantos
Foto: Bruna Brandão
2016
INSTITUTO CULTURAL CASARÃO DAS ARTES
PRESIDENTE
Marcial Ávila
PRESIDENTA DE HONRA
Rosália Diogo
VICE-PRESIDENTA
Virgínia Marques
EDITORIAL
DIRETORA DE REDAÇÃO
Rosália Diogo
EDITOR EXECUTIVO
Ricardo S. Gonçalves
EDITORA
Sandrinha Flávia
REPÓRTERES
MATÉRIA DE CAPA
Janaína Cunha
Adriana Borges, Janaína Cunha, Moisés Mota,
Robson Di Brito e Samira Reis
CARISMA E DETERMINAÇÃO
Gaby Amarantos conduz
sua trajetória artística com
passos firmes
PROJETO GRÁFICO
Leonardo Oliveira e Maria Luiza Viana
ILUSTRAÇÃO
Leo Ramaldes, Marcial Ávila e Maria Luiza Viana
FOTOGRAFIA
Ricardo SG, Rita Peixoto e Sol Brito
REVISÃO
Paulo Roberto Antunes e Versão Final
COMERCIAL
PUBLICIDADE
Tradição Planalto (31) 3226-2829
CONSELHO EDITORIAL
Carlos Serra
UNIVERSIDADE EDUARDO MONDLANE - MOÇAMBIQUE
Edimilson de Almeida Pereira
COLABORARAM NESTA EDIÇÃO
Aline Vila Real, Brígida Alvim, Bruna Brandão, Célia Gonçalves Souza, Cristiane
Sobral, Davidson Reis, Du Pente, Etiene Martins, João Milet Meirelles, Joyce Fonseca,
Nereu Júnior, Netun Lima, Patrícia Godinho Gomes, Raça Mundi, Rafaela Pereira,
Roger Deff, Rubem Filho e Virgínia Marques
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA - BRASIL
Eduardo de Assis Duarte
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - BRASIL
Filinto Elísio
ROSA DE PORCELANA EDITORA - CABO VERDE
Agradecemos a todos da equipe Casarão das Artes e parceiros
do Brasil e do exterior que aceitaram o desafio de construir essa
importante fonte de informação e pesquisa.
Editorial
Empoderar é preciso
Esta edição da Revista Canjerê destaca o crescente protagonismo da
mulher negra. Para materializar o nosso propósito, iniciamos a busca de
colaboradores com experiências em temas relacionados com esse universo. E
o resultado é fruto da motivação e da paixão dos envolvidos nessa construção.
Seguramente a terceira edição da Revista Canjerê pode ser traduzida
em uma palavra: Empoderamento. A acepção desse termo reflete muito
bem o momento atual. Várias mulheres negras são símbolo de resistência
e militância. Elas defendem os seus direitos com garra, força e resiliência.
Essas guerreiras empoderadas, argumentativas e cheias de atitude abordam
temas veementes, como hipersexualização, relacionamentos inter-raciais,
estética negra, violência contra a mulher, machismo, feminismo e mercado de
trabalho. São muitas questões que permeiam o dia a dia das mulheres negras.
Mas elas não querem ficar só no discurso: propõem a busca por soluções e
resultados concretos.
Estrategicamente traçamos uma linha do tempo com mulheres de diversas
gerações para apresentar nesta edição. A dona Maria Marta Martins, de 73
anos, é o destaque da matéria “Mulheres da Vila Estrela”, grande matriarca do
Aglomerado Santa Lúcia. Conceição Evaristo, 69, é uma das mais importantes
escritoras negras da atualidade. A autora foi entrevistada na cidade de Ouro
Preto (MG), lugar marcado por forte influência da cultura de matriz africana.
A matéria de capa traz a cantora Gaby Amarantos, 37, mulher negra e
nortista que enfrentou o racismo e a ditadura dos padrões de beleza para
se tornar referência musical no país. Como exemplo de uma geração mais
recente, destacamos Mc Soffia, 11. A revelação infantil no rol das mulheres
empoderadas é a mais nova representante da militância negra no campo
musical. Ela é a comprovação de que a luta é perene e vale a pena.
Para além das pautas, as próximas páginas refletem a nossa diligência
para oferecer ao leitor um conteúdo que busca registrar a história artística e
cultural da população afro-brasileira, do ponto de vista de quem a vivencia no
dia a dia.
Então aí está uma produção especial para você conhecer o fascinante
universo das atrações de matriz africana e afrodescendente.
Afroabraço e boa leitura!
Ibrahima Gaye
CENTRO CULTURAL CASA ÁFRICA - BRASIL - SENEGAL
Maria de Mazzarelo Rodrigues
MAZZA EDIÇÕES - BRASIL
Marcial Ávila
CASARÃO DAS ARTES - BELO HORIZONTE/MG - BRASIL
Maria Nazareth S. Fonseca
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS - BRASIL
Olusegun Michael Akinrulli
AV. BERNARDO MONTEIRO, 414 - SANTA EFIGÊNIA
30150-280 - BELO HORIZONTE/MG - TELEFONE: (31) 3273 0601
[email protected]
INSTITUTO YOURUBÁ - BRASIL - NIGÉRIA
Sandrinha Flávia
Patricia Gomes (Guiné-Bissau)
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - BRASIL
Rosália Diogo
CASARÃO DAS ARTES - BELO HORIZONTE/MG - BRASIL
EDITORA
RUA LINDOLFO DE AZEVEDO, 192 - SL. - NOVA SUÍÇA
30421-265 - BELO HORIZONTE/MG - TELEFONE: (31) 3226-2829
[email protected]
Foto: Bruna Brandão
R EVISTA CANJ ERÊ - 3
E n tre v i s ta
Conceição Evaristo
Becos de Memória em Ouro Preto
Linhas de resistência e escrevivência
“E como a escrita e o viver se con(fundem),
sigo eu nessa escrevivência.”
Foto: Joyce Fonseca
Moisés Mota
GRADUANDO EM JORNALISMO PELA UFOP, É COLABORADOR DO CASARÃO DAS ARTES E MEMBRO DA ACADEMIA
DE CIÊNCIAS E LETRAS DE CONSELHEIRO LAFAIETE - MG
4 - R EV ISTA CA NJERÊ
Em novembro de 2015, a
escritora
Conceição
Evaristo
esteve em Ouro Preto para
participar do Fórum das Letras
– evento literário promovido
anualmente pela Universidade
Federal de Ouro Preto (Ufop).
O encontro da escritora engajada
na luta do povo negro com
a cidade que fora berço da
escravidão negra no Brasil foi um
momento histórico.
Maria
Conceição
Evaristo
Brito nasceu em 1946, na extinta
favela Pindura Saia, em Belo
Horizonte. A escritora cresceu
rodeada de aprendizado. Na
infância, quando percebeu que já
sabia ler, dava aulas particulares
para seus vizinhos, reforçando
o que aprendeu desde cedo:
“compartilhar suas vitórias e
conquistas”. A época escolar não
foi fácil, mas sua mãe sempre
foi grande incentivadora dos
estudos. Às vezes, ia para a escola
sem o café da manhã, mas nunca
sem o caderno.
Em 1972, a favela Pindura Saia
não existia mais. Evaristo lembra
como se fosse hoje a derrubada
da sua casa. “A gente desmanchou
o barraco para levar as tábuas e os
tijolos, e eu segurei o meu quarto
até a última hora. Ele foi o último
cômodo a ser derrubado”.
Os
ventos mudaram de
direção. Um ano depois, ela se
mudou para o Rio de Janeiro.
Na capital fluminense, Evaristo
se formou em Letras pela
Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), fez mestrado
na PUC/Rio e doutorado na
Universidade Federal Fluminense
(UFF/RJ).
Com o apoio do Ministério
da Cultura, ela lançou seu
primeiro livro Becos da Memória
em 1988 – ano do centenário
da abolição da escravatura.
A
partir
daí,
vieram
os
lançamentos do romance Ponciá
Vicêncio, em 2003, Poemas da
recordação e outros movimentos,
em 2008, e Insubmissas lágrimas
de mulheres – uma coletânea de
contos publicada em 2011.
Caminhando pelos Becos
dos Apaixonados no Centro
de Ouro Preto, Conceição diz
olhando para as paredes de
pedra da cidade: “É claro que
isto é trabalho escravo. Eu
fico vendo assentar pedra por
pedra. E será quanto tempo que
levava uma construção dessas?
Eles deveriam trabalhar noite e
dia para esta coisa ficar pronta.
Sem falar que apanhavam e
passavam fome...”.
REVISTA CANJ ERÊ - 5
Foto: Joyce Fonseca
““A nossa escrevivência não pode ser lida como história
para “ninar os da casa grande”, mas para acordá-los de
seus sonos injustos.”
Assim, nesse cenário de beleza e dor, a Canjerê
iniciou uma conversa com Conceição Evaristo.
Como é seu processo de escrita no dia a dia?
Eu não escrevo todos os dias. Na maioria das
vezes, eu passo até tempos sem escrever.
Sente falta?
Muita, muita! Por exemplo: agora eu estou me
sentindo mal, porque tenho produzido somente
textos críticos e palestras. Saio para um lugar; saio
para outro. E eu preciso parar para escrever. Estou
com dois romances, um livro de contos e um de
minicontos iniciados. Cheguei à conclusão de que,
para eu escrever, tenho que parar com essas coisas
que eu ando fazendo. Não tem condição. Enquanto
eu estou conseguindo produzir, preciso produzir.
Você acha que a Academia Brasileira de Letras
(ABL) representa a literatura afro-brasileira?
Sim. Quando você pensa que Machado de
Assis foi o fundador da Academia, eu acho que já
é uma representação da parcela negra brasileira,
pelo menos no momento da fundação. Hoje, por
exemplo, que escritor negro nós temos lá? Temos
o Proença. Agora, que mulher negra tem na
academia? Desconheço. Mas também não sei quais
são os propósitos da ABL. Se forem os de também
apresentar a diversidade da literatura brasileira,
então falta ainda uma representatividade no que
tange à autoria de mulheres negras.
O que você está achando das produções literárias
afro-brasileiras mais recentes?
Acompanhando este ensaio fotográfico, a gente
vê que Ouro Preto foi uma cidade construída com
a força dos povos escravizados. Como é chegar
atualmente a Ouro Preto, sendo uma escritora
negra reconhecida e sabendo desse histórico da
cidade?
Eu acho que deu um grande salto em termos de
valorização e visibilidade desses textos. A gente não
pode perder de vista essa perspectiva histórica. Os
Cadernos Negros foram fundamentais. Para isso,
muitos escritores e escritoras passaram primeiro por
publicações nos Cadernos Negros. Outro aspecto
relevante nesse projeto histórico é o acesso de
estudantes negros à universidade. Essa relevância
não é só na questão da literatura, mas de um modo
geral. Muitas mulheres, negras e brancas, também
estão trabalhando com os meus textos. Eu acho
que ainda não chegamos a um estágio que a gente
mereça. Se a universidade pretende ser universal,
tem de caber ali toda a cultura, todos os processos
criativos e toda a diversidade no mesmo patamar e
com a mesma valorização.
Olha: a primeira sensação que eu tenho é que
estar em Ouro Preto é estar no meu lugar; é como
voltar e recuperar um território. Ouro Preto é um
espaço de memória negra. Pensar a construção
desta cidade é pensar o sangue negro; o sangue
escravo que está aqui derramado. Eu acho que
nas ladeiras de Ouro Preto escorrem lágrimas;
lágrimas de sangue. Hoje a cidade tem esta beleza e
é considerada patrimônio cultural da humanidade,
porém, quem construiu esse patrimônio? Foram
justamente os sujeitos que tiveram negada a sua
humanidade. Então me emociona muito e, ao
mesmo tempo, dá a certeza de que Ouro Preto,
não só Ouro Preto, mas a nação brasileira é minha.
Nada que o Estado brasileiro fizer, como as ações
afirmativas para compensar o que foi feito aos
6 - R EV ISTA CA NJERÊ
africanos aqui escravizados e seus descendentes vai
saldar essa dívida histórica. É pouco ainda... A dívida
é eterna. Ontem uma menina daqui estava me
dizendo de um bairro pobre onde está justamente a
população mais vulnerável, sem nenhuma condição
econômica. É a população mais vítima e a mais
produtora da violência pela questão da droga.
Ninguém percebe que isso é consequência de um
processo histórico, de um processo de escravização
e da luta de classes. E aí eu fico pensando: será que
essas pessoas pensam que esta cidade é delas ou
dessa juventude que está lá e hoje está vulnerável
ao tráfico e à violência? Quem desses jovens tem a
perspectiva de fazer uma faculdade aqui? Quem?
“Estar em Ouro
Preto é estar no
meu lugar; é como
voltar e recuperar
um território.”
REVISTA CANJ ERÊ - 7
C a n je rê
Casarão das Artes
Nossos encontros de afrocultura
Equipe Casarão das Artes
A Revista Canjerê agrega pessoas e
aponta para novas ações
Quilombo Urbano foi destaque na
Feira Nacional de Artesanato
O dia 5 de dezembro de 2015 ficou marcado
para a equipe do Casarão das Artes, os parceiros,
colaboradores e demais interessados em culturas.
A Revista Canjerê lançou a sua segunda edição. O
local foi o mais original e propício – Centro Cultural
Casa África. As dezenas de pessoas presentes
propuseram vários temas para serem analisados
e incluídos nas próximas edições. Este é o objetivo
da Revista: agregar pessoas para fortalecer a mídia
negra.
A atração cultural ficou por conta do profissional
de comunicação e Dj Du Pente. Ele embalou a todos
com um repertório recheado de música negra.
A grife Chica da Silva e o Instituto Cultural Casarão
das Artes executaram o projeto “Quilombo Urbano”
– uma representação da arte e do artesanato negros
de Belo Horizonte. O evento aconteceu durante a 26ª
Feira Nacional de Artesanato realizada em dezembro
de 2015. A experiência da grife em feiras permitiu
que os idealizadores percebessem a ausência de
negros ou de uma cultura que efetivamente os
representasse na feira.
A contrapartida dos proponentes para a obtenção
de um espaço mais amplo no local foram as oficinas.
Os empreendedores Virgínia Marques (Black Vika),
Cida Santos (Nêga Badu) e Énia Dára (Feira Ébano),
além de Etiene Martins (Mazza Edições) e do artista
Camilo Gan (Bloco Afro Magia Negra), promoveram
oficinas e ministraram palestras, tudo com a
coordenação de Marcial Ávila (Chica da Silva). E todas
as marcas fizeram um cortejo pelos corredores da
feira mostrando suas produções.
Bairro Concórdia festeja a coroação
da Nova Rainha do Congado
De origem africana, o congado é uma
manifestação cultural que mistura cultos católicos e
africanos. As guardas de congado nasceram com o
povo Bantu principalmente nas áreas do Congo, de
Angola e de Moçambique. E essa tradição se mantém
viva no bairro Concórdia, em Belo Horizonte. O 8
de dezembro de 2015, Dia de Nossa Senhora da
Conceição, está marcado por um momento histórico
para o congado mineiro: Isabel Casimira foi coroada
a nova Rainha da Guarda de Moçambique e do
Congo Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário.
Escolhida pelos membros da comunidade, a nova
rainha assume o lugar de sua mãe, a falecida Isabel
Cassimira das Dores Gasparino. Além de Rainha da
comunidade, ela era Rainha Conga do Estado de
Minas Gerais. A equipe do Casarão das Artes esteve
presente para participar da solenidade de coroação.
Negrura Linda
No dia 20 de dezembro de 2015, a Black Vika
realizou o Negrura Linda – Não é só cor de pele.
A proprietária da marca e vice-presidenta do
Casarão das Artes, Virgínia Marques, escolheu o
Empoderamento da Raça Negra como mote para a
produção do evento. As conquistas são traduzidas
pela visibilidade das artes, da dança, da música e do
empreendedorismo dos movimentos LGBT, hip-hop
e dos ligados às ações sociais. A oportunidade de
encontro e interação envolvendo essa diversidade
cultural propiciou uma grande confraternização
de talentos e parcerias somada à boa energia dos
presentes.
Belo Horizonte recebe Folia de
Santos Reis de Paracatu de Baixo
No dia 10 de janeiro, a equipe do Casarão das
Artes marcou presença na Paróquia Nossa Senhora
do Morro, localizada no aglomerado da barragem
Santa Lúcia. No local também está instalado o
Museu dos Quilombos e Favelas Urbanas (Muquifu).
Os representantes do Casarão assistiram à
apresentação do grupo “Folia de Reis de Paracatu
de Baixo”. O grupo é proveniente do subdistrito de
Monsenhor Horta, município de Mariana. O encontro
do grupo com a comunidade foi alusivo ao dia de
Reis comemorado em 6 de janeiro. Segundo Dalva
Pereira, Museóloga do Muquifu, o grupo trouxe à
comunidade do Aglomerado uma mensagem de
esperança e de exemplo na luta pela preservação
da memória, da identidade e dos valores culturais.
O encontro ocorreu no dia 10 de janeiro.
Canjerê Mulher. Parceria com o
Memorial Minas Gerais Vale
Em 2015, o Casarão das Artes organizou três
eventos em Parceria com o Memorial Minas Gerais
Vale: Palestras Feminino Negro, com a artista visual
e fotógrafa Maria Rosa, Nelson Mandela – O Homem
do Século XX, com o filósofo Marcos Cardoso e
Pigmentos e Melanina, com o artista Marcial Ávila e
o jornalista Robson Di Brito.
A bem-sucedida experiência foi motivo para que o
Memorial convidasse o Casarão das Artes a ocupar o
espaço com arte e cultura negra em 2016. A utilização
do espaço começou no dia 12 de março, com o
primeiro Canjerê do ano intitulado Gèledés: o Poder
do Canto Feminino. As atrações ficaram por conta
das cantoras D’aiolla e Eda Costa, acompanhadas
por Débora Gregório, Gleison Júnio e Felipe
Venceslau nos instrumentos. E para incrementar
a apresentação, as cantoras convidaram um coro
formado pelas artistas Carlandreia Nascimento,
Madu Costa e Vânia Gregório. Sempre presente nos
eventos que promovem a cultura negra, o Clube de
Blogueiras Negras de BH cobriu a apresentação.
Fotos:
Equipe Casarão das Artes e
Etiene Martins
8 - R EV ISTA CA NJERÊ
REVISTA CANJ ERÊ - 9
G e nte d o C a n je rê
Leo Olivera e a música
negra no mundo
“Todos os estilos musicais
atuais, ou pelo menos a maioria
do que está aí, dependeram da
música negra”, afirma Leo Olivera,
pesquisador, colaborador do
Casarão das Artes, DJ e professor
da Escola de Arquitetura da
UFMG.
A fala não poderia ser mais
assertiva. Segundo Leo, uma
das principais características
da música negra é o ritmo, e foi
isso que a tornou tão cotidiana:
“A música africana é corpo; ela
tem sintonia com o movimento,
com o ritmo, e movimento é vida.
Não é uma música puramente de
contemplação como a erudita. Há
muito mais influência da música
africana na composição popular”,
contextualiza.
Entusiasta da música de
matriz africana, ele tem interesse
especial pela música eletrônica
e pesquisa as similaridades
rítmicas dos dois estilos. Leo
apresenta um programa sobre
música eletrônica na rádio FM
da UFMG (*) com os resultados
dessas pesquisas: “As pessoas,
de uma forma geral, têm um
entendimento superficial sobre
a música eletrônica. Ela está
fortemente presente no contexto
da música negra também”,
explica. “Ritmos como house, acid
jazz, techno, drum´n´bass, funk
carioca devem a artistas negros
suas criações em situações muito
análogas à do surgimento do
jazz e do rhythm in blues, por
exemplo”, destaca.
Como
pesquisador,
Leo
considera que o Jazz é vertente à
parte da black music.
“Tudo que é muito bom, nasce no jazz,
se cria no blues, amadurece no soul
e depois vira hip-hop”
Roger Deff
RAPPER E JORNALISTA
Segundo ele, o jazz surgiu com
blues muito antes de surgiram
gêneros como o soul e o R&B.
“Os negros que foram para o
sul dos EUA são da costa-oeste
da África e tinham uma cultura
musical muito rica. O jazz é ritmo
derivado do ancestral africano
misturado com o que se tinha de
popular na música da Europa no
mesmo período”.
Apesar do racismo
Mesmo em um país com
histórico
de
discriminação
racial explícita, como os Estados
Unidos, a música negra e os
artistas negros ocupam posição
de destaque. Para Olivera, essa
faceta da expressão cultural
negra não é discriminada por
uma questão de mercado.
“A música negra não sofre
preconceito porque dá dinheiro.
Simples assim. Durante mais de
40 anos, os negros americanos
bancaram
esse
mercado
musical. Os primeiros discos
de blues, jazz, soul, R&B e funk
eram gravados para venda
num mercado para os negros
(conhecida como música de
raça). Os brancos só começaram
a consumi-los na década de 50.
É por esse motivo que James
Brown tinha uma gravadora.
Ele sabia que se não tivesse o
próprio selo, seus discos não
chegariam ao público negro. Foi
só depois da Segunda Guerra
que os brancos tomaram
conta desse mercado. Antes
disso, muitos negros tinham
gravadoras e emissoras de rádio
pois sabiam que, sem isso, suas
canções não seriam divulgadas.
Houve muita batalha do povo
negro norte-americano e sua
música para que, no fim das
contas, ela quase terminasse nas
mãos dos brancos”, problematiza.
Leo lembra que a música
negra sempre esteve muito
próxima da vida cotidiana do
povo negro, sempre presente nos
momentos de tensão social, nas
mobilizações. E seguiram assim,
deixando rastros e heranças,
como no hip-hop.
A
composição
negra
moderna nasce nesse contexto.
“Recentemente tivemos dois
exemplos incríveis que foram
Beyoncé e Kendrick Lamar,
ganhando
premiações
por
trabalhos que abordam em
suas músicas os problemas da
comunidade negra. É preciso
entender que a música negra é
o grande meio de revolução que
temos em mão porque alcança
mais pessoas. O hip-hop, por
exemplo, tem um contexto muito
mais evidente de revolução
social que imaginamos. O fato de
Kendrick se apresentar vestido de
presidiário numa premiação do
Grammy, trazendo à tona todo
um histórico de desigualdade, já
é incrível e confirma isso”, conclui.
(*) Você pode ouvir um pouco dos
resultados das pesquisas de Leo
Olivera sobre música negra e música
eletrônica no programa ELEKTRONICA,
que vai ao ar todos os sábados, às 21h,
na Rádio UFMG Educativa FM 104,5
ou acessar em tempo real, no site
www.ufmg.br/radio
Foto: Ricardo
Foto:S. G.
10 - REV ISTA CA NJ E RÊ
Ricardo S. G.
REVISTA CANJ ERÊ - 1 1
Olhar Social
Mulheres da Vila
Estrela
Universo feminino permeia história e acervo do
Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos
Brígida Alvim
JORNALISTA E PRODUTORA CULTURAL
Foto: Moisés Mota
O Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos
(Muquifu) tem o papel de salvaguardar a
memória da comunidade que habita a região
desde a década de 20. O espaço foi aberto há
pouco mais de três anos na Vila Estrela, que fica
no Aglomerado Santa Lúcia, em Belo Horizonte.
De forma sensível e lúdica, o museu revela o
cotidiano e as raízes culturais da população do
Morro. O acervo reúne objetos pessoais, fotos,
12 - REV ISTA CA NJ E RÊ
pinturas, lembranças, imagens, livros, filmes e
exposições. “É o primeiro museu voltado para
a cultura da periferia com temática específica
quilombola e racial”, ressalta o padre Mauro Luiz
da Silva, diretor e curador do museu.
O universo feminino permeia significativamente
o local. A Capela Maria Estrela da Manhã,
conhecida como Igreja dos Santos Pretos, é o
maior símbolo dessa influência. Ela está instalada
na entrada da Vila e integra o
Muquifu. Tudo começou pela
iniciativa de 14 mulheres negras
que bravamente ocuparam
e mantiveram um cômodo
para
promover
encontros
comunitários e orações.
O templo é completamente
original. As imagens sacras
são de santos pretos que
retratam
a
comunidade
predominantemente formada
por
negros.
Duas
santas
produzidas em gesso pela
artista plástica Sônia Toledo
receberam rostos de Generosa
e Marta, que estão entre as
senhoras que batalharam pela
igreja. Já os artistas Marcial
Ávila e Cleiton Gos desenvolvem
a pintura das paredes em
obra que relata a vida das 14
mulheres
da
comunidade,
fazendo uma metáfora com
as 14 cenas de Maria (mãe de
Jesus) descritas na bíblia.
Maria
Marta
da
Silva
Martins, de 73 anos, é uma
das matriarcas que alicerçam
a história e recebeu uma santa
em sua homenagem. Ela nasceu
e cresceu na comunidade, é
Rainha de Santa Efigênia da
Guarda de São Cosme e Damião
e exerce importante função na
Capela. Delicada, fala baixo e
sereno, mas de mansa não tem
nada. Sozinha, criou oito filhos
e ajuda na criação de quatro
netos e uma bisneta.
O marido morreu quando
ela tinha apenas 23 anos. “Sofri
muito e precisei trabalhar
demais para sustentar meus
filhos”, lembra. Por muitos
anos, trabalhou como faxineira
em casas de família e em
empresas até se aposentar.
Não faltaram pretendentes,
mas Marta não quis se casar
novamente. “Homem é muito
difícil. Chega cheio de carinho
quando
quer
conquistar,
mas, depois que casa, muda
tudo! Fico vendo as moças
de hoje, que se casam e um
mês depois já estão brigando.
Eu não quero brigar. Por isso
prefiro ficar sozinha com meus
meninos, sem ninguém para
me atrapalhar”, explica, segura
e bem-humorada.
Marta avalia que hoje
tem tempo para cuidar de
sua casa, dar mais atenção
à família e participar das
atividades
da
comunidade,
como festividades, encontros,
reuniões, atos políticos e
celebrações
religiosas.
Os
passeios preferidos são os
festejos de Congado e as
viagens para procissões. “Além
de rezar, a gente aproveita para
passear na cidade, comprar
alguma coisa e, à noite, sair pra
dançar”, revela com sorriso no
rosto.
Para conhecer mais sobre o
universo de Dona Marta e de
outras mulheres da Vila Estrela,
é indispensável a visita à Capela
dos Santos Pretos e ao Muquifu.
Esses locais revelam artes,
costumes, sentimentos, saberes
e fazeres que representam
sobremaneira
as
culturas
popular e afro-brasileira. Essas
manifestações estão presentes
e, ao mesmo tempo, invisíveis
no nosso cotidiano.
Foto: Moisés Mota
REVISTA CANJ ERÊ - 13
M até r i a d e C a pa
Aos 15 de idade, Gabriela Amaral dos Santos
trabalhava como atendente de telemarketing e
dava aulas de reforço escolar para alunos do ensino
médio para garantir alguma renda durante o mês.
Na periferia de Belém, onde nasceu, o sonho de ser
cantora era vivenciado ocasionalmente, quando
havia tempo e oportunidade. Foi assim até que,
aos 18 anos, ela conseguiu permissão dos pais
para cantar em bares e participar de bandas.
Negra e acima do peso, Gabriela estava longe
de ter o perfil desejado pelo mercado, como ela
recorda. “Eu cantava bem, mas não era a vocalista
branca e magra que as pessoas queriam. Os grupos
não tinham coragem de colocar suas músicas de
trabalho na minha voz por causa da minha imagem.
Então resolvi montar a minha banda”. E assim se
fez Gaby Amarantos.
Apesar de todos os ingredientes para uma
narrativa autopiedosa, não há rancor nas memórias
da artista. Militante firme, que tem dimensão da
importância social e coletiva da sua trajetória
individual, ela recusa o tom de lamúria. “Vejo essa
fase com gratidão. Que bom que eu tive coragem
de acreditar no meu trabalho! A gente não tem que
dar bola para o não”.
Autoconfiante, ela tem consciência de que
venceu muitos desafios, do preconceito racial à
timidez. “Mesmo com todas as dificuldades, eu
sabia que ia conseguir. Acreditava nisso e cheguei
onde queria”, diz a cantora que venceu quatro das
cinco categorias do MTV Music Award em 2012.
Foi também nesse ano que ela foi apontada como
a melhor cantora pela Associação Paulista dos
Críticos de Arte (APCA). Com o sucesso Ex-Mai Love,
ela recebeu o Prêmio Multishow na categoria Novo
Hit.
Entre outras conquistas, garantiu no VMB 2012
os prêmios Artista do Ano, Melhor Artista Feminina
e Melhor Capa – três das quatro categorias em
que foi indicada. “Os prêmios abrem portas. As
pessoas passam a ver você com mais respeito.
Naquela época, eu ainda não tinha música na
abertura de novela”. A cantora paraense também
lembra a indicação ao Grammy Latino como um
momento “inesquecível” de sua carreira. “Mas
ainda tenho muito a conquistar. Agora é trabalhar
para continuar na estrada”.
Carisma e
Determinação
Gaby Amarantos conduz sua trajetória
artística com passos firmes
Janaina Cunha
JORNALISTA CULTURAL E EDITORA DA REVISTA MITOCÔNDRIA. ESPECIALISTA EM GESTÃO DE PROJETOS,
FOI SUPERINTENDENTE DE AÇÃO CULTURAL E INTERIORIZAÇÃO DA SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA.
TRABALHOU COMO REPÓRTER DOS JORNAIS O TEMPO E ESTADO DE MINAS.
MULHER NEGRA
Preconceito racial e de gênero caminham juntos
na observação de Gaby Amarantos. Para ela, a
opressão contra a mulher está também diretamente
relacionada ao racismo, como duas forças que se
somam contra os direitos das mulheres negras no
país. “O racismo ainda é tão velado e hipócrita no
Brasil que fico preocupada com a forma leviana
como as pessoas tratam do assunto, como se fosse
algo que não merecesse atenção”. Ela lembra casos
recentes em que personalidades do meio artístico
foram achincalhadas em redes sociais. “São artistas,
apresentadoras, atrizes e gente famosa sofrendo
com isso. Imagina então como é para mulheres
negras, pobres e de periferia. A gente ainda está
numa situação de combater com energia essas
agressões”.
Para Gaby, no entanto, a principal arma contra
a opressão é o amor. A cantora critica as reações
agressivas as quais ela considera tão racistas
quanto as provocações que as originaram. “É um
erro continuar o processo de ridicularização do
outro. Fico receosa quando vejo isso acontecer.
O fato de eu ser uma negra com o cabelo alisado
e loiro, por exemplo, não faz de mim menos
ativista. Nós, negros, precisamos nos fortalecer
internamente”. Dar conta de tratar “com amor”
essa e outras questões que geralmente dividem
contundentes opiniões no movimento negro, para
Gaby, é o grande diferencial.
“Eu cantava bem,
mas não era a
vocalista branca
e magra que as
pessoas queriam”
Foto: Netun Lima
14 - REV ISTA CA NJ E RÊ
REVISTA CANJ ERÊ - 15
Ela defende uma revolução social que se dê,
sobretudo, por um processo de conscientização o
qual a cantora percebe estar cada dia mais forte
e consequente. Segundo Gaby, a postura assertiva
dos militantes tem conseguido mudar o pensamento
de uma geração que já avançou quanto ao que se
espera socialmente das mulheres. “Hoje vemos
mulheres negras felizes com sua sexualidade e sua
negritude. Isso é uma questão importante. Esses
movimentos têm que ser observados, exaltados e
aplaudidos”.
DITADURA DA BELEZA
Em 2013, Gaby Amarantos recebeu convite
para participar de um reality show com meta para
perda de peso. E aceitou. Na época, perdeu quase
20 quilos e chegou a vestir numeração 38, algo
impensado até então. O resultado, no entanto,
mais uma vez não estava no rol de critérios a serem
atendidos comercialmente. Não era uma resposta
à capacidade de alcançar os padrões vigentes de
beleza.
“Quando me propus aceitar, pensava em
emagrecer por uma questão de saúde. Estava em
busca de uma alimentação mais saudável e de
bem-estar”, ela diz. E chama a atenção para o fato
de continuar não sendo uma mulher magra, de não
atender a essa falsa expectativa social. “Não deixei
de ter orgulho de ser como sou. Apenas melhorei
um pouco minha qualidade de vida. Eu me sinto
muito bem não sendo uma mulher magra, e perder
peso não é um objetivo de vida”.
A cantora, ativa nas redes sociais, “causa
reboliço” com a publicação de fotos na contramão
da estética convencional. “Não aceito a crítica como
uma imposição. Posso postar o que eu quiser, do
jeito que eu estiver fisicamente. Toda mulher pode
se sentir bonita com o próprio padrão e não deve
aceitar nada diferente disso”.
Não por acaso, essa convicção, somada
ao carisma e ao despojamento, conduziu
Gaby para a segunda temporada à frente do
programa de moda Troca de Estilos, no Discovery
Home&Health, neste ano. Acompanhada por
uma equipe de especialistas, ela atua como uma
consultora de estilo dos participantes. E elogia
a iniciativa do canal: “Muito legal esse espaço
que eles abrem para pessoas normais. Tenho
muito orgulho de estar fora do estereótipo de
apresentadora-Barbie. A diversidade do brasileiro
tem que ser contemplada”.
CANTORA APOSTA EM REPERTÓRIO
AUTORAL
Em 2012, Gaby Amarantos lançou seu primeiro
álbum solo, o “Treme”, e um ano depois já fazia sua
primeira turnê internacional, levando seu trabalho
a Londres, Bélgica e Nova Iorque. Na América
Latina, realizou shows na Argentina e na Colômbia.
Para o segundo semestre deste ano, ela espera
voltar a circular mundo afora, desta vez, em show
um pouco mais condensado – e “extravagante” –,
com participação de DJs para ser possível levar sua
música numa estrutura um pouco mais reduzida.
Mas o foco deste primeiro semestre é o lançamento
do segundo CD, que está centrado em composições
de sua autoria. “Gosto de viajar, mas esse é um
projeto paralelo. Estou mesmo concentrada
em conseguir lançar o CD para mostrar minha
diversidade como compositora”, adianta.
Com o feito de conseguir destaque num país de
cantoras extraordinárias, ela brinca: “Não posso
me sentir menos que extraordinária também. Hoje
tenho colegas incríveis, como a Elza Soares, que
cresci ouvindo com admiração”. A cantora paraense
também aponta Sandra de Sá e Alcione como
artistas que a inspiram. De certo modo, o trabalho
delas estimulou Gaby, a continuar perseguindo o
sonho de atuar profissionalmente como cantora.
“Sou fã de todas elas. Fazer parte desse convívio é
algo maravilhoso”.
Bem-humorada e segura das decisões – práticas
e ideológicas – que precisa tomar rotineiramente
na condução de sua carreira, Gaby lembra que,
no início, via uma montanha e só pensava que
era necessário chegar ao topo dela. Hoje está
convencida de que não precisa ser considerada a
“artista número 1” para se sentir valorizada no que
faz. “O importante é você estar num lugar onde as
pessoas saibam quem você é”.
E agora que encontrou o caminho, ela investe
em novas oportunidades. “O que quero é continuar
mostrando minha diversidade como uma cantora
de forma universal, mostrar minha música e
prosseguir”.
Foto: Netun Lima
16 - REV ISTA CA NJ E RÊ
Foto: Bruna Brandão
REVISTA CANJ ERÊ - 17
Ne g ó c i o s
Mulheres negras
Empreendedorismo e resistência
Célia Gonçalves Souza
JORNALISTA, EMPREENDEDORA SOCIAL DA REDE ASHOKA E COORDENADORA NACIONAL DO CENARAB
Como jornalista negra, falar da
mulher empreendedora com foco
em tecnologia não me permite
focar apenas nesse tema tão atual
e importante em nosso contexto.
Por isso, vou fazer pequenas
digressões que me remetem às
estórias contadas em casa pelos
meus pais. Eles falavam sobre o
papel das mulheres negras como
protagonistas de uma história
em que figuram como pilares
de suas fragilizadas famílias.
Essas mulheres se tornaram
empreendedoras sem nem saber
o que era isso. A necessidade
não lhes dava alternativas: elas
tinham de ir para as ruas vender
seus quitutes, seus doces, lavar
roupas, cozinhar e empreender
suas vidas. Era questão de
sobrevivência. Isso ocorreu após
a chamada “abolição”, quando
os homens negros tinham diante
de si grandes dificuldades de
acessar o mercado de trabalho.
Portanto, coube à mulher a
tarefa de prover a sobrevivência
de todos com suas artes,
talento, sabedoria e espírito
empreendedor.
Com o passar dos anos, essa
mesma mulher foi adquirindo
conhecimentos e aperfeiçoando
suas técnicas. Assim ela percebeu
a própria capacidade de identificar
oportunidades que permitiriam
a ela transformar suas ideias
criativas em lucro. Mas a própria
condição de mulher negra num
país entremeado em preconceitos
raciais e de gênero não facilita
sua condição empreendedora.
Isso afeta de forma visceral sua
competitividade.
Por isso, mesmo com o
pioneirismo
das
mulheres
negras empreendedoras, vemos
bem poucos empreendimentos
sustentáveis
que
tenham
mulheres negras à frente.
Vivemos num período em
que há uma ação afirmativa
em
relação
aos
valores
culturais. A história e a tradição
afro-brasileiras,
aliadas
ao
acesso à educação, ao mercado
de trabalho e de consumo,
fazem com que a população
negra, historicamente excluída,
permaneça sendo tratada na
invisibilidade. Essa condição
passa a ser reconhecida e
cobiçada em seu potencial
econômico. A indústria e o
mercado percebem que há uma
classe média negra que não mais
aceita produtos que reproduzam
estereótipos e arquétipos que
não lhe dizem respeito. Então
o consumidor negro opta por
consumir produtos compatíveis
com seu gosto.
O afroempreendedorismo é
visto por muitos como modismo,
uma
simples
tendência,
folclore, exotismo. Nós, porém,
encaramos como fortalecimento
de uma identidade, de um
pertencimento que vai além
A empresária Totty Soraya,
da marca Criações em
E.V.A (BH), cria bonecas
afropersonalizadas com
objetivo de trabalhar
a autoestima e a
representatividade das
crianças negras. Sua filha
Nicoly Dandara ajuda
nas vendas reforçando a
nova geração de mulheres
negras empreendedoras
A empresária Jossély Alves,
da grife Crespo Soul (RJ),
é um exemplo de mulher
afroempreendedora.
Ela participa de feiras em
vários estados brasileiros
levando a sua arte que é
inspirada no conceito étnico
Foto: Davidson Reis
Foto: Davidson Reis
18 - REV ISTA CA NJ E RÊ
do campo do consumo. A
participação no mercado de
consumo
e
empreendedor
estende a atuação negra para
o campo do fortalecimento
político, econômico e social. Isso
justifica o investimento em novas
tecnologias que nos atendam em
nossas especificidades objetivas
e subjetivas.
Precisamos de tecnologias que
nos compreendam como sujeitos
da própria história dotados de
desejos, opiniões e tendências.
Apostamos num mercado que
nos inclua e nos compreenda e
que esteja disposto a empreender
tecnologias que nos contemplem
em nossa complexidade de ser.
Não
existem
espelhos
que
reflitam
grandes
e
variadas
experiências
de
empreendedorismo feminino que
lhes possam assegurar a troca
de experiências e de inspiração.
Como se não bastasse, existem
as dificuldades de incentivo de
financiamento em um mercado
majoritariamente masculino e
preconceituoso. Esses aspectos
são relevantes e desagregadores
da ideia de que, sim, a maioria
das
mulheres
negras
são
empreendedoras e competentes
na gestão de negócios e no uso de
tecnologias. Há uma desconexão
entre o mercado empresarial
e de financiamento com a
realidade das empreendedoras
negras. Elas não dispuseram
do nome e do sobrenome de
famílias tradicionais e com veias
empresariais; contam apenas
com a própria história de desejo
de transformar para sobreviver.
As
empreendedoras
negras
não dispõem de uma tradição
e de uma história familiar que
lhes permita ter um ponto de
partida para dar continuidade ou
transformar. Se alguns já nascem
no topo da árvore, ainda que
essa árvore tenha sido forjada a
partir da exploração de outros,
as negras e os negros deste país
nascem fortes, empreendedores
e resistentes a partir da semente.
REVISTA CANJ ERÊ - 19
Te a tro
M ú sic a
Oduduwá
MC Soffia
“Foram me chamar
Eu estou aqui. O que é que há?
Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho
Mas eu vim de lá pequenininho
Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho”
Representatividade não tem idade
Du Pente
DJ, PUBLICITÁRIO E PRODUTOR CULTURAL
Aline Vila Real
FORMADA EM COMUNICAÇÃO SOCIAL, ESPECIALIZADA EM IMAGENS E CULTURAS MIDIÁTICAS, INTEGRANTE DO GRUPO TEATRAL ESPANCA! E DO
NEGR.A – COLETIVO DE NEGRAS AUTORAS. É UMA DAS IDEALIZADORAS DO POLIFÔNICA NEGRA
É evocando Dona Ivone Lara que respondo a esse
chamado da Revista Canjerê. Dona Ivone é a rainha
dos bambas tal quais as pessoas que encontrei na
Bahia durante o IV Fórum Nacional de Performance
Negra. É assim que eu sintetizo a experiência de
quatro dias de encontros com artistas, produtores e
articuladores negros – atuantes sobretudo nas Artes
Cênicas – provenientes de todas as regiões do país.
Fazendo jus ao seu significado etimológico, o Fórum
foi um espaço para discussão política, religiosa,
econômica e social, permeado pela Arte Negra.
Nessa edição foi lançada a Campanha CULTURA
SEM RACISMO – buscando estabelecer estratégias
de participação na definição dos rumos das políticas
públicas para as artes.
O fórum trabalhou as possibilidades de ação
dos artistas negros em sua dimensão política,
estética e ideológica. O êxito na realização dessa
Foto: João Milet Meirelles
20 - REV ISTA CA NJ E RÊ
quarta edição pode ser medido por suas propostas
concretas. Dentre elas, destaco a reivindicação por
representatividade negra nos cargos de curadoria,
seleção e decisão nos setores culturais dos órgãos
públicos. Outra proposta relevante é o entendimento
das políticas de ações afirmativas como parte de
um processo de reparação, ciente de que o trabalho
artístico desenvolvido na performance negra tem
valor como obra de arte. A arte negra é capaz de
ser referência no universo das artes cênicas. Sendo
assim, as políticas públicas precisam absorver essa
produção dentro de seu ‘ecossistema cultural plural
e diversificado’ (assim qualificado pelo Minc e pela
Funarte) na mesma medida de sua relevância.
O Fórum mais uma vez teve como principal
estratégia a Convivência – vários sotaques seduzindo
uns aos outros para a construção do comum,
com reconhecimento das individualidades e das
subjetividades do coletivo. Estiveram presentes
aproximadamente 300 pessoas de mais de 80
coletivos dos diversos estados do país.
A grande homenageada do Fórum foi Mercedes
Baptista, bailarina e coreógrafa, considerada a
maior precursora do Balé e da Dança Afro no
Brasil. Presença predominante de mulheres
lançando seus livros, fazendo performances, dando
o tom dos debates – miras certeiras munidas de
discursos-flechas. Nada coincidência Elza Soares
ter sido evocada pelo coletivo de mulheres negras
que apresentaram a leitura dramática do texto
“Oduduwá - O poder feminino da criação”, de autoria
e direção de Fernanda Júlia.
Ubuntu.
Foto: Netun Lima
O ano de 2015 foi marcado pela efervescência
das expressões negras na cidade de Belo Horizonte.
Dentre as diversas manifestações, a oitava edição
do Festival de Arte Negra comemorou 20 anos.
“Encontros” foi o tema do festival que proporcionou
a reunião musical da Banda Aláfia, de São Paulo, a
cantora Zaika, de Belo Horizonte, e a revelação do
rap Mc Soffia, também de São Paulo.
Mc Soffia tem apenas 11 anos e surge como
protagonista na cena musical infantojuvenil e
independente. Com sua performance, Soffia elucida
a reflexão sobre quanto, no universo infantil,
o racismo estrutural está presente. Suas letras
questionam desde o lugar da sua beleza natural à
falta das bonecas negras nas lojas de brinquedos,
desconstrói, por meio de suas rimas, expressões
racistas naturalizadas ao longo da história, e tudo
isso com forte afirmação de sua identidade negra.
Ela esbanja empoderamento por onde passa,
seu som é influenciado pelos beats do rap,
dancehall e do reggae, estilos musicais de origem
negra que contagiaram o palco Baobá. Ela mesma
compõe suas canções que são baseadas em suas
jovens experiências, e conta com a colaboração de
familiares como sua avó, mãe e outros parceiros.
A DJ, que tem consciência que pode ser o que
quiser, além de abordar questões raciais e sociais,
aponta em um de seus versos o machismo imposto
nas brincadeiras de menino e menina, “... menino
e menina podem brincar de boneca”, um exemplo
de como a educação racial e de gênero devem ser
exercícios diários. Com tão pouca idade, Soffia é
exemplo de representatividade não só para as
crianças como para muito marmanjo.
REVISTA CANJ ERÊ - 2 1
Novos blocos afros esquentam o carnaval de BH
No tí c i a s
Literatura feminina dá voz
às mulheres marginalizadas
Em janeiro, a presidenta de honra do Casarão
das Artes, Rosália Diogo, participou do Zora! Festival
em homenagem à escritora americana Zora Neale
Hurston. O evento acontece há 25 anos na cidade
de Eatonville, Flórida, nos Estados Unidos. Diogo
falou sobre o protagonismo das mulheres negras
na literatura e em outras áreas do conhecimento.
Tendo como referência as escritoras negras Paulina
Chiziane, de Moçambique, Conceição Evaristo, do
Brasil, e Zora Neale Hurston, dos Estados Unidos,
Diogo destacou algumas consequências da diáspora
africana no mundo. Segundo ela, as três escritoras
optam por extravasar a forma redutora como a
escrita masculina trata o corpo feminino – ou o papel
da mulher – na maioria das vezes. “Entendemos
que as vozes de várias mulheres, secularmente
marginalizadas e oprimidas pelo sistema de poder
patriarcal e racista nos quais vivem, sejam ouvidas
por meio da produção literária dessas escritoras”.
Fotos: Acervo pessoal Rosália Diogo
Representatividade ganha
espaço no mercado infantil
Beyoncé celebra luta
e poder negro
A embalagem de fantasia do Finn - personagem negro coadjuvante de “Star Wars” - O Despertar da Força” - fez explodir a campanha “Não
me vejo, não compro” nas redes sociais. A bela
atuação de John Boyega repercutiu ainda mais
com a embalagem da fantasia, que foi ilustrada
por um menino branco. A campanha recebeu
apoio de um grande público e demonstrou a alegria de um menino negro por se sentir representado com a imagem do boneco. E, finalmente, a
empresa que fabrica a boneca Barbie anunciou
uma nova linha de bonecas “mulheres reais” com
quatro tipos de corpos, sete tons de pele, 22
cores dos olhos e 24 penteados. As empresas
estão começando a reagir às demandas estimuladas pela diversidade. Ainda há muito a ser mudado, mas estamos conquistando espaços com o
ativismo nosso de cada dia.
A cantora Beyoncé causou fortes reações com
o novo clipe da música “Formation”. No trabalho,
ela exalta as lutas contra a discriminação racial e
a cultura afro-americana. Com coreografia inspirada em formações militares e dançarinas usando roupas dos Panteras Negras, ela fez o show
no maior evento esportivo dos EUA, causando
grande polêmica. O ato foi político: uma resposta da cantora negra que assumiu o seu posicionamento como artista e cidadã. Na performance, Beyoncé explicitou seu apoio ao movimento
Black Lives Matter, que combate a brutalidade policial contra negros nos EUA. O clipe
“Formation” é um desfile de referências à história
dos negros. Ela soube usar seu poder e conquistou vários fãs com o clipe e a canção, já celebrada
como o novo hino do orgulho negro.
O renascimento do carnaval
de Belo Horizonte faz com
que, a cada ano, surjam novas
expressões culturais de matriz
africana.
As
manifestações
ampliam a diversidade de ritmos
e sons. O bloco Angola Janga
trouxe um novo colorido e energia
ao carnaval mineiro, tocando
Ilê Aiyê, Margareth Menezes,
Olodum, funks e ijexás de afoxés
baianos, como o Filhos de
Gandhy. O bloco exibiu e reforçou
a pluralidade da identidade
negra, tanto nas músicas quanto
no visual, trazendo uma bateria
exclusiva para aqueles que se
autodenominam negros. O bloco
Dreadlocko, com o cantor Sérgio
Pererê no vocal, trouxe uma
bateria de Dreads com forte
influência banto, iorubá e de
cânticos do candomblé. O bloco
Magia Negra cantou músicas
autorais e exaltou a cultura afro
com opanijé, ijexá, funk soul
e tamborzão. Já o bloco Afoxé
Foto: Raça Mundi
Bandarerê, que desfila desde
2014, ocupou novamente as
ruas da Concórdia, o bairro mais
negro de BH, onde começaram
muitas casas de candomblé e os
terreiros de umbanda. O bloco
também levou seu desfile para
outros pontos da cidade, como a
Praça da Liberdade e a Zona Sul
de BH. Os grupos conseguiram
agitar a cena carnavalesca e
levar um grande público às ruas,
celebrando a arte e a cultura
negra.
Carnaval 2016 prestigia cultura
e religiões afro-brasileiras
Neste ano, as escolas de samba do Rio
de Janeiro exibiram temas que dialogaram com a nossa ancestralidade, como as
religiões de origem africana e suas culturas. A Salgueiro falou sobre Exu e da
malandragem com um enredo cheio de
cores. A grande campeã Estação Primeira
de Mangueira homenageou a cantora Maria Bethânia, reconhecidamente adepta
do Candomblé e filha do orixá Iansã. Em
Belo Horizonte, a Canto da Alvorada foi a
campeã dos desfiles das Escolas de Samba. Com o enredo Tizumba Ê, a escola fez
uma bela homenagem ao cantor, compositor, multi-instrumentista e ator Maurício
Tizumba. O desfile reuniu representações
da religiosidade e da cultura afro-mineira.
Foto: Divulgação
Gente que apoia a Canjerê
A Revista Canjerê tem o privilégio de contar com o apoio e a
colaboração do vereador Arnaldo Godoy.
Ele é professor de História, graduado pela UFMG, e professor
licenciado do Instituto São Rafael. Está no quinto mandato como
vereador. No seu histórico político, Godoy se empenha na luta pela
afirmação da cultura negra em Belo Horizonte. O vereador criou leis
para o movimento e o apoio às manifestações de matriz africana,
como o Tambolelê, Tizumba, Tambores de Minas, Fala Tambor,
Odum Orixás, o terreiro Ilê Opô Jucam e grupos do hip-hop.
2 2 - REV ISTA CA NJ E RÊ
REVISTA CANJ ERÊ - 2 3
Ensaio
Mulher negra:
tempo de manter a resistência
e se empoderar
Virgínia Marques
VICE-PRESIDENTA DO INSTITUTO CULTURAL CASARÃO DAS ARTES, ARTESÃ, PROPRIETÁRIA DA GRIFE BLACK VIKA
(...) porque deixar de ser racista, meu amor,
não é comer uma mulata.
Elisa Lucinda
Em 2010, o então senador
Demóstenes
Torres
(DEM/
GO) declarou que não ocorreu
estupro de mulheres negras pelos
senhores donos de escravizadas
no período de escravização
no Brasil. Segundo ele, havia
consenso para que ocorresse
a relação sexual. A declaração
dada no mês de março daquele
ano parecia saudar as mulheres
negras. Não é de se estranhar,
pois, em uma sociedade machista
e racista como é a brasileira, esse
tipo de compreensão/declaração
é habitual.
Para um homem branco,
que pertence à uma estrutura
política e social que se dedica
à manutenção de políticas que
possam manter o status quo de
uma elite branca, cuja maioria é
constituída de homens brancos,
que
se
apresentam
como
heterossexuais, emitir esse tipo
24 - REV ISTA CA NJ E RÊ
de opinião não causa o menor
constrangimento.
Não obstante, nós, mulheres
negras, temos travado severas
batalhas
por
melhores
oportunidades, visibilidade e
respeito no cenário nacional.
O movimento feminista e o
movimento de mulheres negras
são relativamente novos no
Brasil. Emergem na década
de 70, consolidando-se como
sujeitos coletivos no transcorrer
das décadas de 80 e 90, período
em que suas ações políticas se
concretizaram.
Nesse contexto, as mulheres
negras, que discutiam suas
especificidades desde meados
da década de 80, tanto no interior
do movimento negro quanto
no do movimento feminista,
não se viam contempladas.
Somos 49 milhões de mulheres
negras, isto é, 25% da população
brasileira. Vivenciamos a face
mais perversa do racismo e do
sexismo por sermos negras
e mulheres. Observamos, no
decurso diário de nossas vidas,
a forjada superioridade do
componente racial branco, do
patriarcado e do sexismo, que
fundamenta e dinamiza um
sistema de opressões que impõe,
a cada mulher negra, a luta pela
própria sobrevivência e de sua
comunidade.
Em 2002, a filósofa Sueli
Carneiro fez por meio de uma
pesquisa
que
analisou
as
estruturas familiares segundo
a raça ou a cor da chefia do
domicílio e constatou que as
mulheres negras são a maioria
entre as responsáveis por
famílias do tipo “mulher com
filhos” (1).
A pesquisa atesta também que
as mulheres e os negros em geral
encontram mais dificuldades
para ocupar postos de trabalho.
A falta de pertencimento
étnico-racial
está
entre
os
traços que definem o perfil
sociodemográfico das mulheres
brasileiras. Essa é a constatação
obtida por uma pesquisa feita pela
Unifem no início do século 21. Esse
diagnóstico ratifica e aprofunda
o quadro de desigualdades
sociais vivido pelas mulheres. A
situação da mulher negra é ainda
mais perversa. Os indicadores
demonstram
importante
defasagem no acesso à educação,
saúde e renda. O resultado do
levantamento foi apresentado no
relatório de Direitos Humanos no
Brasil lançado pela Rede Social de
Justiça e Direitos Humanos em
2005.
Em relação à composição
etária, os níveis são muito
semelhantes entre as mulheres
brancas e as negras na faixa
de 25 a 44 anos. A partir daí,
começa a distinção decorrente
das diferenças de expectativa de
vida. Em 2000, a expectativa de
vida das mulheres brancas era de
73,8 anos. A das mulheres negras
era de 69,5 anos.
O
Mapa
da
Violência
apresentou uma pesquisa sobre
a violência de gênero no país.
O resultado foi divulgado pela
Faculdade Latino-Americana de
Ciências Sociais (Flacso) e enfatizou
dados alarmantes no país a
respeito da violência com a mulher
negra. O resultado mostra que
morreram 66,7% mais mulheres
negras que brancas no Brasil.
1) Carneiro, Sueli. A Batalha de Durban.
In Revista Estudo Feministas, 2002.
Foto: Rosália Diogo
REVISTA CANJ ERÊ - 2 5
L iteratu ra
O estudo foi considerado
inovador pela representante da
ONU Mulheres Brasil, Nadine
Gasman. Uma
“combinação
cruel” se estabelece entre racismo
e sexismo: em uma década (a
pesquisa abarca o período de
2003 a 2013), os feminicídios
contra negras aumentaram 54%,
ao passo que o índice de mortes
violentas de mulheres brancas
diminuiu 9,8%.
Vários pesquisadores têm
se dedicado a compreender
esse fenômeno tão negativo em
relação à mulher negra. Dados
preliminares dão conta de que
o ambiente de violência no qual
vive a maior parte das mulheres
negras, em comparação com a
situação de moradia da mulher
branca, pode ser um dos fatores
determinantes. Em contraponto,
as organizações das mulheres
vem promovendo várias ações
para denunciar as diversas
situações de opressão vividas
pelas mulheres negras. Um dos
exemplos dos movimentos de
reação foi o flashmob realizado
no Centro de Belo Horizonte, no
dia 28 de fevereiro. Um grupo
de mulheres, com uma marcante
presença de negras, gravou a
coreografia de uma dança para
contribuir com a campanha “Um
Bilhão Que Se Ergue” (One Billion
Rising), movimento ativista global
para acabar com a violência
contra a mulher. O movimento
denuncia que uma em cada
três mulheres no mundo foi,
está sendo ou será violentada
ou estuprada na sua vida. Lá
esteve o Casarão das Artes se
solidarizando com a necessária
campanha.
Nesse sentido, são bem-vindas
iniciativas de várias mulheres,
como o poema da poetisa, atriz
e cantora Elisa Lucinda intitulado
“Mulata Exportação”, epígrafe
deste texto, e campanhas como
“Um Bilhão Que Se Ergue” (One
Billion Rising), que jogam luz para a
compreensão das tramas que são
inerentes e relacionadas à mulher
negra no Brasil. Essas ações são
tocantes para o enfrentamento à
postura machista e sexista como
a do Senhor Demóstenes Torres
e de outros cidadãos e cidadãs.
POESIA
Cristiane Sobral
INTEGRANTE DA ACADEMIA DE LETRAS DO BRASIL E DO SINDICATO DOS ESCRITORES
DO DF (CADEIRA 34), ESCRITORA, POETISA E ATRIZ NEGRA.
Só por hoje vou deixar o meu cabelo em paz
Referências bibliográficas
a) Morte de mulheres negras no Brasil
avança 54% em dez anos, aponta estudo.
Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/
rs/noticias/noticia/2015/11/morte-demulheres-negras-no-brasil-avanca-54em-10-anos-aponta-estudo-4898023.
html. Acesso em 20 de janeiro de 2016.
b) LUCINDA, Elisa. O Semelhante. Rio de
Janeiro: Ed.Record, 1998.
Só por hoje
Vou deixar o meu cabelo em paz
Durante 24 horas serei capaz
De tirar
Os óculos escuros modelo europeu que eu uso
Enfrentar a claridade
Só por hoje
Só por hoje
Durante 24 horas
Serei capaz
De contemplar o que sou
Só por hoje
Encarar a claridade
Sem as sedutoras lentes
Que nos ensinam
A desejar ser quem não somos
Só por hoje
Desafiar a claridade
Com os escurecimentos necessários
De um olhar “3 D”
Só por hoje
Só por hoje
Vou deixar o meu cabelo em paz.
2 6 - REV ISTA CA NJ E RÊ
Foto: Rosália Diogo
Ilustração: Leo Ramaldes
REVISTA CANJ ERÊ - 27
C o m p o r ta m e n to
A boneca crespa
Rafaela Pereira
É GRADUANDA EM LETRAS PELA UFMG, MEMBRA DO NÚCLEO DE ESTUDOS INTERDISCIPLINARES
DA ALTERIDADE (NEIA) E PESQUISADORA E COLABORADORA DO PORTAL LITERAFRO
Foto: Rosália Diogo
Foto: Guto Muniz
2 8 - REV ISTA CA NJ E RÊ
- Olha, amor! Uma boneca com o black igual ao
seu!
- Engraçado: houve um momento na minha
infância em que perdi o gosto pelas bonecas.
- Por quê?
- Nunca tive uma que se parecesse comigo.
Brincava com as que eu ganhava, mas
deixava-as de lado. Também não gostava de
contos de fadas, pois eu nunca podia ser a
princesa. Eram bem diferentes de mim. Eu me
interessei mais pelos jogos em vez daquelas
bonecas e de personagens que pareciam tão
iguais!
Entraram em um bar. Começaram a conversar, e
o namorado pediu que ela falasse mais sobre a sua
infância.
“Por volta dos meus 7 anos, minha mãe dizia
que meu cabelo era ruim e dava muito trabalho. Ela
começou a trabalhar fora e não tinha tempo para
me pentear. Sentia agonia por vê-la todo sábado
com rolos na cabeça o dia inteiro. Desejei tê-lo liso
para não usar rolos encapados com páginas de
revistas. Tive que aderir ao acessório. Sair à rua?
Nem pensar! Se chovesse, muito menos. Durante
alguns anos, meus finais de semana foram assim...
E a televisão nunca me ajudava a encontrar alguma
referência. Comecei a crer que ser negra não era
legal. Adorava desenhar pessoas, com diversos
tipos de roupas, mas minhas figuras seguiam o
padrão vigente. Só percebi isso anos depois, quando
encontrei uma pasta e notei que minhas modelos
não tinham traços negros. Sem parâmetros, eu perdi
a inspiração para desenhar. Comecei a ter gosto por
literatura. Matava as aulas de Educação Física para
ir à biblioteca ler Machado de Assis.
“Outro dilema: o lanche na época do jardim de
infância. Ficava aflita quando minha mãe colocava
banana na minha merendeira. Eu dizia que não
gostava só para ela não me obrigar a levar. Impunha
e ameaçava, caso eu voltasse com a fruta para casa.
Eu ficava naquele conflito: comer a banana e correr
o risco de ser chamada de macaca ou voltar com a
fruta para casa e apanhar.
“Voltando ao cabelo, chegou o momento em que
as paranoias da estética me irritaram e resolvi não
relaxar mais. No início foi difícil, a raiz começou a
dar sinais de sua crespicidade e a lisura persistia da
metade do cabelo até as pontas. Ficava estranho.
Minha mãe me perguntava se eu não ia dar um
“jeito”. Ela me deu dinheiro para resolver o problema.
Voltei com o cabelo trançado. Amei aquele visual
novo! Minha mãe fez o maior terror, dizendo que eu
não ia arrumar emprego. Fiquei preocupada, mas
paguei para ver. Então eu me interessei por eventos
culturais sobre a identidade negra e percebi que eu
fazia parte de uma sociedade em que a diversidade
é numerosa, mas nem sempre aceita.
- Ouvindo você, percebo que passei por situações
bem parecidas.
O
namorado saiu, e ela ficou pensando:
“Mudanças estão acontecendo, mas ainda
precisamos ficar na defensiva. Até quando?”.
Percebeu que o namorado ainda não retornava.
Chamou o garçom e perguntou se viu um homem
de dread. Ele respondeu que sim, que havia alguns
minutos e que tinha saído. Pegou a sua bolsa e saiu
do bar, olhando para todos os lados. Passando
pela praça, eis que alguém sai de trás de uma das
palmeiras, segurando um embrulho.
- Uma boneca crespa para a crespa mais linda!
Ela se assustou. Olhou o namorado com ternura e
pegou o presente. Ele adorava fazer surpresas!
- Você fica linda com esses cachos passando pelo
seu rosto!
Não disseram mais nada. Apenas se
abraçaram e se olharam. Eles pensaram na
cumplicidade que havia entre eles, enquanto o black
e os dreads dançavam ao balanço do vento.
REVISTA CANJ ERÊ - 29
Á fr i c a
De combatentes a
cidadãs
As mulheres guineenses na luta pela emancipação
Patricia Godinho Gomes
DOUTORA EM HISTÓRIA E INSTITUIÇÕES DA ÁFRICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA - UNIVERSIDADE CAGLIARI, ITÁLIA. TITULAR DE BOLSA
PÓS-DOC NO PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE ESTUDOS ÉTNICOS E AFRICANOS, PÓS-AFRO, UNVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA.
ESTUDA SOBRE FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL NA GUINÉ-BISSAU, CONDIÇÃO DAS MULHERES NOS PALOP,
FEMINISMOS E RELAÇÕES DE GÊNERO NA ÁFRICA
Falar da participação feminina
na cidadania ativa na GuinéBissau é um exercício complexo.
As mulheres insurgiram ao lado
dos homens desde os tempos
da resistência à conquista
colonial e durante a luta pela
independência.
Demonstraram reconhecida
capacidade de se implicar em
ações em prol da preservação
e da restauração da liberdade
confiscada durante a experiência
colonial. Quem não ouviu falar
na figura imponente da rainha
Pampa da sociedade Bijago que,
no início do século XX, travou
uma batalha sem tréguas contra
a penetração portuguesa?
E quem não conheceu ou
não ouviu falar, numa fase mais
contemporânea, da história das
mulheres responsáveis políticas
como Carmem Pereira ou Teodora
Inácia Gomes, comandantes
militares como Titina Sila,
governantes de regiões das áreas
libertadas como Francisca Pereira
ou ainda membras dos Tribunais
Populares instituídos nas áreas
libertadas como Tenem Camara?
Ao teorizar a luta armada na
Guiné-Bissau, Amílcar Cabral(1)
evidenciou o papel fundamental
das mulheres na revolução
e no processo de construção
nacional. O sucesso de qualquer
tipo de transformação social,
segundo a sua análise, consistia
“em constatar de que forma
a mulher participa no mais
amplo processo de libertação
da sociedade (…). A nossa
revolução nunca será vitoriosa,
se não conseguirmos a plena
participação das mulheres” (2).
Qual era o significado da
libertação das mulheres para
homens como Cabral e para
os seus movimentos? E de que
forma se passou do discurso para
a prática, sem que isso tenha sido
efetivamente verificado?
No caso da Guiné-Bissau, a
questão da emancipação feminina
foi tema de debate político e
abordado continuamente nos
discursos de Amílcar Cabral, que
chamou a atenção desde logo
para o dever de respeitar as
vontades das jovens mulheres
regressadas às próprias aldeias
após a guerra colonial. Não eram
poucas as vezes que, em diálogo
com mulheres e homens das áreas
libertadas, chamava a atenção
para o problema dos casamentos
forçados e para a necessidade de
educar as meninas como forma de
torná-las autônomas, livres e aptas
a fazer as próprias escolhas, quer
no trabalho, quer na vida privada.
Seguindo essa ótica, o esforço
realizado durante a luta armada
foi no sentido de contribuir para
a edificação de uma cultura
nacional ancorada nos valores dos
diferentes grupos sociais da GuinéBissau e inspirada pelas aquisições
de uma cultura científica universal.
Essa visão de sociedade teria
favorecido, na interpretação de
Cabral, a desconstrução política e
econômica do discurso colonial e
a criação e a consolidação de uma
capacidade endógena capaz de
romper com os modelos teóricos
e epistemológicos existentes.
Mas esse caminho exigiria,
como referiu Eliso Macamo(3),
“o desenvolvimento de um
campo intelectual autônomo
de reflexão e de análise que
permitisse
aos
intelectuais
“A nossa revolução
nunca será vitoriosa se
não conseguirmos a
plena participação das
mulheres”
Amílcar Cabral
1) Sobre a biografia de Amílcar Cabral
e a luta armada na Guiné-Bissau
veja: CHABAL, Patrick, Amílcar Cabral:
revolutionary leadership and people’s
war, Cambridge, Cambridge University
Press, 1983; LOPES, Carlos, “Special
issue on Amílcar Cabral”, in African
identities, London, Routledge, 2005;
SOARES SOUSA, Julião, Amilcar Cabral,
vida e obra de um revolucionário, Lisboa,
Vega, 2011; MANJI, Firoze, FLETCHER
JR., Bill (Eds), Claim no easy victories.
The legacy of Amílcar Cabral, Dakar,
CODESRIA/Daraja Press, 2013, 516 pp.;
ANDRADE, Mário de (Org.), A arma da
teoria-Unidade e luta (Obras escolhidas
de Amilcar Cabral), vol.I, Lisboa, Seara
Nova, 1976; DAVIDSON, Basil,Unity
and struggle: speeches and writings of
Amilcar Cabral, Monthly Review Press,
1979, 336 pp.
2) PAIGC, Rapport sur le role politiquesocial et économique de la femme en
guinée et aux iles du cap vert, Conacry,
1972, p.5, FundaçãoAmílcar Cabral, Praia
(Cabo verde).
Ilustração: Rubem Filho
30 - REV ISTA CA NJ E RÊ
REVISTA CANJ ERÊ - 31
africanos um comprometimento
mais direto com as realidades
sociais africanas”. Foi nesse
sentido que Amílcar Cabral
defendeu o conhecimento da
realidade como condição de luta
pelas independências e pelo
desenvolvimento.
A ampliação da luta armada
e a necessidade de organizar
um movimento de libertação
autônomo contribuiriam para a
incorporação das mulheres no
processo de construção nacional.
Nesse contexto tornou-se
imprescindível a participação
delas não apenas nas tarefas de
execução, mas na direção da luta
em todos os escalões, inclusive
nas reuniões dos órgãos de
decisão do movimento. Desse
movimento nasceu a União
Democrática das Mulheres da
Guiné e de Cabo Verde (Udemu)
criada em Conacri, em 1961. A
iniciativa foi antes de eclodir a
guerra colonial na Guiné.
Essa pode ser considerada uma
das estratégias de emancipação
postas em prática. No entanto,
a organização das mulheres
foi criada na vizinha República
da Guiné. Portanto, a Udemu
nasceu fora das áreas libertadas
onde de facto, as populações e
os combatentes criavam, numa
relação de complementaridade,
as bases de uma nova sociedade.
Nessa
fase
inicial
a
organização não incluiu ou incluiu
só marginalmente as mulheres
guineenses
empenhadas
nas
várias
atividades
das
frentes
de
combate.
O fato de a Udemu ter assumido
uma
função
internacional
para a captação de fundos
materiais e financeiros para
o desenvolvimento da luta
armada foi um dos fatores
determinantes de fragilidade da
organização como movimento
político de conscienciatização
e preparação ideológica das
mulheres guineenses. A maioria,
pertencente às comunidades
rurais, acabaria por ficar à
margem da organização feminina
do Paigc, a mesma que tinha sido
criada para responder aos seus
anseios.
Admitindo o inegável impacto
político positivo e, de certa forma,
prático, que o discurso de gênero
produzido por Amílcar Cabral e
pelo Paigc teve na mudança de
mentalidades, algumas narrativas
de mulheres guineenses(4) que
participaram de forma direta
e ativa na luta armada deixam
pressupor que as atividades
desempenhadas
por
elas
reproduziram in toto os papéis
sociais e os estereótipos por
meio dos quais se perpetuaram
as desigualdades de gênero.
3) Citado em FURTADO, Cláudio Alves,
“Desafios teóricos e metodológicos
nos estudos de África: possibilidades e
limites”, in CARVALHO, Maria Rosário,
FURTADO, Cláudio, BARBOSA CORREIA
Wesley, VINHAS, Wagner (Orgs.),
Estudos étnicos e africanos. Revisitando
questões teóricas e metodológicas,
Salvador, EDUFBA, 2014, p.31.
4) Para uma leitura mais aprofundada
sobre testemunhos de mulheres
guineenses que participaram da luta
de libertação na Guiné-Bissau, vejaWW
o meu texto “Sobre a génese do
movimento feminino na Guiné-Bissau:
bases e práticas (1961-1982)”, in Patrícia
Godinho Gomes, Rosália Diogo, Débora
Diniz, Maria Helena Santos (Orgs.),
O que é o feminismo?, Cadernos de
Ciências Sociais (Coordenação de Carlos
SERRA), Maputo, Editora Escolar, 2015.
32 - REV ISTA CA NJ E RÊ

Documentos relacionados