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ENTRE A ARTE E A CENSURA: AS IMAGENS DO SAGRADO CRISTÃO
NA ARTE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA
Cristina de Assis da Silva1
RESUMO
Este artigo tem como escopo analisar o poder e o uso das imagens do sagrado cristão na
Arte Contemporânea Brasileira. Cabe ressaltar que o poder atribuído às imagens cristãs
auxiliaram na composição do imaginário religioso brasileiro, e a analise deste poder na
contemporaneidade foi imprescindível para a compreensão das obras dos artistas Evandro
Prado, León Ferrari, Joãosinho Trinta e Márcia X. Por fim, este artigo propõe uma breve
consideração sobre a censura e reflete sobre os mecanismos que possibilitaram a não
exibição das obras Cristo Mendigo de Joãosinho Trinta e Desenhando em terços de Márcia
X.
Palavras-chave: Imagem; Arte; Poder
ABSTRACT
It is the aim of this article to analyze the power and use of Christian sacred images in
Brazilian Contemporary Art. It’s worth noting that the power allotted to Christian images
helped to form the Brazilian religious imaginary, and that the analysis of this power in the
1
Pós-graduada em História das Artes: Teoria e Crítica (FPA) e graduada em Licenciatura em Artes Visuais
(Faculdade Estácio). Professora de Artes do Estado de São Paulo. E-mail: [email protected].
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contemporary age was indispensable to the understanding of works by artists like Stephan
Doistchinoff, Evandro Prado, León Ferrari, Joãosinho Trinta and Márcia X. Finally, this
article proposes a brief consideration on censorship and reflection on the devices that
enabled the non-display of the pieces Cristo Mendigo, by Joãosinho Trinta and
Desenhando em terços by Márcia X.
Keywords: Image; Arts; Power
INTRODUÇÃO
A premissa deste artigo é analisar o uso de imagens do sagrado cristão na arte
contemporânea e, para elucidar os questionamentos elencados, bem como sustentar os
pressupostos teóricos aqui apresentados, cabe primeiro responder a algumas questões: o
que é o sagrado? O que é imagem? E como o sagrado e a imagem se configuram na arte?
Sobre a questão do sagrado, discorre Mircea Eliade (2008, p.17) “[...]. Ora, a
primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano.” Neste
sentido, o autor o relaciona à outra realidade, que em nada se assemelha a realidade
‘natural’ do homem, sendo uma transcendência ao mundo profano, da qual o homem só
consegue ter conhecimento porque esta se manifesta. Eliade propõe o termo hierofania2,
para indicar a manifestação do sagrado.
Dentro deste universo, cabe à imagem um papel fundamental, pois, segundo
Francis Wolff (2005, p. 20), ela “[...] começa a partir do momento em que não vemos mais
aquilo que imediatamente é dado no suporte material, mas outra coisa e que não é dada por
esse suporte.” Assim, por essa definição, a imagem se converte no veículo máximo da
hierofania, sendo que por ela “[...], o mundo do além torna-se presente aqui embaixo, o
transcendente se torna imanente, penetra neste mundo. Inversamente, graças à imagem,
graças às imagens, o olhar que as contempla eleva-se deste para um outro mundo.”
(WOLFF, 2005, p. 31).
Todavia o início da modernidade estabelece o divórcio entre a imagem e o sagrado,
muito embora o poder a ela atribuído, aparentemente, permanece inalterado na
2
Segundo o autor, a escolha do termo se deu pela etimologia da palavra, cujo significado é “algo de sagrado
se nos revela”. (ELIADE, 2008, p.17).
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contemporaneidade, assim este artigo propõe uma reflexão sobre este poder, dentro de um
universo cristão e pela ótica de Michel Foucault e Francis Wolff. Outro fator importante
analisado é o mecanismo contemporâneo de censura que possibilitou que obras que
utilizaram imagens do sagrado cristão fossem proibidas de serem exibidas, não obstante
buscar revelar quem foram os responsáveis e por que provocaram tais processos junto às
instâncias do Poder Judiciário.
O PODER DA IMAGEM CRISTÃ
As imagens estão por toda parte, e não apenas em anúncios publicitários, elas são
consumidas e compartilhadas, elas pedem e ofertam, elas mentem ou dizem verdades que
ninguém quer ouvir, ora, a imagem vende, e vende a si própria. Imagens não precisam de
palavras, elas são “pura afirmação” (WOLFF, 2005, p. 27) daquilo que elas representam:
um status, uma marca, uma crença, no entanto é pertinente pensar que toda forma de
representação sugere a ausência do real e, nesse sentido, a imagem nunca assumirá a
condição do real.
Todavia, mesmo não assumindo a condição do real, ela possui poder, e a
capacidade de representar é o poder real da imagem, existe a partir do momento em que
deixamos de ver o imediato apresentado (seu suporte: um mosaico, uma pintura, uma foto),
e vemos somente o representado.
Apesar de tal afirmação também se encaixar com relação às imagens cristãs, fazemse necessárias maiores explicações para elucidar o poder que nelas é vigente até a
contemporaneidade.
Em Por trás do espetáculo: o poder das imagens, Francis Wolff (2005) observa
que existem três graus de poder: o primeiro seria o acidentalmente ausente, referindo-se à
imagem de alguém que esta longe no momento, mas que em outras circunstâncias poderia
estar próximo; o segundo seria o substancialmente ausente, referindo-se a imagem daquele
que um dia esteve próximo, mas que nunca mais poderá estar presente (a imagem opera
então como um substituto para o ser ausente); e, por fim, o absolutamente ausente, ou seja,
aquele que nunca esteve presente (referente aos deuses). O poder da imagem no
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cristianismo se evidencia, no entanto, pelo fato de conseguir reunir tanto o poder
substancialmente ausente quanto o poder absolutamente ausente, na medida em que Cristo
é Deus, mas também se fez homem e esteve entre os homens. Segundo Eliade (1979, p.
156) “[...] é a manifestação de Deus no Tempo que assegura, aos olhos do cristão, a
validade das imagens e dos símbolos.”
Por outro lado, conforme Michel Foucault, o poder está relacionado a um discurso
de verdade; cabe aqui compreender a interpretação da palavra verdade segundo a visão
deste autor: a verdade enquanto um conjunto de regras estabelecidas pelos detentores do
saber (intelectuais);
[...]. A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas
coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade
tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos
de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os
mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados
verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da
verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona
como verdadeiro. (FOUCAULT, 1979, versão digital).
Ora, Foucault apresenta a escritura sagrada como um produtor do discurso de
verdade e, por conseguinte, pode-se ver nas imagens dos ícones um prolongamento deste
discurso, por apresentar regras e normas que propõem um direcionamento na vida dos
cristãos.
Os ícones acheïropoïetos3 (Mandilon de Edessa, Véu de Verônica, Santo Sudário)
são as representações imagéticas deste discurso de verdade apresentado por Focault, uma
vez que afirmam a existência de um modelo sagrado dentro da tradição da imagem de
Cristo, propondo a asserção da arte cristã como uma conjunção de duas consciências, a
divina, que produziu o protótipo sagrado, e a humana que reproduzirá este modelo,
orientada pelo arquétipo celeste.
Desta forma, a imagem na arte cristã não é apenas aquela que é vista pelo
espectador, mas antes, é aquela que o vê, nas palavras de Wolff (2005, p. 34) “[...] ela
representa tão bem, que então, não é mais a imagem que representa o deus, é o deus que se
apresenta na imagem.” Este poder foi denominado pelo autor de “ilusão imaginária” que
3
Palavra grega que designa algo feito de forma mística ou “não feito por mãos humanas”.
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“[...] consiste em crer que a realidade tem o poder de sua própria representação, em atribuir
à realidade ausente representada pela imagem o poder de se apresentar ela mesma em
imagem. [...]”. (WOLFF, 2005, p. 38).
Tal é o poder das imagens cristãs, todavia, cabe questionar a validade deste poder
na arte contemporânea, ou antes, entender como os artistas contemporâneos apropriam-se
deste poder para, direta ou indiretamente, questionar o próprio poder da imagem, a
instituição religiosa que o detém ou mesmo a sociedade que o ratifica.
O CONSUMO DE IMAGENS E A ARTE CONTEMPORÂNEA
A contemporaneidade trouxe à tona outras questões sobre a imagem, isto porque os
desenvolvimentos tecnológicos apresentaram o que era impossível até bem pouco tempo: a
imagem tornou-se um bem de consumo.
Vários são os autores que confirmam esta alteração no status da imagem. Segundo
Adauto Novaes, por exemplo:
[...]. À diferença dos momentos anteriores, a imagem hoje se transformou
na mercadoria por excelência, objeto de produção, circulação e consumo,
realizando de forma fantástica o velho axioma: cria-se não apenas uma
mercadoria para o sujeito, mas criam-se, também, sujeitos para a
mercadoria. É este hoje o estatuto da imagem. (NOVAES, 2005, p. 10 grifo do autor).
Não se trata de um conceito de simples absorção, pois se faz necessário pensar em
todo o processo relacionado à indústria cultural4, nesta perspectiva discorre Rodrigo Duarte
que a lógica da mesma tem por objetivo “[...] manipular o comportamento das massas, mas
de um modo que cada indivíduo acredite piamente que sua ação é fruto de decisão pessoal,
[...]”. (DUARTE, 2005, p. 104).
Não cabe, nesta pesquisa, adentrar em todos os questionamentos referentes à
indústria cultural, no entanto, é primordial pensar na importância das imagens nas
sociedades capitalistas, pois estas são movidas por este mecanismo e, segundo Eugenio
4
Termo desenvolvido por Max Horkheimer e Theodor Adorno na obra intitulada Dialética do
esclarecimento. Cf. DUARTE, Rodrigo. Valores e interesse na era da imagem. In: NOVAES, Adauto (Org.).
Muito Além do Espetáculo. São Paulo: Senac São Paulo, 2005, p. 102.
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Bucci (2005, p. 219): “O capitalismo atual tem sua mercadoria antes na imagem da coisa
do que na coisa corpórea. É como imagem que a mercadoria circula. É sua imagem que
precipita seu consumo – é sua imagem que inicia, e que embala, a realização de seu valor.”
Desta forma, a arte não poderia de nenhuma forma abster-se de questionar a
imagem enquanto objeto de consumo, ou como propõe Argan “consumo psicológico”:
[...]. A coisa foi substituída por sua imagem; a imagem é frágil, gasta-se
logo; as pessoas se acostumaram a se desfazer de coisas que ainda
podiam servir, mas cuja imagem tornava-se insuportavelmente batida.
Descobriu-se que o consumo psicológico era infinitamente mais rápido
do que o consumo objetivo; basta apresentar um novo tipo de produto, e
imediatamente o velho torna-se obsoleto, caduca. [...]. (ARGAN, 1992, p.
581).
Na década de 1950, surge um fenômeno interessado em criar arte a partir da
comunicação de massa, do cotidiano e do consumismo de imagens, ou seja, a Pop Art. Em
uma sociedade regida pela indústria cultural as imagens explodem em todas as direções, na
forma de anúncios publicitários, de notícias e de filmes, tornando-se personagem principal
neste regime de comunicação em massa. Celebridades, histórias em quadrinhos, manchetes
de jornais, marcas famosas, foram altamente exploradas, e formaram o arcabouço de uma
arte que se propôs a expor o desconforto com a sociedade consumista.
Andy Warhol (1928 - 1987) é um artista deste fenômeno, e de extrema relevância
para a arte, pois as suas obras esgotarão ao máximo a questão da repetição e da saturação
da rede, retirando as imagens dos meios de comunicação de massa, absorvendo-as e
dissolvendo-as, inserindo-as, tautologicamente, nos circuitos da arte. Conhecedor dos
mecanismos da industrial cultural, logo transformará seu próprio nome em uma marca,
inserindo-a no mercado.
Nesta perspectiva, segundo Anne Cauquelin (2005, p. 107), a obra de Warhol é
dupla, pois “[...] de um lado, ela irá se situar no sistema mercantil, mas de outro, ao exibir
notoriamente esse sistema, ela o criticará – [...]”. Imagens do cotidiano retiradas de páginas
de jornais (acidentes, mortes, desaparecimentos), marcas como a Coca-Cola e a sopa
Campbell’s, passarão pelo processo de saturação de Warhol: “É o impacto sobre o público
que importa; é preciso cobrir as paredes, repetir incessantemente, saturar. Porque a
comunicação funciona como tautologia, como redundância. [...]”. (CAUQUELIN, 2005, p.
113).
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Artistas da contemporaneidade tomaram emprestados os conceitos criados por
Warhol e desenvolveram em suas obras críticas a sociedade e ao consumismo, todavia cabe
a este artigo prender-se àqueles que buscaram no arcabouço imagético cristão os elementos
necessários para o desenvolvimento de seus trabalhos.
Evandro Prado tem marcante influência da Pop Art, bem como uma linguagem
comunicativa própria da publicidade, apropriada a uma problemática que aponta
justamente para o consumismo desenfreado. Em 2006 expõe no MARCO (Museu de Arte
Contemporânea do Mato Grosso do Sul) a série intitulada Habemus Cocam, que associava
imagens sacras a uma das marcas de refrigerante mais conhecida e consumida no Brasil e
no mundo: a Coca-Cola5.
Não é a primeira vez que a arte se apropria de sua imagem. Artistas como Cildo
Meireles e o próprio Andy Warhol já apontavam para o consumismo e para a saturação
imagética partindo da reflexão sobre a imagem da marca.
No entanto, ao unir símbolos cristãos às imagens do refrigerante, o artista
ressignifica os valores de ambos, questionando não só o consumo da marca, como
inversamente propõe uma reflexão sobre o consumo da própria religião: Evandro
transforma o sagrado em bem consumível e transforma uma marca em objeto sacralizado
O artista apropria-se de um texto de Frei Betto, que afirma em um dos trechos: “[...]
Da religião do consumo não escapa nem mesmo o consumo da religião, apresentada como
um remédio miraculoso, capaz de aliviar dores e angústias, garantir prosperidade e alegria.
[...]”. (CHRISTO, 2001). As obras de Evandro Prado propõem este duplo questionamento:
o consumo de uma marca com fervor religioso, e o consumo da religião como uma marca
mundial.
A obra Sagrada Coca-Cola de Jesus (Figura 1) é um exemplo direto desta
apropriação e deste questionamento, a partir do momento em que o artista substitui o
Sagrado Coração de Jesus pela imagem de uma lata de Coca-Cola. Para a Igreja o Sagrado
Coração de Jesus é símbolo do duplo amor de Jesus Cristo pela humanidade: amor
humano, uma vez que Jesus amou a todos com o coração de um homem e de amor divino,
5
Estima-se que seja consumido por dia 1,3 bilhão de litros do refrigerante no mundo. Cf. MEDEIROS,
Cristina. Coca-Cola é isso aí. Super Interessante. Brasil, fev. 1991. Disponível em:
<http://super.abril.com.br/alimentacao/cola-cola-isso-ai-439759.shtml>. Acesso em: 20 out. 2013.
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uma vez que por intermédio de Cristo, Deus amou a toda humanidade. Segundo Eluiza
Bortolotto Ghizzi e Richard Perassi (2006) os trabalhos de Evandro Prado confirmam “[...]
em tom de denúncia que todos os símbolos foram tomados pela cultura de consumo e
transformados em mercadoria.”
Figura 1: Evandro Prado, Sagrada Coca-Cola de Jesus, 2005
Acrílico sobre tela (150 X 110cm); Coleção Particular; Campo Grande
Fonte: PRADO, 2005
Todavia críticas aos símbolos cristãos não são novidade no circuito das artes.
León Ferrari (1920 - 2013) é uma figura importantíssima no cenário da arte
contemporânea na América Latina e revelou-se indispensável a esta pesquisa, tanto pela
influência exercida nos trabalhos de Evandro Prado quanto pela provável influência da
cultura brasileira, com relação ao culto de imagens, em suas obras. Segundo o doutor em
História Emerson Dionísio Gomes de Oliveira (2009, p. 05): “[...]. A convivência com uma
cultura que admite a interferência sob as imagens religiosas durante quinze anos deve
certamente ter dado ao artista um território mais livre para as formulações que em seu país
natal (Argentina) seriam, muito provavelmente, recebidas com polêmica.”
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A partir da obra A Civilização Ocidental e Cristã (figura 2), o artista se apropria da
imagem do sagrado cristão para desenvolver a sua crítica sobre a guerra e indiretamente
sobre a Igreja. Nesta instalação León Ferrari apresenta uma imagem de Cristo amarrada em
um caça norte-americano F-107: “[...] trata-se de uma imagem-manifesto, uma crítica aos
Estados Unidos frente à guerra do Vietnã, o que atenua uma provável crítica direta à
religião cristã.” (OLIVEIRA, 2009, pp. 04-05).
Figura 2: León Ferrari, A Civilização Ocidental e Cristã, 1965
Fonte: CALDEIRA, 2013
Todavia as obras posteriores a esta terão maior vínculo com os níveis do poder
religioso. Segundo Canclini (2012), “A obra de Ferrari questiona a opressão religiosa e
política junto com os modos de representar. [...]”. Neste sentido, o autor refere-se à
problemática que Ferrari irá desenvolver com relação à série Ideias para Infernos (2000) e
com a obra Juízo Final (1985): uma crítica direta a Igreja e a imagem do inferno que esta
propõe, ou seja, a concepção de torturas eternas para os pecadores que, não obstante ter
sido temática de muitos artistas, será também responsável pelo imaginário da cultura
ocidental.
É sobre este imaginário que León Ferrari incidirá, principalmente em obras que o
reproduzam, realizadas durante a Renascença europeia, período no qual proliferavam
sermões apocalípticos e obras escatológicas, como as de Bosch, Giotto e Michelangelo.
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A obra Juízo Final foi iniciada no período em que Ferrari viveu no Brasil e
montada pela primeira vez no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM - SP).
Consistia em uma instalação na qual pombas presas dentro de uma gaiola defecavam sobre
uma reprodução da obra Juízo Final (1541) de Michelangelo. Conforme Oliveira (2009, p.
05) “[...] fruto de uma lenta reflexão sobre a punição mais difundida pela Igreja, aquilo que
Ferrari considera como a chantagem do inferno, [...]”.
Em Ideias para Infernos, elementos do cotidiano (liquidificadores, torradeiras,
frigideiras) são chamados a torturar pequenas imagens sacras. De certa forma, esta
apropriação estende a crítica religiosa ao próprio crente, que transforma o inferno em lugar
comum de sua relação com a igreja e com a própria vida.
Este trabalho foi exposto em 2004, no Centro Cultural Recoleta (Buenos Aires) e
sofreu dura oposição. Um dos responsáveis pela campanha contra a mostra foi o cardeal
Jorge Bergoglio, na época arcebispo de Buenos Aires e atual papa da Igreja Católica.
Segundo um senso da Associação Cristo Sacerdote6 a exposição apresentava “[...] 51
insultos a Jesus Cristo, 24 a Virgem Maria, 27 aos anjos e santos, e 3 diretamente a Deus e
7 ao Papa” (OLIVEIRA, 2009, p. 02), cerca de 10 obras, das quatrocentas expostas, foram
quebradas. Após manifestações de intelectuais e de artistas a exposição foi reaberta.
A obra de León Ferrari encontra força nas imagens: nas imagens da guerra e nas
imagens do sagrado. São estas duas potências que levaram o artista a um reconhecimento
no cenário internacional das artes, o que Canclini (2012, pp. 168-169) denominou de
“ressonância tardia”. Assim, é o próprio desconforto produzido pelas obras de Ferrari, ao
associar o sagrado cristão a guerras e a genocídios, que traz o artista para a ação própria da
arte contemporânea, isto é, o deslocamento do espectador de uma zona de observação para
uma zona de reflexão.
A tentativa de censura das obras destes dois artistas7 promove outro caminho para
as discussões sobre a arte contemporânea, ou seja, até que ponto é possível falar em
liberdade de expressão artística?
6
Associação de fiéis da Igreja Católica Apostólica Romana, estabelecida como pessoa jurídica, criada por
decreto pelo arcebispo da Arquidiocese de Évora, Portugal.
7
O arcebispo de Campo Grande, dom Vitório Pavanello, moveu uma ação criminal por vilipêndio público às
imagens sagradas (ação enquadrada no art. 208 do código penal e refere-se a desrespeito a ato ou objeto de
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A CENSURA CONTEMPORÂNEA
É lugar comum falar de censura em períodos históricos específicos, como os dos
tribunais de inquisição ou das ditaduras. Embora, considerados antinaturais aos olhos da
sociedade contemporânea, vinculam-se a processos históricos que só foram possíveis
porque estavam em concordância com os valores morais existentes dentro de cada período.
E, segundo a historiadora Creuza Oliveira Berg (2002, PP. 53-54),
A censura não é senão parte do complexo aparelho montado por aqueles
que detêm o poder, para controle da sociedade. Aparelho que, de posse do
conhecimento muitas vezes profundo dos valores presentes na
consciência coletiva, recria a verdade a seus moldes e segundo seus
interesse e necessidades, [...].
Todavia, quando trazidos à contemporaneidade, tais aparelhos parecem
completamente deslocados de seu tempo histórico, e acabam por produzir sentidos
totalmente diferentes daqueles a que se propunham. Este é provavelmente o caso das obras
O Cristo Mendigo, de Joãosinho Trinta, e Desenhando em terços, de Márcia X, sobre os
quais esta pesquisa passa a apresentar uma breve análise.
No carnaval de 1989 (um ano após ser assinada a Constituição Federal de 1988,
marco do fim do período ditatorial), Grêmio Recreativo Escola de Samba (GRES)8 BeijaFlor de Nilópolis, surpreendeu todo o público presente na Marquês de Sapucaí9, ao
apresentar o enredo Ratos e Urubus, larguem minha fantasia!, do carnavalesco10 Joãosinho
Trinta (1933 - 2011).
culto religioso.) contra as obras de Evandro Prado. A ação foi arquivada, no entanto a polêmica serviu para
promover a notoriedade da obra do artista e para fomentar a discussão entre a arte, o sagrado, o consumismo
e a censura.
8
Os primeiros grupos organizados de foliões que festejavam o carnaval no Rio de Janeiro organizavam-se em
blocos, dos quais se desenvolveram as escolas de samba. Em 1934 o delegado Dulcídio Gonçalves se recusou
a registrar o nome original do bloco Vai Como Pode, que passou então a se chamar Grêmio Recreativo
Escola de Samba Portela. Desde então o nome fantasia das escolas de samba passou a ser precedido pela
sigla GRES. Para um estudo mais aprofundado ver: LIMA, Fátima Costa de. Alegoria Benjaminiana e
Alegorias Proibidas no Sambódromo Carioca: O Cristo Mendigo e a Carnavalíssima Trindade. 2011. 441f.
Tese (Doutorado) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, pp. 85-86.
9
Rua onde se localiza o Sambódromo (Passarela do Samba) do Rio de Janeiro, projetado por Oscar
Niemeyer e construído em 1984.
10
Profissional responsável pela produção e organização do desfile de uma escola de samba.
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25
O carro abre-alas11 desta escola destacaria uma representação do Cristo Redentor
vestido com trapos, no entanto, tal imagem não agradou a cúria religiosa do Rio de Janeiro
e, a pedido do então arcebispo Dom Eugênio Salles, a justiça emitiu uma ordem judicial
impedindo que a imagem fosse exposta. No entanto, ao contrário de retirar a alegoria do
desfile, o que é regulamentado pelo LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba do
Rio de Janeiro)12, Joãosinho Trinta optou por manter a alegoria, ainda que coberta por
plásticos negros. Em vez do Cristo, via-se na avenida uma massa negra na qual se
destacava a frase “Mesmo proibido, olhai por nós!” (figura 3).
Figura 3: Joaõsinho Trinta, Cristo Mendigo, 1989
Fonte: LIMA, 2011, p. 71, il. Color
11
O primeiro carro alegórico do desfile de cada escola.
12
Fundada em 1984, a partir da união de dissidentes da Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio
de Janeiro, o LIESA regulamenta os desfiles deste então. Para um estudo mais aprofundado ver: LIESA. Liga
Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em:
<http://liesa.globo.com>. Acesso em: 05 out. 2013.
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26
Ao refletir sobre este episódio, Fátima Costa de Lima (2011, p. 28) assim se coloca:
“[...]: mais do que desconstruída, a estátua carnavalesca foi sobreconstruída, travestida pela
sobreposição de materiais. O que resultou foi um Cristo presente, mais invisível. [...]”.
O enredo criado por Joãosinho Trinta possuía um caráter duplamente crítico, em
um primeiro momento por levar à avenida um carnaval sem o luxo que o consagrara, feito
de materiais recicláveis. Assim, o carnavalesco voltava-se àqueles que o haviam criticado
pelos carnavais anteriores que, segundo estes, retiravam o caráter popular da festa e
entregava-a às elites. Por outro lado, o enredo de Joãosinho também é uma crítica à
situação do país, não só levantando a questão do lixo físico acumulado, como também do
lixo moral, do mental e do espiritual (aqui representado pelo Cristo Mendigo). A
imposição da Igreja era algo que não fazia parte do enredo de Joãosinho e, não obstante, a
polêmica gerada corroborou para fomentar a questão do lixo espiritual: ao julgar e coibir
uma manifestação artística, impondo uma censura nos moldes da Inquisição e da ditadura.
De acordo com Lima (2011, p. 101), o Cristo Mendigo pode ser visto como um réu de um
tribunal barroco.
A imagem velada do Cristo propõe muito mais reflexões do que talvez ocorresse
caso tivesse desfilado sem a cobertura de plástico. O poder que a Igreja detém sobre a
justiça e a política de um Estado é totalmente exposto pelo negro que envolve a alegoria,
revelando a ação do complexo aparelho, sobre o qual discorreu Berg. Entretanto este poder
foi manipulado pelo artista, pois a partir do momento em que este substitui a imagem pela
frase, ele retira o Cristo do jugo da Igreja e entrega-o, ainda que velado, aos foliões.
A escola de samba Beija-Flor recebeu o segundo lugar no desfile e, como tal,
participou do desfile das campeãs, uma semana após o carnaval. E aqui outra cena propõe
novas reflexões.
No primeiro desfile, a ala que acompanhava a alegoria do Cristo era formada por
atores, caracterizados de mendigos13. Para o desfile das campeãs, Joãosinho convidou
mendigos e moradores de rua para compor a ala, personagens reais de uma alegoria
verdadeira, que em meio ao desfile começaram a despir a imagem, retirando do Cristo o
seu manto negro (figura 4). Um tanto despida e um tanto velada, a imagem produziu um
13
Segundo Lima, a ala era formada pelo grupo de teatro Tá na Rua e por estudantes da Escola de Teatro da
Universidade do Rio de Janeiro (Uni Rio). (LIMA, 2011, p. 114).
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27
questionamento próprio da arte contemporânea: a total inserção da arte nos mecanismos
que movem a sociedade, e a interferência do povo em sua construção. Já a massa não é
mais apenas observadora do espetáculo, agora ela está a ele integrada, como parte da
própria obra, e muito embora tais acontecimentos não participassem do pensamento inicial
do artista, este é o momento em que a obra ganha vida e cria uma existência autônoma,
independente daquele que a produziu.
Figura 4: Joãosinho Trinta, Cristo Mendigo no desfile das campeãs, 1989
Fonte: LIMA, 2011, p. 115, Il. color
[...]: o Cristo Mendigo se repetiu, representando-se. Mas a
representabilidade da Ala dos Mendigos foi problematizada (ao serem a
ela integrada os mendigos reais); e o efeito causado por sua performance
atualizada pelo poder destrutivo da massa carnavalesca produziu outro
fato artístico da relação dialética entre o mendigo representado e o
mendigo real. Com isso, instaurou um espaço de indeterminação entre
vida e representação.( LIMA, 2013)
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A interferência da Igreja na obra de Joãosinho evidencia a situação política de um
país que acabava de se desvincular das amarras da ditadura, porém ainda possuía
resquícios destas amarras. No entanto, não é possível dizer o mesmo da obra de Márcia X.,
exposta 20 anos após o suposto fim da censura no Brasil.
De camisola branca ela desenha, calmamente, diversos pênis na sala de jantar em
processo de restauração da Casa de Petrópolis – Instituto de Cultura. Foram usados entre
400 e 500 terços para compor o trabalho, em um processo ininterrupto, que levou cerca de
6 horas para ser concluído (Figura 5). Desenhando em terços (2000 - 2003) demandou
muita paciência da artista Márcia Pinheiro (1959 - 2005) ou, simplesmente, Márcia X.14,
em uma performance da qual resultaram vídeos (TALES, 2008), fotografias e muita
polêmica.
Figura 5: Márcia X, foto da performance Desenhando em terços, 2000
Fonte: X. Márcia. Op cit., Il. Color
14
Márcia X., adotou este nome após a polêmica de uma performance na qual aparece na Bienal do Livro de
1985, vestida apenas com uma capa preto sobre outra transparente, sem nada por baixo. Durante a
performance a artista despe-se até ficar totalmente nua. A estilista homônima Márcia Pinheiro reage à
exposição por dedicar-se a vestir e não a despir as pessoas. A partir desse momento Márcia passa a adotar o
X., no seu nome, primeiro como Márcia X. Pinheiro, e em seguida apenas Márcia X.
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Segundo Tales Frey (2010, p. 14), que pautou sua tese de mestrado na análise
crítica das obras de Márcia X., a artista rompe com a raiz conservadora de matriz cristã,
“[...], através de uma crítica incisiva ao que ainda é considerado absoluto por grande parte,
não só da população brasileira, mas do mundo ocidental em geral.”. Desta forma, Márcia
satura o circuito da arte com objetos eróticos, incitando sobre o direito ao prazer sexual e
expondo, em suas produções, todo o seu descontentamento com uma imposição casta e
pudica do feminino (seja por um suposto poder masculino, seja por elementos morais e
religiosos), em performances como Lovely Babies de 1993 ou na série Fábrica Fallus.15
Sobre os seus próprios trabalhos, Marcia X. considera que as suas
performances/instalações reúnem elementos característicos da religiosidade brasileira, e
refletem obsessões culturalmente associadas às mulheres, como o sexo, a beleza, a
alimentação, a rotina, o consumo e a limpeza. Assim, “O uso de roupas brancas, camisolas
e saias pregueadas, contribui para evocar enfermeiras, freiras, noivas, estudantes, filhas de
Maria, boas meninas e boas moças, agindo no limite entre a consciência, o sono e o transe
religioso. [...]”. (X. Márcia).
Em 2005, o curador Tadeu Chiarelli organiza no Centro Cultural do Banco do
Brasil uma exposição itinerante (a exposição começou em São Paulo, foi para o Rio de
Janeiro e em seguida para Brasília) denominada Erótica – Os sentidos nas Artes, reunindo
obras de diversos artistas que apresentavam de forma sutil ou explícita alguma relação com
o conteúdo erótico: “O intuito desta exposição é apresentar objetos e objetos de arte que
tragam, na constituição material e imagética de todos eles, componentes eróticos evidentes
ou sutis, capazes de, reunidos, constituírem uma erótica específica.” (CHIARELLI, 2005,
p. 8)
Entre artistas nacionais e internacionais, participavam da exposição obras de Pablo
Picasso, Auguste Rodin, Ismael Nery, Tunga e também a artista Márcia X. com a foto da
performance Desenhando em terços (figura 6).
15
Para um estudo mais aprofundado das obras ver: X., Márcia. Márcia X. Brasil, s.d. Disponível em:
<http://www.marciax.art.br/index.asp>. Acesso em: 05 set. 2013.
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Figura 6: Márcia X. Desenhando em terços, 2000 - 2003
Fonte: X. Márcia. Op cit., Il. Color
Em São Paulo a exposição transcorreu tranquilamente, porém no Rio de Janeiro a
obra gerou enorme polêmica: o ex-deputado Carlos Dias Filho, ligado ao grupo Opus
Christi16, apresentou um queixa-crime17, no 1º DP (Praça Mauá), contra os organizadores
da exposição, por considerar que a imagem ofendia o catolicismo.
O então arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eusébio Scheid, manifestou seu apoio ao
ex-deputado, amparado pelo presidente da Opus Christi, João Carlos Rocha, que entrou
com uma liminar proibindo a exposição da obra em território nacional. Segundo
reportagens do período (OSÓRIO, 2006) cerca de 3 mil fiéis ameaçaram cancelar suas as
contas no Banco do Brasil S/A, caso a obra fosse mantida na exposição.
O resultado foi um espaço vazio e muitos protestos. Artistas que também tinham
obras na exposição organizaram passeatas, desfilavam pela exposição usando camisetas
com a imagem da obra retirada, porém a obra não retornou à exposição e também não
seguiu para Brasília, como seria o seu destino.
16
Grupo religioso vinculado a Igreja Católica.
17
Segundo o glossário jurídico do Supremo Tribunal Federal o termo queixa-crime refere-se à “Exposição do
fato criminoso, feita pela parte ofendida ou seu representante legal,para iniciar processo contra o autor ou
autores do crime. [...]”. Cf. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Glossário Jurídico. Brasília – DF.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/glossario/ verVerbete.asp? letra=A&id=203>. Acesso em: 20
nov. 2013.
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O então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, publicou uma nota na imprensa
manifestando sua opinião sobre o ocorrido:
Toda censura é inaceitável. Os critérios para seleção de obras exibidas
numa exposição devem ser de natureza estética, sob a responsabilidade de
curadores ou de quem for designado para a tarefa.
Dessa forma, o Ministério da Cultura estranha a censura feita à obra de
Márcia X, na exposição Erótica, no Centro Cultural Banco do Brasil
(CCBB) do Rio de Janeiro.
[...]
Segundo a Constituição Brasileira, é "livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença". Por isso, não pode haver mais em nosso país nenhum
tipo de interdição a obras de arte e a outras formas de expressão.
Esperamos que a decisão do CCBB seja revista em nome da liberdade
garantida por lei. (GIL, 2006).
No catálogo da exposição consta um texto escrito pelo curador para descrever não
só as obras apresentadas, como também o espaço utilizado. Em dado momento, o autor
refere-se ao cofre do banco da seguinte maneira:
[...]. Se antes ele guardava o tesouro do Banco, hoje evoca o poder que as
instituições bancárias assumiram na sociedade capitalista e, em última
instância, o próprio poder que essa sociedade, pautada em hierarquias
firmemente estruturadas, exerce sobre o indivíduo. (CHIARELLI, 2005,
P. 13).
Esta frase parece refletir bem o estado em que a Arte Contemporânea se encontra,
pois são as hierarquias sociais que aparentemente definem o que pode e o que não pode ser
apresentado, mesmo em espaços claramente destinados a esse fim, como o CCBB. A
ameaça de perda de clientes, e, portanto, da perda de lucros, levou a instituição a retirar a
obra da exposição, antes mesmo de qualquer parecer direto da justiça, evidenciando o
poder desta sociedade capitalista citada por Chiarelli.
Todavia, tanto na obra de Márcia X. quanto no trabalho de Joãosinho Trinta, ou
mesmo na tentativa de censura da série de Evandro Prado, os acusadores estão sempre
embasados na atual legislação. O Código Penal Brasileiro, por exemplo, garante detenção
de um mês a um ano, ou multa, para aquele que “[...]; vilipendiar publicamente ato ou
objeto de culto religioso.” (Brasil, 1940). E, neste sentido, a própria Constituição Federal
(Brasil, 1988) encontra-se numa encruzilhada, pois na mesma medida em que apresenta em
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seu corpus a garantia de liberdade de expressão intelectual e artística e ainda assegura que
o Estado deve apoiar a produção, promoção e difusão de bens culturais, também garante a
proteção às liturgias e estabelece que os veículos midiáticos devem atender aos princípios
de valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Desta forma, este é um tema que não apresenta nenhuma forma fácil de resolução,
porém, por este estudo, foi possível vislumbrar que enquanto a arte se utilizar de imagens
das iconologias cristãs como objeto de crítica ao poder ainda vigente, o confronto entre
arte e religião será sempre inevitável. E, ainda que o fim da censura tenha sido anunciado
pela Constituição de 1988, o desfecho desta história parece estar muito longe de ser
alcançado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Arte Contemporânea move-se de forma tão complexa e instável que mapear suas
várias facetas torna-se uma tarefa árdua, ainda que prazerosa. No entanto, sempre haverá a
necessidade de se criar delimitações, ou antes, enquadramentos dentro das diversas
possibilidades de abordagem de suas incontáveis linguagens.
Desta forma, este recorte centrou-se em trabalhar com as imagens do sagrado
cristão. Porém cabe aqui outra delimitação que se verificou necessária, pois o critério
considerado para a escolha das obras contemporâneas foi a apropriação do sagrado pelos
artistas, e não o caminho oposto. Ora, a arte sacra propriamente dita continua a ser
produzida, dentro dos cânones estabelecidos pela Igreja, como o Cristo do Terceiro
Milênio de Cláudio Pastro, encomendado pelo Vaticano, porém tais obras possuem um
claro discurso litúrgico o qual, no entanto, não era o foco desta pesquisa.
Porém se assume aqui o evidente poder que a imagem sacra possui na
contemporaneidade, muito mais externada em um país como o Brasil no qual a maioria da
população se diz católica. Nossas Senhoras são coladas em janelas de carros, Cristos são
tatuados nos corpos, pintados em muros, estampados em cartazes e camisetas; a televisão
inunda-se de filmes sobre a vida e a morte de Jesus Cristo; de séries sobre a bíblia, de
programas religiosos e canais próprios da Igreja.
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Um caso de 1995 gerou enorme polêmica no país, quando o bispo Sérgio Von
Helder, membro da Igreja Universal do Reino de Deus, chutou em um programa na TV
Record uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, santa padroeira do Brasil. Alvo de
revolta de fiéis, e não fiéis, o bispo foi processado em 1997 por incitação à discriminação
religiosa e vilipêndio à imagem sacra. Não cabe apoiar ou repudiar tal atitude, porém,
estendendo este acontecimento à arte, pode-se propor um pensamento reflexivo sobre a
liberdade de expressão. Que tênue linha é esta que separa a liberdade de expressão da
ofensa? Chutar uma imagem, como fez o bispo, ou batê-la no liquidificador, como fez
Ferrari, tem significações diferentes? Ou, pelo contrário, são frutos de um mesmo
pensamento crítico com relação a um tradicionalismo imagético imposto? Não teria
chegado o momento da Igreja se tornar mais flexível para com as diferentes formas de
pensar, e de se expressar da atualidade?
Algumas questões enveredam muito mais para o campo filosófico, a estas tal
pesquisa não tinha a pretensão de abarcar. Todavia, se é inalcançável compreender a linha
que separa a liberdade de expressão dos dogmas religiosos, pode-se, no entanto, ter a
certeza de que na arte contemporânea os artistas que se apropriam dos elementos sacros
estarão, a todo instante, permeando este caminho. Se a motivação do bispo Helder não é
compreensível, pode-se compreender a motivação de León Ferrari, de Evandro Prado,
Stephan Doistchinoff, Joãosinho Trinta e Márcia X. Não se trata de avaliar as convicções
religiosas destes artistas, ainda que nenhum deles tenha se mostrado adepto do
Cristianismo, porém compreender que estes buscaram, nas pesquisas e na arte, maneiras de
questionar e criticar a sociedade (seu consumismo e sua intolerância), o poder que a
imagem assume na contemporaneidade (saturando, questionando e alternado seus valores)
e a própria Igreja (seus dogmas e seu poder).
Quanto à proposta de analisar os mecanismos de censura aplicados nos trabalhos de
Joãosinho Trinta e Márcia X., percebe-se que, tal como a bíblia, a Constituição Federal
Brasileira possibilita uma extensa gama de interpretações que, por vezes, refletem os
valores morais de alguns dos envolvidos e nem sempre se atentam para a pluralidade
cultural da qual a sociedade é formada.
Esta pesquisa é apenas o prelúdio de um estudo muito mais longo, que ainda possui
muitos caminhos a serem explorados (principalmente com relação às conversões
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semióticas: as mudanças na qualidade dos signos dependendo do seu campo de relação), e
muito embora as estradas que ligam a arte e a religião sejam quase sempre tortuosas, são,
com frequência, incrivelmente ricas.
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